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11/09/2019 Mero aborrecimento: impropriedades à luz da teoria da interpretação - JOTA Info

ARTIGO

Mero aborrecimento: impropriedades à luz da teoria da


interpretação
Não são raras as hipóteses em que o inadimplemento contratual repercute diretamente sobre a esfera
existencial da pessoa humana

JOÃO QUINELATO
RODRIGO DA GUIA SILVA

04/11/2018 08:05

Imagem: Pixabay

A demora excessiva na espera da la do banco, o atraso na entrega de um


empreendimento imobiliário ou de um eletrodoméstico, a recusa indevida de uso de
cartão de crédito e a inscrição indevida do nome de um consumidor nos cadastros
restritivos de crédito: em comum, trata-se de fatos corriqueiros que, a princípio, não
repercutiriam na esfera moral do indivíduo e que não passariam de meros
dissabores inerentes à vida em sociedade. Certo? Depende – e reside precisamente
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nessa resposta (de remissão ao caso concreto) o escopo destas breves


considerações.

O papel de protagonismo das relações de consumo para a satisfação das mais


básicas necessidades humanas no século atual aprofundou a hipossu ciência
(técnica, econômica ou informacional) dos consumidores, colocando-os em
posições de quase (e quiçá integral) dependência dos grandes fornecedores. A falha
no fornecimento de energia durante uma cerimônia de casamento ou a recusa
indevida ao tratamento de grave doença revelam que o descumprimento dos
contratos pode produzir efeitos que não necessariamente se cingem à esfera
patrimonial. Com efeito, não são raras as hipóteses em que o inadimplemento
contratual repercute diretamente sobre a esfera existencial da pessoa humana,
atingindo aspectos inerentes à sua dignidade.

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Tais observações estão na base das preocupações com que a advocacia uminense
recebeu a notícia da aprovação, em 22/11/2014, da Súmula 75 do Tribunal de
Justiça do Estado do Rio de Janeiro, que assim dispõe: “O simples descumprimento
de dever legal ou contratual, por caracterizar mero aborrecimento, em princípio, não
con gura dano moral, salvo se da infração advém circunstância que atenta contra a
dignidade da parte”.

Sem prejuízo ao propósito conciliador que parece ter inspirado o Tribunal, a frieza da
literalidade do enunciado sumular ameaça a efetivação da garantia constitucional de
ampla reparação dos danos morais (art. 5º, V e X, da Constituição). Tal ameaça tem
sido diuturnamente concretizada em decisões judiciais que negam legítimos pleitos
indenizatórios sob a genérica alegação da impossibilidade de con guração do dano
moral em razão do inadimplemento contratual. O cenário revela-se especialmente
grave porque a prática revela que uma expressiva parcela das decisões invoca o
referido entendimento sem explorar a ressalva contida na parte nal do próprio
enunciado sumular.

O entendimento jurisprudencial associado à Súmula 75 do TJRJ dá sinais de


fraqueza há tempos. Diversas iniciativas já vêm reconhecendo a necessidade
imediata de extirpar o referido entendimento da práxis uminense e nacional. Assim
sucede, por exemplo, com o pedido de cancelamento protocolado no TJRJ pela
Procuradoria-Geral da OAB/RJ, bem como com o chancelamento da tese do desvio
produtivo do consumidor pelo STJ (e.g., AREsp 1.260.458/SP; AREsp 1.241.259/SP)
e mesmo com a superação recente da Súmula 75 pela 21ª Câmara Cível do próprio
TJRJ (Apelação nº 0027164-09.2017.8.19.0205). Todas essas iniciativas dão conta

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de que é preciso repensar a matéria a partir de duas principais premissas: os perigos


do método subsuntivo e a importância central da fundamentação das decisões
judiciais.

A metodologia do direito civil-constitucional, desenvolvida pela escola de Direito Civil


da UERJ, apresenta contributos úteis para a análise e a superação do atual estado de
coisas. Nesse sentido, a consagração da dignidade da pessoa humana como
fundamento da República (art. 1º, III, da Constituição Federal) impõe o
reconhecimento da tutela instrumental das situações jurídicas patrimoniais em prol
da promoção das situações existenciais.

O conceito mais acurado de dano moral, permita-se resgatar, perpassa justamente


pelos 4 (quatro) principais postulados losó cos que compõem a dignidade: (i) a
igualdade, (ii) a integridade psicofísica, (iii) a liberdade e (iv) a solidariedade. Viola a
dignidade e, portanto, enseja o dever de reparar pelos danos morais (arts. 186 e 927
do Código Civil) a conduta daquele que atentar contra qualquer dos quatro corolários
da dignidade. A toda a evidência, notará até o mais desavisado dos intérpretes que o
conceito puro e preciso de dano moral não comporta reduções simplistas e
meramente subsuntivas, tal qual se tem feito com base na Súmula 75 do TJRJ.

A Súmula 75 e o discurso do mero aborrecimento escamoteiam, nesse sentido, o


perigo de retorno à hegemonia da técnica da subsunção, segundo a qual, em
apertada síntese, a interpretação consistiria em uma atividade formal e mecânica de
combinação dos fatos à norma mais especí ca. Um grande risco da adoção pura de
uma tal linha de pensamento consiste, segundo a advertência da metodologia civil-
constitucional, em se ignorar a relevância da análise casuística de cada caso
concreto.

Se, por um lado, a análise casuística do que é ou não dano moral reparável tem o
potencial de assegurar decisões mais justas, por outro lado, não se nega que assim
se atribui ao julgador uma esfera maior de discricionariedade (embora sempre e
necessariamente reconduzida à Constituição). Coloca-se, então, um ponto nevrálgico
para o equilíbrio almejado: o mandamento constitucional de fundamentação da
decisão judicial (art. 93, IX, da Constituição). O magistrado tem o dever inafastável,
no exercício do seu múnus, de realizar uma análise profunda de todas as
circunstâncias do caso concreto, perquirindo a tutela reclamada pela pessoa
humana na medida da sua concreta vulnerabilidade. A exigência constitucional de
fundamentação das decisões judiciais serve justamente para possibilitar que o
controle da conformidade entre a decisão e o ordenamento jurídico não tenha por
referência apenas o resultado (o decisum), mas igualmente o meio (a
fundamentação da decisão).

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Em contramão ao aludido ônus argumentativo, assiste-se à massi cação de


julgamentos na rotina contenciosa dos Juizados Especiais uminenses em
audiências que duram de 3 a 5 minutos e que, nem de perto, conseguem colher
elementos fáticos para municiar o magistrado na tarefa de motivação da decisão.
Nesse cenário, o discurso do “mero aborrecimento”, à semelhança do discurso da
“indústria do dano moral”, representa grande risco à efetiva tutela da dignidade da
pessoa humana, por impedir o controle de legitimidade do processo argumentativo
de fundamentação das decisões judiciais.

Em um ambiente jurídico-social de renovado humanismo, insu ado pela imperiosa


tutela da pessoa humana como fundamento da República Federativa do Brasil, deve-
se atentar para o dever de cada membro do Poder Judiciário de vestir a toga
assumindo e avocando, para si, a árdua (mas não impossível) tarefa de efetiva
fundamentação das decisões judiciais. Trata-se de percurso complexo, porém
necessário e promotor do resultado mais valoroso almejado pelo nosso sistema – a
plena tutela da pessoa humana.

JOÃO QUINELATO – Advogado. Mestre em Direito Civil pela UERJ. Professor do IBMEC. Secretário-Geral da
Comissão de Direito Civil e Presidente da Comissão de Estágio da OAB/RJ. E-mail:
joao@lapaadvogados.com.br.
RODRIGO DA GUIA SILVA – Doutorando e Mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (UERJ). Pesquisador da Clínica de Responsabilidade Civil da Faculdade de Direito da UERJ.
Membro do Instituto Brasileiro de Direito Civil (IBDCivil) e do Comitê Brasileiro da Association Henri
Capitant des Amis de la Culture Juridique Française (AHC-Brasil). Advogado.

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