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RUDOLF CARNAP

Superação da metafísica através da análise lógica da linguagem*

1. Introdução

Desde os céticos gregos até aos empiristas do século XIX, houve muitos inimigos da
metafísica. As objeções apresentadas eram as mais diversas. Alguns declararam a doutrina da
metafísica como sendo falsa pois contradizia o conhecimento empírico. Outros tomavam-na
apenas como duvidosa visto que a maneira como abordava os problemas transcendia os
limites do conhecimento humano. Muitos anti-metafísicos declaravam o tratamento de
questões metafísicas como infértil. Uma vez que a possibilidade de se encontrar respostas
para elas era incerta, seria inútil ocupar-se com elas. Era melhor dedicar-se inteiramente à
tarefa prática que se impunha diariamente ao homem!
O desenvolvimento da lógica moderna permitiu fornecer uma resposta mais precisa no
que diz respeito à validade e legitimação da metafísica. As investigações da “lógica aplicada”
ou “epistemologia”, que pretendem esclarecer, através de uma análise lógica, o conteúdo
cognoscente das proposições científicas e consequentemente o significado das palavras
(“conceitos”) usadas nas proposições, conduzem a um resultado positivo e outro negativo. O
resultado positivo alcança-se na área da ciência empírica: cada termo dos vários ramos
científicos é esclarecido; a sua relação lógico-formal e epistemológica é demonstrada. No
campo da metafísica (incluindo toda a axiologia e ciências normativas), a análise lógica leva à
conclusão negativa de que as alegadas proposições desta área são completamente absurdas.
Com isto atinge-se uma superação radical da metafísica, impossível a partir dos pontos de
vista anti-metafísicos do passado. Apesar de se encontrarem considerações similares já em
reflexões passadas, como aquelas de cariz nominalista, a aplicação decisiva só é possível hoje
depois de a lógica se ter tornado numa ferramenta suficientemente precisa, graças ao
desenvolvimento das últimas décadas.
Quando afirmamos que as chamadas proposições da metafísica não fazem sentido,
falamos em sentido rigoroso. Num sentido menos rigoroso, considera-se por vezes como
absurda uma proposição ou pergunta quando o seu levantamento é totalmente despropositado
(por exemplo, a pergunta: “Qual é em média o peso corporal das pessoas de Viena cujo
número de telefone acaba em 3?”), ou quando é claramente errada (e.g., a proposição: “No
ano de 1910, Viena tinha 6 habitantes”), ou quando não está só empiricamente como também
logicamente errada, ou seja, quando é contraditória (e.g.: “Dadas duas pessoas A e B, cada

*
Tradução de Bernhard Sylla, revista por Vítor Moura, no âmbito do projeto de tradução de textos da Filosofia
da Linguagem (Centro de Estudos Humanísticos, Universidade do Minho). Texto original: Carnap, Rudolf
(1931). Überwindung der Metaphysik durch logische Analyse der Sprache. Erkenntnis, Band 2, Heft 1, pp. 219-
241.
1
uma é um ano mais velha que a outra”). Proposições deste tipo, embora sendo inférteis ou
falsas, ainda fazem sentido, pois só proposições com sentido é que podem ser classificadas
como (teoricamente) férteis ou inférteis, verdadeiras ou falsas. Em sentido rigoroso, sem
sentido é, em contrapartida, uma sequência de palavras que, dentro de uma dada língua, não
forma qualquer tipo de proposição. Pode acontecer que este tipo de sequência de palavras
pareça uma proposição à primeira vista. Neste caso denominamo-la de pseudo-proposição
[Scheinsatz]. A nossa tese afirma então que, através de uma análise lógica, as alegadas
proposições da metafísica se revelam como pseudo-proposições.
Uma língua é constituída por vocabulário e sintaxe, isto é, por um leque de palavras que
detêm um significado, e por regras em relação à construção frásica. Estas regras indicam
como se pode construir proposições a partir de variados tipos de palavras. Em consequência
disto, existem dois tipos de pseudo-proposições: ou porque surge uma palavra que se
considera, erradamente, ter significado, ou porque as palavras existentes, embora tenham
significado, estão sintaticamente colocadas de forma a não fazerem qualquer sentido. Com
base em exemplos, veremos que as pseudo-proposições de ambos os tipos ocorrem na
metafísica. Mais adiante será necessário pensar nas razões a favor da nossa afirmação de que
toda a metafísica se baseia em tais pseudo-proposições.

2. O significado de uma palavra

Caso uma palavra tenha significado (dentro de uma dada língua), tem-se por costume dizer
que esta designa um “conceito”. Quando a palavra aparenta ter significado mas na verdade
não o tem, fala-se então em “pseudo-conceito”. Como explicar a sua formação? Não foram as
palavras introduzidas na linguagem com o propósito de exprimir algo específico, de modo a
que tenham, desde a sua primeira utilização, um determinado significado? Como pode haver
então, na linguagem tradicional, palavras sem significado? Originariamente, cada palavra tem
no entanto um significado (tirando raras exceções, que exemplificaremos mais tarde). No
decorrer da evolução histórica, uma palavra muda frequentemente o seu significado. Agora
também acontece que, por vezes, uma palavra perde o seu significado antigo sem adquirir um
novo. E é assim que surge um pseudo-conceito.
Em que consiste então o significado de uma palavra? Quais são as especificidades que
uma palavra tem de cumprir para ter significado? (Se estas especificidades são explicitamente
declaradas, como em alguns casos de palavras e símbolos da ciência moderna, ou se são
acordadas implicitamente, como aparenta ser o caso na maioria das palavras da linguagem
tradicional, não tem relevância para as nossas considerações.) Em primeiro lugar, a sintaxe da
palavra tem de estar estabelecida, isto é, tem de ser fixado o modo da sua ocorrência na forma
frásica mais simples em que pode ocorrer. Chamamos a esta forma frásica proposição
elementar. A forma frásica elementar para a palavra “pedra” é por exemplo “x é uma pedra”.
Em proposições deste tipo, encontra-se em vez do “x” uma designação qualquer da categoria
das coisas, por exemplo “este diamante”, “esta maçã”. Em segundo lugar, é preciso, em
relação à proposição elementar S sobre a palavra em causa, fornecer uma resposta à pergunta
que podemos formular de várias maneiras:

1. De que tipo de proposições se pode deduzir S, e que proposições são dedutíveis a


partir de S?

2. Sob que condições deve S ser verdadeiro, e sob que condições falso?

3. De que modo se deve verificar S?

4. Que sentido tem S?


2
(1) é a formulação correta, a formulação (2) adapta-se ao discurso da Lógica, (3) ao
discurso da Epistemologia, e (4) ao da Filosofia (Fenomenologia). Foi W i t t g e n s t e i n que
disse que aquilo que os filósofos querem dizer com (4) é compreendido por (2): o sentido de
uma proposição está no seu critério de veracidade. ((1) é a formulação “metalógica”; uma
apresentação minuciosa da metalógica como teoria da sintaxe e do sentido, isto é, das relações
de derivação, será feita mais tarde, noutro lugar.)
No caso de muitas palavras, nomeadamente na esmagadora maioria de todas as palavras
pertencentes à ciência, é possível indicar o significado deduzindo-o a partir de outras palavras
(“constituição”, definição). Por exemplo: “ ’Artrópodes’ são animais de corpo segmentado,
com extremidades articuladas e com uma película de quitina.” Assim, a forma frásica
elementar da palavra “artrópode”, isto é, para a forma frásica “o ser x é um artrópode”,
responde à pergunta atrás mencionada. Está determinado que uma proposição deste tipo deve
ser dedutível a partir de premissas do tipo “x é um animal”, “x tem um corpo segmentado”, “x
tem extremidades articuladas”, “x tem uma película de quitina”, e que, de uma maneira
inversa, cada uma destas proposições seja dedutível a partir daquela (da primeira). É através
destas determinações sobre a dedução (dito de outra forma: através do critério de verdade, do
método de verificação, do sentido) da proposição elementar acerca de “artrópode” que o
significado de “artrópode” é estabelecido. Neste sentido, cada palavra da linguagem é
remetida para outras palavras e, finalmente, para as palavras que ocorrem nas chamadas
“proposições de observação” [Beobachtungssätze] ou “proposições de registo”
[Protokollsätze]. Com esta dedução a palavra recebe o seu significado.
A procura pelo conteúdo e forma das primeiras proposições (proposições de registo), que até agora ainda
não encontrou uma resposta definitiva, pode ser posta de parte na nossa análise. Na epistemologia costuma-se
afirmar que as primeiras proposições se referem àquilo “que é dado”, no entanto, não há uma unanimidade
quanto à questão do que é visto como o “dado”. Por vezes é defendida a interpretação de que as proposições
sobre o dado falam das mais simples qualidades sensoriais e emocionais (por ex. “quente”, “azul”, “alegria” e
semelhantes). Outros tendem para a interpretação de que as primeiras proposições falam de experiências totais e
relações de semelhança entre estas. Outra interpretação sugere que as primeiras proposições também já falam de
coisas. Independentemente das diferenças entre estas interpretações, é claro que uma sequência de palavras só
tem sentido quando as suas relações de dedução são estabelecidas a partir de proposições de registo, tenham
estas proposições as propriedades que tiverem. Também é claro, que uma palavra só tem sentido quando as
proposições onde pode ocorrer também são reduzíveis às proposições de registo.

Visto que o significado de uma palavra é determinado pelo seu critério (dito de outro
modo: pelas relações de dedução da sua proposição elementar, pelas suas condições de
veracidade, pelo método de verificação), não se pode determinar ainda, depois da definição do
critério, o que se “quer dizer com” a palavra. Não se pode fornecer menos do que o critério
para que a palavra tenha um significado preciso, mas também não se pode fornecer mais do
que o critério, pois através deste é determinado tudo o resto. No critério, o significado está
implicitamente contido; resta apenas demonstrá-lo explicitamente.
Suponhamos que alguém cria a nova palavra “babido” e que alega que há coisas que são
babidas e outras não. Para encontrar o significado desta palavra, perguntamos pelo seu
critério: como se verifica de forma concreta que determinada coisa é babida ou não?
Suponhamos primeiro que o interrogado não tem resposta, afirma que não há caraterísticas
empíricas para a babidez. Neste caso, não tomamos o uso da palavra como admissível. Caso
aquele que usa a palavra afirme, mesmo assim, que há coisas que são babidas e outras não, e
que isto é apenas um mistério para a pobre e limitada compreensão humana, então acabamos
por achar que tudo isto não passa de conversa fiada. Mas pode ser que ele nos tente assegurar
que queria de facto dizer alguma coisa com a palavra “babido”. Não obstante, ficamos apenas
a saber apenas que essa pessoa nutre umas ideias e uns afetos quaisquer em relação à palavra,
ou seja, um facto psicológico. Mas isto não confere um significado à palavra. Se não está

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estabelecido um critério para a nova palavra, as proposições onde ocorre não dizem nada, são
apenas pseudo-proposições.
Agora suponhamos que está estabelecido o critério para uma nova palavra, como por
exemplo "bibido", sendo a proposição "Esta coisa é bibida" só e apenas só verdadeira, quando
a coisa é quadrada. (Para as nossas considerações não tem qualquer importância se este
critério nos é dado explicitamente, ou se o conseguimos verificar ao observar em que casos a
palavra é usada num sentido afirmativo ou negativo.) Neste caso dizemos: a palavra “bibido”
tem o mesmo significado que a palavra “quadrado”. E tomamos como inadmissível quando os
que usam esta palavra nos dizem que “queriam dizer” outra coisa com ela do que “quadrado”
– cada coisa quadrada seria também bibida e vice-versa, mas isto teria a ver com o facto de a
propriedade de ser quadrado ser a expressão visível da bibidez, sendo esta no entanto uma
propriedade secreta e por si só não percetível. Respondemos então que, depois de estabelecido
o critério, também está estabelecido que “bibido” significa “quadrado” e que deixa de haver a
liberdade para “querer dizer” isto ou aquilo com a palavra.
Resumamos brevemente o resultado das nossas considerações. Se “a” é uma qualquer
palavra e “S(a)” a proposição elementar em que ocorre, então a condição suficiente e
necessária para que “a” tenha um significado, poderá ser designada através dos seguintes
enunciados, que, no fundo, dizem o mesmo:

1. As caraterísticas empíricas para “a” são conhecidas.

2. Está determinado a partir de que proposições de registo “S(a)” pode ser deduzido.

3. Os critérios de veracidade para “S(a)” estão estabelecidos.

4. O método para verificar “S(a)” é conhecido.1

3. Palavras metafísicas sem significado

Ora, muitas palavras da metafísica mostram que não cumprem os requisitos anteriormente
apresentados e que, portanto, não têm significado.
Tomemos como exemplo o termo metafísico “princípio” (nomeadamente na aceção de
princípio do ser e não de princípio epistemológico ou de axioma). Indagando sobre o
(supremo) “princípio do mundo” (ou “das coisas”, “do ser”, “do ente”), muitos metafísicos
propuseram uma resposta, por ex.: a água, o número, a forma, o movimento, a vida, o espírito,
a ideia, o inconsciente, a ação, o bem e outros semelhantes. Para encontrar o significado que a
palavra “princípio” tem nesta questão metafísica, é preciso questionar os metafísicos sob que
condições uma proposição da forma “x é o princípio de y” é verdadeira e sob quais é falsa. Por
outras palavras, perguntamos pelas caraterísticas ou por uma definição da palavra “princípio”.
O metafísico responde mais ou menos assim: “x é o princípio de y” significa “y advém de x”,
“o ser de y baseia-se no ser de x”, “y existe por causa de x”, ou coisas semelhantes. Estas
palavras são, porém, ambíguas e vagas. Em outros casos frequentes, elas têm um significado
claro; dizemos, por ex., de uma coisa ou de um processo y, que “advém” de x quando
observamos que, depois de coisas ou processos do tipo x, se seguem frequentemente ou
sempre coisas ou processos do tipo y (relação causal no sentido de uma estrita relação
sucessiva). Mas o metafísico diz-nos que não estava a pensar nesta relação empiricamente

1
Acerca da conceção lógica e epistemológica que constitui a base da nossa exposição, mas que aqui só pode ser
indicada, cf.: Wittgenstein, Tractatus logico-philosophicus [Tratado lógico-filosófico], 1922. Carnap, Der
logische Aufbau der Welt [A Construção Lógica do Mundo], 1928. Waismann, Logik, Sprache, Philosophie
[Lógica, Linguagem, Filosofia] – (em preparação).
4
verificável, senão, as suas teses metafísicas seriam apenas princípios empíricos tal como os da
física. A palavra “advir” não deveria ter aqui o significado de relação cronológica, condição
que habitualmente tem. No entanto, para nenhum dos outros significados é fornecido um
critério. Por conseguinte, não existe de todo o alegado significado “metafísico” que é suposto
a palavra ter, por contraposição ao significado empírico. Se pensarmos no significado original
da palavra “principium” (e da palavra grega correspondente “αρχή“), notamos que se
apresenta aqui o mesmo processo de evolução. O significado original de “começo” é retirado
explicitamente da palavra. Faz-se questão que a palavra deixe de significar num sentido
temporal, significando somente numa outra perspetiva, especificamente metafísica. Os
critérios para esta “perspetiva metafísica” não são no entanto fornecidos. Em ambos os casos,
retirou-se à palavra o seu significado passado, sem lhe atribuir um novo. Ficamos nas mãos
com uma palavra oca. Do período significativo anterior ainda lhe estão ligadas
associativamente várias conceções, que se unem a novas representações e sentimentos
relacionados com o contexto em que se usa agora a palavra. Mas com isto, a palavra não
ganha nenhum significado, e continua sem significado enquanto não for possível fornecer um
método de verificação.
Outro exemplo é a palavra “Deus”. No caso desta palavra, é preciso diferenciar o uso
linguístico em três casos ou períodos históricos (que, porém, não se deixam separar
rigorosamente), salvaguardando as variantes do seu uso dentro de cada área. No uso
linguístico mitológico, a palavra tem um significado claro. Com esta palavra (e,
respetivamente, os seus equivalentes em outras línguas) são designados, por vezes, seres
corporais que, por exemplo, reinam no Olimpo, no céu ou no submundo, dotados, de forma
mais ou menos perfeita, de poder, sabedoria, bondade e felicidade. Por outras vezes, a palavra
designa seres com alma e espírito que não possuem um corpo humanoide, mas que se
mostram de alguma forma nas coisas e nos processos do mundo visível, sendo, assim,
empiricamente verificáveis. No uso linguístico metafísico, “Deus” designa porém algo supra-
empírico. O significado de um ser corpóreo ou incorpóreo dentro de um corpo é retirado
explicitamente da palavra. E como não lhe é dado um novo significado, torna-se algo sem
significado. No entanto, parece muitas vezes que se está a dar um significado à palavra
“Deus” também no sentido metafísico. Contudo, as definições estabelecidas mostram-se,
perante um olhar mais atento, como sendo pseudo-definições. Remetem ou para ligações de
palavras logicamente inadmissíveis (das quais se falará mais adiante) ou para outras palavras
metafísicas (p. ex. “a causa principal”, “o absoluto”, o incondicional”, “o independente”, “o
autónomo” e semelhantes), mas em caso algum para os critérios de veracidade da proposição
elementar. Esta palavra não cumpre sequer a primeira exigência da lógica, nomeadamente a
da indicação da sua sintaxe, isto é, da forma da sua ocorrência na proposição elementar. A
proposição elementar teria que ter, neste caso, a forma “x é um Deus”. O metafísico, porém,
rejeita de todo esta forma, sem apresentar outra, ou, caso a aceite, não indica a categoria
sintática das variáveis. (Categorias são p. ex.: corpo, propriedades de corpos, relações entre
corpos, números, etc.).
Entre o uso linguístico mitológico e o metafísico está o uso linguístico teológico relativo
à palavra “Deus”. Aqui não temos nenhum significado próprio, mas oscila-se entre as outras
duas formas de uso. Alguns teólogos têm um claro conceito empírico (na nossa terminologia,
“mitológico”) de Deus. Neste caso, não se apresentam “pseudo-proposições”. Mas a
desvantagem para o teólogo consiste no facto de que, nesta interpretação, as proposições da
teologia são proposições empíricas e estão, assim, sujeitas ao juízo da ciência empírica.
Noutros teólogos, encontramos claramente o uso linguístico metafísico. Noutros, o uso
linguístico já é vago, seja porque por vezes empregam o primeiro uso linguístico e por outras
o segundo, seja porque se expressam através de termos muito vagos e confusos, que oscilam
entre os dois usos.

5
Tal como nos exemplos analisados de “princípio” e “Deus”, também a maioria dos
outros termos especificamente metafísicos não têm significado, como, por ex., “ideia”, “o
absoluto”, “o incondicional”, “o infinito”, “o ser do ente”, “o não-ente”, “coisa em si”,
“espírito absoluto”, “espírito objetivo”, “essência”, “ser em-si”, “ser em-si-e-para-si”,
“emanação”, “manifestação”, “diferenciação”, “o Eu”, “o não-Eu”, etc. Estas expressões não
são diferentes da palavra “babido”, que inventámos anteriormente. O metafísico diz-nos que
os critérios empíricos de veracidade não podem ser apresentados. Quando acrescenta que,
mesmo assim, “quer dizer” alguma coisa com esta palavra, sabemos que só está a aludir a
representações e sentimentos acidentais, incapazes de conferir um significado à palavra. As
ditas proposições metafísicas que contêm este tipo de palavras não têm qualquer significado,
não dizem nada, são apenas pseudo-proposições. A explicação das suas origens históricas será
dada mais tarde.

4. O sentido de uma proposição

Até agora refletimos sobre as pseudo-proposições, nas quais ocorre uma palavra sem
significado. Há ainda um segundo tipo de pseudo-proposições. São constituídas por palavras
com significado, mas usadas de maneira a que não façam sentido. A sintaxe de uma língua
indica quais as composições de palavras que são admissíveis e quais as que não são. A sintaxe
gramatical das línguas naturais, porém, nem sempre cumpre a tarefa de eliminar ligações de
palavras sem sentido. Tomemos como exemplo as seguintes séries de palavras:

1. “César é e”,

2. “César é um número primo.”

A série de palavras (1) é formada de maneira sintaticamente incorreta. A sintaxe exige


que na terceira posição esteja um predicado, ou seja, um substantivo (com artigo) ou um
adjetivo, e não uma conjunção. A série de palavras “César é um general” está construída de
acordo com a sintaxe. É uma série com sentido, uma verdadeira proposição. A série de
palavras (2) também está formada de um modo sintaticamente correto, pois tem a mesma
forma gramatical que a proposição referida anteriormente. No entanto, (2) não faz sentido.
“Número primo” é uma propriedade dos números; não pode ser conferida nem negada a uma
pessoa. Visto que (2) aparenta ser uma proposição, embora não o seja, posto que não diz nada,
não exprime um estado de coisas existente ou inexistente, denominamos esta série de palavras
como “pseudo-proposição”. Assim, ao não corromper a sintaxe gramatical, somos tentados, à
primeira vista, a adotar a opinião errada de que, afinal, estamos perante uma proposição,
embora falsa. “a é um número primo” é só e apenas só falso quando a for divisível por um
número natural que não seja a ou 1. Evidentemente, aqui não se poderá substituir “a” por
“César”. Este exemplo foi escolhido de maneira a que se percebesse facilmente que não tem
sentido. Nalgumas chamadas proposições metafísicas, não é tão fácil reconhecer que se trata
de pseudo-proposições. O facto de ser possível criar uma série de palavras sem sentido na
linguagem comum sem violar as regras da gramática, indica que, numa perspetiva lógica, a
sintaxe gramatical é inadequada. Se a sintaxe gramatical correspondesse exatamente à sintaxe
lógica, não surgiria uma pseudo-proposição. Caso a sintaxe gramatical não diferenciasse
apenas as classes gramaticais dos substantivos, dos adjetivos, dos verbos, das conjunções,
etc., evidenciando além disso nestas formas também diferenças logicamente necessárias, não
seria possível criar pseudo-proposições. Se, por exemplo, os substantivos se decompusessem
gramaticalmente em várias classes, consoante designem propriedades de corpos, números,
etc., as palavras “general” e “número primo” pertenceriam a classes gramaticais diferentes, e
(2) seria linguisticamente tão falso como (1). Numa linguagem corretamente construída, todas
6
as séries de palavras sem sentido seriam do tipo do exemplo (1). Assim, seriam logo
eliminadas automaticamente pela gramática, isto é, a fim de evitar que as proposições não
façam sentido, seria preciso não ter em atenção o significado de cada uma das palavras, mas
apenas a sua classe gramatical (a “categoria sintática”, como por ex.: coisa, propriedades da
coisa, relação entre coisas, número, propriedades dos números, relação entre números, etc.).
Se a nossa tese sobre o facto de as proposições da metafísica serem pseudo-proposições
estiver certa, então não seria possível expressar a metafísica numa linguagem corretamente
construída a nível da lógica. Daí a grande importância filosófica da tarefa de construir uma
sintaxe lógica, na qual os lógicos trabalham atualmente.

5. Pseudo-proposições metafísicas

Queremos agora expor alguns exemplos de pseudo-proposições metafísicas onde se pode ver
claramente que a sintaxe lógica é violada, embora a sintaxe histórico-gramatical seja
cumprida. Escolhemos algumas proposições da doutrina metafísica que atualmente tem mais
influência na Alemanha.2
“Investigar-se-á somente o ente e, para além disso, mais – nada; só o ente e mais –
nada; unicamente o ente e fora disso – nada. O quê e como é este nada? – – Haverá o nada
apenas porque há o não, isto é, a negação? Ou é ao contrário? Haverá a negação e o não
apenas porque há o nada? – – Nós afirmamos: O nada é mais originário do que o não e a
negação. – – Onde procuramos o nada? Como encontramos o nada? – – Nós conhecemos o
nada. – – A angústia revela o nada. – – Daquilo que e porque tínhamos receio era,
‘propriamente’, – nada. De facto: o nada ele mesmo – como tal – estava lá. – O quê e como é
o nada? – – O nada ele mesmo nadifica.”
Para mostrar que a possibilidade da formação de pseudo-proposições advém de uma
deficiência lógica da linguagem, apresentamos o esquema que se segue abaixo. As
proposições debaixo de I estão gramaticalmente e logicamente corretas, ou seja, fazem
sentido. As proposições debaixo de II (com exceção de B3) estão gramaticalmente em perfeita
analogia com as que estão debaixo de I. A forma frásica IIA (como pergunta e resposta) não
corresponde às exigências impostas a uma linguagem logicamente correta. No entanto, faz
mesmo assim sentido pois pode ser traduzida em linguagem correta. Isto mesmo é mostrado
pela proposição IIIA, que tem o mesmo sentido que IIA. A inoportunidade da forma frásica
IIA mostra-se quando conseguimos chegar, através de operações gramaticalmente corretas, às
formas frásicas sem sentido de IIB, retiradas da citação acima. Estas formas não se deixam
formar de modo algum na linguagem correta da coluna III. Não obstante, o facto de não
fazerem sentido não é notado logo à primeira vista, já que somos facilmente iludidos pela
analogia com as proposições com sentido de IB. O erro aqui constatado na nossa língua
consiste então no facto de ela admitir igualdade formal gramatical entre as séries de palavras
que fazem sentido e as que não fazem, ao contrário do que acontece numa linguagem
logicamente correta. A cada frase constituída por palavras é anexa uma correspondente
notação lógica proposicional. Estas notações permitem reconhecer claramente a analogia
inoportuna entre IA e IIA, e o surgimento das formações sem sentido de IIB que nela se
baseiam.

2
As seguintes citações (itálicos no original) são retiradas de: M . H e i d e g g e r , Was ist Metaphysik? [O que é
a Metafísica?] 1929. Poderíamos ter retirado igualmente trechos de qualquer outro dos numerosos metafísicos da
atualidade ou do passado, mas os trechos escolhidos parecem-nos ilustrar da forma particularmente clara o nosso
ponto de vista.
7
II. Formação de algo sem sentido a
I. Proposições com sentido III. Linguagem
partir de algo com sentido na
da linguagem corrente. logicamente correta.
linguagem corrente.

A. O que há la fora? A. O que há lá fora? A. Não há (não existe,


fo (?) fo (?) não está presente)
Lá fora não há nada. alguma coisa, que
Lá fora há chuva. fo (na) estivesse lá fora.
fo (ch) ~(Эx).fo(x)

B. O que é e como é esta


chuva? (i.e.: o que faz a B. “O q u e é e c o m o é e s t e B. Todas estas formas
chuva? Ou: o que se pode dizer n a d a ?” ? (na) não podem ser formadas
mais sobre esta chuva?) ? (ch) de maneira nenhuma.

1. Nós conhecemos a chuva. 1. “Nós procuramos o nada”,


c(ch) “Nós encontramos o nada”, c (na)
“Nós conhecemos o nada”.

2. A chuva cai. ch (ch) 2. “O n a d a n a d i f i c a ”.


na (na)

3. “Só há o nada, porque…”


ex (na)

Numa observação mais atenta das pseudo-proposições debaixo de IIB, nota-se ainda
certas diferenças. A formação das proposições (1) baseia-se simplesmente no erro que
consiste em a palavra “nada” ser usada como nome de um objeto, pois é costume usá-la desta
forma na linguagem corrente a fim de formular uma proposição existencial negativa (ver IIA).
Numa linguagem correta, porém, serve para o mesmo fim não um nome especial, mas antes
uma certa forma lógica da proposição (ver IIIA). Na proposição IIB2, acrescenta-se algo de
novo, nomeadamente a formação da palavra sem sentido “nadificar”. Ergo, a proposição não
faz sentido por duas razões. Demonstrámos anteriormente que as palavras sem significado da
metafísica surgiam quando era retirado o significado a uma palavra que o tinha inicialmente,
através do uso metafórico desta na metafísica. Aqui, no entanto, temos perante nós um
daqueles casos raros em que é introduzida uma nova palavra que desde o início não tinha
qualquer significado. A proposição IIB3 é igualmente rejeitada por duas razões. No erro em
usar a palavra “nada” como um nome de um objeto, ela coincide com as proposições
anteriores. Além disso, contém uma contradição. Mesmo que fosse admissível introduzir
“nada” como nome ou caraterização de um objeto, no fim seria negado ao objeto a existência
na sua definição. Na proposição (3) ser-lhe-ia porém mais uma vez atribuída. Esta proposição
seria então, caso não fosse já sem sentido, contraditória, ou seja, absurda.
Perante tais erros lógicos graves, que encontramos nas proposições IIB, poderíamos
chegar à suposição de que, no ensaio citado, talvez se suponha que a palavra “nada” tenha um
significado totalmente diferente do habitual. E esta suposição é ainda mais reforçada quando
continuamos a ler ali que o medo revela o nada, que no medo o próprio nada enquanto tal está
aí. Aqui a palavra “nada” parece estar a ser usada para designar um estado emocional, talvez
de tipo religioso, ou qualquer outra coisa que se baseia nesse tipo de sentimentos. Se fosse
este o caso, então os erros lógicos referidos nas proposições IIB não estariam presentes. Mas o
início da citação indicada mais acima mostra que esta interpretação não é possível. A

8
colocação conjunta de “somente” e “e mais nada” mostra claramente que a palavra “nada”
tem aqui o significado habitual de uma partícula lógica que serve para expressar a negação de
uma proposição existencial. A esta introdução da palavra “nada” liga-se depois diretamente a
questão principal do ensaio: “O que é e como é este nada?”
A nossa dúvida quanto à possibilidade de termos interpretado erradamente aquele
excerto, dissipa-se no entanto totalmente quando vemos que o escritor do ensaio está
perfeitamente consciente de que as suas questões e proposições contradizem a lógica.
“Pergunta e resposta com respeito ao nada são em si igualmente contraditórias. – – A regra
fundamental do raciocínio em geral normalmente consultada, o princípio da não-contradição,
a ´lógica’ comum, deita esta questão abaixo.” Tanto pior para a lógica! Temos de derrubar a
sua autoridade: “Se assim o poder do entendimento no campo das perguntas pelo nada e pelo
ser é quebrado, decide-se então também o destino da autoridade da ‘lógica’ dentro da
filosofia. A ideia da própria ‘lógica’ dissolve-se no turbilhão de um questionar mais
originário.” Mas será que a ciência sóbria concordará com um turbilhão de um
questionamento que vai contra a lógica? Também já foi dada uma resposta para isto: “A
suposta sobriedade e supremacia da ciência transforma-se em ridículo, quando não leva a
sério o nada.” Assim encontramos uma boa confirmação para a nossa tese: o metafísico chega
ele próprio à conclusão de que as suas perguntas e respostas não são compatíveis com a lógica
e com a maneira de pensar da ciência.
A diferença entre a nossa tese e a dos anti-metafísicos anteriores é agora clara. A
metafísica para nós não passa de “mera quimera” ou “conto de fadas”. As proposições de um
conto de fadas não vão contra a lógica, mas apenas contra a experiência. Possuem, de facto,
um sentido, embora sejam falsas. A metafísica não é nenhuma “superstição”. Podemos
acreditar em proposições verdadeiras e falsas, mas não em séries de palavras sem sentido. As
proposições também não interessam como “hipóteses de trabalho”, pois, para uma hipótese, a
relação de derivação com as proposições empíricas (verdadeiras ou falsas) é essencial, e é isto
que falta nas pseudo-proposições.
Com referência à chamada limitação da faculdade do conhecimento humano é por vezes
levantada a seguinte objeção a fim de salvar a metafísica: as proposições metafísicas não
podem ser verificadas pelo homem ou por qualquer outro ser finito, mas poderiam talvez
passar por suposições sobre o que poderia ser respondido às nossas perguntas por um ser com
uma faculdade do conhecimento superior ou até perfeita, e fariam sempre sentido enquanto
suposições. Contra esta objeção queremos dizer o seguinte. Quando o significado de uma
palavra não pode ser indicado ou quando a série de palavras não está corretamente composta
ao nível da sintaxe, então nem sequer se trata de uma pergunta. (Pensemos por exemplo nas
pseudo-perguntas: “Esta mesa é babida?”, “O número sete é sagrado?”, “São mais escuros os
números pares ou os ímpares?”). Onde não existe uma pergunta, nem sequer um ser
omnisciente consegue dar uma resposta. O objetor diria talvez agora: como uma pessoa que
vê pode transmitir um conhecimento novo a um cego, também um ser superior poderia talvez
transmitir-nos um conhecimento metafísico, por ex., o de saber se o mundo visível é a
manifestação de um espírito. Aqui temos de refletir sobre o que significa “novo
conhecimento”. Podemos, no entanto, imaginar que encontrávamos animais que nos
relatariam a existência de um novo sentido. Quando estes seres nos provassem o teorema de
F e r m a t ou inventassem um instrumento físico ou estabelecessem uma lei natural
desconhecida, então poderíamos dizer que o nosso conhecimento seria enriquecido com a sua
ajuda. Pois nós conseguimos verificar tais coisas, do mesmo modo que também o cego pode
entender e verificar toda a física (e assim todas as proposições daquele que vê). Mas quando
os supostos seres nos dizem algo que não podemos verificar, também não o conseguimos
entender. Para nós, não haveria, nesse caso, uma informação transmitida, mas apenas sons
emitidos sem sentido, embora talvez também com associações representacionais. Através de
um outro ser, e não importa aqui se se compreende mais ou menos ou tudo, o nosso
9
conhecimento pode portanto ser alargado apenas quantitativamente, mas não se pode juntar
um conhecimento que, em princípio, é de um novo tipo. O que nos é incerto pode tornar-se-
nos mais certo com a ajuda de outro, mas o que para nós é incompreensível, o que não tem
sentido, também não adquiriria sentido com a ajuda de um outro ser, por muito que ele
soubesse. Por isso, nem um deus nem um diabo nos podem ajudar a obter uma metafísica.

6. O absurdo de toda a metafísica

Os exemplos de proposições metafísicas que analisámos são todos eles retirados de um único
ensaio. Mas os resultados aplicam-se também de forma semelhante, e em parte de uma forma
literalmente igual, a outros sistemas metafísicos. Quando esse ensaio cita de forma
concordante uma frase de H e g e l (“O puro ser e o puro nada são portanto a mesma coisa”),
esta citação é justificada. A metafísica de H e g e l tem, ao nível da lógica, exatamente o
mesmo caráter que encontrámos naquela metafísica moderna. E o mesmo se aplica também
aos restantes sistemas metafísicos, mesmo que o tipo das suas expressões, e assim também o
tipo de erros lógicos, difiram, em escala maior ou menor, do tipo dos exemplos discutidos.
Acrescentar aqui outros exemplos de análises de proposições metafísicas particulares
provenientes de vários sistemas não parece ser necessário. Limitamo-nos a referir apenas os
tipos de erros mais frequentes.
Talvez a maioria dos erros lógicos cometidos em pseudo-proposições parta das
deficiências lógicas associadas ao uso da palavra “ser” na nossa língua (e das respetivas
palavras nas restantes línguas europeias, ou, pelo menos, na maioria delas). O primeiro erro
reside na ambiguidade da palavra “ser”. Por vezes, esta é usada como cópula antes de um
predicado (“eu sou leal”)3, noutras ocasiões, como designação de existência (“eu sou”). Este
erro é agravado pelo facto de os metafísicos não se darem conta, frequentemente, desta
ambiguidade. O segundo erro consiste na forma do verbo na segunda aceção, na da existência.
Através da forma verbal, faz-se crer que existe um predicado onde ele não existe. No entanto,
já se sabia há muito que a existência não é uma propriedade (cf. a refutação da prova
ontológica de Deus por K a n t ). Mas aqui, só a lógica moderna é totalmente consequente: ela
introduz o signo de existência de uma certa forma sintática, de modo a que não possa ser
relacionado com um signo de objeto, mas apenas com um predicado (cf. e.g. a proposição
IIIA no quadro apresentado acima, na secção 5). Desde a Antiguidade a maioria dos
metafísicos tem-se deixado seduzir por pseudo-proposições devido à forma verbal e assim
predicativa da palavra “ser”, como por exemplo “eu sou”, “Deus é”.

Encontramos um exemplo para este erro no “cogito, ergo sum” de D e s c a r t e s . Queremos


desconsiderar completamente as objeções em termos de conteúdo levantadas contra a premissa – nomeadamente
se a proposição “eu penso” é uma expressão adequada para o facto pretendido ou se contém talvez uma hipóstase
– e considerar ambas as proposições apenas sob o ponto de vista formal e lógico. Aqui notamos dois erros
essencialmente lógicos. O primeiro está na conclusão “eu sou”. Aqui o verbo “ser” é empregue sem dúvida no
sentido da existência: pois uma cópula não pode ser usada sem um predicado; o “eu sou” de D e s c a r t e s
também foi sempre entendido neste sentido. Mas esta proposição infringe a regra lógica anteriormente referida,
que a existência só pode ser indicada em relação a um predicado e não a um nome (sujeito, nome próprio). Uma
proposição existencial não tem a forma “a existe” (como aqui: “eu sou”, isto é, “eu existo”), mas “existe alguma
coisa deste e daquele tipo”. O segundo erro está na passagem de “eu penso” para “eu existo”. Se é suposto que
da proposição “P(a)” (“o a possui a propriedade P”) deriva uma proposição existencial, então esta proposição só
pode indicar existência em relação ao predicado P, e não ao sujeito a da premissa. De “eu sou europeu” não
segue “eu existo”, mas “existe um europeu”. De “eu penso” não segue “eu sou”, mas “há algo que pensa”.

3
A tradução literal, neste caso, seria “eu estou com fome” [“ich bin hungrig”], não sendo possível uma
construção com o verbo ser em português (N. d. T.).
10
O facto de as nossas línguas exprimirem a existência através de um verbo (“ser” ou
“existir”) não é por si só um erro lógico. É apenas inconveniente e até perigoso. Através da
forma verbal, deixamo-nos seduzir pelo equívoco de que a existência é um predicado. Chega-
se assim àquele tipo de expressões logicamente erradas e, portanto, sem sentido, que
examinámos ainda há pouco. Formas como “o ente” e “o não-ente”, que desde sempre
tiveram um papel importante na metafísica, têm a mesma origem. Numa linguagem
logicamente correta, as formas deste tipo não podem ser construídas. Ao que parece, nas
línguas latina e alemã, introduziram-se, respetivamente, talvez sob influência do modelo
grego, as formas “ens” e “seiend” especificamente para o uso do metafísico. Assim, piorou-se
logicamente a língua enquanto se pensava estar a corrigir uma falha.
Outra violação frequente da sintaxe lógica é a chamada “misturação de esferas” dos
conceitos. Enquanto o erro anterior consiste no facto de um signo sem significado predicativo
ser usado como predicado, neste caso, o predicado é usado como tal, embora como predicado
de outra “esfera”. Ocorre uma violação das regras da chamada “teoria dos tipos”. Um
exemplo construído para isto é a proposição analisada anteriormente: “César é um número
primo”. Nomes próprios e numerais pertencem a esferas lógicas diferentes e,
consequentemente, também os predicados relativos a pessoas (p. ex. “general”) e os
predicados relativos a números (“número primo”). Ao contrário do uso linguístico do verbo
“ser” anteriormente discutido, o erro da misturação de esferas não ocorre exclusivamente na
metafísica, mas também, amiúdes vezes, na linguagem corrente. Mas neste caso raramente
conduz a absurdos. A ambiguidade das palavras em relação às esferas é, neste caso, do tipo
que pode ser facilmente eliminada.

Exemplo: 1. “Esta mesa é maior que aquela.” 2. “A altura desta mesa é maior que a altura daquela mesa.”
Aqui, a palavra “maior” é usada, em (1), como relação entre objetos, e em (2), como relação entre números – ou
seja, é usada para duas categorias sintáticas distintas. O erro é insignificante; poderia, por exemplo, ser
eliminado ao escrever “maior 1” e “maior 2”; “maior 1” seria então definido a partir de “maior 2”, em que a
forma frásica (1) é explicada como sendo sinónima de (2), e de algumas outras semelhantes.

Dado que a misturação de esferas não causa danos na linguagem corrente, tende-se a
não lhe prestar qualquer atenção. Isto pode ser útil para o uso linguístico comum, mas na
metafísica teve repercussões graves. Neste caso, seduzidos pela habituação à linguagem
quotidiana, procedeu-se a misturações de esferas que já não permitiam, como no caso da
linguagem quotidiana, a sua tradução para uma formulação logicamente correta. Pseudo-
proposições deste tipo ocorrem, por exemplo, com muita frequência em H e g e l e
H e i d e g g e r , tendo adaptado este último muitas particularidades estilísticas de H e g e l ,
juntamente com algumas das suas deficiências lógicas. (Por exemplo, determinações que
deveriam dizer respeito apenas a objetos de determinado tipo, são atribuídas à própria
determinação destes objetos, ou ao “ser” ou ao “ser-aí” [“Dasein”], ou à relação entre estes
objetos.)
Depois de termos concluído que muitas proposições metafísicas não fazem sentido,
surge a questão de saber se não haverá talvez um número de proposições com sentido na
metafísica que sobraria caso eliminássemos as que não fazem sentido.
Através dos nossos resultados até agora obtidos, poderíamos concluir que a metafísica
alberga muitos perigos de cair em absurdos e que assim, caso quiséssemos exercer a
metafísica, teríamos que nos esforçar por evitar cuidadosamente estes mesmos perigos. Mas,
na realidade, é um facto que não pode haver proposições metafísicas com sentido. Isto deriva
da tarefa que a metafísica colocou a si própria: encontrar e representar um conhecimento
inacessível à ciência empírica.
Anteriormente, considerámos que o sentido de uma proposição está no método da sua
verificação. Uma proposição afirma somente aquilo que nela se pode verificar. Assim, uma
proposição pode afirmar apenas um facto empírico, se é que afirma alguma coisa. Algo que,
11
em princípio, está para além do que se pode experienciar, não poderia ser dito, pensado ou
perguntado.
As proposições (com sentido) decompõem-se nos seguintes tipos: para começar, há as
proposições que simplesmente e apenas devido à sua forma já são verdadeiras (“tautologias”
segundo W i t t g e n s t e i n ; correspondem mais ou menos aos “juízos analíticos” de K a n t );
não dizem nada sobre a realidade. A este tipo, pertencem as fórmulas da lógica e da
matemática; estas não são afirmações sobre a realidade, mas servem para a transformação de
tais afirmações. Depois, existem as negações destas proposições (“contradições”). São
contraditórias, isto é, devido à sua forma, são falsas. Para todas as restantes proposições, a
decisão entre verdade e falsidade está nas proposições elementares de registo. São assim
(verdadeiras ou falsas) proposições empíricas e pertencem à esfera da ciência empírica. Se
quisermos formular uma proposição que não pertença a estes tipos, então automaticamente
esta não fará sentido. Dado que a metafísica não quer proferir proposições analíticas nem
entrar na esfera da ciência empírica, precisa ou de usar palavras para as quais não são
fornecidos critérios, e que assim não têm significado, ou de combinar palavras com sentido
para que daí resulte uma proposição que não seja nem analítica (ou, respetivamente,
contraditória) nem empírica. Em ambos os casos, o resultado consiste, necessariamente, em
pseudo-proposições.
A análise lógica profere assim o veredicto sobre o absurdo de cada suposto
conhecimento que pretende ir além ou atrás da experiência. Este veredicto atinge em primeiro
lugar toda a metafísica especulativa e cada alegado conhecimento resultante de um
pensamento puro ou de uma intuição pura que julga poder prescindir da experiência. O
veredicto, no entanto, também diz respeito à metafísica que, partindo da experiência, quer
conhecer aquilo que está fora ou por detrás da experiência através de inferências especiais
(por ex. a tese neovitalista de uma “enteléquia” fisicamente indeterminável que opera nos
processos orgânicos; a procura de uma “essência da relação causal” que ultrapassa a
verificação de certas regularidades de sucessão; quando se fala da “coisa em si”). O veredicto
também é valido para toda a filosofia de valores ou normativa, para cada ética ou estética
enquanto disciplina normativa. Pois a validade objetiva de um valor ou de uma norma não
pode (até mesmo segundo o entendimento dos próprios filósofos dos valores) ser verificada
empiricamente, ou deduzida a partir de proposições empíricas, ergo, não pode ser, de todo,
proferida (por meio de uma proposição com sentido). Dito de outra forma: no caso de “bom”,
“bonito” e restantes predicados usados nas ciências normativas, ou são indicadas caraterísticas
empíricas ou não se indica nada. Uma proposição com este tipo de predicado torna-se, no
primeiro caso, num juízo de facto empírico, mas não num juízo de valor. No segundo caso,
torna-se numa pseudo-proposição. Uma proposição que enunciaria um juízo de valor nem
sequer pode ser construída.
Afinal, o juízo do absurdo também atinge as tais conceções metafísicas a que
chamamos, incorretamente, de conceções epistemológicas, nomeadamente o realismo
(contanto que ele quer dizer mais do que a constatação empírica de que os processos
apresentam uma certa regularidade através da qual é dada a possibilidade da aplicação do
método indutivo) e os seus adversários: idealismo subjetivo, solipsismo, fenomenalismo,
positivismo (no sentido anterior).
Mas então, o que resta ainda à filosofia quando todas as proposições que dizem algo,
são de natureza empírica, pertencendo à ciência real? O que resta não são proposições, ou
uma teoria, ou um sistema. Resta apenas um método, nomeadamente o método da análise
lógica. Mostrámos acima a aplicação deste método no seu uso negativo: ele serve, neste caso,
para erradicar palavras e pseudo-proposições sem sentido. No seu uso positivo, serve para
esclarecer os conceitos e proposições com sentido, para estabelecer as bases lógicas da ciência
real e da matemática. A aplicação negativa do método é necessária e importante na presente
situação histórica. Mais fecunda, no entanto, é a sua aplicação positiva, também no que
12
respeita à prática atual. Contudo, teremos de nos abster aqui da sua análise mais detalhada. A
alegada tarefa da análise lógica, enquanto investigação dos princípios, é aquilo que nós
entendemos por “filosofia científica” em contraste com a metafísica. A maior parte das
contribuições desta revista tenciona trabalhar nesta tarefa.
A pergunta pelo caráter lógico das proposições, que obtemos como resultado de uma
análise lógica, e. g. as proposições deste tratado ou de outros tratados lógicos, só pode ser
respondida de forma provisória, na medida em que estas proposições são ou analíticas ou
empíricas. Isto é assim porque estas proposições sobre proposições e partes de proposições
pertencem parcialmente à mera metalógica (e. g. “uma sequência, composta pelo símbolo de
existência e por um nome de um objeto, não é uma proposição”), e, parcialmente, à
metalógica descritiva (e. g. “a sequência de palavras no lugar x do livro y é absurda”). A
metalógica será discutida noutro lugar, onde também será mostrado que a metalógica, que fala
sobre as proposições de uma linguagem, pode ser formulada na mesma linguagem.

7. Metafísica como expressão do sentimento vivencial

Dizemos que as frases da metafísica são totalmente absurdas, que não dizem absolutamente
nada, e haverá muita gente que, concordando racionalmente com os nossos resultados, será
invadida por um sentimento constrangedor: será mesmo verdade que tantos homens de
diferentes épocas e povos, entre eles muitas mentes brilhantes, dedicaram tanto esforço, e até
mesmo fervor, à metafísica, quando esta não consiste em nada mais do que meras palavras
encadeadas de forma absurda? E será compreensível que as suas obras, que continuam a
exercer até aos nossos dias tanta influência nos leitores e ouvintes, não contenham senão
erros, ou não signifiquem mesmo nada? Estas apreensões têm a sua razão de ser, na medida
em que a metafísica contém, de facto, alguma coisa, só que não é nenhum conteúdo teórico.
As (pseudo-) proposições da metafísica não servem para representar estados de coisas, sejam
estes existentes (seriam então proposições verdadeiras) ou inexistentes (seriam então pelo
menos proposições falsas). Elas servem para expressar o sentimento vivencial.
Talvez possamos supor que a metafísica se desenvolveu a partir do mito. A criança está
com raiva da “mesa malvada” que a empurrou, o primitivo esforça-se por apaziguar o
demónio ameaçador do terramoto ou venera em gratidão a divindade que traz a chuva
frutífera. Aqui deparamo-nos com personificações de fenómenos naturais, que são a expressão
quase poética da relação emocional do homem com o meio ambiente. É, por um lado, a poesia
que assume a herança do mito, ao produzir e aumentar, conscientemente, a contribuição do
mito para a vida. Por outro lado, temos a teologia, na qual o mito se transforma em sistema.
Qual é então o papel histórico da metafísica? Talvez possamos ver nela o substituto para a
teologia ao nível do pensamento conceptual e sistemático. As (supostas) fontes de
conhecimento sobrenaturais da teologia são substituídas aqui por fontes de conhecimento
naturais mas (supostamente) trans-empíricas. Se bem que a roupagem tenha sido modificada
frequentemente, a persistência do conteúdo do mito ainda é visível a um olhar mais atento.
Achamos que a metafísica também surge da necessidade de expressar o sentimento vivencial,
a postura com a qual vive o homem, a atitude emocional e volitiva face ao meio ambiente, aos
próximos, às tarefas nas quais participa e aos destinos que suporta. Este sentimento vivencial
manifesta-se, muitas vezes inconscientemente, em tudo que o homem faz e diz, afetando
também as feições do seu rosto, talvez também a postura do seu andar. Algumas pessoas têm
agora a necessidade de moldar também uma nova expressão para o seu sentido vivencial,
através da qual este se torna percetível de forma mais concentrada e insistente. Se estas
pessoas têm dons artísticos, então encontram na moldagem de uma obra de arte a
possibilidade de se expressarem. O modo como o sentido vivencial se manifesta no estilo e no
tipo da obra de arte, foi já clarificado por vários autores (e. g. por D i l t h e y e os seus alunos).
(Neste caso é muitas vezes usada a expressão “conceção do mundo” [“Weltanschauung”]; nós
13
preferimos evitá-la por causa da sua ambiguidade, com a qual é dissipada a diferença entre
sentido vivencial e teoria, que, para a nossa análise, é especialmente crucial.) Daqui, só é
essencial para a nossa reflexão o facto de a arte ser uma forma de expressão adequada para o
sentido vivencial, ao contrário da metafísica. Em princípio, nada se opõe ao uso de uma
qualquer forma de expressão. No entanto, na metafísica, pesa o facto de ela simular ser algo
que não é, através da forma das suas obras. Esta forma é a de um sistema de proposições, que
se relacionam numa (aparente) relação de fundamentação, ou seja, a forma de uma teoria.
Assim, é simulado que haja um conteúdo teórico quando, no entanto, como já vimos, não
existe conteúdo algum. Não só o leitor como também o próprio metafísico se encontram sob a
ilusão de que, através das proposições metafísicas, é dita alguma coisa ou descrito um
determinado estado de coisas. O metafísico acredita movimentar-se no campo do verdadeiro e
falso. Na verdade, porém, ele não afirmou nada, apenas expressou algo, tal como um artista.
Não podemos deduzir já que o metafísico se encontra sob esta ilusão devido ao facto de estar
a usar como meio de expressão a linguagem e como forma de expressão proposições
afirmativas, pois o mesmo faz o poeta, embora sem estar sujeito a semelhante autoilusão. Mas
o metafísico apresenta para as suas proposições argumentos, exige aceitação para o seu
conteúdo, cria polémica contra o metafísico de outra escola. O poeta, por sua vez, não se
esforça por refutar nos seus poemas as proposições dos poemas de outros autores pois sabe
que se encontra no domínio da arte e não da teoria.
A música é talvez o meio de expressão mais puro para o sentido vivencial, pois é o que
está mais liberto de tudo o que seja objetual. O sentido vivencial harmonioso, que o
metafísico quer expressar num sistema monístico, expressa-se mais claramente na música de
Mozart. E quando o metafísico expressa o seu sentido vivencial dualístico e heroico num
sistema dualista, não o fará talvez apenas porque lhe falta o talento de Beethoven para
expressar este sentido vivencial através de um meio adequado? Metafísicos são músicos sem
habilidades musicais. Em contrapartida possuem uma forte propensão para trabalhar no meio
teórico, para ligar conceitos e ideias. Em vez de, por um lado, agir segundo esta propensão no
campo da ciência e, por outro, de satisfazer a necessidade de se expressar na arte, o metafísico
mistura ambos e cria uma obra que não contribui absolutamente em nada para o
conhecimento, e que é inadequada para exprimir o sentido vivencial.
A nossa suspeita de que a metafísica é um substituto inadequado para a arte, também
parece ser confirmada pelo facto de que aquele metafísico que talvez tenha possuído o dom
artístico mais forte, nomeadamente N i e t z s c h e , caiu menos vezes no erro daquela mistura.
Grande parte da sua obra tem um conteúdo sobretudo empírico. Trata-se, por exemplo, da
análise histórica de certos fenómenos artísticos, ou da análise histórica e psicológica da moral.
Mas na obra na qual evidencia mais fortemente aquilo que outros expressam através da
metafísica ou da ética, nomeadamente no “Zaratustra”, não opta pela forma teórica
enganadora mas abertamente pela forma da arte, da poesia.

A c r é s c i m o a q u a n d o d a r e v i s ã o : Para meu prazer, notei entretanto que também foi


expressada, por outros autores e em nome da lógica, uma recusa enérgica da moderna filosofia do nada. Num
discurso seu (“Über Alles und Nichts” [“Sobre Tudo e Nada”], Rádio de Leipzig, 1 de maio de 1930;
Philosophische Hefte 2, p. 140, 1931), Oskar K r a u s deu algumas indicações sobre o desenvolvimento
histórico da filosofia do nada e afirma depois sobre Heidegger: “A ciência ridicularizar-se-ia se o [o nada]
levasse a sério, –. Pois nada ameaça tão seriamente a respeitabilidade de toda a ciência filosófica como o
ressurgimento daquela filosofia do nada e do tudo.” Para além disso, H i l b e r t faz a seguinte observação numa
conferência (“Die Grundlegung der elementaren Zahlenlehre” [“Os fundamentos da aritmética elementar”], em
Dezembro de 1930, na Philosophische Gesellschaft de Hamburgo; Math. Ann. 104, p. 485, 1931) sem mencionar
o nome de Heidegger: “Numa palestra filosófica recente encontro a frase: ‘O nada é a negação absoluta da
totalidade do ente’. Esta frase é instrutiva porque, apesar da sua brevidade, ilustra todas as violações graves
contra os princípios propostos na minha teoria da prova.”

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