A Origem Da Primavera
A Origem Da Primavera
A Origem Da Primavera
- Clarice Lispector -
Então sentou-se para descansar e em breve fazia de conta que ela era uma mulher azul
porque o crepúsculo mais tarde talvez fosse azul, faz de conta que fiava com fios de ouro
as sensações, faz de conta que a infância era hoje e prateada de brinquedos, faz de conta
que uma veia não se abrira e faz de conta que dela não estava em silêncio alvíssimo
escorrendo sangue escarlate, e que ela não estivesse pálida de morte mas isso fazia de
conta que estava mesmo de verdade, precisava no meio do faz de conta falar a verdade
de pedra opaca para que contrastasse com o faz de conta verde-cintilante, faz de conta
que amava e era amada, faz de conta que não precisava morrer de saudade, faz de conta
que estava deitada na palma transparente da mão de Deus, não Lóri mas o seu nome
secreto que ela por enquanto ainda não podia usufruir, faz de conta que vivia e não que
estivesse morrendo pois viver afinal não passava de se aproximar cada vez mais da
morte, faz de conta que ela não ficava de braços caídos de perplexidade quando os fios
de ouro que fiava se embaraçavam e ela não sabia desfazer o fino fio frio, faz de conta
que ela era sábia bastante para desfazer os nós de corda de marinheiro que lhe atavam
os pulsos, faz de conta que tinha um cesto de pérolas só para olhar a cor da lua pois ela
era lunar, faz de conta que ela fechasse os olhos e seres amados surgissem quando
abrisse os olhos úmidos de gratidão, faz de conta que tudo o que tinha não era faz de
conta, faz de conta que se descontraía o peito e uma luz douradíssima e leve a guiava
por uma floresta de açudes mudos e de tranquilas mortalidades, faz de conta que ela
não era lunar, faz de conta que ela não estava chorando por dentro — pois agora
mansamente, embora de olhos secos, o coração estava molhado; ela saíra agora da
voracidade de viver.
(Tenta escrever uma carta, mas erra toda hora, amassa papéis, joga-os fora e no fim
pega um papel em branco, dobra-o e entrega a alguém da plateia)
Lembrou-se de escrever a Ulisses contando o que se passara, mas nada se passara dizível
em palavras escritas ou faladas, era bom aquele sistema que Ulisses inventara: o que
não soubesse ou não pudesse dizer, escreveria e lhe daria o papel mudamente — mas
dessa vez não havia sequer o que contar.
Agora lúcida e calma, Lóri lembrou-se de que lera que os movimentos histéricos de um
animal preso tinham como intenção libertar, por meio de um desses movimentos, a
coisa ignorada que o estava prendendo — a ignorância do movimento único, exato e
libertador era o que tornava um animal histérico: ele apelava para o descontrole —
durante o sábio descontrole de Lóri ela
tivera para si mesma agora as vantagens libertadoras vindas de sua vida mais primitiva
e animal: apelara histericamente para tantos sentimentos contraditórios e violentos que
o sentimento libertador terminara desprendendo-a da rede, na sua ignorância animal
ela não sabia sequer como, estava cansada do esforço de animal libertado.
Olhou-se ao espelho e só era bonita pelo fato de ser uma mulher: seu corpo era fino e
forte; seus cabelos de manhã lavados e secos ao sol do pequeno terraço estavam da
seda castanha mais antiga — bonita? não, mulher: Lóri então pintou cuidadosamente
os lábios e os olhos, o que ela fazia, segundo uma colega, muito mal feito, passou
perfume na testa e no nascimento dos seios — a terra era perfumada com cheiro de mil
folhas e flores esmagadas: Lóri se perfumava e essa era uma das suas imitações do
mundo, ela que tanto procurava aprender a vida — com o perfume, de algum modo
intensificava o que quer que ela era e por isso não podia
usar perfumes que a contradiziam: perfumar-se era de uma sabedoria instintiva, vinda
de milênios de mulheres aparentemente passivas aprendendo, e, como toda arte, exigia
que ela tivesse um mínimo de conhecimento de si própria: usava um perfume levemente
sufocante, gostoso como húmus, como se a cabeça deitada, esmagasse húmus, cujo
nome não dizia a nenhuma de suas colegas-professoras: porque ele era seu, era ela, já
que para Lóri perfumar-se era um ato secreto e quase religioso — usaria brincos?
hesitou, pois queria orelhas apenas delicadas e simples, alguma coisa modestamente
nua, hesitou mais: riqueza ainda maior seria a de esconder com os cabelos as orelhas de
corça e torná-las secretas, mas não resistiu: descobriu as, esticando os cabelos para trás
das orelhas incongruentes e pálidas.
Mais uma vez, nas suas hesitações confusas, o que a tranquilizou foi o que tantas vezes
lhe servia de sereno apoio: é que tudo o que existia, existia com uma precisão absoluta
e no fundo o que ela terminasse por fazer ou não fazer não escaparia dessa precisão;
aquilo que fosse do tamanho da cabeça de um alfinete, não transbordava nenhuma
fração de milímetro além do tamanho de uma cabeça de alfinete: tudo o que existia era
de uma grande perfeição. Só que a maioria do que existia com tal perfeição era,
tecnicamente, invisível: a verdade, clara e exata em si própria, já vinha vaga e quase
insensível à mulher.
Bem, suspirou ela, se não vinha clara, pelo menos sabia que havia um sentido secreto
das coisas da vida. De tal modo sabia que às vezes, embora confusa, terminava
pressentindo a perfeição.
Por ter de relance se visto de corpo inteiro ao espelho, pensou que a proteção também
seria não ser mais um corpo único: ser um único corpo dava-lhe, como agora, a
impressão de que fora cortada de si própria. Ter um corpo único circundado pelo
isolamento, tornava tão delimitado esse corpo, sentiu ela, que então se amedrontava
de ser uma só, olhou-se avidamente de perto no espelho e se disse deslumbrada: como
sou misteriosa, sou tão delicada e forte, e a curva dos lábios manteve a inocência.
Pareceu-lhe então, meditativa, que não havia homem ou mulher que por acaso não se
tivesse olhado ao espelho e não se surpreendesse consigo próprio. Por uma fração de
segundo a pessoa se via como um objeto a ser olhado, o que poderiam chamar de
narcisismo, mas já influenciada por Ulisses, ela chamaria de: gosto de ser. Encontrar na
figura exterior os ecos da figura interna: ah, então é verdade que eu não imaginei: eu
existo.
(Penso, logo existo)
E pelo mesmo fato de se haver visto ao espelho, sentiu como sua condição era pequena
porque um corpo é menor que o pensamento — a ponto de que seria inútil ter mais
liberdade: sua condição pequena não a deixaria fazer uso da liberdade. Enquanto a
condição do Universo era tão grande que não se chamava de condição.
E de repente sorriu para si própria com um sorriso amargo, mas que não era mau porque
também ele era de sua condição. (Lóri se cansava muito porque ela não parava de ser).
- Não poderei ir, Ulisses, não estou bem. Não, não... não é nada físico.
— Lóri, disse Ulisses, e de repente pareceu grave embora falasse tranqüilo, Lóri: uma
das coisas que aprendi é que se deve viver apesar de. Apesar de, se deve comer. Apesar
de, se deve amar. Apesar de, se deve morrer. Inclusive muitas vezes é o próprio apesar
de que nos empurra para a frente. Foi o apesar de que me deu uma angústia que
insatisfeita foi a criadora de minha própria vida.
Ela se despediu, abaixou a cabeça em pudor e alegria. Pois apesar de, ela tivera alegria.
(Desliga o telefone)
Talvez fossem os seus "apesar de" que, Ulisses dissera, cheios de angústia e
desentendimento de si própria, a estivessem levando a construir pouco a pouco uma
vida. Com pedras de material ruim ela levantava talvez o horror, e aceitava o mistério
de com horror amar ao Deus desconhecido. Não sabia o que fazer de si própria, já
nascida, senão isto: Tu, ó Deus, que eu amo como quem cai no nada. Depois foi fácil
telefonar para Ulisses e dizer-lhe que mudara de idéia e que podia ir esperá-la no bar.
Só que ela não queria ir de mãos vazias. E assim como se lhe levasse uma flor, ela
escreveu num papel algumas palavras que lhe dessem prazer: "Existe um ser que mora
dentro de mim como se fosse casa dele, e é. Trata-se de um cavalo preto e lustroso que
apesar de inteiramente selvagem — pois nunca morou antes em ninguém nem jamais
lhe puseram rédeas nem sela — apesar de inteiramente selvagem tem por isso mesmo
uma doçura primeira de quem não tem medo: come às vezes na minha mão. Seu focinho
é úmido e fresco. Eu beijo o seu focinho. Quando eu morrer, o cavalo preto ficará sem
casa e vai sofrer muito. A menos que ele escolha outra casa e que esta outra casa não
tenha medo daquilo que é ao mesmo tempo selvagem e suave. Aviso que ele não tem
nome: basta chamá-lo e se acerta com seu nome. Ou não se acerta, mas, uma vez
chamado com doçura e autoridade, ele vai. Se ele fareja e sente que um corpo-casa é
livre, ele trota sem ruídos e vai. Aviso também que não se deve temer o seu relinchar: a
gente se engana e pensa que é a gente mesma que está relinchando de prazer ou de
cólera, a
gente se assusta com o excesso de doçura do que é isto pela primeira vez".
Olhe para todos ao seu redor e veja o que temos feito de nós e a isso considerado vitória
nossa de cada dia. Não temos amado, acima de todas as coisas. Não temos aceito o que
não se entende porque não queremos passar por tolos. Temos amontoado coisas e
seguranças por não nos termos um ao outro. Não temos nenhuma alegria que já não
tenha sido catalogada. Temos construído catedrais, e ficado do lado de fora pois, as
catedrais que nós mesmos construímos, tememos que sejam armadilhas. Não nos temos
entregue a nós mesmos, pois isso seria o começo de uma vida larga e nós a tememos.
Temos evitado cair de joelhos diante do primeiro de nós que por amor diga: tens medo.
Temos organizado associações e clubes sorridentes onde se serve com ou sem soda.
Temos procurado nos salvar mas sem usar a palavra salvação para não nos
envergonharmos de ser inocentes. Não temos usado a palavra amor para não termos
de reconhecer sua contextura de ódio, de raiva, de ciúme e de tantos outros
contraditórios. Temos mantido em segredo a nossa morte para tornar nossa vida
possível. Muitos de nós fazem arte por não saber como é a outra coisa. Temos disfarçado
com falso amor a nossa indiferença, sabendo que nossa indiferença é angústia
disfarçada. Temos disfarçado com o pequeno medo o grande medo maior e por isso
nunca falamos no que realmente importa. Falar no que realmente importa é
considerado uma gafe. Não temos adorado por termos a sensata mesquinhez de nos
lembrarmos a tempo dos falsos deuses. Não temos sido puros e ingênuos para não
rirmos de nós mesmos e para que no fim do dia possamos dizer "pelo menos não fui
tolo" e assim não ficarmos perplexos antes de apagar a luz. Temos sorrido mais em
público do que não sorriríamos quando ficássemos sozinhos. Temos chamado de
fraqueza a nossa candura. Temo-nos temido um ao outro, acima de tudo. E a tudo isso
consideramos a vitória nossa de cada dia.
— Estive lendo um dia um filósofo, sabe. Uma vez segui um conselho dele e deu certo.
Era mais ou menos isto: é só quando esquecemos todos os nossos conhecimentos é que
começamos a saber.
Então pensei em você que não fala uma palavra de filosofia comigo e quando estamos
juntos, pois é, quando estamos juntos você até parece um sábio que não quer mais ser
sábio e até, sabe, até se dá ao luxo de disfarçadamente se angustiar como qualquer um
de nós. Parece tão fácil à primeira vista seguir conselhos de alguém. Seus conselhos, por
exemplo. Já agora ela falava sério:
— Seus conselhos. Mas existe um grande, o maior obstáculo para eu ir adiante: eu
mesma. Tenho sido a maior dificuldade no meu caminho. E com enorme esforço que
consigo me sobrepor a mim mesma. Sou um monte intransponível no meu próprio
caminho. Mas às vezes por uma palavra tua ou por uma palavra lida, de repente tudo se
esclarece.
Ela sabia que ia tentar rezar e assustava-se. Como se o que fosse pedir a si mesma e ao
Deus precisasse de muito cuidado: porque o que pedisse, nisso seria atendida. Foi à
geladeira, bebeu um copo de água: agia como se tivesse sido hipnotizada por Ulisses. E
ainda um ínfimo movimento de revolta contra o hipnotismo a que parecia ter sido
sujeita fazia-a adiar o que viesse.
E ela não sabia como responder. Às cegas teria que pedir. Mas ela queria que, se fosse
às cegas, pelo menos entendesse o que pedisse. Ela sabia que não devia pedir o
impossível: a resposta não se pede. A grande resposta não nos era dada. É perigoso
mexer com a grande resposta.
Não, não devia pedir mais vida. Por enquanto era perigoso. Ajoelhou-se trêmula junto
da cama pois era assim que se rezava e disse baixo, severo, triste, gaguejando sua prece
com um pouco de pudor: alivia a minha alma, faze com que eu sinta que Tua mão está
dada à minha, faze com que eu sinta que a morte não existe porque na verdade já
estamos na eternidade, faze com que eu sinta que amar é não morrer, que a entrega de
si mesmo não significa a morte, faze com que eu sinta uma alegria modesta e diária, faze
com que eu não Te indague demais, porque a resposta seria tão misteriosa quanto a
pergunta, faze com que me lembre de que também não há explicação porque um filho
quer o beijo de sua mãe e no entanto ele quer e no entanto o beijo é perfeito, faze com
que eu receba o mundo sem receio, pois para esse mundo incompreensível eu fui criada
e eu mesma também incompreensível, então é que há uma conexão entre esse mistério
do mundo e o nosso, mas essa conexão não é clara para nós enquanto quisermos
entendê-la, abençoa-me para que eu viva com alegria o pão que eu como, o sono que
durmo, faze com que eu tenha caridade por mim mesma pois senão não poderei sentir
que Deus me amou, faze com que eu perca o pudor de desejar que na hora de minha
morte haja uma mão humana amada para apertar a minha, amém.
Lóri, pela primeira vez na sua vida, sentiu uma força que mais parecia uma ameaça
contra o que ela fora até então. Ela então falou sua alma para Ulisses:
— Um dia será o mundo com sua impersonalidade soberba versus a minha extrema
individualidade de pessoa mas seremos um só.
— Um dia será o mundo com sua impersonalidade soberba versus a minha extrema
individualidade de pessoa mas seremos um só.
Lóri estava suavemente espantada. Então isso era a felicidade. De início se sentiu vazia.
Depois seus olhos ficaram úmidos: era felicidade, mas como sou mortal, como o amor
pelo mundo me transcende. O amor pela vida mortal a assassinava docemente, aos
poucos. E o que é que eu faço? Que faço da felicidade? Que faço dessa paz estranha e
aguda, que já está começando a me doer como uma angústia, como um grande silêncio
de espaços? A quem dou minha felicidade, que já está começando a me rasgar um pouco
e me assusta. Não, não quero ser feliz. Prefiro a mediocridade. Ah, milhares de pessoas
não têm coragem de pelo menos prolongar-se
um pouco mais nessa coisa desconhecida que é sentir-se feliz e preferem a
mediocridade.
(Quebra de cena)