Aula 4 - O contexto regulatório brasileiro

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4. O contexto regulatório brasileiro

Nesse capítulo, deixamos o plano da reflexão teórica para tratarmos da questão mais
concreta da atual questão da comunicação política no Brasil. Comecemos pela mídia
tradicional, ou seja, as grandes empresas de comunicação de massa. Em nosso país, tal
setor é oligopolizado por um punhado de empresas familiares, liderado pelo gigante
Grupo Globo. Os meios de comunicação públicos são incipientes e têm baixíssimo
alcance de público e o restante dos veículos de comunicação tradicionais, impressos ou
televisivos, são locais, regionais ou tem baixa audiência.

As grandes empresas de comunicação brasileiras têm um histórico de alta politização e


manipulação do noticiário em favor de suas preferências políticas, que se congregam
em torno de uma agenda de redução do papel do Estado na economia e nas relações
sociais, privatização e liberalização do mercado. O acúmulo de trabalhos acadêmicos
que demonstram, por meio da análise empírica dos dados da cobertura, o viés político
da grande imprensa brasileira desde o começo da Nova República é enorme e, até agora,
sem contraditório. A maior parte desses trabalhos focam períodos eleitorais e mostram
que o PT e seus políticos, mormente o ex-presidente Lula, têm sido vítimas preferenciais
do viés dos grandes meios de comunicação.1 Mas há um acúmulo razoável de
contribuições que tratam períodos não eleitorais e identificam o mesmo viés político
contra a esquerda, aliado ao ataque a movimentos sociais progressistas, como o MST ou
o MTST, que não coadunam com os interesses econômicos hegemônicos das empresas
proprietárias desses meios.2

A alta politização do sistema midiático brasileiro é em grande medida produto da falta


de regulação. O projeto de monitoramento Media Ownership Monitor - Brasil,

1
Azevedo, Fernando. "Pt, Eleições e Editoriais Da Grande Imprensa (1989-2014)."
Opinião Pública 24, no. 2 (2018): 270-90.

2
Souza, Maurini, and Uiara Chagas Silva. "O Mst No Jornal Hoje Uma Análise Discursiva."
Cadernos de Estudos Lingüísticos 55, no. 2 (2013): 177-92.

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encabeçado pelas organizações Repórteres sem Fronteira e Intervozes — Coletivo Brasil


de Comunicação Social3, descreve da seguinte maneira o estado atual da mídia no Brasil:

Indicadores de Nível de Diagnóstico


risco Risco

Concentração Alto Gravíssima, sobretudo no tipo de mídia mais


de Audiência consumido no país: a televisão. Mais de 70% da
audiência nacional é concentrada nos 4 principais
proprietários.

Concentração Dados Não pode ser computada. Ainda que alguns balanços
de Mercado indisponívei financeiros sejam publicados e algumas informações
s financeiras estejam disponíveis, os dados não estão
disponibilizados por empresa, quota de mercado e
por tipo de mídia, o que é em si um fato grave.

Proteção legal: Alto Há poucos mecanismos para limitar a concentração


concentração horizontal (o controle de diversos veículos de um
de mesmo tipo de mídia por um mesmo proprietário). O
propriedade sistema de mídia brasileiro foi formado calcado em
(horizontal) redes nacionais que garantem o controle, na prática,
das cabeças de rede (Globo, Record, Bandeirantes,
SBT etc.) mesmo que sejam outros os donos ou
acionistas das emissoras afiliadas.

Concentração Alto Dimensão central da concentração na mídia brasileira.


de A soma ponderada das audiências de rádio, TV aberta
propriedade e impresso dos veículos dos quatro maiores grupos
cruzada em audiência atinge 74,7%.

Proteção legal: Alto* Não há qualquer mecanismo coibindo o controle de


propriedade emissoras de radiodifusão (TV e rádio) e de meios
cruzada impressos, ou mesmo de atividades jornalísticas com
distribuição online. Com base nessa falta de previsão
legal, o sistema brasileiro de mídia se organizou em
cima da propriedade cruzada de veículos, reforçando
a concentração em poucos grupos tanto em âmbito
nacional quanto regional.

3
O Media Ownership Monitor — Brasil combina levantamento de dados e avaliação. É
o projeto mais completo de monitoramento da mídia brasileira e cobre tanto os meios
tradicionais como os on-line. Ver http://brazil.mom-rsf.org/br/. A tabela abaixo é um
resumo bastante condensado do conteúdo da página sobre indicadores do site.

O contexto regulatório brasileiro


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Transparência Alto Os percursos possíveis para obtenção desses dados


na são tortuosos, limitados e pouco transparentes. Como
propriedade apontado no indicador 7 (“Proteção Legal:
da mídia transparência no controle da mídia”), não há previsão
de um dispositivo legal ou constitucional específico
que determine a obrigatoriedade de dar publicidade
às informações sobre as empresas prestadoras dos
serviços públicos outorgados, em cuja categoria se
encaixa a radiodifusão (rádio e TV).

Proteção legal: Alto No Brasil, o ordenamento normativo da


transparência administração pública não prevê um dispositivo legal
no controle da ou constitucional específico que determine, de forma
mídia geral, a obrigatoriedade de dar publicidade às
informações – a exemplo de quadro societário,
composição acionária e quadro diretivo – sobre as
empresas prestadoras dos serviços públicos
outorgados, em cuja categoria se encaixa a
radiodifusão de sons e imagens.

Controle Alto Há um número considerável de políticos donos ou


Político Sobre com participação em meios de comunicação, muitos
Veículos e deles com relações indiretas com os grandes grupos.
Redes de Em nível federal, 32 deputados federais e 8 senadores
Distribuição da 55a legislatura (2015-2019) foram sócios diretos de
emissoras. O fenômeno das redes afiliadas é central
para essas associações políticas. As grandes redes
exercem seu poder nos lugares a partir de relações de
afiliação, onde emissoras locais transmitem a imensa
maioria de sua programação oriunda das “cabeças-
de-rede” e também alimentam as redes nacionais
com informações locais. Na maioria dos casos, essas
afiliadas são de propriedade de grupos locais e
regionais liderados por políticos ou famílias com
tradição política e em geral têm propriedade de mais
de um veículo.

Controle Alto A ausência de um marco legal que regulamente o uso


Político sobre de verbas de publicidade estatal na mídia aliada aos
o usos seletivos dessa verba para comprar apoio
Financiamento editorial às ações do governo demonstram que há um
da mídia alto risco de controle político e de silenciamento das
críticas por meio da alocação dessas verbas.
Fonte: Media Ownership Monitor — Brasil

A expressão utilizada pelo Media Ownership Monitor é “Indicadores de Riscos à


Pluralidade na Mídia”. Omitimos a palavra “pluralidade” no resumo acima pois, a nosso

O contexto regulatório brasileiro


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ver, a concepção de pluralidade adotada pelo projeto é incompleta para os propósitos


do estudo atual. Os indicadores de risco são todos construídos a partir da premissa de
que a regulação é necessária para produzir real concorrência no mercado das
comunicações e, assim, garantir a existência de uma “mídia independente e plural”. O
único uso da palavra democracia no site ocorre no parágrafo de introdução da missão
do projeto, o qual assevera que uma “mídia independente e plural é condição
indispensável para um sistema político democrático”.

Não é justo cobrar de um projeto dessa natureza uma elaboração teórica mais
sofisticada sobre democracia e comunicação, ainda mais de uma iniciativa com
tamanhas virtudes no que toca o esclarecimento do público acerca de questão tão
fundamental a nossa democracia. Contudo, da mesma maneira, não é recomendável
que negligenciemos esse problema conceitual em um estudo o nosso, cujo tema é
exatamente a relação entre democracia e comunicação. Basta contrastarmos essa
concepção de pluralidade às teorias democráticas examinadas acima para concluirmos
que ela não satisfaz a todas elas.

A pluralidade de mercado pode atender em grande medida às expectativas da teoria


agregacionista, com seu foco estreito na oferta de informações eleitorais. Mas ela
atende apenas parcialmente as demandas da teoria participativa, pois como a regulação
assinalada é mormente relativa à limitação da propriedade de meios, ou seja, à tradução
do poder financeiro e do poder político em poder comunicativo, não há garantia real de
participação, particularmente para grupos sociais que não têm acesso a recursos
financeiros abundantes.

Mas o déficit maior se dá no tocante à teoria deliberativa. Ironicamente, o esquema de


indicadores parece ter sido desenhado com vistas a uma concepção habermasiana de
esfera pública, pois eles são explicitamente concebidos para evitar a “colonização” da
mídia pelo poder econômico e pelo poder político.4 Mas as exigências da teoria
deliberativa vão além da regulação da propriedade e do alcance da audiência, em

4
Habermas, Jürgen. The Theory of Communicative Action. 2 vols. Boston: Beacon Press,
1984.

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direção ao conteúdo do que é comunicado. Por exemplo, fake news e a manipulação do


noticiário para fins políticos e eleitorais, modalidade fartamente praticada pela grande
imprensa brasileira, são violações flagrantes dos requisitos do processo deliberativo que
deve comandar a formação da opinião pública. A simples proibição da propriedade de
canais de mídia por parte de políticos não é capaz de evitar a captura da comunicação
por interesses políticos. Canais privados de comunicação, sem vínculos formais de
propriedade com políticos, podem manipular o noticiário, e assim o processo de
formação de opinião, de modo a obter efeitos políticos, atacando candidatos, partidos
e movimentos sociais, beneficiando outros, promovendo concepções distorcidas da
gestão pública da economia e dos negócios públicos, etc.

É possível que a concepção de pluralidade adotada pelo projeto seja baseada na


premissa não explicitada, mas equivocada, da primazia da liberdade de expressão sobre
as demais liberdades e direitos básicos do regime democrático. Trataremos desse tema
na próxima seção.5

Mas qual, então, deveria ser o modelo de regulação a ser adotado no Brasil, a fim de
debelar a maior parte das mazelas que hoje afligem a nossa democracia. Na próxima
seção, percorreremos brevemente a evolução da regulação das comunicações no Brasil.
Nos Anexos A e B apresentamos um quadro mais detalhado do estado atual do quadro
regulatório em nosso país e em outras democracias, particularmente nos chamados
“países desenvolvidos”. Antes, contudo, vamos examinar a trajetória da regulação das
comunicações em nosso país, para entendermos melhor como chegamos ao atual
diagnóstico crítico exposto acima.

5
Feres Júnior, João e San Romanelli Assumpção. "Financiamento de Campanha, Mídia e
Liberdade Política." In Reforma Política Democrática: Temas, Atores E Desafios,
organizado por Marcus Ianoni and Ana Claudia C. Teixeira, 57-82. São Paulo, SP: Editora
Fundação Perseu Abramo, 2015.

O contexto regulatório brasileiro


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4.1. Regulação da mídia no Brasil

No Brasil, a radiodifusão começou a ser desenvolvida seguindo o modelo privado de


concessões de frequências de rádio e, mais tarde, de televisão, a grupos comerciais que,
além de demonstrar condições financeiras e técnicas para desenvolver a tecnologia,
também deveriam ajudar a estimular a exploração comercial do novo meio de
comunicação (HAUSSEN, 2001). O decreto 20.047, de 1931, determinou que o serviço
de radiodifusão fosse de interesse nacional com fins educativos, de modo que o governo
promovesse “a unificação do serviço em uma rede nacional e definisse as concessões de
emissoras, renováveis a cada dez anos, a organismos sociais ou privados”.

Após a chegada da televisão nos anos 1950, pudemos identificar dois principais tipos de
arranjos de concessões públicas nas democracias liberais: o modelo de gestão norte-
americano, baseado em outorgas concedidas a grupos empresariais, sendo papel do
governo garantir e gerar a concorrência entre os grupos; e o modelo europeu, no qual
o estado se reservava o monopólio da utilização dos novos meios (CALIFANO; ROSSI;
MASTRINI, 2013).

O modelo aplicado no Brasil foi o norte-americano, embora os critérios sociais e


educacionais, característicos dessa vertente tenham sido desconsiderados. Também
não foram introduzidos mecanismos que impedissem a formação de possíveis
oligopólios no setor da comunicação social (MOREIRA, 2000). No modelo dos Estados
Unidos prevaleceu a exploração privada das concessões, porém, este se fundamentou
no estímulo da competitividade, como demonstra o fato de haver ter consolidado três
grandes redes televisivas – CBS, NBC e ABC – que disputaram o mercado das
telecomunicações em todo o país.

Como notam Simões e Mattos, “nem mesmo os Estados Unidos estabeleceram para a
radiodifusão um regime de exploração comercial eminentemente privado”. Já em 1934
o Congresso daquele país passou o Communications Act de 1934, que criou a Federal
Communications Commission (FCC), agência reguladora com o fito de regulamentar a
atividade em toda a federação (RAMOS, 2005, p. 66). O modelo brasileiro foi claramente
inspirado no estadunidense, ou seja, francamente liberal, no que toca a deixar a maior
parte da área de comunicação para a exploração privada, mas faltaram os mecanismos

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de regulação para prevenir a formação de monopólios e para garantir a pluralidade do


conteúdo difundido.

Em 1962, o Congresso aprovou o Código Brasileiro de Telecomunicações (CBT), até hoje


a lei que rege os serviços de rádio e TV no país. O então presidente João Goulart impôs
52 vetos ao texto. O Congresso derrubou todos eles, no episódio que marcaria a criação
da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e TV (Abert). O CBT foi criado para
regulamentar todos os tipos de comunicação eletrônica, mas, após sua promulgação,
apresentou falhas conceituais e brechas legais, em grande parte advindas de
ambiguidades na interpretação de seus artigos. O código também é lacônico no que toca
os princípios de utilidade pública que deveriam guiar o uso privado desse recurso natural
de domínio público, deixando assim que tecnologias de enorme impacto social, como as
da radiodifusão, fossem apropriadas e exploradas quase livremente por poderosos
interesses privados.

O artigo 7º, capítulo I, título IV, do CBT estabelece que “compete privativamente à União
a exploração diretamente ou mediante concessão [...] do serviço de radiodifusão sonora
(regional ou nacional) e de televisão”. Mas, como em outras áreas da atividade regulada,
a letra da lei em si não garante que sua finalidade seja cumprida. Ora, logo após a
aprovação do CBT a democracia brasileira foi aniquilada por um regime ditatorial que
durou mais de duas décadas. A natureza autocrática do regime permitiu que as leis
fossem cumpridas na medida e segundo a interpretação daqueles instalados no poder.
No que toca as telecomunicações, os governantes militares não estavam preocupados
com a prevenção da formação de monopólios e oligopólios, ou em promover a
concorrência no setor, muito pelo contrário.

Na prática, o Estado brasileiro falhou na distribuição das concessões, gerando


concentração, em vez de diversidade. Também houve problemas no seu papel de
proprietário ativo de meios de telecomunicação. A despeito de algumas iniciativas
pontuais como a TV Nacional, criada em 1960, e a Empresa Brasileira de Comunicação
(Radiobrás), criada em 1975, a primeira TV pública de alcance nacional foi criada
somente em outubro de 2007, quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou
medida provisória instituindo a Empresa Brasil de Comunicação (EBC). No âmbito das
concessões privadas, a competência para atribuí-las foi até 1988 de exclusividade do

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presidente da República. Somente com a nova Constituição é que tal competência


passou para o Congresso Nacional. Em 1997, com a promulgação da Lei Geral de
Telecomunicações (LGT), a regra mudou novamente, e as concessões de serviços
públicos passaram a ocorrer por meio de processo licitatório.

No ambiente de baixa regulação sob um governo de exceção, nutriram-se grandes


grupos privados de mídia. Não por coincidência, tais grupos deram suporte ao regime
que, em troca lhes permitia prosperar, ou mesmo apoiava sua expansão com
investimentos públicos, como é foi o caso da construção da rede de micro-ondas, que
possibilitou à Rede Globo transmitir sua programação para todo o país. A proximidade
das relações entre essa empresa e o regime chegou ao ponto do franqueamento pelo
governo do uso dos estúdios da TVE do Rio de Janeiro, em 1976 e 1977, após o parque
de gravação do grupo no Rio de Janeiro ter sofrido um incêndio.

Na transição da ditadura para a democracia, o Grupo Globo atuou diretamente, tanto


no polo da manipulação da opinião pública, ao tentar ignorar a Campanha pelas Diretas
Já!, como na política de bastidores, conquistando a indicação do ministro das
Comunicações, Antônio Carlos Magalhães. Na votação da Constituição, em 1988, o
poder da Globo e da radiodifusão comercial novamente se expressou. O capítulo sobre
o tema traz garantias não existentes em outras áreas, como o tempo de concessão
(quinze anos para TV e dez anos para rádio), a renovação quase automática das licenças
(à exceção da votação nominal de dois terços do Congresso) e a impossibilidade do
Executivo cassar uma outorga (prerrogativa dada apenas ao Judiciário).

A LGT retirou a telefonia do âmbito de competência do “Código”. Essa determinação


pode ser observada no seu artigo 211: “a concessão de serviços de radiodifusão sonora
e de sons e imagens fica excluída da jurisdição da Agência, permanecendo no âmbito de
competência do Poder Executivo”, ressaltando que a Agência (Anatel), uma autarquia
vinculada ao Ministério das Comunicações, é de fato o órgão regulador das
telecomunicações.6 Assim, o estado brasileiro separou telecomunicações e

6
Ver Anexo A para uma descrição mais detalhada do atual quadro regulatório das
telecomunicações no Brasil.

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radiodifusão, sem, contudo, criar barreiras regulatórias para a formação de monopólios


em cada uma das áreas. O Código em nenhum dos seus artigos trata da propriedade
cruzada, que acontece quando conglomerados midiáticos reúnem sob sua propriedade
diversas plataformas e meios, seja local, regional ou nacional. Diferente de países como
Estados Unidos, França e Reino Unido, e tantos outros, no Brasil não há uma regulação
econômica nem uma proibição clara contra a propriedade cruzada.7

O modelo de regulação adotado no Brasil propicia a consolidação de dois tipos de


emissoras de rádio e televisão, oriundas deste modelo privado-comercial de exploração:
“as controladas por grandes redes de rádio e televisão e as obtidas por apadrinhados do
poder” (HERZ, 1987, p. 44). A configuração atual dos meios de comunicação nos estados
e ainda carrega as marcas da farta distribuição das permissões dadas em troca de apoio
político às emendas constitucionais defendidas pelo presidente José Sarney durante seu
mandato, ou seja, antes da promulgação da Constituição. Sarney e seu ministro de
Comunicações, Antonio Carlos Magalhães, distribuíram 168 concessões de radiodifusão
a 91 parlamentares, de acordo com dados levantados por Motter (1994).8 Estas 168
outorgas foram divididas em 79 rádios FM, 59 AM e 30 geradoras de televisão. As
concessões acabaram por servir apenas para unificar o poder econômico e político
daqueles que dominavam os estados da federação, naquilo que foi batizado de
“coronelismo eletrônico”, levando em consideração a predominância de notórias

7
Ver Anexo B para um apanhado da regulação das comunicações ao redor do mundo.

8
Daniel Herz contou 527 outorgas em menos de três anos de governo Sarney. Ver em
HERZ, D. “Sarney: 527 outorgas em menos de três anos de governo”. Brasília: FENAJ,
1988. Disponível em: http://www.danielherz.com.br/system/files/acervo/FENAJ

/Governo+Sarney+527+Outorgas+em+Menos+de+Tres+Anos+de+Governo.pdf>.
Brasília: FENAJ, 1988. Disponível em:
http://www.danielherz.com.br/system/files/acervo/FENAJ

/Governo+Sarney+527+Outorgas+em+Menos+de+Tres+Anos+de+Governo.pdf>.

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famílias políticas que, além de controlar o cenário eleitoral, começaram a controlar


também os meios de comunicação.9

Na verdade, o artigo 220, parágrafo 5º, da Constituição Federal estabelece que “os
meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de
monopólio ou oligopólio”. Contudo, a regulação infraconstitucional criada até agora
falhou fragorosamente em evitar a oligopolização dos serviços, seja na TV aberta, TV a
cabo, serviços de telefonia e internet, e a democracia brasileira é que sofre as
consequências disso. Não há de fato um órgão regulador e a aplicação de critérios sociais
e econômicos constantes na Constituição, que visam à pluralidade da informação, é
praticamente inexistente.

É até um exagero falarmos em modelo brasileiro de regulação das comunicações, pois


as regras que temos são tão poucas e ineficazes que a situação se aproxima de um
estado de natureza, onde o que vigora é sempre a lei do mais forte. Mesmo um país de
tradição fortemente liberal como os Estados Unidos tem um arcabouço regulatório
muito mais robusto, com uma agência reguladora autônoma (Federal Communications
Commision – FCC), regras e normas que limitam a propriedade cruzada em todos os
níveis de atuação mercadológica dos grupos, e que vigoram desde 1943, com
modificações e adaptações atuais. Em sua formulação original, a regulação não permitia
que:

1- um concessionário controlasse mais de uma emissora do mesmo tipo


no mesmo mercado (“Duopoly Rule”); 2- que um mesmo
concessionário controlasse mais de uma emissora de TV em VHF ou
uma combinação de emissoras de rádio AM/FM (“One-to-a-Market-
Rule”); 3- que se outorgassem concessões de radiodifusão a pessoa
física ou jurídica que exercesse o controle ou operasse jornal diário na
mesma área geográfica (“Cross-Ownership Rule”); e, 4- que um
mesmo grupo controlasse emissoras de rádio e televisão acima de
certos limites percentuais de alcance dos domicílios no mercado

9
SANTOS, Suzy. O Coronelismo Eletrônico como herança do Coronelismo nas
comunicações brasileiras. E-Compós (Brasília), v. dez/06, p. 1-27, 2006.

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nacional de televisão (“Multiple Ownership Rules”) [LIMA; RABELO,


2015].

No Brasil, houve apenas duas tentativas de frear essas práticas. A primeira se deu por
meio da lei de número 10.610 de 2002, em seu artigo 38, letra G: “a mesma pessoa não
poderá participar da administração ou da gerência de mais de uma concessionária,
permissionária ou autorizada do mesmo tipo de serviço, na mesma localidade”. Este
artigo parece ter de fato o intuito de prevenir a propriedade cruzada. Entretanto, o texto
não expressa proibição da propriedade, nem define com clareza o que é administração
e gerência. No mesmo artigo 38, por exemplo, há outro caso que dá margem à
ambiguidade interpretativa. Em parágrafo único se lê: “Não poderá exercer a função de
diretor ou gerente de concessionária, permissionária ou autorizada de serviço de
radiodifusão quem esteja no gozo de imunidade parlamentar ou de foro especial”. Ou
seja, a lei proíbe que um político com mandato exerça a função de administrador de
uma TV ou rádio, mas não o impede de ser proprietário e/ou sócio da empresa.

Essa foi também a primeira alteração do texto constitucional, que seu deu durante o
governo Fernando Henrique Cardoso. Pressionados pelas empresas de
telecomunicação, os parlamentares permitiram a participação de capital estrangeiro na
propriedade de empresas em até 30%.

A segunda tentativa de regular a propriedade cruzada da radiodifusão e das


telecomunicações se deu com a lei de Serviços de Acesso Condicionado (SeAC), de
número 12.485/2011, que proíbe grupos de telecomunicações de serem proprietários
de empresas de radiodifusão e vice-versa, vedando expressamente as empresas
telefônicas distribuidoras de TV a Cabo, por exemplo, de produzirem conteúdo paras
estes canais (INTERVOZES, 2015).

A maior dificuldade de se estabelecer um controle da propriedade cruzada e para


regular economicamente os meios de comunicação com o objetivo de gerar uma maior
pluralidade e diversidade de discursos, opiniões e linhas editoriais, e, portanto, mais
competitividade entre as empresas, está no fato de que as informações sobre os
proprietários, sócios e acionistas dos meios não são suficientemente transparentes.
Apesar de isso estar disponível através de fontes oficiais, como o Ministério das

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Comunicações e a Anatel, nos registros figuram somente os agentes donos de meios de


forma individual, sem que seja possível estabelecer as conexões entre esses
“proprietários individuais”, que são beneficiários das concessões, e os proprietários de
outras licenças que formam parte do mesmo conglomerado empresarial. Não se pode
identificar, a partir destes registros, todas as conexões políticas presentes na
propriedade dos meios.

Foi nesse contexto regulatório frouxo e deficiente que se criaram os principais grupos
de comunicação do país, alinhados em muitos casos ao poder político de forma direta,
formando complexos conglomerados de alcance estatal e nacional. Na verdade, a falta
de regulação eficiente não somente estimula os grupos de comunicação ao
apadrinhamento político, mas também à prática da manipulação eleitoral, dado que são
livres para funcionar como verdadeiros QGs de campanha – um exemplo recente e
escandaloso é a impressão antecipada para distribuição avulsa, como panfleto, da capa
da revista Veja, contendo acusações contra Lula e Dilma, às vésperas do segundo turno
da eleição de 2014.

O mesmo contexto regulatório também permitiu a formação de redes entre os grupos


de mídia nacionais e estaduais, nas quais sempre resultam fortalecidos os meios de
comunicação “cabeças de rede” que, entre outras coisas, impõem suas programações a
suas afiliadas, multiplicando assim o poder comunicativo das empresas centrais, todas
elas concentradas na região Sudeste, ou melhor, em São Paulo e Rio de Janeiro.

Segundo Marinoni (2015), o parágrafo 7º do artigo 12, do decreto-lei 236/1967, deveria


ser suficiente para impedir a perda de autonomia das afiliadas das grandes redes, pois
elas criam somente de 10 a 15% de conteúdo próprio, quase sempre programas
informativos. Para burlar este limite, as emissoras que contam com concessões de
alcance local para o estado designado se filiam a redes nacionais, podendo retransmitir
o conteúdo das “cabeças de rede”, que corresponde em média a 90% de sua
programação. Assim, por meio dessas redes, os grandes conglomerados nacionais
ampliam seu poder de alcance em todo o território nacional, “ganhando o investimento
publicitário” e sufocando a diversidade de produção de conteúdo no Brasil
(INTERVOZES, 2015).

O contexto regulatório brasileiro


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Este tipo de associação é proibido pelo mesmo parágrafo 7º do decreto-lei, que


estabelece que as empresas concessionárias ou permissionárias do serviço de
radiodifusão “não poderão estar subordinadas a outras entidades constituídas com a
finalidade de estabelecer direção ou orientação única, através de cadeias ou associações
de qualquer espécie”. Sem embargo, a Anatel, responsável por regular tais associações,
no informe “Mapeamento – TV Aberta” (2010, p. 23), reconhece a importância das
afiliadas geradoras – por mais que se limitem a ser retransmissoras –, para que os grupos
nacionais obtenham o êxito de audiência e de publicidade, justificando que estas redes
não possuem figura jurídica definida. O documento afirma também que essa relação é
fundamental, porque define o mercado nacional de radiodifusão. Em outras palavras, a
agência reguladora festeja a patologia do sistema que ela mesmo supervisiona.
Ademais, nem o Ministério das Comunicações nem a Anatel possuem uma cartografia
atualizada dessas redes.

No que toca o rádio, a regulação é ainda mais frouxa. O decreto-lei 236/1967, que
também regula esse serviço de comunicação, permite um número alto de estações por
empresa. No nível local, pode-se ter até quatro estações de ondas médias (OM) e seis
de frequência moderada (FM). No nível estadual, um mesmo grupo pode ter três
estações de OM e três de ondas tropicais (OT). Ou seja, somente por meio da
propriedade de estações de rádio, um mesmo grupo já pode formar um sistema
concentrado de comunicação.

Alguns dados anedóticos, mas muito significativos, ajudam a reforçar o estado precário
da regulação das comunicações em nosso país. A única área temática da Constituição
Federal de 1988 que não teve um relatório final para a apreciação da Comissão de
Sistematização, responsável pela redação final da Carta, foi o da Comunicação Social. O
motivo dessa ausência se deve às pressões exercidas por empresários por meio da
Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert). Ao ser promulgada a
Constituição, o capítulo da Comunicação endossava uma vez mais o caráter privado de
radiodifusão nacional, apresentando “absurdos normativos”, segundo Ramos, pois o
Conselho de Comunicação Social, órgão regulador autônomo foi transformado em “um
órgão decorativo auxiliar do Congresso Nacional” (RAMOS, 2005).

O contexto regulatório brasileiro


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Além disso, a constitucionalização dos prazos de duração das concessões de rádio em


10 anos, e de televisão em 15 anos, consagrou o caráter privado da função pública, pois
em qualquer relação de concessão do estado deveria haver critérios para a
reversibilidade do serviço. Lima e Rabelo têm razão ao afirmarem que é difícil
estabelecer o caráter ilegal da concentração midiática dos grupos empresariais e dos
grupos políticos por falta de parâmetros regulatórios que possam balizar a infração da
norma constitucional (LIMA; RABELO, 2015).

Como podemos constatar por meio desse breve passeio pela história da regulação das
comunicações em nosso país, ela sofreu exatamente dos problemas que a literatura da
teoria democrática, particularmente na sua vertente deliberativa, já havia detectado:
captura por interesses econômicos e manipulação política. Se a partir da Constituição
de 1988 a legislação infraconstitucional acarretou ganhos em termos de direitos sociais,
o mesmo não é verdade acerca da regulação das comunicações. Veremos no capítulo
seguinte que esse é fato muito grave, pois o direito de expressão, entendido de modo
amplo como direito de receber informações plurais e de qualidade e direito de expressar
opiniões – a isegoria atualizada – não é um direito social, mas sim o direito político mais
básico. Assim, poderemos compreender que a falta de um mínimo de equidade nesse
âmbito redunda em assimetrias políticas de grande ordem, que violam qualquer
concepção razoável de democracia.

O contexto regulatório brasileiro

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