Isis
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Isis
ADVERTÊNCIA
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Huberto Rohden, Vida e Obra
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Durante a última Guerra Mundial foi convidado pelo
Bureau of lnter-American Affairs, de Washington, para fazer
parte do corpo de tradutores das notícias de guerra, do inglês
para português. Ainda na American University, de Washington,
fundou o Brazilian Center, centro cultural brasileiro, com o fim
de manter intercâmbio cultural entre o Brasil e os Estados
Unidos, sendo então, seu presidente honorário, o senhor Nereu
Ramos.
Na capital dos Estados Unidos, Rohden frequentou,
durante três anos, o Golden Lotus Temple, onde foi iniciado em
Kriya Yoga por Swami Premananda, diretor hindu desse
ashram.
Pelo fim da sua permanência nos Estados Unidos,
Huberto Rohden foi convidado para fazer parte do corpo
docente da nova Universidade Internacional Christian
University (ICU), de Metaka, Japão, a fim de reger as cátedras
de Filosofia Universal e Religiões Comparadas; mas, devido à
guerra na Coreia, a Universidade japonesa não foi inaugurada, e
Rohden regressou ao Brasil. Em São Paulo foi nomeado
professor de filosofia na Universidade Mackenzie, cargo do qual
não tomou posse.
Em 1952, fundou em São Paulo a Instituição Cultural e
Beneficente Alvorada, com a finalidade de manter cursos
permanentes, em São Paulo, Rio de Janeiro e Goiânia, sobre
Filosofia Univérsica e Filosofia do Evangelho. Dirigiu casas de
Retiro Espiritual (ashrams) em diversos Estados do Brasil.
Em 1969, Rohden empreendeu viagens de estudo e
experiência espiritual pela Palestina, Egito, Índia e Nepal,
realizando diversas conferências com grupos de yoguis na Índia.
Em 1976, Rohden foi chamado a Portugal para fazer
conferências sobre autoconhecimento e autorrealização. Em
Lisboa fundou um setor do Centro de Autorrealização Alvorada.
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Nos últimos anos de sua vida, Rohden residiu na capital
de São Paulo, onde permanecia alguns dias da semana,
escrevendo e reescrevendo seus livros, nos textos definitivos.
Três dias da semana costumava passá-los no ashram, em contato
com a natureza, plantando árvores, flores ou trabalhando no seu
apiário modelo.
Quando estava na capital, ministrava palestras e horas de
meditação regularmente na sede da instituição Alvorada.
Rohden frequentava, periodicamente, a editora Alvorada
responsável pela editoração de seus livros, dando-lhe inspiração
e orientação cultural.
Fundamentalmente, toda a obra educacional e filosófica
de Rohden divide-se em quatro grandes segmentos:
1) a sede central da Instituição (Centro de
Autorrealização Alvorada), em São Paulo, com a finalidade de
ministrar cursos e horas de meditação;
2) o ashram, situado a 70 quilômetros da capital, para os
Retiros Espirituais periódicos, de 3 dias completos;
3) a Editora Alvorada, de São Paulo, que difunde, através
de livros a Filosofia Univérsica;
4) Praticantes da Filosofia Univérsica em todo o mundo,
principalmente no Brasil e Portugal.
À zero hora do dia 7 de outubro de 1981, após longa
internação em uma clínica naturista de São Paulo, aos 87 anos, o
professor Huberto Rohden partiu deste mundo e do convívio de
seus amigos e discípulos. Suas últimas palavras, em estado
consciente, foram: “Eu estou a serviço da Humanidade”.
Rohden deixa, para as gerações futuras, um legado
cultural e um exemplo de fé e trabalho, somente comparado aos
dos grandes homens do nosso século.
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Leitor amigo
O que vais ler nas seguintes páginas é objetivamente
exato e real. Apenas a forma romanceada é aditamento do
autor.
A Natureza é um grande livro que Deus desdobrou aos
olhos do homem, para que o lesse, interpretasse e
compreendesse. No estágio atual da sua evolução, o homem, em
geral, considera a Natureza simplesmente como objeto de
exploração e proveito individual. O homem espiritualmente
adulto, porém, sabe que a Natureza é infinitamente mais do que
isto. Sabe que ela é um grande Símbolo, cujo Simbolizado só se
desvenda ao homem na razão direta que ele se identifica com o
Autor da Natureza.
Para o homem profano, os seres da Natureza são como
as letras maiúsculas e minúsculas de um livro aberto ante os
olhos de um analfabeto: o que ele vê não passa de um caos de
caracteres de formas várias, enigmáticas, sem nexo nem
sentido.
O homem espiritual, porém, o verdadeiro iniciado,
deixou de ser analfabeto e lê deliciosamente as grandes
verdades veiculadas pelas letras, pequenas e grandes, de todos
os seres da Natureza; para ele, o mundo deixou de ser opaco e
se tornou cristalinamente transparente, e, através dos símbolos
materiais, o iniciado percebe espontaneamente o simbolizado
espiritual.
Para o homem espiritual, a Natureza é um grande
devocionário, através do qual ele presta o seu culto a Deus, de
mãos dadas com seus irmãos e suas irmãs menores, na
linguagem poética e profundamente verdadeira de um dos mais
avançados leitores desse grande livro, Francisco de Assis.
Leitor amigo. Conhece e ama o Deus do mundo—e
conhecerás e amarás o mundo de Deus!
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PARA A SEGUNDA EDIÇÃO
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línguas, sobre a simpática Apis mellifera. Periodicamente, se
realizam congressos, nacionais e internacionais, sobre este
inseto. Em 1969, durante toda a primeira semana de agosto,
assisti aos 22° Congresso Internacional de Apicultura, realizado
em Munique, Alemanha, onde 3.500 apicultores e cientistas,
representando 40 países, focalizavam, sob todos os aspectos,
esse maravilhoso himenóptero.
O alarme em torno da abelha africana, que, desde 1956,
intimidava os nossos apicultores, já cedeu a um novo surto de
euforia e de entusiasmo, pelo menos entre os apicultores, que já
fizeram as pazes com a agressiva e tão produtiva abelha africana
ou africanizada.
Ultimamente, a Apis mellifera foi novamente focalizada
em todos os países do mundo, por causa da misteriosa "geleia
real", certamente o maior vitalizador que a natureza já produziu.
Infelizmente, mercadores sem escrúpulos, desacreditam
grandemente a geleia real, como também o próprio mel, que
estão sofrendo as mais vergonhosas falsificações.
Paralelamente à geleia real, também o "mel polinizado"
está entrando na alimentação do homem. O pólen é o pozinho
que as abelhas retiram dos estames das flores e usam para
alimentar a sua prole. Recolhidos dos favos e misturados
devidamente com o mel, representa o "mel polinizado" uma
grande fonte de saúde e energia na dieta natural do homem.
Quaisquer informações a esse respeito podem ser obtidas
com a Editora deste livro.
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ISIS E SUA GENTE
— Arrede, arrede!
— Quem é? Que há?
— Arrede! Se não, apanha uma ferroada! Olhei em
derredor e vi um pontinho preto a traçar rápidos círculos ao
redor da minha cabeça e brandindo furiosamente o venenoso
dardo. Recuei alguns passos da colmeia; mas o audaz agressor
continuou a perseguir-me com tenacidade. Por fim, atirou-se
duas vezes contra meu rosto, no manifesto intuito de me cravar
na pele a terrível arma.
— Não faça isto! Não faça isto! — bradei-lhe em tom
sugestivo, ao que o miúdo inseto foi pousar em uma folha de
laranjeira próxima, olhou para mim, algo perplexo, e disse com
desdém:
— É isto mesmo... São covardes, esses gigantes...
—Covarde, não, minha amiga — respondi,
amavelmente. — Não tenho medo do seu ferrão, mas tenho pena
de você...
— Pena de mim?... Não vejo por quê...
— Sim, tenho pena de você, abelhinha estouvada. Se
você me der uma ferroada, terá de morrer.
— Qual, morrer! Aquilo é num instante. Você não seria
capaz de me esmagar tão depressa...
— Não é isto, abelhinha. Eu não ia matá-la por causa de
uma ferroada, nem que fossem dez. Sou amigo do povo das
abelhas, que considero os insetos mais inteligentes e simpáticos
do mundo. Mas você teria de morrer por causa da ferroada
mesma...
— Ora, ora!... Já dei tanta ferroada, e não morri até hoje.
Há pouco, uma lesma gosmenta, atrevida como essas creaturas
são por natureza, invadiu a nossa cidade, apesar dos veementes
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protestos da sentinela, e tivemos de matá-la a ferroadas. No
décimo dia da minha vida entrei em luta com uma vespa
malandra que vinha roubar o nosso mel. Apesar de armada
também ela, morreu com uma tremenda ferroada que lhe dei
entre os anéis do abdômen.
— Mas... Eu não sou lesma nem vespa, minha valente
abelhinha. Lesmas e insetos não têm pele elástica como nós. Do
corpo deles pode você sem dificuldade retirar o seu arpeu; da
nossa pele, não, porque é dilatável, e lhe trava a arma, que se
arranca do seu corpo levando consigo parte das vísceras — e
você morre do ferimento...
A abelha olhou-me, um tanto incrédula, com aqueles
dois lindos hemisférios de olhos facetados, e, mudando o timbre
da voz, disse:
— Meu nome é Isis, da raça das abelhas caucásicas.
—Isis, que belo nome! — Exclamei, fazendo também a
minha apresentação. — E de raça caucásica? Pelo nome, eu diria
que fosse egípcia.
— Os meus antepassados, pelo que consta dos anais do
nosso povo, eram naturais do Cáucaso. Eu sou brasileira. Mas
há quem diga que não somos de puro sangue caucásico. Estes
três anéis dourados do meu corpo vieram de outra parte.
— Pelo que entendo da sua raça, acho que seus lindos
anéis dourados lhe vieram da Europa, talvez da Itália.
Isis deu um giro completo sobre a folha da laranjeira,
alongando e encurtando o elegante abdome para que eu pudesse
ver os anéis amarelados de que falava e de que parecia muito
orgulhosa. Depois, com certa faceirice, acrescentou:
— Quem sabe se estes anéis não vieram do Egito?...
— É bem possível. Até no interior de uma das velhas
pirâmides foram encontrados vestígios de uma casa de abelhas,
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de tipo diferente das que hoje conhecemos; possivelmente, seus
antepassados...
— Se construíram uma cidade no vão de uma daquelas
pedras, não devem ser de raça muito antiga. Talvez algumas
centenas de milhares de primaveras...
— Por quê?
— Porque, em tempos antigos, nós não costumávamos
morar no oco de pedras ou árvores, como hoje em dia.
— Onde é que moravam?
— Suspendíamos a nossa casinha debaixo de algum
galho, como usam até hoje os nossos primos, os marimbondos.
Isis proferiu baixinho estas últimas palavras, e percebi
que se arrependia de ter chamado "primos" os marimbondos,
porque essa raça de himenópteros é geralmente detestada como
bandidos e creaturas sem consciência, embora, cá entre nós, eles
tenham uma função importante para a lavoura. Fiz que não tinha
percebido a desairosa referência, e perguntei.
— Como? Vocês suspendiam a sua colmeia debaixo de
um galho?
— A nossa colmeia, não; a nossa casinha. Nesses tempos
remotos, fabricávamos apenas uma chapinha horizontal, com
células na parte inferior, presa num galho por uma haste de
resina solidificada. Sobrevieram, porém, grandes frios a todo o
mundo, e fomos obrigadas a refugiar-nos no oco das árvores e
das pedras, para escaparmos à morte. Nesse tempo horrível,
como ouvi contar, havia flores só durante umas poucas dezenas
de sóis, e logo voltava o longo período de neve e gelo. No breve
tempo de calor éramos obrigadas a recolher a maior quantidade
possível de néctar e pólen para ter o que comer no tempo do
frio, provisão para as nossas irmãzinhas e para nós mesmas. Foi
nesses tempos que transformamos a nossa primitiva casinha de
chapa horizontal em vastos celeiros e armazéns de provisões.
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Nossa mãe resolveu também multiplicar o número de filhas,
porque havia muitos berços vazios à espera de nenês. Era
necessário esse grande número de abelhas para que houvesse
operárias no tempo das flores. Mais tarde, quando os tempos
melhoraram, conservamos o costume de construir as nossas
casas no interior das árvores e das pedras. É mais seguro, assim.
Esse mundo está cheio de ladrões e salteadores que andam à
procura dos nossos celeiros. Assim, escondidinhos, e só com
uma pequena entrada, é mais fácil defender os nossos castelos,
não acha você?
— Se acho, Isis! Ouvi até dizer que vocês têm sentinelas
especiais que, dia e noite, ficam de plantão à entrada do castelo,
é verdade?...
— Naturalmente. Eu mesma, quando nova, fiz parte
dessa sentinela. Foi nesse tempo que matei aquela vespa e ajudei
a dar cabo da lesma.
— Quando nova? E você é velha agora?
— Estou com vinte e cinco sóis.
— E quanto tempo espera viver ainda?
— Outro tanto.
— Só?
— Nós, as operárias, vivemos uns quarenta a cinquenta
sóis, se tanto.
— Apenas quarenta a cinquenta dias?
— É quanto chega. Cada dia, em tempos normais,
nascem milhares de irmãzinhas, que nos vêm substituir no
trabalho.
— No trabalho? Quer dizer que vocês só vivem para o
trabalho?
— O nosso grande prazer é trabalhar. Vivemos do
trabalho e para o trabalho — e morremos também de trabalho...
— Para que é que trabalham?
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— Para a nação. Para a rainha, para as irmãzinhas, para
todos os que fazem parte da nossa cidade, hoje, amanhã, para
todo o futuro...
— E não trabalham para si mesmas?
— A grande Inteligência da Natureza sabe o que faz.
Obedecemos às suas leis. É a nossa grande felicidade.
Nisto passou perto de nós outra abelha, traçou dois
círculos sobre a cabeça de Isis, ao que esta, com um gentil
"desculpe", levantou voo e desapareceu no espaço.
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SINTONIZANDO OS NERVOS
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coberto de uma penugem dourada, macia como veludo, ao passo
que o corpo de Isis era meio pelado, parecendo por isto mais
escuro que o da companheira. Só mais tarde cheguei a saber que
essa penugem velatínea é o característico das abelhas novas que
ainda não lutaram com a aspereza das intempéries lá fora.
Cheio de alegria, saudei minha amiga caucásica, que me
apresentou sua colega, dizendo:
— Íris, minha irmãzinha de 13 sóis.
A novatinha fez um gesto tão ingenuamente encantador
que me esqueci de fazer a minha apresentação, o que Isis supriu
com muita solicitude.
— Que é que vocês estão fazendo? — Perguntei às duas,
cheio de curiosidade, referindo-me às estranhas evoluções
aéreas da abelhada.
— Estamos sintonizando os nervos — respondeu a mais
velha.
— Sintonizando os nervos, que vem a ser isto?
— Tomando orientação e perspectiva.
— Tomando orientação e perspectiva?... Não
compreendo nada disto...
— Logo vi. Esses gigantes bípedes não sabem quase
nada de nós; só escrevem livros sobre nós. O caso é que, na
última noite, houve grande terremoto em nossa cidade. E hoje
estamos aqui, sem saber onde. Sentimos uns solavancos
medonhos. Tentamos sair, mas encontramos a porta barrada...
— Eu quase nada percebi — disse Íris — porque perdi
os sentidos e tinha certeza de ter morrido. Toda a cidade rolou
por cima de mim.
— Depois de algum tempo — prosseguiu Isis — cessou
o terremoto, e nossos guardas verificaram que a porta da cidade
estava aberta. Mas, como era noite, nada viram do claro; só
viram o escuro. Hoje de manhã, quando voltou o claro, vimos
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que tudo estava mudado. Desapareceram as montanhas e as
árvores, nossas conhecidas. Até a grande planície de água que
havia perto da nossa cidade e em que muitas das nossas irmãs
perderam a vida, havia desaparecido.
— Era deste tamanho — acrescentou Íris abrindo as
asinhas o mais que podia.
— Aqui é tudo estranho para nós — continuou a abelha
mais velha. — Por isto, não podemos recomeçar o nosso
trabalho habitual antes de tomarmos orientação e perspectiva. Se
saíssemos assim, à toa, nunca mais conseguiríamos reaver o
caminho de casa. Abelha perdida é abelha morta.
— Que está dizendo, Isis? Pois não há tanta flor por aí e
tanto néctar nas flores? Como é que uma abelha morreria de
fome cá fora?
— Ela não morreria de fome...
— De que, então?...
— De solidão e de tristeza. Nós nascemos para a
sociedade e, se nos faltar a companhia das nossas irmãs,
morreremos de saudades e de melancolia...
— É isto mesmo — confirmou Íris, passando as
pequeninas antenas pelos grandes olhos de opala, o que lhe dava
uns arzinhos de graça infantil. — Hoje é meu primeiro voo de
abelha adulta, e Loluca disse-me: — Íris, a sociedade é vida, a
solidão é morte!...
Estava eu mortinho por saber quem era Loluca, mas a
história da tal "sintonização dos nervos" não me dava sossego.
Pedi, pois, ulteriores explicações, e Isis, com aquela clareza e
simplicidade toda sua, disse-me:
— Sintonizar os nervos é afiná-los pela luz polarizada.
— Luz polarizada? Perguntei.
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— Sim, essa maravilhosa luz do céu, que apanhamos
com os nossos olhos facetados. Guiamo-nos também, em nossos
voos, pelo â— Íris, você fala como gente grande! — exclamei
sem compreender bem o que ela queria dizer.
— Gente grande? Sou muito pequena, e não sou eu que
falo. Fala em mim a grande Inteligência do Universo.
Houve momentos de silêncio; entreouvi que Isis dizia a
outra abelha em tom de censura: "Quando você fala a homens
não deve usar palavras difíceis; eles só sabem pensar com sua
pequena inteligência; pouco sabem da grande Inteligência."
Interrompi essa conversa a meia-voz, dizendo:
— Vejo que vossa rainha é um ser dotado de grande
experiência e sabedoria.
— Nossa rainha? — Repetiu Íris com grande reverência
— nossa rainha é dirigida pela grande Inteligência, como nós.
Ela atravessou o período glacial e conhece todas as coisas de
dentro.
— O período glacial? O inverno? Mas como? A vossa
cidade não é de poucos meses?
— A nossa cidade e todas nós somos de poucos meses,
mas a nossa rainha é de tempos remotos. Foi soberana de uma
cidade enorme cheia de tesouros, mas deixou tudo isto a sua
filha e saiu com uma parte da população para fundar um novo
reino, que é este que agora temos. Nossas irmãs mais velhas que
saíram com ela já morreram todas. Nós nascemos nesta cidade.
Meu Deus! Pensei de mim para mim, quantos mistérios!
Esses pequenos insetos falam de fenômenos ignotos como se
fossem coisas sabidas de nós, os seres "inteligentes" deste
planeta. Vi que teria de aprender muito das minhas amiguinhas
aladas. Quanta coisa para investigar! Expliquei às duas que nós,
os homens, tínhamos uma agulha metálica que apontava
invariavelmente para o norte. Riram-se a valer desta nossa
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invenção e não podiam compreender porque é que o homem
necessitava de uma agulha metálica para perceber as correntes
magnéticas sul-norte, quando, no entender delas, os nervos
vivos prestariam muito melhor serviço do que um pedaço de
metal inerte. Com muito custo, e vergonha não pequena, tive de
lhes explicar que os nossos nervos são por demais obtusos para
perceber a atuação dos fluídos magnéticos do espaço.
— Os nossos nervos — prosseguiu Isis — sentem essas
correntes, e, depois de devidamente afinados e adaptados, nos
orientam com toda a segurança, de maneira que nos é fácil
encontrarmos, em qualquer parte do mundo, o lugar da nossa
cidade. A estranha mudança da nossa casa obriga-nos a
sintonizar os nervos pelo novo ambiente; pois amanhã e mais
tarde temos de voar longe, muito longe...
— Disse-me Loluca — prosseguiu Íris — que esta
sensibilidade não é privilégio nosso. Nossas primas, as
formigas, também a possuem. Até muitas aves a têm e voam
longe, longe, dia e noite, e não se perdem no espaço, porque são
guiadas pela mesma força que nos orienta.
— Ah! É por isto que as abelhas estão traçando esses
círculos no ar...
— Mas é só por hoje. Amanhã vamos recomeçar o
trabalho no meio das flores.— E eu também vou! — exclamou
Íris vibrando entusiasticamente as asinhas transparentes e fortes
que se ajustavam admiravelmente ao elegante corpinho de linhas
aerodinâmicas.
— Você nunca saiu de casa? — perguntei.
— Para longe, nunca.
— Que é que fez até hoje? Nesses 12 dias de vida?...
— Trabalhos domésticos. Hoje é meu primeiro dia de
abelha adulta. Ah! Que delícia!... As flores... A luz solar... O
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verde das campinas... Lagos de néctar... Montanhas de pólen...
O perfume da resina... Como é bom ser abelha!...
Estava eu com um mundo de perguntas a arder-me na
língua, quando se ouviu forte zumbido da parte da colmeia, e as
duas, como um par de balas vivas, desapareceram no ar. Ainda
julguei perceber uma vozinha a dizer "Loluca está chamando",
mas as minhas amiguinhas caucásicas já haviam sumido no
interior da colmeia.
Sentei-me numa pedra e tornei a embeber-me na
contemplação das evoluções aéreas das abelhas, dizendo de mim
para mim: Sintonizar os nervos... Correntes magnéticas... Luz
polarizada... Loluca... Trabalhos domésticos... Meu primeiro dia
de adulta... Que vem a ser tudo isto? Que fez Íris nesses 12 dias
de vida infantil?
Decididamente, eu tinha de investigar esses mistérios...
E essas abelhinhas tinham de serem minhas mestras e
mentoras através de mundos ignotos...
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A INFÂNCIA DE ISIS
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Mesmo umas vespinhas espartilhadas andavam
preguiçosamente, como que flanando, sobre algumas flores,
petiscando, aqui e acolá, uma gotinha de néctar, que logo
engoliam, como é de praxe entre essas creaturas egocêntricas,
sem cuidados de família numerosa nem vasta organização social
isto com referência a certas espécies. Também algumas dúzias
de irapuãs pretas como diabinhos, andavam a fazer colheita de
secos e molhados, carregando estes no papo, e aqueles nas
cestinhas das pernas.
Se o leitor não sabe ainda, saiba agora que a abelha, lá
fora, é "comunista", mas cá dentro, é "capitalista". Lá fora, na
natureza, tudo é de todos e cada um tem o direito de se apoderar
do que quiser e puder; mas, depois de transformados e
armazenados na colmeia esses produtos da natureza, a abelha os
defende ferozmente como produtos do seu labor próprio.
Onde, porém, havia o mais intenso comércio apiário era
nas estrelas azuis de um grande pé de chicória em flor. Não sei o
que as abelhas encontram de precioso nessa flor, que não tem
perfume nem parece ter lugar apropriado para reservatórios de
néctar, nem se lhe descobre pólen em grande quantidade. No
entanto, todos os dias, já antes do nascer do sol, era esse céu
estrelado um intenso zum-zum de abelhas, sobretudo daquelas
que os entendidos chamam apis mellifera e que são as nossas
conhecidas abelhas de ferrão.
Aproximei-me do pé de chicória, na vaga esperança de lá
encontrar uma das minhas amigas. Depois de muito olhar e
pesquisar, vi que lá estava Íris com seus 13 dias de vida.
Saudou-me rapidamente — e desapareceu. Daí a poucos
momentos reapareceu, mas não me foi possível travar conversa
com ela. Tão grande era o júbilo com que ela celebrava a sua
estreia de "abelha adulta" que parecia literalmente ébria do gozo
de trabalho. Com incrível rapidez e habilidade sugava, do fundo
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das estrelas azuis, as minúsculas gotinhas de doce licor, e, cheio
o papo, disparava como bala de fuzil para entregar a preciosa
carga a uma de suas irmãzinhas mais novas que ainda se
ocupavam com trabalhos domésticos, esperando também o 13°
dia da sua vida.
Numa dessas idas e vindas, viu-se Íris atrapalhada por
uma mamangaba preto-azulada que vinha também buscar
alimento nas flores da chicória. A mamangaba é, por assim
dizer, o elefante no mundo dos himenópteros. Enorme, pesado,
desajeitado, munido de um par de formidáveis mandíbulas, que
parecem duas foices, atira-se esse monstro alado, com zumbido
dissonante, às flores, que vergam ao seu peso e quando, devido a
seu tamanho, não consegue entrar em um cálice, ataca-o pelo
lado de fora perfurando-o a fim de atingir o depósito de néctar,
coisa que nenhuma abelha decente faria.
Quando Íris viu pela primeira vez, bem perto de si, a
mamangaba, levou um susto; mas logo se lembrou das palavras
de Loluca: Não mostrar medo! Mostrar medo é dar coragem ao
outro! Exibir coragem é incutir medo ao outro!
E assim a corpulenta mamangaba, embora munida de um
ferrão muito mais forte que o de Íris, portou-se com perfeita
decência ao lado da pequena competidora.
No dia seguinte chuviscava. Alguns pés de gladíolos
vergavam ao peso da longa fila de lindos cálices oblíquos, cor
de rosa rajados de sépia, umedecidos pela garoa. Quando me
dispunha para escorar uma das pencas, vi no interior do cálice
uma abelha igual às da minha colmeia — e com grande alegria
reconheci minha jovem amiga Íris. Saudei-a, jubiloso, mas ela
mal respondeu, e, com movimentos vagarosos, foi se
aproximando da borda da flor, olhando, sonolenta, para o espaço
turvo.
— Está doente, Íris? — perguntei.
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— Não. Estou toda encarangada... Com esse frio e essa
umidade... A chuva surpreendeu-me aqui... Eu não sabia disto...
Estou sem fazer nada... Se pudesse trabalhar em casa... Há tanto
que fazer... Mas essa chuva, essa chuva...
— Oh! Não se incomode, Íris. Eu vou levá-la para casa.
Mas conte-me primeiro a respeito de sua infância, aqueles 12
dias de trabalhos domésticos a que aludiu.
A abelhinha passou as pernas trazeiras pelas asinhas
diáfanas experimentando-lhes a elasticidade. Estavam perfeitas,
apesar da excessiva umidade atmosférica. Também era um par
de asas novas, novinhas... Depois empertigou-se, esfregou
ligeiramente com as antenas os dois hemisférios dos olhos,
tomou um gole de néctar e disse:
— Você não imagina como é horrível passar uma noite
sem companhia. Não consegui dormir, de tanta solidão... Que
terá pensado Loluca?...
— Afinal de contas, quem é Loluca?
— É uma das nossas educadoras. Foi ela que me ajudou
a roer a tampinha do meu berço e me puxou para fora. Eu já
tinha aberto boa parte da célula e respirava com facilidade, com
a cabeça de fora. Quando Loluca roeu o resto da portinhola
conseguimos tirar o meu corpo todo. Depois ela me lambeu de
todos os lados, porque eu estava pegajosa de cera desses 21 dias
de berço.
— 21 dias de berço?
— Sim, nós, as operárias, levamos 21 dias justinhos
dentro da caminha onde mamãe pôs o ovo de que nascemos.
Primeiro somos um pequeno ovo, um pontinho branco-azulado,
e nada mais, colado, bem em pezinho, no fundo do alvéolo. No
segundo dia começamos a inclinar-nos, e no terceiro estamos
deitadas de chato no fundo da célula, sobre a camada de
alimento que vamos comer.
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— E quem pôs esse alimento no berço?
— Nossas irmãs mais velhas. Mas só depois que nossa
mãe pôs um ovo no fundo da célula.
Também, para que dar vida a quem não pode viver? No
quarto dia, o ovo deixa de ser ovo e vira larva, que se vai
curvando, e endireitando de novo, até ao nono dia, quando
enche quase o vão da célula, sempre com a cabeça voltada para
a porta. Acabou-se o alimento.
— E agora?
— Daí por diante, a nenezinha já não precisa de comida.
É só dormir e crescer, durante doze dias.
— Mas, como pode crescer se não toma alimento?
— A larva, nos primeiros nove dias, comeu bastante para
poder jejuar doze dias. O que ela comeu lhe vai dando corpo
agora. Você conhece nossas amigas, as borboletas?
— Se conheço!
— Borboleta viva?
— Vivas e mortas.
— Matou alguma?
— Não, mas na minha cidade há gente que negocia com
borboletas mortas, ou antes, com as lindas asas delas.
— Que horror! Que selvageria!... Pois, quanto às
borboletas vivas, você sabe que a borboleta vem da crisálida?
— Sei, sei...
— E sabe que a crisálida não come e, contudo, trabalha
sem cessar para formar o corpo da borboleta?
— A lagarta é que comeu.
— Comeu de sobra para que a crisálida possa construir,
em silêncio, do material armazenado, o corpo da borboleta.
— E que corpo maravilhoso têm elas! Que asas! Que
cores! Que boca tão graciosa! Mas, Íris, deixemos em paz as
borboletas. Conte-me a sua própria história.
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— Pois, como dizia, no nono dia a larva da abelha deixa
de comer e recolhe-se ao sono. Para que ninguém lhe perturbe
esses dias de crescimento, suas irmãs adultas passam um
cortinado de cera pela entrada do berço.
— E a nenezinha, não sufoca com a célula fechada?
— Não ouviu o que eu disse! A célula não está fechada
com uma porta de cera maciça, como as do mel, mas apenas
com um cortinado de fiozinhos todo crivado de pequenos
orifícios, para que a pequena possa respirar à vontade. Logo no
dia seguinte ela se transforma em ninfa.
— Que é isto?
— A ninfa vem depois da larva; já tem feitio de
verdadeira abelha, mas ainda sem asas. No vigésimo primeiro
dia, a ninfa, já abelha completa, alada, roe o cortinado de
fiozinhos e põe a cabecinha de fora, esperando que alguma das
parteiras venha ajudá-la para sair do berço. Loluca é muito
jeitosa...
— São as abelhas velhas que servem de parteiras?
— Não, são as nossas irmãs mais novas, poucos dias
mais velhas que a abelha nascitura, que a tira do berço de cera.
As nossas irmãs mais velhas trabalham fora, na colheita de
néctar e pólen. Também, as mais novas conhecem melhor este
ofício de ajudar as outras.
— Conhecem melhor, por serem mais novas?
— De certo. Pois se elas mesmas nasceram poucos dias
antes, como não saberiam ajudar outras a nascer também?
— Tem razão, Íris. Eu pensava com a minha cabeça, e
não com a sua. Nós, homens, quando nascemos não sabemos
nada. Só muito aos poucos é que aprendemos o que outros
homens, mais velhos, nos ensinam. E alguns nem mesmo assim
aprendem.
25
Mas com vocês a coisa é diferente. Vocês nascem
sabendo tudo, e não precisam aprender nada.
— Nós também aprendemos, mas só aprendemos aquilo
que já sabemos.
— Em língua humana se chamaria a isto um paradoxo ou
uma contradição; mas sei que na vossa língua a coisa não é
assim. Continue Íris, continue a contar-me a sua história.
— As abelhas novas, depois de nascer, fazem, durante
doze dias, serviços caseiros. Não têm permissão de sair para
longe buscar néctar e pólen.
— É mamãe que vo-lo proíbe?
— Não. É a grande Inteligência da Natureza que nos dá
esta ordem. Mamãe não dá ordens a nenhuma das suas filhas.
Cada uma sabe o que tem de fazer. Quando saímos do bercinho,
as nossas asas ainda são fracas, e o nosso corpo muito mole. O
primeiro serviço que prestamos é o de ajudarmos nossas
irmãzinhas a sair da célula, pois a toda a hora estão saindo
algumas. Outras limpam a casa carregando para fora detritos ou
pozinhos que encontrarem. Asseio e higiene é a grande lei da
nossa raça. Todas sabem disto, menos os zangões...
— Que está dizendo, Íris?
— Sim, os zangões, que são nossos irmãos, não sabem
nada disto. Felizmente, são poucos, e nem sempre existem.
— Nem sempre existem?
— Existem só quando devem existir, e deixam de existir
quando não têm mais que fazer. Entre nós, só vive quem tem
serviço.
— Para onde vão eles? Morrem? São mortos?
— Disto lhe falarei em outra ocasião, se quiser. Agora
lhe estou contando a minha própria vida. Não gosta?
— Oh, sim, Íris, estou gostando imensamente. Continue,
continue!...
26
— Durante esses doze dias da nossa infância somos
também encarregadas de distribuir os alimentos às recém-
nascidas. Elas aprendem logo a comer, porque já o sabem.
Temos de produzir também cera, que é trabalho penoso e
demorado.
Em tempo chuvoso, como este de hoje, aumenta
notavelmente o serviço doméstico das abelhas novas, porque o
mel que entra vem mesclado com muita água, e temos de
evaporá-lo devidamente; do contrário não se conserva bom nas
células.
Compete às abelhas mais novas fazer essa evaporação.
— Vocês têm ventiladores lá dentro da colmeia?
— Temos, sim. São as nossas asas. Centenas de abelhas
põem-se sobre os favos de células de mel ainda abertas e vibram
intensamente as asas. O vento leva embora a água em excesso e
o mel fica bom como o outro. Quando necessário, engolimos o
mel, esquentando-o, e engolindo-o novamente até ficar bom. É
então fechado hermeticamente com uma tampinha de cera e
guardado para mais tarde. Também em dias de grande calor
temos de vibrar as asas para fazer frescura na cidade.
— Barbaridade! Que infância trabalhosa que vocês têm,
Íris!
— O trabalho é a nossa maior delícia. Não é assim entre
vós?
— Sim, quando adultos, nós também trabalhamos com
gosto; mas, em pequeno, só damos trabalho aos outros, e isto
durante muitos anos.
Íris olhou-me, e, entre espantada e incrédula, com os
seus 30.000 olhos facetados encerrados em dois hemisférios de
opala, e prosseguiu tranquilamente em sua narrativa:
— Cada vez que uma abelha campeira entra na cidade
com um carregamento de néctar e pólen, uma das irmãs
27
domésticas recebe a provisão e coloca-a no competente lugar.
Assim, as campeiras não perdem tempo, e podem logo voltar
para as fontes e buscar novo carregamento. A concorrência é
grande, de todos os lados. Rapidez é tudo. Com sol a pino não
há néctar. Há muito, de manhã, perto do meio-dia, e um pouco à
tarde. Quem chega primeiro de manhã tira mais. A nossa vida é
breve. Temos de viver muito em pouco tempo.
— Tenho pena de sua infância, Íris...
— Pena, por quê?
— Infância toda passada na escuridão, sem ver essa
maravilhosa luz solar...
— Oh não! Nós, em pequenas, cuidamos de nossas
irmãzinhas nascituras, ou recém-nascidas. Depois, saímos todos
os dias, mas é só até à água mais próxima.
— Água, para quê?
— Precisamos de buscar água para muitos trabalhos, de
que lhe falarei em outra ocasião. Nós, as abelhas novatas, somos
encarregadas pela grande Inteligência de buscar água. É de
menor responsabilidade do que o serviço das campeiras, mas
não é sem perigo. Muitas morrem neste trabalho...
— Apanhados pelos bem-te-vis?
Íris não respondeu à minha pergunta. Imóvel, com as
minúsculas antenas arriadas como duas bandeiras a meia-haste,
parecia perdida em lutuosas reminiscências... Pobre da Mirtes,
suspirou por fim, baixinho.., Morreu no primeiro dia da vida lá
fora.
— Quem era Mirtes? — perguntei, condoído.
— Minha vizinha de berço — respondeu Íris entre dois
soluços — Já nos conhecíamos antes de nascer. Entre mim e ela
havia apenas uma película de cera muito fina, quase um nada.
Isto é, além do delgado casulo em que cada uma de nós estava
envolta após o período larval. Nascemos no mesmo instante.
28
Loluca roeu as tampinhas das nossas células, como se fosse uma
só. Mirtes era linda, linda. Mais forte que eu.
Numa dessas manhãs, depois de tomarmos um bom gole
de mel e fazermos alguma limpeza caseira, Mirtes convidou-me
para um voo de aguada. Encontramos logo uma enorme planície
de água. Mirtes, estouvada, ébria de luz, voou rentinha à lisa
superfície. Eu fiquei mais alto, desconfiada daquele mistério,
que me parecia perigoso. De repente, minha amiguinha bradou:
"Íris, Íris! Lá no fundo está voando outra Mirtes, de barriga para
cima!..." Logo depois um grito de dor — e um silêncio
profundo, profundo... Mirtes desaparecera nas águas...
— Afogada?
— Devorada... Logo que ela caiu na água, e ainda boiava
bem na superfície, acudi para salvá-la, mas de repente veio das
profundezas um monstro horrível, escancarou uma boca enorme
— e Mirtes desapareceu no abismo.
***
Fez-se silêncio profundo em derredor de nós e dentro de
nossas almas... Até o céu acompanhou a nossa tristeza, chorando
abundantes lágrimas de cristal sobre a terra e as plantas em
volta... A própria alma do Universo parecia suspender a
respiração para não perturbar a sacralidade do nosso
sofrimento...
Essa dor comum me fez ainda mais amigo do povo das
abelhas do que eu era antes. Parece mesmo que só amamos
realmente alguém depois de sofrermos com ele. É como se dois
elementos duros e justapostos um ao outro se derretessem no
ardor de um grande fogo e se fundissem em uma única
substância, que não é nem Eu nem Tu, mas Nós...
— O que nos consola — disse, por fim Íris, reanimando-
se — é que só morre o ser vivo, mas não a vida. A vida é
29
imortal. Morreu Mirtes, mas a sua vida está com a grande
Inteligência, imortal, sempre-viva...
A abelhinha continuou a falar neste sentido por muito
tempo, e eu quedei-me, quase extático, em face do que ouvia.
Resolvi escrever um livro sobre a vida imortal dos seres mortais.
Por fim, regressando das alturas do enlevo místico para o plano
da vida quotidiana, disse Íris:
— Não voar em linha reta! Repetia Loluca todos os dias.
É perigoso!
— Perigoso, por quê? — perguntei.
— Perigoso para as novatas, de voo menos firme e
rápido. Para as campeiras traquejadas na luta, pouco perigo há
na linha reta. As abelhas novas têm de voar em zigue-zagues ou
em serpentinas.
— Mas por quê?
— Você não sabe que há muitas aves por toda a parte?
Ainda há pouco, você falou no bem-te-vi. Mas não é só ele que
gosta de nós...
— Pois, não é bom que as aves gostem das abelhas?
— Bom? Bom? É o que há de pior! Ser gostado por um
pássaro é um desastre!
— Compreendo, compreendo. Elas gostam de vocês com
o bico e com o estômago, e não com o coração...
— Lá no mundo dos homens não é assim também?
— Muitas vezes. Há entre nós muito amor devorador.
Mas, afinal de contas, vocês não têm uma arma terrível, o
ferrão?
30
— Qual ferrão! Serve na luta contra outros insetos, mas
o bico dos pássaros é tão duro que não entra ferrão algum. Antes
de darmos a primeira ferroada já estamos esmagadas. A
salvação está na força das nossas asas e na habilidade de voar
em zigue-zague ou serpentina, que ilude o perseguidor.
Íris olhou para o céu, e disse:
— Está melhorando. Vou buscar resina. Temos lua
minguante. O tempo é propício.
— Resina, para quê? Que é que vocês fazem com resina
dentro da colmeia?
— Muita coisa. Desta vez é para cobrir o corpo de uma
lesma que está começando a empestar a cidade.
— Que está dizendo, Íris? Uma lesma? E vai cobri-la de
resina?
— Sim, ontem entrou na cidade mais uma dessas
creaturas pegajosas, e tivemos de matá-la. Com besouros e
aranhas a gente se arranja; arrastamo-los para fora. Mas esses
fregueses gosmentos estão a tal ponto colados no chão que
ninguém os tira daí. Nem mortos podem ser removidos. Nem sei
o que essa gente vagarosa vem buscar em nossa cidade. Não
comem mel nem cera. Possivelmente, querem devorar os nossos
nenezinhos...
— E que vão fazer agora com o cadáver da lesma?
— Vamos mumificá-la, cobrindo-a com espessa camada
de resina impermeável, a fim de isolá-la do ambiente. Senão,
ficaria tudo empestado.
— É espantoso, Íris! E você vai fazer isto?
— Não, isto é tarefa das novatas. Eu sou abelha adulta.
Mas vou buscar resina. Lá no alto daquele morro deve haver da
dita. Adeus!
31
Antes que eu pudesse formular uma pergunta sobre
aquilo da "lua minguante", já estava Íris a boa distância, rumo
ao cume de um monte coberto de mata.
Cheio de curiosidade dirigi-me à colmeia, espiei
cautelosamente — e pasmei em face do que via. Centenas de
abelhas novas — eu já as conhecia pela cor mais clara e
abundante penugem do corpo — estavam ocupadas em
desdobrar espessa camada de resina cheirosa sobre um
montículo alongado que devia ser o corpo da desditosa lesma,
morta e semienrolada sobre si mesma. A princípio, tive a ideia
de intervir no trabalho dos himenópteros lançando para fora da
colmeia aquele trambolho. Prevaleceu, porém, a curiosidade de
presenciar o trabalho de mumificação e sepultura da parte dos
miúdos insetos. Grande número de abelhas, das campeiras,
vinha entrando sem cessar com minúsculas parcelas de resina —
própolis, lhe chamam os apicultores — extraída de certas
árvores. Entregavam o material às jovens engenheiras e
desapareciam instantaneamente. Depois de meia hora, nada mais
se via do corpo do molusco. Apenas um montículo escuro
assinalava o lugar do jazigo perpétuo da intrusa.
Esperei por Íris, mas não a vi regressar. Teria ela sido
vítima de algum acidente?... Havia tantos pássaros nos
arredores...
32
MORTANDADE, REVOLUÇÃO E PROTESTO
33
mesma posição em que estavam, e, mudando-lhes a posição
certa, morreriam as larvas.
Resolvi, por isto, inutilizar os celulários de incubação e
fervê-los para aproveitar a cera. Depois de apanhar a cera
dourada, tive a infeliz lembrança de colocar o resto diante da
colmeia, para que as abelhas recolhessem a cera e a
aproveitassem para construir a nova cidade.
Nesse tempo vivia eu na profunda ignorância de que as
abelhas usassem cera velha.
Daí a 15 minutos, vi os ares repletos de abelhas a
doidejarem com zumbidos ferozes, e à entrada da colmeia estava
enorme bloco das mesmas, que engrossava de segundo em
segundo. Faltavam apenas a rainha e sua corte. Mas a chamada
do bloco à entrada era tão insistente que a soberana não teria
resistido por muito tempo ao impetuoso apelo da nação em peso;
pois o que o povo apiário estava fazendo era, evidentemente, um
convite para uma fuga geral.
— Crueldade!
— Infâmia!
— Desaforo!
— Estupidez!
— Vamos embora daqui, depressa, depressa!
— Lugar mal assombrado!
Todas estas, e outras vozes que não entendi, se cruzavam
confusamente nos espaços. De relance, percebi de que se
tratava. A princípio pensava eu que a colmeia estivesse fazendo
manobras de enxameio, como costumam fazer quando parte da
população, aderindo à velha soberana, se vai embora para fundar
nova cidade.
Neste momento, apareceu Isis, toda esbaforida,
clamando umas palavras que, a princípio, não pude entender no
meio da balbúrdia geral. Por fim, distingui isto:
34
— Que horror! Tire esses cadáveres de nossas
irmãzinhas!...
— Que aconteceu, Isis?
— Tire daí esses cadáveres! Depressa! Senão, vamos
todas embora!...
Compreendi tudo. Mais que depressa, agarrei a cestinha
com os corpos das larvas e os resíduos de cera e joguei tudo ao
barranco do arroio próximo. Ainda por meia hora continuou a
revolução apiária. Pouco a pouco, porém, se acalmaram,
desistiram das suas furiosas evoluções aéreas e resolveram
voltar à colmeia, mas ainda vibrantes de indignação e horror. O
vasto zumbido prosseguiu por largo tempo, assim como
continua o movimento e ruído das ondas do mar, depois de
cessar a tormenta. Quando, porém, depois de muito pesquisar
nos arredores, se convenceram de que já não havia vestígio da
horrorosa carnificina, comunicaram à rainha que estava tudo em
ordem, e esta resolveu não sair. Deve ter sido um grande alívio
para ela, porque ela estava nos seus melhores tempos de jovem
mãe e prestes a dar à luz algumas milhares de filhas. De resto,
também a nova cidade, embora ainda vazia, era uma beleza e em
nada comparável à cidade antiga, destruída, com suas ruas
estreitas, tortuosas, sem possibilidade de ulterior expansão. A
cidade nova que eu lhes dera era limpa, espaçosa, munida, além
disto, de dez magníficos caixilhos, cada um já com a competente
lâmina de cera moldada presa na barra horizontal de cima e que
serviria de início aos novos favos. Tanto luxo e tanta
previdência, é certo, nunca tinham sido vistos por minhas
amigas, desde eras remotíssimas.
Estava eu observando a alviçareira vazante daquele
enorme espalhafato, quando reapareceu Isis e disse-me à
queima-roupa, ainda trêmula de emoção:
35
— Por todas as flores do universo! Como é possível que
um homem cometa semelhante monstruosidade? ...
— Desculpe Isis — balbuciei — mas aquela caixa podre
era imprópria para...
— Não, não é isto! Não me refiro à destruição da nossa
cidade. Nenhuma destruição é capaz de nos fazer desanimar.
Refiro-me àquele espetáculo macabro que você armou à entrada
da nossa residência. Colocar-nos à porta da cidade os espectros
de milhares de irmãzinhas nossas assassinadas? E esperar de nós
que fôssemos lamber a cera desses cadáveres? Que ideia faz
você de nós?...
Eu não sabia o que replicar. Depois de alguns momentos,
acrescentou Isis, como que falando a si mesma: "É verdade, os
homens nada entendem dos mistérios da nossa vida íntima...
Escrevem muitos livros sobre nós, acham que somos muito
inteligentes, mas nada sabem dos sentimentos do nosso
coração..."
Pedi a Isis que apresentasse à rainha as minhas
desculpas, juntamente com a promessa de contribuir o mais
possível para a pronta reconstrução da cidade.
A abelhinha esboçou um sorriso triste e céptico, como
que a pensar: De que modo havia esse homem de contribuir para
a reconstrução da nossa cidade?... Eu, porém, para mostrar a
minha boa vontade, coloquei à entrada da nova colmeia duas
tigelas, uma cheia de mel, e a outra com açúcar diluído em água.
As abelhas avançaram de roldão sobre o mel, que, aliás, era
delas mesmas, e o levaram embora em poucos minutos. Depois,
vendo que nada mais havia que lamber do bom, dirigiram-se ao
menos bom e foram tomar conta do açúcar, de que não ficou
vestígio.
E assim se encerrou pacificamente esse incidente quase
trágico.
36
SURGE UMA CIDADE COR DE NEVE
37
estupefação! Suspendi outro — a mesma surpresa! A maior
parte dos dez quadros que integravam o conjunto dos futuros
berçários e celeiros, apresentava um fenômeno indescritível.
Que é que havia?
Dentro do vão de cada quadro estava suspensa uma
pesada cortina escura, em forma de um triângulo invertido, feita
de reluzentes bagas, os corpos de milhares de abelhas, em quase
completa imobilidade. A fila de cima prendia-se firmemente ao
caixilho em toda a extensão da linha horizontal; a segunda fila,
um pouco menos larga, estava presa nos corpos da de cima, e
assim por diante, em sentido descendente, até que a ponta do
triângulo atingisse quase a parte inferior do caixilho. Cortina
igual havia na maior parte dos outros quadros.
— Que é isto? — perguntei, espantado, mas não tive
resposta. Possivelmente no meio daqueles cachos vivos de bagas
escuras se encontravam também os corpos de algumas das
minhas amigas recém-nascidas, mas quem as poderia descobrir?
O silêncio era absoluto.
Nem o mais ligeiro vibrar de asas.
— Que friiio! Feche a casa! — murmurou alguém no
meio da multidão imóvel.
— Assim é impossível fazer cera — acrescentou outra à
meia-voz.
Fechei a tampa, cautelosamente, e perguntei a um dos
guardas o que significava aquilo. Olhou-me ele com uns olhos
enormes, como quem não compreende o que se diz. Repeti a
pergunta, ao que ele respondeu secamente:
— Ora, estão fazendo cera.
— Fazendo cera, mas de quê?
— De quê? De que havíamos de fazer cera senão de nós
mesmas?
38
— Esse é o gigante que nos roubou tudo — disse outro
guarda, acrescentando baixinho em tom rancoroso — Mereceria
um milheiro de ferroadas... Se não fosse animal de sangue
quente...
— Não me levem a mal o que fiz — expliquei-lhes —
Foi pelo bem do vosso povo. Naquela caixa imunda e podre não
havia lugar para uma nação grande e próspera, e cada ano teriam
de emigrar diversos enxames com parte da população. Nesta
nova residência espaçosa cabem folgadamente 50.000 abelhas
com todo o conforto.
— Isto lá é verdade — concordou o primeiro dos guardas
— Nunca tivemos casa tão espaçosa e limpa como esta. Mas,
pelos modos, você não sabe nada da nossa vida e atividade...
— Sei... Um pouco...
— Mas ignora uma das coisas mais importantes...
— A saber?
— Que nós, para fazer cera, temos de ficar imóveis e
bem juntinhas umas às outras, ao menos pelo tempo de um sol e
de uma escuridão.
— Tem razão, eu ignorava isto. Pensei que vocês
fabricassem a cera com o pólen das flores.
Entreolharam-se as duas com ares significativos, mas
não responderam. Se pudessem sorrir, teriam sorrido da minha
ignorância de homo sapiens. Por fim, a que primeiro falara
comigo se apresentou dizendo que se chamava "Sílvia". A outra,
sempre de cara fechada e desconfiada, não quis dar o seu nome,
mas a companheira, sempre gentil e alegre, apresentou-a com o
nome de "Cirila". Tive o pensamento de perguntar por Isis e Íris,
mas suprimi esse desejo e insisti com as duas novas amigas —
embora uma não se mostrasse nada amiga — que me
explicassem o mistério da origem da cera.
39
— A cera — disse Sílvia — é produzida pelas nossas
irmãs mais novas. Aparece em forma de umas palhetas brancas,
segregadas por umas bolsas que as novatas têm entre os anéis do
abdome. Para que estas palhetas brancas apareçam é necessário
que nossas irmãs engulam bastante mel e depois fiquem por
muito tempo imóveis e produzam calor pela reunião de
numerosos corpos. Quando começam a aparecer as escamas
brancas, a vizinha as apanha do corpo da companheira e as leva
para o alto onde estão os alicerces da cidade. E a cidade vai
crescendo, crescendo, até embaixo. Em tempos normais, só uma
parte da população está encarregada de produzir cera, mas hoje
quase todas estão ocupadas neste trabalho; pois ficamos sem
cera alguma, depois do cataclismo de ontem. Ou pensa você que
havíamos de deitar o mel pelas ruas da cidade, assim sem mais
nem menos? E onde poria nossa mãe os ovos para suas filhinhas
se não houvesse berços? Amanhã terá ela grande número de
berços...
— Amanhã? Tão depressa?...
— Nosso trabalho é rápido...
Sílvia interrompeu bruscamente o fio da conversa e, em
companhia de Cirila, se atirou à entrada da colmeia, onde
aparecera uma creatura com cara de ladrão. O intruso
desapareceu nos ares perseguido pelas duas valentes guardas,
que tardaram a regressar, parecendo empenhadas em uma luta
de grandes dimensões.
***
Daí a dois dias, fui abrir a caixa, cautelosamente — e
deparou-se-me um espetáculo encantador. Suspendendo um dos
quadros móveis, tive ante os meus olhos uma maravilha de
indescritível beleza e perfeição. Na barra superior do caixilho,
onde eu prendera a lâmina de cera moldada, estava suspenso, em
continuação dessa faixa, um favo triangular, alvo como a mais
40
pura neve das montanhas, e de paredes tão delgadas que
chegavam a ser ligeiramente translúcidas. Parecia um sonho de
fadas, um sopro de leveza imaterial. E que maravilha as paredes
e a forma das células! Cada alvéolo constava de seis paredes
laterais, cujos pontos de encontro formavam outros tantos
ângulos, sendo quatro ângulos de cada célula iguais entre si,
enquanto os dois restantes, o de cima e o de baixo, um pouco
mais fechados, também iguais entre si, mas diferentes dos
quatro primeiros. Todos os alvéolos obedeciam rigorosamente à
mesma forma e bitola. O fundo de cada um desses graciosos
hexaedros terminava em um prisma triangular, ajustando-se
perfeitamente ao fundo de outra célula construído do outro lado
do favo, em sentido oposto; pois todos os favos têm duas faces
com base comum. Depois de algum tempo verifiquei com
estranheza que as linhas laterais dos alvéolos hexaédricos não
corriam em sentido rigorosamente horizontal, como eu supunha,
mas acusavam ligeira inclinação para cima. Perguntei a Isis, que
felizmente reaparecera, pela razão dessa singular disposição
oblíqua das células, ao que ela me respondeu, sorridente:
— Imagine você, se colocássemos os celeiros em sentido
inteiramente horizontal, que aconteceria? Escorreria o mel antes
de amadurecer e poder ser fechado.
— E, se colocassem os favos em posição horizontal,
ficando os alvéolos em sentido vertical?
— Ora, ora! Neste caso, só poderíamos aproveitar a parte
superior do favo, e teríamos de construir um fundo plano, chato,
desgracioso, e ainda por cima impróprio para as células do
berçário, pois as extremidades do ovo e da larva são
arredondadas, e não chatas. A única forma e disposição razoável
para as células é esta que a Inteligência Cósmica nos inspirou,
há muitos milhões de primaveras. A disposição dos nossos favos
também favorece muito a ventilação e limpeza da cidade. A
41
posição horizontal dos favos cortaria as correntes aéreas que 30
vêm de fora — e quem pode viver sem ar? Até as nossas
irmãzinhas iriam morrer asfixiadas antes de nascer...
Tudo isto dizia Isis com a precisão e segurança de um
erudito professor de matemática e geometria a lecionar ciências
exatas aos alunos de uma Escola Politécnica. Ao suspender um
dos lindos favos, cujos alicerces estavam no alto, lembrei-me do
que o livro do Apocalipse diz da "cidade santa de Deus", cujos
fundamentos se acham nas alturas do céu e que descem às
baixadas da terra...
42
50.000 VIRGENS HERÓICAS
43
ainda em período de trabalhos infantis, para fazer a competente
limpeza; do contrário, acabaria o interior da cidade numa
pavorosa imundície, porque esses analfabetos em asseio e
higiene eram em número de diversas centenas.
Tudo isto, e muito mais, cheguei a saber mais tarde, e de
um modo que agora não posso explicar.
— Quem são esses senhores de asas semiabertas? —
perguntei a uma das guardas que estava de plantão à entrada da
colmeia número dois. A guarda olhou-me, entre espantada e
compassiva, deu meia volta e desapareceu no interior da caixa.
Será que não entendeu a minha linguagem?... Ou teria medo de
mim?...
Neste momento deparei casualmente com minha amiga
Sílvia, que, como de costume, estava de guarda à entrada da
primeira colmeia. Pedi que me explicasse o mistério daquelas
grandes abelhas desalinhadas. Parece que falei com certo
desdém, porque Sílvia, depois de me ouvir em silêncio,
desandou-me um olhar repreensivo; por fim disse com grande
reverência:
— Esses são os zangões, as abelhas masculinas.
— Zangões? E por que não os há nesta colmeia?
— Vai haver... Quando o tempo chegar...
— Para que servem esses vadios?
— Vadios?... Vadios... Não há abelha vadia!
— Desculpe Sílvia, mas eu não compreendo...
— Logo vi que você não compreende nada da nossa
vida.
— Quantos zangões há numa colmeia?
— Algumas centenas. Depende...
— E por que não trabalham?
— Nossos irmãos masculinos trabalham tanto quanto
nós.
44
— Trabalham, como?
— O trabalho deles é diferente do nosso, mas não é
menos importante. Se não fossem eles — adeus, operárias!...
— Explique-me isto, Sílvia, por favor.
— Nós servimos ao nosso povo vivendo e trabalhando
— eles lhe servem dando vida e morrendo. Ai de nós se viessem
a faltar os machos! A cidade inteira estaria votada ao
extermínio!...
— Mas, diga-me, Sílvia, não é verdade que vocês,
operárias, matam cada ano centenas de zangões?
— É verdade, matamos os renitentes, após o voo nupcial
da nova rainha, e deixamos morrer de fome os restantes.
— E isto você chama amor e fraternidade?
— Perfeitamente.
— E os zangões são do mesmo parecer?
— Todos eles.
— Estão de acordo em que sejam mortos por vocês?
— De pleno acordo. Nenhum deles desejaria continuar a
viver quando a sua vida já não tem razão de ser. Matá-los
quanto antes é ajudá-los a cumprir a sua missão. Aqui entre nós,
tudo é bem organizado. Vive-se por uma grande missão.
— Que missão?
— Depois do voo nupcial da rainha a missão do zangão
terminou, e por isto é justo que sua vida termine também. Entre
nós não há vida sem finalidade. Nós, operárias, também
deixamos de viver depois que deixamos de trabalhar. A nossa
missão é trabalhar. Com uns cinquenta sóis, estarei exausta, com
as asas rotas, as energias gastas — e vou morrer na solidão...
— Na solidão? Não vai morrer no meio de suas
companheiras, na cidade?
— Nunca nenhuma abelha honesta cometeria semelhante
indecência! Só se a morte a surpreendesse sem aviso prévio.
45
Cada uma de nós sabe morrer a sós. Necessitamos da sociedade
para viver e trabalhar, mas para morrer só precisamos da
solidão. Imagine, que trabalho para nossas irmãzinhas terem de
arrastar para fora, cada dia, centenas de cadáveres!
— Centenas, cada dia?
— Sim, cada dia nascem centenas de abelhas, e morrem
outras centenas. Até milhares. Nossa mãe põe, geralmente, 2000
ovos por dia. Toda operária tem suficiente bom senso para sair
da cidade quando pressente o fim da vida. Voa longe, longe, até
onde lhe permitam as asas rotas, pousa numa folha, ouve a voz
da grande Inteligência — e morre... A nossa cidade está sempre
em festa. É um sorridente berçário de vida em perpétua sucessão
e perene juventude, e não um triste asilo de seres decrépitos,
nem uma necrópole de defuntos... Para nascer necessitamos do
auxílio de nossos semelhantes, mas para morrer cada uma basta
a si mesma.
— Compreendo, compreendo, Sílvia... Morrer em
profunda solidão, depois de uma vida ao serviço dos outros, é
belo, é heróico, é sublime... Mas... Ser morto, como os zangões,
em plena juventude, isto me parece triste e revoltante...
— Nosso povo não conhece semelhantes
sentimentalismos. Quem perde a sua razão de ser é velho e
decrépito, ainda que acabe de nascer. Ser jovem é ter uma
grande tarefa a cumprir, uma razão de ser, um trabalho a prestar
pelos outros. Quando os zangões fecundam a nova rainha, em
seu glorioso voo nupcial, eles morrem imediatamente, porque a
sua vida seria um contrassenso, daí por diante. E também todos
os outros zangões têm de morrer, porque a sua vida ulterior seria
um absurdo, uma imoralidade... A nossa mãe, apesar das muitas
primaveras que viu, é sempre jovem enquanto põe ovos e
produz vida nova. Mas, no dia que deixasse de pôr ovos e crear
vida nova, seria velha... Oh! Momuca!... Oh! Momuca!...
46
Sílvia estremeceu repentinamente, e, se tivesse podido
chorar, teria derramado torrentes de lágrimas, dos seus lindos
olhos de opala escura. Mas, abelha não pode chorar, e esta falta
de lágrimas é, talvez, para ela, uma grande tragédia interior. O
pranto dá certo alívio, assim como um vulcão fica mais
tranquilo depois de expelir do seu interior grande quantidade de
lava ígnea...
Depois que minha amiga se refez da sua grande
comoção, cheguei a saber quem era Momuca e qual a grande
tragédia da sua vida. É tão triste essa história que não me animo,
por ora, a contá-la aos leitores deste livro. Talvez que, mais
tarde, num dia de muita nuvem e nenhum cantinho azul no céu,
ou numa noite de ventos uivantes, eu me anime a narrar o drama
dessa infeliz abelha, cuja memória perdura de geração em
geração, na cidade apiária. Creio que nunca aconteceu coisa
mais triste e trágica no mundo das abelhas, desde as eras mais
remotas. É deveras estranho! Essas mesmas abelhas,
indiferentes à morte de centenas de zangões e estoicas em face
da sua própria morte, sentem-se abaladas até ao âmago da sua
natureza pela desgraça de uma rainha ou mãe de tribo. Pois deve
o leitor saber que Momuca era uma jovem rainha, mas que teve
de ser morta por seu próprio povo, porque, apesar de fêmea
perfeita e normal, não estava em condições de perpetuar a
espécie, como é de obrigação de cada mãe. Nunca se chegou a
saber ao certo porque é que ela não podia pôr ovos de que
nascessem operárias, apesar de ter realizado corretamente o seu
voo nupcial, de ter sido corretamente fecundada por uns zangões
também corretos em tudo. Dizem algumas das abelhas mais
sábias que Momuca, ao regressar do seu glorioso voo nupcial e
antes de entrar na colmeia, foi apanhada no ar por um bem-te-vi,
que estava prestes a sepultá-la nas profundezas do estômago,
quando sentiu terrível ferroada na raiz do bico (é que ele
47
apanhara a jovem abelha muito na raiz sensível, e não na ponta
córnea do bico); dizem que, em consequência desta ferroada, o
terrível rapineiro criou juízo e largou a vítima, a qual conseguiu
salvar-se no interior da colmeia. Mas, quando começou a pôr
ovos, como era de seu dever, verificou-se que, em consequência
dos maus tratos sofridos, todos os ovos que ela punha eram ovos
virgens, não fecundados, e destes, como é sabido, só nascem
zangões. Quando as antigas operárias se convenceram da
desgraça, resolveram eliminar a rainha, conforme a ordem da
grande Inteligência, porque não podiam permitir que a nação
toda acabasse em zangões...
Mas, como disse, deixarei para outra ocasião a narração
completa e pormenorizada dessa história trágica, como morreu a
linda Momuca, e como, depois de orfanadas, conseguiram as
abelhas escapar a total extermínio...
Para declinar de tão ingrato assunto e afugentar as
nuvens de tristeza que ensombravam a alma da amiga Sílvia,
pedi que me dissesse mais alguma coisa sobre a vida das
operárias.
— Quantas abelhas campeiras há, por via de regra, em
uma cidade bem constituída? — perguntei, com os ares neutros
de um repórter de imprensa.
— Umas 50.000. Algumas cidades chegam além. Mas
isto depende da fecundidade da mãe, do espaço de que dispõem,
como também da colheita de mel e pólen. Quando o espaço é
pouco, não convém que a mãe ponha muitos ovos. Mesmo
assim, parte do povo resolverá, na próxima primavera, emigrar e
fundar cidade nova. Se ainda assim há falta de espaço, sai novo
enxame, até dois ou três conforme as necessidades. Cada
enxame com a sua rainha.
— Mas, há tantas rainhas para cada ano?
48
— Há tantas quantas forem necessárias para garantir a
prosperidade de cada enxame. Colônia sem mãe é colônia morta.
Nossa mãe sabe dantemão quantas rainhas novas tem de fazer
para os tempos próximos. Uma para cada grupo. E com o
primeiro grupo sai ela mesma. — Sílvia, você está dizendo tanta
coisa nova de uma vez que a minha inteligência de homo
sapiens se engasga e não pode engolir tudo isto ao mesmo
tempo. Diga-me isto, devagar, aos bocadinhos. Antes de tudo,
vossa mãe faz quantas rainhas ela quer?
— Naturalmente.
— Como é que ela faz essas rainhas?
— Ela põe no fundo de uma célula especial, maior que as
outras e com forma de casca de amendoim, um ovo fecundado, e
manda dar-lhe comida régia.
— Quer dizer que esse ovo que ela põe é igual a todos os
outros?
— Não, não é igual aos ovos não fecundados, donde
saem os zangões. É ovo fecundado. Só do ovo fecundado é que
sai fêmea.
— Como é que ela pode pôr ovos fecundados e ovos não
fecundados?
— É segredo dela. Depois do voo nupcial ela se fecunda
a si mesma, quando quer, porque agora é macho e fêmea. O
certo é que ela põe o ovo que quer, e, como precisa de muitas
fêmeas para operárias, e de poucos machos, para a fecundação
da próxima rainha, é claro que põe muitos ovos fecundados e
poucos não fecundados.
— Quer dizer que você, Sílvia, podia ter nascido rainha?
— Nasci rainha, como todas as minhas irmãs. Mas não
cheguei a ser rainha.
— Por que não?
49
— Porque, em pequena, não recebi comida regia. Nem
minhas irmãs receberam. Só aquela que depois saiu rainha de
verdade é que recebeu esse alimento.
— Que mistério é esse de comida régia, capaz de fazer
rainha?
— Comida régia é uma secreção viscosa, branca, meio
ácida, produzida pelas glândulas internas das abelhas novatas. O
ovo que, desde os seis primeiros dias da sua existência, receber
deste manjar misterioso se desenvolverá em fêmea completa. Se
o não receber nesse período, só dará fêmea incompleta incapaz
de ser mãe.
— Mas, afinal de contas, que efeito produz sobre o
organismo essa comida?
— Faz desenvolver os ovários, que, nas outras abelhas,
atrofiam, por falta de alimento adequado. O alimento comum só
desenvolve os órgãos de que necessita a operária para o seu
trabalho específico.
Espantoso, espantoso! Murmurei de mim para mim,
olhando para a minha interlocutora com grande reverência e
terror. Nem parecia ser simples abelha... A meus olhos assumia
aquele serzinho minúsculo forma estranha, proporções
fantásticas... Parecia-me como que a encarnação de uma
divindade que enchesse todas as latitudes e longitudes do
cosmos e residisse em cada célula, em cada átomo, em cada
eléctron do mundo microscópico... Não, aquilo não era uma
abelha, era a própria alma do Universo cristalizada num
pequeno organismo, obediente às ordens dessa inteligentíssima
entidade invisível... Senti-me tomado de grande simpatia por
todas as manifestações da Inteligência Cósmica, fosse qual fosse
a forma ou o feitio da sua manifestação, pedra, planta, inseto,
ave, peixe, animal, homem, anjo — cada um desses seres era um
brado, mais ou menos forte, desse estupendo Algo ou Alguém
50
que se ocultava por detrás dos multiformes fenômenos da Nat—
Admiro as abelhas — disse, enfim, voltando a mim e encarando
Sílvia. — Vocês são um povo de heróis e de heroín— Cada um
está satisfeito com o papel que lhe coube — replicou ela,
impassível. — Nossa mãe vive para crear vida nova — filhos e
filhas. Nossos irmãos vivem e morrem para garantir a existência
de seres femininos — operárias virgens e rainhas mães. Nós
vivemos para alimentar a todos — mãe, irmãos e irmãs.
— Quanto tempo conta viver ainda, Sílvia?
— Não conto viver. Pode ser que viva uma semana. Isto
não me preocupa.
— Não acha triste morrer o indivíduo para que a espécie
possa viver?
— Filosofia infeliz! — suspirou ela, meneando a cabeça
e fazendo lembrar uma professora quase desiludida de fazer seu
aluno compreender o ABC. Depois, voltando-se a mim, disse
com precisão e insistência: — Saiba, ó homo sapiens, que não
morre o indivíduo para que viver possa a espécie. A vida é
imortal. O indivíduo não morre, não perde a sua vida. Ele
continua a viver vida perfeita e individual no oceano imenso da
vida que enche o Universo — assim como a onda, depois de
sumir no seio do mar, continua a ser, nascendo e renascendo, em
perpétua vida e eterna ressurreição...
Fechei os olhos...
E tive a impressão de ouvir cantar o hino da Vida
Universal... A apoteose da Vida Cósmica...
51
ÊXODO RUMO A MUNDOS IGNOTOS
Que é isto?...
A que vem esse enorme zum-zum?
Por que doidejam essas abelhas no ar, com tanto
nervosismo?
Que aconteceu?
Nada aconteceu ainda, mas algo está para acontecer...
Vai haver um grande êxodo apiário, de uma das colmeias
que adquiri ultimamente. Já está superpovoada. Houve ordem de
emigração em massa. Está-se processando a divisão do reino...
— Lá vem ela! Lá vem ela!... — disse uma abelha a meu
lado.
— Ela, quem? — perguntei, cheio de curiosidade.
— A velha rainha da tribo.
— A velha? Mas não é a rainha nova que vai sair?
— Não, quem vai sair é a velha. A nova é que vai herdar
o reino. Assim é de praxe entre nós.
Estava eu ainda meio céptico ante o que via e ouvia,
quando verifiquei a presença da velha soberana, que, desde o
seu voo nupcial, não via a luz do sol, vivendo naquela noite
eterna da colmeia, unicamente ocupada com a propagação da
espécie. Mas pode haver mais voos nupciais sucessivos, se for
necessário, contanto que seja nos primeiros 15 dias de vida.
Esses rápidos amplexos, na luminosa vastidão do espaço, são
suficientes para fazer a rainha mãe de centenas de milhares de
filhos, ou antes, de filhas.
Quando a rainha emigrante deixa as sombras da colmeia
e se vê circundada repentinamente por uma imensa onda de luz,
sente-se, por instantes, como que atordoada. Pousa no alvado da
colmeia para habituar os olhos àquele deslumbramento, e vibra
ligeiramente as asas, a ver se, depois de tão longa inatividade,
52
ainda obedecem aos músculos do tronco de quitina escura.
Funcionam com perfeição, embora não seja mais aquela
vibração espontânea e dinâmica do dia das suas núpcias, quando
se arremessava, triunfante, a centenas de metros de altura, a
ponto de perder quase de vista o delirante bando de seus loucos
amantes. Os graves deveres da maternidade lhe modificavam o
organismo e os hábitos. A sua prole monta a centenas de
milhares de indivíduos, muitos dos quais, naturalmente, já
morreram, uma vez que a operária tem apenas cinco ou seis
semanas de vida.
Depois de alguns ensaios prévios, convenceu-se de que
aquelas asas, apesar de um tanto emperradas pela longa inércia,
estavam em condições de lhe transportar o pesado corpo até
certa distância. Desferiu voo, e foi pousar em um dos ramos
mais baixos dum pé de mangueira. Imediatamente, milhares de
súditos fiéis, decididos a emigrar com a soberana, se
aglomeraram em torno dela, ao ponto de a fazerem desaparecer
totalmente no interior de um enorme cacho escuro a fervilhar de
corpos e asas.
E lá se deixaram elas ficar, horas e horas a fio,
aparentemente inativas, mas realizando importante trabalho de
reconhecimento.
Poucas horas antes desse êxodo, havia nascido a nova
princesa herdeira. Enorme foi a agitação que cercou o berço da
recém-nascida. Todas sabiam que naquele serzinho vacilante
estava o futuro da nação. Era chegado o momento crítico e
angustiante em que duas fêmeas completas e perfeitas se
encontrariam dentro da mesma cidade, no meio de um povo
rigorosamente monocrático — e duas fêmeas completas, quer
dizer duas rainhas — situação insustentável por muito tempo. O
aparecimento de uma nova princesa real na colmeia equivale
sempre a uma espécie de "estado de sítio", que, em breve,
53
acabaria em guerra declarada e morte de uma das fêmeas. Por
via de regra, porém, prevalece o instinto de ordem e harmonia
sobre os impulsos momentâneos de violência anarquizante: a
rainha-mãe emigra antes do advento da rainha-filha.
Sentimentos estranhos e desencontrados digladiavam-se
na alma da velha soberana, quando se dispunha a abandonar a
cidade e entregar tudo a sua filha. Aquele reino tão bem
organizado, os ricos favos de mel, os depósitos de pólen e de
mel, e, acima de tudo, aqueles milhares e milhares de delicados
nenezinhos, a dormirem ainda tranquilamente nos berçários de
cera — tudo isto teria de ser abandonado de um momento a
outro... E a rainha emigrante se lança a um futuro incerto,
obscuro, talvez hostil, recomeçando sem nada, sabe Deus onde e
em que circunstâncias!... Troca uma opulenta e bem provida
cidade pela dolorosa desnudez de algum tronco oco, pela
estreiteza incômoda de alguma fenda de rochedo ou por algum
imundo cupinzeiro vazio... Não leva do seu grande reino uma só
gotinha de mel nem um pedacinho de cera... A içá, rainha da
formiga saúva, quando sai em busca de um novo lar, leva pelo
menos, da cidade abandonada, um bocado de fungo, que planta
no fundo da sua galeria subterrânea para reiniciar a costumada
fungicultura; mas a emigrante das abelhas, além de não ser
jovem como a recém-casada saúva, não pode levar coisa alguma
do seu querido reino. Tem de confiar, cega e
incondicionalmente, na providência da Natureza.
Entretanto, todas sabem que assim é que deve ser — e
estão dispostas a arrostar corajosamente as dores e incertezas do
futuro...
***
Enquanto o negrejante cacho vivo está pendurado no
ramo da mangueira, é intenso e contínuo o vaivém das
escoteiras do enxame migratório. Todas as regiões
54
circunvizinhas, a quilômetros de distância, são rapidamente
esquadrinhadas. Nenhuma cavidade de tronco ou rocha, nenhum
cupinzeiro vazio deixa de ser devidamente inspecionado, a ver
se serve para nela instalar uma cidade celular.
De tempos a tempos, regressa um grupo de batedoras
com a notícia de ter descoberto um local nestas e naquelas
condições, tamanho tal, localizado em tal ou tal ponto, olhando
para o leste ou oeste, sul ou norte. Imediatamente, uma divisão
de engenheiros peritos, especializados em assuntos urbanísticos,
ergue voo e vai inspecionar o local descoberto, mas não toma
resolução definitiva enquanto não voltem todos os grupos de
bandeirantes e deem parte do que descobriram; pois é possível
que outros tenham encontrado coisa melhor, cavidade mais
ampla e em posição mais vantajosa. Só o melhor é que é
bastante bom.
Por fim, cotejando o conjunto das informações colhidas
de todos os lados, ponderados os prós e os contras, resolve o
conselho dos engenheiros arquitetos e demais peritos, optar por
um dos diversos locais descobertos. E logo, na mais perfeita
harmonia, lá se vai o enxame pelos ares, rumo à nova residência.
Nenhum protesto. Ninguém procura fazer prevalecer o seu
achado como sendo o melhor.
Isto, no caso que o apicultor não tome providências para
oferecer aos emigrantes uma caixa em que se possam instalar,
providência que não ocorreu no caso presente.
Encontraram uma velha peroba oca. O material era do
melhor. Não havia perigo de apodrecimento. As paredes eram
duma resistência férrea, de fibras arrevesadas e duríssimas,
como costumam ser as dessa árvore. O interior, é verdade, tinha
os seus inconvenientes; estava cheio de gravetos e de uma
espécie de farelo; parece que uns ratos, ou mesmo gambás, em
eras remotas, haviam escolhido esse local para suas
55
maternidades, a não ser que um casal de pica-paus o estivesse
usando como dormitório. Mas esses inconvenientes tinham
remédio, e os ex-locatários dessa ampla cavidade não deixariam
de respeitar os novos inquilinos poderosamente armados. De
momento, não havia ser algum que reclamasse esse abrigo como
sendo dele.
Assim que as abelhas chegaram, puseram-se a fazer uma
limpeza radical da cavidade; pois é sabido que elas são
intransigentes em matéria de asseio e higiene. O farelo foi
levado para fora, grão a grão. Os gravetos e outros corpos
pesados que não podiam ser reduzidos a detritos portáteis, foram
devidamente cobertos com uma camada de resina impermeável,
isolando-os hermeticamente do resto da casa e oferecendo,
assim, aspecto mais convidativo. A entrada era grande demais, e
foi logo reduzida a um vigésimo da abertura natural, por meio
de grande quantidade de resina escura e resistente, até formar
um orifício do tamanho desejado. As abelhas sabem
perfeitamente que não convém ter entrada grande, que
dificultaria uma defesa eficiente, além de deixar entrar, por
vezes, um frio excessivo dificultando a formação da cera e
matando as larvas.
Além disto, era necessário construir sobre a entrada um
ligeiro alpendre a fim de impedir a entrada das águas pluviais,
tanto mais que a abertura estava voltada para o lado das chuvas
mais fortes.
Mais alguns dias, e já vinham descendo do teto da nova
residência os alvos estalactites dos lindos favos, e a rainha pôde
começar a sua sagrada tarefa de encher de minúsculos ovinhos
os alvéolos de incubação.
Mais três semanas, e saiu dos berços a primeira geração
de operárias, engrossando as fileiras de suas irmãs veteranas,
56
muitas das quais já tinham morrido em alguma solidão da
floresta ou do campo.
Por vezes, nas suas constantes idas e vindas, algumas das
abelhas da casa da perobeira, se encontravam com suas antigas
companheiras de colmeia; mas não havia vestígio de saudades
ou sentimentalismos entre elas. Cada uma tinha a sua cidade, o
seu centro de interesses, a sua grande tarefa a cumprir, nas
poucas semanas de vida. Cada uma sente-se perfeitamente "em
casa", lá onde a chama a grande lei da vida e do trabalho. Por
isto, cada abelha é feliz no seu ambiente.
E se, daqui a um ano, aparecer nova princesa herdeira, a
velha rainha lhe entregará mais uma vez todas as riquezas da
nova cidade tão laboriosamente adquiridas, e mais uma vez sairá
pelo mundo afora, em demanda de um novo deserto que
transforme em florescente paraíso de prosperidade...
Para a vigorosa juventude, sempre o melhor...
Para a fatigada velhice, o pior...
Tal é a filosofia desse enigmático Estado Cosmocrático.
Porque, onde há uma grande missão a cumprir, lá não há
decrepitude senil — sorri indefectível juventude...
57
VOO NUPCIAL. AMOR MORTÍFERO
58
nupcial da jovem rainha, provavelmente não existiria em nossos
dias a apis mellifera. O sono temporário do instinto sexual é
essencial para a garantia de uma nação vigorosa e próspera,
como vi mais tarde pelas sábias palavras de minha amiga Isis.
A colmeia nunca vê tálamo nupcial. É um santuário
virgem, dedicado exclusivamente à alegria do trabalho e às
delícias da maternidade, recinto vedado aos amplexos de Eros e
Psyché. O cenário dos amores das abelhas é a imensidade do
espaço banhado de luz. E, como a abelha ocupa elevado lugar na
escala biológica, não estranha que seus romances não sejam
idílios de suavidade lírica, e, sim, dramas de intensa tragicidade
e lances mortíferos, como sucede quase sempre nas esferas da
vida superior. Quanto mais vasta é a polaridade dos seres tanto
mais violento e apaixonado é o encontro dos sexos, porque esse
encontro é uma espécie de momentânea extinção da consciência
individual, uma fusão cósmica do Eu e do Tu, que parece
despolarizar ou despersonalizar os dois elementos que se
encontram. O orgasmo sexual é um mergulho momentâneo no
mar imenso da vida cósmica.
Há insetos cujos machos morrem depois do primeiro e
único amplexo sexual. Outros, como certas aranhas, são mortos
pelas fêmeas. O louva-deus, além de morto, é devorado pela
companheira fecundada. No mundo das efemérides, morre não
somente o macho, mas também a fêmea, logo após o conúbio.
Na abelha, porém, o caso é mais trágico; o macho não somente
morre logo depois da união, mas este mesmo ato lhe causa
morte instantânea. O esposo apiário é obrigado a suicidar-se
para poder transmitir à esposa a vida potencial que leva dentro
de si. A transmissão dessa vida é para ele morte imediata. O
amor do zangão é um amor mortífero.
Mas essa morte do indivíduo vale a pena, pois equivale a
milhares de vidas novas.
59
Sendo que o macho, no momento da união, arranca de si,
mediante uma explosão, e transplanta para dentro do organismo
feminino o seu aparelho genital, torna-se a abelha fecundada
uma hermafrodita, que, daí por diante, através de anos inteiros,
pode fecundar-se a si mesma com os elementos espermáticos
que recebeu do heróico amante. De simples fêmea que subiu,
desce das alturas fêmea-macho. Subiu virgem, e desce viúva, e
toda a sua prole nascerá órfã de pai. Toda vez que quer pôr um
ovo de que nasça abelha feminina, ela faz passá-lo pelo
reservatório de esperma, isto é, fecunda-o com os seus
elementos masculinos; e deixa de o fecundar quando quer pôr
um ovo de que saia um zangão. Sendo que a nação necessita de
milhares de operárias (abelhas femininas), e apenas de poucos
zangãos, por via de regra se serve a abelha-mãe, nas suas
posturas, dos germes que o esposo, ou os esposos, lhe legaram
no momento do seu audacioso suicídio de amor'*'.
-------------
(*) Por muito tempo ignoravam os apicultores o
verdadeiro processo pelo qual a abelha-mãe regulava a postura
de ovos fecundados e não-fecundados. Sabe-se hoje em dia que
essa diferença vem simplesmente da maior ou menor pressão
que as bordas superiores da célula exercem sobre o abdômen da
rainha, no momento da postura. Sendo que as células das quais
vão sair as futuras operárias, fêmeas todas elas, são mais
estreitas que as que se destinam aos machos, e como o
minúsculo ovinho é sempre colado no fundo do alvéolo,
exercem as bordas da célula menor pressão mais forte sobre o
abdômen da rainha que as das células maiores, obrigando o
ovinho em caminho do oviduto para a célula a passar pela
espermoteca, isto é, o permanente reservatório de
espermatozoides que a rainha recebeu do seu heróico amante-
suicida, nas luminosas alturas do espaço. Desse ovo fecundado
60
nasce necessariamente uma abelha fêmea, porque, segundo leis
eternas, a abelha virgem só pode reproduzir o sexo contrário
(partenogêneses, parto virginal), ao passo que, para reproduzir
seu próprio sexo, necessita do macho. Assim o exige a grande
lei da polaridade.
Quando, pois, o ovinho é introduzido numa das células
maiores, passa em linha reta do ovário através do oviduto para o
fundo do alvéolo de cera, sem ser atingido pelo depósito de
espermatozoides masculinos, e deste ovo sairá uma abelha
macho, ou zangão. Do processo contrário nascerá uma abelha
fêmea.
Para que a rainha produza o número exato de ovos
virgens de que o Estado Cosmocrático necessita, existe um
grupo de obreiras, ou damas da corte, especialistas em assunto
de maternidade e peritas do equilíbrio orgânico e das
necessidades da tribo; mostram à rainha, uma por uma, as
células em que ela deve pôr os ovos. O número das obreiras é
indefinido; quanto maior, melhor, obedecendo, naturalmente, ao
espaço disponível na cidade celular. Todavia, um número
excessivo de machos seria uma desgraça para a nação, uma vez
que estes consomem muito e não produzem nada, nem uma
gotinha de mel nem um átomo de cera. Basta que haja um
número regular de zangãos para que, no dia memorável do voo
nupcial da nova rainha, haja a competição necessária.
Uma boa rainha chega a pôr 2.000 a 3.000 ovos
fecundados por dia, nos áureos tempos da primavera e do verão.
É sabido que o hermafroditismo por nascença, que persiste em
alguns seres primitivos, acusa graves inconvenientes biológicos,
devido à falta de polaridade e heterogeneidade dos elementos
genésicos. A abelha não nasce hermafrodita, mas faz-se
hermafrodita pelo casamento, evitando assim as desvantagens
daquele sistema primitivo, e salvando as vantagens que ela
61
descobre no matriarcado ou num Estado Cosmocrático
constituído apenas de seres femininos. Pois a colmeia, embora
possa, por certas razões, ser chamada monarquia, é, na realidade
e pelos métodos de trabalho e consumo, um legítimo Estado
Socialista sui generis, ou antes, Cosmocrático.
É a mais perfeita Cosmocracia.
Entretanto, em vez de filosofar, vamos assistir ao
fantástico voo nupcial da gentil princesa.
Era quase pelo fim da manhã, uma gloriosa manhã
primaveril. Acabavam de evaporar as últimas gotas do orvalho
noturno, mas ainda os raios solares não haviam atingido o
máximo da sua intensidade. Pelo arvoredo circunvizinho
cantava, zumbia e chiava um mundo de seres felizes. As flores
do meu jardim estavam todas imóveis, em atitude solene, com
os cálices muito abertos, semelhando outras tantas almas em
êxtases, a sorverem o inebriante mistério que lhes vinha da
longínqua divindade solar...
Nesse sugestivo momento, resolveu a formosa princesa
apiária abandonar a escuridão da cidade celular e realizar a
grande epopeia da sua vida. Saiu, e pousou uns instantes na
soleira da porta, no meio de um bando de zangões, ainda
incônscios da sua natureza masculina.
Neste momento, a rainha virgem emite o seu misterioso
"odor nupcial", invisível eflúvio afrodisíaco que enche o espaço
até alguns quilômetros de distância. E todos os machos apiários,
dentro desta área, sabem que há uma rainha para ser fecundada,
e em todos desperta subitamente a consciência dormente da sua
virilidade, e voam em procura da virgem em voo nupcial.
Foi a mais estranha maratona de resistência e velocidade,
o mais fantástico certame aéreo a que já assisti em dias de minha
vida...
62
Quanto mais se alteava a linda fugitiva, tanto mais
freneticamente vibravam as asas dos seus loucos amantes em
desenfreada arremetida. O prêmio do certame era, para eles, de
infinito valor, e uns poucos só seriam os felizardos. Uns poucos,
os mais poderosos, é que teriam o prêmio e a glória, não só de
abraçar aquele corpo lindíssimo, mas também o de serem pais
de uma nação inteira, e ascendentes de centenas de milhares,
quiçá de milhões de abelhas, através dos séculos vindouros...
Que importava aos felizardos morrerem no momento de realizar
o seu sonho de amor, se vidas sem conta nasceriam dessa
morte?...
Depois de alguns momentos de vertiginoso voo,
desanima a maior parte dos zangões; muitos, apesar dos seus
esforços, voltam à terra; alguns caem exaustos e quase sem
acordo. Também, como voar tão alto se nem tinham voado,
apesar da robustez das suas asas? Estavam muito bem nutridos,
todos eles, robustos e corpulentos do mel e pólen que haviam
comido em grande abundância; mas, que adiantava toda a
robustez sem exercício? 100 a 200 metros eram, para a maior
parte deles, uma altura estratosférica... A princesa, porém, voava
com extraordinária rapidez e facilidade..,
Havia, contudo, certo número de zangões dotados de
grande resistência e que pareciam não conhecer fadiga. De
segundo a segundo diminuía a distância que separava esses
arrojados aeronautas apiários da fulgurante virgem dos seus
amorés, que parecia não querer saber deles. De vez em quando,
mais um, mais dois desses valentes voadores desistiam da
perseguição e vinham caindo, caindo, como planadores
avariados, às baixadas da terra...
Por fim, apenas meia dúzia de machos sustentava ainda a
desenfreada carreira... Estava chegando o termo final da
dramática maratona... De repente, do meio desse pequeno grupo
63
de heróis, dissociavam-se uns poucos, que reunindo todas as
suas energias e compelindo as asas ao máximo da sua
capacidade vibratória, tomam a dianteira aos competidores, e, de
um jacto, apoderam-se da cobiçada amante... Um rápido
amplexo — uma momentânea confusão de corpos e asas — e
está tudo terminado... E já vem os corpos dos heróicos
vencedores redemoinhando à terra, inertes, no verde relvado que
circundava a cidade celular...
Também a rainha vem descendo, devagar, em grandes
espirais, de posse do troféu da sua completa maternidade...
Se o julgar necessário para o futuro da tribo, a rainha
empreenderá, neste ou nos próximos dias, mais alguns voos
nupciais, nas mesmas condições.
Consumou-se, nesse dia, a grande aventura amorosa da
jovem princesa, felizmente sem acidentes fatais, como
acontecera naquele que vitimou a saudosa Momuca, provocando
a maior tragédia biológica de que há memória nos fastos da
Apiolândia. A morte dos zangões vencedores não é considerada
acidente nem catástrofe. Têm de morrer necessariamente,
porque arrancaram do seu interior, no momento da união, o
órgão fecundante, com parte das vísceras. Também, para que
viver mais tempo? Tinham de morrer em consequência do grave
ferimento — mas continuariam a viver dentro do corpo da feliz
esposa. Possivelmente, o humano sentimentalismo não concorda
com essa "crueldade", mas o heróico suicida do amor morre
satisfeito e feliz, e, se alguém lhe perguntasse se experimentava
tristeza ou dor, nem teria atinado com o sentido de semelhante
pergunta, pois não morria propriamente, mas continuava a viver
vida multiplicada ao infinito, em perpétua ressurreição e perene
juventude...
Esse voo é necessário para que conste quem do meio
daquele bando de machos é o mais forte e possua maior soma de
64
qualidades vitais, a fim de garantir a seus descendentes o
máximo de vitalidade.
A jovem esposa apiária guarda dentro de uma bolsa
especial (espermateca) localizada à entrada do oviduto, os
preciosos germes vitais, muitos, milhões, utilizando-se deles à
medida que for pondo ovos para abelhas femininas.
Chegada à cidade, sua cidade, desapareceu na escuridão
da mesma. Daí só sairá na próxima primavera, não já para um
voo nupcial, mas para algum deserto, a fim de fundar novo reino
na desnuda cavidade de algum tronco distante...
Esperava eu presenciar grandes festejos na cidade apiária
que celebrassem o feliz acontecimento. Nada disto, porém,
aconteceu. A nova rainha foi recebida por um grupo de suas
damas de honor, que a conduziram diretamente aos favos de
incubação, fazendo-lhe compreender que, daí por diante, o seu
único ofício era pôr ovos. Daí a dois dias pôs a nova rainha o
seu primeiro ovo. Para isto lhe mostraram as aias o centro
geométrico de um favo novo, porque é no centro do favo que a
rainha começa a postura dos ovos, alargando depois o círculo,
em espiral, até atingir as bordas do berçário. Os quatro ângulos
ficam, geralmente desocupados, e servirão como depósitos de
mel e pólen para os futuros nenezinhos. Sempre é de vantagem
ter a copa perto do berço...
***
A vida da abelha é um misto de poesia e de prosaísmo...
Àquele delírio de prazer segue-se logo uma tediosa rotina de
dever. Pela manhã, uma estupenda apoteose de luzes em
ilimitados espaços — e logo à tarde a escuridão e estreiteza de
uma colmeia. Há pouco, cortejada por centenas de jovens
amantes em delírios de paixão — e agora, e por longos anos, a
monotonia de uma maternidade, onde um grupo de aias e
mestras forma sua companhia única. Essas damas apiárias
65
mostram à rainha, uma por uma, as células em que ela tem de
pôr ovos, e a soberana obedece documente as ordens de suas
irmãs e filhas...
***
Apenas havia a rainha entrado na cidade celular, quando
alguns zangões reapareceram à entrada da mesma. Mas foi-lhes
barrado o ingresso pelas operárias; e, como os machos não
possuem ferrão, não se puderam defender contra suas belicosas
irmãs. A sentinela de plantão teve ordem de matar todo o zangão
que tentasse romper o bloqueio. Assim, os que não acabaram a
ferroadas, morreram de fome, porque não sabem cuidar de si
mesmos nem buscar uma gotinha de néctar.
Tão radical mudança produziu na vida suave e fácil dos
zangões o voo nupcial da nova rainha...
É esta a lei da grande Inteligência...
Viva quem tem uma missão a cumprir!
Morra quem nada mais tem que fazer!
66
ENCONTRO COM UM PARENTE ANTIPÁTICO
— Que vergonha!
— Que escândalo!
— Que desaforo!
— E, ainda por cima, esses selvagens são parentes
nossos...
— Parentes nossos?
— É o que eles dizem. E os homens também o dizem.
— Onde é que se viu abelha sem asas?
— Eles também têm asas, de vez em quando.
— Sei, sei. Criam asas, mas é só para o dia do
casamento. Para o trabalho essa gente não precisa de asas.
— Aí está! Acham que o prazer é mais importante que o
trabalho. Asas para o prazer — e pernas para o trabalho! Pode-
se lá conceber atestado mais vergonhoso para o caráter desse
povo?...
***
— Com licença — disse eu, aproximando-me das três
abelhas empenhadas em acalorada discussão. — Que aconteceu?
Entreolharam-se elas com ares de quem não entende o
que se lhes diz. Não havia nesse grupo nenhuma das minhas
conhecidas. Por fim, disse uma delas, enquanto vibrava
nervosamente as asas e agitava as minúsculas antenas:
— O que aconteceu? Você não vê essa selvageria aí?
Isto dizendo, a abelha apontava com as antenas para um
rosal, do outro lado da cerca do meu terreno, onde se viam os
esqueletos de umas dezenas de roseiras horrivelmente mutiladas,
sem uma folha, sem uma flor, e até sem os raminhos mais novos
do último ano. O solo estava coberto de folhas e pétalas
espedaçadas. Parecia ter andado por lá, durante a noite, um
alicate de marceneiro, picando todas as folhas e pétalas...
67
— Quem fez isto? — perguntei, indignado.
— As malditas, naturalmente.
— Que malditas?
— Ora, as formigas. Só elas são capazes de tamanha
maldade.
— Onde estão elas? Não vejo nenhuma...
— Não trabalham de dia — e sabem bem por quê... Há
por aí tanto passarinho louco por petisco de formiga... Mas de
noite não há que temer — e lá se vão elas, essas salteadoras
covardes. Derribaram tudo, mas não puderam carregar toda a
presa; o sol as surpreendeu. Na noite próxima continuarão a sua
selvageria...
— Não compreendo porque as formigas invadem as
plantações dos homens, quando lá fora há enormes matarias
cheias de folhas.
— Elas é que sabem por quê. O que o homem planta é
novo, suculento, gostoso. Roseira é para elas iguaria de festa.
— Elas comem essas folhas?
— Não, essas folhas só servem para adubar o terreno da
horta de fungos.
— Horta de fungos?
— Sim, a formiga saúva é fungicultora, como dizem os
homens. Abre vastas cavidades no fundo da terra, uma ao lado
ou por cima da outra, comunicadas entre si por galerias. As
folhas que as carregadeiras cortam das árvores e levam para o
interior das "panelas", são trituradas depois pelas formigas
domésticas e reduzidas a farinha. Esta massa farinhenta é
espalhada pelo chão e disposta em pequenos flocos por dentro
das cavidades úmidas, e não tarda a criar bolor, que são
pequenos fungos ou cogumelos. Na ponta de cada cogumelo
brota um micélio, e é esta bolinha gostosa que as formigas
comem e dão de comer aos filhotes. Está vendo esse olheiro?
68
A inteligente abelha apontou com as antenas para um
buraco de dois dedos aberto no solo, não longe de uma das
roseiras e semicoberto pelas folhas cortadas. Era a saída de uma
das galerias subterrâneas que comunicava com a sede central do
formigueiro. A sede é sempre colocada em lugar mais elevado,
para que, no tempo das chuvas, a umidade não arruíne a cidade e
os berçários da futura geração.
— É verdade que as formigas são parentas das abelhas?
— perguntei.
— Infelizmente — murmurou uma das três sem olhar
para mim. — Infelizmente. Parece que, em tempos remotos, elas
tinham asas como nós, ao menos algumas tribos. Mais tarde
verificaram que as asas eram um estorvo para o trabalho, e
resolveram descartar-se delas. Também seria difícil voar com a
carga que elas costumam levar, não raro o peso do próprio
corpo.
Ainda bem que não voam — disse eu de mim para mim.
— Senão, o Brasil estaria perdido de vez. Já é grande o estrago
que causam, assim mesmo sem asas. Que seria se fossem
aladas? Não há defesa contra exércitos aéreos...
***
69
noturnas; pois a essa hora já se ouve cantar muito passarinho de
estômago vazio...
— De mais a mais — acrescentou uma das abelhas — a
sua presença aqui, a estas horas é ilegal. Você é uma saúva
noturna, como todos sabem e não tem o direito de estar aqui
durante o dia. Isto é contrabando! Já é por demais a selvageria
que vocês cometem de noite — e você ainda pretende fazer
pilhagens de dia?
— O dia é de todos! — replicou a de baixo com uma
risada cínica, tão cínica como nunca ouvi igual em dias de
minha vida, e isto da parte de um inseto que eu supunha dos
mais honestos do mundo, não obstante o seu espírito destruidor.
Estávamos todos em uma grande expectativa, quando a
formiga, rangendo minazmente as duas foices ruivas das suas
mandíbulas presas numa cabeça monstruosa, prosseguiu num
tom de voz cortante que nem fio de navalha:
— É verdade, destruímos as plantas porque precisamos
de folhas suculentas para as nossas hortas de cogumelos. Nossas
rainhas e irmãzinhas não vivem de terra, comem frutinha de
cogumelo, que é gostoso. Mas somos honestas e sinceras. Não
ocultamos a ninguém a destruição que fazemos. O homem, pior
que nós, procura matar-nos com toda a espécie de drogas
fedorentas e malditas, líquidos e gases que envenenam a vida da
gente; quando descobre a nossa cidade, mata até os nossos
nenezinhos, ninfas, ovos e tudo. Nós, porém, nunca matamos
homem algum; temos coração bom e generoso. Destruímos
abertamente o que temos de destruir — ao passo que vocês,
abelhas, tidas por fenômenos de virtuosidade, exploram
diariamente todas as flores do mundo, roubando-lhes néctar e
pólen. Nós formigas, temos de apoderar-nos do alheio — até o
homem faz isto, como ainda ontem me disse a galinha carijó,
que nunca pôde chocar um só ovo dos muitos que pôs e que o
70
homem lhe roubou — mas nós, formigas, confessamos os
nossos atos, e vocês, abelhas, escamoteiam todo o mal que
fazem, querendo passar por gente de bem...
— Que ignorância!
— Que estupidez!
— Que sem-vergonhismo!
Assim bradaram, uma após outra, as três abelhas,
vibrando furiosamente as asas transparentes e brandindo
ameaçadoramente o venenoso ferrão. Nenhuma, contudo, teve a
coragem de atacar a saúva, porque sabiam que ela estava
revestida de uma couraça impenetrável e tinha a bocarra armada
de um par de foices que, num instante, partiriam ao meio o
corpo de qualquer abelha. Finalmente, uma das três, que passava
por ser a mais sensata do grupo, prosseguiu:
—— Senhorita Saúva, se me faz favor. Só as nossas içás
e rainhas é que são senhoras.
— Será possível, senhorita Saúva, que vocês, formigas,
que até são parentes nossas, ignorem até ao presente dia os
grandes benefícios que as abelhas prestam às flores?
— Nunca ouvi de semelhante benefício. Será que as
flores se sentem muito honradas por suportarem o vosso
gracioso corpo?...
— Você sabe o que é pólen?
— Sei. É uma poeira branca ou amarela parecida com a
que nós extraímos da terra quando abrimos os nossos túneis.
— Deus do céu, que ignorância! — exclamaram as
abelhas em coro. Depois, uma delas disse baixinho à sua
companheira: Também que podia saber uma toupeira dessas que
raras vezes vê a luz do sol?...
— Que estão dizendo? — perguntou a formiga, insolente
— Têm alguma explicação a dar? Qual o benefício que vocês
prestam às flores?
71
— Que explicação se pode dar a uma creatura que
confunde o pólen das flores com o pó da terra? Fique sabendo
que o barro que vocês tiram dos seus túneis é matéria morta, ao
passo que o pólen é coisa viva...
— Viva? Viva? Não me consta...
— É viva, sim, mas dorme. Nós fazemos com que o
pólen dormente desperte para completa vigília. O pólen desperta
quando entra em contato com outro germe, também dormente,
que é um ovinho no centro da flor. Se os germes do pólen não
atingirem o ovinho, ambos continuam a dormir. E, de tanto
dormir, acabam morrendo. Mas, quando um encontra o outro,
ambos acordam do sono, e logo se abraçam cheios de amor e
alegria — e então começa a nova planta dentro da semente que
os dois germes acordados produziram.
— Sei disto. Nós, lá dentro da nossa cidade de cúpulas e
galerias, estudamos muito. Içá Tanajura sabe tudo isto. Disse
que é o vento que transfere o pólen das flores para o estigma, no
fundo do qual está o ovinho. Isto é, quando as saúvas dão
licença...
— Mas deve você saber que são bem poucas as plantas
que se contentam com os bons serviços do vento. A maior parte
precisa do nosso auxílio. Senão morre sem semente, sem filhos.
Pergunte ao lavrador, ele é que sabe...
— Você quer fazer-me crer que as abelhas têm negócio
de companhia com as plantas?
— Temos, sim. Nós, as abelhas, prestamos às flores das
plantas um serviço vital, unindo os seus grãozinhos dormentes e
despertando-os, assim, do sono. Elas, por sua vez, nos dão o
néctar e uma parte do pólen, que é alimento para nossos filhos.
E assim cada um tem o que quer.
— Folgo de saber — observou a formiga com um sorriso
amarelo na cara vermelha — que vocês são tão esplêndidas
72
casamenteiras. Meus parabéns! Entretanto, nada fazem de graça.
Fazem-se muito bem pagas por seus serviços. Ouvi dizer que as
plantas criaram flores com néctar, só para lhes pagarem a
colaboração, porque de graça vocês não fazem nada, nada...
— Já se vê que vocês não têm ideia da ordem da
Natureza. Também, que conhecimentos podia possuir quem vive
no fundo da terra, e só sai de noite, para destruir tudo o que
outros construíram? A saúva ouviu essa tremenda catilinária, e
não replicou, limitando-se a sorrir com um sorriso ainda mais
amarelo do que a princípio e escancarando uma bocarra que
pareciam sete. Prosseguiu a abelha conferencista:
— Fique, pois, sabendo que a Natureza toda é uma
sociedade de irmãos e irmãs. Ninguém pode viver e prosperar
sem os outros. A colaboração recíproca é necessária. Cada um
tem de ajudar os outros. Até o melhor e mais sábio dos homens
que viveu sobre a face da terra disse isto, que cada um deve
amar seu semelhante como a si mesmo. É o que nós fazemos.
— Muito bem, apoiado! — exclamou a saúva. Depois,
olhando de esguelha para as abelhas, armou uma carranca tão
hedionda que as três de cima tiveram a impressão de não
somente ver, mas até ouvir e sentir essa hediondez da formiga
rapineira. Uma das abelhas quase desmaiou ao presenciar
tamanha fealdade. Outra murmurou baixinho: "E ela é nossa
parente”...
Houve um silêncio inquietante. Ninguém sabia bem o
que pensar e dizer.
Finalmente, observou a saúva, com diabólico cinismo:
— Já que somos todos irmãos e irmãs, faço constar ao
sapientíssimo povo das abelhas, melíferas e altruístas, o
seguinte: nós, as saúvas, não somos lambiscadores de gulodices,
como as crianças; somos uma raça vigorosa e nos alimentamos
de fungos autofabricados.
73
— De fungos, ou de folhas? — interveio a abelha.
— De fungos, de verdadeiros fungos autofabricados! —
berrou a saúva. — Reduzimos as folhas a farelo, em nossas
panelas, também autofabricadas, e do farelo saem os fungos.
Ora, uma vez que não gostamos de mel, mas sentimos a
fraternidade de todos os seres do Universo, resolvi convidar
nossas parentas negras, as formigas sara-sara, grandes amigas de
mel, para invadirem a vossa cidade, na próxima noite, logo após
a visita da lua. Dizem que coisa roubada é mais gostosa, e,
quando roubada duas vezes, como o vosso mel — por vós e por
nós — deve ser gostosíssimo...
— Que cinismo!
— Que insolência!
— Que sem-vergonhismo!
Assim bradaram todas a uma voz. De repente disse uma
das três, com ares de coragem e desafio:
— Estão todas convidadas. As invasoras que não
morrerem afogadas na água que rodeia a nossa cidade, terão um
banquete de vinte mil ferroadas!
— Até à noite! — bradou uma.
— Bom apetite! — gargalhou outra.
— Adeus à sua vida! — gritou a terceira.
............................................................................................
74
— Bela fraternidade, essa!... Há, há, há!... Magnífico
altruísmo, esse!... Há, há, há!... 52
75
ELIXIR DE VIDA E JUVENTUDE
76
absurda. A geleia real atua sobre um corpo de inseto, e não de
um mamífero. Pouco a pouco, cheguei a concluir das palavras
misteriosas de Isis que a vitalidade dessa substância não está nos
90% e tanto dos componentes que a nossa ciência pode analisar,
mas precisamente na parte inanalisável, que deve ser a alma do
Universo que se manifesta pelo corpo analisável.
— Há depósito de geleia real na colmeia? — perguntei.
— Nenhum. Esse elixir de vida vem da grande
Inteligência e passa por umas glândulas que as abelhas jovens
têm na faringe; daí vai diretamente para a boca da rainha, ou
para os ovos e as larvas novas nos berços.
— Estou vendo, Isis, que o comércio que nós fazemos da
geleia real é uma fraude, porque é de uma substância sem alma
viva.
— A nossa geleia vem da vida e vai para a vida. O que
os homens comem são apenas os veículos materiais da vida
imaterial.
— A vida seria radioatividade?
— A vida não tem nome. O que se pode dizer ou pensar
não é a vida. A vida só pode ser vivida.
Despedi-me de Isis e, enquanto voltava para casa
continuei mais cosmopensado do que egopensante. Tive a
impressão de que a alma do próprio Universo pensava e vivia
através de mim. E tive ao mesmo tempo a estranha intuição de
que a alma do Universo não pode ser pensada nem falada, mas
só deve ser calada e vivida em profundo silêncio, para não ser
adulterada e profanizada. O que se pode pensar está falsificado;
e o que se pode dizer, além de pensar, está duplamente
falsificado. Verdadeiro e genuíno é só aquilo que não se pode
pensar nem dizer, mas intuir e sentir silenciosamente. Só a voz
do Silêncio nos revela a verdade sobre o Universo.
77
Por fim, a voz do Silêncio me segredou à alma que
também para o homem há um elixir de vida e juventude, que ele
pode sugar da alma do Universo; é de outra natureza que essa
vitalidade recebida pelas abelhas jovens. Tentei dar um nome a
esse elixir vital, mas desisti da tentativa, porque já sabia que
pensar é falsificar.
Por isto, saboreei em profundo silêncio o meu delicioso
segredo anônimo...
Elixir de vida e juventude...
78
O QUE ZUMBECA DISSE A ISIS
79
— Da África, não é? Mas aqui estamos no Brasil...
—E aqui os homens não são monstros, como os de lá?
— Não me consta.
— Os meus antepassados me contaram que os homens
roubam o nosso mel e o nosso pólen, matam as nossas filhas,
mesmo no berço, e arrasam a nossa casa; e temos de reconstruir
tudo de novo. Por isto, nós caímos em enxames sobre os homens
para matá-los.
Houve um longo silêncio. Pela primeira vez,
compreendeu Isis o motivo da ferocidade das abelhas africanas e
africanizadas, de que ouvira falar. Elas não eram ferozes por
natureza — tanto assim que eram da mesma raça das abelhas da
Europa e da Ásia. Os homens, através de milhares de anos de
ferocidade, as haviam tornado ferozes. Na Europa e outros
países, os apicultores eram amigos das abelhas, faziam para elas
casas agradáveis, até mobiliadas e, quando escasseava o néctar
das flores, os homens forneciam-lhes xarope de açúcar.
Tiravam-lhes, é verdade, algum mel, mas não lhes matavam as
larvas nem lhes destruíam a casa.
Isis fez ver que, algum dia, Zumbeca e suas irmãs seriam
tão amigas dos homens como ela. Amizade gera amizade.
— Quando acontecerá isto? — perguntou Zumbeca, e
armou uma carranca tão medonha que até parecia doer.
— Quando, não sei; mas vai acontecer. Vocês estão no
Brasil há poucos decênios, como ouvi dizer, depois de terem
vivido na África milhares de anos. Algum dia, vocês se tornarão
tão amigas do homem como somos nós.
Zumbeca desapareceu rumo ao cupinzeiro, pensando nas
palavras de Isis, mas com pouca fé no seu otimismo.
Será que no Brasil haverá desses homens de que ela
falava?...
80
A HISTÓRIA TRÁGICA DE MOMUCA
81
magníficas, e todo o corpo coberto de uma penugem dourada,
ocultando quase a cor morena da sua couraça de quitina. Esse
abundante frouxel cor de ouro, dizem os entendidos, é sinal de
raça e indício de grande vitalidade. Os dois olhos hemisféricos
de Momuca eram de tal perfeição e fulgor que, quando os
quatrocentos e quarenta e quatro zangões a viram fora da
colmeia a levantar voo, consta que duzentos e vinte e dois deles
caíram fulminados de estupefação e assombro, e nem puderam
voar no encalço da formosa princesa para o amplexo de amor
nas alturas do céu. Assim, pelo menos, narrou Sílvia, e o que ela
diz merece confiança. Melhor para eles, acrescentou Sílvia,
morrerem assim, de estupor, em vez de serem pelas operárias
apunhalados, ou então definharem de fome fora da cidade, como
aconteceu aos outros zangões que não tiveram a felicidade de
serem fulminados pelo esplendor mortífero dos olhos da jovem
rainha.
Depois de realizar o seu magnífico voo nupcial, por entre
a apoteose de todos os raios solares, de todos os perfumes das
flores e de todos os hinos da passarinhada, voltou Momuca, com
o futuro glorioso da nação nas entranhas — quando lhe sucedeu
algo que, como disse Sílvia, está envolto em eterno mistério,
mas que muitos atribuem à inesperada agressão por parte de um
insolente bem-te-vi, como já ficou dito.
O certo é que Momuca, de regresso à colmeia, não pôde
pôr ovos fecundados de que saíssem operárias ou rainhas, como
aliás pode toda a soberana normal. E como dos ovos não
fecundados só nascem zangões, que não trabalham, acabaria a
nação toda sob o flagelo de abelhas que consomem e não
produzem.
— Mataram Momuca? — perguntei.
— Não — respondeu Isis — Deixaram-na morrer. Não é
permitido às nossas operárias enterrarem o ferrão mortífero no
82
corpo de uma rainha, mesmo que esta fosse a maior das
criminosas. Por outro lado, também uma rainha nunca voltará a
terrível arma contra uma simples operária ou contra um zangão.
Entre nós, só se luta de igual para igual, nunca entre inferior e
superior. É ordem da grande Inteligência. Se duas rainhas se
encontram, lutam até morrer uma, ou as duas, alfange contra
alfange...
— Que quer dizer isto?
— As rainhas têm ferrão recurvo como alfanjes turcos,
enquanto o das operárias é reto como um punhal.
— Você disse Isis, que as abelhas não mataram a infeliz
rainha, mas a deixaram morrer; como assim?...
— Isto é praxe entre nós, quando temos de eliminar do
meio dos vivos uma rainha, como dizem vocês. Fazemos com
que ela morra, mas não a matamos.
— Explique-me isto, por favor, Isis.
— As operárias cercaram Momuca, formando uma
muralha circular com seus corpos. Foram fechando cada vez
mais o círculo, até acabar numa abóbada, isolando
completamente a prisioneira. A princípio tentou ela romper o
cerco, mas, como não se pudesse servir do seu alfange, foram
inúteis todas as tentativas de evasão. A muralha viva das
operárias era que nem rocha viva. Por muito tempo ouviam-se
os dolorosos gemidos e o violento vibrar de asas de Momuca,
enterrada viva. O silêncio das sitiantes era absoluto, como se
estivessem fazendo cera.
Nesta altura, interrompeu Isis a sua narração, baixou a
cabeça e arriou as minúsculas antenas como duas bandeiras a
meia-haste. Não chorou, porque os olhos dos insetos não têm
lágrimas, mas trazia o coração despedaçado de dor.
Durante esse lúgubre silêncio lembrei-me subitamente do
que, em tempos antigos, havia lido sobre as Vestais de Roma,
83
essas sacerdotisas da deusa Vesta, que eram enterradas vivas no
caso que deixassem apagar o fogo sagrado e assim
comprometessem a segurança da pátria. Para distrair do seu
lúgubre cismar a minha amiga alada contei-lhe por extenso essa
história. A princípio, Isis pareceu não compreender a analogia,
uma vez que as Vestais eram punidas de morte por terem
deixado apagar o fogo sagrado, enquanto Momuca morria por
não poder transmitir o fogo da vida. Mas, quando lhe fiz ver que
tanto esta como aquela estavam encarregadas de manter aceso o
fogo sagrado de cuja chama dependia o destino da pátria, Isis
compreendeu e disse, suspirando pesadamente: É verdade...
Momuca não manteve aceso o fogo sagrado da vida que devia
transmitir à posteridade. Extinguiu-se dentro dela a chama de
todas as vidas futuras que devia produzir...
— Mas, sem culpa dela — acrescentei eu, a meia voz.
— Sem culpa dela — concordou Isis. — A morte que ela
sofreu não foi castigo de uma culpa, foi a execução de uma lei,
de uma ordem da grande Inteligência. Entre nós, ninguém é
culpado, ninguém é punido, nem mesmo os zangões quando são
mortos, nem a rainha quando, por infecunda, é eliminada do
meio dos vivos. É cumprimento de uma lei eterna, para manter a
harmonia da vida...
— E Momuca morreu?
— Morreu de morte natural, no segundo dia do cerco, e o
seu lindo corpo foi levado para fora da cidade, o mais longe
possível...
Houve uma longa pausa; Isis conservava-se imóvel, tão
imóvel como eu nunca julgara pudesse estar uma abelha; parecia
petrificada. Tão grande era o silêncio em derredor de nós que
julguei até perceber o caminhar das sombras da tarde sobre os
cadáveres morenos das folhas secas esparsas pelo chão... Parece
84
que a Natureza toda suspendia a respiração ao ouvir o triste
necrológio de uma das suas filhas mais belas e perfeitas...
Depois de largo tempo, animei-me a interromper essa
quietude pesada e lúgubre, perguntando:
— E que é feito da tribo orfanada?
— Por um tris extinguira-se a nação toda. A princípio,
como é costume entre nós, no meio de tamanha desgraça, as
operárias choraram o seu choro de órfãs...
— Choro de órfãs, que é isto?
— É um zumbido especial, muito triste, que elas
produzem com as asas, a fim de aliciar alguma rainha sem casa
que, porventura, percorra os ares. Todas as rainhas conhecem
esse choro das órfãs. Mas não havia pelos arredores rainha sem
reino, e as que têm reino não podem atender ao clamor das
órfãs. Depois, todas as operárias se perfumaram, a ver se à força
de bons cheiros conseguiam chamar em seu socorro uma rainha
erradia. Mas foi tudo inútil...
— Donde tiraram elas os perfumes? Das flores?
— Não. É um perfume especial que as abelhas segregam
do próprio corpo e espalham no ar, em caso de orfandade. Você
nunca viu abelhas órfãs, nem poderia com seu olfato primitivo
perceber esse cheiro de socorro, que vai muito longe, pelos ares
afora. Tudo inútil. Ainda por algum tempo houve nascimentos,
pois havia larvas da rainha que partira com o enxame, quando
deixou o reino à sua filha, a formosa Momuca. Mas, como não
houvesse mãe capaz de pôr ovos fecundados, dentro de 21 dias
deixaria fatalmente de haver nascimentos — e então, adeus,
nação inteira! Só haveria mortes e mais mortes sem nascimento
algum... Já estava começando o período fatal, quando algumas
operárias, muitas mesmo, usurparam o cargo sagrado da rainha e
resolveram pôr ovos...
— Como? As operárias podem pôr ovos?
85
— Podem, sim, desde que tomem da geleia real, que tem
o poder de desenvolver os ovários.
— Onde estava essa geleia real?
— Foi lhes fornecida pelas novatas, ou foi roubada das
células das crias.
— E que aconteceu? Salvaram do extermínio a nação?
— Qual nada! Essa loucura das operárias poedeiras só
lhe acelerou a ruína...
— Como assim?
— Porque os ovos que alguma das operárias possa pôr
são ovos virgens, não fecundados, e destes só nascem zangões,
que comem muito e não trabalham nada — e qual a sorte de um
povo que só consome e não produz?
— Mas... Não havia zangões para fecundar alguma
operária, e assim facultar-lhe a postura de ovos fecundados, para
operárias?...
— Nenhuma operária pode ser fecundada senão no
princípio da sua vida...
— E assim se extinguiu a colmeia toda?...
— Ter-se-ia extinto se não viesse um salvador...
— Que salvador? —- O homem...
— Que pode o homem fazer num caso desses?
— O homem deu nova rainha ao povo orfanado. Não sei
donde ele tira essa rainha, mas o fato é que, depois da morte
trágica de Momuca, antes que fosse tarde, o homem pôs uma
rainha já fecundada no meio da colmeia. Queria ele que as órfãs
aceitassem, assim sem mais nem menos, essa estrangeira; mas
elas não a aceitaram.
— Não a aceitaram? Pois não andavam aflitas por uma
rainha?...
— Não a aceitaram a princípio, porque ela não tinha o
cheiro de casa.
86
— Cheiro de casa, que é isto?
— Sim, o cheiro de casa. Não sabe você que cada cidade
apiária tem o seu cheiro característico? Quem não tem esse
cheiro não é aceito. As abelhas preferem morrer todas a aceitar
uma rainha que não tenha cheiro legítimo, doméstico, nacional.
É ordem da grande Inteligência, contra a qual não há lei.
— Mataram a rainha que o homem lhes deu?
— Não a mataram, porque o homem, vendo a recusa,
teve juízo e lhe deu o cheiro de casa.
— Como assim?
— Dissolveu um pouco de mel em água e com esta
doçura cheirosa borrifou a rainha e todas as abelhas em
derredor. Assim, deixou de haver diferença de cheiros, tudo era
um cheiro só, cheiro de mel, cheiro gostoso e querido a qualquer
abelha. Lamberam o mel do corpo da rainha estrangeira e
fizeram as pazes com ela. E assim salvou-se da ruína a grande
cidade onde Momuca devia ser rainha.
É esta a história trágica da formosa rainha.
Tudo isto me contou Isis, mas assim como só uma abelha
sabe contar a tragédia de outra abelha.
A lembrança de Momuca perdura na cidade celular e é
contada a todas as princesas virgens, antes do seu voo nupcial,
para que tomem cuidados e não caiam em poder de um bem-te-
vi ou de outro inimigo.
87
O QUE ISIS ME DISSE SOBRE COSMOCRACIA E
COMO ADORMECEU PARA SEMPRE
88
— E por que não morre em casa, no meio de suas
amigas?
— Para nascer, a abelha precisa de outros; para morrer,
basta ela só. Lá em casa nascem cada dia milhares de abelhas
novas, e aqui fora morrem outras tantas. Que trabalho seria para
as outras terem de levar para fora, cada dia, tantos corpos! Por
isto, cada uma de nós, quando sente chegar o fim da vida, vai
para longe e despede-se do sol e das flores em completa solidão.
Para viver precisamos da sociedade; para morrer, gostamos da
solidão.
Mais uma vez, como em outras ocasiões, sobreveio-me a
sensação estranha, quase terrífica; tinha a impressão de me ver
face a face com algo que não era aquele pequenino inseto; com
alguma entidade cósmica, grande, sublime, eterna — como a
própria Alma do Universo... Aquela abelha não era senão um
postigo pelo qual eu lançava um olhar para dentro de mundos de
infinita grandeza e nunca sonhadas maravilhas. Senti-me
circundado de mistérios e empolgado de assombro... Estaria
sonhando? Arrebatado a regiões do além?... Vítima de uma
miragem quimérica?... Não, não era sonho nem quimera... As
coisas ao redor de mim eram reais, concretas, palpáveis... As
árvores, a cerca, as pedras, o pé de maracujá, tudo isto existia de
fato, objetivamente, e não apenas no meu mundo subjetivo...
— Quanto tempo ainda tem de vida? — perguntei a Isis,
que se conservava imóvel, como se já estivesse morta.
— Quando morrer no horizonte o derradeiro clarão da
luz — respondeu ela — adormecerei para sempre... Até esse
momento, sou sua amiga e responderei às suas perguntas...
Dizendo isto, Isis olhou para mim com tanta bondade e
simpatia que tive vontade imensa de abraçá-la, se ela tivesse
compreendido a significação de semelhante gesto humano.
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— Isis — disse eu, com vagar e solenidade — Você, que
conhece tantas coisas que nós, homens, ignoramos, revele-me o
segredo dessa admirável ordem e harmonia que faz da vossa
vida e do vosso Estado uma epopeia de poesia e beleza. Nós, os
homens, só conseguimos viver e trabalhar em paz quando
estamos a sós; onde há dois, há discórdia; onde há três há briga;
onde há muitos há guerra. E na vossa cidade vivem dezenas de
milhares de indivíduos na mais perfeita paz e felicidade. Não há
rivalidades. Não há luta de classes. Cada um executa com prazer
o trabalho que lhe toca e encontra felicidade em tornar felizes os
outros. A rainha vive em escuridão e monotonia, pondo ovos e
garantindo o futuro da nação, e não inveja as operárias, que, dia
a dia, percorrem a vastidão das campinas e gozam das
maravilhas do sol e do perfume das flores. As operárias sentem-
se felizes em recolher néctar e pólen para todos, esquecendo-se
quase de si mesmas; nem se exasperam com a indolência e os
maus modos dos zangões. Estes por sua vez, depois do voo
nupcial da nova rainha, morrem sem protesto e sem terem
gozado um momento de amor, para o qual cada um julgava ter
nascido; e os poucos felizardos que conseguem abraçar a
formosa virgem têm de morrer no mesmo instante, e não
maldizem a sua sorte. A vossa soberana, a seu tempo, entrega à
sua sucessora todos os tesouros da colmeia e recomeça a vida na
maior pobreza, longe da pátria — e sente-se perfeitamente feliz.
Quando alguém vos rouba o mel e a cera, recomeçais de novo a
árdua tarefa e trabalhais com o mesmo gosto que da primeira
vez. Diga-me, Isis, como consegue a vossa rainha organizar tão
perfeita sociedade e garantir tão admirável harmonia?
— Não temos rainha, só temos mãe.
—E essa mãe não vos dirige e governa?
90
— Não, não temos governo algum que nos dirija. Isto é
um costume humano, que as abelhas ignoram. Entre nós não há
indivíduo algum que dê ordens.
— Mas, por favor, Isis, explique-me como é possível que
milhares e milhares de abelhas, sem direção alguma, trabalhem
para o mesmo fim e em perfeita harmonia? Como é que cada
uma, desde a hora do seu nascimento, sabe perfeitamente o que
tem de fazer e o modo como tem de executar o seu trabalho?
Isis permaneceu calada por muito tempo, como se
estivesse em busca de uma resposta. Pois sabia que o homem é,
geralmente, guiado por sua pequena inteligência, e raras vezes
percebe a voz da grande Inteligência. Por fim, disse-me
vagarosamente:
— Entre seres como vós, que se guiam pela inteligência
individual, é necessário que haja alguém, investido de
autoridade, que dê ordens, e que os demais obedeçam a essas
ordens. Do contrário, um vai para cá e outro para lá, e não é
possível colaboração uniforme e prosperidade social. Mas, onde
há seres não dotados de inteligência individual não é necessário
esse governo.
— E vós, abelhas, não sois dotadas de inteligência?
— Não, nós não possuímos inteligência individual como
vós. Agimos por instinto, de acordo com o impulso cósmico da
Alma do Universo. Cada uma de nós é uma parte integrante da
Inteligência Cósmica, da qual não está desligada por uma
inteligência individual, como os seres humanos. Cada abelha é
como que uma pequena célula do grande organismo, como
diriam vossos livros. Quantas células tem você no seu corpo?
— Diversos bilhões.
— Pois eu, esta abelha Isis, sinto-me como uma célula
no grande organismo da nossa tribo, e do infinito Cosmos. Hoje
terminei o meu serviço, e vou ser substituída por outra célula.
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Satisfeita, cedo o meu lugar. Sou uma célula gasta, que deve ser
substituída por outra, jovem e forte, pelo bem do Todo...
— Isis, as suas palavras enchem-me o espírito de
pensamentos estranhos. Tanto mais perfeito é um governo
quanto mais cósmico?
— É como diz. Tudo que é belo e grande tem caráter
cósmico. Também o indivíduo é tanto mais perfeito quanto mais
cósmico, servidor do Todo, panorâmico, universal, amigo de
seus semelhantes, uma nota pura sintonizada pela grande
sinfonia do Universo...
— Uma sociedade orientada por um fator cósmico seria
então uma Cosmocracia...
— Exatamente, muitos indivíduos, governados, não por
outro indivíduo, mas pela grande Alma do Universo, refletida na
consciência de cada um. Seria o ideal.
— Entre nós, homens, há indivíduos que se arvoram em
chefes e soberanos por conta própria, sem consultar a alma do
Cosmos.
— Que aberração! Nunca pensei que entre seres
racionais fosse possível tamanha irracionalidade. É um crime
contra a Grande Inteligência...
— Mas a parte mais sã da humanidade pensa e age de
outro modo: os próprios indivíduos designam aquele por quem
querem ser governados.
— Já é meio caminho andado, rumo à Cosmocracia; mas
ainda está longe do termo da jornada. Nós não escolhemos
soberano algum. Não há intermediário entre nós e a Alma do
Universo. É esta própria Alma, a grande Inteligência, a infinita
Realidade, a suprema Divindade, que nos rege e governa.
Quando os homens chegarem à perfeição, saberão governar-se a
si mesmos, sem chefe nem intermediário algum. Não haverá
ordens vindas de fora, só haverá uma ordem vinda de dentro,
92
eco daquele grande Imperativo do Universo que tudo dirige com
força e suavidade, de um a outro extremo do Cosmos. Quando o
vosso dever se transformar em querer, e esse delicioso querer se
identificar plenamente com o onipotente dever então será
perfeita a vossa harmonia social, e perfeita será também a vossa
felicidade individual. E a vossa harmonia e felicidade serão
infinitamente maiores do que as do povo das abelhas...
— Pelo que vejo Isis, vós, o povo das abelhas, sois muito
mais avançados no caminho da evolução do que nós, os homens.
— É engano, grande engano, amigo homem! A nossa
Cosmocracia é muito imperfeita.
— Como assim, amiga Isis?
— Porque nem atingiu o nível da inteligência individual,
que é a atmosfera da humanidade. Essa inteligência individual é
o vosso maior privilégio — e também o vosso maior perigo. Ai
de quem parar nesse nível e se negar a ultrapassar esse estágio
evolutivo!... Dia virá, porém, após muitos milhares de
primaveras, dia virá em que o homem inteligente de hoje
atingirá as luminosas alturas da racionalidade, ou, como dizem
os vossos livros, da espiritualidade. Terminará então a luta de
indivíduo contra indivíduo, de grupo contra grupo. Será
proclamada a grande lei Cósmica, do amor espontâneo e
universal — a perfeita e definitiva Cosmocracia...
Isis proferiu estas últimas palavras com tamanha
convicção e tão vibrante entusiasmo que seus olhos de opala,
semiextintos, se reacenderam com subitâneo fulgor, e seu
gracioso corpinho, exausto de fadiga, parecia rejuvenescer
milagrosamente. Imóvel, na verde superfície da folha de
maracujá, parecia como que enlevada numa visão profética
sobre o glorioso futuro da humanidade, e, baixinho, bem
baixinho, murmurou: Somos felizes... Em servir a creaturas de
tão altos destinos como o homem...
93
Também eu me quedei, imóvel, por largo tempo,
enquanto os derradeiros reflexos sanguíneos do sol agonizavam
silenciosamente sobre as folhas e flores em derredor e a
vanguarda da noite derrotava impiedosamente a retaguarda do
dia... O mundo inteiro jazia envolto num fantástico halo de
inefável poesia e divino misticismo...
E a meus olhos internos surgiu a visão feérica de um
vulto — o "Filho do Homem" cercado de um pugilo de amigos a
atravessarem vastos trigais tangidos pelo hálito das brisas
vespertinas... Suspendi a respiração para ouvir o que esse
homem estranho dizia a seus seguidores. Percebi que falava da
grande Cosmocracia do futuro — já presente nele — ou, como
ele costumava dizer, o Reino de Deus a ser proclamado sobre a
face da terra, o reino da compreensão e da benquerença, o reino
do altruísmo e do amor universal, o reino da paz e da harmonia
perfeita, o reino da felicidade e beatitude sem limites... Falava
do tempo glorioso quando o homem, esse semi-homem de hoje,
se tornasse o pleni-homem de amanhã; quando o homem
integral e plenamente adulto na sua racionalidade espiritual, não
só amasse o seu pequeno ego, mas também o grande Tu de seu
semelhante; quando o homem tomasse o amor que naturalmente
tem a si mesmo, como norma e norte para o amor que votaria a
todo e qualquer ser humano. E os próprios seres infra-humanos
deixariam de serem objetos e vítimas de exploração da parte dos
egoístas humanos, passando a ser amigos e aliados do homem
espiritualizado pela compreensão e pelo amor universal do Deus
do mundo em todos os mundos de Deus. A Natureza andaria de
mãos dadas com o homem redento da ignorância do seu
egoísmo e da irredenção do seu ódio, abrindo-lhe os seus
segredos e as suas forças ocultas... E o homem, plenamente
identificado com seu Creador, se serviria de todas as creaturas
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do mundo de Deus consoante a vontade do Deus do mundo, sem
delas abusar, sem as explorar ou violentar...
Quando voltei a mim dessas longínquas divagações pelas
regiões do Além, já o sol mergulhara no horizonte vespertino.
Meus olhos procuraram minha amiguinha morena, e viram-na
no momento em que, com um tenuíssimo "adeus", seu
pequenino corpo caía da folha de maracujá, rolando, exânime,
sobre a terra... Tomei-o nas mãos com grande reverência, e
levei-o para casa como saudosa recordação de algumas semanas
de amizade e grandes revelações...
Dois vagalumes seguiram-me através da escuridão, como
um par de círios vivos a vigiar o sono plácido da querida Isis...
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ÍNDICE
Advertência..............................................................................................01
Vida e Obra de Huberto Rohden...........................................................02
Leitor Amigo ....... ...................................................................................06
Prefácio para a Segunda Edição............................................................07
Isis e sua Gente........................................................................................09
Sintonizando os Nervos......................................................................... 14
A Infância de íris................................................................................... 20
Mortandade, Revolução e Protestos.....................................................33
Surge uma Cidade Cor de Neve............................................................37
50.000 Mil Virgens Heróicas..................................................................43
Êxodo Rumo a Mundos Ignotos............................................................52
Voo Nupcial. Amor Mortífero.............................................................. 58
Encontro com um Parente Antipático...................................................67
Elixir de Vida e Juventude.....................................................................76
O que Zumbeca disse a Isis.....................................................................79
A História Trágica de Momuca..............................................................81
O que Isis me Disse sobre Cosmocracia
e como Adormeceu para sempre...........................................................88
96