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OBSERVATÓRIOS DE CULTURA: CONSTRUÇÃO E DESAFIOS DENTRO

DE UM CONCEITO DE DEMOCRACIA CULTURAL


Sandro Santana, Analista de Cultura, Secult/ Ceará
E-mail: sandrosantanaster@gmail.com
Resumo
Neste estudo, que não tem a pretensão de esgotar o assunto, o objetivo que conduz a
pesquisa é o de refletir acerca do desenvolvimento de um observatório de cultura que vá
além do monitoramento de dados e fiscalizações, e tenha como propósito o compromisso
com a produção crítica e o aperfeiçoamento da política cultural adotada e, na sua ausência,
das ações promovidas pelo Estado. Para isso, faço uma breve explanação sobre as noções
de cultura na contemporaneidade, tomando como aporte teórico os estudos de Stuart Hall,
Robert Kurz, Muniz Sodré, Teixeira Coelho e Nestor Canclini. Em seguida, aciono as
contribuições de Paul Tolila, Octavio Getino e Coelho no sentido de dialogar e traçar
definições, premissas, propostas de construção e desafios identificados por estes autores
para a construção de um observatório dentro de uma política pública democrática e
cidadã. Por fim, teço considerações sobre a construção de um observatório cuja missão
esteja em consonância com o conceito de democracia cultural, ao invés da mera
democratização de acesso aos bens produzidos pela indústria cultural e as chamadas
belas-artes.
PALAVRAS-CHAVE: Observatório de cultura. Políticas culturais. Cultura
Brasileira.

1. Introdução
Para o interesse do estudo proposto, inicio este estudo delineando os conceitos
de cultura com os quais irei fazer uma interlocução. Dito isso, torna-se importante a
identificação e compreensão dos diferentes significados e valores que ao longo dos anos
foram atribuídos à palavra “cultura” e avaliar quais dessas significações ainda persistem
na contemporaneidade, para quem persiste e como se dá a contraposição de ideias entre
essas diferentes significações atribuídas, historicamente, ao termo.
Obviamente, é impossível dar conta da complexa multiplicidade do conceito de
cultura, que nos últimos cem anos se espraiou por diversas áreas, desde campos onde o
tema se mostra historicamente afim, como as artes, antropologia e sociologia, até searas
como economia, administração e direito, cuja objetividade e racionalidade pareciam
impor magnetismo de repulsão ao tema. Em prol da objetividade deste estudo e por
limitação do número de páginas, vou me concentrar nas noções de cultura na
contemporaneidade e deixo como sugestão de leitura a reflexão feita por este autor na sua
tese de doutoramento a respeito dos conceitos atribuídos a palavra “cultura” ao longo dos

1
anos (SANTANA, 2019, pp. 61-66). Em seguida, aciono as contribuições de Paul Tolila,
Octavio Getino e Coelho no sentido de dialogar e traçar definições, premissas, propostas
de construção e desafios identificados por estes autores para a construção de um
observatório dentro de uma política pública democrática e cidadã. Por fim, teço
considerações sobre a construção de um observatório cuja missão esteja em consonância
com o conceito de democracia cultural, ao invés da mera democratização de acesso aos
bens produzidos pela indústria cultural e as chamadas belas-artes.
Ainda que os primeiros observatórios de cultura brasileiros remetam à década de
1980, existe uma carência de literatura e pesquisas sobre o tema. O artigo também
contribui para a construção de uma bibliografia sobre um tema ainda recente, em processo
de institucionalização. A metodologia utilizada é qualitativa, que emprega
fundamentalmente a pesquisa e revisão bibliográfica relacionadas com a temática central
e com os eixos temáticos afins. Para tanto, foram utilizados como documentos: relatórios
de congressos e grupos de trabalho, pesquisas, publicações, anuários, estudos e a
produção bibliográfica do próprio autor.

2. Noções de Cultura na pós-modernidade


Em “A Verdade Seduzida: por um conceito de cultura no Brasil”, Muniz Sodré
adverte que a multiplicidade das definições do termo “cultura” acompanha a diversidade
de interesses institucionais ou disciplinares (SODRÉ, 1988, p.43). Com razão, Sodré
afirma que o termo “cultura” tornou-se uma palavra metafórica, capaz de se adaptar ao
uso e necessidades daqueles que a conceituam em determinado momento histórico,
deslizando de modo flexível e maleável de “um contexto para outro, com significações
diversas” (SODRÉ, 1983, p.8).
É justamente esse “passe livre” conceitual que universaliza
discursivamente o termo, fazendo de sua significação social a classe de
todos os significados. A partir dessa operação, cultura passa a demarcar
fronteiras, a estabelecer categorias de pensamento, a justificar as mais
diversas ações e atitudes, a instaurar doutrinariamente o racismo e a se
substancializar, ocultando a arbitrariedade histórica de sua invenção.
(SODRÉ, 1983, p. 8)

Segundo Stuart Hall (1997), após a segunda metade do século XX assistiu-se, no


mundo ocidental e posteriormente em escala global, ainda que de forma irregular, uma
“revolução cultural”. Esta revolução, alavancada por uma cultura fortemente midiatizada,
desloca o campo cultural de um ponto secundário para um papel central na vida social e
torna-o cada vez mais penetrante em campos onde sempre teve pouca influência, como a

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política e a economia. Hall defende que a emergência deste papel central da cultura se
evidencia em duas esferas, tanto no campo material quanto da produção simbólica.
A primeira esfera, chamada por ele de centralidade substantiva, é “o lugar da
cultura na estrutura empírica real e na organização das atividades, instituições, e relações
culturais na sociedade, em qualquer momento histórico particular” (HALL, 1997, p. 16).
Esta centralidade está vinculada à importância auferida a onipresente indústria cultural e
à compressão tempo-espaço imposta pelo desenvolvimento tecnológico, o que acelera as
trocas culturais, num espaço que se comprime e tempo que se acelera. Estas
transformações interferem na vida cotidiana dos indivíduos e nas relações destes com a
coletividade, influenciando seu modo de agir, pensar e de interagir com culturas
diferentes, o que propiciaria o surgimento de uma cultura global. Neste ponto, o autor
jamaicano propõe um olhar diferente daqueles teóricos que advertem sobre a
inevitabilidade da homogeneização cultural e “mcdonaldização da sociedade” (RITZER,
1995) em tempos de globalização e desenvolvimento acelerado das tecnologias de
informação.
Numa visão bem otimista, Hall vê na globalização a formação de uma identidade
cultural que dilui fronteiras e integra culturas diferentes em torno da formação daquilo
que seria uma cultura global, que não só não aniquila os traços característicos de um
“local”, como também propõe formações identitárias alternativas ao binarismo das
relações estabelecidas, novo versus velho, oriente versus ocidente, negro versus branco.
A globalização se refere àqueles processos, atuantes numa escala global, que
atravessam fronteiras nacionais, integrando e conectando comunidades e
organizações em novas combinações de espaço – tempo, tornando o mundo,
em realidade e em experiência, mais interconectado. A globalização implica
um movimento de distanciamento da ideia sociológica clássica da sociedade
como um sistema bem delimitado e sua substituição por uma perspectiva que
se concentra na forma como a vida social está ordenada ao longo do tempo e
do espaço. (HALL, 2000, p. 75).

Com a centralidade epistemológica, definida como a “posição da cultura em


relação às questões de conhecimento e conceitualização, em como a cultura é usada para
transformar nossa compreensão, explicação e modelos teóricos do mundo” (HALL, 1997,
p. 16), Hall traz o conceito de virada cultural e defende que as dimensões simbólicas e
materiais não podem ser separadas e a nossa compreensão das práticas sociais depende
dos discursos e significados que a constituem. Esta virada da cultura não pleiteia, segundo
o autor, um lugar de disputa de hegemonia, mas sim uma centralidade que refuta
binaridades, onde o centro não é visto como um lugar propagador para periferias que o
recebem passivamente. O autor percebe esta centralidade como um local de tensões, onde

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o campo cultural não está acima dos demais, mas sim mantendo uma relação de
interlocução e interpenetração com os campos político e econômico. Ao contrário, a
cultura permeia os campos supracitados e a virada cultural a desloca para uma dimensão
importante nesta análise.
Assim, este deslocamento posiciona a cultura num local de extrema importância
e se torna imprescindível regular as práticas culturais de toda uma sociedade. Diante deste
problema, ao invés de respostas, Hall propõe duas interrogações: 1) como a esfera cultural
é controlada e regulada? 2) quais destas questões de regulação cultural têm a possibilidade
de se destacar como marcos de mudança, ruptura e debate no próximo século?
Sem apresentar respostas definitivas, o autor aponta para a regulação enquanto
campo de tensões, onde mercado, Estado, economia, poder político e social interferem
reciprocamente “impondo limites e exercendo pressões sobre o outro, mas nenhum deles
tendo força o bastante para definir em detalhes o funcionamento dos demais” (HALL,
1997, p. 35).
Para Robert Kurz, esta centralidade da cultura apontada pelos teóricos dos
estudos culturais, que tem em Hall sua voz mais otimista, é mais resultado de um discurso
de uma crítica social “indigna deste nome”, que abandonou a crítica séria “do mercado,
do dinheiro e do fetichismo da mercadoria como economismo antiquado e infrutífero”
(KURZ, 1998, p. 3). O autor defende que a esquerda pós-moderna tornou-se “culturalista”
e, assim como havia abandonado a economia ao refugiar-se na política, agora, aninhou-
se no campo cultural. Não sem razão, Kurz adverte que nada escapa ao olhar zeloso da
economia totalitária e a sua lógica de maximização dos lucros, radar do qual também não
consegue se esquivar a cultura.
A esquerda pós-moderna tornou-se, sob todos os aspectos, "culturalista" e
imagina-se, com toda seriedade, capaz de atuar "subversivamente" no âmbito
da arte, da cultura de massas, da mídia e da teoria da comunicação, enquanto
deixa praticamente de lado a economia capitalista e a menciona somente de
passagem, com evidente enfado. Mas sejam quais forem as esferas sociais em
que se refugia uma esquerda de pouca voz, a economia capitalista está sempre
presente e lhe acena com um sorriso irônico (KURZ, 1998, p. 3).

O filósofo alemão traça um cenário de degradação para a cultura, que vai se


acentuando em quatro momentos diferentes. O primeiro deles seria na Modernidade,
quando a cultura se desvincula das demais esferas da vida, a cultura é um hobby, uma
atividade para o tempo livre, quase sempre associada às artes e à erudição. Uma atividade
“supraeconômica”, que é utilizada como marca de distinção, bom gosto, vinculada ao que
Lukács chamou de “velha cultura”, a cultura desprovida de qualquer relação com o

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sustento e que, portanto, só as classes dominantes poderiam exercer (LUKÁCS, 2005,
Online).
A segunda degradação da cultura se dá quando os produtos culturais são
submetidos à racionalidade empresarial. Se por um lado, a lógica do capital suprime os
privilégios de casta e elimina também os privilégios culturais da sociedade de castas
(LUKACS, 2005, Online), por outro, industrializa a cultura, que já se encontra no “estágio
formal” de submissão ao capital, à “lógica da compra e venda do dinheiro” (KURZ, 1998,
p. 3). Naquele momento, início do século XX, a reprodução material se estende às
configurações imateriais da vida, o que leva, incontornavelmente, à lógica da
maximização dos lucros e à racionalidade econômica ao campo cultural.
No decorrer do século XX a cultura atinge o “estágio real” de submissão ao
capital, quando este não mais se contenta apenas em gerar mais valia com a produção
imaterial e passa a ser um critério para esta produção. O mercado não é mais apenas o
agente da circulação de bens culturais, mas a partir de então domina todo o processo de
reprodução. Esta é a terceira degradação da cultura.
Arte e cultura de massas, ciência e esporte, religião e erotismo cresceram de
produção como carros, geladeiras ou sabões em pó. Com isso, os produtores
culturais também perderam sua "autonomia relativa". A produção de canções
e romances, de descobertas científicas e reflexões teóricas, de filmes, quadros
e sinfonias, de eventos esportivos e espirituais só podia ocorrer como produção
de capital (mais-valia) (KURZ, 1998, p. 3-4).

No entanto, Kurz adverte que a prosperidade alcançada após o fim da Segunda


Guerra Mundial aliada à “cultura do Keynesianismo”1 criou um amortecedor social que,
em muitos países, protegeu parte da cultura contra o impacto devastador da economia.
Ainda que a subvenção estatal tenha imposto limites à autonomia dos bens culturais, este
financiamento estava aberto à críticas e discussões públicas, pois era possível negociar
com funcionários e políticos, mas não com as leis do mercado. Este período se estendeu
até a nova crise mundial e a ascensão do neoliberalismo, na década de 80.
Por meio da "cultura do keynesianismo" uma parte da produção cultural
dependeu apenas indiretamente da lógica do dinheiro. Enquanto emissoras de
rádio e televisão, universidades e galerias, projetos artísticos e teóricos eram
subsidiados ou dirigidos pelo Estado, não era preciso submeter-se diretamente
aos critérios empresariais; havia um certo campo de ação para a reflexão
crítica, os experimentos e as "artes improdutivas" minoritárias, sem que os
ameaçasse as sanções materiais (KURZ, 1998, p. 4).

1
Para saber mais sobre o Keynesianismo ver KEYNES, John Maynard. Teoria geral do emprego, do
juro e da moeda. São Paulo: Editora Atlas, 1992.

5
Para Kurz, a ascensão neoliberal e o fim do keynesianismo abalaram fortemente
a cultura, que se viu privada dos seus meios de financiamento sem as exigências tirânicas
do mercado. Os incentivos estatais protagonizam as discussões em torno do
financiamento da cultura e as leis do mercado tornam-se, definitivamente, os únicos
parâmetros que legitimam o investimento de recursos estatais, através da renúncia fiscal,
em bens culturais. Essa é a quarta degradação da cultura.
Não há mais direitos sociais e civis, mas apenas o arbítrio caritativo dos
ganhadores do mercado. Os produtores culturais veem-se expostos aos
humores pessoais dos rajás do capital e dos mandarins da administração, para
cujas esposas eles devem servir de hobby e passatempo. Como os bobos da
corte e os serviçais da Idade Média, eles são obrigados a portar os emblemas
de seus senhores, a fim de serem úteis ao marketing. (KURZ, 1998, p. 4).

Ao analisar as transformações das políticas culturais na contemporaneidade,


tendo como parâmetro as ideias no campo das Humanidades, portanto, as transformações
dos conceitos de cultura, Teixeira Coelho (COELHO, p. 10, 2007) defende que não
bastam medidas isoladas em favor da cultura ou que se sirvam da cultura. É necessário
um procedimento sistêmico que contemple as questões que pautaram os debates nos
seminários e fóruns internacionais desde a década de 1980 e foram temas protagonistas
na elaboração de documentos assinados pelas organizações que representam as
sociedades dos Estados e blocos continentais na década seguinte. O autor explica que
este sistema deve tomar como pilares sete tópicos: 1. Direitos culturais; 2. Diversidade
cultural; 3. Sociedade civil; 4. Sustentabilidade da cultura; 5. Sustentabilidade da cultura;
6. Conectividade. 7. Inovação. No cerne destas questões estão o desenvolvimento humano
e o rompimento com os vetores que inspiraram as tradicionais políticas culturais.
“Embebidas de passado e nutridas pela nostalgia” (COELHO, 2007 P.10), estas políticas
culturais baseadas no patrimonialismo se assentam em conceitos como nação, identidade,
povo, classe social e já não respondem aos anseios e ao imaginário do século XXI. O
sistema proposto por Teixeira Coelho criaria as condições
[...] para que sempre que se fale em desenvolvimento se pense em
desenvolvimento humano, com sua consequência que é o desenvolvimento
econômico, e se criem de fato as condições para implementar um e outro
(COELHO, 2007, p. 11).

A política cultural proposta por este sistema deve ser uma ferramenta para o
rompimento com o habitus cultural (BOURDIEU, 2007) e a fixidez, travestidos no
discurso politicamente correto, e a domesticação da cultura, que instrumentaliza o bem
cultural em favor da manutenção de um tecido social e de um discurso de combate à
violência e promoção do desenvolvimento social (COELHO, 2008, p.10). O autor adverte

6
que a cultura só poderá exercer sua função de “alavanca da governabilidade laica,
republicana, e de uma qualidade de vida que preserve o mundo” (COELHO, 2008, p. 12)
enquanto não for cerceada sua rede de paradoxos, contraditórios, pontos cegos e
negatividades. Uma política cultural não pode prescindir de uma dimensão da cultura pela
cultura, dimensão esta que não pode ser quantificada, nem mensurada. Como uma esfera
transcendental que não precisa, necessariamente, prestar contas em relação a um retorno
econômico ou social.
No seu artigo “Políticas culturais e crise de desenvolvimento”, Canclini define
políticas culturais enquanto
o conjunto de intervenções realizadas pelo Estado, pelas instituições
civis e pelos grupos comunitários organizados a fim de orientar o
desenvolvimento simbólico, satisfazer as necessidades culturais da
população e obter consenso para um tipo de ordem ou de transformação
social. (CANCLINI, 2019, p. 56).

Ao enfatizar o desenvolvimento simbólico e a satisfação das necessidades


culturais da população, Canclini propõe um noção de cultura e política cultural dentro do
conceito de democracia cultural desenvolvido pelo autor, em detrimento da noção de
democratização da cultura, historicamente, em voga nos países latino-americanos. Para
Canclini, o paradigma condutor da ideia de democratização da cultura concebe a política
cultural enquanto um programa de difusão da arte, do conhecimento científico e das
demais formas de cultura estabelecida. (CANCLINI, 1987, p. 46-49). Já o conceito de
democracia cultural vai além da mera distribuição de bens culturais da chamada “alta
cultura”, e alarga a noção de cultura. Assim, a cultura deixa de ser a difusão da produção
cultural das elites e reconhece não só os fazeres e saberes populares, como também os
seus processos de criação. Ademais, esta concepção de política cultural também pensa a
cultura enquanto processo de criação, fruição, acesso e poder de decisão em relação à
destinação destes recursos.

3. Observatórios Culturais: modelos, desafios e propostas


Como afirma Clarissa Semensato, no artigo “O surgimento dos observatórios de
Cultura e de Políticas Culturais: Reflexões iniciais para construção de tipologias”, apesar
da disseminação no final do século passado, ainda são poucos os estudos sobre os
observatórios e mais raros ainda os que têm como objeto observatórios latino-americanos
(SEMENSATO,2015, p. 57). Na sua dissertação de mestrado, uma das poucas pesquisas
de folego sobre o tema, Selma Silva define o observatório de cultura enquanto

7
“dispositivo de informação, típico da sociedade contemporânea, que se apropria de
metodologias e teorias interdisciplinares para acompanhar e compreender o campo
cultural” (SILVA, 2016, p. 6). Como ponto de partida, este conceito nos ajuda a dar uma
ideia da atualidade e importância da produção crítica de um observatório que reivindique
este nome. A pesquisa de Silva, que, como reconhece a própria autora, se inspira nos
estudos da espanhola Cristina Ortega Nuere, traça uma genealogia e aponta alguns
caminhos para a identificação e metodologias dos observatórios no Brasil. Já num
primeiro momento, ela cita a premissa básica da pesquisa de Nuere ao identificar um
observatório: a publicização de dados e a comunicação com a sociedade. Ou seja, um
observatório que reivindique este título deve ser um produto da sociedade da informação
e fazer uso das tecnologias para a publicização das suas análises, bibliotecas, pesquisas e
base de dados e indicadores (ORTEGA NUERE apud SILVA, 2016, p. 28).
No seu estudo, fica evidente a deficiência de uma bibliografia que dê conta de
conceitos ou definições, mas que se concentra na diferenciação de modelos. Para isso,
Silva cita autores (PHÉLAN, LACAILLE, LACROIX, 2007; ALBORNOZ,
HERSCHMANN, 2006, 2008; BELAEN, 2009; ORTEGA NUERE, 2010 apud SILVA,
2016) que dividem os observatórios de cultura em dois modelos: fiscal e think tank.
Embora haja uma grande variedade e riqueza de observatórios de
informação, comunicação e cultura é possível dividi-los em dois
conjuntos, com os seguintes enfoques básicos: um primeiro grupo, em
que os observatórios são concebidos como espaços articuladores da
cidadania a partir do qual pode-se monitorar o funcionamento dos
meios de comunicação (“observatório fiscal”) e, outro, em que são
considerados como novos organismos que colaboram através de suas
intervenções e reflexões na formulação de políticas públicas
(“observatório think tank”). (ALBORNOZ; HERSCHMANN, 2006, p.
5).

Para os objetivos deste artigo, que já traz no seu título uma proposta conceitual
de política pública para a cultura dentro de uma noção de democracia cultural, é mais
interessante nos concentrarmos nos estudos propositivos, que apontam as atividades e
funções imprescindíveis à instituição. Enfim, os desafios que serão enfrentados para o
desenvolvimento de um observatório independente, com agenda própria e um modelo que
dê conta da sua produção crítica e de retornos para a sociedade civil, “por exemplo,
processos de análise, observação, avaliação, formação e disseminação de certa
‘informação cultural’ ou informação para o campo cultural” (SILVA, 2016, p. 37). Dentro
deste paradigma, aciono pensadores como Paul Tolila, Teixeira Coelho e Octavio Getino,

8
cuja experiência teórica se coaduna à vivência enquanto gestores de observatórios e
instituições culturais.
Paul Tolila defende que os observatórios culturais devem ser independentes,
com estrutura organizacional, produção e orçamento contínuo, que assegure as suas
atividades de forma crítica. Ou seja, cujo financiamento e manutenção não estejam à
mercê dos interesses nem das intempéries ideológicas decorrentes da geografia do poder
e do capital. O autor coloca como pedra angular desta construção “uma estrutura de
observação democraticamente digna de crédito e metodologicamente confiável”.
A criação de um observatório de desenvolvimento cultural é, nesse
sentido, um meio poderoso para que a cultura e as políticas públicas
culturais entrem no domínio não-contestável das estratégias a serviço
de um desenvolvimento nacional e internacional real, contínuo e sólido,
tanto no plano dos governos como naquele dos cidadãos (TOLILA,
2007, p. 36).

Teixeira Coelho, idealizador do Observatório de Políticas Culturais da


ECA/USP, criado no final da década de 1980, e consultor do Observatório Itaú Cultural,
adverte que “a observação afeta o observado”. O autor explica que " observar, entender
o que está sendo observado, perceber o efeito que a observação provoca, aceitar afetar,
buscar afetar” (COELHO,2017, Online) são enfrentamentos básicos de um observatório
cultural e que a premissa básica para entender o que observa é o primeiro desafio a ser
enfrentado.
Para entender o que observa – um fato de cultura ou de política cultural
–, um observatório deve ser capaz, primeiro desafio, de entender a
dinâmica cultural geral em que se inscreve o fato observado – antes de
observá-lo. E nunca o observar como suposto fato isolado. Essa
dinâmica é global, nacional e local. Um fato cultural ou de política
cultural relaciona-se a outros na horizontal (como os termos de um
discurso formado por associação de uma série de outros fatos) e na
vertical (como superposição de estratos diretamente conectados por
uma relação de causalidade ou não) (COELHO,2017, Online).

No mesmo texto, Coelho enumera mais três desafios a serem enfrentados por um
observatório e que, levando em consideração o objeto deste estudo e a
imprescindibilidade da voz de um autor cuja experiência teórica e empírica no campo
cultural, de um modo geral, e na gestão de observatórios culturais, mais especificamente,
iremos elencar. O segundo desafio apontado pelo autor reside em identificar os
antecedentes de um fato cultural e, a partir daí, gerar um sistema sobre o qual desenhar
um mapa do que será observado.

9
Antes de começar a atuar, um observatório deve entender que a cultura,
sobretudo no que diz respeito à sua produção física (e econômica),
aspecto habitualmente mais examinado, é um sistema em que cada
componente ocupa um lugar, embora nem sempre necessário. Cada
modo cultural tem seu sistema de produção, semelhante aos demais,
mas com aspectos próprios, e esse sistema relaciona-se com outros na
horizontal e na vertical. O capital cultural do observatório, sua
capacidade de data crushing, de minerar e entender os dados, além de
sua condição econômica para atuar, irão definir a quantidade de modos
culturais que pode abarcar (COELHO,2017, Online).

O terceiro desafio pode ser resumido na seguinte frase: “sem análise qualitativa,
um observatório não propõe muita coisa”. Com isto o autor nos diz que é preciso estar
preparado para observar o objeto. Ainda que o inesperado sempre pode surgir, devemos
estar munidos par “ir a campo”. É fundamental que a sua equipe seja qualificada, seja do
“ramo”. Entenda e vivencie os processos culturais.
O objetivo de um observatório é aumentar o repertório do que se sabe
sobre o observado. Essa ampliação não deriva da simples observação:
resulta da observação refletida e preparada, i.e., embasada no
entendimento de um processo e de seu sistema (COELHO,2017,
Online).

O quarto e último desafio enumerado pelo pesquisador é o da temporalidade:


“um observatório tem de existir e persistir no tempo”. Não sem razão, Coelho se mostra
cético em relação a esta capacidade ao levar em conta a instabilidade e fragilidade das
políticas públicas para a cultura desenvolvidas no Brasil.
Os efeitos de uma política cultural levam ainda mais tempo para se
mostrar. Uma geração, às vezes. O observatório estará lá para registrá-
la, suportará a pressão para apresentar logo quaisquer dados? Uma
política voltada para o aumento do público de exposições de arte: depois
de quanto tempo surtirá efeito e fornecerá uma fotografia confiável?
Questão preliminar: sabem os observatórios culturais, e institutos que
levantam dados culturais esparsos, o que é “público de cultura”? Quase
sempre, não. Quando sabem, por razões imediatistas preferem fazer de
conta que não, outro modo de promover a mentira, hoje dita pós-
verdade (COELHO,2017, Online).

Para encararmos os desafios apontados por Teixeira Coelho, o cineasta e


pesquisador argentino Octavio Getino adverte que não se trata de apenas analisar a
incidência de segmentos ou indicadores isolados de um setor cultural, mas sim estar
atentos a processos recentes, que mesmo “com escassos resultados legitimados”, ainda
assim, exigem um esforço epistemológico que contribuam para atualização e redefinição
das políticas culturais na América Latina.

10
O que se impõe é a observação e a análise da evolução do conjunto dos
mesmos, integrado também pelas diferentes atividades artísticas e
serviços culturais. Um conjunto que caracterizamos como sistema de
relações sinérgicas, cuja importância estratégica está cada vez mais fora
de questionamento. O que falta é apenas dimensionar seu real impacto,
algumas vezes determinante, na formação da economia, da cultura, da
democracia e do desenvolvimento das nações. (GETINO, 2007, p. 44).

4. Considerações Finais
Diante do exposto nos parágrafos anteriores, podemos tecer algumas
considerações levando em conta o objetivo deste artigo: refletir acerca da construção e
desenvolvimento de um observatório cultural que tenha como propósito o compromisso
com a produção crítica e o aperfeiçoamento da política cultural em consonância com o
conceito de democracia cultural. Tendo em vista que o observatório proposto se insere
numa política pública cujas bases se assentam na democracia e cidadania, é prudente
estabelecer, primeiramente, a sua missão, aquilo que se quer observar. Afinal, quando se
observa a tudo, na verdade, nos tornamos reféns de uma miopia que nos torna incapazes
de identificar um objeto que esteja um palmo à frente da nossa visão.
Definido o conceito de gestão cultural – democracia cultural – , seguindo os
aconselhamentos de Tolila (2007) e Coelho (2017), um observatório deve ser
independente, o que torna inegociável a necessidade de uma estrutura e orçamento
contínuo. A sua estrutura organizacional não pode estar submetida a outros órgãos. Deve
ter total independência para criar sua agenda, estabelecer sua metodologia, compor uma
equipe qualificada e publicizar seus dados sem mediações exteriores. Só assim poderá
visualizar e propor estratégias de enfrentamento dos gargalos e de concentrações de
recursos e o aperfeiçoamento de editais e ações culturais. Sem isso, não passará de um
mero centro de levantamento e monitoramento de dados, criação de formulários e tabelas
inócuas, a serviço de interesses que, na sua gênese, deveria combater.
Ainda que a cultura tenha atingido uma centralidade nos discursos e programas
políticos (HALL, 1997), o seu protagonismo se resume às efemérides e enquanto
instrumento de venda de produtos e de modos de vida estandardizados pela indústria
cultural. Como afirmou o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, em nossa era líquida, a
cultura tornou-se um produto da moda, “uma gigantesca loja de departamentos com
prateleiras cheias das mais variadas das ofertas” (BAUMAN, 2004, P.103). Neste
contexto, um observatório que reivindique este título deve ser independente na sua pauta
e, sobretudo, nos processos de análise, observação e avaliação. Ele deve ir além do “fato

11
cultural” e estar atento e crítico às consequências de “políticas culturais”, indignas deste
nome, que confunde conceitos, seja por má-fé ou orgulho da sua ignorância, e se ampara
na “inércia burocrática” (CANCLINI, 1995, p.247). Não sem razão, a inércia burocrática
torna-se um dos principais dispositivos usados pelos governos pseudodemocráticos, como
método e justificativa. Este “vetor” de violação dos mais caros princípios democráticos,
ao tratar os diferentes como iguais e transformar o que era pra ser um meio em um fim,
torna o campo da cultura um espaço fértil para a disseminação do clientelismo, do
patrimonialismo (confunde o público com o privado), das relações de compadrio e de
bajuladores.
Por fim, sem instituições culturais, ainda assim, em maior ou menor grau e
sofisticação, os artistas continuarão produzindo. Um observatório cultural democrático e
cidadão não pode perder isso de vista. Caso contrário, se torna apenas um instrumento de
tergiversação, tentando legitimar procedimentos autoritários e ações culturais
desprovidas de qualquer meta, diretriz ou planejamento a médio e longo prazo.

REFERÊNCIAS
Albornoz, L. A., & Herschmann, M. Os observatórios ibero-americanos de informação,
comunicação e cultura: balanço de uma breve trajetória. E-Compós, 7, 2006.
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BOURDIEU, Pierre. A Distinção: crítica social do julgamento. Porto Alegre: Editora
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