Chartier e Foucautl - Poder, Cultura e Representação

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Chartier e Foucautl: poder, cultura e representação

CHARTIER AND FOUCAULT: POWER, CULTURE AND REPRESENTATION


Cícero Oliveira*

RESUMO
O texto parte de uma abordagem introdutória ao âmbito da História Cultural crí-
tica, como a encontramos no pensamento de Roger Chartier acerca da represen-
tação e da prática social enquanto polos de articulação da cultura e do mundo
social, para em seguida explorar algumas das articulações possíveis com a gene-
alogia do poder empreendida por Michel Foucault. Para este último propósito in-
dicaremos que os conceitos de lutas de representações e poder, respectivamente
relativos aos pensamentos de Chartier e Foucault, constituem superfície de con-
tato privilegiada entre a História Cultural, assim compreendida, e a genealogia

a cultura, as representações e as práticas sociais são trespassadas por relações de


poder e, de forma exemplar, as que concernem à esfera política em suas distintas
encarnações históricas.
PALAVRAS-CHAVE: Cultura; Representações Sociais; Práticas Sociais; Poder

ABSTRACT
The text starts from an introductory approach to the scope of Critical Cultural

and social practice as poles of articulation of the culture and the social world, and
then to explore some of the possible articulations With the genealogy of power
undertaken by Michel Foucault. For this latter purpose we will indicate that the
concepts of struggles of representations and power, respectively relating to the
thoughts of Chartier and Foucault, constitute a privileged contact between the
Cultural History, thus understood, and the Foucaultian philosophical genealogy in

and social practices are permeated by relations of power and, in an exemplary

KEYWORDS: Culture; Social Representations; Social Practices; Power

____________________
* Professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia – UFRB, Amargosa-BA, Brasil; cicerojsoliveira@ufrb.edu.br

. São Paulo, v. 6, n. 2, pp. 68-87, 2018. 68


Cícero Oliveira

1. A história cultural do social e o mundo como representação

A chamada história cultural do mundo social, como o historiador


Francês Roger Chartier (1945) a propõe, implica a reconsideração dos fe-
nômenos históricos a partir das noções (em teste) de “representações” e de
“práticas sociais” encaradas como polos complementares e articuladores
da cultura e do mundo social. Para Chartier, como quer que compreen-
damos a cultura e suas práticas, não devemos reconhece-las como algo
-
sentações” e do “poder”.
A despeito de não desenvolver uma discussão em trono do con-
ceito de cultura, os ensaios coligidos na obra A história cultural. Entre
práticas e representações
franca aceitação da cultura na forma como C. Geertz a compreende:

O conceito de cultura ao qual adiro [...] denota um padrão, transmitido

de concepções herdadas, expressas em formas simbólicas, por meio


das quais os homens comunicam, perpetuam e desenvolvem o seu co-

1990, p. 66-67)

Não obstante o modo abrupto como introduz o conceito de cultu-


ra, Roger Chartier registra aí sua divergência no tocante à história social
que na linha do pensamento marxiano indexou e subordinou a cultura ao
conceito de ideologia. Nesta imagem clássica da “totalidade do social”
que foi amplamente aceita por gerações de historiadores, situada no ter-

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ceiro nível de uma estrutura tripartite, a cultura estaria decididamente con-
trolada e condicionada a ser representação ideológica e espelhamento de
dois outros níveis mais decisivos e determinantes da estrutura enleada ao
poder e à luta, a saber, o econômico e o social.
Sob tal perspectiva, na análise de Chartier, o econômico e o cul-
tural formam níveis parte ou pelo menos bem delimitados na estrutura

lado o cultural; determinado e encarado como esfera das representações


ideológicas estando alojado em limites bem delimitados e por isso mesmo
claramente reconhecíveis.
A recusa de semelhante partilha do social e de seu enfoque estrito
e excessivo numa história social centrada, em bloco, na luta econômica,
constitui o pano de fundo contra o qual o historiador francês pretende
redimensionar e examinar cultura como horizonte de reconsideração do

O mundo como representação (1989), que não obstante o deliberado dis-


tanciamento de uma expressão clássica da história social, a “história cul-
tural do social” opera um “retorno hábil” sobre o social enquanto “centra a
-
ções e que constroem, para cada classe, grupo ou meio, um ser-percebido

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Cícero Oliveira

[...] como todas as relações, incluindo as que designamos por relações


econômicas ou sociais, se organizam de acordo com lógicas que põem
em jogo, em acto, os esquemas de percepção e de apreciação dos di-
ferentes sujeitos sociais, logo as representações constitutivas daquilo

uma sociedade ou própria de um determinado grupo. O mais grave

geralmente respeitar apenas as produções intelectuais ou artísticas de


uma elite, mas de levar a supor que o «cultural» só e revestido num
campo particular de práticas ou de produções. Pensar de outro modo
a cultura, e por consequência o próprio campo da história intelectual,

nos discursos ou nos comportamentos aparentemente menos culturais.

O deslocamento em jogo no âmbito da “história cultural”, como


-
tória social da cultura para uma história cultural do social. Para essa pas-
sagem, trata-se de construir uma nova articulação entre a estrutura cultu-
ral e a estrutura social que supõe um duplo movimento, simultaneamente
negativo e positivo. Trata-se, em primeiro lugar, de renunciar à descrição
da totalidade do social a partir da rígida hierarquia de determinações de
uma instância sobre as outras. Em segundo lugar, trata-se de reorientar os
esforços de decifração do social em função do reconhecimento das “prá-
ticas” e das “estruturas sociais” como realidades produzidas nos “jogos
das representações” múltiplas, compósitas, contraditórias e concorrentes
entre si.

“representações” e das “lutas por representações”, coladas a indivíduos e


grupos sociais, que os sentidos e símbolos que constituem a cultura (leia-

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Articulada pela noção de “representação” como termo de exame
das “práticas sociais”, da “cultura” e da “estrutura do mundo social”, nas

performáticos, a saber, dos esquemas conceituais e de condutas (políticas


e sociais) atrelados às percepção e avaliação social e às consequentes clas-
-
-tempo.
O estudo das “representações” assim compreendidas, a saber,
como eixo da “história cultural do social”, assume portanto que as estrutu-
ras do mundo social não são um dado objetivo, mas antes historicamente

sociais e políticas que constroem suas próprias imagens. Trata-se de lidar

A “história cultural do social” toma como objeto estas demarca-


ções e os esquemas que as modelam e respondem pelas formações cultu-
rais e as estruturas sociais. Longe do primado de certo recorte social que
refere as clivagens de hábitos culturais a oposições sociais dadas a priori
(dominantes e dominados, elite e povo), a história cultura pode ser igual-

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mente “entendida como estudo dos processos com os quais se constrói

amplamente a relação unilateral tradicionalmente postulada entre o social;


existindo por si próprio à maneira de uma estrutura apartada e indepen-
dente, e as representações; encaradas de forma demasiado taxativa como
O mundo como repre-
sentação

De fato, as clivagens culturais não estão forçosamente organizadas


segundo uma grade única do recorte social, que supostamente coman-
daria tanto a presença desigual dos objetos como as diferenças nas con-
dutas. A perspectiva deve pois ser invertida e traçar, de início, a área
social (muitas vezes compósita) em que circulam um corpus de textos,
uma classe de impressos, uma produção, ou uma norma cultural. Partir
assim dos objetos, das formas, dos códigos, e não dos grupos, leva
a considerar que a história sócio-cultural repousou demasiadamente
sobre uma concepção mutilada do social. Ao privilegiar apenas a clas-

diferenciação, igualmente sociais, podiam dar conta, com maior perti-


nência, dos desvios culturais. Assim sendo, as pertenças sexuais ou ge-
racionais, as adesões religiosas, as tradições educativas, as solidarieda-

Em suma, a perspectivação cultural tem em mira uma história


social dos usos, das interpretações e das produções de sentido indexa-
das às práticas discursivas e aos comportamentos que as produzem. Daí

diferença de classes e fortunas, e sim em torno das múltiplas táticas, das


condições e dos processos que concretamente possibilitam as operações
-

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neira de Paul-MarieVeyne e Michel Foucault, implica reconhecer que as
inteligências e as ideias não são historicamente desencarnadas ou desarti-
culadas das sociedades, do espaço e do tempo em que se situam.
Daí que o historiador francês, a história cultural trabalha na con-
tramão dos “pensamentos do universal” enquanto opera sob a premissa
metodológica de que “as categorias dadas como invariantes, sejam elas

das trajetórias históricas.”1


A perspectiva aberta para pensar os múltiplos pontos de articula-

-
tabelece a primazia do econômico, se mostra mais adequada à pluralidade
das clivagens que trespassam a ordem social e à diversidade de conexões
dos códigos partilhados.

2. A cultura na gênese do Estado moderno

Vejamos um campo de aplicação da história cultural, ainda que de


modo breve e a título de simples indicação, a partir de um texto de Chartier

Quando no Ensaio Construção do Estado moderno e formas cul-


turais – perspectivas e questões -

1 Veremos, na terceira parte do presente texto, que o conceito foucaultiano de “gover-

tomado como categoria fundamental do pensamento político.

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ma de tal Estado, a partir da conjunção histórica de dois mecanismos que

de saída duas problematizações que compõem o campo de interesses e


o tipo de abordagem da história cultural em torno da gênese do Estado
moderno.
(i) Em primeiro lugar, ao contrário de assumir ou fornecer
-
tegoria universal” e base estável para o estudo de suas modalidades histó-

formas originais, sucessivas ou contemporâneas, tanto da repartição


e do exercício do poder, como dos equilíbrios sociais em que se ba-
seiam. O principal objeto do programa de investigação proposto con-
sistiria em caracterizar, no seguimento de Marc Bloch ou de Norbert
-
-

Primeiro ponto: a compreensão do Estado historicamente encar-


nado ou como forma política original, supõe antes de tudo o compromisso
de pensá-lo fora do marco de um “universal histórico”.
(ii) A segunda problematização da história cultural acerca
do Estado moderno desdobra-se da primeira. Ela destaca o fato de que,

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dos processos de transformações implicados em sua emergência.
Entre outras transformações culturais decisivas à compreensão do
Estado moderno, o exemplo e o foco de análise explorados por Chartier
(ocupado com a “História da leitura”
condições culturais relativas ao recurso crescente à escrita, particularmen-
te relativas às novas competências administrativas estatais no tocante aos
tributos e à justiça.
Na proposta do autor, esta reconsideração cultural do Estado de
gestão pode assumir a difusão dos (1) “materiais escritos produzidos pelos

-
fabetização das populações” como eixos de uma nova realidade compósita
e decisiva para o advento do Estado moderno enquanto forma política
original.
Para Chartier, há portanto que examinar as condições culturais
que se colocam lado a lado com outro setores sociais e que possibilitam
o Estado moderno, e não simplesmente como um resíduo ou algo deriva-
tivo deste processo de constituição. Quando numa nova esfera de gestão
política a “palavra escrita” passa a ser os “signos do poder” e mesmo seu
-

articulação entre o mundo do texto e o mundo do sujeito coloca-se necessariamente uma

estes afectam o leitor e o conduzem a uma nova norma de compreensão de si próprio e do

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gesto fundamental, o espaço cultural do Estado de justiça está diretamente


implicado nas transformações políticas.
Portanto, o historiador francês considera que o Estado moderno
está imbricado e emoldurado em novas competências culturais que pas-
sam fundamentalmente: (a) pela multiplicação da “escrita de Estado” (dos
representantes da autoridade pública ou que a eles sem dirigem) nos meca-
nismos de administração, e (b) pelos progressos da alfabetização das po-
pulações, dos agentes públicos e dos súditos que exercem ou aprendem o

(a) A “escrita de Estado”, a escrita dos representantes da au-


toridade pública ou a eles dirigida, comportaria três rupturas com impli-
cações decisivas para o modo como o poder soberano fez conhecer sua
autoridade.

o Estado dá a conhecer as suas vontades ou registra as dos seus

dos royal writs), [ii] a que substitui o recurso ao notário pelo


desenvolvimento das chancelarias (o que representa uma evolução
essencial das cidades-estado italianas, tanto pela constituição das
documentações administrativas como pela redação das crônicas),
-

denunciadores do Estado moderno nos seus abusos ou nos seus


fundamentos.

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-
tivo ao desenvolvimento do Estado moderno calcado no recurso crescen-
te ao texto manuscrito e subsequentemente ao impresso. De modo que
a mensuração da produção escrita tem de estar conjugada ao exame das
competências culturais das populações, dos súditos e dos agentes que
aprendem e exercem o poder de comando e de justiça pela mediação de

Para a história cultural do enleio entre escrita e Estado na moda-


lidade administrativa ou do exercício do poder (que se distingue de outras
relações com o escrito como ocorre no concernente ao texto sagrado), im-

sobre as populações.
Para este propósito, Chartier destaca a necessidade de enfoque
sobre as “políticas escolares”, a saber, os projetos formativos com os quais
os Estados modernos visam controlar as instituições em função da forma-

deixa de ter efeitos outros imprevisíveis e fora do controle estatal:

tem um peso determinante nas conjunturas estudantis. Com efeito, ao


multiplicar cargos e ofícios, ela produz em muitos indivíduos a espe-
rança de uma carreira na justiça ou na administração, levando assim
vida e o gesto visto permanecem a expressão essencial do poder de comando e de justiça.
Mais tarde, mesmo nos Estados onde os escritos são familiares, o grito público continua
a ser o primeiro meio de publicação das vontades do príncipe. Aliás, nas monarquias do

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a um aumento, por vezes acentuado, das matriculas e da obtenção de


graus acadêmicos nas universidades, e a um alargamento certo da área
social do seu recrutamento. O crescimento do Estado faz pensar como
-
ção — uma posição superior em dignidade e rendimentos relativamen-
te a ocupada pelo pai. [...] A construção do Estado moderno tem con-
sequências culturais que não dependem apenas da sua ação voluntária
sobre as instituições ou práticas designadas como tais. Ao transformar
as próprias percepções do devir social possível, ao produzir escolhas
-
dade nas suas profundezas, pois permite êxitos anteriormente impos-

3. Genealogia do Estado moderno: escritos políticos e estraté-


gias de poder em torno da vida

Como Roger Chartier (1945) no domínio da “história cultural”,

-
sita, não monolítica ou como realidade política original constituída (dentre

práticas do poder com representações discursivas que lhe são contempo-


râneas.

inequivocamente expresso em alguns de seus ensaios. Para este registro


um excerto de Chartier nos parece particularmente exemplar:

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Depois de Foucault, torna-se claro, com efeito, que não se podem con-
siderar esses «objetos intelectuais» como «objetos naturais» em que
apenas mudariam as modalidades históricas de existência. A loucura,
a medicina ou o Estado não são categorias pensáveis em termos uni-
-

necessário reconhecer, não objetos, mas objetivações que constroem

Veyne, cujo comentário aqui reproduzimos: «neste mundo, não se joga

1990, p. 65)

A essa altura, deveria estar claro que a perspectivação cultural


da história em Chartier tem em mira uma história social dos usos, das
práticas, das interpretações e das “representações” que resultam em “pro-
duções de sentido” e formas determinadas de práticas sociais em geral. A
este respeito penso que o projeto de Chartier de uma reconsideração sis-
temática do Estado moderno, como articulador de uma forma singular de

sem bem que por caminho e com foco distintos4.

Quando no curso Segurança, território, população (1978) Fou-


cault se propõe a traçar a genealogia das “práticas políticas de governo dos
homens”, que segundo sua hipótese constitui a forma política caracterís-
tica do poder na modernidade, começa por indagar acerca da origem e do
4 De modo bastante esquemático poderíamos dizer que enquanto Chartier pretende realo-
car a cultura (especialmente a história intelectual acerca do texto e da leitura) no âmbito

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Cícero Oliveira

Já no curso Em defesa da sociedade (1976) Foucault nos faz notar


que em seu âmago a própria noção moderna de soberania, como expres-
são precípua do poder político apoiado no direito de vida e de morte, se
inscreve no domínio biológico, ou melhor, circunscreve certos eventos
biológicos no âmbito político, já que por este poder vida e morte não são
tanto eventos naturais como resultados de certo modus operandi do poder
político.
Em virtude do poder soberano, contratualmente instituído para
a proteção da vida dos seus, vida e morte não são tanto eventos naturais
como o resultado de certa operacionalização do poder. Vida e morte são
fenômenos que estão a partir daí deslocados da natureza para o âmbito
não-natural do político. Vida e morte são acontecimentos imbricados, con-
dicionados pelo exercício soberano do poder.
Se bem que o cenário biológico do político na modernidade es-

direito soberano de “fazer morrer ou deixar viver” no direito oposto de


-
política: o gerenciamento político da vida especialmente ocupado com sua
otimização, seu incremento, sua homeóstase5.

de processos biológicos sujeito a condições internas e externas que podem fazê-lo variar.

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De qualquer modo, a crermos em Foucault, a emergência mo-

dos homens” (concebida num campo próprio de competência no tocan-

testemunhável em dois eixos que se desenvolvem de forma simultânea e


colaborativa: (1) no terrento de uma febril produção da literatura política
(2) na efetiva transição das práti-
cas de poder do Estado de justiça à governamentalidade biopolítica.
novas
representações discursivas do poder e das suas novas estratégias políti-
cas (delimitadoras das funções gerenciais do Estado moderno para muito

-
critos anti-Maquiavel, concebidos no mesmo espírito das transformações
políticas em curso, que encontramos as primeiras elaborações acerca de
uma teoria política relativa à compreensão do sentido de “governar” que
se fez absolutamente decisiva para o modo como ainda compreendemos o
exercício do poder político6.
Em todo caso, trata-se de variáveis que podem obstar ou compor os controles regulares de
sua otimização e de seu melhor proveito econômico. Em suma, trata-se das componentes
-
lações globalmente “afetadas por processos de conjunto próprios da vida”. (FOUCAULT,

6 Com efeito, a expressão “gestão governamental”, bastante corrente no vocabulário po-


lítico hodierno, deve ser lida como a competência própria da arte política de governo, da
boa condução pública dos homens que tem a economia-política como símbolo maior da
rede de saber/poder articuladora do encargo político. “Governar”, no sentido político vi-
gente de “administrar”, de fazer a adequada “condução”, a boa “gestão” dos homens e das
coisas, implica, segundo Foucault, o reconhecimento e o recorte da população como um

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-
mínio teórico os problemas particularmente voltados à arte de governar
como a conhecermos. Ocorre que nos limites da modernidade a represen-
-
sentada pelo O príncipe de Nicolau Maquiavel, envolve antes de tudo um
savoir-faire, um “tratado de habilidades”, pelo qual o objetivo do príncipe

O príncipe de Maquiavel que se constitui a enorme


e longeva “discursividade” e “representação” escrita acerca de uma arte
inteiramente nova de governo político que reivindica para si a tarefa de
uma “racionalização” do exercício poder.
-

autores como Guillaume de La Perrière (1499-1565), François La Mo-

-
mente deslocada de um registo jurídico-territorial para o novo registro
“biopolítico”.

-
-poder político.

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envolve o processo teórico e efetivo de transição da administração do ter-
ritório à gestão estatal da “dos homens e das coisas” (e mais tarde da
“população”), pela primeira vez concebida à imagem da relação entre o
patriarca e a família. Esta imagem fundadora da “economia” em sentido
moderno e em consequência de seu deslocamento do privado para púbico,

atrelada ao sentido político conferido ao “governar”: (a) inicialmente con-

-
sentativo vinculador do domínio econômico ao domínio político, que a
justaposição “economia-política” passou a referir a “gestão” ou a “boa
condução” (e a ciência da boa condução) dos homens e das coisas na for-
ma da economia.

A arte do governo, tal como aparece em toda essa literatura, deve res-
ponder essencialmente a esta pergunta: como introduzir a economia
– isto e, a maneira de administrar corretamente os indivíduos, os bens,
as riquezas, como fazê-lo no seio de uma família, como pode fazê-lo

criadagem, que sabe fazer prosperar a fortuna da sua família, que sabe
-
ção, essa meticulosidade, esse tipo de relação do pai de família com
sua família na gestão de um Estado? A introdução da economia no seio

veem como Rousseau ainda coloca o problema nesses mesmos termos,

-
ma, diz Rousseau: como esse sábio governo da família poderá, mutatis

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mutandis, e com as descontinuidades que serão observadas, ser intro-

[exercer] em relação aos habitantes, as riquezas, a conduta de todos e


de cada um uma forma de vigilância, de controle, não menos atenta do

Como a história cultural de Roger Chartier que explora as co-


nexões fundamentais entre a “representações” e as “práticas” sociais

constroem os “sentidos”), o projeto foucaultiano para a genealogia da go-


vernamentalidade biopolítica sugere que o remanejamento moderno das
práticas de poder opera de modo articulado e simultâneo como esforço
discursivo de racionalização do poder.

implicados no longo processo moderno dos que julgam operar uma “ra-

dentro deste quadro de “representações” discursivas que o poder faz de

francês propõe uma releitura crítica não apenas do domínio político mo-

economia, do liberalismo e do neoliberalismo.

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CHADO, Roberto (org.). Microfísica do poder. São Paulo: Edições

_______. Em defesa da sociedade. Trad. Martina Ermantina Galvão.

_______. Nascimento da biopolítica. Trad. Eduardo Brandão. São

_______. Segurança, território, população. A vontade de saber. Trad.

-
ro, Editora Vozes: 1997.

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