Tese Izadora Acypreste

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS

CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL

IZADORA PEREIRA ACYPRESTE

OS PÉS DA MEMÓRIA

UMA ETNOGRAFIA SOBRE AS PLANTAS, O GADO E O


TEMPO NA BEIRA DO RIO SÃO FRANCISCO

São Carlos
2021
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS
CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL

IZADORA PEREIRA ACYPRESTE

OS PÉS DA MEMÓRIA

UMA ETNOGRAFIA SOBRE AS PLANTAS, O GADO E O


TEMPO NA BEIRA DO RIO SÃO FRANCISCO

Tese de doutorado apresentada ao Programa de


Pós-Graduação em Antropologia Social da
Universidade Federal de São Carlos, como parte
dos requisitos necessários para obtenção do título
de Doutora em Antropologia Social.

Orientador: Prof. Dr. Felipe Ferreira Vander


Velden

São Carlos
2021
Pereira Acypreste, Izadora

Os pés da memória: uma etnografia sobre as plantas, o


gado e o tempo na beira do rio São Francisco / Izadora
Pereira Acypreste -- 2021.
333f.

Tese de Doutorado - Universidade Federal de São Carlos,


campus São Carlos, São Carlos
Orientador (a): Felipe Ferreira Vander Velden
Banca Examinadora: Ana Gabriela Morim de Lima,
Carmen Silvia Andriolli, Geraldo Luciano Andrello, Luiz
Felipe Rocha Benites
Bibliografia

1. Quilombos. 2. Rio São Francisco. 3. Etnografia


Multiespécie. I. Pereira Acypreste, Izadora. II. Título.

Ficha catalográfica desenvolvida pela Secretaria Geral de Informática


(SIn)

DADOS FORNECIDOS PELO AUTOR

Bibliotecário responsável: Ronildo Santos Prado - CRB/8 7325


UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS

Centro de Educação e Ciências Humanas


Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social

Folha de Aprovação
Defesa de Tese de Doutorado da candidata Izadora Pereira Acypreste, realizada em 14/12/2021.

Comissão Julgadora:

Prof. Dr. Felipe Ferreira Vander Velden (UFSCar)

Prof. Dr. Geraldo Luciano Andrello (UFSCar)

Profa. Dra. Ana Gabriela Morim de Lima (USP)

Profa. Dra. Carmen Silvia Andriolli (UFRRJ)

Prof. Dr. Luiz Felipe Rocha Benites (UFRRJ)

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil
(CAPES) - Código de Financiamento 001.
O Relatório de Defesa assinado pelos membros da Comissão Julgadora encontra-se arquivado junto ao Programa de
Pós-Graduação em Antropologia Social.
Dedico esta tese à Dona Cecília, minha vó e
aos meus pais, Lourdes e Clésio, por serem
minha inspiração primeira de força
barranqueira.
RESUMO

Esta tese busca discutir, através de uma abordagem sobre as plantas, sobre o gado e
sobre o tempo, como a vida dos quilombolas ribeirinhos é produzida através de contínuos
engajamentos multiespecíficos. Moradores das áreas de beira do rio São Francisco, os
quilombolas de Sangradouro Grande, Croatá, Gameleira e Várzea da Cruz, comunidades
localizadas no município de Januária, Norte de Minas Gerais, destacam a importância
mesma do rio na constituição da paisagem, que também é produzida pela convivência
cotidiana entre pessoas, plantas e outros viventes. Portanto, é através dos engajamentos entre
pessoas e estes outros viventes que podemos compreender a estórica de constituição da
paisagem, que envolveu, e ainda envolve, diversas movimentações, acolhidas, ajudas, entre
outras trocas recíprocas entre humanos e não humanos. Mas esta paisagem vem mudando
com a passagem dos tempos, mudanças que podem ser observadas a partir da convivência
com os viventes do lugar e contra as quais também pode-se resistir através das alianças com
eles. Estando as plantas profundamente entrelaçadas com a forma com que os quilombolas
ribeirinhos compreendem seus territórios, a proposta é descrever estas diferentes conexões
que elas estabelecem com a vida daqueles que, juntamente a elas, coabitam a beira do rio.
Assim, estas “coisas maravilhosas” ou “amores de coisa”, como dizem o povo da beira do
rio, nos servem aqui não apenas como ponto de partida, mas também como fio condutor que
conecta as diferentes discussões que compõem a tese. Através dessa abordagem, espera-se
captar os aspectos mais sensíveis da forma como os moradores locais pensam e se
relacionam com os pés, e como, a partir dessa relação, eles concebem e produzem outros
aspectos de suas vidas. Em suma, propõe-se compreender o que as relações multiespécies
dizem sobre o modo de vida, a estórica, as territorialidades, e a convivialidade geradora de
laços de pertencimento entre os habitantes destas comunidades quilombolas ribeirinhas.

Palavras-chave: Quilombos, rio São Francisco, etnografia multiespécie, plantas, gado,


tempo.
ABSTRACT

This dissertation seeks to discuss, through an approach about plants, cattle and time
[tempo], how the life of riverine quilombolas is produced through continuous multispecific
engagements. Residents of areas [áreas] along the São Francisco river [beira do rio], the
quilombolas of Sangradouro Grande, Croatá, Gameleira and Várzea da Cruz, communities
located in the municipality of Januária, North of Minas Gerais, highlight the very importance
of the river in the constitution of the landscape, which is also produced by the daily
conviviality [convivência] between people, plants and other living beings [viventes].
Therefore, it is through the engagements between people and these other living beings that
we can understand the story [estórica] of the constitution of the landscape, which involved,
and still involves, several movements, receptions [acolhidas], help [ajudas], among other
reciprocal exchanges between humans and non-humans. But this landscape has been
changing over time, changes that can be observed from the conviviality with the living
beings of the place and against which one can also resist through alliances with each other.
Since the plants are deeply intertwined with the way that riverine quilombolas understand
their territories, the proposal is to describe these different connections it establishes with the
lives of those who, along with them, cohabit along the riverbank. Thus, these “wonderful
things” or “lovely things”, as the people on the riverbank say, serve us here not only as a
starting point, but also as a common thread that connects the different discussions that make
up the thesis. Through this approach, I hope to capture the most sensitive aspects of the way
local residents think and relate to their plants [pés], and how, based on this relationship, they
conceive and produce other aspects of their lives. In short, I aim to understand what
multispecies relationships say about the way of life, the story, the territorialities, and the
conviviality that generates bonds of belonging among the inhabitants of these riverine
quilombola communities.

Keywords: Marroon, São Francisco River, multispecies etnography, plants, catlle, period.
AGRADECIMENTOS

Aos quilombolas ribeirinhos meu profundo agradecimento por toda a aprendizagem


que me proporcionaram durante estes últimos anos. Mesmo quando distante das barrancas
do rio, permaneço atenta aos seus modos, palavras e ensinamentos. Pela generosidade,
carinho, cuidado, atenção, paciência, pelas inúmeras conversas e caminhadas pelo mato,
agradeço a todos. Em Sangradouro Grande, agradeço especialmente Dona Olívia, Ramiro,
Lídia, Kristina, Tuca, Peba, Maísa, Tonzin, Welvis, Tati, Rubão, Mariana, Amelinha, Seu
Faustino, Madalena, Zé Orlando, Eva e tantos outros por estes últimos anos de convivência.
Em Croatá, agradeço Enedina, Jorge, Bibi, Jeferson, Karol, Caio, Dona Maria, Seu Arnaldo,
Seu Santo, Seu Saulo (in memoriam), Ronaldo, Iranete, Dôra, João e Seu Nô. Em Várzea da
Cruz, meus agradecimentos à Dona Osvaldina, Seu Carlito, Elaine, Maria Almeida e Maria
Barbosa. Em Gameleira, agradeço também à Maria Paixão, Zé dos Reis (in memoriam), Seu
Vicente, Alessandra, Joana, Seu Zé Bete, Totinha, João e Ana. Agradeço ainda à Janaína
Lopes e à Suzana Escobar por me receberem em Januária. Com todos que vivem nestas
beiradas, seja nas baixas ou nos altos, na roça ou na cidade, mencionados aqui ou não,
aprendi o valor da acolhida.
Pela acolhida também agradeço meu orientador Felipe Vander Velden, a quem serei
sempre grata por me ensinar a olhar de maneira interessada e apaixonada para estes outros
não humanos que estão sempre por aí, compartilhando conosco suas vidas. Quando ainda
era incerto para mim as possibilidades de levar adiante uma pesquisa sobre “pés de manga”,
suas sugestões e indicações me abriram um mundo de possibilidades. Muito obrigada por
me receber, me abrir os caminhos e me conduzir nessa aventura multiespecífica.
As meninas (e menino) do projeto Dinâmicas, agradeço imensamente pelas trocas
realizadas antes, durante e depois das pesquisas de campo conjuntas. Com muito carinho
agradeço à Luciana Ribeiro e Elisa Araújo pelas muitas conversas, pelos convites para os
cafés e, principalmente, pelos muitos aprendizados. Também agradeço à Claudia Luz e a
Carlos Dayrell pela parceria de campo, pelos interesses comuns de pesquisa e pelos diálogos
estabelecidos. Sem esquecer, claro, de Felisa Anaya, a quem agradeço pela oportunidade de
fazer parte do projeto, e Ana Thé, a quem sou grata pela oportunidade, ofertada há um longo
tempo atrás, que me permitiu adentrar como pesquisadora nesse mundo ribeirinho.
Agradeço à Joana Cabral de Oliveira e ao Luiz Felipe Rocha Benites pela
participação na banca de qualificação, pelos comentários generosos e pelas sugestões tão
importantes para a continuidade da pesquisa e para o aprofundamento das discussões da tese.
A Mark Harris agradeço pela paciência com a burocracia brasileira, por me receber
muito gentilmente na Universidade de St Andrews, pela atenção interessada à pesquisa e por
tecer importantes comentários e sugestões ao meu trabalho. Em St Andrews, também
agradeço a Huon Wardle e a Cecília McCallum pela atenção e gentileza. Por Priscila Costa,
ainda que não tivemos a oportunidade de nos conhecermos pessoalmente, sou imensamente
grata por toda a prestatividade e ajuda oferecida antes e depois da minha chegada, bem como
pela colaboração na tradução do meu texto. Agradeço também a presença inspiradora de
Joana Overing. Desejo que suas memórias a levem aos seus parentes Piaroa. Aproveito para
agradecer também a Mary Menton e a Laura Rival pela acolhida em Oxford.
A Luiz Felipe Rocha Benites, à Carmen Silvia Andriolli, à Ana Gabriela Morim de
Lima e a Geraldo Luciano Andrello, deixo aqui o meu profundo agradecimento, tanto por
terem aceitado o convite para comporem a banca de defesa quanto pelas generosas arguições.
Seus comentários foram valiosos para pensar os temas discutidos na tese e os
desenvolvimentos futuros da pesquisa. Sou também grata à Clarice Cohn e à Márcia Maria
Nobrega de Oliveira por aceitarem participar da banca como suplentes.
Aos colegas do Humanimalia e aos seus companheiros de pesquisa, Luisa Fanaro e
seus cães, Míriam Stefanuto e suas criações, Túllio Maia e seus “mosquitos”, Gabriel
Sanchez e seus “bichos-de-pena”, Bruno Silva e seus ratos, Ana Luísa Nardin e a Santa,
Sarah Moreno e seus pombos, Bruno Ghillardi e seus javalis, Ariane Zambrini e seus bodes,
Larissa Portugal e seus matos, Matheus Silva e seus búfalos, Daniella Alves (que ainda não
encontrou um companheiro), agradeço por todas as trocas, que ensejaram e ainda ensejam
muitas reflexões e inspirações.
No PPGAS agradeço a professora Ana Catarina Morawska. Também sou grata ao
Fábio Urban pela paciência em sanar minhas dúvidas em todas as vezes que precisei bater
na porta da secretaria. Agradeço aos colegas Iana Vasconcelos, Sheiva Sörensen, Jacqueline
Lima, Ana Elisa Santiago, Sara Munhoz e Rainer Miranda.
Agradeço a minha família, que nunca mediu esforços para me garantir a melhor
educação que puderam. Desde a minha infância, me ensinaram que a ignorância era o pior
que me poderia acontecer. Nestes tempos tenebrosos, percebo o quanto isso foi valioso. Por
essa razão, e por tantas outras que não conseguiria descrever aqui, agradeço aos meus pais
Maria de Lourdes e Clésio. Agradeço também o carinho e as risadas compartilhadas com
minhas irmãs, Amanda e Carolina. Não poderia deixar de agradecer também o apoio e as
orações generosamente oferecidas por Dona Cecília, minha querida avó e inspiração de vida.
Ao Pedro Mourthé agradeço por todos estes anos de parceria, carinho e amor.
Agradeço também pelas trocas, pelas leituras generosas dos meus textos e pela paciência
com meus tempos e humores. Que novos tempos venham e permitam que nossos caminhos
continuem se cruzando sempre e sempre.
À Ivone, Seu Pedro (in memoriam), Dona Ilda e Breno eu também agradeço, pelo
carinho, pelos cuidados, pelos terços rezados e pela paciência.
A todos os amigos que ajudaram a tornar esta jornada mais leve, doce e alegre. Em
São Carlos agradeço especialmente Juliane Acquaro e Vinícius Furlan pela paciência e
carinho com que abriram as portas de sua casa logo no início dessa trajetória. Foram muitos
momentos cozinhando e compartilhando sentimentos de aflição, mas também de muitas
alegrias. Juliana Spagnol sabe bem, e a ela também sou grata pela amizade, que não ficou
apenas em São Carlos e se tornou família de consideração. Outros momentos felizes em casa
foram compartilhados com Erik Borda, Daniel Stulano, Renan Martins e Marina Defalque,
a quem também agradeço muito. A amizade de coração quentinho de Gustavo Ramos,
Gabriela Loreti e Gabriel Bertolo eu não apenas agradeço, como também levarei por toda a
vida. Ainda em São Carlos pude conhecer e conviver com pessoas que se tornaram muito
queridas, como André Rocha, Rosemeire Salata, Tamires Cristina, Tarcísio Perdigão e
Roberto Pina. Meu muito obrigada a todos vocês!
Nessa grande rede de amizades e ajudas espalhadas por esse meio mundo, agradeço
a outros queridos e queridas, como Carolina Cadima, Deyvisson Batista, Zaira Moutinho,
Bárbara Veloso, Olívia Leal, Mauro Toledo, Fabrício Amaral, Sarah Gonçalves, Raíssa
Pales, Graziano Fonseca, Juliana Oliveira, Felipe Barbosa, Mácia Larissa, Clarissa Godinho,
Paulo Gonçalves, Ana Paula Tanaka, Jefter Caldeira, Paulo Bogado, Letícia Marques, Felipe
Tuxá, Camila Marinelli, Sebastién Carcelle e Breno Trindade.
Por fim, agradeço a FAPESP, cujo financiamento (Processo nº 2016/07212-1) foi
fundamental para a realização da pesquisa. Também agradeço a instituição pela concessão
da Bolsa de Estágio de Pesquisa no Exterior (BEPE – Processo nº 2019/10919-8).
LISTA DE SIGLAS

ASA Articulação do Semiárido


CAA-NM Centro de Agricultura Alternativa do Norte de Minas
CIPAR Centro Integrado da Pesca Artesanal
CPP Conselho Pastoral da Pesca
CPT Comissão Pastoral da Terra
DDT Diclorodifeniltricloroetano
FAPEMIG Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais
FAPESP Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo
FCP Fundação Cultural Palmares
GPS Global Positioning System
IEF Instituto Estadual de Florestas
IN Instrução Normativa
INMET Instituto Nacional de Meteorologia
INCRA Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
LCP Liga dos Camponeses Pobres do Norte de Minas e Sul da Bahia
LEAEH Laboratório de Educação Ambiental e Ecologia Humana
MPP Movimento dos Pescadores e Pescadoras Artesanais
NIISA Núcleo Interdisciplinar de Investigação Socioambiental
PPGAS Programa de Pós Graduação em Antropologia Social
RTID Relatório Técnico de Identificação e Delimitação
RURALMINAS Fundação Rural Mineira
SEDA Secretaria de Estado de Desenvolvimento Agrário
SPU Secretaria de Patrimônio da União
SUCAM Superintendência de Campanhas de Saúde Pública
SUDENE Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste
TAUS Termo de Autorização de Uso Sustentável
UFSCAR Universidade Federal de São Carlos
UNIMONTES Universidade Estadual de Montes Claros
LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - Mapa da Bacia do Rio São Francisco ................................................................ 42


Figura 2 - Bibi conduz barco no rio São Francisco ............................................................ 53
Figura 3 - Casa da Benção, a casa da acolhida em Croatá ................................................ 60
Figura 4 - Barranco do rio.................................................................................................. 68
Figura 5 - Perfil: Morro do Itapiraçaba-Várzea da Cruz-Gameleira-Sangradouro Grande-rio
São Francisco....................................................................................................................... 69
Figura 6 - Lagoa das Garças durante a seca ...................................................................... 71
Figura 7 - Dinâmica das águas na margem esquerda do rio, entre o Pandeiros e Januária,
com as setas indicando o sentido do fluxo da água ............................................................. 73
Figura 8 - Área de lagadiço ................................................................................................ 75
Figura 9 - Seu Santo na Lagoa da Picada .......................................................................... 76
Figura 10 - Lameiro: terra forte que racha ........................................................................ 78
Figura 11 - Área de vargem ................................................................................................ 80
Figura 12 - Área de vargem em Várzea da Cruz ................................................................ 81
Figura 13 - Dona Olívia observa o rio ................................................................................ 86
Figura 14 - Cheia de 79 no centro da cidade de Januária ................................................... 87
Figura 15 - Mapa etnográfico da margem esquerda do rio São Francisco – Januária........ 98
Figura 16 - Sob a sombra de uma árvore, grupo de pessoas expõem abóboras produzidas
nas vazantes do rio São Francisco ..................................................................................... 101
Figura 17 – Tia Ana, sexta filha do casal Lídia Batista e Eduardo Batista, tratando das
galinhas nas mangueiras, local onde nasceu e morreu aos 98 anos .................................. 105
Figura 18 - Seu Vicente Branco na varanda de sua casa .................................................. 106
Figura 19 - Terreno da Associação Quilombola de Sangradouro Grande ....................... 132
Figura 20 - Anúncios pregados em árvore na comunidade de Croatá .............................. 134
Figura 21 - Dona Rosarinha alimentando suas criações .................................................. 135
Figura 22 - Terreno em Várzea da Cruz ........................................................................... 136
Figura 23 - Casa de enchimento ....................................................................................... 138
Figura 24 - Panelas cuidadosamente areadas e organizadas. Cozinha em Gameleira. ..... 139
Figura 25 - Cozinha de Dona Maria em Croatá ............................................................... 144
Figura 26 - Terreno em Croatá ......................................................................................... 145
Figura 27 - Canteiro de tempero ...................................................................................... 146
Figura 28 - Os Lídia. ........................................................................................................ 155
Figura 29 - Torração da farinha ........................................................................................ 157
Figura 30 - Amelinha abrindo cova na ilha com o espeto................................................ 172
Figura 31 - Seu Zé Bete mostra a “meia quarta” .............................................................. 174
Figura 32 - Exposição de mudas em evento de povos e comunidades tradicionais ......... 178
Figura 33 - Exposição de sementes em evento de povos e comunidades tradicionais ..... 179
Figura 34 - Varanda de casa em Gameleira com diversas plantas ornamentais ............... 181
Figura 35 - Seu Santo com galhos de batata rainha e batata abóbora nas mãos ............... 185
Figura 36 - Dona Olívia plantando muda de pé de umbu ................................................. 224
Figura 37 - Cachorro Osama acompanha movimento das crianças ................................. 230
Figura 38 - Porco criado na corda .................................................................................... 235
Figura 39 - Carro de boi na cidade de Januária ................................................................ 252
Figura 40 - Karol oferecendo carinho ao gado. ................................................................ 265
Figura 41 - Seu Faustino preparando Pioneira para a ordenha. ........................................ 266
Figura 42 - Mulheres em penitência. ................................................................................ 282
Figura 43 - Árvores queimadas pelo sol ........................................................................... 290
Figura 44 - Deterioração da Lagoa das Garças por ações dos fazendeiros ..................... 298
Figura 45 - Algodão de Seda (Calotropis procera) .......................................................... 324
Figura 46 - Erva Cidreirinha do Mato (Lippia alba) ....................................................... 325
Figura 47 - Pé de Seriguela (Spondias purpúrea) ............................................................ 325
Figura 48 - Qualidade de tangerina (Citrus reticulata). Fruto envolto com tecido para
proteção contra o sol. ......................................................................................................... 326
Figura 49 - Pé de Pinha (Annona squamosa) ................................................................... 326
Figura 50 - Atemoia (Annona cherimola Mill x Annona squamosa)................................ 327
Figura 51 - Lagadiço Lambe Beiço (Mimosa pudica) ...................................................... 327
Figura 52 - Pé de Jenipapo (Genipa americana) ............................................................. 328
Figura 53 - Coró de Galo/Esporão de Galo (Vassobia breviflora).................................. 328
Figura 54 - Maçanzeira (Fruta de Ema / Oiti de Ema / Caratinguiba: Licania humilis) .. 329
Figura 55 - Galho de Picão (Bidens pilosa) ..................................................................... 329
Figura 56 - Galho de Muquêm (Albizia inundata)............................................................ 330
Figura 57 - Canafista (Canafístula: Peltophorum dubium) .............................................. 330
Figura 58 - Embaúba (Cecropia angustifólia) ................................................................. 331
Figura 59 - Sabonete (Sapindus saponaria) ..................................................................... 331
Figura 60 - Jatobá (Hymenaea courbaril)........................................................................ 332
Figura 61 - Moleque Duro (Cordia leucocephala)........................................................... 332
Figura 62 - Cipó de Lagartixa (Pyrostegia venusta) ........................................................ 333
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 17

O tema de pesquisa 18
Trabalho de campo e material etnográfico 24
Organização dos capítulos 28

PARTE I – A BEIRA DO RIO 35

Capítulo 1 – Rio e Movimento 36


1.1. “Conversando com o rio” 36
1.2. Experimentar o meio do mundo 49

Capítulo 2 – Cheias e Vazantes 66


2.1. O caminho das águas e o gesto da terra 66
2.2. O rio, sua força e movimento 83

Capítulo 3 – O Tempo de Primeiro 93


3.1. De primeiro a terra era livre 93
3.2. “Cada lugar tem um nomezinho, cada lugar, o pessoal que veio morando” 103
3.3. “Depois veio a divisão” 112

ENTREATO – Considerações a respeito do sistema da beira do rio 121

PARTE II – CONVIVÊNCIA ENTRE VIVENTES 129

Capítulo 4 – Casa, Direito e Parentesco 130


4.1. Caminhos por entre casas e “quintais” 130
4.2. O direito às vazantes, aos lameiros e ao rio 149
4.3. Festas e políticas do parentesco: uma árvore de conexões 154

Capítulo 5 – Pés de Fruta, Pés de Planta, Pés de Árvore e Pés de Pau 171
5.1. Pondo roça 171
5.2. “Isso é um amor de coisa, viu!” 183
5.3. Entre a terra e o céu: os fluidos e as forças da vida 195
5.4. Os pés da memória 215
Capítulo 6 – Animais, Bichos, Criações e o Compadre 227
6.1. Animais, bichos e criações 227
6.2. “O negócio de gado é carinho” 246
6.3. O compadre d’água 268

Capítulo 7 – O Choro das Árvores 280


7.1. O tempo está muito diferençado 280
7.2. Retomar as plantas, amansar o gado e resistir ao tempo 296

CONSIDERAÇÕES FINAIS 302

REFERÊNCIAS 305

ANEXOS 324
Anexo I – Fotografia e identificação de plantas 324
NOTA AO LEITOR

Ao longo desta tese lanço mão do itálico para indicar falas e expressões utilizadas
por meus interlocutores. Esta grafia têm o intuito de destacar os usos conceituais das palavras
e expressões que, apesar de apresentarem a mesma grafia e muitas vezes o mesmo
significado do português usual, podem expressar outros sentidos no contexto em que estão
sendo enunciadas pelos quilombolas. Muitas destas categorias em itálico serão explicadas
no momento em que aparecem; outras, contudo, ficarão claras ao leitor na medida em que
forem apresentadas nos contextos em que são utilizadas pelos quilombolas ribeirinhos.

Exemplos de uso do itálico:


• Quando se referirem a expressões e modos de dizer locais. P. ex.: Ixe.
• Quando as palavras possuem o mesmo significado do português formal, mas
são acionadas por meus interlocutores de maneira não usual. P. ex.: “O rio
come” ou “o rio banha”.
• Quando as palavras, em sua grafia e pronúncia, possuem um significado no
português, mas o sentido atribuído a elas pelos quilombolas é diferente ou,
no mínimo, mais complexo. Em alguns destes casos, as palavras apresentam
seus sentidos mais complexos na medida em que percebemos suas relações
com outras palavras. P. ex.: união e mantimento.
• Quando a palavra existe no português, mas a pronúncia e grafia são
diferentes. P. ex.: panhá ou alembrar.
• Quando não existe palavra similar no português.
• Os nomes dos pés, tal como conhecidos pelos quilombolas, também serão
apresentados em itálico.

As “aspas duplas” também serão usadas quando a ideia for reproduzir integralmente
as palavras e as narrativas dos meus interlocutores. Quando as narrativas ocuparem menos
de três linhas, serão incluídas no corpo do texto. Quando forem mais longas, serão
apresentadas em formato de citação, sem aspas. Para que tais narrativas nativas fiquem mais
compreensíveis ao leitor, poderão ser realizadas algumas interferências por meio da
utilização de [colchetes] – para incluir palavras e informações; e (parênteses) – para incluir
comentários desta pesquisadora. Quando, em meio as narrativas, os quilombolas citarem a
fala de uma terceira pessoa, tais falas aparecerão com aspas duplas (no caso da narrativa em
formato de citação) ou aspas simples (no caso da narrativa apresentadas no corpo do texto).
Desde já, peço paciência ao leitor pois, ao longo da tese, serão apresentadas muitas
narrativas nativas. A opção por este modo de apresentá-las tem o intuito evidenciar a poética
quilombola, presente tanto em suas elaborações sobre o mundo quanto em suas falas.
Todas as narrativas quilombolas apresentadas ao longo do texto serão identificadas
com as devidas referência aos nomes daqueles que as narraram, para que a elaboração
criativa dos meus interlocutores seja respeitada. Estes nomes aparecerão na forma como são
comumente utilizados na convivência cotidiana. Contudo, com o objetivo de preservar a
identidade dos meus interlocutores e resguardá-los frente a possíveis riscos relacionados à
exposição dos seus nomes e informações pessoais, também utilizarei os termos morador e
quilombola em algumas passagens da tese, quando julgar necessário.
INTRODUÇÃO
O tema de pesquisa

Era um domingo de tarde do mês de outubro de 2017, quando os moradores do


quilombo de Sangradouro Grande haviam marcado uma reunião da associação que contaria
com a participação de todos os membros da comunidade. Naquele mesmo dia, algumas horas
antes do início da reunião, eu chegava em Sangradouro Grande. Como de costume, minha
primeira parada é na casa de Dona Olívia, minha amiga e anfitriã durantes minhas estadias
em campo. Juntamente a outros pesquisadores e ao motorista do Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária (INCRA), adentramos o terreno desta moradora com a
caminhonete branca identificada com o logotipo desta mesma instituição. Nossa primeira
parada foi na casa de Maria, irmã de Olívia e que vive em um terreno contíguo ao dela, que
é acessado por meio da mesma tronqueira que dá acesso à casa da minha anfitriã. Como a
primeira casa construída logo após a tronqueira é a de Maria, paramos o carro em sua
proximidade para cumprimentar aqueles que estavam sentados em um toco de árvore,
disposto sob a sombra de uma grande ingazeira. Lá se encontravam a própria Maria, sua
irmã Isaltina e seu primo Ramiro. Nossa visita já era esperada, pois a reunião marcada tinha
como intuito receber os pesquisadores em trabalho para o INCRA, para que estes pudessem
prestar alguns esclarecimentos a respeito dos direitos quilombolas e sobre os procedimentos
a serem adotados nas pesquisas que resultariam na elaboração do Relatório Técnico de
Identificação e Delimitação (RTID) do território de Sangradouro Grande.1 Assim, após
cumprimentarmos os três moradores, seguimos caminhando até a casa de Dona Olívia,
localizada a alguns metros de distância. Em sua casa, Dona Olívia nos aguardava com um
café recém passado. Lá também se reuniam outros moradores, sendo estes Erotides e Peba
– respectivamente, prima e genro de Dona Olívia –, que nos aguardavam para caminharmos
até o local da reunião, que aconteceria nas mangueiras do terreno da associação quilombola.
Antes de seguirmos o caminho que atravessa os terrenos da comunidade, contudo,
paramos para beber o café e comermos do bolo gentilmente preparados pela moradora.
Como já haviam se passado alguns meses desde a minha última visita a esta comunidade,
Dona Olívia me levou para ver as mudanças que havia feito em sua casa, que se tratavam de
novas paredes e portas, onde antes não existiam. Além disso, como nunca havia visto na

1
Falarei adiante sobre as razões da minha estadia em campo junto a estes pesquisadores.

18
beira do rio, minha amiga havia feito uma bancada de madeira separando sua cozinha da
pequena área coberta que costuma ser utilizada como varanda e cômodo de jantar.
Após a breve pausa para o café e a prosa, partimos para o terreno da associação.
Enquanto algumas das moradoras mais velhas, Maria, Isaltina e Erotides, foram levadas pelo
motorista no carro do INCRA, eu e os outros pesquisadores, acompanhados de algumas
crianças, fomos caminhando pela trilha antiga. Ramiro e Peba, por sua vez, optaram por
pegarem a estrada de chão que dá acesso a todos os terrenos da comunidade. Embora o
caminho pela trilha seja mais curto, acabamos chegando por último nas mangueiras, pois,
durante o percurso, tivemos que passar por baixo das diversas cercas que atravessam o
caminho, motivo que retardou a nossa chegada. Ao nos aproximarmos do terreno da
associação pude notar as mudanças que haviam sido feitas por ali, principalmente no que se
refere à incorporação de bancos compridos, feitos com troncos de árvores e dispostos em
formato de círculo para acomodar as pessoas durante as reuniões. Cuidadosamente
organizados, a única cobertura do espaço era a copa das próprias árvores.
Após cumprimentar a todos que já estavam ali reunidos, sentei-me em um destes
bancos enquanto observava a movimentação e as conversas das pessoas. Nesse meio tempo,
acompanhei o diálogo de algumas moradoras que também estavam sentadas em um destes
bancos. O tema da conversa eram as árvores existentes no terreno. Na ocasião, elas discutiam
sobre a espécie daquela sob a qual estávamos abrigados, se tratava-se de um pé de manga
ou de um pau preto. Ramiro, que também acompanhava a conversa, afirmou que se tratava
de um pau preto. Apesar da incrível semelhança entre os dois pés, eu já sabia da resposta
fornecida por Ramiro, pois, anos atrás, quando eu fotografava o pé acreditando se tratar de
um pé de manga, o filho de Ramiro, Gilberto, me explicou que, apesar da maioria dos outros
pés do terreno serem mangueiras, aquele era um pau preto. Apesar da brevidade da conversa,
o tema dos pés não acabou por aí.
Assim que o número de pessoas no terreno da associação passou a ser considerável,
o então presidente da associação, Zé Orlando, e sua esposa, Eva, deram início a reunião.
Como de costume, tanto em Sangradouro Grande quanto em outras comunidades, estas
reuniões começam com a reza de uma oração do Pai Nosso que é, algumas vezes,
acompanhada de uma Ave Maria. Após puxarem a oração, Zé Orlando abriu a conversa com
todos através de uma metáfora muito interessante sobre as árvores, suas raízes, troncos e
ramas. Como uma forma de destacar a importância da participação de todos os moradores
nos assuntos coletivos da comunidade, em linhas gerais, ele tentava dizer que a comunidade

19
era uma árvore e que cada membro compunha sua totalidade, sendo a raiz a família dos Lídia
e o tronco, o restante do povo unido. Segundo ele: “se não fosse pela raiz, o tronco não fica
em pé, porque é pela raiz que o tronco vai criando ramas”. Assim, ele argumentava que é o
trabalho conjunto que pode gerar ramas. Além disso, completou dizendo que “uma
associação de quilombola que tem uma raiz, quando você mexe na raiz, o tronco cai, então
você não pode mexer em uma raiz”.
A metáfora utilizada por Zé Orlando logo no início da reunião era uma forma de
apaziguar certos conflitos dentro própria comunidade que, embora não sejam tensos a ponto
de implodir as relações estabelecidas entre os próprios moradores, podem provocar certos
desentendimentos que, por sua vez, acabam caindo nas mãos do presidente, que precisa usar
de suas habilidades de liderança para solucioná-las. Estes desentendimentos cotidianos
acabam tendo as reuniões da associação como palco para resolução. Naquele dia,
considerando a presença dos pesquisadores, o presidente tentava usar de suas habilidades
para evitar que os moradores usassem o momento da reunião para resolverem suas questões
internas. Tentativa que acabou sem sucesso, pois a todo momento os moradores traziam à
tona suas questões, que envolviam, de maneira indissociável para eles, os direitos
quilombolas apresentados pelos pesquisadores e as questões da vida cotidiana na roça. Os
pesquisadores, por sua vez, precisavam usar de todo o seu tato para conectar os assuntos
apresentadas pelos moradores com o tema dos direitos quilombolas. Entre os assuntos que
emergiram naquela reunião, os principais se referiam ao cultivo das roças e à criação do
gado. Isto porque, dada a pouca disponibilidade de terra que as famílias possuem para
exercerem suas atividades, o gado daqueles que criam acaba, ocasionalmente, invadindo as
roças de outros.
Um dos primeiros a se manifestar foi Seu Evaldo que, enquanto quilombola, dizia
querer terra para poder trabalhar nela, isto é, plantar, colher, criar galinhas, porcos e um gado
para “poder tomar um leite”. Já Seu Faustino, dizia que nos últimos sete anos, desde que os
moradores retomaram o território, não conseguiu colher quase nada “dentro da terra”.
Embora plante todo ano, as perdas de semente têm, segundo ele, sido frequentes. Ao dizer
isso, explicou que se não fosse suas “vaquinhas” e o leite que elas fornecem, não teria do
que viver. O que estes dois, e também outros moradores, tentavam explicar é que, apesar dos
problemas causados pelo gado, a vida na roça sem estas criações, considerando o período
de estiagem pela qual tem passado a região, se torna insustentável. Aqueles que tiveram suas

20
roças invadidas pelo gado não discordavam, mas enfatizavam a importância da utilização
das cercas para evitar estes aborrecimentos.
Após a diversas manifestações dos moradores, o presidente retomou a palavra para
fazer suas observações. Em sua análise:

Quando fala de quilombo, a gente vai muito além do que a gente entende
de quilombo, então é muito importante a gente ouvir de pessoas que sabem
verdadeiramente o que é um quilombo. Porque, pelo que eu entendo,
quilombo tem limite. Quilombo não é deslimitado. Eu tenho limite de
quantas cabeças de gado eu tenho que permanecer ali, que é para mim tirar
o sustento da minha família. Não quer dizer que é só com roça, é com gado,
é com porco, é com galinha. Mas tudo tem um limite. Já fala quilombo
porque é uma família, nós somos uma família. E quando nós somos uma
família, uma família não prejudica um outro irmão. E nós somos irmãos.
Nós somos uma irmandade de quilombola. E quando nós somos uma
irmandade de quilombola, eu não posso prejudicar o Peba, nem a irmã
Maria, nem a irmã Isaltina, nem o Seu Faustino. Então o quilombo, eu acho
assim, é nesse sentido de união. Quando nós trazemos para o lado de união,
tudo dá certo. Agora se nós levarmos: eu puxo para um lado, Seu Faustino
puxa para o outro, a irmã Olívia puxa para o outro, o Peba, como a gente
conhece, puxa para o outro lado, aí não tem para onde nós chegarmos em
um quilombo. É porque falta união. Falta um pouco mais de querer, um
pouco mais de verdadeiro povo tradicional, do que eu quero para mim. O
que eu quero para mim eu quero para o Seu Faustino, o que eu quero para
Seu Faustino eu quero para Dona Isaltina, eu quero para o Gustavo. Mas
do momento que eu penso em mim, aí eu estou longe de ser um quilombo.
Que eu tenho que pensar no coletivo, até o meu pensamento tem que ser
coletivo. Eu tenho que pensar na dor de todo mundo, eu tenho que pensar
no querer de todo mundo. Eu quero plantar minha roça? Quero! Mas Seu
Faustino tem que criar o gado dele. Seu Faustino tem que criar o gado dele,
mas tem que saber que eu vou plantar minha roça. Entendeu? Então eu
estou ajudando ele e ele está me ajudando. Eu estou pensando por ele e ele
também pensando por mim (Zé Orlando, Sangradouro Grande, 2017).

Na sua narrativa, o presidente da associação expõe suas reflexões sobre o que é ser
quilombo, que, segundo ele, envolve criar, plantar e manter a união entre as pessoas. Uma
união que é intermediada pela relação com as plantas e bichos. Assim como pude presenciar
na reunião da associação de Sangradouro Grande – e isso tanto nas falas dos moradores
quanto nas reflexões de Zé Orlando –, ao longo do trabalho de campo da pesquisa de
doutorado foi notável o quanto a vida dos quilombolas ribeirinhos é permeada por relações
que ultrapassam aquelas unicamente entre humanos, uma vez que os animais e as plantas
cultivadas nas roças permeiam e mediam estas relações. A união e as ajudas, de que fala Zé
Orlando, não seriam possíveis ou, ao menos, não fariam sentido sem a intermediação destes

21
viventes. Nesta tese, como veremos, as reciprocidades e parentescos, importantes tópicos da
vida na beira do rio, também levam em consideração estas agências não humanas.
Além disso, os engajamentos dos moradores com as próprias plantas e animais são
bastante intensos e dizem muito sobre o próprio modo de vida dos meus interlocutores. Por
essa razão, as discussões a serem realizadas ao longo da tese combinam sempre algo sobre
não humanos com algo sobre humanos, uma vez que falar de um leva a falar de outro. Se
olhar para os animais, por exemplo, pode nos ensinar sobre reciprocidade, olhar para as
plantas pode nos ensinar sobre parentesco. Portando, para compreender a vida dessas
comunidades quilombolas no norte mineiro, é fundamental olhar para o conjunto
multiespecífico de suas interações com um conjunto de viventes não humanos com os quais
estão estórica e cotidianamente engajados.2
A primeira vez que me deparei com estas agências não humanas foi ainda durante a
realização da pesquisa de mestrado, realizada também entre os moradores da comunidade de
Sangradouro Grande, momento quando comecei a ouvir referências constantes às árvores,
principalmente aos pés de manga presentes no terreno da associação. Como pretendo
mostrar ao longo dessa tese, estes pés contam estórias, a estória dos quilombolas ribeirinhos
e de suas relações com o lugar.
Embora meus interesses acadêmicos naquele momento fossem outros, já vinha
ouvindo diversas narrativas que faziam referência às árvores frutíferas e também aos outros
tipos de pés existentes no lugar. Os enunciados sobre as plantas apareceram no momento em
que eu tentava compreender a organização política dos moradores e suas estratégias de luta
e resistência para permanecer na terra.3 Por meio daqueles primeiros contatos pude perceber
que, no dia-a-dia dos moradores, as questões relacionadas à luta pela terra ou às outras
formas de fazer política, não eram o assunto principal das conversas cotidianas. As lutas,
entretanto, das quais se ouvia falar, eram as lutas relacionadas às labutas diárias da vida. Isto

2
A opção pelo uso da palavra estória, ao invés de história, é inspirada em João Guimarães Rosa. Em seu livro
de contos, Tutaméia, o escritor diz: “a estória não quer ser História. A estória, em rigor, deve ser contra a
História”. Conforme será apresentado na tese, a atenção ao termo estória está relacionada à categoria nativa
estórica, que se refere, em termos gerais, à uma história que não é construída apenas pela agência humana, mas
considera também as agências de outros viventes.
3
Durante minha pesquisa de mestrado estava interessada em compreender as estratégias mobilizadas pelos
habitantes de Sangradouro Grande para assegurarem seus direitos territoriais. Através deste enfoque, pude
compreender que a atuação política dos moradores acontece em diversos espaços dentro e fora da comunidade
– em reuniões, cursos de formação e outros eventos – nos quais eles se encontram para debater pautas sobre
direitos, conflitos e estratégias de luta. Suas participações nestes eventos são importantes para, de acordo com
os quilombolas, manjar os processos e afinar os discursos. Para uma descrição aprofundada deste tema, ver
Acypreste (2015).

22
porque grande parte do cotidiano dos moradores é dissolvido pelos afazeres domésticos, o
trabalho na roça e o cuidado com as plantas e os animais.
Embora tenha presenciado, durante o trabalho de campo, reuniões, encontros e outros
deslocamentos dos meus interlocutores por entre os espaços de luta política, o que mais
acompanhei foram as caminhadas por entre as trilhas que atravessam a mata e que conectam
uma casa à outra. Estes caminhos eram feitos pelos moradores para realizarem suas visitas
aos parentes dispersos pela localidade ou para panhá os frutos dos pés de fruta.
Frequentemente acompanhava também as crianças: junto com elas, suas sacolas, baldes e
carrinhos de mão, caminhava no meio do mato (que corresponde, na glosa local, à vegetação
nativa) para colher pitomba, manga e outros frutos debaixo do pé. As frutas colhidas serviam
tanto para a própria alimentação como para a alimentação dos bichos, sendo assim,
indispensáveis para a vida na roça. Como afirmou certa vez Seu Arnaldo, da comunidade de
Croatá:

Uma importância muito grande que nós temos são as árvores, as raízes,
cozinhar, fazer preparamento para nós tomarmos para gripe, resfriado,
problema de desinteria. Nesta parte nós usamos muito e convivemos daqui
mesmo (Seu Arnaldo, Croatá, 2017).

Como explica o morador, citado acima, as plantas, localmente denominadas enquanto


pés de fruta, pés de planta, pés de árvore e pés de pau, além de terem “uma importância
muito grande”, são de convivência das pessoas. Estas experiências de pesquisa iniciais na
beira do rio, portanto, fizeram com que eu me atentasse para a convivência com os pés e
buscasse refletir com mais profundidade sobre a importância deles no cotidiano dos
quilombolas ribeirinhos.
O interesse quilombola – e também o meu – pelas plantas, também me fez ver um
mundo de conexões existentes entre estes seres e os outros diversos viventes da beira do rio.
Desse modo, estando profundamente entrelaçadas com a forma com que os quilombolas
ribeirinhos compreendem a paisagem, a proposta desta tese é descrever estas diferentes
conexões que as plantas estabelecem com a vida daqueles que, juntamente a elas, coabitam
a beira do rio. Assim, estas “coisas maravilhosas” ou “amores de coisa”, como dizem meus
interlocutores sobre as plantas, nos servem aqui não apenas como ponto de partida, mas
também como fio condutor que conecta as diferentes discussões que compõem a tese, que
trata da convivência dos quilombolas ribeirinhos com o mundo vivente da beira do rio.
Tal como as reuniões não estão livres de alguma tensão, mesmo quando contam com

23
a participação de pessoas “de fora”, a vida compartilhada com os outros viventes da beira do
rio também não está. Conforme apontaram alguns moradores durante a reunião da
associação, sobre a necessidade da criação do gado como forma alternativa de lidar com o
período de estiagem, nesta tese também busco compreender como se dá a relação com os
viventes diante destas mudanças. Como dizem os quilombolas ribeirinhos, o tempo, estórico
e climático, tem mudado bastante. Neste caso, os viventes e seus comportamentos também
são importantes indicadores destas mudanças. Assim, dando atenção às observações
constantes dos meus interlocutores em relação aos viventes, procurarei mostrar como os
quilombolas ribeirinhos compõem com eles nas suas formas de lidar com estas mudanças.

Trabalho de campo e material etnográfico

Minha experiência de pesquisa nas margens do rio São Francisco se iniciou há um


longo tempo atrás, quando, ainda na graduação em Ciências Sociais, participei como bolsista
de um projeto de extensão da Universidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES).
Vinculado ao Laboratório de Educação Ambiental e Ecologia Humana (LEAEH) do
Departamento de Biologia da UNIMONTES, o Centro Integrado da Pesca Artesanal
(CIPAR) tinha como objetivo realizar atividades de pesquisa e capacitação com enfoque no
fortalecimento da cadeia produtiva da pesca e da gestão compartilhada dos recursos
pesqueiros no Alto e Médio São Francisco. Além disso, o projeto também promovia ações
de incentivo à economia solidária, com o objetivo de garantir a sustentabilidade
socioambiental da pesca artesanal no Velho Chico. A participação neste projeto permitiu
minha aproximação com o modo de vida dos pescadores artesanais das cidades de Pirapora,
Buritizeiro, Ibiaí e do distrito de Barra do Guaicuí (pertencente ao município de Várzea da
Palma). Tais experiências, que também incluíram a realização de uma etnografia que
culminou na produção de uma monografia de conclusão de curso 4, levaram-me a
compreender algumas das questões implicadas na relação entre os pescadores e o rio.
Por outro lado, além da participação no CIPAR, minha relação com o São Francisco
é ainda anterior à minha inserção na universidade. Desde a minha infância vivida em

4
A monografia (ACYPRESTE, 2012) teve como objetivo discutir o trabalho feminino na pesca artesanal nos
municípios de Pirapora e Buritizeiro.

24
Pirapora, uma cidade ribeirinha, tenho uma proximidade com a linguagem e com o jeito
próprio de ser barranqueiro(a), categoria generalizante e comumente utilizada para
identificar os moradores da beira do rio São Francisco. É certo que nunca me dediquei às
atividades de pesca, vazante ou a outras práticas de trabalho relacionadas ao rio, como fazem
os quilombolas com os quais esta pesquisa foi realizada, mas o fato de ter nascido e ter sido
criada na região me permite estabelecer uma relação de proximidade com diversos aspectos
apresentados a mim pelos quilombolas ribeirinhos. Apesar desta ligação, a experiência de
pesquisa etnográfica nas margens do São Francisco me trouxe a possibilidade de enfrentar o
desafio de olhar com rigor metodológico para aquilo que me era tão familiar em diversos
aspectos e também descobrir coisas inimagináveis sobre esse mesmo mundo com o qual eu
estava de alguma maneira habituada.
Após a graduação, em 2014 pude descer as águas do rio até o município de Januária,
onde iniciei uma pesquisa junto aos moradores de Sangradouro Grande, que culminou na
escrita da minha dissertação de mestrado (ACYPRESTE, 2015). A partir desse contato
inicial com os moradores desta comunidade retornei para a realização do trabalho de campo
para minha pesquisa de doutorado, que ocorreu entre os anos de 2016 e 2018 e se dividiu em
quatro incursões. Tais incursões, em seu conjunto, totalizaram cerca de oito meses. A
primeira delas ocorreu no segundo semestre de 2016, entre os meses de agosto e novembro.
A segunda, no mês de abril de 2017 e, no mesmo ano, a terceira, que ocorreu entre setembro
e novembro. O último período de campo, ocorreu entre fevereiro e maio de 2018.5
Durante o período referente à primeira etapa do trabalho de campo, em julho de 2016,
fui convidada para colaborar no projeto “Dinâmicas socioambientais na bacia média do rio
São Francisco mineiro: identificação e caracterização de terras tradicionalmente ocupadas
por povos e comunidades tradicionais”, conduzido pelo Núcleo Interdisciplinar de
Investigação Socioambiental (NIISA) da UNIMONTES. O projeto foi realizado por meio
de uma cooperação técnica entre a Secretaria de Estado de Desenvolvimento Agrário de
Minas Gerais (SEDA) e a UNIMONTES, sendo apoiado pela Fundação de Amparo à
Pesquisa de Minas Gerais (FAPEMIG). Seu objetivo foi desenvolver estudos em
comunidades ribeirinhas da baixada média do rio São Francisco, no intuito de “subsidiar
científica e tecnicamente processos de reconhecimento e regularização fundiária de

5
Estava prevista ainda mais uma viagem a campo, que aconteceria nos primeiros meses de 2020. No entanto,
devido à pandemia da COVID-19, esta etapa precisou ser cancelada, a fim de resguardar a saúde de todos os
envolvidos.

25
territórios tradicionais em áreas da União, em terras devolutas e particulares no Estado de
Minas Gerais” (ANAYA, 2015, p. 8), considerando os contextos “de conflitos ambientais
territoriais que envolvem diversos grupos sociais na região, e a busca pela proteção de seus
modos de vida e patrimônio material e imaterial, conforme previsto na constituição federal”
(ACYPRESTE et al., 2018, p. 9).6
O Projeto DS São Francisco tinha como previsão o desenvolvimento das atividades
de pesquisa para ocorrerem na comunidade quilombola de Caraíbas e na Ilha da Capivara,
situadas no município de Pedras de Maria da Cruz. Contudo, teve suas atividades expandidas
para outros quilombos, pois, segundo os moradores desta localidade, as experiências
vivenciadas por eles eram similares àquelas vividas em outras comunidades vizinhas.7 A
incursão nas outras comunidades situadas no município de Januária, portanto, se deu a partir
da recomendação dos próprios moradores locais. Sangradouro Grande foi um dos lugares
sugeridos pelos quilombolas de Caraíbas. O convite feito a mim para integrar a equipe do
Projeto DS São Francisco partiu dos meus próprios conhecidos de Sangradouro Grande,
devido à minha experiência etnográfica anterior juntamente a eles. Assim, as duas primeiras
etapas da pesquisa envolveram o retorno do meu contato com os moradores desta
comunidade através do trabalho de campo, que aconteceu juntamente com a presença de
outros pesquisadores do Projeto DS São Francisco.
A oportunidade de retornar a Sangradouro Grande e de conhecer outras comunidades
circunvizinhas nos fez perceber os vínculos que estes coletivos estabelecem entre si e a
importância destes vínculos para a compreensão de seus modos de viver no lugar. Os
moradores reconhecem as áreas onde vivem como um território sozinho, ou único e
contínuo. Isto porque, como veremos ao longo da tese, a paisagem que os quilombolas
habitam os impele a se movimentarem entre estas áreas. Além da paisagem, as relações de
parentesco e amizade que as pessoas estabelecem entre si também são importantes para
compreendermos este território sozinho. Durante a pesquisa pude ouvir diversas narrativas
que enfatizam relações, passadas e presentes, que vinculam os moradores destas
comunidades entre si, seja pelo parentesco, pela circulação das pessoas através dos festejos

6
Para não tornar o texto repetitivo, daqui em diante irei me referir a este projeto como Projeto DS São
Francisco.
7
A zona rural do município de Januária se configura a partir de uma constelação de comunidades dispersas
dentro dos seus limites. Segundo dados levantados por Jaques (2011), existem aproximadamente 86
comunidades rurais no município. Entre estas, 27 já foram certificadas pela Fundação Cultural Palmares (FCP)
enquanto remanescentes de quilombos. Deste contingente, 25 comunidades estão com seus processos
administrativos de regularização fundiária abertos no INCRA.

26
religiosos (Folia de Reis e Dança de São Gonçalo, que são marcados pelo samba, batuque e
lundum), pelas buscas por locais de moradia causadas pelos movimentos de cheias e secas
do rio, pela circulação dos outros viventes, como as plantas e os animais ou, ainda, pelas
experiências comuns de expropriação territorial.
Assim, ao realizarmos esta pesquisa em Sangradouro Grande, outras relações com
outras comunidades quilombolas emergiram e foram consideradas importantes para se
compreender estes territórios quilombolas da beira do rio. Entre elas, as comunidades de
Croatá, Várzea da Cruz e Gameleira. Em meio a realização das pesquisas de campo e da
elaboração das primeiras reflexões escritas sobre estes contextos etnográficos, em agosto de
2017, foi firmado um acordo de cooperação técnica entre o INCRA-MG e a UNIMONTES
para a confecção dos relatórios antropológicos de Croatá, Gameleira, Sangradouro Grande,
Várzea da Cruz, Ilha da Capivara e Caraíbas. Os laudos, já concluídos, foram conduzidos
pela mesma equipe de pesquisadores do projeto DS São Francisco (ARAÚJO et al., 2019),
com o qual eu pude contribuir através do trabalho de campo e da escrita dos relatórios de
pesquisa do projeto (ACYPRESTE et al., 2016; ACYPRESTE et al., 2018). Tais relatórios
são importantes fontes a serem utilizadas ao longo das discussões desta tese.
No decorrer das etapas da pesquisa intercalei minha estadia entre estas comunidades
e a cidade de Montes Claros (MG), onde mantive diálogo com os pesquisadores do Projeto
DS São Francisco (entre eles, antropólogos, sociólogos, agrônomos, biólogos e geógrafos),
levantando material bibliográfico e participando das reuniões, o que me permitiu descortinar
diversas informações a respeito da situação fundiária destes coletivos, percebendo, desde o
início, experiências similares entre eles no que se refere aos acontecimentos históricos e
políticos, mas também me atentando para as especificidades de cada comunidade.8
Seja estando sozinha ou na companhia de outros pesquisadores, o trabalho de campo
incluiu períodos nas comunidades da beira do rio e nos municípios de Januária e Pedras de
Maria da Cruz. Estive também, em ocasiões específicas, em outros municípios do Norte de
Minas, como Manga, Matias Cardoso e São João da Ponte. Nestes momentos acompanhei
eventos, reuniões e atos públicos em defesa dos direitos dos povos e comunidades
tradicionais que vivem nas margens do rio São Francisco.9

8
O projeto finalizou parte de suas atividades em junho de 2018 com a entrega dos Relatórios de Pesquisa
(ACYPRESTE et al., 2016; ACYPRESTE et al., 2018) à SEDA e à FAPEMIG.
9
As etapas de pesquisa me permitiram reunir um conjunto considerável de material etnográfico. Pude realizar
inúmeras anotações em meus cadernos de campo, coletar fotografias e gravar áudios das conversas realizadas
com os quilombolas ribeirinhos, além do assíduo trabalho de escrita dos diários de campo. Após a organização
e sistematização deste material, elaborei um “Caderno de Campo de Pesquisa”. Desse material foram retirados

27
Desse modo, durante a pesquisa fui alcançando uma compreensão mais profunda a
respeito de como são estabelecidas as relações entre estas comunidades, sobretudo no que se
refere às transformações políticas que ocorreram na região e que implicaram, por sua vez,
em transformações na paisagem e nas relações entre os próprios coletivos e, entre estes e os
outros viventes que ali habitam. Portanto, juntamente aos pesquisadores do Projeto DS São
Francisco, deixei-me levar pelas trilhas, caminhos, carreiros e estradas de chão que
conectam uma localidade à outra e, como resultado, o próprio campo acabou definindo os
locais privilegiados da pesquisa. Assim, o conjunto de dados etnográficos apresentados nesta
tese é referente às comunidades de Sangradouro Grande, Croatá, Várzea da Cruz e Gameleira
– todas elas localizadas na margem esquerda do rio. Uma vez que as relações de parentesco
e amizade são importantes para os quilombolas ribeirinhos, elas também contribuíram para
a entrada em campo e para a definição dos locais de pesquisa, pois, chegar em uma
determinada comunidade já sendo conhecida ou amiga de alguém, é um dos aspectos que
facilitam a vida de uma pesquisadora que pretende realizar trabalho de campo na beira do
rio. Compreendendo a importância das relações de amizade e parentesco para meus
interlocutores, optei por utilizá-las como ferramenta de pesquisa e realizar minhas estadias
onde estas relações me permitiriam obter uma melhor acolhida, pois, na medida em que
desenvolvia minha pesquisa, também ia fazendo amizades com os moradores.
Ampliar a pesquisa para outros quilombos, já que o campo estava inicialmente
previsto para ser realizado apenas em Sangradouro Grande, também foi importante do ponto
de vista do tema desta pesquisa, pois as relações entre estas diferentes comunidades se dão
por meio das relações de parentesco e, como pretendo discutir na tese, as plantas estão
conectadas aos parentes antigos e ao território. Desse modo, seguir os parentescos me levou,
inevitavelmente, a seguir as plantas. Da mesma forma, observar os modos de reciprocidade
entre estes coletivos, me fez ver a reciprocidade com os outros viventes.

Organização dos capítulos

os dados apresentados na tese. Outra relevante fonte de dados é o conjunto de materiais produzidos no âmbito
do Projeto DS São Francisco. Durante a sua execução, em conjunto com as outras pesquisadoras, foi constituído
outro “Caderno de Campo”, onde estão reunidas entrevistas transcritas, relatos de campo e imagens. Ao longo
da tese, a referência a estes materiais do “Caderno de Campo” do Projeto DS São Francisco será informada.

28
Ao desenvolver a pesquisa em quatro comunidades quilombolas, uma pergunta se
fez necessária: o que constitui tais comunidades enquanto um campo etnográfico? Tendo
esta questão em mente, procurei observar atentamente as muitas conexões entre elas. Como
mencionei anteriormente, os próprios quilombolas destacam os vínculos estabelecidos entre
os moradores de cada uma destas comunidades. A ampla rede de relações de amizade e
parentesco entre as pessoas possivelmente já é razão o suficiente para estabelecer Várzea da
Cruz, Gameleira, Sangradouro Grande e Croatá enquanto um campo etnográfico. Contudo,
duas questões ainda permanecem. A primeira delas diz respeito ao fato de que esta rede de
relações ultrapassa estas quatro comunidades, podendo se estender amplamente, não apenas
nos limites da cidade de Januária, mas também incluindo outras cidades e estados por onde
os quilombolas circulam ou possuem parentes. A segunda questão está relacionada com as
condições e aspectos que permitem ou impulsionam os moradores a estabelecerem estas
relações. Com base nestas questões, passei a me atentar para a expressão “beira do rio”
enquanto uma paisagem (INGOLD, 2000; TSING, 2019) que permite o estabelecimento e a
permanência da conexão entre as pessoas e viventes. Nesta paisagem, portanto, a rede de
conexões ultrapassa não apenas o domínio do social, que é responsável pela conexão de
diferentes grupos de pessoas de lugares distintos, mas também o domínio do humano, pois
conecta pessoas e outros viventes.
Ao tomar a paisagem da beira do rio como o campo etnográfico, não ignoro a
importância do território na vida e nas lutas dos quilombolas ribeirinhos. Como já
mencionei, recentemente, em 2019, as quatro comunidades tiveram seus Relatórios Técnicos
de Identificação e Delimitação (RTID’s) concluídos. Em tais relatórios podemos encontrar
a proposta de delimitação dos territórios a serem reivindicados e titulados por cada uma
delas. Contudo, optei por não circunscrever as relações e convivências dos quilombolas
ribeirinhos à tais fronteiras territoriais oficiais. Por essa razão, mesmo reconhecendo a
importância dada pelos quilombolas ribeirinhos ao território, meu objetivo é olhar para as
conexões que extrapolam fronteiras. Nesse sentido, a noção Ingoldiana de paisagem me
parece mais apropriada.
Para Ingold (2000), a paisagem não é composta por objetos e componentes
autocontidos que interagem uns com os outros por algum tipo de contato externo. Ao
contrário, cada objeto ou componente “engloba em sua essência a totalidade de suas relações

29
com todos e cada um” (INGOLD, 2000, p. 191)10. A paisagem também não implica em
segmentação espacial, em que uma parte poderia simplesmente ser recortada. Neste caso,
olhar e entender a paisagem implica em se atentar para os nexos dentro dela. Nem mesmo
as características de uma paisagem, como rios e cercas, poderiam ser tomadas como
fronteiras. A única possibilidade, reconhecida por Ingold (2000), que poderia funcionar
como indicadora de um limite são as atividades das pessoas ou animais – entre outros agentes
– por quem a paisagem é reconhecida, constituída e experimentada enquanto tal. Portanto, a
paisagem é ela mesma “o mundo como ele é conhecido por aqueles que o habitam, que
habitam seus lugares e os caminhos que os conectam” (INGOLD, 2000, p.193)11. Refletir
junto com Ingold (2000), enquanto realizava a pesquisa etnográfica na beira do rio, me
apresentou outras possibilidades de pensar as comunidades quilombolas e suas
territorialidades, deslocando o olhar para a paisagem, isto é, esse conjunto de processos que
acontecem ao longo do tempo e que envolvem a ação ressonante entre os diversos seres,
animados e inanimados, nos seus encontros.
Por outro lado, entendo o território a partir daquilo que foi elaborado por Godoi
(2014), como um esforço de um grupo para gerir e controlar uma determinada área. Por essa
razão, é impossível negar a importância do território para os quilombolas ribeirinhos, pois é
o que torna viável a gestão e o controle dos seus lugares de vida diante das tentativas
constantes de outros agentes de expulsá-los da terra. Mas, se pensarmos, por exemplo, que
as relações de parentesco são um componente dessas territorialidades, no caso da beira do
rio elas são extensas demais para que fosse possível definir, a partir delas, os limites destes
territórios quilombolas.12 E, se pensarmos estas relações de parentesco como redes, seria
interessante uma conexão com as reflexões elaboradas por Strathern (2014a), que discute
criticamente a noção latourniana de redes. Após apresentar alguns exemplos etnográficos em
sua discussão, a autora conclui que a “posse”, e “seu efeito duplo, como questão
simultaneamente de pertencimento e de propriedade” (STRATHERN, 2014a, p. 319), é a
responsável pelo corte da rede. Se seguirmos a argumentação de Strathern (2014a), é

10
Para poupar o leitor de um texto carregado, opto aqui por manter, no corpo do texto, a tradução, feita por
mim, das citações de obras em inglês. Em nota, o leitor poderá ler o trecho citado na língua original. Neste
caso, responsabilizo-me integramente pelos possíveis equívocos de tradução. Para este trecho citado, conforme
Ingold (2000, p. 191), “enfolds within its essence the totality of its relations with each and every other”.
11
“The landscape is the world as it is known to those who dwell therein, who inhabit its places and journey
along the paths connecting them” (INGOLD, 2000, p.193).
12
Ao falar de territorialidade, tomo como ponto de partida as elaborações de Gallois (2004), que afirma que
todo grupo possui um senso de territorialidade, e de Godoi (2014), para quem territorialidade “é plural, uma
vez que se reporta (...) a processos de construção de territórios” (GODOI, 2014, p. 9).

30
compreensível que haja um esforço dos quilombolas para deter a “posse”, mesmo que isso
signifique cortar ou deixar para fora outros componentes, viventes e relações. Porém, para
Strathern (2014a, p. 319), é “o estabelecimento de uma condição de proprietário” que
“garante que elas sejam cortadas do tamanho certo” ou, pelo menos, de maneira mais
conveniente possível. É isso que fazem os quilombolas quando, mesmo falando de suas
extensas relações com diferentes lugares e viventes, lutam pelo reconhecimento e titulação
dos seus territórios.
A mesma reflexão vale para mim, enquanto autora do texto. As noções de “corte” e
“posse” também foram usadas metodologicamente para constituir ou recortar um campo a
ser apresentado e discutido, que, neste caso, é a paisagem da beira do rio. Contudo, espero,
a partir da noção de paisagem, ampliar concepções estreitas sobre o que é um território,
fazendo emergir as relações entre pessoas, plantas, bichos, lagoas, vazantes com os quais os
quilombolas ribeirinhos convivem. Como argumenta Tsing (2019, p. 17), a paisagem é uma
ferramenta analítica para observar os “padrões de atividade humana e não humana”, pois ela
é um arquivo destas atividades do passado.
Portanto, para que seja possível uma descrição sobre a paisagem da beira do rio e
das relações entre as vidas que acontecem ali, a tese está estruturada em duas partes, sendo
elas: a Parte I – A Beira do Rio; e Parte II – Convivência entre viventes.
Partindo das reflexões dos dois autores, Ingold (2000) e Tsing (2019), busquei
elaborar a Parte I desta tese, que tem por objetivo apresentar a paisagem da beira do rio,
dando atenção principalmente ao seu aspecto estórico, mas sem deixar de descrever sua
formação “geográfica”, que é produzida, como explicam os quilombolas ribeirinhos, pela
agência do rio. Neste cenário de conexões existentes na beira do rio, a serem apresentados
na primeira parte da tese, o rio é o ator principal, responsável pela produção de estóricas, de
relações e da própria terra. Esta primeira parte da tese, portanto, se constitui por três
capítulos, nos quais procuro apresentar a centralidade que o rio tem na vida daqueles que
habitam suas margens. Longe de ser pensado apenas como algo inerte, o rio é vivo, tem sua
agência própria e também é palco para uma diversidade de práticas e estórias.
No Capítulo 1, intitulado “Rio e Movimento”, busco apresentar o povo da beira do
rio, principalmente no que se refere aos aspectos de movimento através dos quais se
constituem suas vidas. Como procuro mostrar, o movimento é algo inerente à vida na beira
do rio, pois, assim como as águas do rio, as pessoas estão sempre se movimentando,
acolhendo aqueles que chegam, se casando ou cascando fora quando o momento propicia

31
tais escolhas. A proposta neste capítulo é, portanto, apresentar as pessoas e como elas se
movimentam para ou ao longo do rio, onde estabelecem seus modos de relação específicos.
Se trata de uma primeira abordagem sobre as pessoas, mas também sobre o rio e como, nesse
encontro, eles produzem, juntos, um modo ou sistema de ser e de se relacionar.
Mas se as pessoas se movimentam, elas não são as únicas, pois as águas do rio
também se movimentam. O rio, como veremos, não cria apenas condições para a
constituição de um sistema, ele cria as condições para a própria vida dos quilombolas e dos
outros viventes. Por essa razão, no Capítulo 2, veremos como o rio, com toda sua força,
corre, vai, vem, passa, escoa, caminha, roda, sobe, desce, joga, banha, lava e toma conta de
vários lugares, criando terras e também propiciando a renovação das mesmas, além de
produzirem efeitos na vida dos quilombolas ribeirinhos e dos outros viventes, na medida em
que estes, nos períodos de grandes enchentes, precisam se movimentar para os altos para se
protegerem, levando consigo suas criações. Através das descrições sobre as relações entre
terra e água, sobre a formação das áreas e sobre a força do rio, busco mostrar como o rio é,
se não ele próprio um vivente, um dos grandes responsáveis pela produção do mundo vivente
da beira do rio a partir de seus encontros com outras águas, com a terra, com as pessoas,
com os animais e com as plantas. Um mundo que atualmente se encontra em ameaça devido
às mudanças no rio, que vem perdendo sua força nas últimas décadas.
Tendo discutido sobre a importância do rio tanto para a constituição da paisagem
quanto para a constituição do sistema, da vida do povo e dos viventes, procurei, no Capítulo
3, descrever os aspectos históricos da constituição desta paisagem. Nesta última seção,
portanto, busco realizar uma descrição da paisagem tendo como referência a categoria tempo
de primeiro, que é o tempo alcançado pelas pessoas do lugar e do qual elas partem para
descrever suas relações estóricas com a beira do rio. A partir destas descrições, procuro
descrever como, estoricamente, diferentes pessoas e famílias que viviam espalhadas pelos
lugares, antes identificados por uma lagoa, por uma vazante, por uma vargem ou por um pé
de árvore, passaram a viver em lugares próximos e a se constituir enquanto comunidades.
Após realizar estas incursões espaciais e temporais pela paisagem da beira do rio,
interessa na Parte II descrever como este mundo vivente da beira do rio se desenrola
cotidianamente a partir das interações e relações entre pessoas e entre estas e os outros
viventes, sendo viventes um termo nativo que diz sobre aqueles seres com capacidades
sensíveis, que inclui tanto humanos como não humanos. Para tanto, cada capítulo é dedicado
à uma destas interações multiespecíficas, onde procuro me atentar para as convivialidades

32
cotidianas entre os diferentes seres. Se na primeira parte vimos, principalmente, a agência
do rio e dos quilombolas na constituição da paisagem, nesta segunda parte procuro trazer
mais intensamente a agência dos outros viventes, sendo estes as plantas, os astros celestes,
os bichos e o compadre. Nesta segunda parte também busco descrever a forma como meus
interlocutores tem percebido as mudanças do tempo e como as ajudas multiespécie são
importantes para resistir à estas mudanças.
No Capítulo 4 o foco recai sobre a relação entre pessoas e a moralidade presente nestas
relações, que é expressa através das acolhidas e ajudas recíprocas que resultam na união do
povo. Para tanto, serão abordados o sistema de moradia e a circulação das pessoas pelas
casas e “quintais”, o sistema de direitos comuns de uso da terra e do rio, bem como as festas,
a organização política e a circulação de crianças que são algumas das responsáveis pela
constituição das relações de parentesco na beira do rio.
O Capítulo 5 é dedicado especificamente à descrição da convivência quilombola com
as plantas. Para tanto, procurarei apresentar a importância delas desde o seu aspecto
produtivo até a sua dimensão afetiva. O ponto é mostrar que, apesar de sua importância para
a economia quilombola, os afetos por estes seres vegetais também estão presentes na labuta
cotidiana com as roças, quintais e canteiros. Para os quilombolas ribeirinhos, lidar com as
plantas envolve um engajamento constante e observações atentas aos seus comportamentos
e preferências. Neste capítulo, também discutirei o papel nutritivo das plantas, que, além de
serem alimento, são ainda utilizadas como remédio. Com isso, procuro defender que as
plantas fazem parte do conjunto de práticas e relações responsáveis por criar pessoas fortes,
saudáveis e seguras, pois elas tanto são receptoras das forças emanadas pela lua quanto
ajudam na proteção dos corpos e espíritos das pessoas contra os males existentes entre o céu
e a terra. Não bastasse isso, as plantas são registros materiais da relação ancestral dos
quilombolas ribeirinhos com o território, pois ancoram as memórias dos meus interlocutores
sobre seus parentes antigos e sobre o tempo de primeiro.
Os animais, bichos e criações, outros viventes com os quais os quilombolas se
relacionam, serão tema do Capítulo 6. Por meio da atenção a estes seres, proponho-me,
neste capítulo, a conectá-los com os outros temas apresentados ao longo da tese. Assim, a
atenção se voltará para a convivência com os bichos, para a movimentação deles ao longo
da beira do rio e para a ideia de criação. Neste sentido, a primeira parte se dedicará a uma
descrição mais geral dos animais com os quais os quilombolas ribeirinhos se relacionam. A
segunda focalizará especificamente nas relações e nos sistemas de criação do gado,

33
descrevendo como sua chegada nas margens do rio transformou a paisagem e também
mostrando a singularidade do modo quilombola de criar o animal na mão. Uma última seção
ainda será dedicada ao compadre d’água que, mesmo não sendo um animal, é outro ser que
vive nas águas do rio São Francisco, povoa a cosmologia da beira do rio e com o qual os
quilombolas ribeirinhos estabelecem relações.
Por fim, no Capítulo 7, discutirei as percepções quilombolas sobre a mudança do
tempo, isto é, a mudança de um tempo de fartura para um tempo marcado pela alteração
climática. Neste novo tempo, os moradores percebem e narram a falta de chuvas, das
invernadas e do frio, bem como anunciam a morte de pés centenários, os mesmos pés que
são a prova material de suas relações estóricas com a beira do rio. Apesar destas percepções
sobre as mudanças do tempo, busco descrever como os quilombolas ribeirinhos continuam
lutando, através das ajudas mútuas com os outros viventes, para manterem vivas as matas
existentes, para reflorestarem a paisagem e para, assim, poderem rir junto com os paus.
Através destes sete capítulos, espero conduzir o leitor para a beira do rio, paisagem
onde moradores de Sangradouro Grande, Croatá, Gameleira e Várzea da Cruz compartilham
suas vidas com o rio, com as plantas, com os astros, com os bichos, com o gado e com o
compadre. O que se dá através de suas atividades cotidianas de cultivo de seus canteiros e
roças nos capões, vargens e vazantes, através de suas idas constantes ao rio para observá-lo
ou para a realização da pesca, através de sua constante mexida com os animais, bem como
através de suas movimentações para os altos para a cata de paus e frutos. Com isso, espero
mostrar o que as relações multiespécies podem dizer sobre os modos de vida do povo
quilombola da beira do rio, fugindo de uma visão que essencializa a constituição de um povo
apenas por suas relações entre humanos, excluindo, de antemão, possíveis definições da vida
social que podem extrapolar os limites da humanidade como coextensiva à socialidade.

34
PARTE I
A BEIRA DO RIO

35
Capítulo 1
RIO E MOVIMENTO

1.1. “Conversando com o rio”

Eu gosto de conversar com o rio. Tem hora que eu estou no rio sozinha
lavando roupa e eu estou conversando. As meninas chegam “mãe, a
senhora está conversando com quem?”. E eu: “com o rio!”. “Mãe, a
senhora está ficando louca?”. Eu falei “não, uá”. Eu acho que ele tem
ouvido sim, porque minha tia conta um caso ... ela trabalhava numa firma
e ela só tinha tempo de lavar roupa dia de sábado. Não! No domingo, só
no domingo. Aí ela disse que ia para lá, mas no domingo tinha que lavar
roupa. Nem que fosse num feriado, mas no domingo ela tinha que lavar
roupa. Quando ela chega na beira do rio, que coloca a bacia, que tá lavando
roupa, ela escutou atrás dela falando assim: “ô sofrimento”. Dentro d’água
né, “ô sofrimento”. Ela olhou para um lado, olhou para outro, não viu
ninguém, pegou essa bacia e se mandou. Falou: “nunca mais eu lavo roupa
no domingo”. “Nem que eu lavo a noite na segunda, mas no domingo eu
não lavo”. Né? Então o rio viu o sofrimento dela. Essa voz saiu de onde?
De dentro do rio. Não tinha ninguém ali. (...) Mas a gente tem de conversar
com o rio. “Moço, ó, você não faz isso não, tem dó dos seus agregados”,
que nós somos agregados dele. No dia que ele falar assim “eu quero a
minha terra”, não tem jeito (Conceição, Itacarambi-MG, Documentário
Conversando com o Rio).

O trecho citado acima é a narrativa de uma das “pescadeiras” do rio São Francisco,
entrevistada durante a gravação do documentário “Conversando com o Rio”, uma realização
da Comissão Regional de Povos e Comunidades Tradicionais, Comissão Pastoral da Terra
(CPT) do Vale do São Francisco e do Centro de Agricultura Alternativa do Norte de Minas
(CAA-NM).13 Em sua fala, Conceição demonstra sua intimidade com o rio, mas também
destaca que ele é uma força poderosa, com a qual é preciso ter muito cuidado e respeito. Sua
estratégia, portanto, é conversar com ele. Isto também aparece em outro vídeo, quando uma
vazanteira, Ana, explica o que significa conversar com o rio.14 Para ela, é quando se anda de

13
Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=q2R8Tg9qS0Y. Acesso em 11 de fevereiro de 2021.
14
O vídeo em questão foi produzido pela Articulação Rosalino de Povos e Comunidades Tradicionais e o CAA-
NM, em parceria com @filmesdecanoa e apoio do Instituto Pequi do Cerrado. Sua produção e divulgação por
meio do Youtube teve como intuito abrir uma chamada para a campanha “Solar do Sertão: Museu Vivo dos
Povos Tradicionais de Minas Gerais”. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=-bBnPdFo1Ho.
Acesso em 11 de fevereiro de 2021.

36
barco, se joga uma tarrafa15, se vê a natureza e se coloca uma rede. Segundo Ana, todas essas
práticas são formas de conversar com o rio.
Em uma conversa com um morador de de Croatá, ele me contou que nasceu dentro
do rio, pois sua mãe, quando em trabalho de parto, precisou atravessar o São Francisco para
chegar até a parteira que vivia em uma ilha. Nesse percurso, antes que os pais alcançassem
a margem onde vivia a parteira, no balanço das águas que golpeavam levemente o barco, a
mãe do meu interlocutor deu à luz o bebê, João Lucas.
O que busco destacar nestas estórias, tanto aquela narrada por Conceição quanto esta
contada a mim por João Lucas, é a centralidade do rio na vida daqueles que habitam suas
margens e ilhas. Ao destacar estas narrativas, o intuito é abrir um chamado para os temas
que estarão presentes nesta primeira parte da tese, que pretende discutir, principalmente,
como a vida quilombola se constitui a partir das relações dos habitantes no e com o rio. Neste
primeiro capítulo, no entanto, a proposta é apresentar as pessoas tal como elas se
movimentam e estabelecem relações na margem do rio, constituindo, como veremos, o povo
da beira do rio. Trata-se, portanto, de uma primeira abordagem do rio, precisamente sobre
como ele permite a criação de um sistema de ser e de se relacionar.
Estas primeiras discussões nos darão uma base para a compreensão do rio enquanto
um vivente, com o qual os quilombolas e os outros seres estabelecem diversos engajamentos.
Como argumenta Harris (2017, p. 49), “os rios não apenas proveem comida e água; o fato
de viver ao longo dos rios, e com eles, dá forma a vida e provoca a imaginação de ambos,
residentes e visitantes”. Ainda que esteja se referindo às águas amazônicas, e dadas as
incomparáveis singularidades de cada uma das regiões, a amazônica e a sanfranciscana,
alguns aspectos apresentados pelo autor parecem semelhantes ao contexto desta pesquisa.
Estes se referem aos movimentos destes rios (cheias e vazantes), seus efeitos na paisagem,
a combinação de uma série de atividades econômicas e produtivas por aqueles que vivem
em suas margens, e a movimentação de pessoas através dos rios. Além disso, apropriando-
se do conceito de “taskscape” de Ingold (2000), Harris (2016) considera que os ribeirinhos
produzem um estoque de conhecimentos e habilidades práticas relacionadas ao rio, que é

15
A tarrafa é um instrumento de pesca, um tipo de rede “em forma círculo ou de capuz, com uma malha dobrada
na extremidade onde são colocados chumbos que provocam o fechamento da rede quando ela é jogada nas
áreas do rio onde costumeiramente estão presentes cardumes de peixe menores ou peixes grandes com o hábito
de ficar em locas (buracos entre pedras). No meio da circunferência sai uma corda pela qual o pescador puxa
a tarrafa após o lance, fazendo com que esta se feche e capture os peixes que estiverem sob seu alvo” (ARAÚJO
et al, 2019, p. 96).

37
considerado, por aqueles que vivem próximos a eles, como um organismo vivo. Para o autor,
o rio “contém vida tanto quanto a torna possível” (Harris, 2016, p. 163, tradução minha).16
No conjunto de uma série de pesquisas que vêm refletindo sobre as relações entre
populações humanas e não humanas com as águas e os rios (CHIBNIK, 1994; HARRIS,
1998, 2005, 2016; KAPLAN, 2007; TEIXEIRA e QUINTANELA, 2011; STRANG, 2015;
HASTRUP e HASTRUP, 2017; KRAUSE, 2016, 2019; BALLESTERO, 2019a, 2019b),
autores como Krause e Strang (2016) nos convidam a pensar as relações através da água,
uma vez que estes “relacionamentos aquosos” desafiam certas suposições sobre natureza e
recursos, ajudando a promover uma compreensão dos aspectos humanos e não humanos de
sua produção, isto é: ao invés de pensar as águas e rios como “algo produzido por meios das
relações sociais e imbuídos de significados por meio de esquemas culturais”, é necessário
compreender a água “como um co-constituinte gerador e agentivo de relações e significados
na sociedade” (KRAUSE e STRANG, 2016, p. 633, tradução minha)17.
A proposta de pensar a importância dos rios, a partir de seus papéis geradores e
agentivos de relações e significados, encontra ressonâncias no material etnográfico coletado
em várias pesquisas nas ilhas, margens, beiradas e barrancos do São Francisco. Tais
reflexões estão presentes nos trabalhos de Luz de Oliveira (2013a) e Nóbrega (2017), por
exemplo. A primeira autora afirma que as ilhas do rio São Francisco, também chamadas de
“terras crescentes”, nascem, se criam, se juntam umas às outras, se ligam a terra firme ou
vão embora devido aos movimentos do rio, que é percebido com algo vivo e dotado de
intencionalidade (LUZ DE OLIVEIRA, 2013a, p. 1-5, grifos da autora). Por seu turno, a
partir de sua etnografia em uma ilha no submédio São Francisco, o argumento de Nóbrega
(2017) segue na mesma direção, posto que o povo da ilha do Manssangano (PE) apreende,
caminha e vive em um lugar de constante transformação, onde a força da correnteza tanto
circunscreve quanto constitui o território. A autora compreende que “água e terra estão
intimamente interligadas: compõem-se, arrastam-se, contêm-se” (NOBREGA, 2017, p.
119).
Esta vida marcada pela constante interação com o rio, seus fluxos e forças, pode ser
circunscrita a partir da categoria beira do rio. A importância desta categoria nativa se tornou
evidente durante uma conversa com Amelinha, moradora de Sangradouro Grande e

16
“It contains life as much as it makes it possible” (HARRIS, 2016, p. 163).
17
Para cada um dos trechos citados, respectivamente: “watery relationships”; “something produced through
social relationships and imbued with meaning through cultural schemes”; “as a generative and agentive co-
constituent of relationships and meanings in society” (KRAUSE e STRANG, 2016, p. 633).

38
pertencente à família conhecida como Barba Dura, em que ela disse que havia sido “nascida
e criada” no lugar. Além disso, forneceu a explicação que me permitiu ampliar o olhar para
além dos limites territoriais que constituem cada uma das comunidades onde a pesquisa foi
desenvolvida. A partir de sua explicação, pude entender um dos aspectos que conectam e
separam, de distintas formas, a vida das pessoas que vivem nas margens do rio. Sob a sombra
dos pés de manga do terreno dos Barba Dura, onde também funciona um bar,
conversávamos sobre a movimentação das pessoas para as áreas de retiro durante os
períodos de cheia do rio. Neste momento Amelinha me disse: “porque aqui é beira do rio.
É igual meu irmão fala: ‘você está onde?’, ‘Estou na beira do rio’. Porque lá, para eles, é
fora, já é fora da beira do rio. Aqui é rio, lá é fora”. Não era a primeira vez que eu ouvia
relatos sobre estes movimentos, mas foi neste momento que passei a entender a categoria
beira do rio como aquela que articula diversos aspectos da vida dos meus interlocutores, os
quais já vinha conseguindo observar e ouvir em campo.
Muitos foram os momentos em que pude ouvir a expressão beira do rio. Aqui ela
aparece com duas conotações, uma para se referir ao barranco ou praia do rio
especificamente, e outra, para tratar de um lugar mais amplo, onde os habitantes
desenvolvem suas atividades diárias, produzem conhecimentos e relações, sejam as de
amizade, parentesco ou aquelas estabelecidas com os outros viventes. Além disso, destacam
suas relações estóricas com os lugares que configuram a beira do rio. Algumas vezes, os
dois sentidos do termo se misturam, tornando árdua a tarefa de distingui-los. No entanto, é
no conjunto destas diferentes alusões à beira do rio que esta primeira parte da tese pretende
se desenvolver.
Ao dizer que “aqui é rio, lá é fora”, me parece, Amelinha não se refere apenas aos
lugares por onde a “água anda” ou já “andou”, isto é, as planícies inundáveis do rio, mas vai
ao encontro também de outras reflexões dos quilombolas sobre a vida ribeirinha. Nos tempos
antigos, é possível dizer, viver na beira do rio também marcava posições em relação às
pessoas que habitavam os interiores do “sertão”. Esta é uma distinção que aparece tanto na
bibliografia quanto nas formulações quilombolas. Segundo Ribeiro et al. (2010, p. 317),
“isso aparece, por exemplo, nos relatos dos viajantes que do começo do século XIX até fins
do século XX descreveram a região observando as belezas das paisagens, a receptividade
sanfraciscana e a forma muito particular como a sociedade utilizava os recursos”. Com isso,
eram levados a afirmar a existência de uma “cultura sanfranciscana”. O autor continua

39
dizendo que há marcadamente uma diferença no tratamento dado às “barrancas” e aos
“gerais”.

O rio é descrito ao sabor do movimento das enchentes e vazantes, é vivo,


dinâmico, marcado em parte pela abundância da fauna e pelos costumes
dos barranqueiros; estes quase sempre são considerados indolentes e
fatalistas. Histórias dos gerais são mais raras; poucos viajantes desafiaram
suas distâncias, que eram trilhadas com grandes tormentos: mosquitos,
calor, falta de água fora das veredas e o desconforto da viagem, que era só
remediado, finalmente, na barranca do rio (RIBEIRO et al, 2010, p. 318,
grifos adicionados).

Além dos relatos daqueles que viajaram pelo vale do São Francisco entre os séculos
XIX e XX, especialmente pelas barrancas do grande rio, outros autores, como Pierson
(1972a, 1972b) e Neves (1991), apresentaram interessantes relatos etnográficos sobre esta
paisagem. Logo após citar Richard Burton (1977), que afirma que os habitantes do São
Francisco são seres anfíbios, por suas relações com a água e por ser a canoa o “cavalo” do
povo ribeirinho, Neves (1991) ressalta o teor significativo desta afirmação. Para este
antropólogo, que viajou pelo São Francisco para realizar sua pesquisa sobre uma categoria
de trabalhadores das barcas, conhecidos como remeiros, a analogia de Burton (1977) é
pertinente porque coloca em comparação duas categorias importantes no vale do São
Francisco: de uma lado os ribeirinhos, que utilizam a canoa como instrumento de trabalho e
meio de transporte e, de outro, os vaqueiros, responsáveis por uma das principais atividades
econômicas na região, a criação de gado, que tem o cavalo como principal recurso para a
realização de suas atividades. Em suas palavras:

Essa comparação é relevante, entre outros motivos, porque lembra a


vocação singular do homem são-franciscano: a pecuária extensiva, na qual
o cavalo, como animal de montaria, cumpria função importante no amanho
do gado. Assim, ao comparar o cavalo à canoa, (...) enfatiza toda a
relevância deste instrumento de trabalho para pescadores e camponeses
(sobretudo para plantadores de vazante). Mas, por outro lado, vale pensar
também sua importância para toda a população ribeirinha como meio de
transporte a pequenas distâncias (NEVES, 1991, p. 103, grifos
adicionados).

Tanto Ribeiro et al. (2010) quanto Neves (1991) destacam as diferenças, não apenas
nos aspectos físicos da paisagem, mas também entre as populações que viviam nas
“Barrancas” e nos “Gerais”. Estas diferenças não são percebidas só pelos viajantes e
pesquisadores, mas são também marcadas pelos próprios habitantes das margens do rio. Seu

40
Saulo, pescador e vazanteiro morador da comunidade de Croatá, me explicou que
“catrumano” é o termo comumente utilizado para se referir ao “povo dos gerais”, enquanto,
em suas palavras: “nós, da beira do rio, barranqueiro”. Geograficamente falando, conforme
o vazanteiro, os catrumanos ficam “para o lado de Montes Claros, do outro lado do rio pra
lá, da serra para lá”. Algo semelhante é exposto por Neves (1991) a respeito da população
camponesa do vale do São Francisco, que recebia denominações específicas em algumas
microrregiões do Médio São Francisco, sendo algumas vezes denominados enquanto
“roceiros” ou “capiais” e, outras vezes, como catrumanos. Os catrumanos também eram
conhecidos como geraizeiros ou geralistas, pois viviam – e ainda vivem – nas regiões
conhecidas como “Gerais”. Na definição de Pierson (1972a),

Os Gerais, ou como são às vezes chamados, os Campos Gerais, cobrem


uma área calculada em 14.520 quilômetros quadrados ao longo da fronteira
da Bahia e Minas Gerais com Goiás, e da Bahia com o Piauí. A situação
geral da terra é de uma planície bastante plana, que se eleva gradualmente,
contudo, na direção de Goiás, ao oeste, e do Piauí, ao norte. O solo
geralmente arenoso e frouxo é esparsamente coberto por tufos de fina e
dura grama cinzento-esverdeada e por algumas árvores retorcidas, cujo
tamanho diminui à medida em que o viajante sobe o suave aclive em
direção à divisa ocidental, caindo seus topos gradualmente abaixo da
cabeça de um homem a cavalo até que, finalmente, ele é cercado apenas
por relva, onde fácil se torna perder o caminho. (...) Os relativamente
poucos habitantes dos Gerais (...) atualmente, (...) muito espalhados,
cuidam de pequenas roças ao longo dos cursos de água, onde maiores
vantagens podem ser tiradas dos recursos do habitat, abatem a caça que
porventura ainda exista, colhem mel e frutas silvestres e usam o buriti na
construção de abrigos, como alimentos, e na fabricação de utensílios e
chapéus (PIERSON, 1972a, p. 76-77).

O que Neves (1991) fala sobre estas denominações guarda relações com o que me
explicou Seu Saulo, de que elas carregam um sentido claramente pejorativo, cuja origem
está fundada na localização específica dos barranqueiros, que viviam próximos aos centros
urbanos, ao contrário dos geraizeiros, que viviam mais isolados. Ainda nas palavras de
Pierson (1972a), em suas viagens pelo vale ouvira dizer que, nos Gerais, “somente uma
única habitação era encontrada no local, uma pequena choça ocasionalmente ocupada por
um velho, meio índio, meio português”. E nas suas investidas de adentrar nos, até então,
temidos Gerais, fora questionado por moradores locais se “não temia fazê-lo com tão poucos
auxiliares”.
Ao me referir às cidades ribeirinhas enquanto centros urbanos, tomo como base os
dados históricos sobre o processo de constituição destes municípios. Em Januária, por

41
exemplo, além das fazendas de criação de gado, que originaram inúmeros povoamentos,
comunidades e vilas, o entorno da cidade também se especializou no cultivo da cana-de-
açúcar para fabricação de rapadura e cachaça, bem como de outros gêneros, como algodão
e mamona, e na criação de animais (CORREIA, 2013). O escoamento dessa produção era
facilitado pelo porto da cidade, onde paravam barcas e vapores transportando produtos entre
Juazeiro (BA) e Pirapora (MG). No mercado da cidade, bem como nos depósitos de
comerciantes locais, “convergiam fazendeiros, agricultores de vazante e geraizeiros de toda
a região, além de carreiros, tropeiros e mascates que singravam pelas estradas interiores
ligando os sertões de Goiás e da Bahia ao litoral” (CORREIA, 2013, p. 48). Essa
movimentação no rio, primeiro das barcas e posteriormente dos vapores, impulsionava
também uma intensa movimentação de pessoas e reunia um grande contingente populacional
vindo de diversas regiões ao longo do rio e de seus afluentes.

Figura 1 - Mapa da Bacia do Rio São Francisco


Fonte: http://www.sfrancisco.bio.br/rio/mapbacia.html. Acesso em 2021.

Como destaca Correia (2013), assim como Juazeiro e Xique-Xique, na Bahia, o porto
de Januária se consolidou enquanto um dos mais importantes no médio São Francisco.

42
Diante de tal prosperidade, “comunidades foram se adensando e se espraiando por suas
barrancas e ilhas, e mais além, nas cabeceiras dos rios que afluem para o São Francisco e
para as terras férteis de suas veredas e alto Gerais” (CORREIA, 2013, p. 56, grifos da
autora). A própria tese sustentada por Neves (1991), do rio São Francisco como um
integrador nacional a partir da circulação intensa de pessoas e mercadorias, se fundamenta
na antítese da ideia do vale do São Francisco enquanto uma região isolada. Tal dinâmica só
teve a sua queda com a construção da ferrovia em 1926 e das rodovias na década de 1970.
Ainda conforme Correia (2013, p. 58), “os principais centros comerciais ribeirinhos ao longo
do Médio São Francisco”, em resultado destas “alterações no sistema de circulação de bens
e produtos”, “entraram em franca decadência”.
Assim, tomando como base esta distinção das cidades situadas ao longo da calha do
rio antes da construção das ferrovias e rodovias, principalmente aquelas onde também
funcionavam portos, a referência aos catrumanos por parte daqueles que viviam nelas, ou
próximos a elas, carregava um sentido pejorativo. Para Neves (1991), estas expressões eram
sinônimo de tolo e bobo. Tanto que, mesmo com a existência da expressão, Seu Saulo, aos
risos, me disse: “não pode falar, não, porque fala catrumano quando o outro é meio assim,
besta. Se falar ‘você é catrumano’, rapaz, ia dar é briga, chamando a pessoa de besta”. O
jeito de vestir, de falar e de caminhar era o que permitia a identificação dos catrumanos. De
um modo geral, eram mais pobres e usavam “roupas xadrez ou vestes velhas de polícia”, me
contou Peba, pescador de Sangradouro Grande.
Nos trabalhos atuais sobre estas categorias, Benites (2010), em sua pesquisa com os
moradores do distrito de Ribanceira, em São Romão (MG), observa que o termo
barranqueiro é empregado “em um sentido estrito para identificar aqueles que nasceram, se
criaram ou residem às margens do rio São Francisco” (BENITES, 2010, p. 76) ou, mais
especificamente, aqueles que têm suas condições de vida associadas ao rio. Sobre os
catrumanos quase nada foi encontrado, apenas sobre os geraizeiros e geralistas (ver
DAYRELL, 1998; NOGUEIRA, 2009; RIBEIRO, 2010; ANDRIOLLI, 2011; BRITO,
2013; FAGUNDES, 2019; entre outros trabalhos de menos fôlego). Se seguirmos as
explicações dos barranqueiros, é compreensível que o termo catrumano não apareça nas
etnografias sobre os Gerais, pois era um termo pejorativo, usado somente entre os
barranqueiros.18 Embora exista uma inclinação para pensar estas categorias de barranqueiro

18
Por outra perspectiva, o texto de Costa (2005) faz uma reflexão sobre o Movimento Catrumano, um projeto
de articulação política regional que envolveu o reitor da UNIMONTES, o prefeito da cidade de Montes Claros

43
e seus referenciais opostos enquanto categorias étnicas, este não é o meu intuito nesta tese.
No entanto, vale a pena realizar o breve comentário de que a etnização destes coletivos,
embora possa ocorrer em alguns casos de forma inadvertida, em outros, está relacionada à
organização política daqueles que se autorreconhecem a partir destas categorias. Nesta
última situação, por exemplo, estão os Geraizeiros, uma população que se autodefine
enquanto tradicional e que vem reivindicando seus direitos territoriais como forma de reagir
e denunciar o monocultivo de eucalipto em seus territórios (NOGUEIRA, 2009).19
Em uma conversa com Seu Nô, que vive em Croatá, ele contou sobre outra
denominação além dos catrumanos. Conforme me disse, veio de um lugar perto de
Palmeirinha, que é uma comunidade quilombola situada na margem direita do rio São
Francisco, no município de Pedras de Maria da Cruz. A origem de Seu Nô é um lugar
localizado no pé da serra e, neste caso, segundo ele, quem nasce no pé da serra é
considerado como mocó. Em suas palavras: “quem mora nas lapas do pé da serra é mocó,
enquanto quem mora na serra é geraizeiro”.20
De todo modo, ao trazer estas diferenciações e denominações, o meu interesse é
apenas de aproximar o leitor ao universo da beira do rio, pois tenho considerado que é uma
diversidade de práticas e de estórias que fazem possível a tessitura deste universo. Nesse
sentido, as reflexões de Harris (2016) contribuem para a forma como venho discutindo a
beira do rio, pois o autor chama a atenção tanto para os aspectos históricos de constituição

e até instituições como a Associação dos Municípios da Área Mineira da Sudene (AMAMS). A articulação
tem como objetivo criar estratégias para a “construção de poder simbólico da Região Norte Mineira junto à
Sociedade Mineira como um todo” (COSTA, 2005, p. 29), partindo do entendimento de que a região Norte do
Estado (os Gerais) acaba sendo subjugada, politicamente, historicamente e culturalmente frente às Minas
(região aurífera). Tal subjugação também é objeto das reflexões de Costa (2003) em sua tese de doutorado.
Segundo portal de notícias “O Tempo”, o Movimento Catrumano foi vitorioso quando, em 2011, foi definido
o Dia dos Gerais, a ser comemorado em 8 de dezembro. Disponível em:
https://www.otempo.com.br/opiniao/gilda-de-castro/movimento-catrumano-e-a-criacao-do-dia-dos-gerais-
1.997521#:~:text=Denominaram%20essa%20iniciativa%20de%20Movimento,com%20a%20sociedade%20d
os%20gerais. Acesso em 19 de fevereiro de 2021.
19
Ao que parece, conforme as discussões de Nogueira (2009), a noção disseminada dos Gerais enquanto vazio
demográfico e, consequentemente, “vazio econômico”, contribuíram para o avanço das “frentes
modernizadoras” para a integração da região no “avanço econômico do país”. Por suas especificidades
topográficas, e também pela disponibilidade de mão de obra barata, os Gerais se tornaram uma das áreas
privilegiadas para os plantios de eucalipto. Um dos efeitos das monoculturas de eucalipto nos Gerais, como
discute Dayrell (2019), é o secamento das nascentes dos riachos, rios e outros cursos d’água que fazem parte
da bacia do São Francisco. Para lutarem e resistirem à estas “frentes modernizadoras”, não apenas geraizeiros,
mas também vazanteiros, veredeiros, catingueiros, apanhadoras de flores sempre-vivas, quilombolas e
indígenas se organizaram regionalmente na Articulação Rosalino Gomes de Povos e Comunidades
Tradicionais. Mais sobre esta articulação pode ser encontrada em Dayrell (2019).
20
Mocó também é o nome atribuído a um roedor que vive nas áreas de caatinga do Nordeste do país e do Norte
de Minas Gerais. Não obtive nenhuma explicação sobre a associação entre os nomes, mas é possível sugerir
que isso ocorra devido ao modo de vida do animal, que habita regiões rochosas e gosta de permanecer nas
fendas e rachaduras destas rochas.

44
das paisagens ribeirinhas quanto para as formas como as relações dominantes afetam os
conhecimentos, habilidades e práticas no e com o rio. Este aspecto histórico também é
considerado pelos meus interlocutores quando eles falam da estórica, categoria que expressa
uma certa noção de história, que inclui não apenas os humanos e seus feitos, mas também a
trajetória dos próprios lugares e dos outros viventes que neles habitam. Portanto, é o
engajamento entre viventes e lugares que produzem estóricas. Neste caso, os quilombolas
são apenas partes do conjunto de seres e agentes, animados e inanimados, que produzem
estórica. Sendo assim, é interessante compreender como os processos mais simples, comuns
e cotidianos, estoricamente fizeram e continuamente fazem estas vidas da beira do rio.
Sem deixar de lado a relação entre barranqueiros e catrumamos, um outro aspecto
que ainda podemos explorar é aquele que toca, especificamente, os modos de relação com o
rio. Ainda que não possamos falar de catrumano, o contexto de sua enunciação é
interessante, pois, para os quilombolas da beira do rio, o que marca a distinção entre os
barranqueiros e os catrumanos é o trato: enquanto os barranqueiros eram mais receptivos,
os catrumanos eram mais sistemados, pois cismavam com qualquer coisa. Esta ideia de
“sistema” é discutida por Carneiro (2018) ao explorar a ideia de “povo”. Para a autora, que
realizou sua pesquisa com “o povo dos buracos” (habitantes de Vão dos Buracos, município
de Chapada Gaúcha-MG, nos “Gerais”), o que define um “povo” não é apenas a localização
geográfica nem os laços consanguíneos, mas sim os afetos “criados como efeitos de um
‘sistema do povo’” (CARNEIRO, 2019, p. 59). Considerando as reflexões de Carneiro
(2018), é possível supor que, ao acusarem os catrumanos – ou, como expressou Seu Saulo,
“o povo dos gerais” – de sistemados, os quilombolas ribeirinhos estejam chamando atenção
para essa diferença entre sistemas.
Outra diferença fundamental entre barranqueiros e catrumamos era a falta de
habilidade dos segundos em lidar com a água. A este respeito, recordo um caso contado por
Seu Saulo.

Moço, aí no Gerais tinha uns que chegavam na passagem do outro lado do


rio para atravessar e grudava na beira da canoa que não soltava. Não
soltava! E quando chegava do outro lado do rio, assim mesmo pra sair da
canoa, ele caminhava seguro na beira da canoa. [Dizia:] “Solta moço, solta
moço, você não vai cair não”. [O outro respondia:] “Se eu cair lá eu morro!
Você é acostumado, mora lá na beira da lagoa, vocês são acostumados
com rio, com água, nós não somos, nós pomos água no Gerais de nós é na
cacimba” (Seu Saulo, Croatá, 2018).21

21
Moça e moço, como notou Benites (2010), “exprimem formas gentis de tratamento” nas barrancas do rio.

45
“Era desse jeito’, finalizou Seu Saulo, que, minutos depois, caiu na risada. Ele me
explicou ainda que hoje não tem catrumano mais, porque “estão sabidos demais”, não
podendo mais serem caracterizados enquanto tolos, bobos ou bestas.22 De qualquer forma,
mesmo os ribeirinhos reconhecem os perigos do rio e compreendem o medo do “povo dos
gerais” em relação à água. Dona Nilza, moradora da Ilha da Mangueira, garantiu que o
medo deles tem fundamento, pois “o rio não tem árvore, não tem cabelo não”, isto é, nada
em que a pessoa possa se agarrar. E a água, ela lembra: “vixe, quantas pessoas que já
morreram ali afogados”. Neste dia, por exemplo, quando conheci Dona Nilza, ela estava
cuidando do terreno, dos porcos e dos canteiros de Maria, que é moradora de Sangradouro
Grande e estava viajando para São Paulo. Como seu terreno e criações precisavam de
cuidados, pediu para que Nilza o fizesse durante sua ausência. A conversa com Nilza foi às
pressas, isto porque ela estava voltando da ilha e precisaria ainda navegar até a cidade de
Pedras de Maria da Cruz. Como a noite já começava a cair, era preciso partir logo, pois ela
estava com sua neta. Enquanto cuidava da horta e dos porcos, ela me explicou que navegar
a noite com a companhia de uma criança é muito perigoso, pois, caso a criança caísse na
água, o escuro da noite impediria que seu resgate fosse feito com sucesso.
Em uma outra situação, quando conheci Seu Saulo, ele me perguntou de onde eu era.
Ao respondê-lo dizendo que eu era de Pirapora, outro município ribeirinho do vale do São
Francisco, ele me contou que, poucos anos atrás, havia conhecido a cidade e, claro, a porção
do rio que corre por lá. Seu comentário a respeito foi de que as corredeiras dessa parte do
rio eram muito esquisitas, feias, pois havia muitas pedras no meio do rio, algo muito diferente
das águas que, como também observou o viajante Saint-Hilaire, “correm com extrema
lentidão” (SAINT-HILAIRE, 2000, p. 345) no trecho de Januária. Contou ainda que, durante
a sua ida, alguém havia morrido por lá, pois caíra bêbado na água e fora arremessado nas
pedras.

Além disso, chamo a atenção para o que disse Neves (1991), quando explicou que “a palavra moço (ou a
expressão moço de barca) era amplamente utilizada” pelos trabalhadores das barcas que navegavam o rio São
Francisco para se autoidentificarem. Hoje, os termos moço e moça ainda são amplamente utilizadas na região.
Algumas vezes, mesmo para se dirigirem a mulheres, utilizam o moço, no masculino. Neste caso, a palavra
tem um som algo parecido com “mousso”. O termo também é utilizado para se direcionar aos animais, como
“quieta moço” ou “sai moço”, pedindo, respectivamente, para um cachorro parar de latir ou se afastar.
22
Não parece ser este o caso, mas, como veremos, o termo sabido, como argumenta Mourthé (2021, p. 59)
pode ser utilizado em um sentido pejorativo, pois denota um certo “tipo de conduta, na qual o sabidão é alguém
que lança mão de determinados conhecimentos e práticas em desvantagem de outros”.

46
Os perigos do rio também foram comentados por Seu Vicente, morador de
Gameleira. Na ocasião, ele me disse que, antes de perder parte de sua força e volume, “o rio
era rei, tanto era rei na largura, como na fundura. Era perigoso!” Seu Vicente também
comentou que, embora não soubesse onde havia acontecido, viu na televisão uma
reportagem sobre a morte de um ator de novela nas águas do rio São Francisco. “Ele não era
nada da gente, mas a gente sente aquilo”, disse Seu Vicente.23 Isto porque, tal acontecimento
tem muito a ver com as estórias que lhes são familiares sobre o rio e com os conhecimentos
que compartilhavam entre si a respeito dos lugares perigosos.
Os medos causados pelos perigos do rio são mencionados por aqueles com quem tive
a oportunidade de conversar em campo, mas as alegrias de se viver junto ao rio também
estão presentes nas estórias contadas pelos quilombolas, sejam das experiências vividas nas
águas que correm próximas aos seus lugares de moradia, seja em outros locais onde as águas
do São Francisco também correm. Em uma outra situação, ao mencionar sobre minha origem
com Maria, também moradora de Croatá, ela disse que é muito bom pescar nas pedras, pois
são lugares bons para armar a rede. Maria também compartilhou comigo muitas de suas
estórias com o rio. Enquanto mulher, disse que antigamente:

não tinha uma mulher que não lavava roupa na beira do rio. Tinha vez que
já tinha um banquinho, chegava lá na beira do rio, fincava na lama, na
areia, na terra que tivesse, e a gente ia lavar roupa. Lavava roupa, botava
no quarador. Ô minha nossa senhora, no cais que tem a praia, que fizeram
praia, a gente saía com a bacia de roupa de casa. Até uns certos anos tinha
mulher que ainda lavava. A mãe desse menino que mora por lá, ela morreu,
ela lavava roupa só no rio, com água encanada, depois que botou água
encanada, ela ainda lavava no rio. Aí nós íamos com as bacias de roupa.
Quem tinha o banco, botava o banco, quem não tinha forrava um plástico
no chão e amontoava a roupa, e ia pegando a roupa e lavando. Agora que,
quando a gente ensaboava a roupa ali, tinha aquelas gramas, que ali tinha
grama, agora não, tá tudo diferente. Botava pra quarar, lá no quarador no
sol, olhava, parece que estava secando, botava água na bacia e chep chep
chep, molhava tudinho, já clareou, já limpou, panhava, ia enxaguar. Esse
tempo a gente ficar lá, que a gente ia de manhã cedo, tinha vez que vinha
meio dia, tinha vez que vinha de tarde, menino levava almoço pra nós na
beira do rio, nós comíamos lá na beira do rio, sentada lá na beira do rio,
comia e lá mesmo terminava de lavar a roupa, e voltava. Hoje em dia não
tem mais nada disso, ninguém sabe o que é isso. Tem muita gente que não

23
O ator em questão é Domingos Montagner que, segundo investigação da Policia Civil de Sergipe, morreu
após ser arrastado pela correnteza do Rio São Francisco no dia 15 de setembro de 2016. No período, o ator
estava em Canindé de São Francisco (SE) para as filmagens da novela “Velho Chico”, exibida pela TV Globo.
Disponível em http://g1.globo.com/se/sergipe/noticia/2016/11/inquerito-sobre-morte-de-domingos-
montagner-e-concluido-diz-
delegado.html#:~:text=Montagner%20morreu%20na%20tarde%20do,novela%20na%20parte%20da%20man
h%C3%A3. Acesso em 11 de fevereiro de 2021.

47
sabe, agora tem tanquinho, tem não sei o quê, diz que tem um até pra
enxugar roupa (Maria, Croatá, 2018).

Maria conta que estes momentos eram muito bonitos, várias mulheres sentadas na
beira do rio lavando roupas enquanto as crianças, com muita vontade de banhar, acabavam
caindo dentro da água e, em seguida, ouviam as reclamações das mães que diziam: “ô,
menino, sai de dentro d’água, pra não sujar a água de enxaguar a roupa, menino!” O banho,
forma como os meus interlocutores se referem ao ato de entrar na água, mas também quando
a água anda sobre a terra firme, só era permitido depois da lavagem das roupas e, nesse
momento, as mulheres banhavam na água junto com as crianças. No retorno da beira do rio,
já traziam as latas de água para beber e cozinhar. Eventualmente, quando encontravam os
pescadores voltando da pesca, acabavam por ganhar algum curimatã e lá mesmo o limpavam
para comer na janta. Maria lembra que:

era bom demais, agora acabou, é difícil até a gente ir na beira do rio, lá o
povo da cidade nem vai na beira do rio, só vai quando o rio tá cheio pra
olhar a água, né? Só vai pra olhar a água. E a gente aqui não, a gente tá
aqui, tem que ir pro rio pra poder pescar, pra pegar um peixe (Maria,
Croatá, 2018).

Maria nota que hoje as coisas estão muito diferentes, que antigamente as pessoas
costumavam estar sempre no rio, mas agora ela percebe muitas mudanças no comportamento
das pessoas em relação ao rio, bem como mudanças no próprio rio. Estas mudanças, de que
falam Maria e também outros quilombolas, se referem à diminuição do volume e da força
das águas, temas que serão discutidos no próximo capítulo.
A constituição de um modo de vida barranqueiro não acaba por aqui, pois, ao
viverem nesta paisagem, os habitantes articulam uma série de conhecimentos sobre ela a
partir de seus engajamentos cotidianos no lugar. Nesse sentido, nas próximas seções e
também ao longo de toda a tese, procurarei destacar outros aspectos que me pareceram
singulares sobre a vida na beira do rio, por exemplo, em como ela está articulada aos ciclos
do rio. Também buscarei apresentar a importância mesma do rio na vida das pessoas que, na
relação com ele, se movimentam ao longo de seu curso e constituem práticas locais, como a
acolhida e as relações de parentesco.

48
1.2. Experimentar o meio do mundo

Mexer com vazante, com ilha. Aí vim mexer com as vazantes, gostei e
estou aí até hoje e não tenho previsão de sair também não, porque lá onde
nós estávamos era muito difícil para nós, era muito difícil lá. Você queria
comer um peixinho, era difícil. Nessa beira de rio, moço, é lugar de pobre
viver. Porque aqui é o seguinte, o cara come sem carne se ele quiser, porque
se ele panhar um anzol, uma redinha e for na beira do rio, um peixinho ele
pega (Seu Faustino, Sangradouro Grande, 2017).

Natural de Lontra, nos Gerais, Seu Faustino viveu nesse município até os dezoito
anos de idade, quando se casou e decidiu se mudar para o município de Pedras de Maria da
Cruz, situado na margem direita do rio São Francisco. Na narrativa acima, ele me contou
sobre as razões pelas quais decidiu se mudar para a beira do rio. Durante esse tempo vivendo
na região, plantou em algumas ilhas, tendo comprado primeiro um direitozinho na ilha da
Mangueira, cujo terreno precisou deixar porque, segundo ele, a terra estava muito
fracassada, “não estava dando nada, tudo que plantava não colhia”. Por essa razão, comprou
outro direito na ilha do Iote. Contudo, novamente, precisou deixar o terreno, pois “aconteceu
que deu umas enchentezinhas fracas e jogou areia na terra, aí a terra não prestou para nada”.
Direitozinho, ou simplesmente direito, é a forma como os moradores se referem à posse de
alguma terra. Um tipo de posse na qual o que se possui, enquanto valor, não é a terra, mas
sim o trabalho realizado nela. Desse modo, o trabalho na terra, principalmente nas vazantes
das ilhas ou da terra firme, garante o domínio – ou direito de uso – da pessoa sobre aquela
parcela de terra, bem como permite que o “dono” “passe”, ou venda, a terra para outra
pessoa. Como me explicou Seu Saulo, “muitos vendem aquele serviço, o serviço ele vende,
limpou aquela terra ali, plantou aquele ali, aí vende aquele serviço que ele fez para outro
poder plantar ali, mas [dizer] ‘vendi a vazante pra fulano’, [isso] não”.24
Depois de obter e passar o direito dos terrenos que possuía nas duas ilhas, Seu
Faustino, por fim, precisou ir morar na cidade até que, junto com a “turma”, como ele diz,
retomaram uma parte do território de Sangradouro Grande. Como conta este geraizeiro, que
hoje vive nas barrancas do rio:

Aí eu saí e fui para Maria da Cruz. E eu sou uma pessoa que não gosto de
comércio (cidade), eu sou uma pessoa que sou igual bicho bruto, eu gosto
é do mato. Eu vou no comércio lá, as vezes fazer uma consulta, as vezes

24
A importância e funcionamento destes direitos será um dos temas apresentados no Capítulo 4

49
comprar alguma coisa. É só assim. E doido para voltar para trás. Aí quando
eu saí de lá do Iote e fiquei na rua (cidade), que foi quando a Lídia chamou
para vim para cá. Aí que nós viemos, juntamos uma turma ali nos pés de
manga, arranchou e nós fizemos umas barracas de lona e tudo. Ficou todo
mundo apousado lá, aí mandou chamar a polícia para fazer ocorrência,
porque a polícia tem que fazer, aí a polícia veio, fez a ocorrência e ficou
nisso então. Dia 18 de maio (Seu Faustino, Sangradouro Grande, 2017).

Trajetórias como a de Seu Faustino são comuns entre aqueles que conheci e com
quem conversei durante a pesquisa de campo. Muitos moradores vieram dos Gerais na
procura de terras mais férteis e com uma maior disponibilidade de água. Outros tantos
subiram o rio, vindos da Bahia. Outros ainda vieram de localidades próximas, seja da
margem esquerda ou direita do rio. Um termo comumente utilizado pelos moradores para
explicarem essas mudanças é a necessidade de caçar melhora.
Em uma tarde bastante quente, quando realizava o trabalho de campo em Croatá, fui
com várias crianças, adolescentes e outro pesquisador tomar um banho de rio para refrescar
o corpo.25 Para isso tivemos que nos dirigir, através da estrada que corta a comunidade, a
uma parte do território onde o rio havia formado uma pequena praia. No nosso percurso de
volta, ainda sob um sol muito quente, passamos pelo terreno de Dona Egina onde, embaixo
do pé de Juá, fazia uma enorme sombra. Debaixo do pé, estirados sobre um lençol forrado
no chão, se encontrava a própria Dona Egina, sua filha, filho, nora e netos. Como de costume,
paramos para desejar uma boa tarde. A situação convidava para uma conversa, mesmo que
fosse breve. O curto tempo compartilhado com esta família foi o suficiente para descobrir
que Dona Egina já havia se mudado várias vezes e que já havia morado em diferentes
localidades próximas de Januária, sendo sua última moradia o Rio do Peixe, localidade na
região do rio Pandeiros. Dona Egina explicou que se mudou várias vezes caçando melhora
e que, dadas as dificuldades que estava vivendo no momento, relacionadas à baixa
produtividade da terra, se as coisas não melhorassem, amadurecia a ideia de se mudar
novamente. Nesse diálogo ela me disse que ia “dar uma experimentada no meio do mundo”.
A estória de Dona Egina e essa afirmação me fizeram pensar sobre a relação entre a
beira do rio e a movimentação das pessoas, impulsionadas por essa necessidade de caçar
melhora em suas vidas. Porém, antes de fazer uma conexão direta entre a movimentação das
pessoas e a beira do rio, é preciso reconhecer que este impulso de caçar melhores condições
de vida não se restringe ao modo de vida ribeirinho, mas é, antes, um fenômeno um tanto

25
O pesquisador em questão era Pedro Henrique Mourthé, que também é meu companheiro.

50
quanto mais geral nos universos rurais, sendo discutido por diversos autores, ora enquanto
migrações camponesas (GARCIA JÚNIOR, 1989; MENEZES, 1985, 2002 e 2009; SILVA,
1988, 1999; e WOORTMANN, 1990), ora a partir de categorias nativas como “andanças” e
“movimentos” que também têm como intuito caçar melhora (COMERFORD, 2003;

VIEIRA, 2015; MOURTHÉ, 2015 e 2021; BENITES, 2007; DAINESE, 2016; ALVES,
2016; entre outros). No entanto, tentarei apresentar aqui algumas especificidades destas
movimentações na e para a beira do rio. A ideia é mostrar uma certa dinâmica presente na
vida dos meus interlocutores e fornecer alguns elementos que serão importantes para as
próximas discussões, principalmente aquelas que se referem às relações de parentesco.
Em sua volumosa obra sobre o vale do São Francisco, Pierson (1972b) revela as altas
taxas de mobilidade espacial das pessoas nesta região. Uma das razões que o autor atribui a
estes constantes deslocamentos é a herança de hábitos indígenas, que se caracterizam,
conforme Pierson (1972b), por um semi-nomadismo que foi intensificado “pelas tendências
econômicas gerais do país” (PIERSON, 1972b, p. 58). Dos vários tipos de movimentos
categorizados pelo autor, alguns deles talvez nos ajudem a compreender melhor o que levou
muitos moradores a se moverem para a beira do rio e o que os faz, continuamente, se
deslocarem. Alguns destes deslocamentos se referem à própria relação das pessoas com as
águas do rio, tal como os movimentos temporários, necessários para fugir das cheias e para
a realização da atividade de pesca. Outro motivo identificado pelo autor, que merece especial
destaque neste momento, foram as graves secas que ocorreram na região.26 Esta última, me
parece, possui uma relação mais estreita com o movimento das pessoas para as margens do
rio. Como explicou o autor:

se a seca torna-se intensa e prolongada, os habitantes da zona, ou a gente


da caatinga, como são chamados pelos moradores das margens do rio ou
da cidade, transferem-se temporariamente para as margens onde alguns
talvez encontrem trabalho; mas “logo que chegam as chuvas”, voltam
habitualmente para seus antigos lares. Nem sempre, contudo. Algumas
famílias instalam-se permanentemente nas cidades de beira-rio ou nas
vizinhanças (PIERSON, 1972b, p. 44, grifos do autor).

Para Pierson (1972b) estas secas tiveram forte relação com as “correntes migratórias”
para as cidades ao sul, como São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte. Contudo, o autor
ressalta que estes deslocamentos possuem outros sentidos para além daquele de caçar

26
Ribeiro (2005) identifica alguns dos períodos de grandes secas que assolaram as regiões mineira e baiana do
São Francisco. Para conferi-las, ver Ribeiro (2005, p. 207-208).

51
melhora. Estes outros sentidos, me parece, possuem uma relação maior com o que Dona
Egina disse sobre “dar uma experimentada no meio do mundo”. A experiência, nesse caso,
parece ter um destaque maior do que o caçar melhora.
Maria, por exemplo, me contou sobre os movimentos de sua família. Disse que o pai
era baiano de Juazeiro. Ela, contudo, nasceu em Januária, pois era onde os pais estavam
vivendo na época do seu nascimento. Ainda quando criança retornou com os pais para a
Bahia e, finalmente, quando se casou, partiu com o marido e as filhas novamente para
Januária. Sobre o seu retorno, Maria conta:

Quando eu vim de lá para cá eu vim no barco com essas meninas tudo


pequena. Nedina com dez, a outra com nove, a outra com cinco, e eu com
a barrigona da outra. Nós viemos foi de barco, passemos acho que um mês
pra poder chegar aqui, porque é longe pra vim remando. Aí era eu e meu
marido no remo, remando, remando... Ele fez uma cobertura no barco,
tinha um pau assim que ele botou no banco do barco e botou um pano
enviesado, até eu costurei de saco de pano, aí fez um pano, quando tinha
um ventinho abria ele e o ventinho ia levando o barco, era um alívio pra
nós, não pegava no remo pra remar, e quando o vento parava que não dava
pra pegar pra subir, subia uma légua assim subindo, quando parava era só
no remo, no remo até quando nós chegamos aqui. E daqui não saímos mais,
na beira do barranco, até hoje levando a vida assim desse jeito (Maria,
Croatá, 2018).

Outro fator que contribuía para estes deslocamentos, apontado por Luz de Oliveira
(2005), era a “existência de transporte regular de passageiros feito pelas barcas e vapores
que circulavam na porção navegável do rio” (LUZ DE OLIVEIRA, 2005, p 58). Neves
(1991) também menciona que mesmo aqueles que se dirigiam mais ao sul, tinham o São
Francisco como caminho natural e, assim, muitos destes paravam no meio do caminho
fixando residência na porção mineira do grande rio. Como descreve Pierson (1972b), embora
muitos fizessem estes deslocamentos a pé, o rio São Francisco também serviu durante anos
“como principal artéria ao longo do qual fluiu grande parte das levas de migrantes do Norte
paras as grandes e pequenas cidades e fazendas do Sul” (PIERSON, 1972b, p. 49-50), algo
que só se reduziu com a ampliação do número e aumento da qualidade das estradas por onde
seguiam os caminhões, os conhecidos “paus de arara”.
Em 1937 o jornalista mineiro Orlando Carvalho viajou pelo rio São Francisco e,
como fruto dessa viagem, escreveu a reportagem ilustrada O rio da Unidade Nacional: o
São Francisco. Em uma passagem desta reportagem Carvalho (1937) narra que, ao conversar
com um barranqueiro trabalhador dos arredores do município norte-mineiro de Ibiaí, lhe

52
perguntou como se chegava à povoação mais próxima. A resposta, conta o jornalista, foi a
seguinte: “ele respondeu, apontando para o rio: - ‘Essa é a estrada que nós transata!’”
(CARVALHO, 1937, p. 91, grifos do autor).

Figura 2 - Bibi conduz barco no rio São Francisco


Fotografia: Izadora Acypreste, 2018.

Maria mesmo conta que, no tempo dos vapores, viajou muito para Juazeiro e Bom
Jesus da Lapa, na Bahia. Seu Saulo disse o mesmo, pois, vindo da Bahia, chegou em Januária
de vapor. Já Seu Arnaldo, vazanteiro morador de Croatá, ao me falar sobre sua origem, disse
que sua mãe era baiana e que veio para a região de Januária de barca, isto é, em um período
talvez anterior à intensificação da circulação dos vapores no rio São Francisco.27
Histórias como estas também foram encontradas por Luz de Oliveira (2005) entre os
vazanteiros dos municípios de Manga, Itacarambi, Matias Cardoso e Januária. Para autora,

27
A introdução dos vapores no rio São Francisco ocorreu no final do século XIX. Em Minas Gerais, a viagem
inaugural foi realizada em 1871 pelo vapor Saldanha Marinho. Na Bahia, o mesmo ocorreu com o vapor
Conselheiro Dantas. No entanto, “a navegação mais sistemática de vapores no São Francisco só se iniciou a
partir de 1890, quando a Companhia de Viação Central do Brasil, com sede no Rio de Janeiro, passou a deter
a concessão do Estado de Minas Gerais para explorar a navegação no São Francisco pelos cinquenta anos
seguintes. A partir daí, diversos outros vapores foram sendo incorporados à sua frota” (CORREIA, 2013, p.
55-56).

53
estas “andanças” foram motivadas pelos recursos naturais e condições de vida nas margens
do rio, que seriam melhores que as do sertão da Bahia. Por outro lado, a origem desses
antepassados nos leva a observar um aspecto relevante a respeito das narrativas etnográficas
referentes ao processo de povoamento da região do Norte de Minas, especialmente o
povoamento por negros fugidos e alforriados. Autores como Costa (2005) e Costa Filho
(2008) discutem que a endemia da malária ao longo dos rios Verde Grande e Gorutuba
(afluentes do São Francisco) permitiu que estas regiões se tornassem refúgios para os negros,
conformando o que os autores chamam de um “campo negro”, que se constitui por uma
“série de grupos locais aparentados, configurando uma continuidade estrutural em pequenos
espaços territoriais descontínuos” (COSTA FILHO, 2008, p.64). Costa Filho (2008), a partir
de sua pesquisa com o “povo gurutubano”, também afirma que não se tratam “apenas de
famílias ou grupos de famílias que migraram para pequenas cidades e para outras regiões,
mas também comunidades negras rurais inteiras que guardam proximidade estrutural com
os Gurutubanos” (COSTA FILHO, 2008, p.64)28. Segundo o autor, as primeiras menções a
estes coletivos fazem referência à um aquilombamento de negros, que se instalaram no vale
após a Lei Áurea.
Não obstante as afirmações de ambos autores sobre as relações estabelecidas entre as
diferentes comunidades quilombolas localizadas no vale do rio Verde Grande com o “povo
gurutubano”, bem como a existência de um “campo negro”, o que me interessa nestas
reflexões é a conexão entre a localização das comunidades quilombolas e a presença da
malária. Neves (1991, p. 175) já havia notado, em suas passagens pelo vale do São Francisco,
que a malária era responsável “por muitas agruras do povo ribeirinho”. Pierson (1972a, p.
35) também destacou que, ao longo do curso médio do rio, existem depressões que, durante
as cheias, “se enchem de água (e de peixes) e, na estagnação que se segue as cheias, tornam-
se extensos focos de criação de mosquitos”. Observações sobre a presença da malária nos
terrenos baixos das imediações do rio também foram feitas por Wells (1995).
Durante a realização da pesquisa de campo pude ouvir relatos dos moradores sobre a
malária, também conhecida por maleita ou sezão, uma doença causada pela picada do
mosquito (do gênero Anopheles) que infesta as “águas podres” ou maresia, acumuladas em

28
O quilombo do Gurutuba se constitui por aproximadamente cinco mil pessoas distribuídas em vinte e sete
grupos locais, que ocupam as margens férteis do rio Gorutuba. Sua localização se espalha entre diversos
municípios do Norte de Minas, sendo eles Porteirinha, Pai Pedro, Janaúba, Gameleiras e Jaíba (COSTA FILHO,
2008). Conforme contam as famílias de Sangradouro Grande, um de seus ancestrais, Eduardo Batista, tem sua
origem no Gurutuba.

54
alguns lugares após as enchentes do rio.29 Seu Vicente, por exemplo, me contou que “sofreu”
com a doença, tendo como sintomas a febre e os calafrios. Ele lembra que a maleita,

De primeiro tinha muito. Quando enchia, o povo falava que a maresia da


enchente é que fazia essa doença. Falava: “olha, vocês não beiram lá”. A
maresia era aquela coisa podre assim, que a água matava né, água quente
da enchente, matava e então ficava aquele fedor e aquelas águas fazem mal
(Seu Vicente, Gameleira, 2018).

Os poços de água formados pela enchente permaneciam com estas “águas podres”
até secarem. Como disse Totinha, outro morador de Gameleira, por causa daquelas “águas
que ficavam represadas, as vezes algum mosquito pegava a gente, a gente naquela época não
sabia o que vinha a ser, hoje a sabedoria veio de mais uns tempos pra cá, antigamente a
pessoa adoecia e não sabia do que estava doente”.
Em relação à malária, dois aspectos me parecem interessante para compreender o
estabelecimento dos moradores na beira do rio, lugar onde havia muitas terras férteis, fartura
e peixes em abundância, mas também a maleita. Por causa da doença, as terras na beira do
rio eram, me disse Seu Arnaldo, desvalorizadas. Como ele explicou, “quando a SUCAM
combateu essas doenças, aí agora essas terras valorizaram para eles”30. O “eles”, de que fala
Seu Arnaldo, são os fazendeiros criadores de gado. Assim, por ser uma área com endemia
da malária, não eram terras tão atrativas para os fazendeiros, que optavam por contratar
vaqueiros para trabalharem na região, o que, por outro lado, possibilitava o acesso da
população mais pobre nestas áreas de beira de rio. Sobre isso, Seu Santo explicou:

o gado era solto e quem cuidava era o pobre, o pobre era escravo, meu pai
era escravo, meu pai era empregado, né? E tinha vez que era até mesmo
obrigado. Mas eles tinham uma convivência de geração, então eles tinham
o remédio (Seu Santo, Croatá, 2018).31

29
A maleita, talvez por seus efeitos na constituição da população regional, também está presente na literatura,
pois foi o título atribuído ao romance escrito por Lúcio Cardoso, que narra a saga de seu pai na tentativa de
integrar a cidade de Pirapora ao sistema econômico regional.
30
A extinta Superintendência de Campanhas de Saúde Pública (SUCAM) era responsável pelo combate das
grandes endemias. A instituição trabalhava em forma de campanhas, como a “Campanha contra a Varíola” e a
“Campanha contra o Anopheles gambiae” (malária), que foram desativadas após alcançado o objetivo. Como
informa documento do Ministério da Saúde, intitulado A SUCAM e as endemias 1990/1994 e disponível em
“http://bvsms.saude.gov.br/”, “com o advento do DDT” (pesticida diclorodifeniltricloroetano, banido em
vários países, inclusive no Brasil por volta de 1970), “iniciou-se no final da década de 50 as operações de
ataque em toda a área malárica do país (...) objetivando, com a eliminação dos vetores infectados, interromper
a transmissão da doença”.
31
É importante explicar que a utilização dos termos escravo ou escravidão pelos quilombolas ribeirinhos não
tem necessariamente uma conexão com este recorte temporal que normalmente associamos ao período histórico
da escravidão no Brasil. Quando estes termos são mencionados, geralmente estão relacionados a uma
intepretação do próprio narrador sobre um período que este considera como de mais precariedade, dificuldade

55
O outro aspecto interessante sobre a fixação do povo quilombola na beira do rio é o
conhecimento destes sobre as plantas e chás utilizados para o tratamento dos sintomas da
malária. Quando perguntei para Seu Arnaldo, morador de Croatá, como os antigos faziam
para lidarem com a doença, ele disse que “eles conviviam porque os vazanteiros não olhavam
essa parte da doença, porque o modo que tinha era pescar, aproveitar o peixe que ficava na
época da seca, então eles ficavam”. Seu Arnaldo também explicou que a maioria das pessoas
não tinha problema com a doença, isto porque “daqui mesmo eles tiravam o remédio para
combater a malária”. Os remédios, de que fala meu interlocutor, são o fedegoso, o São João
cequeiro e a favaquinha (ou alfavaca). Desses remédios, ele explicou, “a gente fazia o
xarope”. Além das plantas, Seu Arnaldo acrescentou: “tem também banha de capivara,
própria para expectorar, porque a malária vem trazendo esse catarro, então tomava bastante
chá com a gordura de sucuriju, de capivara, tudo era remédio”.
A respeito do que fala Seu Arnaldo sobre a convivência com a doença, bem como
sobre os remédios usados pelos ribeirinhos, Wells (1995) também menciona que, mesmo
tomando os cuidados para não sofrer com a malária, inevitavelmente foi acometido pela
doença, assim como a maior parte da população ribeirinha. Na ocasião, narra o viajante, foi
motivo de chacota dos homens que o acompanhavam. Wells (1995, p. 220) também fala da
estratégia de um de seus homens que, “apavorado com a ocorrência de febre, cortou uma
bengala de uma arvore de pau-pereira, cuja casca é um bitter aromático e antifebril, e a
carregava com ele constantemente, mordiscando-a pelo caminho, apesar dos comentários
jocosos de seus companheiros”.
Araújo (2009) descreve, em sua dissertação de mestrado, a narrativa de um
representante da “elite regional”, a partir de suas memórias publicadas em livro. Na narrativa
deste memorialista, bem como na análise feita pela autora, há uma forte conexão entre a
desinsetização das áreas infestadas pelos mosquitos transmissores da malária, a construção
da estrada de ferro e o surgimento das grandes fazendas nas margens do São Francisco e
seus afluentes, reforçando o que disse Seu Santo, de que apenas depois do combate da

e falta de liberdade e fartura. A escravidão também aparece relacionada à outras formas de categorização do
tempo na beira do rio, que será discutido no Capítulo 3. Se a Lei Áurea, para nós, para o direito, para a história
e para o Estado brasileiro, marcou um ponto de transição entre a escravidão e a liberdade da população negra,
para os quilombolas ribeirinhos, em suas vidas cotidianas, esta transição ocorreu de forma gradual. Talvez, por
essa razão, quando falam de escravo e escravidão, a referência não seja exatamente ao período anterior à Lei
Áurea.

56
malária é que as terras passaram a ter valor para os fazendeiros. No trecho citado pela autora,
o memorialista diz:

os inseticidas e o aralém permitiram aos nossos pecuaristas invadirem o


Vale do Rio Verde Grande, com suas terras maravilhosas, antes totalmente
proibidas pela altíssima incidência da malária. Foi assim que surgiram as
primeiras grandes fazendas, enriquecidas de exuberante pastaria do
colonião. Podemos dizer que os nossos fazendeiros desceram os cerrados
e caminharam para a riqueza dos vales” (MAURÍCIO, 1995, p. 163, apud
Araújo, 2009, p. 141, grifos da autora).

Finda a navegação do rio por meio das barcas e vapores, e paralelamente à “invasão
das fazendas”, esta movimentação de pessoas, vindas de outras regiões para a beira do rio,
se reduziu bastante. Ainda existe uma grande movimentação de barcos pelo rio, mas em sua
maioria para a realização da pesca. Contudo, mesmo com a diminuição da navegação, ainda
existe uma intensa circulação de pessoas pela terra firme. Outros moradores relatam ter suas
origens em outros lugares próximos das comunidades onde vivem atualmente. “Só passou a
perna para cá”, disse Dôra ao falar sobre a vinda de seu marido João, de Palmeirinha –
localidade situada na margem direita do rio – para a margem esquerda. Dôra também contou
que veio do rio do Peixe, assim como Dona Egina, já apresentada anteriormente. Apesar da
origem comum, Dôra explicou que ela era do quilombo do Inhau, já Dona Egina, de outro
que “tem perto da Lagoa Grande”. Isto porque, segundo Dôra, “é porque divide os nomes
dos lugarejos”, mas “é um lugar só”.

Nasci lá no rio do Peixe, outro quilombo que tem, fica pra cá de São
Francisco, mas é do lado de cá também, tudo desse mesmo lado, tudo um
quilombo só. Porém, a gente mudou pra cá porque lá não tinha o colégio.
Tinha o colégio, mas só até a quarta série, então meu pai veio morar aqui,
mas aqui, porém, não é perto da cidade, mas dava pra gente estudar. E
quando eu casei eu parei de estudar. Depois de vinte anos de casada eu
voltei estudar e me formei no ensino médio pra poder a gente seguir em
frente, né!? Não pode parar!32 (Dôra, Croatá, 2018).

Certa vez, enquanto conversava com Madalena em Sangradouro Grande, ao


comentarmos sobre os moradores da comunidade, chegamos ao nome de Aparecida, que

32
Quando Dôra disse que “não pode parar”, ela está se referindo a um outro tipo de movimento necessário para
a efetivação das lutas pelo território. O movimento, neste caso, não está relacionado apenas ao deslocamento
do corpo de um lugar para o outro, mas também a uma constante busca por conhecimentos que possam garantir
seus direitos de acesso à terra enquanto pescadores quilombolas. Sobre esta discussão, ver Mourthé (2021),
que realizou uma pesquisa junto aos quilombolas norte-mineiros sobre suas “andanças” e “lutas” no mundo
dos movimentos.

57
morou por muito tempo perto do Sangradô Grande. Nesta conversa, descobri que Aparecida
“desceu para baixo” e que agora estava morando em Croatá. Estas mudanças ao longo da
margem do rio são frequentes; contudo, como observou Madalena, para aqueles que
estiveram “sempre na beira do rio”, que têm vivido por um longo tempo ali, “não tem jeito
de ficar longe, não”. Relacionado a esta movimentação, Madalena afirmou: “tudo quando é
lugar nessa beira de rio nós temos parentes”. Naquele momento ela falava de sua filha, que
mora em Caraíbas, outra comunidade quilombola situada na margem direita do rio, em
Pedras de Maria da Cruz. Também contou sobre seus parentes, filhos de seu tio Joaquim
Batista, que moram “lá, subindo a beira do rio, para rumo de são Francisco, no rio do Peixe”.
Sobre seus parentes, ela disse que, apesar da movimentação, está “todo mundo na beira do
rio”, onde sempre moraram.
Essa movimentação de pessoas pelo rio e suas margens, se comparada com os relatos
dos tempos antigos, atualmente é bastante reduzida. As dificuldades de acesso às terras têm
diminuído a circulação pela beira do rio, salvo aquelas para ilhas, que continuam se
formando, crescendo e se desmanchando a cada ano. Grande parte das movimentações hoje,
principalmente dos mais jovens, tem se intensificado e são para os grandes centros urbanos
em busca de trabalho “com carteira assinada”. Suas causas estão relacionadas ao mais
recente regime de uso e acesso às terras.33 Apesar disso, algumas características e
consequências destas movimentações, que fazem parte do modo de vida destes coletivos,
ainda persistem. Considero que uma delas é a acolhida. A outra pode ser observada através
do parentesco, mais especificamente através dos casamentos entre os quilombolas
ribeirinhos.
A acolhida foi mencionada como prática dos moradores da beira do rio. Seu Vicente
de Gameleira é herdeiro da certidão das terras de sua mãe de criação, Catarina Lopes.
Quando, na década de 60, um fazendeiro local ameaçou tomar suas terras, ele conseguiu
pagar pela escritura da sua área. Como ele conta, o seu medo era que sua família passasse
pela mesma situação que via as pessoas que trabalhavam para o fazendeiro passando. Como
contou o morador, aquelas famílias que viviam como agregadas, “se o marido morresse, a
mulher e filhos eram mandados embora da fazenda”. Ele disse que “as mulheres botavam a
trouxa na cabeça, um ou dois filhos pequenos que tinha, e descia”. Sobre isso, ele continuou
me explicando: “era isso que me doía, imaginava não ter o lugar, ao menos um barraco para

33
Não irei discutir neste momento as mudanças que ocorreram em relação ao acesso da terra na região, pois
estes dados serão apresentados no Capítulo 3.

58
morar”. Por causa disso, Seu Vicente foi agregando o povo, acolhendo-os nos limites de
suas terras.
Outras histórias também destacam estas acolhidas diversas, como a narrativa de Seu
Saulo abaixo. Lembremos que Seu Saulo é um dos moradores que veio da Bahia e, na sua
chegada, se instalou primeiro na cidade de Januária, até que conseguisse uma vazante para
trabalhar.

Eu estava lá na rua parado, sem fazer nada, só bebendo cachaça. Aí ela


passou lá um dia, digo: “Dona Arlinda, quero conversar um negócio com
a senhora”. Ela disse: “pode falar Seu Saulo”. “A senhora não quer dar
aquela terra para mim trabalhar não, moça? Eu estou aqui só bebendo
cachaça e não tá dando certo não, quero arranjar um lugar pra mim
sossegar”. [Dona Arlinda disse:] “Vem amanhã, ou hoje mesmo se o
senhor quiser ir, eu lhe arranjo lá”. Aí ela me arranjou, veio me mostrar aí,
no outro dia eu pulei para dentro. Aí eu vim para essa vazante aí, eu estava
trabalhando pra mim e ela. Aí depois ela disse: “Seu Saulo, o senhor é um
homem trabalhador e o senhor merece, eu vou lhe dar esse pedaço pro
senhor aqui, o senhor fica cuidando do seu e do meu”. Ela foi e dividiu a
terra mais eu, me deu uma parte e ficou com a outra. Morei lá, sozinho e
Deus, depois os filhos meus foram chegando devagarzinho, devagarzinho.
Morei lá 12 anos até que eu ajeitei meus papeis de eu aposentar lá mesmo
(Seu Saulo, Croatá, 2018).

Na comunidade de Croatá, em frente à casa da minha anfitriã, Enedina, existem duas


placas (imagem a seguir) com os dizeres: “Comunidade Quilombola” e “Casa da Benção
família Santos”. Ao longo das minhas estadias em Croatá pude compreender o nome
atribuído à esta residência enquanto Casa da Benção. Logo ao lado da casa de Enedina existe
uma Casa de Farinha, que serve de espaço para os moradores se reunirem entre si ou com
as pessoas “de fora”, isso enquanto esperam condições melhores para a construção de uma
sede para a associação de Croatá. Assim, me explicou Enedina, o nome benção está
relacionado à postura de acolhimento da própria comunidade aos que ali chegam para somar
forças, para “repartir o pão”. Esta explicação, me parece, se conecta com o modo com que
os quilombolas ribeirinhos estabelecem suas relações, seja entre si ou com outros chegantes.

59
Figura 3 - Casa da Benção, a casa da acolhida em Croatá
Fotografia: Izadora Acypreste, 2018.

Relacionado as práticas de acolhida, Neves (1991, p. 144) menciona o que ele


chamou de “um tipo de relação social (...) amplamente difundida no Médio São Francisco”.
Esta relação seria a de amizade, algo que também me foi explicado por um quilombola de
Sangradouro Grande.34 Zé Orlando, atual presidente da associação desta comunidade,
considerou que “o importante de tudo, de nós vivermos nesse mundo aqui é ter amizade”.
Segundo ele, “amizade vale mais do que um pedaço de terra”, pois, caso um dia precise de
algo, poderia contar com os amigos. Ele explicou dizendo que se um dia ele estivesse em
São Carlos, local onde residia no período da pesquisa, tendo meu telefone e criando uma
amizade comigo, ele teria um lugar para encostar. Caso contrário, criando uma

34
Outras práticas associadas a “amizade”, “consideração”, “solidariedade”, “hospitalidade” e “intimidade”
também foram discutidas por Carneiro (2010), Benites (2010, 2015), Pina-Cabral e Da Silva (2013) e pelo
conjunto de trabalhos que compõe o livro organizado por Comerford, Carneiro e Dainese (2015).

60
“desamizade”, como ele iria “se virar”? O que mostra como estas reciprocidades, através das
acolhidas e da amizade, são importantes para os modos de se produzir relações na beira do
rio.
Outro aspecto que me parece estar diretamente relacionado com as movimentações
dos quilombolas ribeirinhos são algumas características singulares do parentesco. Trata-se
da quantidade de casamentos feitos, desfeitos e, principalmente, da liberdade das mulheres
para estabelecerem novos relacionamentos após estes rompimentos. Na beira do rio, as
mulheres parecem ter uma autonomia maior em relação aos casamentos, diferentemente do
modo como exercem sua condição de gênero em outros contextos rurais.35 Além das
genealogias de parentesco, algumas narrativas nos ajudam a compreender essa singularidade
em relação aos casamentos e rompimentos.
Seu Pedro, por exemplo, me contou que se casou duas vezes. Com sua primeira
esposa teve cinco filhos. Já no segundo casamento, disse ter ajudado a criar as filhas de sua
esposa. Em suas palavras:

Depois que eu criei as meninas ela me largou. Só queria era os filhos


criados. Trabalhei que nem um burro lá naquele São Paulo para dar o de
comer esse povo, meu pai do céu. Aí ela ficou com muito ré ré ré, aí eu:
“ó môço, quer saber? Tá com muito tempo, tá com muito imbróglio. Vou
cascar fora”. Saí, larguei ela lá. Saí para vir pescar aqui e não fui lá mais
não. Tem mais de vinte anos (Pedro, Remansinho, 2016).

Seu Pedro conta sua história achando graça da experiência vivida. Em outra situação,
Totinha, de 60 anos e morador de Gameleira, perguntou se eu era casada. Ao respondê-lo,
dizendo que era ajuntada, ele refletiu dizendo que “a pessoa ajuntada é melhor que casada”,
pois “tem muitos casados que só Deus para ter compaixão deles, e o ajuntado está vivendo
até agora”. Depois disso ele conta sua história.

Igual nós conversando sobre problema de família, eu fiquei ajuntado um


bocado de ano, aí com os tempos eu casei no religioso, civil eu não sou
casado, aí casei no religioso, mas só casei também por causa dos dois
meninos meus que tinha que batizar, e na época eles falaram que se não
casasse não batizava. Eu acho que casei com má vontade da mulher, a
mulher não queria, ainda me xingou ainda. Foi! Não queria! Acho que ela

35
Talvez por causa da importância dada ao trabalho e à moralidade presentes na vida dos camponeses, os
estudos clássicos do campesinato (HEREDIA, 1979; MOURA, 1978; WOORTMANN, 1991; WOORTMANN
e WOORTMANN, 1997) acabaram por posicionar as mulheres em uma condição menor diante dos homens,
com pouca ou nenhuma autonomia em relação à família e ao trabalho na terra. Apesar disso, não creio ser
possível asseverar com toda certeza se estas diferenças se dão em razão do contexto da pesquisa ou se por uma
questão geracional. Para compreender isso seria necessária uma discussão mais profunda sobre as questões de
gênero na beira do rio, algo que não pretendo fazer nesta tese.

61
queria viver a vida dela igual era mesmo, ajuntado. Aí como eu falei que
tinha que casar, se não, não fazia o batismo dos meninos, e os meninos
ficar toda vida assim não dava. E hoje, engano! Não tem nada a ver não.
Filho de crente fica aí até na época certa que ele fala assim: “pai, eu quero
ser batizado em tal igreja”. Eu não tinha casado com ela. Ela não queria
casar comigo, não sei por qual motivo que ela não queria. Não tinha
casado! Quando nós vivíamos junto era melhor do que casado. Nós
estávamos vivendo tranquilo. Mas teve umas épocas que não podia olhar
pro outro, diz que foi coisa feia que fizeram, fizeram porqueira pra nós,
nós não vivíamos assim não. Nós vivíamos uma vida que nem príncipe não
vivia igual eu vivia mais ela, uma vida tão boa. Depois que mudou pra aqui
que começou esses problemas horrorosos (Totinha, Gameleira, 2018).

Seu Zé Bete também fala que se casou “rapaizão velho” e não tem “um filho
particular no mundo”. Quando se casou, ajudou a criar a filha da esposa durante os nove
anos de casamento. Depois que a filha já estava casada, “com a continuação” da vida
conjunta, Seu Zé Bete se “desentendeu” com a mãe das meninas e, como conta: “ela partiu
para um lado, eu parti para outro, não ficou rastro, rastro é filho, nós não tínhamos, a que
ela tinha eu zelei, casei, tudo. Os meninos dela me chamam até hoje de vô, dessa menina que
eu zelei”.
Apesar de todas as estórias acima serem narradas por homens mais velhos, entre 60
e 90 anos, o que venho chamar a atenção ao apresenta-las é a forma com que elas são
contadas. Os casamentos feitos e desfeitos, bem como a naturalidade com que isso pode
acontecer, narrados sem nenhum tipo de constrangimento por parte daqueles que contam,
me faz pensar sobre a liberdade também atribuída as mulheres em todos estes casos. Seu
Pedro, por exemplo, fala que a mulher o “largou”, “só queria era os filhos criados”. Totinha
também fala que casou “com má vontade da mulher”, pois a “mulher não queria”. Por fim,
Seu Zé Bete fala que a mulher “partiu para um lado” e ele, “partiu para outro”. Depois do
fim, zelou pela filha da ex esposa.
Para não ficarmos apenas com os casos contados pelos homens, em meus primeiros
períodos de campo na beira do rio conheci Marlene que, na época, tinha aproximadamente
vinte e um anos de idade. Quando a conheci, Marlene morava com Rafael, com quem tem
uma filha. Junto com eles também moravam os dois filhos de Marlene, frutos de um
casamento anterior. Em 2017, em retorno a esta comunidade, encontrei Marlene novamente,
desta vez ajuntada com Seu Fabiano. Nesse período, Marlene e Rafael haviam se separado,
tendo Rafael ido morar em São Paulo enquanto Marlene, com Seu Fabiano. Este último,
embora seja casado no papel, não estava vivendo com a esposa Adila, que nessa época estava
morando “nas Pedras”, forma como se referem a cidade de Pedras de Maria da Cruz. No

62
ano seguinte, em 2018, ao chegar na beira do rio e perguntar por Marlene, descobri que ela
estava vivendo nas Pedras, que havia largado Seu Fabiano e estava grávida de alguém que
não tive a oportunidade de conhecer. Em visita a Seu Fabiano encontrei, além de uma casa
maior, também sua esposa Adila.
Para o caso desta estória, o nome dos envolvidos foram trocados, pois, embora sejam
estória conhecida por mim e pelos outros moradores, sendo, vez ou outra, comentários a
respeito do assunto jogados durante as conversas que tive com os interlocutores mais
próximos, não é o tipo de conversa que se poderia ter com qualquer um ou a qualquer hora,
por uma questão de consideração e respeito aos envolvidos na estória, principalmente em
relação a Adila. Ao discutirem sobre a “prosa” em diversos contextos rurais de Minas Gerais,
Comerford, Carneiro e Dainese (2015, p. 26, grifos dos autores) chamam a atenção para o
fato de que ela é responsável pela criação da intimidade e que ela também “multiplica-se em
sua diversidade: causos, conversas, conversinhas, brincadeiras, boatos, cartas anônimas,
entreditos, dizeres, rezas, fofocas, feitiços e daí por diante”. A partir disso, os autores também
afirmam que “nunca se poderá eliminar por inteiro o risco do conflito gerado por uma palavra
mal dita, por um silêncio suspeito, por uma risada fora de hora” (COMERFORD,
CARNEIRO e DAINESE, 2015, p. 25). Considerando as afirmações dos autores, ajo com
“consideração” aos envolvidos, retirando seus nomes do “causo”.
Esta escolha também está relacionada à outra experiência com os mesmos
interlocutores, que corrobora a discussão dos autores sobre a “prosa”. Em 2018, fui a campo
levando comigo fotografias que havia tirado dos moradores. Com o intuito de mostrar as
fotografias aos fotografados, mas também de reestabelecer os vínculos após um período
ausente, cheguei à casa de Seu Fabiano. Nesse período, Seu Fabiano já estava vivendo com
Adila. Contudo, nas fotografias registradas, existiam algumas imagens de Marlene com seus
filhos na casa de Seu Fabiano. Identificando a situação embaraçosa, retirei tais fotos, sem
que Adila pudesse ver. No mesmo dia, algumas horas depois, estava marcada uma reunião
da associação em outro local da comunidade. Neste momento, em que eu e as fotografias
estávamos presentes, as fotos circularam novamente pelas mãos dos moradores. Seu
Fabiano, ao ver as fotos de Marlene com seus filhos, comentou que aquela não estava entre
as outras que eu havia levado para sua casa. Em resposta, eu disse que tinha destacado ela
das outras. Seu Fabiano, então, deu uma risada. As outras mulheres presentes na reunião
também riram e comentaram que eu já estava “sabendo das coisas”. O assunto, contudo,
ficou nas entrelinhas, no entredito. Naquele momento, percebi que a prosa, bem como o meu

63
cuidado e descrição com ela, me tornou “mais chegada”, isto é, alguém com quem aqueles
interlocutores podiam compartilhar “outras prosas”.
Nesse sentido, uma moradora de uma das comunidades da beira do rio, enquanto
estávamos sentadas na varanda de sua casa, também compartilhou comigo um boato. Ela,
naquele momento, viu passar um casal de bicicleta pela estrada de chão que fica logo em
frente de sua casa. Na bicicleta, um homem pedalava enquanto uma senhora era levada na
garupa. Logo em seguida, minha interlocutora comentou que ali era assim mesmo. Deu uma
risada e explicou que o homem que pedalava já havia sido marido da filha da senhora que
era carregada na garupa. Agora, no entanto, havia deixado a filha e estava namorando a mãe
da ex-mulher.
O boato contado por minha conhecida, bem como a estória de Marlene, me parece
bastante expressivo no que diz respeito as formas de casamento e “ajuntamentos” na beira
do rio. Formas que expressam, de alguma maneira, a liberdade dos homens, mas também
das mulheres, de se ajuntarem e se separarem quando a situação for conveniente36. Em sua
pesquisa com os moradores da Ilha do Massangano, Nóbrega (2019), ao discutir as questões
de gênero, descreve que na Ilha as mulheres se orgulham de serem “trabalhadeiras”. Na
ausência dos homens, que frequentemente viajavam trabalhando nas barcas e vapores, elas
não apenas criavam seus filhos sozinhas como também aprendiam a se virar sozinhas. Como
narra a autora:

Nas temporadas das “carreiras grandes”, em que os homens chegavam a


ficar cerca de três meses fora, no rio “de cima”, aquelas que “alcançaram
esse tempo” lembram saudosas do costume de seus homens as deixarem
com “menino no bucho” para, na volta, encontrarem-nas já com “os
meninos nas costas”, como brincou certa vez Dona Amélia. Entretanto, não
era raro também o contrário acontecer: os homens voltarem com seus filhos
já nascidos, frutos de outras relações estabelecidas ao longo da travessia
entre um porto e outro. Foi o caso de Rosa, filha de Raimundão, que a
trouxe de Januária para que seus pais – Ulisses e Avelina, a quem Rosa
também chamou de “pai” e “mãe” – a criassem. Ou o caso de Dona
Francisca, que acolheu não apenas Maria e Mazinho, os filhos bastardos
de seu marido Berto Barrinha, como também “a outra mulher” dele, que,

36
Ao fazer esta afirmação, não ignoro as situações difíceis que as mulheres vivenciam com seus maridos e
parceiros, situações, por exemplo, de violência doméstica. A própria Marlene me contou que teve problemas
em seus casamentos, isto porque alguns de seus parceiros gastavam o dinheiro que recebiam com “cachaça”
fazendo com que ela tivesse que se responsabilizar sozinha pela manutenção da casa e dos filhos. Outras
situações narradas por ela se referem as tentativas de violência por parte de alguns de seus ex-companheiros.
Um dos fatores a que ela atribui a sua liberdade de escolher com quem ficar, e se ficar, é o recebimento do
Bolsa Família. Ela explicou que, com o recebimento do auxílio, não precisava mais permanecer em um
relacionamento que considerasse ruim e, por causa do recurso, poderia priorizar seus filhos.

64
cozinheira dos barcos onde o marido foi mestre, “caminhou foi muito mais
ele” (NÓBREGA, 2019, p. 117).

Com estas discussões sobre a acolhida e sobre algumas características dos


casamentos e ajuntamentos, a ideia foi apresentar brevemente como a movimentação de
gente pela beira do rio, saindo ou chegando, tem efeitos nas dinâmicas de vida dos
quilombolas ribeirinhos. Mais sobre as relações de parentescos será discutido na segunda
parte da tese.
De um modo geral, o que procurei mostrar nas duas seções deste capítulo é como o
rio permite a constituição de uma paisagem singular, na medida em que cria as condições
para formação de um sistema próprio de se estabelecer relações, que se dá através das
acolhidas e dos ajuntamentos. Um sistema que difere daquele de outros coletivos, como o
povo dos gerais. Além disso, seja através do rio, seja ao longo de suas margens, o sistema
ribeirinho envolve uma constante movimentação, o que permite a criação das condições,
moralmente aceitas pelos seus habitantes, para que cônjuges larguem uns aos outros e
pessoas possam cascar fora para caçarem melhora ou experimentarem o meio do mundo
quando a situação se mostra necessária ou favorável. Apesar desta movimentação
característica do povo da beira do rio, eles não são os únicos a se movimentarem e, por essa
razão, no próximo capítulo continuarei desenvolvendo algumas reflexões sobre o rio,
abordando dessa vez o movimento das águas que, com todas as suas forças, banham, lavam,
comem e criam a terra, propiciando sempre uma renovação, tanto da própria terra quanto da
vida dos quilombolas ribeirinhos. O rio, como veremos, não cria apenas condições para a
constituição de um sistema, algo que será retomado na segunda parte da tese; ele cria
igualmente as condições para a própria vida dos quilombolas e dos outros viventes.

65
Capítulo 2
CHEIAS E VAZANTES

2.1. O caminho das águas e o gesto da terra

O São Francisco, também chamado pelos quilombolas de Chicão, é o maior rio


exclusivamente brasileiro. Este nome foi atribuído pelos colonizadores em um 4 de outubro,
dia consagrado à memória de São Francisco de Borja. Porém, os numerosos povos indígenas
que viviam e vivem ao longo do rio o chamavam e ainda o chamam de Opará (como o povo
Tuxá, apresentado por Ramos, 2020) ou “Pará” que, segundo Pierson (1972a), significa
literalmente “o mar”. Nascendo na Serra da Canastra, o Chicão atravessa os estados de Minas
Gerais, Bahia e, em certa altura, estabelece a fronteira geográfica entre os estados da Bahia
e Pernambuco, bem como entre Sergipe e Alagoas. Suas águas, depois desse longo percurso,
se encontram com o Oceano Atlântico.
Durante o período colonial, nas primeiras incursões ao São Francisco, conforme
descreveu Pierson (1972a), diversos autores o compararam equivocadamente ao rio Nilo,
chamando-o de “Nilo Brasileiro”. Isto devido às suas enchentes periódicas e também por
correr em uma região semiárida ou quase desértica, que neste caso, são os biomas do Cerrado
e da Caatinga.
No que se refere às enchentes, aspecto principal a ser discutido ao longo deste
capítulo, é importante dizer que, nesta região do curso do rio, as águas correm por barrancas
baixas e uma planície inundável. As barrancas, por serem baixas e bastante arenosas, cedem
com facilidade, principalmente durante as enchentes anuais. Os terrenos circunjacentes são
em grande parte planos e, durante os períodos de grandes cheias, são inundados com as águas
do São Francisco ao longo de uma extensão de até 10 quilômetros terra adentro. O rio, na
medida em que ganha força com as enchentes, também abre caminhos por novos lugares e,
quando volta ao seu nível normal, deixa para trás ilhas, bancos de areia e lagoas (PIERSON,
1972a). Estas dinâmicas do rio são acompanhadas pelos quilombolas ribeirinhos, que
estabelecem seus próprios engajamentos com estes ciclos. Como afirmamos em outro
momento (ACYPRESTE et al., 2018), os fluxos do rio são o que marcam a forma como os

66
quilombolas compreendem as interações entre as variações do revelo, dos solos e da
vegetação na beira do rio.
Como discutiu Luz de Oliveira (2013a, p. 2), as margens e ilhas da porção norte
mineira do rio São Francisco são marcadas pela intensa movimentação da água, “pela
mobilidade das famílias sobre o território e pela mobilidade do próprio território” (LUZ DE
OLIVEIRA, 2013a, p. 2). Assim, se vimos até agora a movimentação de pessoas ao longo
do rio e por suas margens, agora podemos acompanhar a movimentação do próprio rio.
Movimentação que constitui a própria paisagem da beira do rio, tal como menciona a autora
supracitada ao falar da mobilidade do território, sendo esta característica algo também
explicado por meus interlocutores. Portanto, é através dos termos dos próprios quilombolas
ribeirinhos que procurarei, nesta seção, descrever a paisagem da beira do rio e como a
movimentação das águas faz parte da sua produção.
Em linhas gerais, esta porção do Chicão é composta por terra firme, o rio e as ilhas.
Na beira do rio, onde estão localizadas as comunidades de Sangradouro Grande, Croatá,
Várzea da Cruz e Gameleira, existem partes altas e baixas, sendo cada uma delas nomeadas
pelos habitantes.
As ilhas, como me explicou Seu Pedro da comunidade de Remansinho, são “sempre
um rio de um lado e um rio de outro”, embora ocorra, quando o rio deixa de passar em um
desses lados, da ilha emendar com a terra firme, virando tudo “uma coisa só”. Em outras
palavras: os dois lados do rio são chamados de canal, rio de dentro ou braço do rio – para
se referir ao lado mais estreito ou mais recentemente formado; e rio de fora, rio grande ou
São Francisco – para se referir ao lado mais extenso ou mais antigo do rio. Mesmo quando
ocorre das terras das ilhas se juntarem à terra firme, os moradores muitas vezes continuam
se referindo aquela porção de terra enquanto uma ilha.
Ao que me parece, existem duas razões que levam as ilhas a se juntarem com a terra
firme. Uma delas está relacionada com a degradação do rio e seu enfraquecimento, algo
sempre mencionado pelos moradores e que será discutido ao longo dos capítulos da tese.
Mas uma outra razão, que vale a pena mencionar agora, se refere ao “despencamento” dos
barrancos nas margens do rio. Quem me explicou sobre estes fenômenos foi Seu Vicente,
dizendo que, quando era noite, costumavam ouvir “aquele pancadão” do barranco caindo
na água. O rio, com toda sua força, ia abrindo caminhos nas partes inferiores dos barrancos
até chegar ao ponto deles despencarem. Tanto que, para quem navega de barco pelo rio, não
é aconselhável passar muito próximo aos barrancos. Como contou Seu Vicente, mesmo de

67
longe é possível ver “aquele rachadão”. Nestes casos, disse ele, é “quase certo do barranco
cair”.

Figura 4 - Barranco do rio


Fotografia: Izadora Acypreste, 2014.

Na porção denominada como terra firme, os moradores identificam as áreas de beira


do rio, barranco ou praia, de baixadas, baixas ou baixões, de vazante ou vazantão, de capão,
de lagadiço, de lagoa, de vargem ou várzea e de retirada, pé da serra, mata, carrasco,
caatinga ou cerrado. A terra firme também é cortada por diversos sangradô. Os
sangradouros “funcionam como veias, que alimentam as lagoas com a água do rio, o que
permite a reprodução dos animais e a produção de um modo de vida das pessoas que vivem
ali” (ACYPRESTE, 2015, p. 30). Nos períodos de grandes enchentes, o rio e as águas da
chuva enchem os sangradouros e os baixões, inundam as áreas de beira do rio, o barranco
e as lagoas e, na medida em que o rio vai vazando, formam-se lagadiços (também chamados

68
de lameiros). Os sangradouros e os baixões são os canais por onde o rio escorre durante as
cheias e que podem permanecer com água o ano inteiro. Estes canais possuem profundidade
entre três a dez metros e, como cortam os terrenos dos moradores, para atravessá-los durante
a cheia é necessária a instalação de pinguelas e, quando muito profundos, a utilização de
canoas.
A retirada, ou pé da serra, é o lugar para o qual os moradores destas comunidades
se movimentam para se protegerem nos períodos de grandes enchentes, levando consigo,
além de objetos pessoais e domésticos (roupas, panelas, ferramentas, entre outros), as
criações. A imagem abaixo ajuda a ilustrar como estas áreas se dispõem pela beira do rio.
Apesar da apresentação deste e de outros mapas, perfis e figuras ao longo da tese, suas
funções são meramente ilustrativas. Isto porque considero aqui as questões levantados por
Ingold (2000), de que as formas da paisagem emergem junto com a “taskscape” e, por isso
mesmo, estão em constante movimento. Embora estes mapas, perfis e figuras representem
alguns dos aspectos importantes da paisagem, eles não conseguem, por sua fixidez, figurar
outros tantos, como as plantas, os animais e seus rastros, a textura da terra ou mesmo os
compadres, que habitam certos lugares do rio, e as forças invisíveis, emanadas pela lua e
que também circulam nos corpos das pessoas.37 Nesse sentido, os mapas, mesmo que
ilustrativos, jamais poderiam substituir a descrição etnográfica destas constituições humanas
e não humanas da paisagem.

Figura 5 - Perfil: Morro do Itapiraçaba-Várzea da Cruz-Gameleira-Sangradouro Grande-rio São


Francisco
Fonte: ACYPRESTE et al., 2016.

37
Estes temas serão discutidos nos Capítulos 5 e 6.

69
A dinâmica das águas, ou o caminho das águas, é explicada pelos moradores e é um
importante aspecto para se compreender a paisagem da margem esquerda do rio e a vida, ou
as vidas, que acontecem ali. Estas vidas estão conectadas, como dissemos (ACYPRESTE et
al, 2018, p. 59), em uma “complexa e extensa rede de canais que interligam as lagoas e os
rios”, como o rio São Francisco, o rio Pandeiros e outros riachos, como o dos Cochos e o
Tejuco, “em um sobe e desce pelas ipueiras e sangradouros”. 38
Caminhando com Ramiro pelo vazantão na comunidade de Sangradouro Grande, eu
tentava entender por onde a água entrava e que direção ela tomava ao longo da margem do
rio. Em nosso diálogo, Ramiro explicou que o lugar onde estávamos era uma vazante que
seguia paralela ao Chicão, de maneira que as águas entravam de um lado e saíam novamente
no São Francisco, formando uma ilha entre o rio e a vazante. Em seguida, ele explicou que
aquele fenômeno sempre acontecia, pois era o caminho das águas.
Em um outro momento, entre as várias oportunidades que tive de circular pela beira
do rio com Ramiro, estávamos caminhando sobre a Lagoa das Garças. Como a lagoa estava
completamente seca, pudemos atravessá-la a pé. Em certa altura, quando estávamos bem no
meio da lagoa, finalmente pude entender a circulação de água pela margem esquerda. A
Lagoa das Garças fica situada entre as quatro comunidades onde realizei a pesquisa de
campo e, desse modo, estando ali bem no meio dela, pude compreender o caminho das águas
tão mencionado pelos quilombolas.

38
Ipueiras são charcos formados pelo transbordamento dos rios. Na região, como veremos, um dos riachos
também leva o nome de Ipueira.

70
Figura 6 - Lagoa das Garças durante a seca
Fotografia: Izadora Acypreste, 2016.

Apontando para o sul, Ramiro explicou que de lá vinham “duas águas” diferentes,
uma do rio São Francisco e outra do rio Pandeiros. As duas águas, juntas, enchiam a lagoa
durante as enchentes. As águas do São Francisco, para chegarem à lagoa, percorrem o
Sangradô Grande, que por sua vez, com sua profundidade de dez metros, percorre a
comunidade de Sangradouro Grande no sentido do rio até a Lagoa das Garças. Já as águas
do rio Pandeiros, a partir de canais que conectam um complexo de riachos, lagoas e outros
cursos de água, vêm “correndo devagar” até as Garças. Quando se juntam, a diferença é
nítida, uma vez que as águas do Pandeiros são límpidas e as do São Francisco são barrentas
durante as cheias. Da mesma forma, apontando para o norte, Ramiro disse que de lá também
vinham as águas do riacho Ipueira, represadas e empurradas pelo São Francisco, fazendo
conexão com um conjunto de lagoas até chegarem “nas Garças”. Como narrou Ramiro:

As lagoas lá, quando enchem, quando o rio está bem cheio, joga água nas
lagoas lá do Pandeiros, joga lá, lá represa, ela vem por dentro, represa no
Sangradô Grande e joga tudo nela [na Lagoa das Garças]. E na hora que
ela desce, sai na Ipueira lá em Januária. Isso aqui fica tudo alagado d’água.
Só fica os lombos. Tem vez que, quando fica bem cheio, a água passa por
aí tudo e vai até lá fora, lá forão (Ramiro, Sangradouro Grande, 2017).

71
Para me explicar o funcionamento dos fluxos de água que correm dos sangradouros
para as lagoas e depois para o rio, Seu Santo, vendo a minha aflição para tentar compreender
estes fenômenos, no momento em que estávamos nos arredores da Lagoa da Picada em
Croatá, elaborou a seguinte explicação:

Porque sangradô é, se nós formos ver direitinho, a terra é compartilhada


com o mesmo gesto que nosso corpo, que o coração que é a impulsão do
corpo, não é isso? E tem as veias, que transmitem o sangue para o coração.
Então, bem assim a terra. Aqui é um sangradô, olha. Sangradozinho. É
igual as veias do nosso corpo, tem uns mais, outras menos. Você entendeu?
Isso é um gesto da terra. Ela tem as opções para a água que cai aqui, que
escoa e cai aqui dentro. A tendência dela é levar para o coração. O coração
é quem? Aquela lagoa ali. A lagoa ali joga onde? Joga no rio, que é o
grande coração (Seu Santo, Croatá, 2018).

A sofisticação, beleza e delicadeza presente na explicação de seu Santo me fez


compreender que, mais do que entender de onde a água vem e para onde a água vai, o que
importa é que todo esse “sistema circulatório” da beira do rio é o que produz a vida da terra,
das pessoas e dos outros viventes. Através da água, que joga, vem, vai, desce, escoa, passa,
caminha, cai e banha, a terra pode crescer, aumentar, se fortalecer ou diminuir. Nessas
terras, os quilombolas cultivam suas plantas e criam seus animais. Terra e água, tal como
narra o Seu Santo, possuem seus gestos próprios. Neste caso, a relação entre as duas é uma
daquelas responsáveis por produzir a vivacidade e a dinamicidade da paisagem da beira do
rio. Podemos ver algo parecido na discussão apresentada por Echeverri (2004), quando o
autor defende o “território como um corpo”. Conforme sua discussão, a partir de suas
experiências de pesquisas realizadas entre indígenas na Colômbia, o território para estes
povos é entendido como um corpo vivente, que se alimenta, se reproduz e tem relações com
outros corpos (sociais e naturais). Nesta concepção indígena, portanto, o território adquire a
forma de uma rede ou entrelaçamento de relações que são apenas parcialmente mapeáveis e
nas quais o crucial não é a escala, mas os canais que conectam os nós de uma rede. Neste
caso, estes povos indígenas não se colocam na posição de observadores externos e acima dos
territórios, como alguém que olha um mapa aberto sobre uma mesa, mas estão localizados
em um de seus nós. Meus interlocutores, tal como fazem os povos indígenas colombianos
em relação aos seus territórios, se posicionam enquanto partes desse corpo vivente da beira
do rio.
Na figura a seguir, elaborada pelo projeto DS São Francisco, é possível visualizar o
movimento aproximado das águas nessa porção da margem esquerda do rio, isto é, as redes

72
ou canais que conectam os diferentes nós da paisagem. A respeito da imagem, como
apresentamos em outro momento,

Esse fluxo de água descendo por dentro paralelamente ao São Francisco e


subindo pelo Ipueira se intensifica até quando as águas de dentro ficam
comum com o São Francisco. A água acumulada é, em parte, drenada no
sentido da vargem da Caiçara e do Jacaré localizadas nas imediações da
comunidade quilombola de Várzea da Cruz, seguindo no sentido da
vargem da Grama e atingindo os arredores da cidade de Januária, quando
tende a se aproximar do leito principal do São Francisco. Assim, as águas
do Pandeiros, as que vertem dos cursos d’água secundários como o riacho
do Tijuco, riacho dos Cochos, as que chegam do São Francisco pelo riacho
Ipueira, mas também pelos sangradô, (...) conformam nesta situação uma
grande área alagada (ACYPRESTE et al, 2018, p. 90, grifos das autoras).

Figura 7 - Dinâmica das águas na margem esquerda do rio, entre o Pandeiros e Januária, com as
setas indicando o sentido do fluxo da água
Fonte: ACYPRESTE et al, 2016.

Esse conjunto de cursos d’água vindos de diferentes direções compõem, desse modo,
as planícies inundáveis da margem esquerda do rio, isto é, a beira do rio, onde vivem os
meus interlocutores. Os moradores contam que, nas grandes cheias, como a memorável
cheia de 79, os vapores que costumavam navegar pelo Chicão cortavam caminho em direção
à Januária passando pelo Sangradô Grande, pelas lagoas e pelo ricaho Ipueira, saindo
novamente no rio São Francisco.
Estes ciclos de cheias e vazantes, essa dinâmica de circulação das águas “por dentro”,
produzem a margem esquerda do rio São Francisco e, da mesma forma, os lugares de

73
convivência dos moradores, tais como lagoas, capões, vazantes, lagadiços, vargens, ilhas,
entre outros, onde também se produzem cotidianamente conhecimentos, práticas e
memórias, que se atualizam nos contextos atuais de lutas por direitos territoriais. A conexão
entre paisagem e direitos pode ser compreendida a partir de uma série de narrativas que tive
a oportunidade de ouvir em diferentes momentos ao longo da pesquisa, em que os moradores
elaboravam suas reflexões a respeito destes temas. Em uma reunião da Associação
Quilombola de Sangradouro Grande, por exemplo, Ramiro disse que “quando a água lava,
é tudo da União”. Já Seu Santo, em um outro momento, também disse que, se é terra da
união “então é terra do povo”. Para completar, Seu Saulo explicou que “a água, onde o rio
banha, tudo, o direito é do pescador, para se manter na beira do rio, plantar sua vazante, sua
rocinha e tudo”.39
Para retomar e aprofundar algo que já foi mencionado, a terra firme, ou o “complexo
terra-firme”, como denominou Luz de Oliveira (2005), é dividida entre as partes baixas e as
partes altas. Na parte baixa estão as diferentes subunidades da paisagem, ou as áreas, por
onde as águas caminham. Dentre elas, os quilombolas identificam as áreas de vazantão,
vazante, lameiro, lagadiço, baixa ou baixão, sangradô, lagoa, capão e vargem. Na parte
alta ou no alto, que são os lugares para onde os moradores se deslocam durante os períodos
de grandes enchentes, é onde eles identificam as áreas de retirada, pé da serra, carrasco,
caatinga ou cerrado.
Quando se referem ao vazantão, os quilombolas estão falando dessa enorme porção
da beira do rio que sofre influência direta das águas do rio e de seus tributários durante as
enchentes. O vazantão é identificado pelos habitantes como “uma área mais baixa”,
provavelmente onde antigamente passava o leito do rio, pois nela pode-se perceber os veios
de terra, ou remonte, que são pequenas ondulações no solo que o rio vai formando na medida
em que ele sobe durante as enchentes. O remonte, ou remonto, está relacionado ao fenômeno
das croas (nome atribuído às ilhas ainda em formação), momento quando as enchentes
fazem acumular terra no meio do rio, mas que apenas com outras futuras enchentes poderão
finalmente se constituir enquanto ilhas. O conjunto de camadas de terra acumuladas pelas
enchentes são chamadas de remonte. Sobre o remonte, Seu Santo também me explicou certa

39
Os quilombolas compartilham certas noções sobre direitos dos pescadores e vazanteiros em relação ao acesso
às margens do rio e ilhas, tendo como base a noção de união. Veremos mais profundamente sobre esta noção
de direito no capítulo 4.

74
vez quando estávamos na ilha de Pedro Preto, na comunidade de Croatá. Conforme meu
interlocutor:

Dá pra você observar como ela cresce. Ela cresce dessa maneira que você
está vendo. Está vendo que aí formou uma água aqui por dentro, como ela
vem forte, ela vem aumentando? E ela vem aí, tá vendo o rasinho? Esse
amarelão que você está vendo aí é a terra, até aí está dando para observar,
o canal mais fundo para cá e agora ela vem aumentando, vem chegando
para cá, quando dá uma enchentinha ela chega para cá, é o remonto que
nós falamos (Seu Santo, Croatá, 2017).

Dentro do vazantão, são identificadas as partes altas (o capão ou lombo) e as partes


baixas (vazantes, lameiros ou lagadiços). As partes baixas são caracterizadas pela “mata
mais fechada”, com muitas ramas e cipozeiras, enquanto as partes altas, pela “mata mais
espalhada”. Conforme descreveram Araújo et al. (2019, p. 153, grifos dos autores), “a partir
do alto, ao nos deslocarmos no sentido contrário à beira rio adentramos o vazantão, onde
encontramos capões que vão se alternando com as áreas de lagadiços, baixas, baixões,
poços, lagoas, sangradouros e vargens”. Algumas vezes, o vazantão também recebe o nome
de lagadiço, sendo composto por este conjunto de capões, lagoas e vazantes.

Figura 8 - Área de lagadiço


Fotografia: Izadora Acypreste, 2016.

75
As lagoas, como já mencionado, são alimentadas com as águas dos rios e riachos,
mas também conservam as águas das chuvas. Segundo os quilombolas, é nas lagoas onde
ocorre a reprodução de muitas espécies de peixes. Como descreveram Araújo et al. (2019),

As lagoas ocorrem principalmente nas porções mais baixas dos lagadiços,


muitas delas seguem acompanhando os cursos, atuais ou antigos, dos
Riacho Ipueira, do rio dos Cóchos, do Tejuco e, até mesmo do rio
Pandeiros. São alimentadas por estes ou pelas frequentes cheias do rio São
Francisco. É nas lagoas que ocorre a reprodução e manutenção das
populações de diversas espécies de peixes e também das aves. São áreas
de grande importância para as populações locais, contribuindo com as
estratégias produtivas das famílias, sendo fontes de água, além de
complementar a dieta proteica, oferecendo peixes e propiciando o
desenvolvimento de muitas outras espécies vegetais e animais em torno de
uma ampla cadeia alimentar (ARAÚJO et al, 2019, p. 152, grifos dos
autores).

Figura 9 - Seu Santo na Lagoa da Picada


Fotografia: Izadora Acypreste, 2018.

Todos esses lugares descritos e mencionados pelos quilombolas, ou pelo menos a


maior parte deles, pude conhecer a partir de muitas caminhadas realizadas junto a meus
companheiros de pesquisa. Na maioria das vezes, caminhando “no meio do mato”, de
repente nos deparávamos com alguns deles. No caso do capão, por exemplo, o encontro
aconteceu durante uma caminhada com Seu Santo, cujo objetivo era conhecer os pés que
haviam sido mencionadas por algum morador durante nossas conversas embaixo das
76
sombras das árvores ou nas cozinhas das casas. Nessa caminhada, Seu Santo disse: “quando
nós falamos de capão Izadora, não sei se vocês entendem, essa aqui é uma área que ela está
sendo um capão”. Tendo já tomado notas sobre as menções dos moradores sobre o capão,
eu logo disse: “ela é mais alta, né?”. Em seguida Seu Santo disse: “Olha!”. Entendi esta
expressão como um misto de surpresa e satisfação por meu interesse em um assunto talvez
cotidiano para os quilombolas, mas que diz muito sobre seus engajamentos com a beira do
rio.
Assim, para uma breve definição, o capão, algumas vezes também mencionado
enquanto lombo, margeia as lagoas, sangradouros e rios. Estes são os lugares onde os
moradores costumam constituir seus terrenos, locais onde constroem suas casas, fazem seus
canteiros de tempero e de remédio, mantêm as criações, bem como onde abrem as roças em
que plantam seus mantimentos, isto é, o milho, a mandioca, o feijão catador, a abóbora, a
mamona, a batata-doce entre outros. O capão também é onde se encontra a lenha, utilizada
nos fogões, fornos, fogueiras, e a madeira, empregada na construção das casas e das cercas.
Foi o que me explicou Enedina enquanto preparávamos o almoço em Croatá.

Sempre essa dinâmica. Porque as casas que podiam ser feitas só eram nas
áreas dos altos. Igual aqui mesmo, as casas todas vão acompanhando o
lombo, porque quando dá as cheias, esses baixões ficam todos cheios de
água. Então, lá no Barrerinho (ilha) já era diferente, a gente não poderia
fazer casa porque todos os anos o rio vinha e comia as vazantes. Banhava
tudo. Então não tinha como fazer. Fazia rancho, mas casa mesmo, firme,
não podia (Enedina, Croatá, 2017).

Como contou Enedina, em enchentes menores, ou mesmo maiores, as áreas de capão


ficam ilhadas em meio ao vazantão inundado. Algo semelhante também foi descrito por
Araújo et al. (2019):

Além do capão presente entre o lagadiço e o rio São Francisco, quando


caminhamos em direção às lagoas, encontramos faixas de capões,
transversais ou inclinadas, margeando as lagoas ou os talvegues do rio
Ipueira e também nos lombos dos sangradouros. Há gramíneas nativas no
capão, que oportunizam pastagens ao gado e aos animais de trabalho, bem
como terras para cultivo – seja nas vazantes que se formam nos baixios ou
nos roçados de capão localizados nas partes mais elevadas (ARAÚJO et
al, 2019, p. 153, grifos dos autores).

Depois do período de enchente, quando o rio começa a escorrer ou vazar, nas áreas
baixas (ou de vazantes) que estavam inundadas, começa-se gradualmente a formação dos
lameiros. Conforme descreveu Pierson (1972a, p. 112), estes solos das vazantes “são sílico-
77
argilosos, de granulação muito fina”. Apesar de tal afirmação, nenhuma descrição sobre os
solos das vazantes poderia ser mais expressiva do que aquela fornecida por Seu Arnaldo de
Croatá, quando disse que “para entender o lameiro, é aquela terra que ela é tão forte que,
quando o rio sai, ela racha”.40

Figura 10 - Lameiro: terra forte que racha


Fotografia: Izadora Acypreste, 2016.

Este fenômeno das vazantes, por sua especificidade, foi algo também observado por
Pierson (1972a) ao mencionar a “faixa de sedimentos formada pelo próprio rio, à qual
geólogos, seguindo Morais Rego, deram o nome (...) de ‘série vazantes’”. Conforme o autor,
esta “série vazantes”

Consiste em extensos depósitos de argila, mais ou menos horizontais, de


cor variada, amarela, branca ou cinzenta, que, ou se sucedem uns aos
outros, ou ocasionalmente se alternam com camadas de areia às vezes
branca e outras vezes avermelhada, devido ao óxido de ferro que contém.
O rio atua continuamente sobre esta formação, cavando extensamente as
barrancas nas faces côncavas dos meandros e, em resultado desta erosão,
depositando no seu próprio leito coroas de areia e vasa – as formações mais
recentes (PIERSON, 1972a, p. 114-115).

40
Esta noção de força, além de se referir a terra dos lameiros e vazantes, também aparece relacionada às águas,
a lua, a energia vital das pessoas, e será apresentada ao longo da tese.

78
As descrições de Pierson (1972a) são interessantes, pois mostram como o rio foi, ao
longo das épocas, construindo vazante na medida em que foi arrancando as partes superiores
do calcário São Francisco (ou Bambuí) durante as enchentes.41 Tendo como referência os
estudos geológicos, o autor afirma que a “série vazantes” provavelmente tenha começado a
ser depositada durante o Plioceno e que tenha continuado até o Holoceno. Tal análise,
inevitavelmente, faz pensar sobre a continuidade da chamada “série vazantes”, ou
simplesmente vazantão, durante o Antropoceno, nova era geológica que, conforme Blok e
Jensen (2019), coloca sobre a humanidade a responsabilidades pelas mudanças
provavelmente catastróficas do planeta. Nesta nova era, como observaram Danowski e
Viveiros de Castro (2017), o humano tornou-se, ele próprio, uma força geológica. Nestas
discussões, a própria questão em torno do que seria este “humano” oferece o plano de fundo
das análises sobre a destruição irreversível do planeta, gerando, com isso, outros possíveis
nomes para esta época, conforme vimos acima, como Capitaloceno, Chthuluceno, entre
outros. Esta destruição também é observada pelos quilombolas ribeirinhos através das
transformações da paisagem e as mudanças do tempo. No entanto, deixemos estas discussões
para mais adiante, após uma descrição mais sistemática da paisagem e das relações que a
constituem.
Ainda nas partes baixas, a vargem, se comparada ao vazantão, é uma área de
vegetação mais aberta, de “paus rasteiros”, “matinho rasteiro” ou “mato mais ralo”. A água
que abastece esta área vem das chuvas e, antigamente, eram lugares onde a água não secava.
Ronaldo, morador de Croatá, explicou que “sempre que tem aquelas baixadas que juntam
água, a gente chama de vargem”. Seu Arnaldo também me explicou que “a vargem é uma
nascente”, pois “é um lugar que recebe as águas que vem dos altos”. Segundo os moradores,
era um lugar que costumava ser, inclusive, mais fresco. Assim como ocorreu meu encontro
com o capão e o caminho das águas, na companhia de Seu Santo também me deparei com
uma vargem. Estávamos caminhando pela mata sob um sol ardente quando ele começou a
me explicar:

Seu Santo: Você entendeu a estória de capão, né? Agora você vai entender
outra. Quando nós falamos de vargem, é isso aqui olha. Está vendo aí? Isso
vai lá perto da casa. Isso aqui é uma vargem.

41
O calcário São Francisco (ou Bambuí), segundo as definições geológicas, é uma rocha carbonática. Em
síntese, é deste tipo de solo que se extraem os materiais para produção de materiais como cimento, cal,
corretivos do solo entre outros produtos destinados à construção civil.

79
Izadora: Ela é um espação assim...
Seu Santo: Isso, ela é de uma natureza assim olha, que você separa. É uma
vargem, né? Isso aqui não foi trator, é uma vargem. Isso aqui é da natureza
mesmo, coisa da natureza
(Seu Santo, Croatá, 2018)

Figura 11 - Área de vargem


Fotografia: Izadora Acypreste, 2018.

Assim como no vazantão, as áreas de vargem também se dividem em partes altas e


baixas. Como explicou Seu Vicente, “as vargens tem uns capão pelo meio, fazendo um
corredor, uns baixão”. Apesar de carregarem o mesmo nome, o capão e o lagadiço da
vargem são diferentes do capão e do lagadiço do vazantão. No lagadiço da vargem a terra
é branca e se caracteriza por ser uma terra mais arenosa e fraca, diferente dos lameiros, onde
a terra “é tão forte que racha”. Além disso, o capão das vargens é de “terra de cascalho e
pedregulho”. Isso nos mostra que, além de suas relações com as águas, a textura da terra
também é um aspecto importante para a identificação e nominação destas áreas.
Em uma conversa com Totinha, ele comentou sobre os solos em Gameleira,
esclarecendo que nesta comunidade existem faixas de transição entre os solos da vazante, da
vargem e do cerrado. Por serem alguns destes solos inundáveis e outros não, ele me explicou
sobre estas diferenças.

80
É divisa do terreno. O terreno é assim, igual aqui, aqui é essa cor, você
chegou ali mais pra cima é mais corada um pouco, chega na vargem é tipo
uma tabatinga, tipo um pó. Igual, se passar lá agora com esse sapato aí,
quando chegar em casa ele tá todo coberto daquele pó, tudo branco. Lá é
mais grossa. Igual essa daí, essa daí serve pra fazer contrapiso, areia da
estrada aí. Fez o contrapiso com uma areia dessa aí, tá pronto, vira pedra.
E a outra para reboco, não serve pra fazer contrapiso, com o tempo ela pode
ir soltando, ela é própria pra reboco, é cimento com areia branca. Assim,
desse jeito. É aquele pó. Você pode juntar uma água e molha, vira uma
cola, aí você pode fazer um bocado de pelota e põe lá, dependendo dela,
racha tudinho, é muito forte. É porque é lugar que o rio joga, essas baixada
o rio joga, então quando o rio vem, toma esse meio mundo, pega tudinho aí
a enchente. Aí já pertence a marinha, onde o rio joga pertence a marinha,
essas quebradas aí. Aí tem lugar de alto, lugar baixo, a enchente vai
rodando, aqueles altos que ficam pros bichos ficarem. Deus já faz as coisas
certinho, se for tudo baixo a enchente toma conta, os bichinhos não têm
onde ficar, morre tudo, e assim é (Totinha, Gameleira, 2018).

Figura 12 - Área de vargem em Várzea da Cruz


Fotografia: Izadora Acypreste, 2017.

Saindo das áreas de baixa, adentramos na parte alta, que os moradores identificam
enquanto pé da serra, mata, caatinga, carrasco ou cerrado. Também denominadas enquanto
áreas de retirada, são os lugares “onde a água não anda”, e por isso constituem locais de
refúgio durante as enchentes. Nos períodos de seca, também se tornam lugares bons para
“caçar pau” para fazer, por exemplo, cabo de enxada. O carrasco é caracterizado pelos
moradores por uma “vegetação miúda” (pequena e baixa). “No dizer nosso”, como

81
expressou Seu Santo, “a gente chama catanduba”, lugar que “é difícil da pessoa entrar nele,
pra entrar dá trabalho” por causa da vegetação que pode se constituir por muitos espinhos.
Já o cerrado é caracterizado por sua terra vermelha e pela variedade de pés que dão
nessa região, sendo algumas delas o pau d’arco, a imburana vermelha e a de cheiro, a
barriguda, o araçá, o jatobá, a sete casaca, a piriquiteira, a catinga de porco, o angico
branco e o preto, a caraíba branca e a preta, o jacarandá, a cabeça de menina, a cabeça de
galinha, o araticum, o baru, o maracujazinho do cerrado, o pé de goiaba, o pé de umbu, o
pé de caju, o pé de pitomba, o pé de pequi e o pé de jenipapo.42
Esta paisagem, que procurei descrever até agora e que é marcada por esse quadro de
interações entre pessoas, rio, solos, plantas e animais, é identificada pelos ecólogos e
biogeógrafos como o bioma Cerrado. Enquanto bioma, o ambiente é caracterizado por cobrir
quase um quarto do território brasileiro e possuir alta disponibilidade de água, pois é nesta
paisagem, percebida no contexto nacional como “raquítica” (Ribeiro, 2005), que nascem
alguns dos rios que formam as principais bacias hidrográficas brasileiras. O cerrado também
“abriga grande biodiversidade, sendo antes um complexo de paisagens que propriamente
uma unidade ecológica” (NOGUEIRA, 2011, p. 39), sendo subdividido em quatorze
diferentes tipos fitofisionômicos em formações florestais, savânicas e campestres.43 Em
Januária, como descreveram Araújo et al. (2019), o que pode ser observado é a transição
entre os domínios da Caatinga e do Cerrado, o que dá origem a fitofisionomias florestais
bem diferenciadas, sendo as principais delas a Mata Seca Calcária e a Caatinga Arbórea.
Segundo as autoras, “a Caatinga Arbórea é extremamente rara, ocorrendo sobretudo no norte
de Minas Gerais” (ARAÚJO et al, 2019, p. 85).
Apesar da definição geral do aspecto ambiental da paisagem enquanto bioma Cerrado
ou Caatinga, Seu Santo me disse que foi “nascido e criado no Croatá” e, por essa razão, não
sabe morar no cerrado. Não saber morar no cerrado, neste caso, desloca a construção desta
categoria enquanto bioma, pois, mesmo que, para a biogeografia, a margem do rio também
faça parte do bioma cerrado, para meus interlocutores isto não ocorre. Quando dizem que
“têm um modelo de não sair da beira do rio”, esta paisagem é apresentada enquanto um lugar

42
Alguns dos pés mencionados pelos quilombolas durante a pesquisa foram fotografados, identificados e
apresentados no Anexo I desta tese.
43
As fitofisionomias são características da vegetação de um determinado lugar. O Cerrado apresenta
fisionomias (formas) florestais, savânicas e campestres. Dentro destas fisionomias, as fitofisionomias de Mata
Ciliar, Mata de Galeria, Mata Seca, Cerradão, Cerrado Denso, Cerrado Típico, Cerrado Ralo, Parque de
Cerrado, Palmeiral, Vereda, Cerrado Rupestre, Campo Rupestre, Campo Sujo e Campo Limpo (RIBEIRO e
WALTER, 2008).

82
com suas características próprias e no qual os quilombolas ribeirinhos sabem que devem e
podem viver. Isso acontece não apenas por a conhecerem e nomearem suas áreas, mas
também por a experienciarem corporalmente todos os dias, na medida em que caminham por
ela, contribuem para a sua constituição e observam as mudanças que ocorrem na paisagem,
causadas não apenas pela movimentação da água, mas também pelas ações de outras práticas
não quilombolas, como aquelas desenvolvidas pelos fazendeiros e pelas políticas de Estado
através da construção de barragens. Sobre estas mudanças, na próxima seção poderemos
acompanhar o que os quilombolas dizem sobre aquelas que são causadas pela movimentação
e pela força das águas do rio.

2.2. O rio, sua força e movimento

Eu vi muitas enchentes, eu era pequeno. Quando eu era mais pequeno o


povo mais velho falava: “olha, a enchente evem”. O sol quente, mas o rio
enchendo, enchendo. Tinha aqueles caminhozinhos, aí a água ia passando
aqui e ia levantando aquela poeirinha. Os lugares que eram mais baixos,
demoravam mais, mas os lugares que eram mais altos, a água ia descendo
mais ligeiro (Seu Vicente, Gameleira, 2018).

Sentado na varanda da sua casa, Seu Vicente me contava sobre as enchentes que
ocorreram na região. No trecho citado acima, podemos conferir parte da estória narrada por
ele. Situados em uma das comunidades mais distantes do rio, os moradores de Gameleira
conseguiam acompanhar a chegada das águas que não ocorriam de inundar suas casas, mas
ficavam muito próximas a elas. A “poeirinha”, de que fala Seu Vicente, aparecia nos
caminhos trilhados pelo gado que, por causa das constantes pisadas do animal, “deixavam o
caminho sem o mato”. Com a subida do rio, estes caminhos, conhecidos como tabatinga,
iam soltando uma poeira fina. Assim, como ele conta, “quando era de tardezinha ou de
manhã cedo”, era possível avistar de longe a chegada das águas da enchente.
O histórico de cheias do São Francisco, como a sempre lembrada cheia de 1979, que
inundou as áreas de moradia das comunidades e as vargens, encheu os riachos e lagoas –
alcançando, inclusive, a cidade de Januária, que ficou embaixo d’água – prepararam as
pessoas a seguirem sempre vigilantes, atentas aos efeitos das chuvas nas águas do rio. É

83
sobre estas percepções quilombolas a respeito dos movimentos do rio, bem como seus efeitos
na vida das pessoas, bichos e plantas, do que trata esta seção.
Dentre todas as cheias que já viveram, a cheia de 79, especialmente, é um marco para
os habitantes da margem do São Francisco.44 Como conta Dona Osvaldina, da comunidade
de Várzea da Cruz:

Ela veio adiante daquela casa um pouquinho. Daquela ali. Nós pegávamos
canoa lá na porta de Maria Barbosa para ir lá. Nesse tempo nós ainda
plantávamos lá em cima, nas terras lá em cima. Aí cortava esse mundo aí
ó, de água. Água da altura daquele pé de manga. Eu na canoa, mas ele e
minha irmã. Nós íamos pegar lenha lá na mata, que pra aqui não tinha. Ô
sofrimento! (risada) Ia panhar lenha na canoa lá ó, porque aqui não tinha
lenha, estava tudo debaixo d’água. E eu tinha coragem naquele tempo.
Entrei nessa canoa, aquela maretona, aquela água amarela, e eu só olhando.
Hoje ó, Deus que me livre, eu não vou de jeito nenhum. Eu não sei nem
nadar, dentro de um mar de água para descer lá no pé da mata. E a enchente
estava aí. Aí ela estava rasa, nós íamos para pegar canoa, lá na porta de
Maria ela estava funda. Encostou a canoa na beira da estrada e eu desci
para pegar a canoa e ela estava aqui, a água estava dando aqui. Entrava na
canoa, passou lá pela Várzea da Cruz, para cortar esse mundão de água.
No [vargem do] Ferrão? Menina, uma correnteza. Correnteza no Ferrão era
afamado, os antigos falavam que ali era uma correnteza, água chegava a
correr assim ó ... aqueles pés de Juá, pés de Pau Preto que tem lá, a água
estava na beira deles. Você só via a copa. Uma fundura esquisita. A
enchente de 79 deixou lembrança. Depois veio outra, mas não foi igual a
de 79 (Dona Osvaldina, Várzea da Cruz, 2017).

A outra enchente a que se refere Dona Osvaldina é a que aconteceu no ano de 1982
que, segundo ela, “andou perto”, mas não foi como a de 79. Seu Vicente também fala de
outras enchentes que ocorreram antes, em 1926 e, depois, em 1984, embora, como disse, não
se lembre muito bem das datas. Algo sobre estas datas também é mencionado por Pierson
(1972b), que destaca os anos de 1919, 1926, 1949 e 1960 como momentos em que cheias
excepcionais ocorreram, colocando abaixo muitas casas em diversos lugares ao longo do rio.
Ribeiro (2005) também descreve diversas cheias que ocorreram entre os anos de 1696 a
1943, que inundaram vilas e fazendas. “Tempo de muita água”, enfatizou Seu Carlito,
marido de Osvaldina. Em 82 e 79, “só água, água, água, água!”

44
Em Pirapora, onde vivi minha infância, também cresci ouvindo histórias sobre as cheias e observando, vez
ou outra, algumas fotografias registradas naquele período, em que a cidade ficou debaixo d’água. Em Januária
não parece ter sido diferente. Nos relatos históricos dos viajantes, aqueles que faziam anotações técnicas
apontaram suas preocupações com as inundações na cidade, que têm terras baixas em seus limites. Hoje, grande
parte das cidades na margem do São Francisco possuem cais, que foram construídos para evitar estas
inundações.

84
Assim como Gameleira, Várzea da Cruz está mais distante do barranco do rio e, por
isso mesmo, não corre o risco de ter suas casas debaixo d’água caso alguma enchente muito
grande venha a acontecer novamente. No entanto, a última grande cheia deixou sua marca,
tanto fisicamente quanto na memória das pessoas que vivem na beira do rio. Os moradores
falam da certidão, que é a marca por onde o rio andou quando encheu. Nas árvores e nas
paredes das casas é possível ver a marca da enchente. Desse modo, sempre atentos ao perigo
representado por uma grande enchente, Seu Carlito logo comentou sobre algum
assentamento formado nas barrancas do rio, na região de Januária. Em seu comentário, ele
demonstrava preocupação com as consequências que uma grande cheia causaria para as
pessoas que estavam vivendo neste assentamento. “Vai ser muito sofrimento”, dizia seu
Carlito, pois qualquer enchente, mesmo que não fosse muito alta, poderia inundar as casas,
inclusive um período de muita chuva poderia criar lameiros no terreno deste assentamento
que, segundo ele, tem terra de barro.
Para aqueles que vivem nas comunidades próximas aos barrancos do Chicão,
acompanhar o movimento do rio é algo muito importante e que faz parte da rotina dos
moradores. Certa noite na casa de Dona Olívia, em Sangradouro Grande, enquanto
“jogávamos conversa fora” e aguardávamos o sono chegar, seu filho de criação, Rubão, veio
nos avisar que o rio estava começando a vazar, que já tinha vazado quase um metro. Como
era mês de novembro, a esperança de todos era que a tendência do rio fosse aumentar com
o começo do período chuvoso. A notícia deixou Dona Olívia preocupada, que logo disse: “ô
senhor, pensei que ia encher, ôxe, mês de dezembro vai ter muita chuva”. No dia seguinte
fomos observar o rio, que realmente tinha vazado, contudo, a previsão de Dona Olívia
parecia certa, pois “para cima” estava chovendo e logo essa chuva chegaria por ali. Junto
com as águas do rio desciam brotos e folhas em sua superfície, o que ela explicou serem
vegetação de lagoa; neste caso, se o rio já estava alcançando as águas das lagoas “pra cima”,
a chuva não tardaria a chegar para nós.

85
Figura 13 - Dona Olívia observa o rio
Fotografia: Izadora Acypreste, 2017.

Conforme descreve Pierson (1972a, p. 51), enquanto percorria os vários municípios


ao longo do rio, passou pela cidade de Pesqueira (BA), onde encontrou uma professora que,
“como quase toda a gente dessa cidade, ‘gosta muito das enchentes’” e, por essa razão,
convidou o grupo de pesquisadores para irem ver a subida do rio. A professora, segundo
Pierson (1972a), ainda

acrescentou, com manifestações de prazerosa animação, que a enchente já


tinha atingido Januária e que “essa cidade estava toda coberta de água”.
Ela e outras pessoas em Pesqueira, diz, “acham uma beleza” ver “as casas
aqui todas cercadas de água, canoas percorrendo as ruas e mesmo entrando
pelas portas das casas”. “É muito divertido”, acrescentou (PIERSON,
1972a, p. 51).45

As enchentes que banham os terrenos dos moradores das comunidades quilombolas


também alcançam a cidade de Januária, jogando água em alguns de seus bairros. Joana, filha
de Seu Vicente, após ouvir a nossa conversa sobre as enchentes e minhas perguntas sobre
estes períodos, meses depois me encaminhou uma fotografia (apresentada a seguir) em que

45
Os moradores com quem conversei sobre as cheias costumam ter uma ideia sobre a altitude dos lugares e
cidades situadas ao longo da margem do rio. Disseram-me certa vez, por exemplo, que quando a água alcança
a cidade de Pedras de Maria da Cruz, significa que a cidade de Januária já está toda inundada. O mesmo tipo
de observação foi feito pela interlocutora de Pierson (1972a) no trecho citado.

86
o centro da cidade de Januária estava embaixo da água e as canoas faziam parte da paisagem
urbana.

Figura 14 - Cheia de 79 no centro da cidade de Januária


Fonte: Domínio público, S/d.

Apesar dos perigos e da necessidade de estarem sempre atentos, a enchente é


vivenciada como parte da vida na beira do rio, sendo também acompanhada com alegria.
Quando perguntei a Seu Vicente se eles não tinham medo quando a água começava a se
aproximar, ele me respondeu dizendo que não, pois já estavam acostumados. Ao contrário,
ele disse, era “aquela alegriona”, “ficava era alegre pro mod’e olhar”. Enquanto a água
chegava, observavam exprimindo satisfação: “vixe, olha lá, olha lá a piabinha”.
Dona Osvaldina e Seu Carlito também contam que eram animados os períodos das
enchentes, pois o “povo de baixo”, aqueles que moravam nas partes baixas, se mudavam
todos para os altos, isto é, para as proximidades das comunidades de Gameleira e Várzea da
Cruz que ficam nas partes altas. Lá faziam suas barracas de lona ou ocupavam alguma casa
velha e mandavam os animais, como o gado bovino, porcos e cavalos, para que outros
conhecidos, moradores das serras, tomassem conta. Os moradores dos altos ficavam todos
“assanhados” com a presença do “pessoal de baixo” e, quando a noite caía, uns visitavam os

87
outros, deixando a vida bem mais animada, contou Seu Carlito. Bonita e animada, é como
ele se refere a esse período:

Bonito, e era uma animação. A gente fazia mudança aqui de porco, galinha
das casas que eram dos moradores de lá, que eram de finado Rufino. Do
finado Rufino, o povo todinho fazia a mudança para cá. Era galinhada, era
porco ... (Seu Carlito, Várzea da Cruz, 2018).

Para o “povo de baixo” a subida do rio implica em uma agitação e correria para “tirar
para fora” as famílias, criações, roupas, ferramentas, panelas e objetos pessoais. Na cheia
de 79, Ramiro lembra que “estava para Brasília” e, quando retornou, “estava só o lameiro”
na beira do rio, isto é, a água já tinha baixado. Mas ele também contou que conviveu com a
cheia diversas vezes e que, nestas ocasiões, “quem tinha gado tirava para fora, quem tinha
cavalo tirava para fora, quem tinha porco tirava para fora”. A retirada, ele lembra, era feita
aos poucos e, em uma destas cheias, ele e o irmão Mané, levaram alguns de seus familiares
em uma primeira viagem e, quando voltaram para buscar os outros membros da família, a
água já estava na altura da cintura. Mesmo com suas casas construídas nos lombos de
Sangradouro Grande, Ramiro lembra que em uma cheia como a de 79 “ficava tudo alagado”.
As galinhas e porcos, conta Ramiro, eram levados dentro do barco, já o gado bovino,
dependendo da altura da enchente, era levado “tocado” ou “nadando mesmo”. Sobre a
retirada dos animais, Ramiro explica:

O gado ia tocando, ainda estava raso e eles iam nadando. Os outros


embarcado. Enganchava no cipó, a gente caia na água e cortava o cipó,
nadando atrás deles e tirando, porque acolá dava a noite e, se sumisse aí,
morria um bocado enganchado. As vezes aqui é alto, o cabra fala que não
vai encher, mas a baixa lá já está tudo cheio de água. Quando tira daqui
pelo caminho, joga na água, aí a água já está bem altona, mil metros,
nadando aí até alcançar no alto de novo. Que nem aqui, aí tudo é baixo,
tudo lagoa aí, sai lá na Picada, na ponte lá, enche tudo de água. A gente
está aqui nesses alto e o povo está de lá, a água vem até nessa estrada aí,
outra hora passa dessa estrada para cá, a outra passa nesse baixão aí e ela
vem chegando para cá, porque lá sempre é mais baixo. Aí quando aperta
muito, os bichos ficam tudo perto da gente. Aí quando vê que não tem jeito,
tem que pegar tudo e vai tirando, tocando pelo caminho. Tocando uns, os
outros vão atrás acompanhando. Onde é que tem lugar de vazante que a
água enche, o pau fica baixo aí o facão corta em cima, para o bicho não
enganchar, e vai embora (Ramiro, Sangradouro Grande, 2016).

O “para fora”, de que fala o vazanteiro, são localidades no pé da serra, como Pau
D’óleo e Gameleira. Em geral, iam para as casas dos parentes que viviam “para os morros”

88
perto das serras. Quando o rio corria com os moradores da beira, eles iam para os altos e lá
arranchavam, faziam “uma palhoça de trem lá, cobria lá com plástico, alguma coisa até o
rio vazar”. Sobre estes arranjos, Ramiro continua contando:

A gente ia só retirado, porque o rio corria com a gente, né? Aí qualquer


lugar chegava aí na chapada mesmo, enquanto o rio vazava. Fazia um ...
tirava madeira, arrancava um pau, amarrava a lona para ficar de baixo.
Outra hora o povo lá arrumava uns quartos, umas casas e davam para a
gente ficar uns dias, que tinha pouca gente. Ou as vezes tinha umas casas
deixadas, aí falava: “olha, aquela casa está deixada lá, não tem ninguém
que fica lá” (Ramiro, Sangradouro Grande, 2016).

Durante a retirada também soltavam os animais de criação, como porcos, galinhas,


cavalos e o pouco gado que tinham. Lá soltavam na chapada junto com os animais dos
moradores dos altos, mas mantinham os animais sempre por perto, por meio da ração, que
os fazia sempre retornar.46 Como conta Ramiro, “às vezes algum que tinha alguma manga
cercada tudo ao redor, alugava um mês, um mês e pouco, dois meses”, até quando o rio
vazasse e, então, as famílias podiam retornar para a beira do rio.
Seu Vicente se alembra das famílias de Sangradouro Grande que se arranchavam
bem perto de Gameleira e ainda ressalta que esta prática, de se arranchar, é algo bem antigo.
As proximidades de Gameleira eram lugares de “acampamento de muita gente da beira do
rio”, disse ele. O quilombola também “conta um caso” relacionado a estes “acampamentos”.
Segundo Seu Vicente, quando era pequeno foi levado por sua mãe e outras mulheres para
colher algumas melancias. Por ser a melancia, na beira do rio, um fruto bastante disputado,
aqueles que as plantam costumam acompanhar seu crescimento ansiosamente. Para evitar
que outros, ao passarem pela plantação, colham o fruto maduro, os moradores costumam
enterrar a melancia e, no momento de colher, desenterrá-la. Assim, ao ver as mulheres
desenterrando as melancias, Seu Vicente logo começou a imitá-las e, neste ato, acabou
encontrando, como ele conta, “uma moeda de um mil réis”.

Eu não sei se eles plantavam roça de melancia por lá, e faziam seus
ranchos, suas coisas de ficar e traziam a melancia. Quando eles iam
embora, aquele sementeiro ficava espalhado ali pelo chão e quando era nas
águas nascia. E dava melancia. E esse povo daqui, inclusive minha mãe
saía ... aí é quando eu conto um caso para a senhora. Eu fui nos braços, eu
lembro disso [...] que hoje, coisa que passou ontem eu não alembro, mas
eu alembro disso. Minha mãe e a finada Joana Rosa. Ela disse: “vamos lá

46
Esse sistema de criação de animais é conhecido como solta, tema que será discutido com maior profundidade
no capítulo 6.

89
comadre, caçar melancia?”47 “Vamos!” Panhou eu, botou nas costas e foi.
E ela tinha uma mania, de uma melanciinha desse tamaninho, mas estava
verde, elas cavoucarem o chão e enterrava para gente não achar, e ela
crescia lá. Por que se deixasse destampado, antes da gente ir, outro chegava
e ia lá e comia. Eu vi ela fazer esse serviço e inventei de onde elas me
botaram eu no chão está eu assim. Tinha um pé de mato e o pé de mato
tinha uma figa de melancia pendurado nele assim, já chegando no chão.
Ah, pois! Eu cavoucando o chão, no lugar eu achei uma moeda de um mil
réis, que antigamente era um ... chamava centenário, um dinheiro que tinha
que o nome era esse. Era um mil réis e eu achei esse um mil réis. Agora,
eu não sabia, mas não tive inteligência para jogar fora não. Para você ver.
Aí eu chamei minha mãe, que tinha uma Tiburtina também, estavam estas
três mulheres. Falei: “olha mãe aqui, vem ver, vem ver”. Acho que eu falei
assim. Ela: “ah, que dinheiro é esse?” Disse: “Um mil réis”. A outra: “não
sei quanto”. Só sei que era porque elas falaram (Seu Vicente, Gameleira,
2018).

Ao contar essa estória, Seu Vicente considerou que a moeda muito provavelmente
seria “desse povo da beira do rio”, que costumava arranchar na localidade. Ao se
movimentarem para os altos, apesar de levarem consigo os animais, seus objetos pessoais,
utensílios domésticos e sementes, os quilombolas ribeirinhos deixam para trás suas casas.
Findo o período das cheias, os quilombolas deixavam seus ranchos e sementeiros48 para
retornarem para a vazante. Contudo, ao encontrarem uma paisagem completamente alterada,
nem sempre voltavam (ou voltam) a morar no mesmo lugar em que viviam antes da cheia.
Considerando o que foi apresentado até o momento, podemos perceber o que venho
identificando enquanto a vida e a agência do rio através dos termos utilizados por meus
interlocutores para qualificarem suas ações, como correr, andar, jogar, banhar, lavar,
passar, cair, caminhar, tomar conta, rodar, subir, descer, comer, entre outros. Ações que
também criam terra, na medida em que as fazem crescer, aumentar, chegar para cá ou

47
A utilização do termo “caça” para se referir à coleta ou captura de algo inerte vem sendo discutido por Luisa
Fanaro em sua pesquisa de doutorado, que tem como tema a caça de trufas no Chile e que pretende se
desenvolver através de uma investigação sobre as relações práticas e semióticas envolvidas tanto na criação e
no treinamento dos cães que realizam a caça quanto no manejo das trufeiras pelos truficultores. Em seu texto,
apresentado no Humanimalia, grupo de estudos do qual ambas fazemos parte, a pesquisadora questiona as
razões pelas quais o termo caça, em seu contexto de pesquisa, aparece relacionado à captura de um fungo, isto
é, algo inerte, imóvel e, ainda além, cultivado. Em suas conclusões, que são úteis para pensarmos sobre o
porquê da utilização do termo caça para se referir à coleta de melancias, a autora observa que isso advém das
incertezas dos caçadores (humanos e cães) em saberem, de antemão, onde se encontram suas “presas”. Ao que
parece, o mesmo acontece entre os quilombolas ribeirinhos, e isso por dois motivos. O primeiro é que as
melancias caçadas não foram cultivadas pelos “caçadores”, mas sim pelo povo de baixo que deixou o
sementeiro onde os pés de melancia cresceram. O segundo se refere à prática do povo da beira do rio de
enterrarem suas melancias, o que é feito exatamente com o intuito de evitar que terceiros possam vir a caçar
suas melancias.
48
Como veremos no Capítulo 5, deixar estes sementeiros, assim como os pés cultivados, fazem parte dos
rastros quilombolas na paisagem.

90
diminuir. Nestas últimas discussões e narrativas quilombolas apresentadas, também
percebemos como o rio põe em movimento um conjunto de relações, uma vez que, quando
inundam as áreas de moradia, correm com o povo e com os bichos, incentivando a interação
entre os moradores de baixo e os moradores dos altos, o que implica também em ajudas e
acolhidas. Além disso, ao correr com o povo, o rio também possibilita a dispersão das
sementes por outras áreas, diversificando a paisagem em seu aspecto vegetal. Assim, o rio
ganha vida na sua interação com as outras coisas vivas.
Porém, se as narrativas dos meus interlocutores desenham o São Francisco como um
rio vivo, em movimento, com agência e intencionalidade, elas também apontam que o
Chicão não é mais o mesmo rio do passado, que vem perdendo a sua força e deixando de
correr em certos lugares em decorrência da construção das barragens e da destruição das
matas. Em vários momentos enquanto caminhava pelo mato entre as vazantes, capões,
lagoas e ilhas, os moradores exprimiam seus sentimentos em relação a estas mudanças. Na
vazante, Ramiro explicava: “aí ó, ele passava dali para cá. Isso aqui tudo era rio. Ele agora
não vem mais aqui”. Outra ora dizia: “aí foi secando aqui, aí depois não foi mais aqui, foi
dali para lá. E foi só chegando para lá. Uma terrona dessa, olha onde é que está o pé do alto
e onde está a beira do rio”.
Em outro momento, andando com Seu Santo, fiquei impressionada quando ele disse
que estávamos caminhando sobre a Ilha de Pedro Preto e a Ilha de José Cravo. Perguntei
ao meu interlocutor porque o lugar pelo qual andávamos era chamado de ilha, uma vez que
não tivemos que atravessar um “braço de rio” para a chegar até ela. Fiz essa pergunta
lembrando o que havia me dito Seu Pedro, de que uma ilha é “sempre um rio de um lado e
um rio de outro”. Seu Santo explicou que ali antigamente era diferente, era beira de rio, que
havia conhecido aquilo lá como rio. Apontando para o baixão, disse que a água andava por
lá, que quando ele tinha doze anos de idade, os vapores que navegavam pelo rio passavam
por lá. Também disse que, com o tempo, “o rio veio por etapa, foi mudando”, “formou a
ilha, a água foi acabando”, enquanto a terra “foi evoluindo, foi crescendo”.
Estas “terras crescentes”, de que fala Seu Santo, estão relacionadas com o remonto,
a areia e a lama que as cheias trazem e que se acumulam nas croas e ilhas, mas que, contudo,
não são cheias fortes o suficiente para levar a terra. Assim, as ilhas vão quebrando,
crescendo e aumentando. Apesar da dificuldade de visualizar estas diferenças às quais Seu
Santo se referia, ele se esforçava para me explicar sobre as mudanças na Ilha de Pedro Preto:

91
Crescendo, foi quebrando e foi crescendo, aumentando, ela era bem em
cima, conforme veio aumentando veio acompanhando a frente dessa terra
aqui e aí ela igualou com a outra ilha que tinha aqui. Só que ela aqui hoje
é mais nova do que aqui, porque essa parte veio depois, essa daqui já
existia, ela veio a firmar aqui na frente, mas você vê que ela tem diferença
na altura (Seu Santo, Croatá, 2017).

Como podemos ver, na beira do rio não apenas pessoas e animais são criados, mas
também a terra. E, embora estas terras banhadas e criadas sejam de grande importância para
os quilombolas ribeirinhos, sua qualidade depende da força da água. Seu Saulo lembra que,
no passado, o rio “enchia que derramava nesse trem tudo aqui, a área aqui passava rasinho,
mas que ele jogava para fora, jogava. Agora não, a enchente está vindo pouca, em algum
lugar que ele [o rio] está indo. Tá com dez anos que ele não lavou mais esse trem aqui, esse
lagadiço”. Apesar de reconhecerem as mudanças inerentes causadas pelos movimentos
constantes do rio, há uma clara compreensão de que as mudanças atuais não são as mesmas
que ocorriam no passado. Ainda em conversa com Seu Saulo, ele disse:

O rio anda, ele não fica num lugar, com os tempos ele vai quebrando,
quebrando, voltando, voltando... É porque a cheia que está dando agora
nesse rio aqui é pouca, se fosse acompanhando as enchentes que dava nele
de primeiro, de 79 pra cá, ele já estava aqui, nesse lugar dele (Seu Saulo,
Croatá, 2018).

A ausência de grandes cheias, apesar de contribuir para um acúmulo de terra nas


ilhas e vazantes, não é algo desejado pelos moradores da beira do rio, pois a maior
disponibilidade de terra não significa, necessariamente, uma maior qualidade da terra e a
fartura que ela pode propiciar. Neste caso, para aqueles que cultivam na vazante, é
necessário um equilíbrio entre terra e água. Para os quilombolas ribeirinhos estas mudanças
em relação aos ciclos de cheias, a alteração do curso do rio, e a perda de sua força, tudo isso
têm contribuído para esse desequilíbrio entre terra e água, o que aponta para o que foi
mencionado na primeira seção, sobre a continuidade da “série vazantes”. Meus
interlocutores consideram estas mudanças e alterações como parte de um conjunto maior de
aspectos que têm se desvelado devido à mudança do tempo. Mas para que isso seja
profundamente compreendido, é preciso descrever outras transformações que vêm
acontecendo na beira do rio, algo que procurarei fazer ao longo de toda a tese para ser
retomado no último capítulo. Antes, contudo, a título de comparação é preciso apresentar o
que meus interlocutores identificam como o tempo de primeiro, isto é, o tempo vivido antes
que estas transformações começassem a ocorrer. Disso trato no terceiro capítulo, que segue.

92
Capítulo 3
O TEMPO DE PRIMEIRO

3.1. De primeiro a terra era livre

Nesse capítulo procurarei apresentar os acontecimentos que levaram o pessoal que


“vivia espalhado” por diversas áreas da beira do rio, vindos de diferentes lugares, a
conformarem vários povos, tal como o povo da Gameleira, o povo do Sangradô, o povo do
Croatá e o povo da Várzea da Cruz. Embora “povo” também possa significar, como
observou Benites (2010, p. 104), “um conjunto de pessoas reconhecidas como pertencentes
a um grupo de parentes com um ancestral em comum”, tal como o povo do finado Rufino, a
categoria também pode ser usada para identificar um grupo indefinido (como “o povo fala
isso ou aquilo”), o conjunto de pessoas que vivem em uma localidade (o povo da Gameleira,
por exemplo), ou até mesmo o povo que vive em uma cidade (como o “povo de Januária”).
Uma vez que o povo vivia espalhado pela beira do rio e não aglomerado, tal como
vivem hoje nas comunidades, também buscarei mostrar como certas localidades, antes
conhecidas por serem residência de alguma pessoa ou família, se transformaram nas
comunidades quilombolas como as conhecemos nos dias atuais. Sem querer adiantar as
questões que serão tratadas ao longo das seções seguintes, é importante dizer que estas
mudanças ocorreram devido à uma série de acontecimentos marcantes na vida dos
quilombolas. Para apresentá-los, portanto, a ideia é não seguir uma ordem cronológica dos
fatos, mas sim descrevê-los conforme meus interlocutores os narram.
Em grande parte das vezes, quando começam a contar algum acontecimento do
passado, o povo da beira do rio diz: de primeiro (...). Assim, “tempo de primeiro”, ou apenas
“de primeiro”, é um modo de dizer muito utilizado pelos quilombolas ribeirinhos, sendo uma
forma compartilhada pelas pessoas do lugar para se referirem a um período do passado. Este
tempo é definido de acordo com o alcance da memória daquele que narra algo, sendo,
portanto, o início. É quando começa a estória da experiência vivida ou conhecida pelo
narrador. Este tempo, no entanto, não tem uma data certa de início ou finalização, pois
depende diretamente das memórias alcançadas pelo narrador e por seus antepassados.

93
Podemos ver a exemplificação disso na frase de Seu Vicente, quando ele disse: “eu não
alcancei esse tempo, mas meu pai contava”.
Algumas etnografias sobre povos quilombolas e tradicionais na região do Norte de
Minas Gerais tendem a correlacionar os “tempos” (nativos e históricos) aos “processos de
territorialização” destes povos. “Processo de territorialização”, neste caso, é uma das
categorias que fundamentam a teoria de Pacheco de Oliveira (1998), servindo, nas palavras
de Almeida (2008), como instrumento “para compreender como os territórios de
pertencimento foram sendo construídos politicamente através das mobilizações por livre
acesso aos recursos básicos em diferentes regiões e em diferentes tempos históricos”
(ALMEIDA, 2008, p. 118). Além disso, diz o mesmo autor, os “processos de
territorialização” possuem uma forte relação com a “identidade coletiva” ou “identidade
étnica”. Para realizarem suas análises, alguns pesquisadores (COSTA FILHO, 2008;
NOGUEIRA, 2009; ARAÚJO, 2009), em seus trabalhos com os povos quilombolas e
geraizeiros, se apoiaram em tal teoria. Diferente destas pesquisas, não é meu intuito aqui
correlacionar as “mudanças do tempo” com a constituição de uma “identidade étnica” dos
meus interlocutores. Por outro lado, é impossível negar as conexões entre os diferentes
“tempos” apresentados em tais pesquisas e os tempos narrados pelo povo da beira do rio.
Isto porque todos estes “tempos” ou tempos, como observou Nogueira (2009), provocaram
profundas transformações nas “feições dessa paisagem” e na “vida de sua gente”.
Desse modo, ao descrever o tempo de primeiro, minha intenção é destacar que os
quilombolas ribeirinhos observam as diferenciações do tempo através das mudanças no
regime de uso da terra e na força do rio, bem como narram os efeitos destas transformações
em suas vidas e na dos outros viventes, sendo algumas delas as responsáveis pela
(re)configuração de um povo (o povo-quilombola ou o povo-de-algum-lugar). Assim, minha
reflexão sobre os tempos está interessada menos na questão da identidade e mais em como
eles se desdobram em um cenário de relações multiespecíficas. Apesar das mudanças
radicais que estes novos tempos trouxeram, as narrativas sobre eles nem sempre são
escatológicas, pois também apontam para as possibilidades de um futuro com a terra, com
as águas e com os outros viventes.
Portanto, por se referir a um início, parto aqui do tempo de primeiro para falar sobre
o pessoal que vivia espalhado pela beira do rio. O “tempo de primeiro”, também é
caracterizado pelos habitantes da beira do rio como um tempo de liberdade. Como me
disseram, de primeiro “o povo não dava valor à terra”, pois cada um que chegasse podia

94
plantar e criar. O valor que se considerava era o do trabalho na terra, o esforço e o trabalho
árduo das famílias para lidar com o mato e transformá-lo em suas casas, canteiros e roças.
Labuta é outro termo comumente utilizado pelas pessoas para expressar esse valor moral
relacionado à capacidade de quem trabalha e luta na e com a terra, mesmo diante das
dificuldades e sofrimentos. Esse período enunciado pelos moradores também é caracterizado
pela criação do gado e outros bichos na solta, bem como pelo cultivo das roças na terra livre.
Como contou Seu Saulo,

de primeiro tinha uma terra lá, você chegava nela e fazia sua rocinha,
armava sua casa, ninguém dizia que era dono, você não ia entrar na
fazenda, ninguém ia entrar não, mas a terra que era solta qualquer um
entrava dentro dela, ainda mais na beira do rio que nem é aqui (Saulo,
Croatá, 2018).

Tal como explicou Seu Saulo sobre a terra não ter dono, um antigo morador de
Sangradouro Grande que tive a oportunidade de conhecer ainda durante a realização da
pesquisa de mestrado, Seu Antônio, também disse que, além de não ter dono, a terra não
tinha valor, pois qualquer um que chegasse podia fazer sua casa e criar seus bichos. Em
nossa conversa, ele dizia:

Antônio: Mas é como eu estou dizendo, esse povo do passado aí, terra não
tinha valor, qualquer uma pessoa chegava, fazia uma morada aí e aí ficava
porque queria criar, fazia o que queria fazer e aí não tinha escritura nem
nada e foi e o Estado chegou e tomou conta, tanto que nenhum tinha
declaração para dizer que tinha as coisas, não era declarado por lei
nenhuma.
Izadora: Porque você fala que a terra não tinha valor?
Antônio: Porque o povo não dava valor à terra. Eu como disse, Deus tinha
deixado e aí ficava pela mão de Deus. Homem nenhum vendia, homem
nenhum comprava, todo mundo chegava e fazia uma casinha e morava.
Todo mundo chegava e criava uma vaca, criava uma égua, criava um
bocado de bode, criava porco, ia contribuindo e comendo, saía, largava,
outros morria e ficou. Depois foi que a terra teve valor, e tinha os homens
que tinham o olho mais grande e compreendido e levaram e seguraram. Aí
é como se diz. Mas no passado nada tinha valor
(Antônio, Pedras de Maria da Cruz, 2014).

Outro tempo que me foi apresentado, podendo tanto atravessar como compor o de
primeiro, é o carrancismo. Dois moradores de Gameleira, Seu Vicente e Seu Zé Bete, me
explicaram que o carrancismo era o “tempo do povo véio antigo, dos troncos, tempo de
gente boa, gente inocente e gente desaforada”. Para meus interlocutores esse tempo antigo
se diferencia do atual pois, hoje, “o povo é mais contido e obediente”, mas no tempo do

95
carrancismo “o povo tinha mais medo, tinha que pedir capoeira para os outros”. Os dois
moradores são os descendentes mais velhos dos principais troncos que deram origem à
Gameleira, sendo o termo tronco também usado para marcar uma temporalidade, pois se
refere ao tempo daqueles moradores que originaram as atuais famílias de Gameleira e das
outras comunidades.
Sobre o carrancismo, Costa Filho (2008), em sua pesquisa com os quilombolas do
Gurutuba, e Araújo (2009), com os quilombolas da Lapinha e os vazanteiros de Pau de
Légua, também falam sobre o assunto. Para Costa Filho (2008), o carrancismo se caracteriza
por uma certa ambivalência, pois, se por um lado apresenta a liberdade dos quilombolas em
relação ao acesso das áreas para plantio e moradia, por outro, também marca o início da
chegada dos primeiros invasores. Na época dos troncos, como me disseram os quilombolas
ribeirinhos, “ninguém governava a terra”, pois, contou Seu Zé Bete, “não tinha negócio de
proibir, daí fazia casa onde quisesse”. Seu Pedro, antigo morador de Sangradouro Grande e
que hoje vive na localidade de Remansinho, lembra que aquele tempo foi de muito
sofrimento, que advinha da labuta com o mato para o plantio das roças. Ele ressaltou também
a diferença entre o tempo de primeiro e os tempos atuais, contando sobre a costumeira prática
de criação dos animais na solta e a inexistência das cercas. A pesca nas lagoas também era
uma importante atividade que garantia uma parte da alimentação das famílias. O rio se
caracterizava por um volume maior de água e de peixes, tanto que, nos períodos de
enchentes, era preciso retirar os animais para as áreas de refúgio junto com as famílias,
como já foi discutido no capítulo anterior. Naquela época, eles narram que era só “chegar e
arranchar”, fato que expressa a liberdade que os moradores tinham para circularem pela
beira do rio e pelo alto, para a construção de suas casas, para o cultivo dos seus pés e para a
criação dos bichos.
Araújo (2009), por outro lado, relaciona o carrancismo ao “tempo dos coronéis” e ao
início da vigência da Lei de Terras de 1850 que, segundo a autora, foi um mecanismo político
do Império para proteger a “elite econômica agrária” “contra a apropriação através da posse”,
uma vez que os negros libertos da escravidão e outras “populações despossuídas” poderiam
vir a se apropriar destas terras não ocupadas (ARAÚJO, 2009, p. 138). Conforme a autora,
“com esta lei, a terra só poderia ser ocupada por compra e venda ou por autorização do
Imperador” (ARAÚJO, 2009, p. 138). Araújo (2009) ainda argumenta que a instauração da
Republica do Brasil faz surgir a figura do Coronel, “grande fazendeiro que, recebendo apoio
do governo, exercia controle sobre a região onde estava estabelecido” (ARAÚJO, 2009, p.

96
139). Sobre este tempo, Seu Vicente lembra que, mesmo sendo considerado como um tempo
de liberdade de acesso às terras livres, no carrancismo “os maiores” da região eram o Véio
Dô (Manoel Alexandrino) e Élcio Pacheco. Ambos tinham canaviais e “colocavam os
agregados em cativeiro”.49 Segundo Seu Vicente, o Véio Dô, ou Coronel Dô, “comandava o
povo do Bom Jantar” e possuía estreita relação com o poder local, usando, inclusive, “roupa
de polícia”. Os fazendeiros do tempo dos troncos não eram criadores de gado. A criação de
gado na solta era feita por agregados e posseiros. Seu Zé Bete conta que, nesse tempo, os
“grandaços” não expulsavam morador, “não tomavam” a terra, o morador continuava ali
trabalhando para seu próprio sustento na terra, “ficava morando, mas não tinha direito não,
quem era fraco não ganhou a terra”.50
Como já mencionei, no tempo de primeiro as famílias viviam espalhadas. Sobre isso,
Dona Osvaldina me explicou que, onde hoje é Gameleira, “era salteado, de uma casa não
dava para ver a outra, tinha mato no meio e eram poucas famílias”. Os locais de moradia
destas famílias eram identificados pelas características da paisagem, pela existência de
algum pé de árvore, lagoa, sangradô ou tipo de vegetação e solo. Por isso mesmo, quando
ainda não eram limitadas pelas cercas das fazendas de gado, não havia fronteiras rígidas
separando as comunidades e terrenos dos moradores. Desse modo, o que prevalecia era uma
dinâmica marcada pela movimentação de pessoas e animais. Isso aparece nas narrativas dos
quilombolas ribeirinhos na medida em que, ao falarem sobre os lugares, os associam as
experiências pessoais ou às estórias de pessoas que viveram neles, e vice versa. Isso constitui
estes lugares em uma espécie de conjunto indissociável de lugar-vivente-estória ou, mais
precisamente, estórica. É o que podemos ver no mapa e na narrativa que serão apresentados
a seguir:

49
Conforme Velho (1995), que se dedicou a compreender a categoria “cativeiro” a partir dos diferentes
contextos etnográficos nos quais ela aparecia, a expressão “aparece para designar a ausência de liberdade ou,
mais precisamente, de libertação; os dois termos formando, portanto, um binômio indissociável, sobretudo
através das expressões derivadas cativo e liberto, como em terra cativa e terra liberta” (VELHO, 1995, p. 14,
grifos do autor).
50
Este período também coincide, segundo Araújo (2009), com outros dois acontecimentos: a construção da
estrada de ferro que passava pela região, ligando o Rio de Janeiro a Salvador; e a desinsetização das áreas
alagadas que exterminou a endemia da malária. O primeiro destes acontecimentos propiciou a derrubada da
mata na região para a construção da ferrovia e, o segundo, a criação das grandes fazendas nos vales.

97
Figura 15 - Mapa etnográfico da margem esquerda do rio São Francisco – Januária
Fonte: ACYPRESTE et al, 2018.

Pai foi criado aqui mesmo. Tinha um lugar aqui perto, uma varge
conhecida por Ferrão. Varge do Ferrão. Lá ele ficou moço, ficou rapaz,
casou com minha mãe. Pulou de um lado pra outro. Desse lugar, que tinha
um dono de terra, para esse, que era dele.
Tudo era mato. Onde não era mata, era capão, era tabuleiro.
Tabuleiro é terra de cagaiteira, pequizal, essas árvores assim. Pro lado do
Bom Jantar ainda tem uma amostrazinha. Indo pro Bom Jantar tem o
Tabuleiro do Meio. Chama Tabuleiro do Meio, porque pra lá era mata e
para cá era a Varge da Gameleira, então ele ficava no meio. Isso já vem de
muito tempo, dos antigos, Tabuleiro do Meio. Aquele desmatamento de
Raimundo Pacheco, aquilo tudo era mata.
Aqui era uma varjona e tá registrada como Gameleira. Comunidade de
Gameleira. Perguntava qual era a estrada que sai na Gameleira, é essa
varjona aí. Bem na frente, era uma varge, varjona. Era conhecida como
Varge da Gameleira. Como diz o outro, ela fazia um fechadinho assim, aí
esse fechadinho saía na outra varge, a varge do Ferrão.
É. Era Varge da Gameleira, varge do Ferrão e passando pra cima vinha a
varge das Pedras, outra varjona. Varge das Pedras. Aí passava por um

98
fechadinho outra vez, varge do Cedro, onde tinha um cemitério. Depois
entrava na fazenda lá de Helvécio.
Aquele fechadinho. Às vezes a varge morria ali, aí andava um pouquinho,
passava o capão já era outro nome, Varge das Pedras, Varge do Cedro,
Varge da Gameleira, Varge do Ferrão, aí vai descendo aí Varge do Jacaré,
da Caiçara até chegar em Januária. Mas naquele tempo, hoje tá tudo
desbastado.
Perguntava onde é a varge de fulano aqui. A pessoa falava.
Depois A.I. veio comprando. Todo mundo tinha uma glebinha, ele
enrolava a gente, vinha cercando. Essa coisa disfarçada. Ia rodeando ao
redor (colocando cerca). A pessoa enjoava, passava pra frente (ARAÚJO
et al, 2019, p. 109, grifos adicionados).

Na narrativa do morador apresentada acima, ele diz que o pai “pulou de um lado para
o outro”. Também diz: “Perguntava onde é a vargem de fulano aqui. A pessoa falava”. No
mapa etnográfico apresentado acima, também podemos observar muitos destes lugares-
viventes-estórias mencionados pelos quilombolas em suas narrativas. Nestes casos, chamo
atenção para o modo de primeiro de habitar a beira do rio. Independente das casas serem
localizadas próximas ou distantes dos altos, vargens, lagoas, sangradouros, da beira do
riacho Ipueira ou do rio São Francisco, os moradores se movimentavam com frequência por
meio de vários caminhos, trilhas e carreiros para realizarem a pesca nas lagoas, o plantio
nas vazantes, ou mesmo para deslocar as moradias para outros lugares próximos ou distantes
devido aos fluxos do rio.
Outros deslocamentos, menos ligados à paisagem e às atividades produtivas, eram
aqueles relacionados à religiosidade, especificamente as folias que percorriam longos
trajetos passando pelas casas dos devotos ao longo da beira do rio e nas comunidades mais
distantes do barranco do rio, tipo de movimentação, ou giro, que também foi observada por
Pereira (2009) em relação as folias em Urucuia-MG. Seu Zé Bete se alembra da Véia Lídia,
que saía com a folia indo para longe, passando por Gameleira, e circulando por outras
comunidades. Narrativas como esta enfatizam relações passadas e presentes dos moradores
que se vinculavam a partir destes diferentes movimentos. Assim, cada “lugarzinho” e cada
“caminhozinho” guarda suas relações com aqueles que circulavam e viviam neles. Pude
perceber essa relação em uma conversa com Seu Vicente, que apresento logo abaixo.

Aqui tinha muita casa. Mas tudo espalhada. A gente não via casa uns dos
outros, via os caminhozinhos. Os caminhozinhos iam para casa de seu
fulano, ia para casa de seu cicrano e era assim. Aqui mais para cima morava
uma velha chamada Jacinta, o marido dela chamava Fulô. Conheci ele por
Fulô, deve ser Floriano. Ali mais para dentro morava um véio chamado
Lindolfo. Mais para cima um tiquinzinho, perto, morava um irmão dele por

99
nome Miguel. Inclusive dessa família ainda tem gente aqui. Tem o João
que morava ali, tem o Isauro que mora acolá também, tudo é dessa família,
desse povo lá. Tinha um velho chamado Francisco Pé Grande. Aí agora
nós vamos mexer com os apelidos, né? (risos). Tinha esse nome Francisco
Pé Grande, João Pé Grande, Manel Pé Grande, Joaquim Pé Grande.
Joaquim Pé Grande era o pai desses três. E Benedita, que era a mulher do
velho Joaquim Pé Grande. Mora tudo mais para lá, para dentro, terra de
vazantão. Eu não sei porque, que naquele tempo chovia muito e enchente
era quase assim contínuo, quase todo ano, e eles moravam nesses lugares
lá, plantavam suas roças. Quando de mudar, vinha uma enchente e eles
corriam para o alto, para estes altos aqui. Então era desse jeito. Então aqui
para baixo morava o véi Olegário, que é o pai de Zé Bete. Tinha o finado
Tiburtino, que morava ali mais embaixo. Tinha meu avô que morava lá na
sede. Tinha um véio, só que esse véio acho que ele não era daqui. Ele
chamava Desiderio. Ele morava em uma casona grandona que tinha, aonde
tem essa sede [da fazenda] hoje. Tinha essa casa de tijolo, sem rebocar,
mas era uma gama de casa, que diz que era desse povo de Manel
Alexandrino, um véio que tinha aqui no Bom Jantar, por nome de Dô. Dô
era o apelido que o povo chamava ele, mas o nome dele mesmo diz que era
Alexandrino naquele tempo da escravidão, nesse tempo. Então eles
fizeram essa casa aí, aonde é a sede hoje e depois largaram a casa lá. Aí o
véio Desiderio morou lá muito tempo. Depois desapareceu daí (Seu
Vicente, Gameleira, 2018).

Outra característica do tempo de primeiro era a fartura retirada das roças e da pesca.
Isto foi o que me disse Seu Santo enquanto caminhávamos na ilha. Ao afirmar que convive
na ilha há muitos anos e que sabe que o trabalho ali é muito sofrido, com uma certa nostalgia
também se lembrou dos tempos de fartura, quando o “rio sempre enchia”. Na ocasião ele
me dizia que em “uma época dessa, você andava aqui e, todo lado que você olhava, você via
abóbora, melancia, feijão catador, feijão de arranca, não era grande coisa, mas sempre tinha”.
Como me contaram Seu Santo e outros moradores, nas vazantes e vargens eles produziam
feijão, milho, mamona, algodão, fava, amendoim, mandioca, cana e abóbora. Os que
cultivavam na vazante, “enchiam o barco e iam vender em Januária”. Da cidade retornavam
com café, sal, rapadura e roupas. Também vendiam lenha para os vapores, como explicou
Seu Santo.

Umas das coisas que era sobrevivência nossa na época, só para você
entender melhor. A gente vivia de um pedacinho de roça, né!? Trabalhava.
A gente vivia de uma lenha. Você conheceu vapor? Os vapores que viajam
o rio, eu conto um bocado de vapor que eu conheci nesse São Francisco.
Então, a gente tirava a lenha, que o rio enchia muito, descia muito barro
seco, vinha descendo e a gente ia pegando aqueles paus, trazendo.
Lenheiro era um metro de altura, por um metro de largura, a gente cortava
aquela lenha no tamanho de um metro de cumprimento e um metro de
altura, um metro de largura e fazia o lenheiro tudo medido. Era para vender
para o vapor. Aquele dinheiro lá é que fazia feira, comprar roupa,

100
sobrevivência da família. Aí a gente plantava a roça cá no alto, plantava o
milho, o feijão. Feijão de corda, feijão de arranque e a mamona. Mamona
eu plantei aqui muito, aquilo lá que você está vendo: algodão. Isso aí para
nós tinha uma grande validade. Isso aí era o dinheirinho da reserva. Era
mamona e algodão. As outras coisas eram para gente manter. E esse já
servia para comprar uma roupinha. Porque quando a gente comprava uma
calça, a outra não tinha lugar de colocar remendo mais. Assim que eu fui
criado, dessa maneira. A mandioca, a gente plantava a mandioca e não
tinha uma oficina aqui dentro, porque a gente não tinha condições de
manter uma oficina. Como é que fazia uma farinha? Na base do ralo. Não
sei se você sabe como que era. Era na base do ralo, ralava a mandioca no
ralo, espremia no pano e torcia e aí passava na peneira e o tacho, uma folha
de frange, ascendia assim e fazia a farinha, isso era o ritmo de sofrimento
(Seu Santo, Croatá, 2018).

Com base nas narrativas dos quilombolas ribeirinhos, percebemos que liberdade,
fartura e sofrimento são os termos usados para descrever este tempo antigo, algo também
observado nos trabalhos de Costa (1999) e Mourthé (2015 e 2021). Tal como a imagem
abaixo, os moradores contaram que as abóboras produzidas nas vazantes e ilhas eram tantas
que, quando o rio começava a subir não dava tempo de colher toda a produção e, assim, as
abóboras desciam boiando junto com as águas do Chicão.

Figura 16 - Sob a sombra de uma árvore, grupo de pessoas expõem abóboras produzidas nas
vazantes do rio São Francisco
Fonte: Coleção Nelson de Sena do Arquivo Público Mineiro – 1900 a 1910.

101
Os que plantavam nos altos levavam os produtos nos carros de boi ou dentro dos
balaios, que eram carregados em suas cabeças. Na cidade, vendiam as “coisinhas da roça”
nas ruas, feiras ou para os depósitos, as quais, por sua vez, eram levadas para outras regiões
por meio das barcas que navegavam pelo rio São Francisco. Nem todos tinham “condições
de render o criatório” de gado, como disse Seu Zé Bete, mas criavam cabra, porco, galinha
e até carneiro na solta. Assim, o povo das margens do rio e do cerrado (no alto), nas
proximidades de Januária, abasteciam os mercados, depósitos e as pequenas indústrias da
cidade e das regiões conectadas pelo São Francisco. Como foi apresentado no primeiro
capítulo da tese, no porto de Januária era intensa a movimentação de barcas e vapores
carregando produtos e alimentos das caatingas, cerrados, gerais e vazantes.51
Devido à navegação no rio São Francisco, a cidade de Januária era um dinâmico
centro comercial, “uma metrópole” que Wells (1995), em sua passagem pela cidade, anuncia
com uma certa ironia. Contudo, comparada aos outros lugarejos por onde o viajante passara,
sim, podia ser chamada de metrópole. Este fator contribuiu para o enriquecimento daqueles
que os quilombolas identificam como armazenistas, os donos dos armazéns da cidade. Um
deles foi A.I. que, como veremos na última seção deste capítulo, foi uma das figuras que
marcou o início das mudanças que ocorreram na paisagem e na vida dos quilombolas
ribeirinhos.52
Esse tempo de liberdade, fartura e sofrimento começou a mudar no momento em
que, como disse Seu Antônio, os “grandes” chegaram para tomar as terras dos “pequenos”.
Quando os “grandes” chegaram “foi que a terra teve valor”, pois “os homens que tinham o
olho mais grande e compreendido, levaram e seguraram (a terra)”. A perda do acesso às
terras de moradia, de roça e de solta aconteceu quando “veio a divisão”, que teve início nos
anos de 1930 e se intensificou a partir da década de 1970, resultando no cercamento das
terras livres para formação dos mangueiros para a criação do gado. Esse período causou uma
reconfiguração nas áreas onde viviam os moradores e também a constituição das
comunidades, tal como elas se configuram no momento atual.
Tal reconfiguração será discutida nos próximos capítulos. Antes, contudo, vale a
pena explorar mais alguns aspectos da vida dos quilombolas ribeirinhos no tempo de

51
Neves (1991) informa que uma barca do São Francisco teria capacidade de transportar, por exemplo,
aproximadamente 12.000 rapaduras, sendo que, a depender do tamanho das embarcações, seria capaz de
transportar entre 6 a 60 toneladas de produtos tais como arroz, açúcar, álcool, toucinho, café, farinha de
mandioca, feijão, manteiga, sal, couros, rapaduras, entre outros.
52
Para evitar quaisquer problemas para os meus interlocutores, ao mencionar o nome dos fazendeiros locais,
utilizarei apenas suas iniciais.

102
primeiro, período em que o povo vivia espalhado e os nomes atribuídos as áreas eram as
referências para a identificação das moradias e para a localização das famílias.

3.2. “Cada lugar tem um nomezinho, cada lugar, o pessoal que veio morando”

Se, como afirmou Mauss (2003), nomear é fazer existir e perpetuar, nesta seção a
ideia é explorar um pouco mais sobre a conexão lugares-viventes-estórias através dos
processos de nomeação e toponímia. Assim, através da discussão dos nomes atribuídos aos
lugares, áreas, pessoas e famílias da beira do rio, a proposta é mostrar as relações estóricas
entre quilombolas e paisagens. Neste sentido, argumento que os lugares de vida dos
quilombolas e de seus companheiros viventes constituem territórios de memória, ou melhor,
territórios existenciais. O existencial aqui é pensado a partir de um conjunto de práticas que
vão muito além da produção dos alimentos e obtenção dos recursos necessários para a
sobrevivência das famílias. Constituem-se em práticas de conhecimento que corporificam
diversos componentes da paisagem terrestre, onde se incluem as relações com as plantas,
com os animais e com as águas (lagoas, sangradouros e rios); e da paisagem celeste, onde
se pesa a relação com os astros e com as forças invisíveis.
A noção de territórios existenciais também vem sendo pensada e desenvolvida pelo
conjunto de pesquisas que compõem o Laboratório de Antropologia da T/terra (ver
COELHO DE SOUZA, 2017; IUBEL e SOARES-PINTO, 2017). Conforme Coelho de
Souza (2017), em contraposição ao “sentido de território como categoria geopolítica
dependente de ato de tomada ou de relação de domínio sobre uma certa extensão de terra”,
o território existencial, de “inspiração deleuziana”, se refere “ao ato de constante habitar,
produzido pela repetição das ações no espaço” (COELHO DE SOUZA, 2017, p. 25). Dentre
as discussões realizadas, uma perspectiva interessante é aquela apresentada por Soares-Pinto
(2017), pois a autora propõe a ideia de “coexistência” para pensar os territórios, tendo como
ponto de reflexão a integralidade das relações e a produção de uma vida conjunta entre
humanos e não humanos. O argumento da autora se aproxima da proposta desta tese, que
tem como foco a relação dos quilombolas com os outros viventes da beira do rio. Estas
discussões, no entanto, serão mais úteis quando a complexidade destas relações com os não
humanos – os viventes – forem emergindo ao longo da tese. Embora esteja apresentando aqui

103
a ideia de territórios quilombolas enquanto territórios existenciais, nesta seção me limitarei
a pensar as conexões entre os lugares de vida quilombolas e os processos de nominação.
A corporificação da estória dos coletivos na paisagem, e vice-versa, ganha dimensão
nos relatos das histórias familiares que, ao serem contadas, fazem referência aos lugares
onde nasceram, onde se casaram, para onde se mudaram e onde estão enterrados os parentes.
Lugares estes que, além de serem identificados por suas características físicas, são também
conhecidos por nomes pessoais. Antes de avançar para esta discussão, contudo, procurarei
fazer uma breve descrição da constituição inicial das comunidades quilombolas para que
seja possível uma familiarização com as pessoas, os véios e finados, que deixaram suas
presenças inscritas nos lugares onde viveram. Como disse Maria, “cada lugar tem um
nomezinho, cada lugar, o pessoal que veio morando”.
De primeiro, em Sangradouro Grande viviam os Lídia. Como já foi discutido em
Acypreste (2015), as narrativas dos moradores de Sangradouro Grande apontam para
aproximadamente 1906, ano em que Antônio Evangelista de Jesus, conhecido como Antônio
da Crôa, chegou com sua família na localidade. Junto com ele, veio também sua sobrinha,
Lídia Batista. A família veio de Malhada, cidade baiana situada na divisa com o estado de
Minas Gerais, próxima às cidades mineiras de Juvenília, Manga e Matias Cardoso. Como
contou Aparecida, que viveu sua infância em Sangradouro Grande e agora mora em Croatá,
naquela área do Sangradô Grande seus antepassados compraram uma terra onde
“plantaram, colheram e criaram seus filhos”. Quando chegou na região, o finado Antônio
era casado, mas sua mulher faleceu sem deixar filhos. Depois da morte da primeira esposa,
Antônio se casou novamente com Joana da Crôa, a responsável por torná-lo conhecido como
Antônio da Crôa.53 Mesmo com o segundo casamento, Antônio não “deixou filhos”, sendo
sua parente mais próxima a sobrinha Lídia Batista. Nhá Lídia, Iaiá Lídia ou Véia Lídia, como
é mencionada algumas vezes, se casou e viveu em Sangradouro Grande até “vir a falecer”.
Após o falecimento de Antônio da Crôa, foram os descendentes de Lídia e Eduardo Batista
que continuaram vivendo em Sangradouro Grande. Dentre os treze filhos do casal – Joaquim
Berro Grosso, Maria, Francisca, Zé Batista, Josefa, Ana, Idalina, Jucelina, Manuel, Joana,
Afonsina, Antônio e Pedro –, Pedro, de 85 anos, que atualmente vive em uma localidade na

53
Como veremos adiante, muitas famílias da beira do rio são apelidadas, a exemplo de Joana da Crôa e Antônio
da Crôa. O que ocorre é alguém receber um apelido e ele ser repassado tanto para seu cônjuge quanto para seus
filhos. Crôa, neste caso, além de ser o apelido recebido por Joana, seu marido e filhos, é também o nome
atribuído às ilhas ainda em formação. Apesar da frequência com que este e outros apelidos foram mencionados
durante a pesquisa, não obtive maiores informações sobre suas origens. Contudo, pelo que pude observar, estes
apelidos nunca são aleatórios e sempre possuem uma estória por trás deles. Retomarei este debate adiante.

104
margem do rio chamada Remansinho, foi um importante interlocutor durante meu trabalho
de campo, de quem pude ouvir histórias sobre a vida de sua família em Sangradouro Grande.
Sua filha Erotides também viveu durante o seu tempo de menina nas proximidades do
Sangradô Grande e, por isso, também me relatou diversas experiências com o lugar. Além
destes, as filhas de Joana e seu marido José Leandro Bonfim – Olívia, Maria, Isaltina, Lídia
e Kristina –, alguns dos seus primos, filhos e sobrinhos também vivem na comunidade
atualmente e foram meus interlocutores durante a pesquisa.

Figura 17 – Tia Ana, sexta filha do casal Lídia Batista e Eduardo Batista, tratando das galinhas nas
mangueiras, local onde nasceu e morreu aos 98 anos
Fonte: Arquivo da Comunidade de Sangradouro Grande.

Em Gameleira, dois importantes interlocutores, já conhecidos do leitor, foram


Vicente Paixão dos Santos, de 88 anos e também conhecido por Seu Vicente Branco, e José
Batista de Novaes, de 86 anos e conhecido como Zé Bete. Foi a partir dos diálogos com estes
dois moradores que pude compreender a estória de Gameleira, pois ambos são os
descendentes mais velhos dos principais troncos da comunidade, sendo estes troncos os
Lourenço, os Curiscada, os Neves, Germana, Catarina Lopes, Salu Parteira, os Dourado,
Justino, Bonifácio, os Rosa e os Canários. Alguns destes nomes fazem referência a um
sobrenome, outros a algum morador antigo e outros ainda a algum apelido de família.

105
Figura 18 - Seu Vicente Branco na varanda de sua casa
Fotografia: Izadora Acypreste, 2018.

Sobre os troncos de Gameleira, conforme descreveram Araújo et al. (2019):

Lourenço e Germana tinham sua terra de morada na Varge da Rasteira, em


lugar onde ainda hoje são encontrados pés de manga e caju que eles
cultivavam no quintal; um pé de imburana é apontado como marco da
antiga moradia de Manuel Rosa na varge do Ferrão e, de forma similar, as
histórias dos Curiscada, dos Neves, da Velha Salu, de Bonifácio são
narradas tomando como referência o lugar onde viviam na varge da
Gameleira e nas imediações da varge das Pedras, enquanto Zé Barqueiro
é lembrado como antigo morador de lugar por nome Córrego e Louro da
Mutambeira. Os finados Tiburtino e Catarina foram muitas vezes
mencionados como os primeiros moradores das terras que hoje abrigam o
povoado de Gameleira, enquanto Justino, das terras do Mundo Novo,
localidade onde algumas famílias adquiriram pequenas glebas na mata,

106
quando as terras de varge começam a ser cercadas por A.I. (ARAÚJO et
al., 2019, p. 108-109, grifos das autoras).

Apesar das origens distintas, o povo de Gameleira hoje tece laços de parentesco que
os vinculam uns aos outros. Estes vínculos se estendem às outras comunidades, como Várzea
da Cruz e Croatá.
O povo de Várzea da Cruz se divide entre a família dos Almeida e a dos Barbosa.
João Francisco de Almeida, que nasceu por volta de 1906 e faleceu em 1977, comprou
algumas terras em sociedade com Chico Barbosa. Estas terras, cerca de 10 alqueires na
época, são o que hoje constituem Várzea da Cruz. Antes de comprarem estas terras, os
Barbosa e os Almeida viviam na comunidade de Gameleira e, embora tivessem seus
terrenos, casas e canteiros em Varzea da Cruz, os moradores antigos continuaram fazendo
suas roças nas terras livres de Gameleira, se deslocando cotidianamente para lá.
Na ata que compõe o pedido de certificação da comunidade como remanescente de
quilombo, Dôra, do povo do Croatá, diz que esta comunidade é conhecida por diversos
nomes, sendo estes: Vazante de Chico Rei, Puleiro da Galinha e Vazantão Geral do Rei. Esta
moradora também afirma que um dos moradores antigos da comunidade, Pedro Preto,
morreu ali entre 1960 e 1970, com idade bem avançada.
Croatá, como vimos nas descrições da paisagem da beira do rio, se constitui por um
conjunto de ilhas que se juntaram à terra firme. Assim, enquanto “terras crescentes” (LUZ
DE OLIVEIRA, 2005), foram gradualmente sendo ocupadas por moradores vindos da
margem direita do rio, como o Velho Tomás, Osvaldo Vaqueiro e João de Dôra, bem como
por outros moradores vindos da Bahia, como Maria Baiana, José Santana, Moacir e Saulo.
Outros tantos destes moradores vieram de Sangradouro Grande, Gameleira e Várzea da
Cruz, ou, de outra maneira, possuem relações de parentesco com os moradores destas
comunidades. Seu Zé Mosquito, por exemplo, marido de Maria Preta, é primo dos atuais
moradores de Sangradouro Grande, sendo neto de Iaiá Lídia. O nome de uma das ilhas de
Croatá, inclusive, é atribuído ao seu primeiro morador, Pedro Preto, pai de Zé Mosquito.
Como vemos, principalmente no caso de Croatá, as áreas – vazantes e ilhas –
recebem os nomes de seus antigos moradores – Chico Rei e Pedro Preto – , nos mostrando
que não é possível desassociar esta conjunção entre lugares e pessoas que configuraram
estoricamente a paisagem da beira do rio. Algo próximo é discutido por Ingold (2015) ao
desenvolver sua análise sobre as formas de nomear os animais entre os Koyukon no Alasca.
Conforme o autor, os nomes utilizados por este povo para identificar um animal são verbos.

107
Além disso, estes nomes – como a coruja boreal, por exemplo, que recebe o nome de “se
empoleira na parte inferior dos abetos” – já indicam as formas Koyukon de conhecer os
animais, bem como podem ser consideradas formas de contar histórias. Do mesmo modo, os
nomes atribuídos pelos quilombolas às áreas da beira do rio carregam estórias, contam
estórias e resumem estórias. Uma exemplificação disso está presente na explicação de
Amelinha, quando indicava os nomes dos sangradouros existentes em Sangradouro Grande:

Cada um lugar é tipo território né. Vamos supor: tem um sangradô. “Oh
menina, onde está correndo água?”, “Não mãe, é lá no Sangradô de Seu
Josino”. Normalmente é o sangradô que passava aqui na roça de seu
Josino. Ele sangrava aqui quando a água entrava. Ele cortava aqui e corria
para lá, que é ali atrás da casa de tia Olívia. Aí já tem o outro lá em cima
que fala que é o Sangradô de Bernardo, é onde morava o povo que é da
família nossa, que é dos Bernardo que morava lá para riba. Aí tem o
Sangradô Grande que é onde tio Mané Preto tinha a casa, que é lá onde
Aparecida está morando. E aí vai, daí por diante. Aí tem um outro lá de
baixo, que é onde meu pai cortava telha, aí por isso que ficou Barreiro do
Forno, que era onde meu pai fabricava a telha. Por isso que isso aqui chama
Barreiro do Forno (Amelinha, Sangradouro Grande, 2017).

Além do Sangradô de Seu Josino e do Sangradô de Bernardo, citados acima pela


moradora, existe um complexo de lagoas, vargens e outras áreas da paisagem que recebem
os mais diversos nomes e fazem referência a nomes de pessoas (Lagoa do Chico, Lagoa do
Borja, Lagoa do Américo, Lagoa da Rosinha, Buraco do Vicente, Ilha de Pedro Preto, Ilha
de Zé Cravo, Vazantão do Américo); a nomes relacionados aos pés e frutos (Lagoa da
Caraibinha, Lagoa do Jatobazão, Lagoa do Jatobazinho, Lagoa do Angico Branco, Lagoa
da Manga, Vargem do Cedro); a nomes de animais (Lagoa das Piranhas, Lagoa das Garças,
Lagoa do Marimbondi, Lagoa das Cachorras, Lagoa dos Bezerros, Vargem do Jacaré,
Vargem da Raposa); a nomes que fazem referência a outras formações da paisagem (Lagoa
do Pandeiro, Lagoa da Vereda, Lagoa Cumprida, Lagoa do Rego, Vargem das Pedras); e,
por fim, a nomes que fazem referência a acontecimentos estóricos. O mesmo acontece em
relação aos pés, que algumas vezes também recebem nomes próprios, como o Pé de Manga
de Geraldo Reis.54

54
Esta importante conexão entre estória e plantas, que inspirou o primeiro título da tese, será aprofundada na
segunda parte deste trabalho, mas podemos ver, de antemão, que essa individualização das plantas também
pode acontecer em outros contextos etnográficos. Um deles é apresentado por Hadži Muhamedović (2013),
que mostra o quanto a árvore de Gernika, uma espécie de carvalho, está diretamente relacionada ao
nacionalismo basco através de suas muitas vidas e de sua estória própria. Através da discussão do autor,
percebemos que nem mesmo a morte de uma árvore pode apagar as estórias que ela conta.

108
Os nomes das comunidades da beira do rio também demonstram estas estóricas. A
comunidade de Sangradouro Grande, por exemplo, recebe o nome de um dos sangradô que
atravessam a localidade. Já Gameleira recebe o nome de uma árvore comum na região.
Também conhecida como figueira, a gameleira é uma árvore de grande porte que se
caracteriza por seu tronco grosso, raízes salientes e por sua madeira macia, muito utilizada
na produção de gamelas (uma espécie de bacia). Nas proximidades da comunidade existia
uma conhecida espécime, que servia como referência para a localização da vargem, a vargem
da gameleira que, por sua vez, servia como localização para o conjunto de moradias em suas
proximidades. Várzea da Cruz, como vimos sobre a descrição da terra firme, recebe o nome
de uma das vargens que circundam a comunidade. Croatá, por sua vez, faz referência à
planta, também chamada de embira, utilizada para a confecção das redes de pesca a partir de
suas fibras.
Outras vezes, os nomes de pessoas, das áreas e das árvores, se conectam nas estórias
contadas pelos quilombolas ribeirinhos. Seu Santo é um desses moradores que “tem a cabeça
boa” para contar estas estóricas. Certa vez me falava sobre Saturnino, vaqueiro que tinha
uma posse perto de Croatá. Na ocasião, ele dizia: “essas plantas que você está vendo, pé de
manga, pé de goiaba, tudo ele que plantou”. Explicava também que uma das lagoas que fica
dentro do território de Croatá é chamada pelo nome deste antigo morador. Em outro
momento, conversando com Seu Saulo, ele mencionou o nome de Vicente. Naquele
momento, perguntei a ele de quem se tratava, pois pensei que poderia ser alguém ainda vivo
da comunidade. Seu Saulo então me explicou que era um antigo morador. Em seguida, Bibi,
filho de Enedina, que também estava presente na conversa, explicou inclusive que existe
uma lagoa que recebe o nome de Buraco do Vicente, em alusão a este morador.
Ao questionar Seu Santo sobre estas relações entre os nomes das lagoas,
sangradouros e vargens, ele me explicou: “tem relação com o conviver aqui dentro”. Ao
dizer isso, também contou sobre a origem do nome da Lagoa do Cipó.

Aqui era uma mata, igual eu falei para você antes, era uma mata que ela
era fechada demais, muito fechada. Então, aqui era onde a gente vinha tirar
cipó para fazer uma coisa mais ou menos no formato desse balde, que se
chama coifo, que é de pegar piranha. Ele é do formato desse aqui. É feito
assim, todo de cipó, aí aqui tem uma sangra, sangra é uma coisa voltada
aqui por dentro que a piranha vem e entra num cipó e outro. Entra pra
dentro. Aí a gente bota a isca lá dentro e ela entra pra comer a isca, quando
ela chega lá ela não sabe voltar. Ela não sabe sair. Ela fica aqui só por causa
da sangra. Esse coco aí fica pendurado com arame, a gente levanta o coco

109
e elas cai dentro. Lagoa do Cipó. É onde nos tirávamos o cipó (Seu Santo,
Croatá, 2018).

Como vemos, o nome Cipó, atribuído a lagoa, não penas conta uma estória, como
também conecta pessoas, peixes, plantas e técnicas. Embora não tenha a informação
específica sobre as origens de todos nomes atribuídos a cada uma destas áreas, a etnografia
de Scaramuzzi (2016) nos ajuda a conjecturar possíveis referências a estes nomes. As lagoas
com nomes de animais e vegetais, por exemplo, podem indicar a presença marcante destes
seres no lugar. Já as lagoas e sangradouros com nomes de pessoas, podem indicar a
proximidade da residência do epônimo (seja nos tempos antigos ou atualmente), a pessoa
que descobriu o lugar ou que detinha ou detenha algum direito, forma de posse ou
propriedade. Com isso, é possível dizer que o processo de nomear as áreas, os animais e as
plantas envolve uma observação contínua e atenciosa sobre as formas de existência dos seres
– humanos e não humanos, dos lugares e também sobre como eles interagem entre si. Como
observou Scaramuzzi (2016) a respeito do conhecimento dos castanheiros quilombolas no
rio Trombetas (PA), sobre o que eles denominam de “pontas de castanhas”, a toponímia
revela uma relação íntima entre os habitantes humanos com os lugares em que vivem e
também uma parte da história de ocupação e uso territorial destes coletivos. Pois os atos de
nomeação e a transmissão destes nomes demonstram experiências históricas das pessoas e
outros viventes com estes e nestes lugares.
Da mesma forma que as pessoas, os animais e os pés também são usados para nomear
os lugares. Além disso, as pessoas também recebem estas nomeações. Algumas famílias
inteiras possuem, independente do seu sobrenome, um apelido comum. Uma publicação,
elaborada pelo Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva (CEDEFES, 2008) sobre as
comunidades quilombolas de Minas Gerais, descreve, por exemplo, o nome de um ramo
familiar da comunidade Quebra-Guiada, situada na margem esquerda do rio São Francisco,
na cidade de Januária. A família em questão é conhecida como os Canelas, que “receberam
esse nome em referência a uma espécie de cervo da região, que é conhecido como canela
fina” (CEDEFES, 2008, p. 275-276). Como a incidência deste animal era abundante, a
família Rodrigues, que os caçava com frequência, ficou conhecida como “os Canelas”. Na
comunidade quilombola de Brejo dos Crioulos, Costa (1999) observa as categorias utilizadas
por seus interlocutores para nomear os troncos familiares. Conforme o autor:

Estas categorias denominadoras dos grupos familiares ou locais expressam


os vínculos das famílias à localidade de origem antes da migração no

110
século passado (macacos e cachoeiras) e a característica de cada grupo
(queixadas – andam sempre juntos, unhas pretas – unhas sujas de terra,
rola sabugos – brigas constantes entre eles, guerés – jandaia barulhenta
e/ou pessoa faladeira, cabaceiros – local de muitas cabaças, cabeças altas
– altos e andam com a cabeça erguida, pifiti – onomatopaico do barulho
feito na banca de jogo de dados por aquele que recebeu o apelido)
(COSTA, 1999, p. 43, grifos do autor).

Na beira do rio, mais comumente nos tempos antigos, os troncos eram conhecidos
por seus apelidos. Em Gameleira existem vários deles, como explica Zé Bete:

Hoje é Novaes que é dos Canário, mas não tem mais os Canário, porque os
velhos acabaram né, então a família nossa era apelidada de “fulano de tal
Canário”, os velhos, os antigos. Os novatos uns pegavam, outros não
pegavam, até hoje ainda tem um primo que tem apelido de Zé Canário (Zé
Bete, Gameleira, 2018).

Zé Bete afirma ser parte do tronco dos Canários por causa do Pai, cujo nome é
Olegário Batista Novaes. Pelo lado da mãe, Maria Rosa da Cruz, também é parte do tronco
dos Curiscada. Outros apelidos de famílias presentes em Gameleira são os Neves, os
Lourenço, os Hermógenes e o povo da nação dos Rosa. Em Sangradouro Grande, os nomes
de família que pude identificar foram os Barba Dura e os Guacho. O que acontecia, de
costume, era alguém receber um apelido e esse apelido ser atribuído à família inteira.
Embora tenha me detido aqui nas relações entre nomes e paisagem, existem muitas
outras razões para se atribuir nome a algo ou alguém. Podemos ver estas outras razões em
trabalhos como os de Viegas (2008) e Pina-Cabral (2008), dentre outros. O próprio Zé Bete,
com quem eu conversava sobre os apelidos de família, contou-me a história do seu apelido,
que faz referência à Zé Béttio, um radialista e cantor que fez muito sucesso entre as décadas
de 1970 e 1980. Como ele disse, certa vez “estava quebrando um quartão de pinga mais os
colegas” na casa de um deles, falando alto e cantando, quando as filhas desse colega o viram
e cochicharam o nome do radialista. Conforme Seu Zé Bete, “foi o mesmo que jogar um
monte de barro e colar”, pois é conhecido até hoje como Zé Bete.
Refletindo sobre estas formas de nomeação, se pensarmos, como propõe Maizza
(2012), que todos estes seres e lugares fazem parte do mundo e que o mundo se forma
justamente a partir da interação entre estes, tais exemplos de nomeação revelam algo em
comum, que é “uma relação entre coisas vivas” (MAIZZA, 2012, p. 39). Como discute
também Oliveira (2016), experiências como estas nos forçam a enfrentar o desafio de
compreender as “conexões múltiplas e não lineares da forma como um grupo elabora a vida

111
por meio de relações interespecíficas” (OLIVEIRA, 2016, p. 144). Desse modo, não é
possível realizar uma discussão sobre a vida dos quilombolas ribeirinhos obliterando a forma
como elas estão conectadas com as águas (o rio, as lagoas e os sangradouros), as áreas, os
bichos, as pessoas, as famílias e as comunidades. São estas estóricas e as inter-relações entre
todos esses seres viventes que, parece-me, nos permitem compreender as vidas da beira do
rio e que, nos dias atuais, também são o que constituem os territórios que, com tantos custos,
os quilombolas buscam defender e assegurar.

3.3. “Depois veio a divisão”

Como vimos na primeira seção deste capítulo, sobre os tempos narrados pelos
quilombolas ribeirinhos, um dos mencionados foi o carrancismo. Além de seu sentido
relacionado a um viver com liberdade e fartura, o outro sentido atribuído a este tempo é o
de início das restrições de acesso e uso das terras livres. Foi durante este período que,
segundo Dona Osvaldina, “veio a divisão”. Esse tempo de divisão e de restrição aos
moradores para plantarem e criarem não aparece nas narrativas dos quilombolas ribeirinhos
de maneira cronológica, mas todas elas resultaram, juntas, nas condições atuais de vida na
beira do rio. Tendo já mencionado sobre os “tempos” apresentados pelas pesquisas na região
do Norte de Minas (COSTA FILHO, 2008; ARAÚJO, 2009; NOGUEIRA, 2009), destaco
alguns acontecimentos identificados por estes pesquisadores que provocaram ou
impulsionaram algumas das mudanças na região e que também foram narrados por meus
interlocutores. Estas foram a lei de terras de 1850, a lei de terras de 1969 e a vinculação do
Norte de Minas à Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE).
A conexão entre as narrativas do povo da beira do rio e a implementação destas
políticas fundiárias aparecerão ao longo da seção; no entanto, não seguirei aqui, mais uma
vez, a ordem cronológica destas políticas, uma vez que nem mesmo os meus interlocutores
o fazem. Procurarei mostrar, através da apresentação destes marcos temporais, não apenas
seus efeitos em relação ao acesso e uso da terra, mas também como eles colaboraram para
ajuntar o povo que vivia espalhado pela beira do rio nos aglomerados de casas que
constituem as comunidades de hoje.

112
Dona Osvaldina, por exemplo, lembra que seus pais costumavam falar que “veio a
divisão de terra”. Tendo sua origem em Gameleira e sendo da nação dos Hermogenes,
Osvaldina explicou como a divisão levou seu pai, João Francisco de Almeida, a comprar,
junto com Chico Barbosa, as terras em Várzea da Cruz.

A divisão de terra para dividir, para cada qual’e ter o seu. A. I. (fazendeiro)
dividiu o dele. Aí ninguém pode fazer roça no terreno deles, né!? Não
podia fazer roça, mas naquele tempo fazia. Fazia roça, fazia casa. Esses
terrenos deles fazia e não tinha negócio de proibir, mas depois não pode
mais fazer dentro dos terrenos. Esse tempo que veio a divisão eu já não
lembro como é que foi. Eu era menina, eu não lembro. Minha mãe e meu
pai falavam: “veio a divisão de terra”. Veio a divisão de terra para dividir
e cada qual’e teve o seu. Cada qual’e tinha os seus alqueires de terra, tinha
dois, tinha um ou mais. Mas de primeiro ninguém via falar, todo mundo
criava aí no terreno dos outros, solto, não proibia. Depois não pode mais
criar solto nos terrenos dos outros, não puderam mais criar (Osvaldina,
Várzea da Cruz, 2017).

A divisão, ou tempo da divisão, de que fala Dona Osvaldina, também é narrada por
outros quilombolas e populações ribeirinhas do Norte de Minas. A primeira menção a este
tempo aparece em Costa (1999), em sua pesquisa com os quilombolas de Brejo dos Crioulos.
Neste trabalho, a divisão aparece nas narrativas dos quilombolas para falar do período em
que “agrimensores registraram imensas glebas das fazendas onde atuaram como ‘terras de
ausente’, adjudicando-as em seus nomes e depois vendendo-as para terceiros, que vieram
apossar-se delas, expulsando aqueles que nelas viviam” (COSTA, 1999, p. 72). Araújo
(2009) argumenta que este foi um mecanismo político que passou a ser adotado por coronéis
e fazendeiros. A autora ainda explica que,

Após a instauração da República e a vinculação das terras devolutas às


unidades da federação, em Minas Gerais diversos egressos da Escola de
Minas passaram a ofertar os seus préstimos como agrimensores para os
grandes fazendeiros. Assim, muita terra passou a ser dividida a pedido dos
coronéis e dos fazendeiros desde o final do século XIX, mas
principalmente no início do século XX. No caso da região em estudo, esse
processo ocorre na década de 1910 em diante, levando a expropriação o
deslocamento de grupos familiares em busca de outras “terras livres”, ou
seja, terras distantes, que não possuíam donos ou que não estavam sob o
domínio dos coronéis (ARAÚJO, 2009, p. 140).

Assim, conforme Anaya (2012), a lei de terras de 1850 eliminou o regime de


sesmarias, as terras livres usadas pelos quilombolas, e “estabeleceu a compra como única
forma de acesso a terra” (ANAYA, 2012, p. 53). Também em Brejo dos Crioulos, Mourthé

113
(2021), por exemplo, apresenta as narrativas dos quilombolas que “acompanharam a
divisão”, sendo este o termo usado por alguns de seus interlocutores para falar daqueles que
conseguiram registrar suas terras em cartório. O autor também chama a atenção para o fato
de que, no “tempo da divisão”, os moradores antigos do quilombo tiveram que pagar pelas
terras que já habitavam desde a formação de Brejo dos Crioulos.
Da mesma forma, o pai de Dona Osvaldina e seu amigo Chico Barbosa, para usar a
expressão apresentada por Mourthé (2021), “acompanharam a divisão”. Assim, a
comunidade de Várzea da Cruz se constituiu a partir do esforço das famílias dos Almeida e
dos Barbosa em registrarem aquelas terras fazendo o pagamento dos impostos de registros
fundiários. Dona Osvaldina contou que trabalhou muito na roça com o pai para que ele
conseguisse pagar estes impostos. Ela lembra que já era grande quando o ajudava. Embora
não conseguisse ainda capinar, ajudava o pai a plantar, a catar mamão, algodão, milho e a
transportar os produtos da roça para a venda na cidade. Foi o trabalho sofrido do pai e da
família, garante Osvaldina, que permitiu o registro das terras e sua transmissão para os
descendentes. No entanto, o sofrimento do passado não garantiu a permanência das novas
gerações, que estão todos para fora. Isto porque as terras garantidas pela compra naquela
época hoje já não são o suficiente para a abertura de novas roças, assim como as terras da
comunidade não são consideradas pelos moradores como tão boas quanto as terras livres.
Embora toda documentada, Dona Osvaldina e seu marido Carlito explicam que em Várzea
da Cruz a terra é fraca e, por isso “só plantava mandioca, feijão de corda, num botava
roça”55. Logo após dizerem isso, apontaram em direção a serra e observaram que: “as roças
fortes era lá ó, porque lá a terra é vermelha. A terra lá dava mamona, algodão. Feijão de
corda dava muito, fava também”. Explicaram que as terras de Várzea da Cruz não dão muito.
Segundo minha interlocutora, “aqui, para dar tem que ser um ano bom de chuva e o dono
tratar muito bem”.
Enquanto João Francisco de Almeida e Chico Barbosa compravam as terras de Várzea
da Cruz, nas proximidades do Sangradô Grande viviam Antônio da Crôa, sua sobrinha Lídia
Batista, marido e filhos. Por perto também viviam os Baianos, moradores que, por virem da
Bahia, eram conhecidos nestes termos, como Justino Parateca, que vivia com suas duas
esposas e filhos. Alguns anos depois, após a morte de Antônio da Crôa, seus descendentes,

55
Como veremos no Capítulo 5, embora a mandioca e o feijão de corda sejam também mantimentos cultivados
nas roças, são qualidades que conseguem crescer nas terras fracas. Por essa razão, a diferenciação do casal
sobre plantarem mandioca e feijão de corda nas vargens de Várzea da Cruz, mas não “botarem roça”.

114
que atualmente se autodenominam enquanto os Lídia, em meio à implementação das
políticas de modernização da agricultura nas décadas de 1960 e 1970, perderam o acesso às
terras de moradia, cultivo e uso comum para um fazendeiro local, que tomou de conta das
terras de Sangradouro Grande e de outras comunidades da beira do rio. Com isso, muitos
moradores se viram obrigados a saírem de Sangradouro Grande para procurar melhores
condições de vida nas ilhas, nas cidades da região ou nas grandes cidades do país.
Sobre estas saídas, Madalena me explicou que, depois que foram expulsos, as terras
que conseguiram foram aquelas formadas no meio do rio, as ilhas, como a do Balaieiro, a da
Capivara e a do Iote. Depois que os sabidão foram chegando, “encostando devargarzinho”,
“empurrando os fracos”, as famílias “desbandaiaram” todas para as cidades e ilhas.
A respeito da ocupação das ilhas, Luz de Oliveira (2005) explica que, entre seus
interlocutores (os vazanteiros dos municípios de Manga, Itacarambi e Januária), ela é
compreendida em quatro etapas. A primeira fase, identificada como a “chegada dos posseiro
véi”, é situada entre as décadas de 30 e 60 do século passado, quando as primeiras famílias
passaram a utilizar as ilhas. Este tempo também é lembrado pelos vazanteiros como o tempo
em que a terra era livre para “apossiá” e os moradores, embora utilizassem as vazantes e
lameiros das ilhas, ainda moravam na terra firme. A segunda fase, identificada enquanto a
“chegada dos novatos”, está relacionada tanto à falta de enchente que não “correu com
ninguém” quanto a perda de acesso à terra firme. Este momento, que aconteceu por volta de
1960 e 1970, também está relacionado à construção da Barragem de Três Marias e a
contenção das enchentes a partir desse período.56 O terceiro momento, identificado como a
da “vendição da terra”, está relacionado à atribuição de valor à terra, uma vez que antes,
como vimos sobre os direitos, os vazanteiros não vendiam nem compravam terra. A última
fase descrita pela autora é a vivida no momento atual pelo povo da ilha, que luta pelo
reconhecimento do seu modo de vida enquanto quilombolas ou membros de uma
comunidade tradicional (LUZ DE OLIVEIRA, 2005).
A ocupação nas ilhas para moradia, portanto, está diretamente relacionada com a
gradual perda de acesso às terras livres. Para as gerações mais novas, que não

56
“As obras da barragem de Três Marias foram iniciadas em julho de 1957 e concluídas em dezembro de 1960.
A represa tem 2700 metros de extensão e altura máxima de 75 metros; quando a água atinge a sua cota máxima,
a área de inundação é de 1050km² e o volume cerca de 21 bilhões de m³” (THÉ, 2003, p. 115). Ainda conforme
Thé (2003), uma das consequências da barragem foi a transformação da paisagem ao longo do trecho do rio,
pois o nível da água se tornou constante devido ao controle da vazão realizado pela represa.

115
“acompanharam a divisão”, ainda que tivessem alguma liberdade, viveram uma outra
experiência em relação à vida na beira do rio. Isto foi o que me contou Seu Santo.

Quando eu entendi por gente, já com o pessoal mais velho que tinha por
aqui, que se dizia dono das terras ... que a origem desse pessoal mais velho
que adquiriu terra aqui nessa região, não tenho assim um conhecimento, já
alcancei eles dizendo assim: “isso aqui é meu”. Eles aqui eram formados
assim: você era dono de uma gleba de terra e ele negociava com você
aquela área sua. Então você vendia aquele pedacinho de área de terra aqui
e ele comprava, comprava aquele outro pedaço na mão de Seu Antônio,
comprava aquele de Seu Joaquim e ia comprando. Quando ele tinha uma
área grande, aí ele enfiava uma cerca aqui, cercava aquela parte que era
sua, de Seu Joaquim, de Seu Antônio e rodeava com a cerca e cercava mais
dois direitos que era meu, que era de Jorge, que era de Martin, aí ele
cercava. Como ele tinha dinheiro, nós tínhamos medo de discutir com ele,
que nós não sabíamos ir na lei para conversar, para falar, então ele cercava,
botava uma cerca e pronto. Naquela época se falava lá, se cortar um arame
é crime. Cortar um arame é pior que matar uma pessoa. Aí quem é que ia
mexer? Aí ele trazia o gado. Aí ele comprava gado lá fora, trazia e estava
ali. Então aquela terra ninguém mais mexia. Assim foi evoluindo (Seu
Santo, Croatá, 2017).

No depoimento acima, Seu Santo conta sobre a chegada do comerciante armazenista,


período que coincide com o início do impedimento de acesso às terras livres, com o período
de expansão da pecuária intensiva e com o surgimento das dificuldades e da pobreza para os
pequenos. Sobre este mesmo comerciante que se tornou fazendeiro, contou Seu Carlito.

É como aquela parte que aquele dia nós conversamos. Que as pessoas as
vezes naquele tempo, tinha muita gente que tinha terra, que dizer, tinha dez
alqueires de terra. Aqueles dez alqueires de terra, acontecia que ia tomando
terra dos outros, formava em cem, mas desde que era dez alqueires, né? No
final tinha que ficar dez alqueires e não era, era cem. Porque muita gente
de primeiro tinha terra também, como nós vimos falar. Vimos falar que,
como diz, é coisa que os outros fala e tal, e a gente fala assim no alto. Que
A.I. cercou muita terra que não era dele. Esse terreno quando ele vendeu,
quando A.I. vendeu esse terreno para essa firma, diz que era mil e duzentos
alqueires parece. Todinha, de lá da Grama (localidade) para esse Mundo
(localidade), Sangradô Grande, perto do Croatá. Que A.I. tinha essa terra
que era mil e duzentos alqueires de terra. Vimos falar. Porque daquele ali,
perto que tinha ali, aqueles vizinhos. Quer dizer que aquilo lá ia
acumulando ali, aquela besteira, e ia ficando com essas terras. Ia ficando
(Seu Carlito, Várzea da Cruz, 2017).

Luz de Oliveira, Dayrell e Monteiro (2013, p. 48), ao discutirem a tomada das terras
dos quilombolas da Ilha da Ingazeira por fazendeiros locais, afirmam que “essas
transformações só foram possíveis com a efetiva participação do Estado na criação de
infraestrutura de apoio à expansão econômica, sobretudo com a participação da SUDENE e
116
Banco do Nordeste do Brasil – BNB”. Segundo Araújo (2009), o norte de Minas foi
vinculado à SUDENE como parte do polígono das secas em meados dos anos 1960,
causando uma transformação radical no modo de vida da população rural local. Nesse
momento, a lógica mercantilista imperou sobre as terras da beira do rio. Através dos recursos
de fomento da superintendência, as fazendas ganharam incentivos ficais ou financeiros e
foram transformadas em empresas rurais.
Assim, com o apoio de políticos e outros atores locais, o fazendeiro passou a
pressionar os moradores que viviam espalhados pela localidade para saírem de suas terras,
alegando a posse das mesmas e instaurando a fazenda Itapiraçaba. Muitos que não foram
expulsos naquele período foram obrigados a trabalhar no regime de meia, em que o
fazendeiro disponibilizava um pedaço de terra para os agregados plantarem. Ser armazenista
favorecia o fazendeiro a tomar de conta das terras. Como conta Seu Santo, ele chegava e
dizia: “olha, eu tenho um serviço na semana, você vem trabalhar para mim”. Quando
recebiam o pagamento “entrava naquele armazém”, mas na hora do acerto “estava devendo.
Quando ia acertar, não dava para pagar. Aí estava o laço feito. E o que a gente tinha, eles
tomavam, pegavam em troca”.
Durante o período que realizou sua pesquisa no Vale do São Francisco, entre 1976 e
1987, Neves (1991) identifica que a categorização dos camponeses era de pequenos
proprietários, posseiros, arrendatários, agregados, camaradas e meeiros. Da mesma forma,
o autor afirma que “não era muito usual o registro da posse da terra pelo camponês. Ele
simplesmente ocupava terras devolutas e ali permanecia, podendo ser expulso pelo
fazendeiro que estivesse próximo à sua gleba. Cabe esclarecer que, até os anos 50, não era
conhecido na região o termo posseiro. Mas esta fração do campesinato existia, embora não
fosse significativa em termos numéricos. Havia, por outro lado, a ocupação consentida pelo
proprietário”, neste caso, vivendo como agregados. Dos agregados, os fazendeiros exigiam
“um terço da colheita” ou, em outros casos, “o trabalhador podia prestar serviços ao
proprietário durante alguns dias da semana, recebendo em troca a ‘feira’ que consiste numa
remuneração semanal destinada a suprir suas necessidades de consumo mais imediatas: o
café, o querosene, etc.” (NEVES, 1991, p. 124). Nas comunidades da beira do rio, o que
pude ouvir largamente foi que os agregados plantavam o capim para os fazendeiros. E esse
regime é caracterizado pelos quilombolas ribeirinhos como um modelo de trabalho escravo.
A exploração dos quilombolas pelos fazendeiros, através do modelo imposto de
plantar capim para o gado, fez com que muitos buscassem outros lugares para trabalharem,

117
pois perceberam a impossibilidade de continuarem naquele regime. Alguns, por não terem
outra alternativa, acabaram sendo agenciados pelo fazendeiro para trabalharem como
vaqueiros ou desempenharem outras atividades nas fazendas. As estratégias empregadas
pelo fazendeiro, por seu filho e, posteriormente, pelas empresas que compraram a fazenda,
a BMG e a Atrium, foram as mais diversas. Os quilombolas sofreram ameaças, viram a
destruição de suas roças pelo gado da fazenda e tiveram que lidar com várias limitações
impostas em relação ao cultivo de determinadas árvores e outros tipos de mantimentos.
Todas essas pressões sobre o povo da beira do rio resultaram na saída de muitas famílias,
que foram morar nas ilhas, em outras localidades rurais, nas cidades de Januária e Pedras de
Maria da Cruz, em outras cidades da região ou mesmo em outras regiões do país.
Os atuais moradores de Croatá são os descendentes daqueles que se deslocaram para
a Ilha do Pedro Preto, entre eles o próprio Pedro Preto, que foi morar na ilha que acabara
de se formar no rio e, por isso, hoje é conhecida pelo nome do seu primeiro morador. Entre
os outros descendentes, há também aqueles que se deslocaram para a cidade, mas
continuaram trabalhando nas vazantes da Ilha do Barreirinho e na Ilha de Zé Cravo, que
também haviam se formado há pouco. Estas famílias também continuaram acessando as
áreas de lagoa para a realização da pesca e as matas para a atividade de extrativismo. Tudo
isso com muito cuidado, pois as terras altas eram controladas e vigiadas por empregados do
fazendeiro.
Sendo o pescado um dos principais alimentos que compõem a dieta do povo
quilombola ribeirinho, Seu Santo contou ao que era preciso se submeter para garantir o
peixe:

E o peixe? Que a sobrevivência nossa, nós tínhamos o peixe aqui dentro


das lagoas, nós entravamos nas lagoas para pescar, estava dentro da lagoa
pescando e daí a pouco o vaqueiro chegava e nos caíamos no mato. Porque
eles não aceitavam pesca, não. A gente [se] escondia. Aquela coisa sabe, o
tempo do cativeiro mesmo, era dessa maneira que era o estilo da gente
sobreviver aqui (Seu Santo, Croatá, 2018).

O efeito da chegada da fazenda para a comunidade de Gameleira foi a aglomeração


de casas em locais muito próximos. Como mostrei no primeiro capítulo da tese, Seu Vicente,
vendo a situação dos agregados que eram gradualmente expulsos da fazenda, foi acolhendo
o povo nas imediações de suas terras. Posteriormente, com o “povo todo junto”, houve a
intensificação das relações a partir da organização de todos da comunidade para a construção
das casas, da igreja, da escola e do prédio da associação quilombola. Os casamentos entre as

118
famílias também contribuíram para a constituição de Gameleira como uma comunidade de
parentes.
Aqueles antigos moradores e seus descendentes que se espalharam para as ilhas, para
outras regiões como São Paulo, para as áreas de cerrado de Januária, ou para a própria
cidade, apesar de passarem grande parte de suas vidas para fora, longe de seus lugares de
origem, não perderam seus vínculos com o lugar e, na última década, passaram a se mobilizar
para retomar seus territórios. Em novembro de 2010, parte das terras de Sangradouro Grande
foi retomada pelos descendentes de Antônio da Crôa, que se valeram da condição de
abandono em que elas se encontravam.57 Posteriormente à retomada, os moradores se
inseriram no Movimento de Pescadores e Pescadoras Artesanais (MPP) e passaram a ter o
apoio e o acompanhamento do Conselho Pastoral da Pesca (CPP) em suas reivindicações.
No mesmo período, os moradores de Croatá se juntaram para retomar as vazantes
nas quais costumavam plantar. As ilhas do Barreirinho e de Zé Cravo, que de primeiro ainda
estavam se formando, no período atual se constituem em um terreno contínuo com a terra
firme. Dessa forma, os moradores vivem nessas porções entre ilhas e terra firme, pois o
braço do rio não passa mais entre elas. Como será aprofundado ao longo da tese, estas
retomadas estão relacionadas às memórias do tempo de primeiro inscritas na paisagem.
Como proposto no início do capítulo, a ideia aqui foi discutir como as mudanças em
relação ao acesso à terra, vividas pelos quilombolas, fizeram o povo deixar de viver
espalhado para virar o povo da Gameleira, o povo do Sangradô, o povo da Várzea da Cruz
e o povo de Croatá. A este respeito, para fazer uma breve digressão, se antes os moradores
viviam em locais da beira do rio identificadas por algum sangradô, vargem, lagoa, entre
outros, a divisão fez com que as famílias Almeida e Barbosa comprassem as terras onde
vivem hoje seus descendentes em Várzea da Cruz, o povo da Várzea da Cruz. Em Gameleira
a acolhida dos agregados expulsos da fazenda reuniu o povo que, através dos casamentos
entre as famílias, constituíram o povo da Gameleira. O povo do Sangradô e o povo do

57
O abandono está relacionado a um anúncio do Banco Central sobre a liquidação extrajudicial da Atrium,
última empresa proprietária da fazenda Itapiraçaba. Como levantaram Araújo et al. (2019), trata-se de uma
empresa que atua no mercado de capitais e que decretou falência em 2008, “após lesar fundos de pensão de
municípios paulistas” (ARAÚJO et al, 2019, p. 163). Assim, ainda conforme as autoras, a massa falida da
Atrium foi apropriada pelo antigo gerente, que passou a arrendá-la para a criação do gado. Dessa forma, o
abandono, como é pensado pelos moradores, não está relacionado apenas à situação jurídica e legal da fazenda,
mas à postura moral de seus donos e gestores em relação à terra e aos animais que ainda existem nela. No caso
de uma outra fazenda, cujo proprietário é sócio de redes de supermercados mineiros e foi preso durante as
investigações da operação Capitu da Polícia Federal, a forma como os animais foram deixados para morrer é
narrada com tristeza pelos quilombolas, que marcam uma oposição entre o modo como eles próprios criam o
gado e a forma com estes animais são tratados nas fazendas. Voltarei aos animais no Capítulo 6.

119
Croatá, embora tivessem se dispersado para outras regiões, retornaram as suas terras nos
anos mais recentes, reocupando os lugares onde viveram seus parentes no tempo de
primeiro.58
Estas comunidades, contudo, não se fecham em si mesmas. Ao contrário, apresentam
sua complexidade quando olhamos, por exemplo, para as relações de parentesco tecidas
entre elas. Como certa vez disse Dôra, moradora de Croatá: “aqui era um território sozinho
[único], a diferença é que na época do fazendeiro danou a colocar nome nos terrenos”.
Novamente, vemos o quanto o nome de um lugar diz sobre sua estória. Ao dar nome à sua
fazenda, o fazendeiro instaura sua história com o lugar, buscando se apropriar dele e
ameaçando a continuidade das outras estórias já existentes. Apesar da tentativa, a estórica
do lugar ainda permanece viva e inscrita na paisagem, isto é, nos corpos das plantas e dos
quilombolas ribeirinhos.
Nesse sentido, a afirmação de Dôra também me chamou a atenção porque mostra
que, apesar da chegada das fazendas e, como resultado, a diferenciação em relação aos
sistemas ou modos de cada uma das comunidades, a vida na beira do rio ainda é marcada
por fluxos constantes de pessoas e viventes, bem como por relações de parentesco que
atravessam as fronteiras de cada uma delas, como veremos na segunda parte da tese. A
circulação das pessoas pelas lagoas, vazantes e vargens através dos diversos caminhos que
conectam casas, roças, animais, plantas e povo, também são indicativos dessa conexão. Se o
rio faz seus caminhos, as pessoas e bichos também e, na medida em que o fazem, deixam
seus rastros na paisagem. A existência das plantas, ou a ausência delas, por exemplo, são
indicativas do modo de interação com os lugares e provas materiais da relação ancestral com
eles. A partir da apresentação da beira do rio realizada até o momento, podemos agora
avançar para sua compreensão a partir das relações cotidianas estabelecidas entre pessoas,
bem como entre estas e os outros viventes.

58
A experiência apresentada aqui é o correlativo oposto daquele apresentado por Alarcon (2020, p. 72-73),
quando a autora discute que, antes das retomadas, os Tupinambá da Serra do Padeiro viviam “embolados”, mas
com a recuperação das fazendas “as famílias começaram a se espalhar”. Neste caso, “embolado” e “espalhado”
são termos usados pelos próprios Tupinambá. O interessante da discussão realizada por Alarcon (2020) é que
o contexto atual deste povo indígena, apesar de ser o exato oposto da realidade vivida atualmente pelos
quilombolas ribeirinhos, aponta para o mesmo aspecto que meus interlocutores parecem querer chamar a
atenção: a relação entre viver espalhado e liberdade.

120
ENTREATO
Considerações a respeito do sistema da beira do rio

Em “Elogio do cotidiano: a confiança e a arte da vida social em uma comunidade


amazônica”, Overing (1999) chama a atenção para a moralidade presente na vida e nas
relações estabelecidas pelos Piaroa, povo indígena que habita as margens dos afluentes do
médio Orinoco, na Venezuela. Neste caso, a moralidade que interessa à autora é aquela que
constitui a vida comunitária. Ao invés de pensá-la a partir de noções como obrigação,
contrato e justiça, Overing (1999) parte de uma perspectiva na qual a moralidade é
engendrada na “comunidade”, através das relações de amor, cuidado, confiança e
cooperação, expressas na vida cotidiana dos Piaroa. Assim, é o engendramento destes
valores que constituem, para os Piaroa, “um tipo aceitável de vida humana na terra”
(OVERING, 1999, p. 84, grifos da autora). Para acompanhar o argumento de Overing
(1999), é preciso compreender que a vida Piaroa envolve uma miríade de “outros”, que
habitam os mesmos mundos deste povo indígena, de forma que é preciso lidar com eles
cotidianamente. A relação com estes “outros” envolve um certo perigo, o que só é
solucionado através da transformação destas “diferentes naturezas” em uma “mesma
natureza”, que se realiza por meio do processo da vida (em) comum. Por essa razão, a autora
afirma que, para os Piaroa, “este é o objetivo da vida comunitária: alcançar uma segura, e
não obstante fértil, ‘comunidade de similares’” (OVERING, 1999, p. 88).
Não à toa, os Piaroa falam sobre sua posição particular no mundo que, no caso, é
habitar sob o “céu dos domesticados”. Para Overing (1999), isso sugere uma
descentralização do poder, uma vez que cabe ao indivíduo, não ao grupo, a responsabilidade
por essa domesticação. O poder, que poderia ser expresso pela força coercitiva do grupo, se
converte em uma questão de confianças, ou desconfianças, pessoais. Dessa maneira, nas
palavras da autora,

a vida comunitária passa a apoiar-se fortemente na criação de


relacionamentos individuais de confiança. Como foi visto, a saúde e o bem-
estar de cada membro da comunidade dependem das habilidades dos outros
no desempenho das tarefas diárias, como, por exemplo, a provisão de
alimentos. Além disso, uma boa dose de energia social deve ser canalizada
para a criação de novos seres humanos, moralmente competentes, dotados
das capacidades pessoais indispensáveis à arte de viver em harmonia com
os demais (OVERING, 1999, p. 99).

121
A forma Piaroa de constituir “comunidade”, conforme as reflexões de Overing (1991,
1999), serviu de inspiração para outros pesquisadores (GOW, 1991; MCCALLUM, 1998,
2015; EWART, 2000; VIEGAS, 2007) que, em seu conjunto, propõem que dispensemos
uma atenção maior às tarefas mais comuns e aparentemente insignificantes da vida cotidiana.
Ao invés de pensar “as práticas e expressões da vida diária (...) como contingentes e
relativamente pouco importantes” (OVERING, 1999, p. 84), é preciso tomar os “aspectos
domésticos da vida social como efetivamente constitutivos da socialidade” (VIEGAS, 2007,
p. 38-39).
Tomando como referência tais reflexões e, ao mesmo tempo, nos aproximando de
outras análises elaboradas a partir de pesquisas em contextos rurais, seria interessante trazer
a noção de sistema, um termo nativo que já foi discutido em outros momentos e contextos
por Godoi (1998) e Carneiro (2010), por exemplo. Antes que a noção de sistema, em seu
sentido êmico, se fizesse presente nas reflexões sobre o universo rural, Ellen Woortmann
(2009) já chamava a atenção para os princípios morais da vida camponesa. Sua análise,
contudo, recai sobre o que ela chama de “triângulo Deus, Homem, Terra”. Embora tenha
trazido à cena a moralidade presente na vida camponesa, tal como fez Overing (1999) para
o contexto ameríndio, suas análises, bem como a de Klaas Woortmann (1990), centram-se
principalmente na moralidade que gira em torno das questões relativas à posse e ao uso da
terra. Pois, como argumenta Klaas Woortmann (1990), o campesinato foi, durante um longo
tempo, fortemente pensado a partir de uma perspectiva economicista. Por essa razão, os
estudos que se iniciaram em torno da década de 1990, através das pesquisas de Klaas
Woortmann (1990), Ellen Woortmann (1995), Woortmann e Woortmann (1997) e Brandão
(1999), começaram a olhar para a relação de trabalho com a terra através de sua expressão
moral. Conforme argumenta Klaas Woortmann (1990),

nessa perspectiva, não se vê a terra como objeto de trabalho, mas como


expressão de uma moralidade; não em sua exterioridade como fator de
produção, mas como algo pensado e representado no contexto de
valorações éticas. Vê-se a terra, não como natureza sobre a qual se projeta
o trabalho de um grupo doméstico, mas como patrimônio da família, sobre
a qual se faz o trabalho que constrói a família enquanto valor. Como
patrimônio, ou como dádiva de Deus, a terra não é simples coisa ou
mercadoria (WOORTMANN, 1990, p. 12).

122
Embora interessante, o demasiado foco sobre a relação com a terra e com Deus me
parece insuficiente para a compreensão da miríade de relações moralmente estabelecidas
pelos camponeses, ou, as relações moralmente estabelecidas entre o “povo da roça” com os
outros viventes. Neste caso, a noção de sistema me parece mais fértil para enveredar por esta
miríade de relações. Para os quilombolas da beira do rio, por exemplo, sistema pode se
referir a diversos modos de interação, conhecimentos e práticas, como o sistema de trabalhar
(para se referir tanto a roça quanto à organização política), o sistema de chamar as pessoas
(para se referir aos nomes de famílias, aos outros “de fora” ou simplesmente àqueles que são
considerados diferentes em algum aspecto), o sistema de criação, o sistema da vazante, entre
outros. O sistema também pode ser um modo de ser e de fazer, que também é moralmente
compartilhado entre as pessoas. O sistema também pode aparecer sob diversos outros nomes,
tal como modos, regimes, estilos e mentalidades. De qualquer forma, um sistema sempre
envolve relações que não se circunscrevem apenas ao povo (humano) “da roça”, mas incluem
também os outros viventes. Povo e roça, inclusive, são duas categorias interessantes para se
pensar a ideia de sistema.
Roça, aqui, possui um sentido similar aos que observou Benites (2007), uma vez que
pode se referir tanto a um “lugar (área rural), atividade laboral (agricultura e criação de
animais) e condição (ser da roça é ter origem social e hábitos relacionados ao mundo rural)”
(BENITES, 2007, p. 58, grifos do autor). O povo também possui uma relação estreita com o
sistema, uma vez que, para a conformação de um povo, é preciso o compartilhamento de
algum tipo de sistema. Isso aparece em Godoi (1998), quando a autora fala sobre a existência
de um “sistema do lugar” ao discutir a vida dos camponeses no sertão do Piauí, sendo esta
uma expressão utilizada por seus interlocutores para explicar a incorporação de “gente de
fora” ao povo do lugar. Sobre isso, um dos camponeses disse à Godoi (1998) que a “gente
de fora” ficou “porque pegaram o sistema do lugar” (GODOI, 1998, p. 97, grifos da autora).
Segundo a autora, a expressão indica quem e em quais situações pessoas “de fora” podem
ser incorporadas no lugar de vida dos camponeses piauienses. Explorando mais
profundamente tais termos, tanto povo quanto sistema, Carneiro (2010) pergunta ao “povo
dos buracos” o que é um sistema, ao que respondem ser o modo de comer e o modo de
conversar, sendo estas ações, para os buraqueiros, aquelas capazes de gerar intimidade.
O que tentei demonstrar, através desta breve discussão apresentada acima, é que os
“outros”, ou a “gente de fora”, assim como os “do lugar” ou o “povo”, não são estabelecidos
dentro de uma fronteira rígida, pois são os sistemas, os modos, os regimes, os estilos, as

123
mentalidades e as moralidades que os conecta, podendo também vir a separá-los. Como
afirma Carneiro (2010), apoiada em Deleuze e Guattari (1968), o povo é uma multiplicidade.
Multiplicidade que, como narrei brevemente na introdução da tese, não envolve apenas
pessoas, mas também outros viventes. Nas suas práticas cotidianas, tal como os plantios e a
criação, os outros seres não humanos também estão presentes e têm uma importante atuação
na rotina, nas decisões, nos afetos e nos conhecimentos dos quilombolas ribeirinhos, fazendo
também parte dos sistemas quilombolas e compartilhando das acolhidas, das ajudas, dos
sofrimentos, do choro, das alegrias e do riso, tão importantes para a constituição da vida na
beira do rio.
Ao elaborar suas reflexões sobre o povo dos buracos, Carneiro (2010) se aproxima
das críticas de Strathern (2006) ao conceito de sociedade. Porém, como afirma a autora, o
conceito lhe serve apenas como “ponto de partida para a imaginação de outros possíveis
procedimentos conceituais a respeito das formas de coletividade” (CARNEIRO, 2010, p.
28). Conquanto a ideia de socialidade esteja presente na análise de Carneiro (2010), assim
como sua atenção aos diversos modos com que seus companheiros de prosa produzem
relações em Vão dos Buracos (Chapada Gaúcha) ou para além dele, gostaria de chamar a
atenção para algo mais a respeito das teorias sobre socialidade, a partir das críticas ao
conceito de sociedade.
Strathern (2014b) já havia assinalado que o problema deste termo “são os outros
conceitos que ele produz” (STRATHERN, 2014b, p. 235), como o seu oposto, “indivíduo”.
As críticas realizadas ao conceito de sociedade (WAGNER, 2011; STRATHERN, 2006,
2014b) contribuíram para redirecionar o olhar da antropologia para a importância das
relações, que reaparecem não mais como secundárias, mas como primárias e intrínsecas à
compreensão das formas de existência humana. Tais críticas resultaram na criação e
convencionalização do conceito de socialidade, que captura, como explica McCallum (1998,
s/p), a visão própria das pessoas “sobre o sentido de suas vidas e a dinâmica de suas atuações
no mundo”. Com estas críticas, a antropologia social passou de uma ciência da força
integrativa dos grupos, uma ciência da “grupidade” (WAGNER, 2011), para uma ciência
preocupada em compreender como as pessoas criam e mantêm suas relações. Já que as
relações são o foco, outros seres ou entes passaram a ser vistos como partes importantes na
construção das formas de diferentes coletividades estarem no mundo. Neste caso, fez-se
necessário que os outros seres não humanos fossem considerados como partes importantes
destas relações e das construções das formas de estar no mundo.

124
Em uma reflexão sobre os desafios das ontologias não dualistas, Vander Velden
(2020b, p. 209) observou que, desde que Lévi-Strauss (2012) “declarou que os animais antes
de serem bons para comer são bons para pensar, a relação entre natureza e cultura instalou-
se definitivamente no coração da disciplina antropológica”. Segundo Vander Velden (2020b,
p. 210), com esta afirmação, e com suas reflexões sobre o parentesco, o antropólogo francês
deu o primeiro passo para o descentramento do par natureza/cultura, inaugurando “a
possibilidade de que a relação pudesse ser tomada nas suas singularidades, a partir das
evidências encontradas no trabalho etnográfico com diferentes sociedades”. Ainda que suas
importantes reflexões tenham-no abalado, não liquidaram totalmente, contudo, o “paradigma
dualista” (VANDER VELDEN, 2020b). O que veio a acontecer posteriormente, de modo
mais detalhado, após as discussões reunidas na coletânea organizada por Descola e Pálsson
(1996), que radicalizaram a proposta de dissolução destes dois domínios. Nesta coletânea,
os autores percebem que essa oposição de natureza/cultura se reproduz em uma série de
oposições binárias que caracterizam o pensamento ocidental. Assim, em crítica ao paradigma
dualista, “desenvolvimentos posteriores em diferentes direções levaram a discussão a novas
fronteiras a respeito da relação entre o natural (com seus correlatos: inato, dado, biológico,
real) e o cultural (e suas associações com: aprendido, construído, ideológico, simbólico)”
(VANDER VELDEN, 2020b, p. 211).
Uma destas abordagens foi aquela desenvolvida por Ingold (2000), em que o autor
coloca em evidência os dualismos cartesianos entre mente/corpo e corpo/mundo. Segundo
Ingold (2000), a ontologia cartesiana

toma como ponto de partida o sujeito autônomo confrontando um domínio


de objetos isoláveis e assume que as coisas são inicialmente encontradas
em sua ocorrência pura, ou facticidade bruta. O perceptor deve primeiro
dar sentido a essas entidades ocorrentes - para torná-las inteligíveis -
categorizando-as e atribuindo-lhes significados ou funções, antes que elas
possam ser disponibilizadas para uso (INGOLD, 2000, p. 168-169,
tradução minha).59

Discorrendo sobre as críticas à filosofia cartesiana, Ingold (2000) se aproxima das


reflexões de James Gibson e Maurice Merleau-Ponty para defender que os sujeitos, antes de
serem autônomos, estão imersos no mundo. Com isso, sugere que não é possível nem a

59
“(…) takes as its starting point the self-contained subject confronting a domain of isolable objects, assumes
that things are initially encountered in their pure occurrentness, or brute facticity. The perceiver has first to
make sense of these occurrent entities – to render them intelligible – by categorising them, and assigning to
them meanings or functions, before they can be made available for use” (INGOLD, 2000, p. 168-169).

125
existência de uma mente anterior à experiência corporal, nem de um corpo pré-existente à
sua imersão no mundo. Tomando a sério a proposta de Ingold (2000), compreendemos que
mente, corpo e mundo se constituem mutuamente. Por essa razão, busquei mostrar, com as
discussões contidas na primeira parte da tese, que o mundo da beira do rio, assim como as
pessoas que ali vivem, se produzem a partir de seus engajamentos mútuos. Se existe uma
paisagem de beira de rio tal como busquei descrever, é porque os quilombolas ribeirinhos
caminham sobre ela, exercem uma série de tarefas com ela e a percebem cotidianamente. E
se os quilombolas ribeirinhos existem enquanto tais, é também devido a estas práticas
cotidianas estoricamente experienciadas.
Ainda sobre esta “virada ontológica” na antropologia, Vander Velden (2020b, p. 211)
também observou que Latour (1994) teve um importante papel nas críticas sobre a distinção
entre natureza e cultura, tendo influenciado um conjunto de reflexões que “passaram a
questionar a própria objetividade da dicotomia nas sociedades ocidentais modernas e
contemporâneas”. Influenciada pelo pensamento latouriano, Haraway (1995), por exemplo,
produz sua crítica e se alia a filosofia da ciência feminista em busca de um projeto de ciência
que ofereça uma explicação mais adequada sobre o mundo, que seja reflexiva sobre as nossas
práticas de dominação e insista na multiplicidade radical dos conhecimentos locais, isto é,
dos saberes localizados ou situados. Nessa busca, a autora avança para o estudo das relações
entre humanos e não humanos, na medida em que busca produzir uma escrita-ciborgue.
O conjunto de reflexões que se seguiram a estes debates iniciais, conforme Vander
Velden (2020b, p. 214), “abriram as portas para uma proliferação intensa de ‘hibridos’
latourianos na antropologia” e dissolveram

as definições usuais e canonizadas dos seres que povoam o planeta: o que


é um humano, um animal, uma planta ou um objeto, e mesmo um “ser”,
um “ente” ou uma “criatura”. Todas essas definições aparentemente
estáveis, pedras angulares da metafísica ocidental, já não são mais dados,
objetos fixos e imutáveis, mas devem ser buscadas por meio do escrutínio
antropológico nos variados contextos socioculturais e naturais (VANDER
VELDEN, 2020b, p. 214).

Na tentativa de pensar os animais não humanos em contextos rurais e indígenas, por


exemplo, Pissolato, Pereira e Vander Velden (2016) assinalaram, fazendo referência a Lévi-
Strauss (2012) e Haraway (2008), que além de serem “bons para comer” e “bons para
pensar”, estes outros seres não-humanos também são “bons para se relacionar”. Mais
especificamente, em uma discussão sobre o “atual estágio da reflexão antropológica sobre

126
as relações entre (animais) humanos e não humanos”, Vander Velden (2015, p. 8) identifica
duas perspectivas dominantes em relação ao tema, sendo a primeira aquela que aborda os
animais como signos, símbolos ou objetos, e a segunda, aquela que toma os animais como
“sujeitos, seres co-constitutivos, em suas relações, das coletividades humanas e co-partícipes
da vida social onde quer que ela se manifeste” (VANDER VELDEN, 2015, p. 8). Vander
Velden (2015, p. 9) ainda sugere que, nas nossas pesquisas, “não é necessário escolher, nas
análises antropológicas, entre tomar o animal como signo ou símbolo e como ator: eles
sempre são as duas coisas ao mesmo tempo”.
Assim, se na primeira parte da tese meu esforço foi no sentido de incorporar as
críticas ao pensamento cartesiano que, conforme as formulações de Ingold (2000),
estabelecem fronteiras entre mente, corpo e mundo, na segunda parte procuro, além de
descrever mais detidamente a relações entre pessoas, incorporar descrições sobre as relações
estabelecidas entre pessoas e os outros viventes da beira do rio. Viventes que, como veremos,
também são atores importantes para a constituição da paisagem da beira do rio, seja através
de suas ações e movimentos cotidianos, seja por meio de sua presença estórica nos lugares.
No Brasil, embora a etnologia indígena esteja repleta de reflexões sobre as relações
entre seres humanos e animais, ou, a respeito das relações multiespécies, a antropologia que
trata dos mundos rurais ainda carece de reflexões mais profundas sobre o tema. Isso foi o
que perceberam Pissolato, Pereira e Vander Velden (2016) ao organizarem o dossiê “Nas
roças e nas aldeias: animais em contextos rurais e indígenas”. Na apresentação da coletânea
os autores identificaram que, na literatura clássica sobre o rural, embora os “bichos” de
criação estivessem presentes, “as abordagens, na maior parte dos casos, enfatizavam o valor
prático dos bichos ou acentuavam seus papéis simbólicos na vida social” (PISSOLATO,
PEREIRA E VANDER VELDEN, 2016, s/p). Ainda, segundo os autores, o olhar lançado
para “as formas efetivas e afetivas de interação entre gentes e animais” (PISSOLATO,
PEREIRA E VANDER VELDEN, 2016, s/p) – e eu acrescentaria também as plantas, assim
como muitos outros organismos e agentes – podem contribuir para repensar as abordagens
clássicas dos estudos rurais, sejam eles relativos à camponeses, quilombolas ou a outros
povos e comunidades tradicionais. Ao dizer isso, é importante ressaltar que, ainda que nos
estudos rurais os não humanos, ainda que timidamente, já se façam presentes (aparecendo,
por exemplo nas discussões de PEREIRA, 2007, 2017; ANDRIOLLI, 2011, 2017;
ANDRIOLLI e PEREIRA, 2017; TEIXEIRA, 2020), nas pesquisas junto a populações

127
tradicionais e quilombolas, como observou Fanaro (2016), eles ainda carecem de receber
uma maior atenção.
Independente do contexto, seja ele indígena, rural ou mesmo urbano, a mirada para
estes outros não humanos, com quem os humanos estão constantemente a se relacionar, se
faz urgente, pois, como destacaram Van Dooren, Kirskey e Münster (2016)

histórias apenas humanas não servirão a ninguém em uma época modelada


pelo agravamento e fortalecimento mútuo de processos de destruição
biosocial – da extinção em massa às mudanças climáticas, da globalização
ao terrorismo. Há muitos nomes para a nossa atual condição: Antropoceno,
Capitaloceno, Plantationoceno, Chthuluceno, Cena-de-supremaciabranca,
a lista continua –, mas seja lá como for chamada, o que parece exigir são
práticas minuciosas de atentividade para as formas complexas que nós,
todos nós, nos tornamos numa relação consequente com os outros (VAN
DOOREN, KIRSKEY E MÜNSTER, 2016, p. 2).

Assim, no esforço de cultivar a prática minuciosa de atentividade para as formas


complexas com que os quilombolas ribeirinhos “se tornam com” ou “devêm com”
(becoming with) os outros viventes – afinal, como eles costumam dizer, alguns foram
“nascidos e criados” no lugar junto com as plantas e os bichos –, a atenção, daqui em diante,
estará voltada para as experiências mais corriqueiras dos meus interlocutores. Com isso,
espera-se compreender como os sistemas e modos do povo da beira do rio são vivenciados
e expressos por meio de suas relações com os lugares em que vivem e com os diversos seres
com quem convivem.

128
PARTE II
CONVIVÊNCIA ENTRE VIVENTES

129
Capítulo 4
CASA, DIREITO E PARENTESCO

4.1. Caminhos por entre casas e “quintais”

“O caminho aqui acabou”, disse Ramiro, que completou a frase reclamando: “Não
sei onde nós vamos sair aqui agora, o caminho acabou. Eu falei com Lídia que o caminho
aqui não podia acabar”. Era cedo da manhã em Sangradouro Grande quando eu, Ramiro e
Claudia saímos a pé para marcar alguns pontos no GPS.60 Ramiro sempre viveu próximo das
mangueiras, referência que os moradores de Sangradouro Grande fazem ao conjunto de pés
de manga que existem na comunidade e onde se situavam as casas de seus parentes antigos.
Desde pequeno Ramiro anda pela beira do rio e conhece “cada pedaço do lugar”. Neste dia,
partimos da casa de Dona Olívia através do caminho dos antigos. Para isso, passamos por
baixo das cercas de arame farpado instaladas pelos atuais moradores da comunidade.
Sangradouro Grande também é cortada por uma antiga estrada de chão, porém, para aqueles
que sempre viveram ali, visitar as casas dos parentes implica em cortar caminho passando
pelas trilhas que atravessam os terrenos no sentido paralelo ao rio. Atualmente, para evitar
que o gado invada as roças e vazantes, os moradores passaram a instalar cercas em seus
terrenos, fazendo com que os caminhos e trilhas fossem interrompidos. A solução para este
problema, sugerida por Ramiro e pela até então presidenta da associação quilombola, Lídia,
era de que fossem instalados passadores ao longo das cercas, algo que não foi seguido pela
maior parte do grupo.61 Assim, os caminhos foram interrompidos pelo arame das cercas,
sendo então, naquele momento, o alvo das reclamações de Ramiro.

60
Quando da minha participação no Projeto DS São Francisco, mencionado na introdução da tese, em 2016
viajei para Sangradouro Grande acompanhada de outra antropóloga, Claudia Luz de Oliveira, com o intuito de
marcar no GPS os pontos referentes aos “marcos de ocupação tradicional”, que serviriam de base para a
elaboração dos mapas do quilombo, necessários para compor o RTID do território da comunidade. “Marcos de
ocupação tradicional” foi a expressão usada no texto do Relatório de Pesquisa do projeto mencionado e refere-
se as exigências da Instrução Normativa (IN) nº 57/2009 do INCRA, órgão responsável pela operacionalização
dos procedimentos de regularização fundiária dos territórios quilombolas. Os pontos identificados nesta
caminhada foram as casas dos antigos moradores, os cemitérios, as Casas de Farinha, as lagoas, os
sangradouros, os limites do território, e tantos outros quantos fossem apontados pelos moradores e guiados por
Ramiro.
61
Passadores são um tipo de abertura nas cercas em formato curvo e bastante estreito, mas cujo espaço aberto
permite a passagem de pessoas e impede a circulação de bois e bezerros.

130
Se na primeira parte desta tese discutimos os movimentos do e no rio, bem como seus
efeitos na paisagem, a proposta, nesta segunda parte do texto, é nos aproximarmos mais da
vida cotidiana na beira do rio, atentando para as convivências entre as pessoas e os outros
viventes. Neste capítulo, no entanto, a ideia é olhar para as relações entre pessoas, parentes
e famílias, que se conectam através de diversos caminhos, compartilhando modos, sistemas
e moralidades entre si.
Na beira do rio, abrir carreiro é abrir caminhos para conectar lugares. Nesse sentido,
os caminhos, trilhas, carreiros e estradas de chão nos servem como metáforas, assim como
os sangradô, para explicar o “sistema circulatório” por meio dos quais o povo, os pés e os
bichos se movimentam e se conectam.
Nesta seção, através dos caminhos percorridos ao longo da pesquisa de campo, busco
descrever as comunidades da beira do rio por meio dos sistemas de casa, moradia e acolhida.
Ao utilizar os caminhos como metáfora para iniciar uma discussão sobre casa, tenho em
mente as discussões realizadas por Comerford, Carneiro e Dainese (2015) na introdução do
livro “Giros etnográficos em Minas Gerais: casa, comida, prosa, festa, política, briga e o
diabo”, e pelo conjunto de capítulos que o compõe. Como argumentam os autores, a noção
de casa em diversos contextos rurais de Minas Gerais está fortemente conectada com os
“giros”, ou trânsitos, das pessoas entre as casas. Isto porque a casa também se faz “no chegar
e no receber” e, nestes casos, “a prosa e a comida são atividades da casa por excelência”
(COMERFORD, CARNEIRO e DAINESE, 2015, p. 16-17).62 Seja estando sozinha, na
companhia de outros pesquisadores ou na companhia dos quilombolas ribeirinhos, atravessei
muitas trilhas, caminhos e estradas de chão que conectam uma comunidade a outra. Outras
vezes, estando “parada”, também pude observar o movimento dos moradores por entre as
casas e comunidades, chegando, saindo ou parando para uma breve conversa, para deixar ou
buscar alguma muda de planta ou semente.
Desde o início da minha experiência de campo na beira do rio pude atravessar
diversas vezes a estrada de chão que dá acesso às áreas de moradia e roça daqueles que
vivem em Sangradouro Grande. Tal como fazem os quilombolas, estes trajetos eram
realizados por vezes de bicicleta ou de carona na moto ou no carro de algum conhecido,
taxista ou mototaxista. Ao longo do caminho da estrada de chão cruzamos o antigo porto,
onde parava a balsa que fazia o trajeto entre Pedras de Maria da Cruz e Januária. O porto

Tais discussões também ressoam com as proposições sobre casa elaborados por Carsten e Hugh-Jones (1995),
62

Marcelin (1996) e Carsten (2004).

131
funcionou por décadas, até que a ponte foi construída em 1996. Seguindo pela estrada de
chão passamos por um bar e, mais adiante, por uma área de extração de areia do rio feita
por terceiros. Antes de chegar no mata-burro que marca o início das áreas de moradia,
passamos pela casa dos Barba Dura, os únicos da família dos Lídia a permanecerem na
localidade depois da chegada da fazenda Itapiraçaba. Na altura da estrada onde começa a
divisão dos terrenos de cada família, a distância do rio já se torna relativamente grande e,
por essa razão, nos terrenos, cujas frentes medem aproximadamente 45 metros cada, as casas
são construídas em distâncias diferentes e não é possível ver muitas delas na medida em que
se caminha pela estrada. As moradias se localizam nas margens direita e esquerda da
estrada. As roças ficam predominantemente na margem direita. Ao retomarem a área, os
moradores optaram pela divisão do território em terrenos para cada família. Este modelo de
organização se apresenta de uma maneira completamente diferente do modelo dos seus
antepassados. Foi possível visualizar tal diferença quando caminhamos com Ramiro
localizando e marcando no GPS os pontos onde ficavam as residências antigas.63

Figura 19 - Terreno da Associação Quilombola de Sangradouro Grande


Fotografia: Izadora Acypreste, 2016.

63
Esta diferença está relacionada, como pude compreender, ao modelo de ocupação de terra característico do
movimento no qual os moradores estavam inseridos no período da retomada. A liga (Liga dos Camponeses
Pobres do Norte de Minas e Sul da Bahia – LCP) realiza suas ocupações dividindo lotes para cada família, que
é diferente do modelo de “regras de uso comum” de que falam Godói (1998) e Luz de Oliveira (2005), sobre
os modos de utilização da terra pelos vazanteiros. Mais sobre esse modelo antigo será explorado na próxima
seção.

132
Entre os terrenos, um deles foi destinado para a associação quilombola, onde os
moradores se encontram para as reuniões e festividades. As residências se dispõem pela
estrada até o Sangradô Grande, que também é identificado pela existência de um segundo
mata-burro, ao lado de uma porteira.
Em Croatá, as casas e as áreas de cultivo ficam nas imediações entre a estrada de
chão e a beira do rio. Vindo de Januária em direção à comunidade, após pouco mais de dois
quilômetros é possível ver o baixão, onde os moradores vêm realizando o cultivo de
vazantes, e as baixas, que conectam as ilhas do Barreirinho, Zé Cravo e Pedro Preto. A
primeira casa que se avista é a Casa da Misericórdia, que foi retomada em 2016 pelos
moradores e onde atualmente vivem alguns deles. As áreas que conformam o território de
Croatá, antes ocupadas pela fazenda, foram retomadas pelos seus antigos moradores e
descendentes. Em uma dessas áreas existia uma Casa do Vaqueiro, que passou a ser
utilizada pelos quilombolas após a retomada. A renomeação desta casa enquanto Casa da
Misericórdia foi uma estratégia utilizada pelos moradores para desconectar a imagem
daquele lugar enquanto um espaço da fazenda, o transformando em um lugar comunitário.
Como já vimos, um nome pode carregar em si muitas estórias e relações. Como explicou
Seu Arnaldo, o nome Misericórdia atribuído à casa tem o objetivo de identificar que ali é
“lugar de ajuntar o povo”, “uma casa de servidão” que, “tanto quanto cobra” o engajamento
de todos da comunidade em relação às causas comuns, “tem abastança”, uma vez que a
“comida que cai lá dentro” todo mundo come. A Casa da Misericórdia é também onde os
moradores costumam se reunir para trabalharem em mutirão, algo que também pode
acontecer na Casa de Farinha.
Mais adiante, após a Casa da Misericórdia, é possível notar uma concentração maior
de casas com seus “quintais”, criações e canteiros, onde vivem as demais 36 famílias de
Croatá. Entre elas está a Casa da Benção, onde reside a família de Enedina. Como já foi
apresentado a respeito das práticas de acolhida, o nome benção está relacionado à postura
de acolhimento da própria comunidade aos que ali chegam para somar forças. Próximo da
Casa da Benção se encontra a Casa de Farinha, onde acontecem as reuniões da associação
quilombola, seja no espaço coberto da estrutura, seja nas sombras das grandes árvores em
suas imediações. Seguindo a estrada chegamos em outro terreno destinado à associação,
onde existe um galpão e uma cruz, lugar em que os moradores pretendem construir uma
igreja em homenagem a São Benedito. A estrada toma, então, a direção da cabeceira da

133
ponte, que conecta os municípios de Januária e Pedras de Maria da Cruz. Antes da ponte,
existe uma área ocupada por um pequeno coletivo que não se autoidentifica como
quilombola e é designado pelos moradores de Croatá como os criadô (ACYPRESTE et al.,
2018).64

Figura 20 - Anúncios pregados em árvore na comunidade de Croatá


Fotografia: Elisa Araújo, 2016.

Ao longo da estrada também podemos observar, pregados em placas nas árvores e


cercas, diversos anúncios com programações de eventos e decisões tomadas pela Associação
Quilombola destinados à comunidade. Na Casa de Farinha e no galpão também estão
pregados alguns cartazes e uma cópia do Certificado de Autoidentificação emitido pela
Fundação Cultural Palmares (FCP).
Diferente das outras localidades visitadas, Gameleira é formada por uma
aglomeração mais densa de casas, que se concentram nas duas margens da estrada que
atravessa a comunidade, estrada que também se expande para as ruas laterais à esquerda e à
direita da rua principal. Próximos às casas também existe um campo de futebol, pelo menos
três botecos e vendas em funcionamento, a escola da comunidade, a associação quilombola

64
Retomarei a discussão sobre os criadô no Capítulo 6. Por hora, é importante dizer que quando aparecer com
esta grafia, estarei me referindo à este coletivo que vive próximo da comunidade de Croatá.

134
de Gameleira e os templos das igrejas evangélicas Congregação Cristã do Brasil,
Presbiteriana e da igreja católica, dedicada à Nossa Senhora de Fátima.

Figura 21 - Dona Rosarinha alimentando suas criações


Fotografia: Elisa Araújo, 2017.

Existem cerca de noventa e cinco casas na comunidade, onde vivem mais de cem
famílias. Em muitas situações, dois ou mais núcleos familiares compartilham a mesma casa:
mãe, filhos e netos. Os moradores contam que, depois do acesso ao programa Minha Casa,
Minha Vida, a qualidade das casas “melhorou muito”, pois passaram a ter banheiros, embora
muitos ainda façam uso de fossas. Todas as casas da comunidade são de alvenaria. Diferente
de Sangradouro Grande e de Croatá, não há nenhuma casa de taipa em Gameleira.
Várzea da Cruz se caracteriza por um aglomerado de casas distribuídas nos dois lados
da estrada de chão. Além das casas, também existem a Igreja Católica à direita e a Casa do
Quilombo à esquerda, onde os moradores se encontram para as reuniões e festividades. Em
Várzea da Cruz também existe uma Casa de Farinha que, no entanto, nunca foi usada, pois,
segundo os moradores, houve uma queda na produção da mandioca desde sua construção.
Por causa da diminuição das chuvas e das mudanças do tempo, não se tem produzido mais
mandioca em grande quantidade. Assim, dizem, a comunidade não conta com uma produção
tão expressiva de farinha quanto antigamente. Desse modo, quando precisam produzir,

135
utilizam a Casa de Farinha do casal Dona Osvaldina e Seu Carlito, já apresentados
anteriormente. Fora estas construções, existem ainda um bar e outras casas de alvenaria em
diferentes estágios de acabamento. Na margem direita da estrada de chão ficam localizadas
as residências dos Almeida e, na margem esquerda, as dos Barbosa.

Figura 22 - Terreno em Várzea da Cruz


Fotografia: Izadora Acypreste, 2017.

Existem algumas diferenças marcantes entre as comunidades próximas ao pé da


serra e as comunidades próximas ao barranco do rio. Nas comunidades da beira, diferente
daquelas localizadas nas partes altas, os moradores não têm acesso à energia elétrica, de
modo que, a noite, é necessário o uso de lamparinas e lanternas para se mover pela casa ou
fora dela. Na beira do rio a água utilizada pelos moradores é advinda de cisternas, poços
artesianos ou é captada do rio através de motor a diesel. Esta água é basicamente utilizada
para o cuidado com as criações, para molhar os canteiros e as plantas dos terrenos, para a
limpeza das casas, entre outros usos domésticos. Considerando que a água do poço artesiano,
assim como aquela captada do rio, não é considerada apropriadas para o consumo, é costume
de muitos moradores trazerem água congelada da cidade em garrafas PET ou galões maiores.
Na impossibilidade de trazerem água da cidade, é feita a captação da água do rio que é, em
seguida, despejada em potes de barro, onde permanece durante a noite no sereno para esfriar.

136
No dia seguinte, esta água é despejada no filtro de barro e pode, enfim, ser consumida pelos
moradores.
Atualmente, grande parte das casas na beira do rio são de alvenaria e se constituem
por poucos cômodos, geralmente um ou dois quartos, sala e banheiro. As telhas costumam
ser de amianto, as paredes sem reboco e o piso de cimento grosso ou cimento queimado. As
cozinhas, em sua maioria, são construídas na parte exterior das casas, evitando que a fumaça
do fogão a lenha infeste o interior dos cômodos. Outras vezes o banheiro também é
construído na parte externa das casas. De maneira distinta, nas comunidades do alto as casas
costumam ser maiores, todas de alvenaria, com reboco e piso de cerâmica ou cimento
queimado, sendo os banheiros e cozinhas construídas no interior das mesmas.
Ainda que possamos encontrá-las nas comunidades da beira do rio, as casas de
enchimento, ou taipa, eram mais frequentes no passado. Como é possível ver na imagem
abaixo, as casas de enchimento são feitas com paus dispostos em sentido vertical, varas
cruzadas ou presas aos paus em sentido horizontal e preenchidas com o barro característico
dos solos das vazantes. Os telhados, antigamente cobertos com capim-sapé, hoje recebem
telha de amianto ou de alvenaria. No interior das mesmas, o chão é normalmente de terra
batida ou piso de cimento grosso e, no lugar das portas de divisão dos cômodos, os moradores
costumam utilizar tecidos.
No passado, esta estrutura costumava ser banhada pelo rio durante as enchentes, que
levavam o barro das paredes e o capim do teto, mas, muitas vezes, deixava intacta a estrutura
de paus e varas. A enchente corria com o povo e os bichos, mas, depois que o rio vazava, as
famílias voltavam para a beira do rio. Caso o rio não levasse as madeiras que sustentavam a
casa de enchimento, no mesmo local era reerguida uma nova casa. Contudo, como contou
Ramiro, no retorno, as famílias costumavam escolher um novo local de moradia. As
mudanças na paisagem ocasionadas pelas enchentes é que determinavam onde seriam os
melhores lugares para erguer a nova casa. Em Sangradouro Grande, por exemplo, Ramiro
mostrou diferentes locais onde seus parentes já haviam morado, explicando que, embora
houvesse uma casa ali no passado, várias famílias já haviam morado nela. Ao me apresentar
estes locais, as árvores, como os pés de manga, os pés de saputá, os pés de tamarindo, os
pés de mutamba, entre outras, eram os pontos de referência para a localização destas
moradias antigas. Ao ver determinado pé de árvore, meu interlocutor lembrava que aquele
lugar era a casa de algum parente, e desse modo, também lembrava de todas as famílias que
já moraram ali.

137
Figura 23 - Casa de enchimento
Fotografia: Izadora Acypreste, 2018.

A falta de enchentes como a de 79 tem encorajado os moradores a construírem suas


casas de alvenaria.65 Como de costume, os banheiros e cozinhas são construídos na parte
exterior das casas; outros, contudo, continuam erigindo suas casas de enchimento com telhas
de alvenaria ou amianto. Em alguns casos, para garantirem um conforto maior, recobrem a
estrutura das paredes, de paus e barro, com reboco de cimento. O domínio da técnica de
construção das casas de enchimento permite que novos cômodos sejam rapidamente
construídos.
Independentemente do tipo de construção, as casas costumam ser bem zeladas. Nas
moradias de duas das minhas anfitriãs, Dona Olívia e Enedina, em Sangradouro Grande e
Croatá respectivamente, a cada nova incursão a campo podia-se observar mudanças nas
construções. Um cômodo a mais ou novas paredes e portas onde antes não havia. Os
moradores estão sempre buscando deixar suas casas mais aconchegantes e bonitas. É

65
As possibilidades de assegurarem o domínio do território por meio do acesso aos direitos quilombolas
também tem provocado tal encorajamento, embora ainda haja uma certa instabilidade devido aos pedidos de
reintegração de posse, ou liminares, que vez ou outra as comunidades recebem. No entanto, a inserção dos
quilombolas ribeirinhos em movimentos sociais como o MPP, bem como o apoio prestado por organizações
como a CPT, o CPP e por grupos de pesquisa como o NIISA, tem garantido o apoio jurídico para a “derrubada”
das liminares. A respeito das incertezas provocadas pela chegada das liminares nos territórios quilombolas da
região, ver Mourthé (2021).

138
possível dimensionar este zelo com a casa e com alguns itens domésticos através da imagem
abaixo, no qual vemos as panelas de Dona Rosarinha cuidadosamente areadas e organizadas
em sua estante. Em uma outra situação, na minha primeira visita à Várzea da Cruz, cheguei
na casa de Dionísia que, naquele momento, estava bastante atarefada lavando as telhas de
sua casa. Naquele dia, ela retirava telha por telha para, em seguida, esfregá-las com escova
e sabão. Isto porque sua filha se casaria em breve e, portanto, era preciso deixar tudo bem
cuidado e bonito para a festa.

Figura 24 - Panelas cuidadosamente areadas e organizadas. Cozinha em Gameleira.


Fotografia: Elisa Araújo, 2017.

139
Para além de sua estrutura física, a noção de casa na antropologia possui um sentido
mais profundo, conectando-se com outros temas clássicos como o parentesco (CARSTEN,
2004), a comensalidade (PINA-CABRAL, 1989), a prosa e a intimidade (CARNEIRO,
2010; DAINESE, 2016). Considerando tais discussões, gostaria de propor uma breve
interpretação sobre as casas na beira do rio e suas conexões com estas temáticas. A este
respeito, cabe dizer que Comerford, Carneiro e Dainese (2015) foram sagazes ao pensar a
correlação entre estes temas em contextos rurais mineiros. Em suas teorias, a prosa e as
circulações dos moradores pelas casas dos seus vizinhos, parentes e amigos, têm a
potencialidade de criar intimidade. Como afirma Dainese (2015, p. 47, grifos da autora), “a
dinâmica das chegadas pressupõe que se tornar ‘conhecido’ e até mesmo ‘parentes’ é uma
condição em aberto, criada pelo exercício da hospitalidade”. A cozinha, nestes casos, seria
o lugar de destaque dentro das casas para a produção dessa “socialidade roceira”
(COMERFORD, CARNEIRO e DAINESE, 2015). Assim como os autores retratam a
circulação por entre casas nos distintos universos rurais de Minas Gerais, também pude
observar uma constante circulação de pessoas pelas casas na beira do rio. Foram muitas as
situações em que, estando parada no “quintal” ou na varanda de alguma casa, observava as
pessoas chegarem para compartilhar alguma notícia, dar algum aviso, desenvolverem
alguma conversa ou deixarem/buscarem algum alimento, objetos, mudas de plantas ou
sementes. De todas estas prosas que acompanhei na beira do rio, fossem elas curtas ou
relativamente demoradas, a maioria delas eram realizadas em baixo das sombras dos pés de
árvore localizados nos terrenos ou nas varandas das casas.
De repente, aquele que estava parado, sentado em um toco de árvore da porta de sua
casa, perguntava ao outro que passava pelo local: “cadê o queijo moço?”. O outro,
caminhando a pé ou de bicicleta pela estrada, de longe respondia: “o queijo? Vou lá buscar
para nós”. Em seguida, o que estava parado perguntava novamente: “é lá de Beré, não é?”.
A resposta daquele que já seguia seu caminho de costas para o interlocutor era: “é!”. A
brincadeira também é bastante presente nestes contatos entre os que estão parados e os que
estão em movimento. Alguém passa bêbado e o outro grita: “opa fulano, estava quebrando
uma? Tomando uma dipirona, né?” Sem entender a brincadeira, perguntei o que era
dipirona naquele contexto, o que fez o assunto render ainda mais. Além de descobrir que
“dipirona” é um modo de dizer para se referir à cachaça, ouvi a explicação também de que
as “pingas” de hoje não são como as de antigamente. Meu interlocutor explicava:

140
Geraldo: antigamente chegava nos alambique e tinha umas cuinhas, aí a
pinga estava correndo lá quente no alambique. Primeiro vem a fraca,
depois vem a principal forte mesmo, aí o dono tá lá, pede um pouquinho,
ele vai lá, você toma uma cuinha daquela cheinha e não fica bêbado.
Izadora: Da primeira?
Geraldo: Da gostosa. Na época eu tomava pinga, chegava e enchia uma
cuinha, chegava a dar bicote, e não ficava bêbado, não. No mesmo instante
eu ia lá e pegava cana pra chupar, no tempo que meu dente era bom, não
tinha nada. Aí hoje quando o cara, eu estou aqui, “me dá uma dose de pinga
aí”, e põe aquela pinga, já estou repugnando um tanto que você nem pensa,
não vai. Repugno na hora.
(Geraldo, Gameleira, 2018)

Outras vezes a conversa era mais demorada, sobre acontecimentos que provocam a
necessidade ou possibilidade de elaboração de alguma opinião sobre o assunto. Como
quando um morador se aproximou de mim e outro quilombola para contar um caso e dar sua
opinião sobre a “mulher ruim” de uma localidade nas proximidades que, quando o marido
chegou perguntando o que tinha para comer em casa, a esposa, que estava traindo o marido,
respondeu dizendo que o que tinha para comer era “isso aqui”, uma faca no pulmão dele. Já
sabendo do caso, o quilombola que me acompanhava respondeu que foi com “faquinha de
cortar pão”, que é “igual punhal” e “arrancou as costelas do homem”. Eu, completamente
perdida no caso, perguntei se era briga de homem e mulher. Prontamente ele me respondeu:
“É. Não sei se ciúme também, diz que ela foi matada, né?”. Depois disso os dois
interlocutores seguiram especulando qual teria sido essa mulher, se fulana, sicrana ou talvez
beltrana. Mas o fato é que a mulher, que matou o marido, também foi, posteriormente,
“matada” por terceiros.
Sabendo que os moradores estavam sempre em constantes idas e vindas da casa para
a roça, da roça para a cidade, de casa em casa ou de barco pelo rio, durante o trabalho de
campo procurava sempre deixar uma visita combinada, por medo de “dar viagem perdida”.
Da mesma forma, quando combinava a visita, não podia deixar de ir por qualquer imprevisto
que acontecesse, pois sabia que meu interlocutor havia deixado seus afazeres de lado para
me receber. Certa vez me arrisquei em visitar Totinha, que é muito bom de prosa, sem antes
avisá-lo previamente. Ao chegar em sua casa, ele disse que eu tinha “dado sorte”, que seu
eu tivesse chegado um pouquinho antes não o encontraria. Totinha tinha acabado de chegar
do Bom Jantar e, por pouco, não pegou uma carona para ir até Joaquim de Pipiu. Só não foi
porque assuntou assim: “ô moço, não vou não, está muito longe, não vou não”. Como
Totinha perdeu a carona e o lugar era longe, desistiu de ir, para minha sorte, que pude

141
encontrá-lo em casa. Assim, passamos as horas que se seguiram conversando no terreno de
sua casa.
Embora as práticas de acolhida sejam algo presente na vida cotidiana dos
quilombolas ribeirinhos, o que envolve tanto a receptividade aos chegantes, quanto a
solidariedade com aqueles que precisam de ajuda, em minhas visitas a diversos moradores
pude perceber que um chegante quase nunca é convidado para o interior da casa. Apesar da
disponibilidade sempre presente para uma conversa e um café, na maioria das vezes a
sugestão do anfitrião é de que isso aconteça em baixo da sombra dos pés de árvores dos
terrenos. As visitas são recebidas geralmente no exterior das casas, onde os moradores
dispõem de bancos (que algumas vezes se constituem por troncos inteiros de árvores
dispostos no chão) e de redes armadas debaixo dos pés. Este é também o lugar onde as
pessoas da casa permanecem boa parte do dia, quando estão envolvidas nas atividades
cotidianas de mexer com as plantas e com as criações.
Quando fui visitar pela primeira vez Seu Carlito e Dona Osvaldina em Várzea da
Cruz, logo que entrei no terreno do casal pude avistar Seu Carlito sentado em uma cadeira
na varanda. Não sei ao certo se ele já se encontrava por ali ou se sentou na varanda para
observar quem chegava. O que sei é que, depois de cumprimentá-lo, de dentro da casa de
paredes brancas e janelas azuis saiu Dona Osvaldina com um sorriso no rosto. Depois de
desejar boa tarde, ela reclamou que a sombra da varanda estava quente e sugeriu que nos
sentássemos em baixo do pé de manga que existe no seu terreno, onde também existe um
banco comprido de madeira – e, na ocasião, havia um travesseiro sobre ele, indicando que
alguém, muito provavelmente, havia tirado um cochilo por ali. Em outra situação, em Croatá,
combinei com Seu Arnaldo e Seu Santo de conhecer a Casa da Misericórdia, bem como o
curral de Seu Santo, que fica localizado ao lado da casa. A visita, por fim, durou uma tarde
inteira e, ao longo de todo esse período, fora as ocasiões em que andamos pelo terreno e pelo
curral, passamos a maior parte do tempo conversando em baixo de um pé de goiaba
localizado logo ao lado da casa. O almoço, que reuniu outros moradores que ali se
encontravam, também foi servido em uma mesa improvisada em baixo deste pé.
Exceto nos casos em que estava hospedada na casa dos meus interlocutores, recordo
que, na maioria das situações, não era convidada para o interior das casas. Pensando sobre
isso, se, como afirma Carneiro (2017), as casas são os lugares por essência da hospitalidade,
uma vez que é principalmente nas cozinhas onde se “puxa a prosa” e onde acontecem as
misturas de comidas, pessoas e de sangue, eu poderia imaginar que, talvez, em minha

142
experiência na beira do rio, minhas visitas não fossem bem quistas pelos quilombolas
ribeirinhos, ou que talvez eu fosse considerada alguém “prosa ruim”. Por outro lado, se a
comida e a prosa, como também afirma Carneiro em outro trabalho (2015), são responsáveis
pela criação da intimidade, na beira do rio, um café, um chá, um bolo ou biscoito, bem como
as conversas, nunca faltaram. O que me leva a refletir sobre a receptividade e hospitalidade
ribeirinha fundadas nas relações tecidas dentro da casa e nas cozinhas. Tal reflexão tem como
base a noção de que a própria casa pode ser algo transitório para os quilombolas ribeirinhos.
Como descrevi anteriormente, no passado as casas na beira do rio, em sua estrutura física,
não pareciam ter tanto valor já que, vez ou outra, era necessário abandoná-las devido as
enchentes e os movimentos do rio. Como me disse Ramiro certa vez: “a turma fez uma casa
aí, uns iam saindo e deixavam para outros. Outros queria sair para outra casa, não queria
desmanchar a casa e deixavam, outros iam morando”.
Se esta compreensão é equivocada, é preciso, então, ao menos considerar a casa em
sua extensão, o que inclui o “quintal” com seus pés, locais privilegiados para receber as
visitas e para o desenrolar da prosa. Na beira do rio o “quintal” é, portanto, parte da casa.
Em Sangradouro Grande, as noites, fossem elas quentes ou frias, eram sempre
iluminadas por uma fogueira feita nas proximidades da casa, onde, junto a ela, todos se
reuniam para conversar e jantar. Enquanto os tocos de paus estalavam na fogueira, a lenha
estalava no fogão da cozinha de Dona Olívia.66 Lembrando que, como já foi mencionado, as
cozinhas são instaladas nas partes externas das casas, elas se constituem, de alguma maneira,
como uma espécie de transição entre casa e “quintal”. Ou, talvez, no caso da beira do rio,
essa disposição signifique a dissolução destes dois domínios, muitas vezes tratados como
“espaços” dicotômicos em estudos clássicos da antropologia do campesinato (tal como eles
aparecem em WOORTMANN e WOORTMANN, 1997 e HEREDIA, 1979, por exemplo).

66
Sobre a importância do fogo na configuração da noção de casa, ver, por exemplo, Pina-Cabral (1989) e
Carsten (2004). Em relação ao contexto mineiro, é possível encontrar uma reflexão sobre a relação entre casa
e fogo no trabalho de Alves (2016), realizado junto aos quilombolas de Pinheiros, no Vale do Jequitinhonha.

143
Figura 25 - Cozinha de Dona Maria em Croatá
Fotografia: Elisa Araújo, 2016.

Minha experiência etnográfica não me permite afirmar onde começam e terminam


os “quintais”, ou mesmo o que meus interlocutores entendem por “quintal”. Normalmente,
terreno é o termo mais utilizado para se referir à totalidade da área onde as pessoas
constroem suas casas, mantêm suas criações, instalam seus canteiros, plantam seus pés de
fruta e outras plantas. Ao utilizar o termo “quintal”, portanto, faço referência
especificamente a esta área do terreno exterior às casas. Como percebeu Menezes (2016),
boa parte dos estudos etnográficos não discorrem sobre este local, no entanto, no caso dos
Poruborá, povo indígena em Rondônia estudado pela autora, o “terreiro”, assim como os
terrenos dos quilombolas ribeirinhos, são “o espaço de primeiro plano na sociabilidade”
indígena, pois é onde, também, “as plantas ganham mais destaque” (MENEZES, 2016, p.
62).
Estas áreas normalmente são impecavelmente limpas, fruto do trabalho cotidiano dos
seus donos e moradores. É onde também são plantadas as árvores frutíferas, como pé de
umbu, pé de acerola, pé de caju, pé de laranja, pé de limão, pé de mamão, pé de manga, pé
de pinha, pé de seriguela, alguns paus nativos e até pé de uva. Além dos pés de fruta, muitas
vezes são cultivadas algumas plantas ornamentais e palmas. Uma parte desta área é
destinada aos canteiros de tempero, que também incluem pimentas, e aos canteiros de
remédio. Eles podem ficar juntos ou separados, mas são sempre cercados com paus, arames,
144
telas, ou podem ser suspensos. Não se limitando aos cultivos, os terrenos também possuem
uma área cercada, reservada para a criação dos porcos e galinhas. Como a criação destes
animais exige um trabalho constante, é necessário que eles fiquem próximos da casa e do
lugar de onde retiram água. O “quintal” também é o lugar onde as crianças permanecem
brincando quando não estão na escola e onde a família muitas vezes permanece para fugir
do calor do interior das casas, buscando uma sombra embaixo das árvores. Quando os
integrantes da mesma família constroem suas casas uma ao lado da outra, normalmente não
cercam os limites dos seus terrenos, de forma que a circulação entre uma casa e outra seja
livre. Como afirmou Araújo (2009, p. 85) sobre a vida nas ilhas e margens do São Francisco,
“os quintais não separam, eles põem em contato” famílias e diferentes gerações de pessoas
“num constante compartilhar de vasilhas, ferramentas e equipamentos, onde serviços são
trocados, opiniões são compartilhadas e onde são manifestos o cuidado e o carinho”.

Figura 26 - Terreno em Croatá


Fotografia: Elisa Araújo, 2016.

145
Figura 27 - Canteiro de tempero
Fotografia: Elisa Araújo, 2016.

Nas comunidades de Gameleira e Várzea da Cruz, onde os moradores não precisaram


deixar a terra depois da chegada das fazendas, os quintais apresentam uma variedade muito
maior de pés de fruta. Algo parecido foi notado por Oliveira (2006) em relação à propagação
de espécies plantadas em duas aldeias indígenas Wajãpi, no Amapá. Na aldeia mais antiga,
a pesquisadora observou grandes árvores frutíferas, enquanto na aldeia de ocupação recente,
viu apenas algumas espécies recém plantadas. Inspirada em Oliveira (2006), é possível dizer
que a paisagem “natural” da beira do rio é altamente socializada. Socialização esta que se
dá por meio da ocupação humana e das atividades de cultivo e propagação das plantas, algo
também percebido por Posey (1987) entre os Kayapó. São dos pés de umbu, laranja, goiaba,
seriguela, pinha, banana, limão, manga, mexerica, caju, acerola e tamarindo, presentes nos
quintais antigos da beira do rio, que as mudas são retiradas. Como disse Amelinha: “Ixe,
tanta gente tem muda desses pés aqui de casa”. Esta circulação de plantas e mudas também
constrói e fortalece relações entre pessoas, que são evocadas justamente pelas plantas que
nascem em outros quintais (MENEZES, 2016).
A criação e transformação do quintal também envolve, da parte de quem cuida, muita
observação e uma constante mexida. Em Sangradouro Grande, quando os moradores ainda
dependiam do abastecimento semanal de água feito pelo carro pipa, era comum haver falhas
no abastecimento. Isto tanto em função de falhas mecânicas no caminhão quanto de
146
problemas de outra ordem. Nestas situações, era com muita tristeza que os moradores
anunciavam que o carro pipa não havia aparecido para abastecer as caixas d’água que as
famílias possuíam em seus terrenos. O não comparecimento do carro pipa indicava que a
semana deveria ser marcada pela economia de água, o que implicava, entre outras coisas, em
não poder regar as mudas que haviam sido plantadas. No esforço de manterem suas plantas
vivas, nestes casos os moradores percorriam um longo trajeto até o rio para encher seus
latões de água (aqueles que servem como recipientes de tinta) para regarem suas mudas
recém plantadas. Na impossibilidade de realização dessa tarefa diariamente, observavam
com tristeza elas murcharem.
Na casa de Enedina em Croatá, ao cair da noite, ou mesmo durante o dia, compartilhei
diversos momentos junto às crianças, fossem os filhos da minha anfitriã ou os meninos que
estavam sempre circulando por ali. Em um desses momentos, as crianças davam gargalhadas
de uma situação narrada por Bibi, filho mais velho de Enedina. O caso era sobre um
acontecimento que Bibi acompanhou na casa de outra pessoa da comunidade. O adolescente
contava que um redemoinho rondava a casa desta moradora. Ao vê-lo se aproximar, ela
deixou que o vento de poeira entrasse para dentro da sua casa. Assim que passou pela porta,
a dona da casa a fechou, deixando que a poeira levantada pelo redemoinho ficasse presa no
seu interior. O que fazia o narrador do caso e as outras crianças rirem era o fato de que o
marido da dona da casa estava dentro da mesma. Além disso, sua casa de taipa não tinha
janelas, o que impediu que o vento de poeira saísse por alguma outra abertura. Não deixei
de achar graça da situação, mas o fato da casa não ter janelas foi o que me chamou mais a
atenção no caso narrado por Bibi. Na dúvida de que as crianças poderiam estar fazendo troça
desta família, passando pela casa da moradora alguns dias depois, não deixei de observá-la.
Não era troça, a casa, de fato, não tinha janelas. Embora não seja algo comum, me pareceu
muito significativo que, em uma região quente e seca como a de Januária, uma casa não
tenha janelas. Como poderiam as casas, em sua estrutura física serem, por excelência, os
lugares da socialidade ribeirinha se, a exemplo da casa mencionada por Bibi, nem janelas
elas têm?
Algo semelhante foi observado por Macedo (1952) e apresentado por Pierson
(1972b). No período em que realizaram suas pesquisas, os autores notaram que havia o que
compreendiam como uma certa despreocupação e descaso dos vaqueiros e fazendeiros
sanfranciscanos em relação ao conforto de suas residências. No interior das casas se
encontrava pouca mobília, sendo comum haver apenas uma cama, mesa e cadeiras.

147
Conforme as observações destes autores, ter ou não mobília pouco importava para os
habitantes do vale.
A forma como a casa é vivida na beira do rio, portanto, me parece se distinguir, em
certa medida, dos outros contextos rurais de Minas Gerais, especialmente daqueles que estão
distantes das barrancas do rio São Francisco. O que é possível observar é uma aproximação
maior com o que discutiu Viegas (2007) sobre a noção de casa entre os Tupinambá no Sul
da Bahia. Segundo a autora, para este povo indígena a “‘casa’ não engloba apenas o edifício
de barro, mas também o plantio de uma roça e de ‘pés de frutas’” (VIEGAS, 2007, p. 80).
Ao destacar a importância de um destes pés, o pé de jaca, a autora argumenta:

Estes pés de fruta têm um papel fundamental como elementos constitutivos


da noção de casa. Eles dizem respeito à casa enquanto abrigo e fazem uma
ligação entre habitar e consumir alimentos. De fato, é debaixo do pé de
jaca que os adultos recebem visitas; as jovens conversam em particular e
namoram a noite sem que sejam vistas; e as crianças brincam abrigadas do
calor do sol. É também aí que se amarra a mula quando se chega uma visita.
O abrigo para uma sesta não é um quarto, nem o edifício de barro, mas um
bom pé de jaca com sombra densa, que faça esmorecer a força do sol
(VIEGAS, 2007, p. 87).

Assim, na beira do rio a casa também se estende aos “quintais” e seus canteiros,
árvores frutíferas, galinheiros e chiqueiros. A cozinha, neste caso, pode ser compreendida
enquanto a conexão entre estes dois domínios ou a dissolução de suas fronteiras – casa e
“quintal”. A questão aqui não é deslocar a importância da cozinha, muito pelo contrário. A
proposta foi mostrar que a cozinha e a socialidade em contextos rurais parecem realmente
andarem juntas. E, na beira do rio, cozinha é fora da casa, no “quintal”, local da socialidade
cotidiana dos quilombolas ribeirinhos.
Se por um lado, como vimos anteriormente, a enchente do rio impulsiona a circulação
dos quilombolas e dos outros viventes, a força das águas também é responsável pela
reconfiguração da paisagem. Neves (1991, p. 33) já havia notado que “a vazante propicia a
formação da paisagem humana”; contudo, neste caso, eu diria que a paisagem não humana
também. Esta “formação” não humana, fruto das enchentes ou motivada pela falta dela, será
melhor explorada nos próximos capítulos, através da descrição das relações entre os
quilombolas e os outros viventes que compõem esta paisagem, como é o caso das plantas,
que também se movimentam. No entanto, por hora, nesta seção procurei explorar apenas as
transformações referentes a reconfiguração das moradias. Olhar para o rio e seus fluxos, aqui
e na primeira parte da tese, me permitiu enxergar a transitoriedade das casas em sua estrutura

148
física e observar outros lugares e aspectos da paisagem que, igualmente, são produtores e
produzidos pelas socialidade ribeirinha. O rio também, embora seja responsável pelo
desfazimento das casas, faz muitas outras coisas, entre elas a própria terra, seja a das ilhas
ou da terra firme. Será sobre este fazimento e seus efeitos na vida dos quilombolas que
tratará a próxima seção.

4.2. O direito às vazantes, aos lameiros e ao rio

Conforme observou Neves (1991, p. 33), “as cheias do São Francisco iniciavam-se
em outubro e prosseguiam até março”; assim, findo o período das cheias, em abril, “já era
tempo de vazante”. Como também mencionou Pierson (1972a, p. 51), para aqueles que
vivem ao longo do rio, a enchente “é ocasião mais de prazer do que de temor ou apreensão
ou perda”, isto porque tanto a “lavoura dos lameiros” quanto a reprodução dos peixes
dependem diretamente das cheias. Ainda segundo Neves (1991),

cabe esclarecer que, sendo uma região assolada pelo fenômeno das secas,
nem sempre observava-se essa periodicidade. As enchentes do São
Francisco eram sempre sinônimo de fertilização natural de suas margens e
ilhas. As águas barrentas traziam a matéria orgânica que, depositada ao
longo da ribeira, formava uma camada de humus muito propicia à nutrição
vegetal. Na vazante, o camponês ribeirinho fazia o plantio. E as colheitas
eram quase sempre abundantes (NEVES, 1991, p. 33).

O “prazer” anunciado por Pierson (1972a), bem como a “fertilização natural das
margens e ilhas”, descrito por Neves (1991), continuam presentes na vida dos quilombolas
da beira do rio. Como foi descrito na primeira parte da tese, as cheias provocam uma
constante modificação na paisagem, sendo estas mudanças fundamentais naquilo que se
refere aos aspectos produtivos da vida dos quilombolas. As águas do rio, como costumam
explicar os ribeirinhos, lavam a terra. O termo lavar, aqui, apresenta o sentido de revigorar.
A enchente revigora a terra, mas também as lagoas. Desse modo, mesmo que impelidos a se
mudaram para os altos para fugirem das inundações, os quilombolas sabem que, na medida
em que o rio for vazando, poderão retornar para as partes baixas para voltar a trabalhar nas
vazantes.

149
Assim que o rio vaza, os moradores vão caçando jeito de plantar sua “vazantinha”.
Como me explicou Seu Santo, “o trabalho da vazante é feito com a molha do rio, assim que
o rio vai baixando, a gente vai acompanhando. A terra endureceu um pouquinho, que já dá
para plantar, aí a gente começa a fazer o plantio”. Assim como as pessoas acompanham a
subida do rio, elas também costumam acompanhar o rio vazar, o que envolve observar a
terra para saber onde e quando plantar. Como disse Seu Saulo: “ah, menina, aqui tá ficando
essa vazantinha, eu vou plantar aqui”.
“De primeiro falava mais lameiro”, hoje o termo vazanteiro é mais comum para se
referir a este sistema de produção característico da beira do rio. Nas últimas décadas, aqueles
que têm suas vidas reguladas pelo trabalho nas vazantes começaram a se organizar em
associações de vazanteiros, como forma de afirmar e defender este sistema próprio de
produção e também de garantir os direitos trabalhistas daqueles que praticam tal atividade.
A Associação dos Vazanteiro de Januária foi criada em 1987. Seu Santo me contou que fez
seu cadastro nesta associação em 1988, um ano após a sua criação, mas que, apesar disso, já
trabalhava no lameiro desde criança. No período em que se associou, meu interlocutor
contou que debateu muito com o então presidente da entidade. Na opinião dele, a associação
deveria se chamar “Pé na lama”, e isto porque todos os associados trabalhavam com o “pé
na lama”, dentro da lama. Contra sua sugestão, o presidente e os outros associados insistiram
que o nome deveria ser vazanteiro, e assim ficou decidido o nome da associação. Este debate
se tratava apenas a uma questão terminológica, uma vez que “pé na lama” faz referência aos
lameiros, enquanto vazanteiro, às vazantes. Lembrando que ambas, lameiros e vazantes,
fazem referência às áreas férteis das margens do rio e onde os ribeirinhos realizam seus
cultivos.
Ao longo da pesquisa de campo pude perceber duas noções que fundamentam aquilo
que seria o sistema das vazantes e que, de alguma maneira, orientam a organização política
desse povo. A primeira delas seria a noção de direito de acesso às áreas formadas pelo rio,
sendo elas as próprias vazantes e também as ilhas. A segunda, se refere as regras de uso
destas áreas, algo próximo do que Godoi (1998) identificou como “sistema de direitos
combinados”.
Os quilombolas ribeirinhos compartilham a noção de que as ilhas e terras das
margens de rio são da União, e por isso mesmo, do povo. Conversando com eles, entendi
que as terras da União não são para negócio, mas sim para pôr roça e viver. Qualquer um
que chega pode pedir a outro que esteja vivendo ali para dar “um lugarzinho para fazer um

150
barracão” e “para plantar uma rocinha”. É na união e na solidariedade que um “ajeita aquele
lugarzinho” para o outro. Quando aquele que chegou “der de sair”, é só panhar “os
caquinhos que tiver que panhar” e ir embora. Como me disseram, é assim, ali não tem
negócio.
Como podemos perceber, existem duas noções que, embora carreguem o mesmo
nome, possuem significados diferentes. A União, que apresento aqui com U maiúsculo, é
usada pelos ribeirinhos para se referirem à estas porções de terra de domínio público que,
por se situarem nos terrenos marginais de grandes cursos de água, possuem legislação
específica sobre elas. Conscientes dessa legislação, muitas comunidades da beira do rio têm
lutado, paralelamente aos direitos territoriais quilombolas, pela conquista do Termo de
Autorização de Uso Sustentável (TAUS), um instrumento de destinação do patrimônio
público emitido pela Secretaria de Patrimônio da União (SPU) para as comunidades
tradicionais ribeirinhas.67 Esta é, portanto, uma das razões pelas quais meus interlocutores
enfatizam o termo União ao falarem sobre seus direitos de acesso às vazantes e ilhas. Porém,
como vimos, o outro sentido atribuído à união, agora com u minúsculo, também é
frequentemente acionado por meus interlocutores para falarem do sistema de direitos da
beira do rio. Assim, esta diferenciação que fiz no texto é apenas para mostrar as distintas
formas que a categoria “união” pode tomar. Na prática, ambos os sentidos se misturam e
conformam o entendimento dos quilombolas ribeirinhos sobre seus direitos que, neste caso,
estão conectados com as práticas de acolhida, amizade, ajudas, parentesco e, claro,
movimento, seja das pessoas, das águas ou da própria terra.
O direito, muito embora, como já discutimos, possa ser garantido pela compra do
trabalho realizado por alguém em um pedaço de terra, também pode ser conquistado de outra
forma. Segundo Seu Saulo, se uma pessoa tem uma casa na beira do rio, “um lugarzinho de
trabalhar sua roça”, e defronte sua roça, ou terreno, “forma uma ilha”, esta pessoa pode
começar a plantar “sua abóbora, sua melancia, sua batata, seu caxi” nesta ilha. “É o direito
da pessoa”, enfatizou meu interlocutor. Se ela continuar a plantar nos anos conseguintes,
ninguém mais pode tirar o direito dela sobre aquela parcela de terra cultivada. Uma vez que
aquela pessoa detenha a posse, outros podem chegar e perguntar: “ô moço, dá para você me

67
Em Minas Gerais a primeira comunidade a receber o TAUS foi Caraíbas, quilombo que se localiza na cidade
de Pedras de Maria da Cruz. A experiência de Caraíbas incentivou outras comunidades quilombolas da beira
do rio a fazerem suas articulações com os movimentos e algumas instituições para acessarem esta política. Para
saber mais sobre o contexto atual dos processos de caracterização e identificação das terras ocupadas pelas
populações ribeirinhas em meio as políticas da SPU, ver Anaya et al. (2020).

151
arranjar um pedacinho de terra para eu plantar umas covinhas de melancia?”. É muito
comum que aquele que detém o direito ceda alguns pedacinhos de terra. É nesse sistema,
continuou Seu Saulo, que a acolhida “vai aumentando as pessoas e vai unindo” o povo.
Além do direito conquistado pelo trabalho na terra, o povo também compartilha
algumas normas a respeito do uso da terra e do trabalho. Se aquele que detém o direito
“passar dois anos sem cuidar dessa gleba e não justificar”, outra pessoa pode utilizá-la.
Completados dois anos, aquele que ali trabalha já é considerado o dono da terra cultivada.
As vazantes, sejam das ilhas ou da terra firme, são do povo e o direito é daquele que planta
nelas. Outras normas menos gerais, mas que podem gerar conflitos entre os vazanteiros, se
referem ao sistema de cultivo nas vazantes. Os conflitos mais presentes giram em torno da
criação de gado e da utilização de tratores nestas áreas. Para a maioria dos vazanteiros, o
gado e o trator são duas coisas que não funcionam bem na vazante.68
Da mesma forma que existem regras em relação ao uso da terra, há também em
relação ao rio. No que se refere à pesca, como me explicaram, “subindo o rio, até o município
de São Francisco, cada parte do rio é direito de um grupo”. Na região existem pelos menos
cinco grupos que detém direitos no rio. O direito de um lance no rio é garantido por meio
da limpeza dessa faixa de água. A esse respeito, Peba me explicou que os pescadores
costumam organizar um grupo de dez pessoas para mergulhar no rio, arrancar os paus do
fundo da água e deixar o lance limpo. Quem ajuda na limpeza tem o direito conquistado
nesse trecho de rio. Aqueles que compartilham um lance têm “seu lugarzinho” e sua hora
certa de pescar, de “soltar a rede”. É um sistema de rodízio que precisa ser respeitado. Vale
ressaltar que essa regra não vale para todos os tipos de pesca, apenas para a pescaria com
rede funda, um tipo de rede que chega até o fundo do rio e se arrasta.
Sobre a limpeza do lance, Peba e Zete, pescadores de Sangradouro Grande, também
me contaram que, para fazê-lo, é necessário saber mergulhar e ter bastante fôlego, pois o rio
pode ser bastante fundo em alguns trechos, entre três a quatro metros. Aqueles que são
responsáveis pelo mergulho podem ficar entre quarenta e cinco segundos até um minuto
submersos. Nesse período de tempo, o mergulhador precisa ter a habilidade para amarrar
uma corda no pau ou tronco de árvore que está na profundeza do rio. Como disse Zete: “tem
hora que a gente arranca pau lá no fundo do rio do tamanho de um tronco de árvore”. Tendo
amarrado a corda no pau, o mergulhador pode voltar a superfície do rio.

68
Sobre o gado, irei desenvolver reflexões mais aprofundadas no Capítulo 6.

152
Enquanto o mergulhador faz seu trabalho, aqueles que estão na superfície são
encarregados de segurar a ponta da corda para puxar o pau. Os dois pescadores, Peba e Zete,
me contaram que, se fossem 20 pessoas para puxar o pau, por exemplo, não conseguiriam
nem o mexer do lugar. Assim, para prender a corda, usam um sarilho (um pau redondo
comprido) “que pega em 5 ou 6 barcos”. Os barcos param um ao lado do outro e a madeira
fica atravessada entre os barcos. Tendo amarrado a corda na madeira, vão enrolando o
sarilho. Como enfatizaram, “é bem difícil puxar, mas quando ele solta da areia no fundo do
rio, fica mais fácil puxar o pau”. O lance costuma ser limpo no período do mês de junho. Já
as atividades de pesca vão de junho até final de outubro ou início de novembro,
aproximadamente. Considerando o quanto é trabalhoso a limpeza do lance, atualmente eles
quase não tiram os paus grandes do fundo do rio. No caso dos paus que podem atrapalhar o
lance, mas que são muito trabalhosos para tirar, a estratégia tem sido comprar barras de ferro
que são fincadas na frente do pau. Com isso, quando soltam a rede, ela passa por cima da
barra de ferro, sem enganchar no pau.
Diferente de como acontece nas vazantes, nas ilhas e na terra firme, a prática da
acolhida nos lances é menos comum, embora possa acontecer vez ou outra. De todo modo,
o trabalho ou a labuta continuam sendo os aspectos reguladores destes direitos. Foi o que
me explicou Nêgo, outro pescador de Sangradouro Grande.

Porque assim, cada espaço, vamos supor, um lugar desse aqui nós
limpamos, um grupo de 10 pessoas, aqui é nosso. As vezes chega uma
pessoa: “ah eu vou pescar”. Nós falamos: “não moço, aqui foi nós que
limpamos”. Aí, por acaso, se a gente chegar e falar: “não, se você quiser
dar um lancinho aí, você pode dar”. Aí não pode é ficar direto ali. Agora,
se ele chegar e ajudar a limpar, tudo beleza, ele pode ficar ali também. Aí
cada um tem seu lance, se começar daqui para cima, cada um tem o seu
(Nêgo, Sangradouro Grande, 2016).

Tendo garantido seu lance, cada um sabe a regra e seu horário de pesca. Como
acontece no trabalho nas vazantes, na pescaria a união também é algo enfatizado e bastante
valorizado. Isso foi o que me contou Mariana que, segundo outros pescadores, é uma
daquelas pescadoras que “dão show nos homens, passam eles para trás”, sendo reconhecida
por homens e mulheres como pescadora “das boas”. Mariana disse que, além da união ser
necessária para a limpeza do lance, ela também é importante durante a própria pescaria, pois
“de tanto ter união, chega lá a gente está precisando de um chumbo, rasgou a rede ou a rede
da gente engancha, os outros pescadores vão ajudar”. Além disso, quando estão no lance

153
juntos, quando pegam um peixe, na beira do rio mesmo o assam ou fritam, fazem um arroz
e comem todos junto, “na união”.
Assim, através das noções de direito relacionadas ao rio ou as vazantes, percebemos
como a paisagem se conecta com outros aspectos importantes para os quilombolas
ribeirinhos, como a acolhida, a ajuda e a união. Aspectos que também estão presentes em
outros modos de relação, como o parentesco que será discutido a seguir.

4.3. Festas e políticas do parentesco: uma árvore de conexões

Sou viúvo, tenho um filho homem, arrumei uma viúva e fui me casar, mas
a minha sogra, que é muito teimosa, com o meu filho foi se matrimoniar,
desse matrimônio nasceu um garoto, desde esse dia que eu ando louco, esse
garoto é filho do meu filho, sendo filho da minha sogra, irmão da minha
mulher, ele é meu neto e eu sou cunhado dele, minha sogra, minha nora,
meu filho, o meu sogro é. Nessa confusão, já nem sei quem sou, acaba esse
garoto sendo meu avô.

O trecho acima é uma música cantada por Lídia Bomfim para explicar sobre os
casamentos estabelecidos na beira do rio, principalmente por seus familiares e conhecidos.
Pouco antes de cantar a música, cuja autoria é desconhecida, Lídia leu um texto que havia
sido escrito por ela mesma sobre os casamentos realizados entre seus familiares. Na ocasião,
ela narrava o casamento do seu irmão, Artur Lima Bomfim, de 61 anos, com Erotides Batista
Santos. Erotides é filha de Pedro, sendo ambos, respectivamente, prima e tio de Lídia e de
seu irmão Artur. Com Erotides, sua prima e esposa, Artur teve três filhos legítimos e uma de
criação. O casal se separou depois de vinte e quatro anos de casados. Artur agora vive com
Antônia, que é ex-esposa de Ramiro, outro primo de Artur, Lídia e Erotides. Para concluir
sua história, Lídia disse que na sua “família é assim, todo mundo é casado com parente”.

154
Figura 28 - Os Lídia.
Fonte: Arquivo da Comunidade de Sangradouro Grande, sem data, sem informação do autor.

Mas o que significa “ser parente” para os quilombolas ribeirinhos? É a partir desta
pergunta que pretendo desenvolver algumas reflexões a respeito das relações de parentesco
na beira do rio. Para tanto, a proposta é discutir o tema tal como ele me foi apresentado
durante a pesquisa. O parentesco aqui, portanto, se conecta com as formas de casamento e
com as construções de alianças, que se fazem, se mantêm e se atualizam, entre tantos outros
modos, através da circulação das pessoas pelos festejos religiosos, da movimentação
constante do povo, das práticas diversas de acolhida e união, da organização política e dos
filhos de criação.
A primeira destas conexões é a relação entre parentesco e as movimentações na beira
do rio, começando pelas festividades que fazem circular não apenas pessoas, comidas e
objetos, mas também moralidades, que orientam, como buscarei abordar adiante, outras
formas de criar e compreender as relações de parentesco. Uma conversa entre os moradores
de Gameleira na casa de farinha me parece bastante interessante para um primeiro olhar
sobre estas movimentações e parentescos. No momento em questão, quando eu
acompanhava a produção da farinha no local, alguém comentou que é em “Casa de Farinha
que sai piada, em boca de forno”. Outro morador então completou, dizendo que “Casa de
Farinha que era bom para arrumar namorada” e que, antigamente “saía daqui para puxar

155
roda só para namorar com as meninas”. As moças também iam “arrumar namorado na casa
de farinha”. Um terceiro ainda arrematou, dizendo que nas casas de farinha “era escuro,
mas tinha fogo”.
Embora a produção da farinha não seja considerada exatamente uma festa, ela ocorre
nos meses anteriores às festas de Fogueira de São João, que acontecem no mês de junho e
costumam reunir tanto os moradores de uma mesma comunidade quanto seus parentes e
conhecidos que moram em outras localidades da beira do rio ou em outras cidades e estados.
A fogueira é um dos momentos em que os filhos, netos e irmãos costumam voltar de São
Paulo e de outros centros urbanos mais ou menos distantes para visitarem os parentes na
roça.
A preparação para a fogueira começa já no mês de maio, com a produção da farinha
de mandioca e da tapioca, que são usadas para fazer os bolos, pães de queijo e biscoitos da
festa. Dona Olívia mesmo, ao se lembrar da sua infância, disse que suas tias, que viviam
todas em Sangradouro Grande, costumavam fazer um bolo de que ela sente saudades até
hoje. Conforme contou, era um bolo simples, que não levava tantos ingredientes como os de
hoje. No seu tempo de menina, os bolos eram assados em uma assadeira feita de lata de óleo
ou de banha, que era aberta, amassada e dobrada nas beiradas até que ficassem no formato
de uma assadeira. Nestas assadeiras também eram assados os biscoitos, feitos com canela ou
erva doce. Com água na boca, Dona Olívia disse que as crianças achavam aqueles bolos e
biscoitos “a coisa mais gostosa do mundo”.
Naquele mesmo dia, na Casa de Farinha em Gameleira, os que estavam presentes
durante a torragem comentavam sobre suas preferências alimentares. Em certo momento,
Ana, que havia plantado as mandiocas que estavam sendo transformadas em farinha e
tapioca, disse um ditado conhecido pelos moradores: “O que é pouco não se regra, acaba
logo que sossega”. O ditado se referia à ideia bastante geral do povo a respeito do
compartilhamento da comida. Mesmo que pouca, como era o caso da farinha que estava
sendo produzida naquele dia, é sempre melhor compartilhá-la. Este é um valor moral que
pude observar acontecer logo depois que a torração da farinha se completou, com Ana
distribuindo pequenos sacos de farinha para todos aqueles que colaboraram em sua
produção. Vale enfatizar que, durante o tempo em que acompanhei Ana na Casa de Farinha,
a todo momento chegava alguém que, estando ali, ajudava a torrar um pouco da farinha,
enquanto outra pessoa parava e descansava o braço.

156
Figura 29 - Torração da farinha
Fotografia: Izadora Acypreste, 2018.

Não tive a oportunidade, infelizmente, de acompanhar, durante a pesquisa, tais festas,


fossem elas as de fogueira ou as folias que acontecem anualmente nas comunidades. Pude
ouvir apenas relatos dos moradores sobre estas ocasiões. É a partir destes relatos e dos outros
assuntos que emergiram durante as conversas que tive com os quilombolas ribeirinhos que
pude notar as conexões entre as festas e as relações de parentesco. Em uma conversa com
Seu Zé Bete, por exemplo, ele disse que para a fogueira de Gameleira “vinha gente de outras
regiões, por fora, bem como gente da Gameleira, como gente do Pau D´óleo, porque era
festa, vinha gente de longe”. Além da fogueira, nas comunidades acontecem outras
festividades, como a dança de São Gonçalo e as folias de Santos Reis, de São Sebastião, de
São Benedito e do Bom Jesus, sendo todos esses, momentos de ajuntar o povo, de brincar,
dançar e de cantar.
Como discutimos em Acypreste et al. (2016), as folias e a dança de São Gonçalo são
práticas criadas e que criam as relações entre diferentes comunidades. Na região as folias
giram três vezes ao ano e cada giro dura seis dias. No início de janeiro acontece o giro da
folia de Reis. Em meados de janeiro, o giro de São Sebastião. Por volta de 20 de janeiro, o
de São Benedito, enquanto que, no início de agosto, é a vez da Folia de Bom Jesus. A dança
de São Gonçalo, por sua vez, não apresenta uma regularidade, pois ela só acontece como

157
pagamento de promessas pelos devotos, ou seja, como resultado de um compromisso
estabelecido com o mesmo santo. Assim, nestes momentos, os foliões se mobilizam através
das dançadeiras, dos marcadores e dos músicos no cumprimento da promessa, realizando
certo número de voltas prometidas ao santo para alcançar determinada graça (ACYPRESTE
et al., 2016).
Durante os giros da folia são visitadas as casas de foliões, devotos e também dos que
manifestaram interesse em receber a folia, seja porque realizaram promessa ou simplesmente
pelo desejo de ter sua casa abençoada, com o giro normalmente percorrendo várias
comunidades e se deslocando de casa em casa para realizar seu trabalho (ACYPRESTE et
al., 2016). Os giros, como explica Pereira (2015, p. 113) sobre as folias de Urucuia, “são
organizados com o intuito de coletar, em nome de cada um dos santos para os quais os
festejos são organizados e de seus principais patrocinadores, as oferendas necessárias ao
custeio de uma reza”. Na beira do rio a folia gira por diversas comunidades situadas na
margem do rio São Francisco, percorrendo também as casas dos foliões estabelecidos na
cidade de Pedras de Maria da Cruz. Assim, por meio da folia é possível tecer uma rede de
relações que vinculam diferentes comunidades, famílias e pessoas entre si e estes com os
santos dos quais são devotos. “Os giros são verdadeiras festas em (e do) movimento”
(PEREIRA, 2015, p. 113).
Em Sangradouro Grande, como me contaram seus parentes, Nhá Lídia, na tentativa
de salvar sua filha Chica da doença de chagas, fez a promessa de que sairia na folia até
quando ainda estivesse viva. Quando começou a perder a visão, como lembrou sua neta
Olívia, Nhá Lídia falou: “Ana, minha missão eu já cumpri, mas agora eu não estou
aguentando com nada, eu não enxergo, vou andar com vocês me arrastando por aí, como?”.
Assim, depois de falecer, a folia ficou sob a responsabilidade de sua filha Ana e de seu genro
Arlindo. Após a morte do casal, a folia ficou sob a responsabilidade do filho mais novo de
Nhá Lídia, Pedro Batista, e de seus sobrinhos já falecidos, Maria e Manel Barba Dura.
Conforme Pereira (2009), os festejos de folia podem ser deixados de pais para filhos e essa
transmissão mantém vivo o comprometimento familiar com os santos, que são renovados
pelas novas promessas realizadas pelos herdeiros.
Atualmente, grande parte dos quilombolas desta comunidade estão vinculados à
diferentes igrejas evangélicas, o que não significa necessariamente um rompimento com as
práticas religiosas de origem católica, como é caso do Seu Pedro, herdeiro da folia e da
promessa feita por sua mãe, Nhá Lídia. Seu Pedro hoje é evangélico, mas continua

158
acompanhando o giro da folia. Na ocasião de uma visita feita a ele, ao perguntá-lo sobre
suas andanças com a folia, ele respondeu dizendo que não participava mais. “Qual’é não
participa?” – protestou logo em seguida Ramiro, sobrinho de Pedro que acompanhava a
visita, dizendo ainda que Seu Pedro era folião guia. Seu Pedro, então, explicou que não se
ajoelha e “não faz aquelas coisas lá”, mas sempre que alguém o chama para tocar folia, ele
vai. O que nos mostra que os giros da folia vão muito além do aspecto puramente religioso.
A diversão, as brincadeiras, as danças, comidas e o encontro de gentes, famílias, memórias,
entre outras coisas que circulam nesses momentos, também caracterizam as diversas
dimensões que constituem estes eventos. Algo similar também foi notado por Abreu (2019)
ao discutir a importância atribuída a Nossa Senhora do Carmo entre os moradores, católicos
ou evangélicos, do quilombo do Carmo, localizado em São Roque, no interior paulista. Para
estes quilombolas, a santa se relaciona diretamente a sua própria história e a constituição do
território, ultrapassando o domínio do puramente religioso e assim, de certo modo, a própria
fratura que usualmente se percebe radical entre católicos e os crentes.
Outros dois interlocutores, também evangélicos hoje, me contaram sobre como eram
bonitas as folias. Enquanto Dona Osvaldina ficava em casa, cuidando da “meninada”, Seu
Carlito costumava sair com a folia tocando sanfona e cavaquinho. Desde seus quatorze anos
sai com seu compadre Joaquim “nesse mundo por aí”, passando por Balaieiro, Tejuco, no
lugar onde mora o Zé Baixinho e onde morava o Josino Pequeno. Severiano faleceu, mas a
folia passava por lá também. De lá cortavam caminho, saindo no Bom Jantar e depois
rumando para Bastião de Chiquinho. De Bastião, finalizavam o giro no Pau D’óleo: “era
aquele divertimento”, disse Seu Carlito. De noite, Dona Osvaldina acordava com o canto de
Reis. Até hoje ela brinca quando vê alguém caminhando à noite, dizendo que a pessoa está
igual Santos Reis, que viajava de noite. Como disseram, “aquilo foi indo, foi indo” até
acabar, porque o pessoal estava devagar. Dona Osvaldina também completou explicando
que o que acabou com as folias de Gameleira e Várzea da Cruz foi a “dor de junta”, pois os
mais antigos ou já morreram ou não conseguem mais acompanhar a folia.
Além das visitas dos foliões às casas dos devotos, importantes para a criação e
manutenção dos vínculos e intimidade entre as pessoas, as brincadeiras e danças também
são importantes nestes momentos festivos. Os encontros do povo, fossem aqueles
ocasionados pelas mudanças durante as cheias ou os momentos festivos, são sempre
animados. São encontros importantes para o pessoal ir animando, disse Dona Nilza, porque,
apesar do trabalho pesado na roça, é importante brincar, “inventar cantoria”, “tocar violão”

159
e batucar para não ficar triste, “para Deus tirar os males” do povo e deixar todo mundo “mais
alegre, mais tranquilo e mais leve”.
A mesma importância atribuída às brincadeiras nas relações de intimidade entre os
quilombolas foi observada por Comerford (2003) entre os camponeses da Zona da Mata de
Minas Gerais. Segundo o autor, “brincadeira é o nome geralmente dado a um tipo de
interação envolvendo duas pessoas ou um grupo mais ou menos extenso de pessoas (...),
caracterizada por provocações mútuas aparentemente agressivas, e respostas a essas
provocações, a propósito de um mote qualquer” (COMERFORD, 2003, p. 88, grifos do
autor). Como também observou o autor, para que a brincadeira se realize, há um senso de
limite e a necessidade de se saber brincar, bem como o discernimento sobre o momento em
que se deve brincar ou não. Com isso, Comerford (2003, p. 89) conclui que “a brincadeira é
uma forma de sociabilidade cotidiana, prazerosa, não-séria, supostamente igualitária (mas
na prática, não tanto), que guarda uma relação especial com a amizade”, mas também com
o companheirismo e a união, tal como procuro demostrar nesta seção.
Dentre as brincadeiras da beira do rio, Seu Zé Bete contou que tinha “uma dança que
o povo usava na roça, hoje ainda tem mas é muito sem graça, chamava o batuque”. No
batuque, explicou ele, “os caras pegavam uma caixa, como um tambor, tum tum tum, e tinha
as modas que cantavam”, enquanto isso “as mulheres pulavam no batuque”. Se não tivesse
caixa, uma lata utilizada para guardar querosene podia servir para fazer o som. Na dança, as
moças e moços, em duplas, pegam nos braços uns dos outros e rodam sapateando, “dançando
trocado”. Ao redor dos dançadores era formada uma roda; os que não queriam participar
ficavam de fora da roda acompanhando a dança. Segundo Zé Bete, “era a diversão que
tinha”. Seu Saulo também me contou que, quando tinha batuque, “vixi”, o povo “farreava
demais, farreava muito”. Mas hoje acabou, porque “a mudernagem hoje não gosta disso”,
gostam de outros gêneros de música e “se os véios forem fazer uma dança, um samba de
roda, eles [os jovens] fazem é anarquia”. Seu Saulo completa seu comentário dizendo que,
apesar da mudança, o batuque “é bonito”.
Em outro momento, Erotides se lembrou que, no seu tempo de menina, também existia
o lundum, “que era o sapateado, que sapateia, que a poeira levanta e o buraco fica no chão”.
Era preciso ter perna forte para o sapateado, contou ela; quem tinha a perna forte ficava na
dança, já os que tinham as pernas mais fracas, cantavam e tocavam e, assim, as festas
duravam até o dia amanhecer e a diversão era grande. Ela explicou ainda que as cantorias

160
funcionavam da seguinte maneira: “um cantava um pedaço e outro respondia de lá”.
Enquanto isso, todos batiam palmas e sapateavam (ACYPRESTE, 2015).
O terreno destinado à Associação Quilombola de Sangradouro Grande é lembrado
pelos moradores por ter sido o local da moradia do finado Antônio da Crôa. Os pés de manga
ali plantados pelos antigos é o que identifica o local. Embora ainda não tenha sido possível
para os moradores levantarem uma estrutura de alvenaria para servir como sede da
associação, existe no terreno um conjunto de bancos e uma mesa de madeira para a
acomodação dos mesmos durante as reuniões da comunidade. Este espaço também é
utilizado para as confraternizações. A antiga casa e o terreno do finado Antônio da Crôa são
também lembrados pelos seus descendentes pelas frequentes festas, pela recepção das folias
e pelos batuques que aconteciam na comunidade. Naquele tempo, me disse Seu Pedro, eles
“batucavam demais”. Ele continuou dizendo que, na casa de Antônio da Crôa, “era um
terreirão bonito, amanhecia o dia e estava um buraco no terreiro de tanto a gente sambar
batuque”.
Se movimentar, acolher os que chegam e partilhar o que se tem, com muita festa e
animação são, na beira do rio, ações que geram parentesco, intimidade, união e aliança. É
como diz Dona Nilza ao falar sobre a família dos Lídia de Sangradouro Grande. Segundo
ela, esse povo, embora não sejam seus parentes consanguíneos, “são que nem” sua família.
Ela afirmou ainda que foi “criada com esse povo”. É interessante a forma como Dona Nilza
expressa a ideia de “criação” aqui, pois ela mesma me contou ter nascido em Bom Jesus da
Lapa (Bahia) e, depois que seu pai morreu e sua mãe “ficou doida”, foi criada por uma tia
nos Gerais. Apenas depois de ter se casado é que ela chegou na beira do rio. Estando ali, ela
conta, sua relação com os Lídia “era boa demais”.

De primeiro, esse povo dos Lídia era um povo todo unido. Você chegava
na casa deles, eles recebiam você com carinho e com amor, até hoje. Era
dona Ana que morava ali em baixo, a gente dormia, ela saia com folia,
tinha a reza, eu rezava, dava janta, todo mundo jantava e quando era de
noite, passava a mão em um bumbo e em uma viola e a gente ia pulando
batuque até que o dia amanhecia. Tinha vez que o povo ia embora e eu
ficava quatro dias na casa de dona Ana ali. Esse povo tocando viola e a
gente cantando serenata, aí cantava aquele monte de serenata. Você
cantava e o povo tocando viola, batia batuque. Você dançava batuque era
com o sol quente. Com Dona Ana nós falávamos assim: “Dona Ana, nós
vamos embora”. Eu e uma xará minha, que é parentes deles aí. Nós
falávamos assim: “lá vem Dona Ana de lá de dentro, garrafa na mão
enganando a gente, ô enganando a gente, ô enganando a gente”. Nós
falávamos: “e a saideira Dona Ana?” Que era a bebida. Ela: “mas que
saideira é essa menina? Vocês não vão embora hoje não. Eu tenho certeza

161
que vocês não vão, que vocês vão é brincar”. Pegava dois frangos e
mandava a gente matar esse frango, fazia uma panelada de almoço. Ah!
Pulava que nós íamos embora com quatro dias, cinco dias. Quando era no
outro dia nós íamos para a roça, passávamos a mão na enxada e ajudava
ela a trabalhar e: “nós vamos embora Dona Ana, hoje nós vamos”. “Quero
que vocês vão demais”. Mas era bom demais. Dona Ana era boa pessoa,
Sá Chica, Dona Joana, quando morreu foi solidão para a gente, até hoje eu
não posso alembrar de Dona Joana. O povo que a gente mais gosta na vida
vai acabando ... O que Deus faz ninguém pode desmanchar, né!? (Nilza,
Sangradouro Grande, 2018).

Segundo as histórias de Nilza sobre sua relação com os Lídia, ter sido criada junto
com este povo expressa a ideia de que é o afeto, criado pelo compartilhamento de carinho,
acolhimento, comida, brincadeiras e também trabalho, aquele que tem a capacidade de
transformar estranhos, ou meros conhecidos, em parentes ou “como se fossem da família”.
Assim como Nilza, que foi criada com o povo de Sangradouro Grande, Zé Orlando
também disse que é “como se fosse da família” dos Lídia porque “abraçou a causa”. Durante
a realização da pesquisa, este interlocutor era o presidente da associação da comunidade. Em
uma conversa, lhe perguntei se era também da família Lídia. Zé Orlando me respondeu
dizendo que no início, quando retomaram o território, não era, mas que a partir do momento
que ele “vestiu a camisa” da comunidade, da luta pelo território, ele passou a ser. O mesmo
foi dito por Lídia Bomfim que, ao me contar de sua trajetória enquanto presidente da
associação da mesma comunidade, destacava o quanto sentia que alguns dos outros
moradores, muito embora não fossem parentes consanguíneos, eram considerados por ela
“como se fossem da família”. Esse era o caso, por exemplo, de um interlocutor citado por
ela, a quem Lídia disse considerar “mais até do que minha família”.
A união, ou o povo unido, é a causa e efeito destas alianças. “Só faz sentido na
união”, reiterou Zé Orlando enquanto conversávamos. Disse ainda que, se “você veste a
camisa da comunidade, você defende a comunidade, você entende o que é a comunidade,
você respeita a comunidade”. O entendimento expresso por meu interlocutor ressoa com
outras situações em que ouvia algum morador se referir a outro como alguém que é “como
se fosse da família”, ainda que não fossem parentes consanguíneos. Sobre estes termos,
parentes, família e comunidade, é importante novamente fazer referência ao trabalho de
Comerford (2003). Conforme o autor:

Família é um termo ambíguo, por referir-se, dependendo do contexto: 1) à


família nuclear (pai, mãe e filhos); 2) à família no sentido dos que tem o
mesmo sobrenome, algo como uma família-nome; 3) à família incluindo

162
tanto os consanguíneos por lado paterno e materno, como os afins também
por ambos os lados, dentro de limites flexíveis que abrangem apenas os
mais próximos de cada lado (que grau de proximidade é algo que só se
define em cada contexto), se aproximando da acepção de conjunto de
parentes. Parente qualifica individualmente aqueles com quem se tem
algum tipo de laço de parentesco por consanguinidade ou afinidade, pelo
lado paterno ou materno, com um alcance mais amplo e flexível que
família, já que dificilmente se diz de um parente considerado distante que
“é da minha família”, apenas que “é meu parente”. Essa flexibilidade no
uso de família e parente, que podem ser usados como sinônimos, mas com
família tendo uma conotação de maior proximidade, faz com que seja
possível indicar discursivamente um certo grau de proximidade com
alguém que dificilmente poderia ser incluído ou a quem não se gostaria de
incluir na família, em dadas circunstâncias (COMERFORD, 2003, p. 34-
35, grifos do autor).

As observações do autor nos ajudam a compreender as diferenças entre família e


parentesco. Mas também nos fazem questionar sobre como alguém que não é parente, como
Zé Orlando, pode se tornar alguém “como se fosse da família”. Neste caso, notamos a
utilização do “como se fosse”. Algo parecido é discutido por Vander Velden (2012) entre os
Karitiana, povo indígena em Rondônia. Para estes, os animais de criação também são “como
filhos”, em especial os cachorros. Nesse sentido, o autor faz uma análise sobre a conexão
entre animais e crianças através da noção de criação, mostrando que, assim como os
Karitiana esperam dos filhos, também esperam que suas criações assumam suas
“responsabilidades sobre o cuidar de si, mantendo controle estrito sobre seus limites
corporais e emocionais, suas ações e obrigações” (VANDER VELDEN, 2012, p. 184). Isso
também nos ajuda a compreender as razões pelas quais Dona Nilza afirma ter sido “criada
com esse povo”. Pessoas, assim como animais, através da criação, podem adquirir seu lugar
e valor juntamente ao povo do lugar.
O mesmo parece valer para o conjunto denominado “comunidade”. Muitas destas
afirmações sobre ser parente ou “como se fosse da família”, no contexto em que eram
enunciadas, possuíam forte relação com o engajamento nas lutas pelo território e nas alianças
tecidas entre as pessoas ao longo delas. A confiança e o “poder contar com o outro”, nestes
casos, são muito importantes. Isso faz com que um morador passe a considerar outro como
filho, filha, mãe, pai ou, mais amplamente, família. O próprio Zé Orlando observa isso ao se
utilizar da metáfora narrada na introdução desta tese, em que o morador conectava raízes,
tronco e ramas. Para relembrar o leitor, segundo este morador, “se não fosse pela raiz, o
tronco não fica em pé, porque é pela raiz que o tronco vai criando ramas”. Sendo o tronco,
conforme Zé Orlando, o povo em sua diversidade, o que inclui tanto aqueles que nasceram

163
quanto aqueles que foram apenas criados no lugar. Sua metáfora vai além ao mostra que
trabalho conjunto tem destaque nas relações estabelecidas na beira do rio. Antes de serem
nascidos, a criação e o aprendizado de cada um sobre seu papel em um conjunto maior de
pessoas é o que mais importa para meus interlocutores. A consciência desse papel, portanto,
é o que permite a alguém se transformar em parente ou membro da comunidade.
Nesse sentido, os quilombolas ribeirinhos utilizam vários termos para localizarem
temporalmente aqueles que fizeram ou fazem parte de suas relações de parentesco. Como
vimos na primeira parte da tese, tronco – e também nação, embora seja menos usual – são
dois deles, sendo utilizados para fazer referência às famílias mais antigas. Algo parecido é
elaborado pelos Kalankó, povo indígena em Alagoas estudados por Herbetta (2013).
Segundo o autor, para fazerem referência à localização das aldeias, os indígenas utilizam
“metáforas de caráter filogenético”, sendo os antigos aldeamentos missionários chamados
de “troncos velhos” e as novas comunidades, “pontas de ramas” (HERBETTA, 2013, p. 3).
Entre os quilombolas ribeirinhos, outros termos que também expressam a posição de alguém
diante de um conjunto maior de pessoas são finados e véios. Os finados, claramente, são
aqueles que já falecerem e cujos nomes raramente são mencionados sem serem precedidos
pelo termo. Já os véios são aqueles que, vivos ou mortos, são ou foram conhecidos com idade
avançada.
Embora existam as famílias que sempre viveram nas comunidades – ou, como no
caso de Croatá e Sangradouro Grande, que fizeram parte do grupo que retomou o território
desde o início –, como a acolhida é um modo do sistema da beira do rio, outras pessoas
costumam chegar ou pedir um terreno para construírem um barraco nestas comunidades.
Normalmente os que chegam são filhos ou parentes daqueles que vivem nos quilombos.
Contudo, em alguns casos estes novatos são apenas conhecidos de algum morador. O fato
do chegante não ser parente não impede a acolhida, pois, como venho tentando mostrar, a
amizade, a confiança e a união podem transformar um estranho em algo como um parente.
Como me explicou Enedina, aquele que chega precisa aceitar as normas da comunidade,
normas estas que estão relacionadas tanto à vida prática como a uma ordem moral mais geral.
O prático e o moral, na verdade, funcionam juntos. Aquele que chega precisa ter a capacidade
de compreender e aceitar os termos do lugar, ou o “sistema do lugar” (GODOI, 1998),
incorporando-os em sua vida cotidiana.
O caso de Croatá é bastante ilustrativo das possibilidades de acolhimento, mas
também de cisão, pois, quando retomaram as áreas que hoje compõe o território, o fizeram

164
com um número maior de pessoas, que depois se dividiram. Aqueles que optaram por um
sistema de criação de gado incompatível com o sistema quilombola ficaram conhecidos
como os criadô. Este pequeno grupo fundou uma outra associação denominada Santa Luzia
e se instalou em uma parte separada do território. Em seus terrenos, criam gado na vazante
desmatando a vegetação nativa. A situação entre estes dois grupos, embora tensa do ponto
de vista da moralidade de cada um deles, se apresenta um pouco mais harmônica na vida
cotidiana, pois ambos os grupos se comunicam e mantêm relações, na medida do possível.
Um morador me explicou que as coisas acontecem dessa forma porque os quilombolas
entendem que eles e os criadô são igualmente pequenos e fracos, sendo a diferença entre os
dois grupos apenas de mentalidade.69
Pelo que vimos até agora, parece-me ser possível conectar duas diferentes práticas, a
acolhida e a criação. Se a acolhida é a capacidade de receber parentes e estranhos, a criação,
por sua vez, é a capacidade de transformar estranhos em família ou, ao menos, em
comunidade. Digo isso pensando nas frequentes afirmações dos quilombolas ribeirinhos
quando dizem que foram nascidos e criados no lugar. E também, com base na afirmação de
Dona Nilza, sobre já ter chegado adulta na beira do rio e ter sido acolhida e criada com o
povo dali.
Ao apresentar suas reflexões sobre os estudos feitos sobre e com as crianças em
contextos indígena, Cohn (2019) sugere que estes debates necessitam de uma melhor
articulação com o que tem sido elaborado em geral na etnologia. Conforme a autora, se
“antropologia da criança tem demonstrado que as crianças são ‘seres sociais plenos’ e
plenamente produtores de cultura”, é preciso “uma leitura mais ampliada da criação das
crianças que não restrinja suas relações ao ‘mundo humano’”, uma vez que as “socialidades
ameríndias extrapolam o ‘humano’, englobando não-humanos tais como animais, plantas,
espíritos e objetos, ou, para formular de outro modo, estendendo a pessoalidade para além
da humanidade” (COHN, 2019, p. 22-23). Como sabemos, desde as reflexões de Latour
(1994), não são apenas as socialidades ameríndias que extrapolam o humano e, assim sendo,
penso que a sugestão de Cohn (2019) possa se estender para outros contextos. Assim, esta
conexão entre criação (aqui não necessariamente, ou não apenas, de crianças, mas também
de adultos), animais, plantas, entre outros não humanos, pode e deve ser pensada nos
contextos quilombolas. Se, como sabemos, animais e pessoas são criados, na beira do rio as

69
Retomarei esta discussão no Capítulo 6.

165
plantas também podem se “criar”. Assim, é importante pensar uma ideia de criação que se
estenda às plantas, saindo um pouco de sua associação com a domesticação que, como
observou Vander Velden (2012, p. 109-110) tende a estar “por demais carregado pela visão
ocidental moderna do animal doméstico como servo ou escravo”, nos aproximando, como
também sugere o autor em diálogo com Haraway (2003), de uma relação em que se pense o
companheirismo entre as espécies e como estes companheirismos conformam mundos. 70
Procurarei mostrar estas relações com as plantas no Capítulo 6, onde veremos que elas, ao
serem utilizadas como remédio, ajudam na criação das pessoas e animais, por meio da
produção de corpos saudáveis e seguros, colaborando, assim como o fazem pessoas e
animais, para uma vida mais alegre, leve e sem males.
O acolhimento dos de fora e daqueles que tiveram suas terras expropriadas durante a
implementação das políticas de modernização da agricultura; a acolhida dos foliões durante
os giros; bem como a criação, enquanto produtora de laços de amizade, confiança e de
parentesco, também são expressos através da circulação de crianças, através do “pegar para
criar”. A este respeito, os filhos de criação são muito comuns em todas as comunidades e,
nestes casos, não implicam na perda de vínculos das crianças com os pais legítimos, algo
bem próximo do que discute Godoi (2009) em sua pesquisa no sertão do Piauí. Para a autora,
a “circulação de crianças” é a expressão utilizada para falar das práticas de transferência, de
um adulto para o outro, da responsabilidade no cuidado das crianças e é também uma prática
que está inscrita no “universo da reciprocidade como parte de uma ética segundo a qual ela
é dada como generosa e obrigatória entre vizinhos, parentes e compadres” (GODOI, 2009,
p. 289). Além do mais, esta seria uma prática capaz de conectar diferentes grupos de pessoas.
Em meu contexto de pesquisa, as razões que levam as pessoas a pegar para criar são as mais
diversas. Vão desde as dificuldades financeiras dos pais legítimos até o interesse das crianças
em adquirir o conhecimento em relação a alguma atividade realizada por aquele que zela por
ela. A afetividade entre a criança e os pais de criação também está presente nessa circulação
de crianças, que nem sempre envolve a adoção de fato, apenas a aproximação de crianças
com determinados adultos. De todo modo, Seu Pedro explicou que, para as crianças, “tudo
era tio, só chamava de tio porque, fosse parente ou não fosse, as mães da gente ensinavam a

70
Algo parecido já havia sido sugerido por Haudricourt (2013, com publicação original em 1962), quando disse
que “face ao mundo vegetal e animal, a partir do neolítico o homem não é mais somente um predador e um
consumidor, pois a partir de então ele assiste, ele protege, ele coexiste longamente com as espécies que ele
“domesticou”. Novas relações, de caráter “amistoso”, se estabelecem, lembrando aquelas que os homens
mantêm entre si no interior de um grupo”. (HAUDRICOURT, 2013, p. 1)

166
chamar os mais velhos de tio. Quando acontecia que um adoecia, que ia visitar o outro, a
casa não cabia de tanta gente”.
Certa vez, Lídia me disse que tinha dois tipos de filhos, os filhos da dor e os filhos
do amor. A dor, no primeiro caso, se refere à dor do parto. Já os filhos do amor são aqueles
que foram pegados para criar. Quando morava em São Paulo, onde realizava seu trabalho
de babalorixá71, recebeu uma de suas primas, Amélia, que foi para a capital para tratar da
doença de chagas. Foi a própria Lídia quem chamou a prima para fazer o tratamento, sem
saber que ela “já estava desenganada”. Assim, em São Paulo, Amélia faleceu e deixou seus
filhos órfãos. Sensibilizada, Lídia pegou para criar as seis crianças. As dificuldades para
criar “esse montão de filhos”, além de seus filhos legítimos, foi se tornando cada vez maior
e ela decidiu passar o cuidado das crianças para outras pessoas da família. Como ela contou,
Luan, de dois meses, ficou com sua filha. Jessica, com sua irmã Olívia. Denise foi para sua
Mãe Zefa72. Denilton ficou com um primo de Lídia. Já Bastião e Belo não quiseram ir
embora e acabaram sendo criados pela própria Lídia.
Dependendo da idade da criança e das condições financeiras da mãe ou da família de
criação, as crianças podem ficar por muito ou pouco tempo com suas famílias não legítimas.
Nos casos de morte ou dificuldades financeiras dos pais legítimos, as crianças podem circular
por diferentes lares, até que se estabeleçam definitivamente em um ou até que tenham idade
suficiente para terem suas próprias condições de vida. Conforme forem os afetos criados
entre filhos e pais de criação, as crianças podem passar a chamar os pais adotivos de pai e
mãe, mesmo que saibam de suas origens ou até mesmo conheçam e, eventualmente,
encontrem seus pais legítimos.
Os filhos de Amélia, que foram inicialmente acolhidos por Lídia e são lembrados por
ela com grande carinho, também passaram por outras famílias, como a de Olívia. Denilton,
antes que ficasse definitivamente com Lídia, também foi acolhido temporariamente por
Olívia, que também acolheu Zé Rosa e Marli. Jessica ficou por mais tempo, sendo criada
por Olívia junto com seus filhos legítimos. Ainda quando era um bebê de três meses, Olívia
também pegou Rubão para criar. Ela conta que, quando morava em São Paulo, foi visitar sua
mãe em Sangradouro Grande. Durante o tempo em que estava de visita, sua prima estava
indo plantar capim em uma fazenda da região e pediu Olívia para ficar com o recém-nascido.

71
Embora seja usual que as mulheres sejam referenciadas enquanto ialorixás, Lídia me disse ser babalorixá.
72
Mãe aqui aparece em itálico porque Zefa não é, de fato, mãe de Lídia, mas era como todos a chamavam. Isto
porque ela era parteira e, na região, as mulheres que ajudavam no trabalho de trazer as crianças à vida eram
tratadas por todos como mães.

167
Olívia, que ficaria apenas por quinze dias na região, disse que cuidaria de Rubão durante
este período. Depois de ter trabalhado os quinze dias, sua prima voltou e perguntou se Olívia
não ficaria definitivamente com o bebê, pois na ocasião também não tinha onde morar e
como cuidar do filho. Mesmo sem saber se o marido aceitaria, Olívia acabou se
sensibilizando com a situação da prima e levando Rubão para São Paulo. Anos depois,
quando seu marido faleceu e ela decidiu voltar para a beira do rio para cuidar de sua mãe,
sua prima pediu o filho de volta, mas Rubão, já crescido, preferiu ficar com Olívia, a quem
chama de mãe.
Assim, os filhos de criação, me parece, não distanciam nem cortam, mas ampliam e
fortalecem, as relações de parentesco entre pessoas e comunidades. Cada criança que circula
puxa um fio diferente, que é conectado em um outro ponto distinto. Se os filhos de criação
conectam pessoas, os arranjos de casamento também o fazem. São muitas as histórias de
casamentos feitos e desfeitos. Largar costuma ser o termo empregado para se referir ao
cônjuge que deixa a situação de casado. Assim, homens e mulheres largam uns aos outros.
Ouvia dizer sempre que fulana largou cicrano e depois se casou, ou ajuntou, com beltrano.
Nestas novas conexões, outros filhos podem ser gerados e outros tantos podem ser pegos
para criar ou serem zelados.
No tempo de primeiro, além da liberdade dos moradores de se movimentarem
habitualmente pela beira do rio para participarem das fogueiras, batuques, giros das folias,
ou mesmo para as atividades de cultivo e trabalho nas roças, estas constantes movimentações
permitiam a constituição de vínculos entre os moradores e comunidades que podem ser
vistos através dos casamentos. Os habitantes das diferentes comunidades casam entre si,
constituindo vínculos que mantêm fluidas as fronteiras entre as comunidades na região.
Nas conversas que tive com moradores da beira do rio, muitas pessoas já falecidas
apareciam nas narrativas, hora com seus apelidos, hora com seus nomes de batismo. Por essa
razão, a tarefa de sistematizar as genealogias se torna algo extremamente complexo. Além
disso, lidar com as relações de parentesco pode exigir uma aproximação quase afetiva com
pessoas que já faleceram e que nunca tive a oportunidade de conhecer. Portanto, para
entender os casamentos entre famílias de diferentes comunidades, foi preciso me familiarizar
com os nomes e histórias dessas pessoas. Estas relações de parentesco, embora sejam
amplas, podem ser exemplificadas a partir da genealogia que me é mais “familiar”, a dos
habitantes de Sangradouro Grande.

168
A imagem acima apresenta a primeira geração do principal e mais extenso tronco dos
Lídia, que vivem hoje em Sangradouro Grande. A segunda filha do casal Eduardo e Lídia,
conhecida por Maria Cambota, se casou com o pai de Seu Vicente Branco, da comunidade
de Gameleira. O quarto filho, José, se casou com Amélia Batista, da família dos Canários,
também de Gameleira. A sétima filha do casal, Idalina, foi uma das primeiras moradoras de
Croatá, junto com seu marido Pedro Preto, que é sempre referenciado pelos moradores atuais
de Croatá, bem como um dos seus filhos, chamado Zé Mosquito. Além destas, ainda existem
outras relações de parentesco entre as comunidades, como Celina, esposa de Seu Santo, que
é descendente de um dos troncos fundadores de Gameleira. Seus parentes vivem espalhados
nas comunidades de Gameleira, Várzea da Cruz e Croatá. Muitos são os outros casos que
mostram parentes espalhados pela beira do rio, nos quais procuro não me estender, mas que
podem ser vistos com mais profundidade em Araújo et al. (2019). Procurei apenas descrever
alguns deles muito brevemente, a título de exemplificação.
Com estas breves descrições, ainda que não sejam o suficiente para responder a
pergunta levantada no início da seção, sobre o que significa ser parente para os quilombolas
ribeirinhos, espero ter dado algumas indicações sobre os parentescos e famílias na beira do
rio. Mais do que se casar, ajuntar, pegar para criar, girar com a folia e “vestir a camisa da
comunidade”, os quilombolas, com muita comida, festa e animação, conectam pontos que
são tecidos por moralidades e mentalidades, onde a união e as acolhidas diversas são, de
alguma forma, o meio e o fim último destas alianças.
Ao longo do capítulo pudemos ver novamente que, na medida em que as águas do
rio se movem pelas áreas, produzem, além de terras boas para plantios, um sistema de casa,
um sistema de direitos de acesso às áreas para produção de mantimentos e para a pescaria,
bem como um modo de se relacionar, fazer amigos, parentes, famílias e de manter estas
relações. Isto é, o rio é um dos principais atores na configuração da socialidades dos

169
habitantes da beira do rio. Através da breve descrição, principalmente sobre os modos de
relações entre pessoas, parentes e famílias, procurei, então, apresentar as bases sobre as quais
estão fundadas outras relações, especificamente aquelas estabelecidas com os outros
viventes, que serão discutidas nos próximos capítulos.

170
Capítulo 5
PÉS DE FRUTA, PÉS DE PLANTA, PÉS DE ÁRVORE E PÉS DE PAU

5.1. Pondo roça

Na beira do rio os quilombolas ribeirinhos põem roça três vezes ao ano. Nas águas,
período das chuvas que vai de “novembro para dezembro”, são os meses dedicados para o
cultivo na terra firme. As roças da terra firme costumam ser de milho, abóbora, batata,
mandioca, caxi (ou caxixe, uma espécie de abóbora), maxixe, feijão de corda e feijão de
arranque. Nos meses de janeiro e fevereiro, quando as águas dos baixões e sangradouros
começam a vazar, é tempo de pôr mais roça nestas áreas. Já em abril, para aqueles que têm
um pedacinho de terra nas ilhas, é o terceiro momento de plantio. Os lameiros deixados pela
vazante do rio são os locais privilegiados para as roças. Como me explicou Amelinha, nas
ilhas o plantio é feito “quando a água sai, na seca”. A “água vai vazando” e os quilombolas
vão plantando. Assim, o povo da beira do rio conta com as roças colocadas nos dois períodos
do ano, nas secas e nas águas.
Na terra firme, o preparo da terra é feito primeiro com o roçado, seguido pela coivara
e depois, pelo plantio com a enxada e o enxadão. Já nos lameiros e vazantes, o próprio rio é
quem faz o preparo da terra, sendo necessário apenas a limpeza com a retirada de galhos e
dos pequenos matos que vão crescendo. Ao vazar, o rio deixa a terra pronta para o plantio,
que é feito através do espeto, que se constitui em um pedaço de pau com uma ponta que vai
sendo fincado na terra. No buraco deixado pelo espeto é onde se jogam as sementes. Esse
mesmo sistema também é utilizado na terra firme, porém, nas vazantes é preciso muito
cuidado, pois se o espeto afundar muito, ele “pega na água” e a semente puba, isto é,
apodrece. Neste caso, existe um limite certo para fincar o espeto na terra que cada vazanteiro
conhece bem. Os buracos abertos pelo espeto podem receber entre três a quatro sementes.
As variedades cultivadas nas vazantes são as mesmas da terra firme, com exceção da
melancia, que normalmente é plantada somente nas vazantes. A respeito destes plantios,
como me explicaram, “a mandioca não pode plantar com o feijão, porque o feijão enrama e
não deixa ela sair, atrapalha”; já o “milho, pode”. Junto com o milho também se planta arroz.
A diferença é que o milho, não atura a vida toda, “são mais ou menos seis meses e acabou”.

171
Já “a mandioca é um ano, dois anos, três anos, ela ainda fica lá, a mandioca tem que
respirar”, por isso a roça de mandioca precisa ser só de mandioca, separada das demais. O
que define o que pode e deve ser cultivado é um complexo conjunto de conhecimento sobre
a qualidade da terra e sobre o comportamento ou, como dizem os quilombolas, o gosto das
plantas.

Figura 30 - Amelinha abrindo cova na ilha com o espeto


Fotografia: Izadora Acypreste, 2017.

Antes da chegada das grandes fazendas e da restrição territorial que atingiu os


quilombolas ribeirinhos, as áreas de roça eram utilizadas durante três a quatro anos, ou
“enquanto elas ainda estavam dando”. Quando começavam a perceber que a roça já “estava
muito velha, cansada”, escolhiam um novo local para pôr a nova roça. Como descreveu Seu
Carlito, do pé do pico do Itapiraçaba até a beira do rio, era “um mundo de roça”. Aquelas
roças velhas, que já estavam fraqueando, ficavam reservadas durante o tempo necessário
para “melhorar a terra”. Estas áreas de roças velhas são denominadas pelos quilombolas
ribeirinhos enquanto capoeiras, onde se encontra um “mato mais ralo”. As áreas antigas das
fazendas, antes utilizadas como mangas para o gado e onde hoje está “tudo lascado”, também
estão capoeirando, se refazendo. Nestas áreas, embora não se encontre “mato grosso” ou
“mata fechada”, alguns pés nativos já começam a crescer, como a maçanzeira e o pau jaú.

172
Somente quando o mato ralo fica mais grosso é que a capoeira passa a ser considerada
novamente enquanto mata.73
Sempre que falam de suas atividades relacionadas às roças, os quilombolas destacam
as diferenças entre os tempos antigos e os atuais, apresentando as mudanças que vêm
ocorrendo na beira do rio. Quando falam sobre o que plantam e como plantam, há sempre
uma comparação entre o modo como as coisas costumavam ser no passado, quando havia
fartura, e aquilo que é possível fazer atualmente, em que eles precisam lidar com a escassez.
A escassez em relação ao que se planta, colhe e comercializa, é atribuída à pouca
disponibilidade de terras para pôr roça, mas também aos vários anos seguidos de estiagem
que têm assolado a região. Sobre isso, enquanto se lembrava dos tempos antigos, Amelinha
lembrou que,

era muito melhor que agora. Antigamente meu pai criou nós todos aqui foi
mexendo com roça, criou nós com fruto daqui, com o que produzia aqui na
roça. Era feijão, abóbora nas ilhas, era mandioca. Nós tínhamos uma
oficina [de mandioca] bem aqui. Aqui desse lado aqui, nesse baixão, dali
para cá era um canavial. Minhas avós faziam rapadura, faziam mel debaixo
daqueles pés de manga ali, elas tinham aqueles panelões. Então a vida aqui
era muito boa. Muitos pés de fruta que morreram devido a sequidão,
porque antigamente chovia muito, agora hoje é muito difícil chuva. Aqui
tinha muito pé de laranja, muito pé de fruta que foi morrendo tudo, mas
não tinha esse negócio de a gente pegar e sair para fora. A criação nossa
não foi assim, não. Era muita fartura, era muito peixe. Até os peixes agora
estão difíceis. Mas antes aqui era muito bom. Meu pai pegava as mandiocas
e fazia os beijus, minha mãe fazia aqueles caldos de peixe, cortava os beijus
assim e colocava, era muito bom. O açúcar nós não precisávamos comprar
porque pai tinha um negócio que muitos chamam engenho, só que a gente
falava escoraçador. Ele cortava as canas, rapava, aí nós moíamos ali, e dali
produzia a garapa. A gente coava e botava limão dentro, fazia a garapa, o
suco e dali também já fazia o café, não precisava do açúcar. Fazia o café
com a própria garapa da cana e fazia a rapadura e o mel. Era muito bom.
Agora hoje em dia, se você quer, tem que ser na base da compra. Porque
hoje em dia é difícil produzir cana. Não tem mais água, chuva, enchente
boa para lavar os altos (Amelinha, 2017, Sangradouro Grande).

Nestes tempos antigos, os produtos da roça eram levados para a cidade nos carros de
boi ou nos balaios, que eram carregados na cabeça. A mamona e o algodão eram variedades
largamente produzidas pelos moradores, uma vez que existia uma grande busca por estes

73
Larissa Portugal, pesquisadora que faz parte do grupo de estudos Humanimalia, vem refletindo, em sua
pesquisa de mestrado desenvolvida no PPGAS/UFSCAR, sobre a categoria “mato” entre os Pataxó na aldeia
Boca da Mata, na Terra Indígena Barra Velha do Monte Pascoal (BA). Como mostra a autora, os “matos” com
os quais vivem os Pataxó podem apresentar diferentes sentidos dependendo de suas relações com outras
plantas, além de possuírem forte relação com as capoeiras, tal como ocorre entre os quilombolas ribeirinhos
aqui estudados.

173
produtos na cidade e no porto de Januária. Da mamona era transportado para a cidade um
volume que variava entre dois a três sacos. Outros itens, como o milho, polvilho, algodão e
a farinha, eram pesados através do sistema do “prato de medida”. “Chegava assim: me vê
um prato de farinha”, me explicou Seu Zé Bete. Embora não seja mais usado, meu
interlocutor me mostrou um modelo que ainda guarda em sua casa, explicando que desde
que ele “entendeu por gente” já existia em sua casa, sendo aquela peça uma herança de seu
pai.

Figura 31 - Seu Zé Bete mostra a “meia quarta”


Fotografia: Izadora Acypreste, 2018.

Além do “prato de medida”, também existia a “meia quarta”, que equivalia a dez
pratos de medida. Seu Zé Bete me explicou ainda que uma “meia quarta” de farinha seria o
174
equivalente a dez quilos. Enquanto se lembrava do sistema de medida antigo, ele fazia
constantes comparações em relação ao preço que costumavam pagar pelos produtos da roça
e o preço que se paga hoje por estes mesmos produtos. Se antes conseguiam produzir a maior
parte dos alimentos que consumiam, hoje a maioria destes alimentos são comprados nos
comércios da cidade. Ao dizer isso, Seu Zé Bete destaca a fartura presente no tempo de
primeiro.
Outro aspecto que vem afetando a produção das roças na beira do rio, e que será
discutido com maior profundidade no próximo capítulo, é o impacto da criação do gado nos
tempos atuais. Embora a presença do gado nas margens do rio já fosse comum nos tempos
antigos, atualmente, devido à restrição da liberdade em relação ao uso da terra, os moradores,
ou pelo menos aqueles que se interessam pela criação do gado, precisam manter seus
rebanhos espremidos em pequenas parcelas de terra. Esse contexto acaba gerando conflito
entre os quilombolas, pois o gado, acidentalmente ou deliberadamente, acaba invadindo os
plantios daqueles que vivem só de roça. Muitas destas situações acabam sendo resolvidas
rapidamente entre os próprios moradores, como pude acompanhar em reuniões das
associações de que participei e que narrei na apresentação da tese. Em casos extremos, a
diferença de mentalidade no modo de criação do gado pode ocasionar até mesmo no
rompimento das relações, como ocorreu em Croatá, em que a comunidade foi dividida entre
dois grupos, os quilombolas e os criadô.
Apesar das mudanças em relação à quantidade de chuvas e enchentes que vem
afetando a capacidade produtiva na beira do rio, bem como os conflitos em torno das formas
de criação do gado, atualmente os moradores, em sua maioria, ainda cultivam feijão, milho,
mandioca, melancia, abóbora, caxi, gergelim e uma grande variedade de frutas e verduras.
Também criam galinhas e porcos em pequenas áreas nas imediações das casas, o que é em
grande parte destinado ao consumo familiar. Algumas poucas famílias que possuem terrenos
maiores criam gado, enquanto outros se ressentem por não terem uma área de roça para
plantar, mas apenas o terreno de aproximadamente 300 metros. Estes casos acontecem nas
comunidades do alto, em que muitas famílias foram adquirindo seus terrenos pela compra
do direito ou receberam uma pequena parcela de terra por herança. Algo diferente das
comunidades próximas ao barranco que, no momento da retomada do território, dividiram
os terrenos igualmente entre os moradores. No entanto, nas comunidades da beira também
acontece de algumas pessoas destinarem parte de seus terrenos para filhos e netos. Estes,
portanto, conseguem um lugarzinho para erguer suas casas, mas muitas vezes continuam

175
sem lugar para pôr roça. Assim, para garantirem seu sustento, ou trabalham na roça daqueles
que os acolheram ou possuem outro tipo de trabalho na cidade ou em fazendas da região.
Parte dos produtos obtidos nas roças e “quintais”, como ovos, folhas, frutas, mudas,
queijo e leite são comercializados entre os moradores das próprias comunidades ou na cidade
de Januária. Iranete, por exemplo, contou orgulhosa de seus filhos que, mesmo ainda
adolescentes, aprenderam com ela e desenvolveram o gosto de “mexer com planta”. Com
esse aprendizado e interesse, costumam fazer mudas para venderem na cidade. Também
aproveitam a ida até a sede municipal para venderem folhas como a alface e tempero verde
(salsa ou cheiro-verde).
Outras inúmeras vezes, em visitas às casas dos moradores, eles faziam questão de
mostrar seus canteiros e plantas cultivadas nos terrenos, bem como suas roças. “Eu não vou
ficar de mentiroso, eu gosto de falar a coisa e mostrar”, me disse Seu Santo, que logo em
seguida caminhou para exibir seus pés de maracujá, seriguela, caju, limão, mamão, pimenta,
pimentão, hibisco, marvão, quiabo, cana e feijão andu. O maracujá já estava “madurando” e
a pimenta, enfatizou o vazanteiro, “aqui é desaforada”. Iranete, quando em visita à sua casa,
também fez questão de me mostrar seus pés de palma que, embora não sejam muito comuns
na beira do rio, foram trazidos por ela da Bahia. Seu irmão, que mora no estado de Goiás,
sugeriu que ela plantasse as palmas, pois, segundo ele, “a fruta é vendável demais”. Com o
fruto da palma também é possível fazer doce, que também é considerado algo bom para a
venda. No seu terreno, Iranete também planta gergelim, “mais para comer, fazer uma
paçoquinha”. Contudo, uma vez que tenha gente que compre, para ela “interessa plantar
mais” desta variedade. O mesmo acontece com o capim-santo e outras plantas encontradas
nos terrenos dos moradores. As plantas presentes nos terrenos são diversas e fruto do hábito
dos seus donos de trocarem mudas com outros moradores, mas também das práticas de
trazerem novas mudas e sementes sempre que vão à Januária ou viajam para outros lugares.
Esta circulação de mudas e sementes também foi observada em outros contextos
etnográficos (EMPERAIRE, 2010; WINKLERPRINS e OLIVEIRA, 2010; MENEZES,
2016; LIMA, 2016), sendo, em todos os casos, uma das práticas responsáveis por garantir a
diversidade de plantas nas roças e quintais. Em Sangradouro Grande, no terreno de
Amelinha, pude encontrar um pé de graviola. Por não ser muito comum na região, perguntei
a ela sobre a origem da muda. Amelinha respondeu dizendo que havia trazido de Brasília,
pois no local onde ela trabalhava havia muitos pés. Depois de plantar as mudas de graviola
em algumas latas, as levou para a roça. Do mesmo modo, a pescadora costuma fazer mudas

176
dos pés do seu terreno, seja para plantá-las em outros locais, seja para oferecê-las e distribuí-
las aos seus conhecidos da roça ou da cidade.
Outra possibilidade é pegarem mudas no Horto Florestal do Instituto Estadual de
Florestas (IEF), que fica localizado nos limites da cidade de Januária. Como o IEF costuma
produzir mudas de plantas nativas, sempre que estão à procura de alguma variedade, os
quilombolas ribeirinhos vão em sua busca no Horto Florestal. Este era o plano de Dona
Olívia, quando a porção da beira do rio onde fica o porto do seu terreno pegou fogo. Sua
ideia era pegar algumas mudas de ingazeira para deixar o porto arborizado novamente. Além
disso, ela me explicou que as raízes da ingazeira ajudariam a segurar o barranco do rio, que
estava quase desbarrancando. Para aproveitar sua ida ao Horto Florestal, me disse ainda que
pegaria algumas mudas de pequi ou alguma outra variedade, pois, como ela explicou, “lá
tem muita muda de coisa, tem de pau, tem muda de fruta, tem de café”, entre outras.
Esta circulação de mudas e sementes acontece também nas viagens, quando os
quilombolas ribeirinhos viajam para participarem dos eventos e encontros dos movimentos.
Pude notar isso quando visitava Dôra, uma das moradoras de Croatá. Na ocasião ela me
mostrou as plantas cultivadas em seu terreno, contando sobre a origem de cada uma delas.
Algumas qualidades foram trazidas da terra indígena Xacriabá, outras, de comunidades
quilombolas de diferentes regiões de Minas Gerais, ou ainda, de estados do Nordeste, todos
lugares que Dôra havia visitado em suas viagens junto ao MPP. Na casa da minha anfitriã
Enedina, ela também me mostrou uma bolsa e uma caixa cheia de potes com sementes que
haviam sido trazidas dos lugares que ela visitou ao longo de suas viagens com o movimento.74
Seu Arnaldo também contou que os quiabos e o pé de baru do seu terreno foram trazidos da
comunidade de Canabrava, localizada no município de Buritizeiro. Já os pés de coco, do
Ceará, sendo ambos lugares que ele visitou em suas viagens.
Nestes encontros e eventos organizados pelos movimentos sociais e por algumas
instituições que atuam junto aos quilombolas (como CPT, CAA-NM e UNIMONTES), onde
povos e comunidades tradicionais de diferentes regiões se encontram, é comum que os
participantes levem consigo sementes e mudas de seus territórios. Seu Arnaldo, por exemplo,
certa vez disse que estava com bastante urucum plantado, “várias mudinhas”, que estava

74
Na ocasião, Enedina também me mostrou uma pequena garrafa contendo a água do rio Doce, que foi coletada
em uma visita que a quilombola fez para essa região junto com o movimento. Viagem que aconteceu em um
período após o rompimento da barragem de rejeitos de mineração em Mariana, em novembro de 2015. Neste
caso, a água contaminada servia como uma espécie de memória do desastre social e ecológico ocorrido.

177
guardando para quando Dôra fosse buscar. O motivo era que Dôra estaria viajando em breve
“com o movimento” e, assim, poderia levar consigo algumas mudas para o encontro.
Um destes momentos, que pude acompanhar em 2013 na cidade de Montes Claros,
foi o “Encontro de agrobiodiversidade dos povos do semiárido mineiro: mudanças
climáticas e direito dos agricultores”. Organizado pela Rede de Agrobiodiversidade do
Semiárido Mineiro e pela Articulação do Semiárido (ASA), o evento reuniu povos e
comunidades tradicionais do Norte de Minas, de outras partes do Brasil e de outros países,
como Guatemala, Honduras, Costa Rica e México. Nesse encontro, que também contou com
a participação de diversos moradores da beira do rio, além de exporem os produtos,
artesanatos, mudas, sementes e frutos, estes povos e comunidades os comercializavam e os
trocavam entre si.

Figura 32 - Exposição de mudas em evento de povos e comunidades tradicionais


Fotografia: Izadora Acypreste, 2013.

178
Figura 33 - Exposição de sementes em evento de povos e comunidades tradicionais
Fotografia: Izadora Acypreste, 2013.

Assim como fez Enedina na situação descrita anteriormente, é muito comum que os
quilombolas ribeirinhos guardem suas sementes em potes e garrafas de plástico. “Se a
vasilha for bem fechada”, sem entrada de ar, “ela prevalece dois, três anos”, me explicou
Seu Santo. Contudo, diferentemente dos tempos atuais, em que tais potes e garrafas são mais
acessíveis, Seu Santo me explicou sobre o sistema antigo de preservação de sementes, que
eram enterradas no chão. Como ele conta:

Você pegava um pouco de areia de praia, limpava aqui [chão] bem limpo,
tirava um bocado dessa terra solta, pegava areia da praia e trazia. Forrava
aqui o chão num canto da casa, num canto assim que nem aí, pegava um
canto aí e fazia uma paredezinha com barro, fazia o L (buraco em formato
de L no canto da parede), fechava esse canto aí e forrava a areia aí em
baixo. Você vinha com o feijão e despejava ali naquela areia. Pegava outro
pouco de areia e jogava por cima, por cima daquela areia ali, você botava
mais feijão, tornava a vim com um pouco de areia e tornava cobrir. Aí você
pegava barro. Esse barro você molhava ele, bem molhado, pegava e forrava
tudinho por cima daquela areia ali. Fechava ele e ficava todo fechado. Aí
você bate barro tudo em volta para não entrar vento, entrar ar. Ele ficava
no chão. Quando era naquele tempo da planta, você ia lá, arrancava aquele
barro, ia tirando areia e passando na peneira e tirando a semente. Ele estava
inteirinho, perfeitinho (Seu Santo, Croatá, 2017).

179
Ainda que tenham suas formas de preservação de sementes, como me diziam, muitas
sementes e qualidades foram perdidas no período da chegada das fazendas, quando muitos
moradores tiveram que deixar a terra para viverem na cidade. Do milho, que hoje é comprado
nas “casas agropecuárias”, existiam diversas variedades como o roxo, o ibra e o cunha.
Segundo Seu Santo, o milho cunha era “graúdo e mole”, o preferido dos moradores, pois era
bom para fazer fubá. Outros quilombolas também relataram a perda de outras qualidades,
não só de milho, mas também de feijão, mandioca e até alguns bichos, como galinhas.
Madalena, por exemplo, me falou do feijão branquinho, que ela chama de “sessentão”
porque ele é rapidinho, em sessenta dias depois de plantado ele já “está pronto para comer”.
Quando me contava sobre essa qualidade, disse que perdeu a semente e há tempos não vê
dela. Como não tem o sessentão, teria que plantar o feijão carioca que, no entanto, “é de
noventa dias”.
A perda aqui não significa necessariamente a extinção de determinada raça, mas sim
a constatação de que hoje “é difícil adquirir” tal variedade. Foi o que me explicou Seu
Carlito, enquanto falava sobre o milho que plantou por doze anos, o milho da palha roxa. A
perda, neste caso, foi por causa da seca. Seu Carlito disse que havia acabado a semente do
milho da palha roxa. “Agora, porque acabou a semente?” – indagou ele e respondendo a sua
própria pergunta em seguida – “porque plantou, quer dizer que aquele milho na época de dar
morria e não tinha outra semente”.
Em outros momentos durante a pesquisa, enquanto perguntava os moradores sobre
as variedades de plantas presentes em seus terrenos e roças, além de me responderem e me
mostrarem tais plantas, acabavam por se lembrar de alguma outra qualidade que, embora
não estivesse presente em suas roças e terrenos, possuía alguma característica interessante,
como alguma espécie de feijão que resiste à seca ou de mandioca cujo sabor é bastante
apreciado e preferido. No desenrolar da conversa, lembravam-se de algum conhecido que
possui a semente de alguma destas variedades. Em seguida, diziam que procurariam este
conhecido para pedir a muda ou semente. Esse foi caso de Dona Nilza, que me falava das
mandiocas que costumava plantar, entre elas a vassourinha, que é de raiz branca, mas que
fica amarelinha quando cozida: “gostosa demais”, enfatizou ela. Desta raça de mandioca,
Nilza disse que esteve “andando por aí”, mas que ainda não tinha visto dela. Possivelmente
encontre “lá em Seu João Crente”, na Ilha do Balaieiro, perto de sua sogra. Caso encontre
por lá, disse que pegaria “pelos menos dois pauzinhos para plantar”.

180
Esta circulação, principalmente de mudas, também funciona para as variedades
utilizadas para enfeitar os quintais, como é o caso das plantas ornamentais, que não possuem
exatamente uma utilidade como alimento ou remédio. Da mesma forma como ocorre com as
outras qualidades, os quilombolas ribeirinhos, especialmente as mulheres, retiram as mudas
de suas plantas ornamentais em outros lugares por onde circulam ou ganham-nas de algum
parente ou conhecido. Durante a pesquisa, era comum ouvir das mulheres que alguém as
havia prometido alguma muda. Um destes casos ocorreu em uma tarde, quando Dona Olívia
me chamou para irmos buscar “um punhado de açúcar” na casa de Madalena, uma conhecida
da minha interlocutora que mora nos limites da comunidade. Convite feito e aceito, fomos
caminhando a pé pela estrada de chão. Porém, quando chegamos ao nosso destino,
Madalena não estava em casa. Para conferir a presença da moradora, adentramos seu terreno
até os fundos, quando nos deparamos com um pequeno pomar de urucum. Ao me
surpreender com a cena, que não é muito comum na beira do rio, Dona Olívia me explicou
que sua conhecida fornece urucum para uma empresa de tempero em Januária e que havia
prometido algumas sementes para minha interlocutora. Ainda que Dona Olívia não tivesse
interesse em comercializar o urucum, o pé costumar florir e, por isso mesmo, enfeitar o
terreno.

Figura 34 - Varanda de casa em Gameleira com diversas plantas ornamentais


Fotografia: Izadora Acypreste, 2017.

181
Dos produtos das roças, os quilombolas ribeirinhos se dedicam à produção da farinha
de mandioca, rapadura, garapa, fubá, pamonha e paçoca de gergelim, sem mencionar o leite
e o queijo advindos da criação do gado. Além das plantações, a pesca também é tida como
uma atividade importante na beira do rio, sendo o peixe uma fonte de alimento e renda.
Ainda que estas três práticas componham as principais atividades produtivas, alguns
moradores também realizam a cata de frutos nativos como pequi, pitomba, umbu, cagaita e
araticum nos altos, bem como do maxixe nas áreas utilizadas como pastagem de gado. Estes
produtos são consumidos pelas famílias, mas também são levados para comercialização em
pontos de venda nas ruas da cidade de Januária (ACYPRESTE et al, 2018, p. 37).
Outros poucos moradores produzem gamelas e utensílios domésticos, utilizando-se
dos paus nativos. Totinha é um destes artesãos da beira do rio. Como me explicou, seu dom
foi um presente de Deus. Em uma época em que “estava difícil de serviço para trabalhar”,
ele ficava observando outro artesão de Gameleira até que “inventou” de fazer sozinho. Hoje
ele vende “para bastante lugar”. Faz “um bando”, coloca “na bagagem da bicicleta” e “some
esse meio mundo”, vendendo em Tabua, Várzea da Cruz, Bom Jantar, São Bento e
Riachinho. Como me disse ele, “por aí tudo roda vendendo”. Conforme o artesão, a madeira
considerada boa para a confecção das gamelas é a imburana vermelha. O tamboril também
é utilizado, embora com esta variedade a madeira possa ficar escura depois que o objeto é
fabricado. Por essa razão, as pessoas não gostam de comprar gamelas e outros itens com este
tipo de madeira, motivo pelo qual ele sempre opta pela imburana vermelha para
confeccionar suas gamelas, colheres de pau, pilões e outros utensílios. Para tanto, Totinha
não costuma cortar nenhuma madeira, mas aproveita os galhos e troncos que já estejam
eventualmente caídos no chão. Muitas delas costumam estar infestadas de cupim, mas as
partes que estão boas ainda podem ser utilizadas para o fabrico das peças.
Além de artesão, Totinha, como muitos outros moradores, também se dedica à outras
atividades para “arrumar dinheiro”. Como destacou, não está empregado, não tem serviço,
então porque “ficar sentado”? “Não tem cuma”! Assim, ele também corta capim, planta
gergelim e coleta frutos na mata, “conforme o que for mais rentável”. “É como se diz, pondo
roça”, disse Seu Pedro. “É sofrido”, “não é fácil”, mas “a gente tem um prazer”, também
disse Seu Santo. Portanto, a roça, como um modo de viver, envolve o sofrimento, mas
também o prazer. Como narrou Seu Santo:

182
A gente está naquilo que era do domínio da gente, aquilo que nós éramos
acostumados, a gente foi criado assim, sabe? Eu mesmo não estudei porque
toda a vida eu fui fanático com a roça, gosto de roça demais, Deus do céu!
E meus filhos, tem um lá no curral tirando leite, é criado mais eu, eles ainda
estudaram, eu não tive o prazer de estudar não. Meu negócio toda a vida,
feito doido, eu mais meu pai era garrado na roça (Seu Santo, Croatá, 2018).

A distinção entre quem estuda e quem vive de roça, presente na narrativa acima,
também foi mencionada por Seu Carlito quando falava de seu pai. Segundo Carlito, mesmo
“sem estudo”, a leitura do seu pai era na roça. Criar uma galinha, um porco, pôr uma roça,
fazer um canteiro, “ter um cantinho da gente para poder plantar, produzir, ter milho, feijão,
ter abóbora, outras coisas” é a forma como os moradores entendem por viver bem no lugar,
no sentido de ter uma vida boa e saudável. O sofrimento dos que vivem na cidade, por não
terem a liberdade de plantar, é sempre relatado pelos quilombolas ribeirinhos. Mariana, da
família dos Guacho, me contou que:

uma vez mesmo eu falei e deu até confusão, lá [na cidade] eu passava até
necessidade sabe, porque não era tudo... as crianças pediam uma coisa e se
não tinha ... menina, era uma coisa. E aqui não, aqui você pega um milho
na roça, rala, faz um cuscuz, um beiju, você pega uma abóbora, você
cozinha, pode tomar no leite e lá não, lá ninguém cria isso. Lá era muito
difícil as coisas, não trabalhava e não comia (Mariana, Sangradouro
Grande, 2014).

A despeito da importância das plantas da roça, dos quintais e dos paus nativos para
aquilo que compõe o sistema produtivo dos quilombolas ribeirinhos, seus significados e
importância vão muito além do puramente econômico. Além de serem meios de geração de
renda para aqueles que as cultivam, existem conexões simbólicas e afetivas entre os
quilombolas ribeirinhos e as plantas. A convivência, de que falam meus interlocutores, não
se limita as relações tecidas somente entre as pessoas, pois, ao falarem sobre as plantas, os
quilombolas ribeirinhos reiteram que elas são da “convivência nossa”, de “convivência das
famílias” que vivem ali. É sobre esta convivência que se trata a discussão presente na
próxima seção.

5.2. “Isso é um amor de coisa, viu!”

183
Em se tratando de relações outras com as plantas, pude observar como os afetos com
estes seres estão presentes na vida dos quilombolas ribeirinhos. Certo dia, em uma das
caminhadas que fiz com Seu Santo, dessa vez nas ilhas do Barreirinho e de Pedro Preto,
passamos ao lado das vazantes onde alguns moradores estavam plantando abóbora, feijão,
batata e outros mantimentos. Ao passarmos por ali, Seu Santo interrompeu a nossa conversa
para falar, demonstrando sua empolgação, que havia visto “uma coisa maravilhosa”. Antes
que eu pudesse perguntar algo, ele imediatamente explicou que se tratava de um pé de batata
rainha, dizendo ainda que tinha ficado muito alegre de ver este pé de batata doce, pois é
“uma batata muito boa” e havia tempo que ele não a encontrava pela beira do rio; por essa
razão, estava “doido para arranjar a semente dela”. Ao avistá-la, incialmente o vazanteiro
hesitou em pular a cerca de arame farpado que cercava a roça de Seu Nelson, algo que acabou
fazendo cuidadosamente logo em seguida, para pegar um galho, ainda que sem a autorização
do dono da roça. Em seu encontro com a batata, me disse: “isso é um amor de coisa, viu!”
Junto com o galho de batata rainha, pegou também um galho de batata abóbora, explicando
que eram duas qualidades diferentes, sendo a de folha “graúda” e larga a batata abóbora,
enquanto a batata rainha possuía a folha “repicadinha”. Contente, Seu Santo afirmou que
plantaria os galhos recolhidos, mas que voltaria para pegar as sementes da batata rainha com
Seu Nelson. Alguns meses depois pude observar os pés plantados e crescendo em seu
terreno.
Da mesma forma que me foi possível perceber a alegria de Seu Santo ao encontrar o
pé de batata rainha, também foi possível ver a satisfação de outros moradores, tanto nos
seus encontros com algumas qualidades como quando narram estórias sobre os usos e
importância das plantas, folhas, frutos, raízes e as cascas dos pés. O conhecimento das
plantas, técnicas de plantio e dos seus usos, advindos da experiência cotidiana de conviver
com os pés, é motivo de orgulho para os quilombolas ribeirinhos. Isso pode ser observado
nas diversas conversas e caminhadas pela mata em que acompanhei meus companheiros de
pesquisa. Em outra ocasião, Seu Santo, ao me apresentar os pés do seu terreno, parou um
instante para dizer e mostrar algo do qual ele disse estar muito orgulhoso e emprazeirado.
Tratava-se de um pé de jenipapo, que ainda era pequeno quando os moradores retomaram o
território, mas que agora já estava grande. O pé de jenipapo, disse ele, “para nós está sendo
um grande orgulho”. Estes dois momentos com Seu Santo me permitiram perceber os afetos
e as estórias impressas, seja em uma qualidade de planta, seja em um pé específico.

184
Figura 35 - Seu Santo com galhos de batata rainha e batata abóbora nas mãos
Fotografia: Izadora Acypreste, 2017.

Pensar estes afetos entre pessoas e plantas em um contexto rural apresenta seus
desafios, uma vez que pouca ou quase nenhuma atenção foi dada a este tema nos estudos
antropológicos clássicos ou contemporâneos75. Entre os estudos clássicos (CANDIDO,
1964; QUEIROZ, 1976; VELHO, 1976; MOURA, 1978; MARTINS, 1979; HEREDIA,
1979; WOORTMANN, 1990; WOORTMANN, 1995; WOORTMANN e WOORTMANN,
1997; BRANDÃO, 1981), quando, e se aparecia, o mundo vegetal servia apenas à descrição
das formas produtivas e de subsistência camponesa. Entre estes, a exceção talvez seja
Brandão (1994) que, ao tratar da relação entre “homem-natureza”, propõe que “busquemos
a inteligência da vida à nossa volta” e que “saibamos a ousadia amorosa de partir do suposto
de que ao nosso redor provavelmente existem outros campos de sentido e significado
dispostos ao dom, à troca, à comunicação desde que nos façamos sensíveis a eles”
(BRANDÃO, 1994, p. 79). Com isso, o autor faz um chamado para que fiquemos atentos
aos ouvidos, olhares, vozes e consciências – não menos importantes por não serem humanos
– “dispostos a estabelecer e a continuar conosco, para muito além de nós mesmos, outras

75
O que caracterizo como universo rural aqui inclui uma diversidade de contextos sociais agrupados pela
produção antropológica designada como estudos do campesinato, estudos rurais e, mais recentemente, como
etnografias de povos e comunidades tradicionais. Sobre as mudanças em torno da nominação destas categorias
de estudo, Almeida (2007) realiza uma interessante análise.

185
múltiplas e inesperadas aventuras de reciprocidade entre sujeitos, entre subjetividades”
(BRANDÃO, 1994, p. 79). É possível dizer que, através dessa proposição e a partir dos
estudos rurais, o autor contribuiu para um novo olhar sobre o camponês, não apenas como
um “humano-ser-moral” (tal como difundido na literatura do campesinato até então), mas
também como um “humano-ser-da-vida”, enredado por outras relações além de apenas
humanas.
Enquanto os estudos rurais seguiam sua trajetória de reflexão específica, baseada nos
problemas etnográficos e teóricos a respeito dos mundos rurais, outras análises, baseadas em
outros contextos etnográficos, já levantavam questões mais profundas sobre as relações entre
as sociedades e a “natureza”. Este é o caso, por exemplo, da Suma Etnológica Brasileira I –
Etnobiologia, publicada em 1997. Como observou Oliveira (2006), o conjunto de artigos
presentes na obra “anuncia um terreno fértil” para futuras discussões sobre “o chamado
conhecimento tradicional”, uma vez que demonstra “o valor do saber local dessas
populações indígenas a respeito do meio ambiente no qual estão inseridas” (OLIVEIRA,
2006, p. 45).
De alguma maneira, o surgimento destes estudos sobre os chamados conhecimentos
tradicionais coincide com a “crise do paradigma de um campesinato englobante”
(ALMEIDA, 2007, p. 173). A antiga busca por “soluções globais” para o mundo camponês,
diante de uma modernização homogeneizante, abre espaço para “uma sede inesgotável de
respostas locais” (ALMEIDA, 2007, p. 175). O foco então, conforme argumenta Almeida
(2007), passa a ser em “comunidades locais” e as formas como vivem em suas paisagens
específicas. Atualmente, orientando-se por um conjunto de reflexões em distintos contextos
etnográficos, cujas propostas são olhar para além do humano (DESCOLA e PALSSÓN,
1996; LATOUR, 1994; HARAWAY, 2003; STRATHERN, 2014; INGOLD, 1994; TSING,
2015; entre outros tantos), é possível agora, com um aporte teórico mais aprofundado,
dedicar a atenção a estes ouvidos, olhares, vozes e consciências de que falava Brandão
(1994). Isto é, as agências não humanas, seja dos animais (KOHN, 2013; VANDER
VELDEN, 2012, 2015, 2018 e 2019; entre outros), das plantas (MYERS, 2015; RIVAL,
2015; OLIVEIRA, 2006 e 2012a; LIMA, 2016; SCARAMUZZI, 2016; SHIRATORI, 2018
e MILLER, 2019) ou de outros mais-que-humanos, outros-que-humanos ou não humanos
(HELMREICH, 2009; INGOLD, 2012; DE LA CADENA, 2015; STRANG, 2015;
KRAUSE, 2016).

186
Assim, o que chamo de afeto aqui são as relações com as plantas, e também com os
bichos, que não se limitam apenas ao seu aspecto utilitário ou produtivo, isto é, os usos e
conhecimentos associados as plantas somente com fins da garantia da alimentação, da troca
e da renda. Ainda que a afetividade também esteja presente na relação com as plantas da
roça, a ideia é justamente mostrar como ela é importante e não se desassocia do trabalho
cotidiano daqueles que labutam com a terra, com as plantas e os bichos para garantirem sua
sobrevivência. Como pude notar, para os quilombolas ribeirinhos, conviver com as plantas
envolve sempre uma observação atenta, uma sensibilidade aguçada e um engajamento
corporal constante com o mundo vegetal. Tal afeto também foi notado por Brandão (1999)
ao conversar com um morador de São Luís do Paraitinga, ocasião em que este explicava ao
pesquisador que gostava de plantar pois tinha um grande afeto pela terra e, por essa razão,
era amoroso com ela. Nesse sentido, Tsing (2019), ao fazer uma comparação entre os modos
de fazer “ciência das plantations” e os estudos dos “ambientes hospitaleiros
multiespecíficos”, também chama a atenção para o amor multiespecífico presente nestes
últimos, uma vez que, para realizá-los, é necessária uma “imersão apaixonada nas vidas dos
não humanos que estão sendo estudados”.
Portanto, para descrever os modos quilombolas de se relacionarem com as plantas é
interessante, primeiro, apresentar a diferenciação que eles mesmos fazem entre seus modos
e o sistema dos fazendeiros, que são aqueles com quem eles disputam não apenas a terra,
mas também as formas de engajamento com os seres que vivem na beira do rio. Sendo este
engajamento, precisamente, o que configura estas terras em que vivem em seus territórios.
Na narrativa abaixo, feita por Seu Saulo, vemos como as relações com os pés vão muito
além do seu aspecto puramente econômico.

Só quem planta é a gente mesmo, que trabalha e mexe com roça. Os


fazendeiros mesmo só querem desmatar aquilo, destruir e plantar capim, o
negócio deles é capim. Eles não plantam um pé de fruta, um pé de manga,
não planta um pé de limão pra fazer um suco, nem nada, nem um pé de
laranja, eles não plantam nada. O negócio deles é meter o trator e
desagradar aquilo ali, derrubar aquilo ali e plantar capim. É o que eles tão
fazendo, é isso. E nós não, nós viemos pro lugar, que nem aqui, nós
estamos morando aqui, a primeira coisa que nós chegar aqui e vem morar
num lugar desse aqui, nós plantamos um pé de capim-santo, um pé de
pinha, um pé de banana, uma touceirinha de cana pra mod’e se ter aquela
cana pra dar garapa a um filho, um neto que chegar. E eles não, só planta
negócio de capim, essas coisas pra criar gado (Seu Saulo, Croatá, 2018).

187
Como disse Seu Saulo, o “negócio de plantar capim” desagrada a terra, algo que os
quilombolas ribeirinhos evitam fazer. Além disso, meu interlocutor aponta a importância das
plantas não apenas para a alimentação, mas também para a garantia de uma vida saudável,
uma vez que elas nutrem não penas pessoas, mas também relações. Isto porque os pés
também são plantados para “mod’e se ter” o que dar aos filhos e netos, uma demonstração
de afeto e cuidado. Neste caso, podemos pensar a noção de criação através, não da
domesticação, mas do cultivo de pessoas e relações, algo que apenas o olhar através das
plantas nos permite fazer. Isto porque, o que importa para meus interlocutores não é apenas
o controle sobre as ações dos outros – humanos e não humanos –, mas a diversidade em que
existem e a beleza de como crescem e prosperam. Algo que fica evidente quando comparam
seus modelos de relação com as plantas com as formas extremamente simplificadas dos
fazendeiros, que, como se comenta, só plantam capim.
Muitas descrições feitas a mim pelos quilombolas ribeirinhos se referem também aos
usos das plantas como remédio. Como disse certa vez Amelinha, na beira do rio tem muitos
remédios bons e o “povo não usa coisa de farmácia para essas coisas”. Certa vez participei
de um almoço oferecido por Enedina, em que estavam presentes alguns integrantes da sua
família e também outros moradores de Croatá. Após a refeição, nos sentamos em baixo do
pé de juá para descansar o corpo pesado pelo almoço. Ali, as pessoas começaram a lembrar
e contar, regadas por muitas risadas, diversas estórias relacionadas aos usos das variedades
de pés:

Seu Santo: fui criado na roça chupando um pedaço de melancia que pai
plantava, pedaço de rapadura, a farinha. Pegava o jatobá, punha dentro
d’água de molho, de hoje para amanhã. Amanhã punha rapadura,
trabalhava o dia todo sem fome. Jacuba se dá o nome, uma coisa daqui do
campo. É só tratar do pé de jatobá e colher, sem cortar. Tem outra coisa
também que é o vinho de jatobá. Não é derrubado. Abre um buraquinho
com traçado, no passado era na mão mesmo, no machado, fazia um
coxinho e coloca uma cuia para aparar e ia tirando, só coava para tomar.
Medicinal!
Seu Arnaldo: a casca faz o mesmo efeito, cozinha e toma, para diabete,
para mulher, para pressão. Minha mãe fazia muito. Fazia para nós.
Seu Santo: tem também o junco, que é uma raizinha que dá nas vargens,
pra febre. Tem o caboclo.
Rosa: tem a pustemeira.
Seu Arnaldo: tem o açoita cavalo, a rama de batata. Os remédios eram tudo
daqui. E o sabonete, que ainda tem, tirava a entrecasca dele para lavar a
feridinha.
Santo: (mostra o fruto do tamboril) aqui ó, pra muita gente não vale nada,
mas isso aqui ó, é um remédio. É tão forte que se a criação comer a folha
(fruto) gado perde a cria. Ele envolve a criação, ela aborta. Isso aqui junto

188
com a rosca (rosqueira) põe para ferver é um remedião, coisas daqui da
natureza, que a gente conhece.
Seu Arnaldo: xampu, casca de juá.
Dôra: lá em casa mesmo eu tenho mutamba. Bom para caspa e para
seborreia, meu marido tem seborreia, usa casca de juá.
(Caderno de Campo projeto DS São Francisco, 2017, p. 22, grifos
adicionados)

Neste dia, e também em outros, pude recolher muitas descrições sobre os remédios
utilizados pelos moradores a partir dos pés nativos. Além das narrativas, outros aspectos
também puderam ser facilmente observados e indicam que os pés, além de terem sua
validade, permitem aos moradores, de diversas formas, viverem bem no lugar. Enedina, por
exemplo, ao falar de sua mãe que tem “problema de pressão e colesterol”, apontou orgulhosa
para o canteiro do terreno dela e disse: “olha a farmacinha dela para lá”. Não tomarei o
tempo do leitor descrevendo a importância e os usos de cada pé, raiz, casca, folha ou fruto,
contudo, as descrições dos quilombolas a respeito destes usos me fizeram compreender a
importância do mundo vegetal em seu papel nutritivo, não apenas no sentido da alimentação,
mas também por estabelecerem com elas relações de afeto, por apreciarem sua beleza e por
serem elas fontes importantes para a produção de um corpo forte, saudável e seguro através
de sua utilização como remédio. Além desta observação, acredito ser relevante uma
descrição, mesmo que breve, de algumas formas com que os quilombolas narram e
descrevem tais plantas, suas propriedades, utilidades e conexões.
Seja quando topamos com as plantas nos caminhos do mato e das roças, ou quando
os moradores, sentados na sombra de alguma grande árvore, falam sobre elas, além de seus
usos ouvia também sobre suas características, como a cor, a textura, o odor e o sabor de suas
folhas, cascas, troncos, raízes e frutos.76 Certa vez, na brincadeira, pediram para que eu
cheirasse o lagadiço preto para ver “o cheiro bom que ele tem”, planta que, na verdade “tem
cheiro de bode e fede para dedéu”. Como se não bastasse o mau cheiro, os espinhos dele são
“cheios de perninhas” e quando “você passa perto dele, ele encosta em você e rasga”. Já a
outra qualidade de lagadiço, o branco, pode ser facilmente confundido com o calumbi mas,
prestando atenção no espinho desta última, que não é tão comprido, há de se perceber a
diferença entre as duas plantas. De outra vez, me explicaram sobre as duas qualidades do
pau jaú, o branco e o roxo, que, embora sejam muito parecidos, podem ser diferenciados
pela flor, sendo a flor do roxo mais “compridinha, um fiapinho comprido”. Ainda em outro

76
Algumas destas plantas foram fotografadas e estão apresentadas e identificadas no Anexo I.

189
momento, quando ouvi falar da serigueira, descobri que os passarinhos não comem seus
frutos, mas os peixes os adoram.77 Além disso, é uma arvore cheirosa, mas que “amarga
igual fel”. Outra árvore cheirosa é a maçanzeira (oiti-de-ema), principalmente na época de
dar seu fruto, uma espécie de “maçãzinha”.
A caracterização e identificação das plantas também estão conectadas com outros
conhecimentos relativos ao comportamento dos bichos. Como vimos, peixes adoram o fruto
da serigueira. Outro vivente, que existia na beira do rio e que os quilombolas disseram estar
hoje em extinção, o Luís Cacheiro, também conhecido como ouriço, comia muito da folha
do sabonete. Muitas outras árvores, suas folhas e frutos, servem como alimentos para o gado,
para os porcos e para as pessoas. Algumas delas, de uso não muito frequente, passam a ser
utilizadas em períodos de maior escassez. Como eles dizem, algumas dessas plantas acabam
tendo “muita serventia” para alimentar os bichos. Além de servirem como alimento, os
quilombolas também conhecem aquelas que podem ser usadas para o tratamento dos
animais, como as que ajudam a acabar com a pichilinga das galinhas, com as bicheiras das
criações ou as pulgas e carrapatos dos cachorros. Há também as plantas perigosas para
alguns animais, principalmente para o gado, que podem se intoxicar ao se alimentarem de
suas folhas e frutos.
Esta relação entre plantas e animais também foi observada por Scaramuzzi (2016) ao
estudar a atividade de coleta e o conhecimento dos castanheiros quilombolas no rio
Trombetas. Para aqueles que vivem da atividade de coleta da castanha, alguns animais, como
a cutia e as abelhas, também são responsáveis pela produção da paisagem, uma vez que a
cutia dispersa as sementes da castanheira e as abelhas transformam a flor da árvore em fruto.
Embora na beira do rio não tenha ouvido nenhuma afirmação sobre a importância dos
animais para a produção e reprodução das plantas, a forma como os quilombolas pensam as
diversas espécies que ali vivem também mostra como a paisagem se constitui por um
complexo de relações não apenas entre animais, plantas e humanos, mas também entre estes
e as águas, o clima e os astros.
Outras plantas “que as pessoas não dão valor para nada”, mas que os quilombolas
prestam bastante atenção, são aquelas com muita validade para a construção das casas, para
a produção de cordas, redes e para a regeneração da própria mata. Entre estas, a espada de
São Jorge era usada nos tempos antigos para fazer rede de pesca. Para utilizá-las, as folhas

77
É possível que se trate da falsa-seringueira (Ficus elástica) e não da seringueira (Hevea brasiliensis).

190
da planta eram colocadas para pubar, para depois serem socadas, momento quando se retira
suas fibras. Estas fibras, usadas na fabricação de cordas, também costumavam ser retiradas
do croatá (também chamado coroá). Por serem fortes, serviam para pescar surubim e para
confeccionar cabrestos. Outra “coisa interessante também”, “coisa que a natureza faz” e que
“é muito importante”, é o cipó de lagartixa. Por ser bastante forte, além de ser muito usado
para a construção das casas de taipa, servindo para amarrar as varas nos paus, também me
foi apresentada como sendo uma variedade importante, que serve como indicativo da
regeneração da mata. Sua presença nas áreas que estão encapoeirando indica que a mata
está se refazendo. Com suas garras, ao encontrar um pau grande para se segurar, o cipó vai
crescendo e se alastrando rapidamente.
Estes conhecimentos sobre as plantas também são importantes na lida cotidiana com
as variedades da roça, dos terrenos e canteiros. A primeira delas é a identificação das plantas
enquanto machos e fêmeas, algo que só pode ser confirmado na medida em que se
acompanha o crescimento da planta. A primeira vez que ouvi sobre a diferenciação de gênero
das plantas foi quando ajudava Dona Olívia a cavar algumas covas no seu terreno para o
plantio de mudas de algumas frutíferas que acabara de buscar na casa de sua prima Amelinha.
Enquanto fazíamos os buracos no chão, ela olhou para um pé de acerola que já estava
crescido e disse que se tratava de um pé macho, pois os outros pés de acerola de seu terreno,
menores que aquele, já estavam dando frutos. Da mesma forma, Seu Arnaldo me explicou,
em outro momento, que os pés de mamão quando “saem macho” não frutificam, “dá aquele
cordão e, daquele cordão, tem hora que sai um mamão que presta, mas sai miudinho”.
A solução para evitar a planta macho é “fazer simpatia”. No caso do mamão é preciso
capar a planta, cortando o olho dela. O olho é a forma como identificam a parte superior da
planta. A abóbora, o tomate e a melancia também precisam ter os seus olhos cortados quando
começam a enramar muito e param de produzir. Com o corte, elas voltam a crescer e
frutificar. Outras árvores frutíferas também precisam destes cuidados, sendo a simpatia,
nestes casos, a retirada das galhas que ficam na parte inferior do pé.
Embora as plantas tenham suas capacidades próprias de produzirem seus frutos, estas
simpatias e ajudas humanas permitem as plantas gerarem alimentos de maior qualidade e
em maior quantidade. Este é o caso, por exemplo, do feijão de arranque e do amendoim.
Como me explicaram Seu Arnaldo e Enedina, “se você não trabalhar com eles chegando
terra, não rende”. Segundo estes plantadores de vazante, é engano acreditar que é necessário
apenas plantar e depois voltar para colher. Se for assim, “chega lá” para colher o feijão e

191
“não dá uma bage”. O modo certo, no caso do feijão, é plantar e “na hora que ele sair as três
folhinhas, que está começando sair as quatros, você chega terra”. Tem que adubar, tem que
chegar terra, enfatizaram os dois. Quando ele “envassoura tudinho”, quando fica todo cheio
de ramas, é preciso novamente chegar terra até que ele comece a “florar”. Nesse momento,
é preciso “tornar a chegar terra”. Caso contrário, o feijão “não dá”. “Quanto mais você
chegar terra nele, mais ele dá fruto”. Esta é a simpatia.
Outras variedades também recebem estas ajudas. Na rama do pé de melancia, por
exemplo, podem brotar até cinco frutos; porém, estes cinco não serão de qualidade. Sabendo
disso, os donos das roças costumam cortar a metade dos frutos que estão nascendo para que
os outros possam crescer com mais vitalidade. No caso das bananeiras, Seu Arnaldo explicou
que

você planta um pé, aí ela sai três mudas, fora aquela que está plantada. Aí
você mata duas e deixa uma. Aí outro pé torna a sair de novo, sai três, você
mata duas e deixa uma. Aí aqueles cachos dão banana grande. Se você
deixar aqueles três saírem, vai para quatro, aí aquele pé a tendência dele é
puxar a coisa da banana, aí ela dá umas bananas raquiticazinhas. E vai
dando. Aí ali vai saindo mais, saindo as filhas das outras, aí daqui a pouco
está aquele bolão lá e as bananas ... cacho que é bom, não dá (Seu Arnaldo,
Croatá, 2017).78

Depois de explanar sobre o trabalho com as bananeiras, Enedina em seguida reiterou


que “tem uma ciência” no modo de se relacionar com o mundo vegetal. Simpatia ou ciência,
as formas com que os quilombolas ribeirinhos observam, identificam, nomeiam, classificam
e ajudam, isto é, convivem com as plantas da mata, dos roçados e dos terrenos, nos permitem
refletir sobre estes engajamentos cotidianos entre vegetais, pessoas e também animais. A
este respeito, Lévi-Strauss (2012) já havia demonstrado, através de vários exemplos
etnográficos, que complexos e detalhados sistemas de classificação dos elementos da fauna
e da flora são comuns a todas as sociedades humanas, consituindo-se em uma forma de
produzir conhecimento sobre o mundo. Segundo o autor, estas classificações, produzidas
através do agrupamento sistemático e informado dos seres do mundo natural, introduzem
“um princípio de ordem ao universo” (LÉVI-STRAUSS, 2012, p. 25), superando o caos
inicial. O conhecimento produzido por estes coletivos se distingue do conhecimento
científico – ou abstrato –, pois ele é um conhecimento concreto, obtido através do

78
Como explica Seu Arnaldo sobre as filhas da bananeira, o parentesco entre as plantas cultivadas e entre
plantas e pessoas também aparecem, com mais profundidade, em outras discussões etnográficas sobre o mundo
vegetal (como OLIVEIRA, 2006, 2012; MAIZZA, 2012; LIMA, 2016; e MILLER, 2019).

192
engajamento sensível com a natureza, pois considera as características sensíveis – cheiros,
gostos, cores, texturas – dos objetos e seres. Nas palavras de Oliveira (2016), enquanto o
pensamento científico

opera com conceitos cada vez mais apartados de seus referentes, a ciência
do concreto lida com signos – elementos a meio caminho entre o conceito
e a imagem (talvez o melhor seria dizer entre o conceito e o percepto, uma
vez que o código visual é apenas um dos operadores em jogo) (OLIVEIRA,
2016, p. 146).

Ao estudar os saberes sobre as plantas dos Wajãpi, grupo Tupi-Guarani localizado


no estado do Amapá, Oliveira (2012a) apresenta, por exemplo, como este povo indígena
classifica as árvores através da divisão categorial que caracteriza sua dureza. Como observa
a autora, o aprendizado sobre estas categorias acontece na prática, quando desferem golpes
de machado nos troncos das árvores da floresta para abrirem uma nova roça. Em diálogo
com Ingold (2000), que propõe a dissolução das fronteiras construídas pelo pensamento
ocidental entre corpo/mente e sujeito/ambiente, Oliveira (2012a) reforça que a classificação
Wajãpi de determinadas árvores enquanto duras se constitui a partir da relação corporal
direta.
Tal como observou Oliveira (2012a), em campo pude acompanhar situações em que,
para que a identificação de determinadas plantas fosse correta, era necessário um
engajamento corporal direto. Certa vez, quando andava com Kristina pelo seu terreno,
passamos por uma planta que crescia por ali. Ao avistá-la, a dona do terreno se perguntou
sobre que pé era aquele. Sem ter clareza, Kristina retirou uma folha, amassou com os dedos
para, em seguida, cheirá-la. Após experimentar a planta através da textura e cheiro, afirmou
se tratar de um pé de acerola, em uma demonstração clara da ciência do concreto
lévistraussiana.
Ainda que não seja o meu objetivo discutir de maneira profunda sobre os modos
quilombolas de classificação das plantas, alguns aspectos mais correntes sobre este modo de
organizar o conhecimento dos viventes devem ser apresentados. De uma maneira geral, os
termos pé de fruta, pé de planta, pé de árvore e pé de pau são utilizados pelas pessoas do
lugar para classificarem o conjunto de plantas com os quais convivem em sua região. Como
aparece na descrição de Amelinha abaixo.

É porque tem a planta que é a fruta e tem a planta que é medicinal. Aquela
plantinha, você está vendo aquela plantinha bem redondinha lá? Aquele ali

193
é o famoso manjericão, que o povo põe em comida, é bom para a digestão,
é bom para fazer chá e tomar. Aí tem a manjerona que o povo fala, que é
aquela da folha maior que o povo põe em carne, nas conservas. Aí tem
aquele que é o capim-santo. Esses são plantas e os outros são plantas, mas
são comestíveis, árvores. Pau é que a gente fala assim: tem aquele pé –
mas cada um tem seu nome – esse daí é moreira. O leite dele, daquele pau
ali, se você coça, se você estiver com um dente doendo, você coloca dentro
que ela quebra, quebra que arranca até a raiz. Então a gente fala assim: é
um pé de árvore, aquele pé de árvore lá. É uma árvore, mas cada árvore
tem um nome. Aí tem aquele outro ali que já chama canafista, aquele ali é
pé de pau jaú. Aquele ali o chá dele é ótimo, a casca dele é para cicatrizar
ferida, essas coisas. Então cada árvore dessas tem um nome. Aí tem aquele
ali que é o pé de juá, juá de boi, que a folha dele tem muita gente que passa
nos dentes. Você vê que, é tanto que a pasta de juá é o melhor creme dental
que tem para escovar. A casca dele também, você colocando de molho para
tomar, diz que cura até câncer. O juazeiro, o juá de boi o povo fala, porque
boi come muito a frutinha dele. Aí tem aquele ali na cerca que é o pé de
pinhão, esse aí a gente usava antigamente para ... a gente tirava a casca
dele, torrava ele e tirava aquela coisinha de dentro, pisava junto com a
mamona para fazer sabão, as vezes tirava a mamona, separava e fazia
azeite, pisava ele junto com tingui para fazer sabão (Amelinha,
Sangradouro Grande, 2017).

No depoimento acima, Amelinha responde a um dos meus questionamentos sobre o


modo como diferenciam um pé de outro. O que me parece interessante em sua resposta é
que esta diferenciação também está relacionada aos conhecimentos sobre os usos de cada pé
e suas conexões também com os bichos, com usos que fazem os animais. O que Amelinha
diz sobre estas classificações, bem como as descrições apresentadas ao longo desta seção,
reforçam a ideia de que a identificação, nomeação e classificação das plantas não se
desassocia dos conhecimentos sobre as formas de uso, importância e conexões associadas a
elas. Sobre as plantas cultivadas nos terrenos e canteiros, por exemplo, os termos mais
usuais para a identificação das variedades são: tempero, remédio e mantimento. Sendo
tempero aqueles utilizados na cozinha, como os temperos verde e as pimentas. Os remédios,
ainda que possam também ser coletados no mato, se referem aos que são cultivados nos
canteiros, tal como erva-cidreira, camomila, hortelã e outros usado para se fazer chás. Todos
aqueles plantados nas roças são considerados mantimento, seja porque são fonte de alimento
para os quilombolas, seja porque são fonte de renda através do recurso adquirido com sua
venda.
Ainda que não seja possível explorar todos as formas de uso e importância das plantas
com as quais os quilombolas convivem na beira do rio, espero que os exemplos apresentados
neste capítulo permitam a compreensão sobre estes engajamentos cotidianos. Como declarou
Oliveira (2012a), em relação ao contexto Wajãpi, as formas de classificação do mundo
194
vegetal permitem percorrer “conexões inesperadas: aspectos cosmológicos, características
utilitárias, relações entre plantas e animais, cadeias sensíveis, constituição de pajés etc (...)
uma diversidade de domínios” (OLIVEIRA, 2012a, p. 85).
Longe de intentar descrever, ou mesmo compreender profundamente os modos de
classificação nativos, busquei me direcionar mais especificamente para estas “conexões
inesperadas” de que fala Oliveira (2012a), isto é, as relações afetivas com as plantas, sua
importância para o cultivo de pessoas e relações, bem como sua importância na produção de
um corpo forte, saudável e seguro. Independente do nome atribuído, simpatia ou ciência,
afetos ou conhecimentos, como vimos, se produzem a partir do engajamento sensível com
as plantas na paisagem da beira do rio.

5.3. Entre a terra e o céu: os fluidos e as forças da vida

Há mais coisas no céu e terra, Horácio,


do que foram sonhadas na sua filosofia
(Willian Shakespeare)

Como observei brevemente na seção anterior, existe uma importância nutritiva em


torno das plantas. Não me refiro, neste caso, somente ao uso das plantas, raízes, sementes e
frutos para a produção de alimentos e/ou que servem de alimentos para pessoas e bichos.
Assim como a noção de criação é mencionada pelos quilombolas ribeirinhos como algo
importante para a constituição de pessoas boas, fortes e saudáveis, como quando dizem que
“de primeiro o povo era criado dentro da roça”, penso a noção de nutrição como outra
categoria – neste caso mais analítica – que também pode ser interessante para compreender
a constituição de pessoas e relações na beira do rio. Para avançar nessa reflexão, buscarei
descrever nesta seção como os modos de relação com os seres vegetais também se conectam
com os conhecimentos sobre a qualidade da terra e a importância da lua. Além disso, é
importante destacar que, no entremeio céu e terra, muitas coisas podem existir e circular. A
lua, que “governa tudo”, é uma delas e faz correr forças e fluidos nos corpos das pessoas e
plantas, como a seiva das árvores, o sangue e também os perigos da vida. Todos estes
elementos, juntos, nos permitem vislumbrar como os habitantes da beira do rio se constituem
cotidianamente por meio de relações com o céu, a terra, as águas e os seres vegetais.

195
Não é novidade, como demonstram algumas etnografias sobre o universo rural, a
constatação de que os habitantes destes mundos possuem um profundo conhecimento
relativo aos seres que com quem compartilham a vida. A classificação das plantas, como
aparece em materiais etnográficos sobre o campesinato em diversas regiões do país,
demonstrados por Woortmann (2009) e Woortmann e Woortmann (1997), obedece a
princípios de oposição que estão relacionados a elementos como o solo e a fenômenos como
a temperatura. Segundo estas etnografias, existe uma distinção básica das plantas, que “são
classificadas em ‘quentes’, ‘frias’, ‘fracas’ e ‘fortes’” (WOORTMANN, 2009, p. 121).
Como pude notar a partir da pesquisa etnográfica, esta mesma distinção é feita pelos
quilombolas ribeirinhos em relação à qualidade da terra e da lua, que são distinguidas
principalmente entre fracas e fortes.
Pude notar esta distinção pela primeira vez quando caminhava com Ramiro pelo
lagadiço. Portando um facão para cortar os galhos que atrapalhavam eventualmente nossa
passagem, Ramiro bateu com o objeto em uma árvore e disse que aquele pé de pau era ruim,
era pau oco, pois aquela terra era fraca. Em terra fraca, segundo Ramiro, não nasce “planta
boa”, planta que “nasce verdinha”, que cresce, “vai para frente” e “serve de mantimento”.
Também explicou que ali era terra “mais de arroz”, de feijão de arranque, mas que para
milho era considerada uma terra fraca.
Segundo os quilombolas ribeirinhos, a terra fraca pode ser encontrada na beira do
rio e na chapada. A diferença entre as duas é que a da beira do rio “se tiver água ela
recupera”, se for “um ano que dá chuva e molha, ela recupera”. Já na chapada, o que se
encontra é uma terra areada e solta, que não tem liga, “fraca mesmo”, “uma terra que sai
uma vegetação no ano chuvoso e, assim que a chuva passa, a tendência é morrer tudo, secar
tudo”. Este tipo de terra fraca é como a areia de praia, que está sempre limpa porque “não
tem substância para segurar a raiz” das plantas.
Quando perguntei a Seu Santo sobre a identificação da qualidade da terra, ele
respondeu dizendo que hoje eles “já têm uma visão” devido a “convivência na terra”. Assim,
disse ele, a qualidade se “decide no planteio”. “Isso aí indica muito para a gente é no
plantar”, reiterou meu interlocutor. Como discute Sanchez (2019b) em sua pesquisa junto
aos Kujubim, povo indígena em Rondônia, qualidade também é o termo utilizado por eles
para identificar a variedade de “bichos-de-pena” e outros animais com os quais convivem.
Segundo o autor, diferente do conceito de espécie, comumente utilizada pelas ciências para
identificar os seres animais e vegetais, qualidade é uma forma de identificar costumes e

196
comportamentos dos seres, identificação que é “fruto das interações e das relações entre os
seres” (SANCHEZ, 2019b, p. 118). Entre os quilombolas, como venho mostrando até o
momento, o termo é utilizado para identificar as terras e os seres do mundo vegetal, mas não
os animais. Outro termo utilizado para a identificação das plantas, por exemplo, é o de raça.
Mas voltando a qualidade da terra, Seu Santo também me esclareceu que a terra que
se constitui por uma areia muito fina ou muito grossa não é boa para plantação, embora, na
comparação entre as duas, a areia fina seja considerada melhor. Quanto mais grossa a areia,
mais fraca é a terra. Para este vazanteiro, “a fortaleza da terra é justamente ela ter uma liga,
porque ela molha, aí ela vai ter resistência na raiz da árvore, e ela quando é muito grossa ela
não tem liga nenhuma”. Para saber onde e o que plantar, disse ele, “é o causo do
conhecimento”, pois existe uma variedade de plantas que nascem e crescem na terra fraca,
como feijão catador, amendoim e melancia. Além destas, uma outra variedade que pode ser
plantada na terra fraca é a mandioca que, embora resista, “sofre muito” neste tipo de solo.
Por outro lado, na terra forte, onde se põe roça, as plantas “evoluem” e têm mais
durabilidade. Apontando para o alto, Seu Carlito disse que as roças fortes eram no pé da
serra, onde a terra é vermelha e dava mamona, algodão, feijão de corda e fava. Isso tudo
porque “a terra ajuda”. Nas áreas de vargem onde mora, ao contrário, para a roça dar “tem
que ser um ano muito bom de chuva e o dono tratar muito bem”, pois ali as terras são fracas.
Considerando que “cada planta tem seu gosto”, esta identificação da qualidade da
terra é muito importante tanto para o cultivo das roças quanto para a observação do
comportamento dos pés da mata. Como me explicaram aqueles com quem conversei,
enquanto algumas plantas gostam da areia fina, outras gostam do cascalho e outras, ainda,
de água. As terras fracas e fortes, a despeito de sua importância para o modo de classificação
dos solos, também estão condicionadas às características das áreas da beira do rio –
vazantes, vargens, capões e altos. Tal como vimos na primeira parte da tese, sobre a
formação das unidades da paisagem, a qualidade da terra faz parte desse conjunto de
conhecimentos que permitem aos quilombolas ribeirinhos identificarem onde cada variedade
de pé costuma e gosta de nascer e onde devem pôr suas roças.
Quando passei a entender a relação entre a qualidade da terra, a formação das áreas
e os locais onde pés nascem, busquei identificar junto aos moradores quais variedades
costumavam nascer nas vazantes, no capão, nas vargens e no cerrado. Estes levantamentos
me permitiram entender sobre a preferências de alguns pés, mas também me levaram a
compreender como eles têm se movido pela beira do rio. Para começar, a maioria dos pés

197
que nascem no capão também nascem nas vazantes. Estes mesmo pés só não nascem na
vargem, pois é lugar onde “quase não nasce nada”, o que nasce “é coisinha pouca, de
reboleira, mato mesmo”. O que possui mais influência sobre o fato de um determinado pé
nascer ou não na vazante é o seu gosto pela água, uma vez que são áreas sujeitas a inundação
e muitas árvores não resistem à fundura da água. A ingazeira, por exemplo, morre na
“enchente mais elevada”. Já a canafista é resistente à água, mas somente se “ela não banhar”,
pois “se ela banhar, ela não aguenta”. Atualmente, contudo, devido à falta de enchentes e de
chuvas, estas árvores que não resistem à fundura da água ou não gostam de se banhar têm
se movimentado e crescido nas áreas de vazante, que no passado eram mais frequentemente
banhadas pelas águas. Esses movimentos provocam mudanças na paisagem, considerando
que ela própria se constitui por estas interações entre solos, água, plantas, animais e pessoas.
A falta de chuvas também contribui para ampliação das terras mais fracas, uma vez que são
as chuvas que provocam o melhoramento de sua qualidade. O efeito disso é a falta de terras
para pôr roça e onde se possa plantar variedades que tenham maior durabilidade e que
sirvam de mantimento.
Retomando as noções de fraco e forte, é necessário dizer que este par de oposição
também aparece relacionado às fases da lua. Os ciclos lunares, neste caso, não são
mencionados pelos quilombolas por suas fases cheia, minguante, nova e crescente, mas de
acordo com suas condições de fracas e fortes. Estas condições da lua também possuem uma
estreita relação com as atividades de cultivo, colheita, corte de madeira, abate e castração de
animais, ciclos menstruais, comportamento, força vital e saúde.
“A lua sempre em primeiro lugar”, dizem eles, pois ela resolve muita coisa e regula
muita coisa. Em suma, “a lua governa tudo”. O mesmo foi notado por Woortmann e
Woortmann (1997) entre sitiantes sergipanos, que realizam o plantio “no governo da lua”, e
também por Ribeiro (2006) entre sertanejos do Cerrado-Sertão Mineiro. Conforme
Woortmann e Woortmann (1997), o respeito a este governo, que vem “lá de cima” e está
além do governo dos homens e de Deus, é a condição para que a lavoura seja bem sucedida.
Ribeiro (2006, p. 63) também explica que é através da “repetitiva passagem de uma fase a
outra que ela, distante lá no céu, exerce sua força cá na terra, determinando, aos humanos e
a natureza em geral, o tempo certo de cada coisa”. Em sua influência especificamente sobre
a vida das plantas, de acordo com Woortmann (2009, p. 122), “plantas fortes devem ser
plantadas na lua fraca, e plantas fracas, na lua forte”. Em sua pesquisa, Ribeiro (2006)
apresenta extensas descrições sobre a importante influência dos astros no ciclo anual de

198
produção. Segundo o autor, para os habitantes das localidades rurais das regiões do Norte de
Minas, Jequitinhonha, Noroeste e Triângulo Mineiro,

o princípio básico é a identificação entre lua cheia como ‘forte’ e


auxiliando a ‘força dos alimentos’ e a lua nova como ‘fraca’, responsável
por uma produção ‘fraca’; assim, à medida que a lua cresce, se fortalece, e
ao contrário, ao minguar, enfraquece” (RIBEIRO, 2006, p. 64).

Na narrativa abaixo Seu Santo explica como a lua regula o trabalho de cultivo nas
roças:

Nós temos preferência, o plantio nosso. A lua cheia é bom. Na lua nova o
mantimento nasce bom, mas é fraco. Ele fura rápido e dá caruncho rápido.
Então nós temos preferência de plantar no escuro, para quando vim clarear
o mantimento já nasceu. Aí ele vai nascer bom e vai ser resistente. A lua
aqui para nós resolve um bocado de coisa. A lua governa tudo (Seu Santo,
Croatá, 2017).

Como é possível notar na narrativa de Seu Santo, há também uma oposição entre
claro e escuro que está relacionada à qualidade da lua em suas diferentes fases. O claro e o
escuro, aqui, não têm relação com o dia e a noite, mas sim com a força do astro lunar. O
conhecimento das fases da lua e sua conseguinte classificação são feitos através do
acompanhamento do calendário lunar e também de uma observação minuciosa do céu.
Chamadas de folhinhas, é comum encontrar calendários de papel pregados nas paredes das
casas dos moradores, que são adquiridos em estabelecimentos comerciais da cidade e dos
quais os quilombolas são clientes, sendo normalmente ofertados por estes estabelecimentos
como forma de propaganda do comércio. Embora em muitas destas folhinhas seja possível
encontrar as informações sobre as fases da lua durante os meses, ainda é preciso estar atento
aos sinais do céu para identificar a qualidade da lua. Fora a observação da própria lua, a
claridade e a escuridão das noites são alguns destes indicativos de sua qualidade.
Respondendo aos meus questionamentos sobre estas observações, Seu Santo novamente me
explicou.

Vamos dizer assim: agora a lua está para ser nova, não sei a finalidade, na
folhinha dá para nós vermos que ela está próxima a passar, ela está
próxima, ela já está saindo, talvez duas horas por aí é que ela está saindo.
Então ela vai assim, ela vai mudando, cada dia ela vareia a diferença, você
sabe que ela tem uma diferença de um dia para outro. Aí ela vai, vai, vai
até quando tá escuro, que a lua tá saindo de manhã cedo, aí com três dias
que ela tá saindo dessa maneira vai ter escuro a noite todinha. Aí é o
período da gente cortar uma madeira. Tira, qualquer tempo tira, mas que

199
não vai ter durabilidade. É isso! É o manejo da roça, né? O manejo que a
gente tem da roça. Às vezes a gente até tem um espaço, que as vezes a
gente tá arrochado de serviço, mas a gente prefere de achar aquele espaço
para pegar uma época boa. Fazer o plantio, né!? Faz diferença no plantio,
que às vezes a gente planta numa lua ruim, costuma limpar a roça também,
se for roça, plantar na lua ruim, mas você deixa para limpar ela na lua da
boa. Aí também resolve. A colheita é do mesmo jeito. Eu prefiro fazer a
colheita quando está no escuro, a semente tem mais resistência para você
guardar (Seu Santo, Croatá, 2018).

Seu Santo, como podemos ver, enfatiza que o “manejo da roça” se faz também
considerando este poderoso astro. Nas fases de lua nova, por exemplo, não é apropriado
plantar. Colher milho e outros grãos nessa época também não é considerado algo bom, pois
em poucos dias no paiol os grãos podem dar caruncho79. Considerando que os quilombolas
mantêm os grãos por muitos meses, ao longo do tempo necessário para serem consumidos,
é importante colhê-los na lua boa para garantir a preservação do mantimento. Neste caso,
quando mais escura a lua, melhor. A colheita realizada dois dias antes ou dois dias depois
da lua boa já pode fazer toda a diferença, como me explicou Totinha.

Se você pegar e quebrar o milho com dois dias que a lua é nova, pôr no
paiol, esse milho eu vou deixar pra descascar ele daqui cinco mês, eu tenho
que aguardar e tal, só está o fubá, devido a lua. A lua nova é fraca pra você
plantar roça. Se a lua foi nova hoje, você não planta roça. Com três dias
que ela foi nova, você pode plantar, vai pegar a parte crescente. Se a lua
for nova hoje, você planta. Aquele mantimento nunca que sai bom, ele
nasce tudo acompanhado de inseto, inseto monta nele, bagunça ele
tudinho, quando vai colher o feijão tá tudo cheio de lagartinha. Desse jeito!
Você vê como é que é a coisa. A lua regula tudo. Tem gente que fala: a lua
isso, isso. A lua é assim! (Totinha, Gameleira, 2018).

Outra forma de conferir “se a lua é boa” é fazer um certo experimento. Antes de pôr
uma roça inteira, alguns quilombolas, como o pai de Amelinha, o falecido Manel Barba
Dura, costumava plantar um conjunto pequeno de sementes no formato de uma cruz no meio
da roça. Enquanto estas sementes germinavam e as folhagens começavam a brotar, Manel
Barba Dura seguia observando-as. Neste caso, a vitalidade com que estas plantas iam
crescendo era indicativa da qualidade da lua. Não é regra geral apenas uma lua ser
considerada boa, pois cada fase e sua força pode ser adequada para cada tipo de cultivo.
Como discutiram Woortmann e Woortmann (1997),

79
Caruncho é o nome comum atribuído a uma diversidade de insetos, como pequenos besouros, que colocam
seus ovos e se alimentam dos grãos, cerais e mantimentos, reduzindo-os a pó.

200
Na lavoura, se se deseja uma planta com volume e resistência, planta-se
um pouco antes da cheia. Se se deseja pouca estrutura e maciez, planta-se
poucos dias depois da cheia. Nunca se planta na cheia, devido ao acesso de
força, nem na nova, “pois nesta fase a força transmitida pela Lua é muito
pouca”. Cada plantio tem seu momento exato, tendo a Lua como
referência. Não se planta nos momentos extremos, quando o excesso ou a
falta de força seriam prejudiciais, “empatando” ou “queimando” os
legumes. Alguns produtos são plantados pouco depois da cheia e outros,
pouco depois da nova (WOORTMANN E WOORTMANN, 1997, p. 100).

Sobre estas diversas funções das fases da lua, Ribeiro (2006) reproduz a explicação
de um de seus interlocutores, que explica que “o que dá na terra, é plantado na lua minguante
e o que dá fora da terra é plantado na lua nova”. Segundo o autor, esta narrativa revela que
as fases da lua têm funções diferentes para o que cresce debaixo da terra, como os tubérculos,
e o que cresce em cima, as ramas e folhas. Assim, na fase crescente, cujo plantio é bom para
o crescimento das ramas de mandioca, tem o efeito contrário em suas raízes.
Além do plantio e colheita, outras atividades necessárias para a vida na roça também
levam em consideração a qualidade da lua, como o corte de madeira e a castração dos
animais. A madeira cortada durante o período da lua nova costuma apodrecer com maior
rapidez. Mas, uma vez que se respeite o “governo da lua” e o corte seja realizado no escuro,
a madeira será mais resistente. A razão, como nos esclarecem Woortmann e Woortmann
(1997), é a relação entre a lua e o fluxo da seiva nos troncos das árvores. Isto é, durante o
período escuro, as “veias” da árvore estarão fechadas, o que impede a infestação de cupins.
Embora não seja discutida de maneira profunda, acredito que esta observação dos autores a
respeito da relação entre a lua e os fluxos merece uma atenção maior, pois, tal como afirmam,
a lua não tem influência apenas sobre as marés, mas também sobre outras coisas que
acontecem na terra. Ribeiro (2006) também apontou a necessidade de olharmos para essa
relação entre o satélite e “os líquidos da Terra”. Os quilombolas, por sua vez, não falam da
relação entre a lua e os líquidos ou fluxos, mas sim entre a lua e as forças. Isso faz pensar
que o que podemos entender por fluxos de líquidos, para meus interlocutores se tratam de
forças. Como já vimos na primeira parte da tese, as águas do rio, embora tenham seus
movimentos e agências, também possuem uma força. Mas como ainda veremos, além de se
relacionar apenas às águas do rio, a força está presente em muitos outros aspectos da vida
dos quilombolas ribeirinhos.
A lua, por exemplo, também é levada em consideração no planejamento da castração
das criações. Como disse Seu Santo: “quando a lua é nova, aí passa uns três dias, aí é hora

201
de castrar”. Além dessa, nenhuma outra explicação me foi dada pelo quilombola a respeito
da relação entre a lua e a castração. Dado o meu completo desconhecimento a respeito do
assunto, naquele momento sequer considerei perguntar pelas razões dessa relação. Neste
caso, e considerando outras narrativas quilombolas sobre o astro, me parece ser possível
ponderar sobre a sugestão de Ribeiro (2006) e pensar a conexão entre a lua e os fluxos, ou
forças, que circulam e fazem circular os fluidos da vida, presente nos corpos das plantas,
pessoas e animais. Pensar dessa forma, por exemplo, ajuda a descrever alguns aspectos
menos tangíveis relacionados à lua e ao comportamento das pessoas e animais. Isto porque
a lua também põe em circulação outras forças neste espaço entre o céu e a terra que, por
mais vazio que pareça ser, é na verdade preenchido por agências e intenções – e, claro,
relações – que podem provocar o “olho gordo” de uma pessoa para a outra, o adoecimento
dos corpos e até mesmo a loucura. Assim sendo, daqui em diante a ideia é “flutuar” por um
conjunto de coisas “invisíveis” que circulam entre o céu e a terra e que, no mais das vezes,
podem ser considerados como maus e perigosos.
Como examinou Woortmann (2009), além de seu forte governo para com as plantas
e animais, a lua diz muito sobre a forma como os próprios sitiantes estudados por ela se
veem. O mesmo par de oposição, forte e fraca, atribuída às fases da lua é também usado para
distinguir coletivos humanos, uma vez que os sitiantes diferenciam aqueles que são
considerados como “fracos” e “fortes” ou “pequenos” e “grandes”. Isto é, pessoas com
grande poder aquisitivo ou político com os quais os camponeses se relacionam são
caracterizados enquanto “fortes” e “grandes”, em oposição a eles próprios, que se
consideram “fracos” e “pequenos”. Estas distinções também são utilizadas por meus
interlocutores. Mas longe de se limitar apenas a esta diferenciação, o comportamento das
pessoas, ou a força delas, recebem a influência da lua de diversas outras maneiras. Sobre
estes aspectos, Totinha foi meu principal interlocutor. Na ocasião em que me contava sobre
sua experiência com a picada, ou ofensa de cobra, explicou, que mesmo estando curado,
ainda havia uma reminha do veneno no seu corpo. Por causa disso, nos períodos de lua nova
a dor no local da picada costuma atacar. Além do seu caso, na narrativa abaixo o quilombola
fala sobre os outros modos de influência da lua.

Você vê que Deus já dá o dom tudinho certinho. O homem que é de lua


nova, aqueles que é quietinho é quieto, os que não é, quando é meio pinga
fogo, na lua nova ele fica mais pinga fogo80. A mulher é do mesmo jeito,

80
Pinga fogo é uma expressão usada para identificar pessoas que têm um comportamento menos tolerante, que

202
sabia? Te falo pra você. Do mesmo jeitinho, regula tudo. Aquela mulher,
quando é pinga fogo, na lua nova ela acaba de desgramar mais ainda. O
doido só ataca mais na lua nova. O homem, mulher, é tudo, esses bichos
inocentes, irracionais, pode assuntar pra você ver se não é, presta atenção
pra você ver. Tem uma leitoa, ela nunca entrou no cio, ela vai entrar no cio
é na lua nova, quando não é na nova é na cheia, é assim desse jeito, a lua
regula tudo. E tem bicho quando chega essa época, bicho irracional, tem
vez que você tem que ter medo, você fica com medo. É um cavalo, é vaca,
é cabra, bicho irracional, fica de um jeito que se bobear endoida, crava o
dente na gente, a lua nova. Essas pessoas que é pancada da cabeça (doido),
na lua nova ataca mais, fica meio ruim, conversa sozinho por essas estradas
aí, corre. Tem dias que é perigoso até matar os outros. Cachorro doido só
ataca na nova, cachorro doido não ataca na crescente, só em tempo de lua
nova também, sabia? Desse jeito! A lua nova traz muito problema
(Totinha, Gameleira, 2018).

Não apenas interferindo temporariamente no comportamento das pessoas, a lua pode


influenciar também os partos, indicando a força ou a fraqueza dos bebês e suas mães. Na lua
nova, por exemplo, os bebês costumam nascer com “pouca força”. Neste caso, porque
nascem com maior facilidade, uma vez que as mães não precisam colocar muita força para
dar à luz. Na lua minguante, por outro lado, mães e bebês costumam estar mais fracos. Por
essa razão, é uma lua que traz mais sofrimento para as gestantes, que precisam colocar mais
força “para ter a criança”. Ao mesmo tempo, a criança tende a nascer “mirrada” e sem
aguentar “muita jornada”. A lua cheia também gera sofrimento para a mãe, mas dessa vez
porque os bebês nascem graúdos e fortes, o que acaba dando mais trabalho para a gestante
durante o trabalho de parto. A lua boa, portanto, é a crescente, quando mães e bebês possuem
suficiente força vital.
De outra vez, conversávamos eu e Totinha sobre o trabalho na roça, descobri que não
apenas a lua, mas também outras forças do céu, neste caso as estrelas e as constelações que
elas formam, influenciam na capacidade de cada pessoa em plantar e colher bem de seu
roçado. Meu interlocutor contava sobre um conhecido seu, Armandinho, que tem “a cabeça
boa para coisa de rama”. Impressionado, dizia que seu conhecido havia vendido muito caxixe
para a Gameleira inteira. Ao contrário, dizia que sua própria cabeça não era tão boa para
“plantar e dar bastante”. A razão, explicava ele, é que tinha a “cabeça muito dura”, “sem
muito movimento para plantio de coisa”. Para ele, quem tem a “cabeça mais mole” costuma
ser “mais desenvolvido no plantio”. Por minha vez, interessada no rumo da prosa, perguntei
como aquilo poderia ocorrer. “Não sei, sei não”, foi o que ele respondeu. Logo em seguida

“esquentam”, ficando com a “cabeça quente” ou com o “sangue quente” e, por isso, brigam fácil por qualquer
razão.

203
completou, dizendo que as coisas que planta, principalmente “coisa de rama”, não costumar
dar muito, porém, seu irmão, disse ele: “menina, colhe tanto que você precisa ver”.
Comparando-se com o irmão, a única explicação que meu interlocutor podia encontrar era
em razão do “signo da pessoa”. Na dúvida, perguntei: “pelo quê”? Sem demora, ele repetiu:
“Signo, pode ser também, pelo mês seu”. Em seguida começamos uma demorada conversa
sobre os signos do zodíaco. João, que estava por perto, disse que era de fevereiro. Eu emendei
dizendo que era de outubro. Totinha, então, foi logo dizendo que fevereiro não era ruim, mas
que os melhores talvez fossem dos signos de sagitário e aquário, mas que outros já não são
tão bons e que talvez esse fosse o caso do signo de câncer. Sem saber ao certo, explicou que
costuma acompanhar a sorte da pessoa pelo rádio, quando os locutores falam sobre os signos,
se aquele dia vai ser bom para a pessoa, se vai ter encontro com namorado ou família, entre
outros assuntos. Embora não tenha assunto de roça, Totinha gosta de se orientar pela sorte
narrada no rádio.
Outro aspecto, menos relacionado diretamente à lua ou ao céu, mas que é importante
na ativação das forças que existem nesse espaço entre o céu e a terra, é o sangue. Isto porque
o sangue possui uma conexão direta com a maldade, algo que faz parte da vida na beira do
rio. Esta maldade, por exemplo, se expressa na predisposição de alguns a lançar olho gordo
nas pessoas, suas roças e canteiros.
Estávamos sentados, eu e outros moradores, no quintal de Maria conversando
paralelamente sobre assuntos diversos. Em determinado momento ouvi Enedina reclamar
com Seu Nô, em razão dele estar posicionado muto longe do grupo, e pedindo que ele se
aproximasse. Abaixando a cabeça, Seu Nô disse que estava confortável onde estava e que,
além disso, era muito feio para estar próximo demais dos outros. Seu Manoel logo perguntou
se feiura matava, reiterando que, se feiura matasse, não teria ninguém vivo. Além do mais,
os feios ajudam os bonitos a se sentirem melhores, argumentou Seu Manoel. Em seguida
todos estavam envolvidos no assunto, conversando e tecendo críticas sobre certas noções
gerais de beleza. Seu Manoel continuou sua reflexão dizendo que o que torna alguém bonito
ou feio é o sangue da pessoa. Em suas palavras:

Eu mesmo acho que a beleza da pessoa está você sabe em quê? É no sangue
dele. Porque às vezes a pessoa é feia, mas ele tem o sangue bom para os
outros. Os outros acham ele engraçado, feio, mas acha ele bonito. Agora
tem gente que é bonito, mas o sangue é miserável de ruim. Quando vê, um
fala assim: “que pessoa bonita”. O outro: “moço, esse sangue ruim, você
não está nem sabendo quem é aquela pessoa”. Então eu acho que a beleza
está nisso aí, a pessoa ser boa, uma pessoa delicada, atenciosa com todo

204
mundo. Isso é o que faz a beleza da pessoa. Mas a beleza só para pisar nos
outros... (Seu Manoel, Croatá, 2017).

Por mais prosaica que aquela conversa aparentasse ser, a observação de Seu Manoel
mostra que é preciso uma convivência muito mais profunda com as pessoas para saber sobre
seu sangue e, consequentemente, a maldade ou bondade que elas carregam. A mesma relação
entre sangue e maldade surgiu em outra situação em campo, quando, em visita ao terreno de
João Lucas, também em Croatá, conversávamos enquanto ele me mostrava seus pés de
pimenta. Lamentando-se e olhando para as pimenteiras, meu interlocutor dizia que, se a
visita tivesse acontecido em um momento anterior, eu teria encontrado muito mais pés de
pimenta, além de pimenteiras muito mais viçosas. A razão da perda dos pés e do secamento
das pimentas era que, poucos dias antes, havia recebido a visita de algum conhecido. Logo
após esta visita, observou suas pimenteiras secarem. Cogitando imediatamente a relação
entre a inveja, ou olho gordo e seus efeitos nas plantas, comentei que aquilo poderia ser algo
comum ou corriqueiro de acontecer, bastasse uma pouca inveja e as pimenteiras poderiam
secar ou morrer. No entanto, delicadamente João Lucas disse que deveria discordar da minha
opinião, pois somente um sangue ruim poderia provocar aquele efeito nos pés de pimenta.
Outras autoras já vêm se atentando para a importância do sangue em contextos rurais
de Minas Gerais e do Nordeste brasileiro (GODOI, 2009; CARNEIRO, 2010; MARQUES,
2014; entre outras), destacando principalmente sua importância para a compreensão dos
sistemas de parentesco e das formas de socialidade locais. Dentre estas pesquisas, Vieira
(2015) destaca o quanto os quilombolas de Malhada (BA) apontam para a importância do
sangue nas relações que estabelecem entre si. Para eles, o sangue combina ou não combina.
Assim sendo, Vieira (2015) estabelece um diálogo com Spinoza (2010) e Deleuze (1978) a
partir das noções de afeto e afecção para compreender esta importância dada pelos
quilombolas de Malhada ao sangue. Como explica a autora, “o conceito de afecção define o
efeito ou a maneira como um corpo é afetado por outro exterior” e “nesse esquema filosófico,
um corpo é conhecido pelo conjunto de afecções de que é capaz, ou seja, pela sua capacidade
de ser afetado” (VIEIRA, 2015, p. 61). Assim como a noção de afeto foi providencial para a
autora, parece-me interessante considerá-la aqui também para compreender a relação entre
os corpos e a maldade, as forças e o sangue: isto é, os males e os perigos que são apenas
conhecidos pelos quilombolas ribeirinhos “por seus efeitos sobre as pessoas e coisas”
(VIEIRA, 2015, p. 61).

205
Além do olho gordo, existem outras agências e intenções perigosas no mundo da
beira do rio. É preciso estar sempre atento a elas e aos sinais que elas emitem. Para os
quilombolas, não se “pode duvidar de nada nesse mundo”. Os sinais destes perigos, por
exemplo, podem aparecer em sonhos. João, morador de Gameleira, disse certa vez que
“sonhar com cachorro não presta”, pois significa que vai ter alguma briga. Outro morador,
que ouvia a conversa, confirmou dizendo que sonha com cachorro com frequência. Depois
de ter um destes sonhos, contou da briga que teve com alguém da comunidade. “O cara”,
“afoitado de briga” e que é casado com uma mulher e “assenhora outra”, deu uma pancada
no ombro no meu interlocutor, pois este, em um momento festivo da comunidade, chamou
uma das mulheres “do cara” para dançar. Meu interlocutor não bateu de volta, apenas disse:
“a justiça divina está de pronto”. Confiante de sua postura, explicou que “o pecado está em
todo lugar e o bicho está aí”, por isso é importante orar, vigiar, ser humilde e não ficar com
rancor ou falar mal dos outros. Desejar o mal é ruim e atrapalha, é preciso um “coração
limpo”, pois a “justiça divina é forte”. Tão certo de sua posição, logo contou que “o cara” de
quem apanhou “levou um quedão de moto”, quebrou a clavícula e um dos seus pulmões
parou.81
Depois de contar este caso e outros, Totinha e João entraram em uma discussão sobre
o que pensavam destas agências e intenções visíveis e invisíveis. Comentando sobre as
práticas de proteção, as simpatias e os benzimentos, Totinha disse que “hoje não tem isso
mais não”, pois o “negócio é orar”. Enquanto um enfatizava o poder das simpatias, João,
que é crente, questionou dizendo que elas não são de Deus. A conversa que se seguiu após
esta afirmação foi a seguinte.

Totinha: Eu acredito que do capeta também não é não.


João: De Deus não é não. Idolatria.
Totinha: É nada. E porque ele benze lá e Deus abençoa que ele melhora?
Não precisa levar ele no médico? Você não acha que é a benção de Deus?
João: Você sabia que o capeta tem poder?
Totinha: Mas, mais que Deus não tem.
João: Não tem, mas... Eu assisti um vídeo lá na casa de Laurinda, o capeta
falando “não é pra dar dízimo, eu não gosto, eu boto preguiça em quem
quer ir pra igreja”.
Totinha: Agora eu vou explicar pra você, a maçonaria não acredita em
Deus, acredita no saci mesmo, então, eles fazem a idolatria deles, agora
muitas pessoas que eu já vi benzendo, eles não mexem com idolatria

81
Vander Velden (2012), em sua pesquisa junto ao povo indígena Karitiana de Rondônia, aponta para a conexão
entre os cachorros e suas associações com o mal, uma vez que, no cristianismo, “cão” é uma das designações
comuns para o diabo. Isso, talvez, explica a conexão apresentada pelos quilombolas entre sonhar com cachorro
– “o cão” ou “o bicho” – e possíveis brigas e desentendimentos.

206
nenhuma, foi aquele dom que Deus deu, você vê que não é pra todo mundo,
se fosse pra todo mundo, todos sabiam idolatria, não é não? Tem um
menino rolando aí, tá com mau olhado, eu sei benzer, num instantinho a
pessoa me pede pra benzer, eu corto três raminhos lá, ó, primeiro benzo
meu corpo e peço pra Deus naquele momento, você não vai pedir pro
capeta, por isso que eu falo, não é não? Primeiramente com Deus na frente,
aí você vai rezar a oração no menino, menino brincando, pulando, alegre...
João: De quebrante, né?
Totinha: Quebrante ataca as pessoas. Já morreu muitas pessoas, de
quebrante, já morreu.
Izadora: Quebrante é o quê?
Totinha: É tipo um mau olhado, ele ataca nas tripas da criança e ela morre.
Se não achar uma pessoa pra benzer, vai embora. Hoje não, tem que orar,
tem que fechar o olho aí, a criança tá lá morrendo lá, Deus é mais, ele tá
orando, aquela oração dele vale também a mesma coisa, e talvez melhor
do que quem tá benzendo, mas é como tem o dizer, Deus fala assim: “faz
sua parte que lhe ajudarei”. É desse jeito!
(João e Totinha, Gameleira, 2018)

O diálogo descrito acima me faz recordar da experiência apresentada por Oliveira


(2012b) quando, em meio ao curso de formação dos agentes de saúde Wajãpi, comentou
sobre os conceitos de substância e elemento químico. Uma vez que, como explica a autora,
algumas destas substâncias e elementos químicos não podem ser vistos no microscópio, os
alunos logo a questionaram sobre a real existência deles. A estratégia encontrada por
Oliveira (2012b, p. 52) foi recorrer “a um ‘não-visto’ do mundo wajãpi” que, no caso, eram
os “opiwarã”, que são “as substâncias do pajé, que possuem várias manifestações como
armas e espíritos auxiliares” (OLIVEIRA, 2012b, p. 52). A inicial satisfação dos alunos com
a resposta deu lugar à outra questão: a de que, embora não vissem os “opiwarã”, eles dão
sinais de sua existência. O ataque de uma onça em uma aldeia é uma destes sinais. Parece-
me que, assim como os Wajãpi, os quilombolas ribeirinhos percebem, através do secamento
das pimenteiras e do quebrante nas crianças, a existência do olho gordo e do mau olhado,
comprovando a capacidade daqueles de sangue ruim em espalhar a maldade pelas roças,
pelos canteiros e pelos corpos das pessoas.
Sobre estas forças, Velho (1995, p. 23) observou uma distinção entre mau olhado e
olho mau ou olho ruim. Segundo o autor, os efeitos do mau olhado “dependem de um desejo
e/ou emoção (admiração extremada, inveja)”. Já o olho ruim, ou olho gordo, embora possa
ter efeitos similares, “são função de atributos de que certas pessoas são dotadas
independentemente de sua própria vontade”. Ainda nas palavras Velho (1995, p. 23, grifos
do autor), “reconhece-se, portanto, a diferença entre o olho (ontológico, por assim dizer;
externo) e o olhar (existencial, interno). E aqui, muito claramente, ambos se referindo ao

207
mal, e como que apontando para o seu caráter complexo”. Reside aí, certamente, a explicação
de João Lucas sobre o secamento de suas pimenteiras e o sangue ruim daquele que o causou:
afinal, não se pode escolher o próprio sangue.
Além dos benzimentos e simpatias, certos alimentos, chás e remédios preparados
com os vegetais da beira do rio são as formas conhecidas de garantir a proteção daqueles
mazelados. Mesmo que não tenha tido a oportunidade de encontrá-los ainda vivos, ouvi mais
de uma história de curandeiros e raizeiros que viveram na beira do rio ou nas proximidades.
Como narrava Totinha sobre a relação entre as rezas e seus efeitos de cura, outros
quilombolas contaram sobre alguns destes curandeiros, que eram conhecidos por suas
“orações brabas”, fortes o suficiente para terem eficácia nos corpos dos doentes. Este é o
caso do Justino, curador que veio de Parateca (BA) para viver em Sangradouro Grande.
Fazendo “remédio de raiz de pau” e benzendo o povo, tinha sua casa sempre cheia. Ali viveu
com suas duas esposas e criou seus filhos, que também se casaram com membros da família
dos Lídia. Outro curador e ancestral dos Lídia, o tio Arlindo, era um dos conhecidos pelas
rezas brabas. Foi este, o marido de tia Ana, que iniciou Lídia Bomfim nos caminhos
espirituais. Como ela conta:

E em uma das viagens eu começava a vim com ela (sua mãe) e logo no
começo eu já comecei a gostar daqui. Alguma coisa me puxava para cá e
ali mesmo naquela casa lá, morava meu tio Arlindo com minha tia Ana.
Tio Arlindo é que eu relato na história que ele não era flor que se cheirasse
[perigoso]. Ele tinha um livro de São Cipriano que minha tia Ana jogou na
água e não molhou, jogou no fogo e não queimou esse livro. Poderoso, né?
E ele sabia umas orações brabas, umas orações de escorregar, ninguém
conseguia pôr a mão nele, porque ele escorregava e diz que ele se virava
em toco. Aí uma época, eu era moça bem novinha e ele me ensinou uma
reza. Falou: “ó minha filha, vem cá, você é a única da família que tem o
dom. Aqui, essa oração que eu vou te ensinar você não pode ensinar para
mulher, você só pode ensinar para homem. Homem ensina para mulher e
mulher ensina para homem. Não pode mulher com mulher, nem homem
para homem”. Aí, na época, eu sei que ele quebrou a cabeça para me
ensinar aquela oração, sabe? E aí, eu era danada, teve uma roda de batuque
e aquele montão de gente, e aí ajuntou a família toda, e batia o tambor, e a
gente cantava tudo e dançava na roda de lundum. Aí eu falei: agora eu vou
ver se essa oração é boa mesmo. Esse pedaço eu não relatei lá não (no
documento entregue à FCP). Aí entrava um na roda do batuque e eu falava
as orações lá dele. Tem um pedaço assim que diz: “fulano, você é de ferro
e eu sou de aço, com três palavras eu te embaraço”. E tem um montão de
coisa. E era só eu fazer e as mulheres caíam, recebiam espírito e rolavam.
Aí era só eu falar e eu achava até bonito mesmo as mulheres caírem, sabe?
Aí precisou meu tio chegar perto de mim e perguntar: “o que é isso que
você está fazendo?” Falei: “não, eu só estou vendo se é boa mesmo”. Ele
me corrigiu: “Não pode, você só tem que fazer em extrema necessidade,
caso contrário você não faz não, se não, vai virar em cima de você”. Aí eu

208
fiquei com medo, aí nunca mais. Depois daquilo, que eu saí daqui, aí eu
comecei a me sentir diferente (Lídia Batista, Sangradouro Grande, 2016).

Nesta altura, por volta dos seus quatorze anos, além de se sentir diferente, Lídia
passou a sentir também uma força muito grande dentro de si. Possuindo tamanha força, com
a companhia de uma tia, passou a frequentar o centro em São Paulo, onde morava na época.
Lá, começou seus trabalhos de cura junto com seus guias, que durou muitos anos até que as
acusações da família sobre macumba a fizeram abandonar seus trabalhos e se tornar crente.
Contudo, a despeito das acusações da própria família, em uma das nossas conversas ela me
afirmou que, mesmo sendo crente hoje, acredita que existem os “dois lados da moeda”, pois
“como uma pessoa pega uma criancinha prestes a morrer, benze e aquela criancinha sara e
até hoje está aí sadia?” “Pode ser o inimigo que faz isso?” – questionou ela, e respondendo
logo em seguida que não poderia ser. Isto porque, para Lídia, “entre os céus e a terra tem
muitos mistérios”. Longe de perdê-los, ao “entrar para a igreja de crente”, Lídia mantém
seus dons. Quando a conheci, ainda durante a realização da pesquisa de mestrado, ao saber
sobre seus dons, perguntei o que ela via a respeito da minha personalidade e, quem seria, no
caso, meu santo de cabeça. Naquele momento ela não quis me dizer, mas prometeu me dar
uma resposta quando eu estivesse finalizando a pesquisa. Infelizmente, quando estava em
minhas últimas estadias em Sangradouro Grande, Lídia viajou para São Paulo e por isso,
fiquei sem a minha resposta. Anos depois, durante a realização da pesquisa de doutorado,
obtive minha tão aguardada resposta. Na ocasião, ela explicou novamente sobre seus dons.

Tem vezes assim, que eu ajoelho para orar a Deus, a vida da pessoa passa
como um filme na cabeça e eu conto, eu falo com algumas pessoas, então
eu acho que o dom é o mesmo. Muitas vezes a gente está assim e eu olho
para a pessoa e sei quem é aquela pessoa. Por exemplo, seu eu fosse falar
assim de você, quem é você? Eu ia falar de você, o que eu acho de você.
Eu acho que eu iria pelo (...) a igreja católica fala anjo da guarda, o
espiritismo fala o santo de cabeça (...). Eu iria pelo seu santo de cabeça.
Izadora, se eu fosse falar de Izadora, o que eu ia falar de Izadora? Filha de
Xangô! Xangô é uma pessoa muito forte, né? Tem um ponto de Xangô que
diz assim: Xangô, morreu velho de idade, ele morreu sentado em uma
pedra, ele escreveu na justiça, quem deve paga, quem merece recebe. Então
esse seria Xangô. Xangô, está eu e você andando junto para a rua Izadora.
Aí você escorrega e leva um tombo. Aí eu caio na rizada e tiro barato
mesmo da sua cara e dou rizada. E você muito sem graça, levanta,
chacoalha a poeira e olha para minha cara, sem graça só olha para minha
cara, sem graça, mas não fala nada e nós continuamos andando. Aí passa
um ano, dois anos e nós duas estamos andando de novo. Aí quem vai cair
aí é eu. Eu vou levar um tombo. Você não vai rir do jeito que eu ri de você,
mas você vai dar uma risadinha e dizer: “tá vendo? Bem feito! Você lembra
aquele dia que eu caí?” Então, são pessoas que não jogam, mas alembram,

209
pode passar o tempo que for, mas alembra o que aconteceu. Não é
vingativo, mas acaba alembrando, não esquecendo aquilo. Então, as
personalidades das pessoas, tudo isso já vem daquele lado (Lídia,
Sangradouro Grande, 2016).

Possuir o dom de enxergar além, ressaltou minha interlocutora, pode causar medo,
pois faz aquele que o carrega ver os mistérios entre os céus e a terra, que a maioria das
pessoas não consegue ver. Para carregar o dom, também é preciso ter coragem para domar a
força que vem de dentro da pessoa, algo que Lídia disse ter começado a aprender desde os
seus quatorze anos. O domínio de suas forças é, conforme ela me disse, o que fez surgir sua
habilidade de lidar com as pessoas, habilidades que minha interlocutora usa bastante no seu
trabalho de liderança nos seus quase dez anos como presidente da associação de Sangradouro
Grande. Lídia atribui a razão de sua força aos seus ancestrais, que eram, segundo ela, muito
fortes também. Ao falar de sua vó, Iaiá Lídia, ressaltou a capacidade de liderança forte que
ela possuía. Com bastante animação, Iaiá Lídia conseguia envolver todos na realização das
festas, entre elas a famosa folia de Nhá Lídia, que acontecia com muita prosa, cantos e
danças. Suas filhas, as tias de Lídia, “ficaram assim também, como pessoas fortes, mulheres
fortes, mulheres guerreiras”, entre elas Zefa e Afonsa, uma parteira e a outra benzedeira.
Apesar da força de alguns, há também o caso daqueles que não conseguem controlá-
la, gerando com isso muito sofrimento para o corpo daquele que a carrega. Um destes casos,
contado por Lídia, é o de Maria Barba Dura, sua prima já falecida que possuía o dom, mas
não tinha controle sobre ele. Sem este controle, fundamental para manter o corpo saudável
e seguro, os guias bons não vêm, mas os ruins sim. Maria, neste caso, tinha um santo de
cabeça muito forte, a Cabocla Jurema, que é “um orixá muito forte e correto”. Porém, Maria
gostava muito de beber cachaça e, quando bebia, os guias ruins vinham para judiar dela e
“jogavam ela no chão”. Lídia explicou que sua prima nunca conseguiu controlar sua força
“porque ela bebia primeiro para poder mexer com os orixás e aí, os orixás, ao invés de vir os
bons, vinha os Exús e bagunçavam a vida dela”.
Além deste domínio da força, existem outros modos de controle e de evitar que os
males que existem entre os céus e a terra afetem os corpos das pessoas. Destaco aqui a
relação com o mundo vegetal, seja através dos trabalhos realizados pelos benzedores e
raizeiros, seja pela utilização, por qualquer um dos moradores, dos chás e remédios do mato.
Os raizeiros, também conhecidos como curandeiros, eram aqueles que possuíam
conhecimentos profundos destes remédios do mato. Um destes raizeiros foi Miguel do
Carrasco, tio de Seu Arnaldo. A casa de Miguel do Carrasco era cheia de gente. Se alguém
210
chegasse precisando, Seu Arnaldo contou, “ele pegava e falava: me dá caneta aí, me dá um
pedacinho de papel” para “marcar a receita e a pessoa levar o remédio”. O raizeiro ditava e
a pessoa anotava o modo de usar a raiz. Sobre seu trabalho, explicou Seu Arnaldo:

Ele tinha um pilão grande e esse pilão, ele gostava mais de machucar era
de noite. Ele dizia que era por mod’os curiosos. Os curiosos, quer dizer,
tem muita gente que quer aprender para poder fazer dinheiro, né? Ele tinha
essa ideia. Aí ele estava fazendo lá na sala, acendia o lampião e sentava a
marreta. Pá, pá, pá! E quando as pessoas chegavam, ele já saia do quarto
já com aqueles pozinhos. Tinha pessoa que ele falava: “não, eu vou dar o
remédio mesmo”. Aí ele mesmo feria [as folhas ou raízes]. Quando as
pessoas estavam muito ruins, elas ficavam ali 5 dias, 8 dias, 10 dias. Ele
tratando. Quando a pessoa melhorava, ele mandava embora. As parteiras
mandavam chamar ele para poder ver que aquele menino deu problema no
nascimento, ele falava: “ah não, daqui mesmo pode ir, dá que eu cuido”.
Quando chegava lá o menino nascia. Então, ele fez muita coisa que ganhou
o povo aqui da redondeza. A casa dele era cheia de gente. E na época que
nós trabalhávamos, então minha mãe tinha assim essas receitas, que eu não
sei se ela aprendeu com ele, né!? Mas ela falava: “eu não vou ensinar não,
porque esses remédios são muito fortes. Faz de pouco a pouco para vocês
irem aprendendo”. Aí a pessoa fazia, mas de acordo com o que ela via lá.
Muitas pessoas chegavam aí doente, do grupo nosso, e aí tomava aqueles
remédios. Eles chegavam e falavam: “Dona Amélia, a senhora tem aí tal
coisa?” Ela falava assim: “Eu não tenho não, mas eu vou mandar Osório
trazer”. Que era do mato. Aí ela dava uns banhos também, mas ela não era
igual meu tio. Porque meu tio já veio desde berço com aquela missão, né?
E morreu novo. Ele morreu com trinta e oito anos (Seu Arnaldo, Croatá,
2017).

Através do trabalho de seu tio e sua mãe, Seu Arnaldo disse ter aprendido um pouco,
mas não muito porque, como ele explicou, o curandeiro precisa ser apenas curandeiro,
precisa se dedicar integralmente ao trabalho, a sua missão.82 A história contada por Seu
Arnaldo também mostra que, se, como no caso de Maria, a ingestão da bebida alcoólica
permitia que guias ruins bagunçassem sua vida, a ingestão de determinados vegetais, seja
como alimentos ou remédios, podem ajudar na garantia de uma vida saudável e segura para
as pessoas. Para retomar a categoria de força, presente tanto na identificação das fases da
lua, da qualidade da terra e que também pode estar presente no corpo de algumas pessoas,
Woortmann e Woortmann (1997) mostraram que os alimentos também são caracterizados
enquanto fracos e fortes. Segundo os autores, esta “força dos alimentos depende não apenas
de suas qualidades intrínsecas, mas também dos temperos adicionados” (WOORTMANN e

82
Esta relação entre trabalhos de cura, dom e missão também aparece na pesquisa de D’Almeida (2018) sobre
raizeiras do cerrado, conectadas por meio da Articulação Pecari – Plantas medicinais do cerrado, que envolve
participantes dos estados do Tocantins, Maranhão, Minas Gerais e Goiás.

211
WOORTMANN, 1997, p. 53). Dentre os casos apontados pelos autores, o feijão é um dos
alimentos considerados como forte, podendo ficar mais forte se temperado com alho,
pimenta e coentro. Nestes casos, é a força presente nos alimentos que garante a força das
pessoas para o trabalho na roça.
Em campo pude ouvir sobre a força dos alimentos com Zé Bete, quando ele me falava
sobre a produção da farinha. Na ocasião ele me explicava que a farinha leve, aquela que eles
dizem ser muito lavada, quando se tira muito do polvilho da massa, costuma ser uma farinha
de massa muito fraqueada. Mesmo o sabor da farinha fraca não é o mesmo pois, ao colocá-
la na boca, não é possível sentir o seu gosto. Como disse, a farinha fraca tem sabor de palha.
Já a farinha, quando “é bem no polvilho”, é pesada e “não dá entalo”.
Além da farinha, a pureza de outros alimentos também é considerada ao se pensar
sobre a saúde daqueles que os consomem. Seu Zé Bete, por exemplo, comparou os alimentos
de antigamente com os atuais, comprados nos comércios da cidade. Antes, como ele disse,
“era tudo puro, não era apurado, era puro, era tirado da natureza”. Já hoje, observou ele, “a
gente compra é através do adubo”, “com muita química”, nos permitindo entender que a
“química” e o “adubo” podem tirar a força dos alimentos. Até mesmo a carne não é como a
de antigamente. Para ele, os animais criados soltos no tempo antigo eram mais saudáveis.

Naquele tempo criava aí, então você vê, né!? Possa ser que algum dizia aí,
por causa de algum problema de saúde, mas naquele tempo ninguém dava
fé, se é que tinha, ninguém dava fé, ninguém ia pra hospital porque comeu
carne de porco a não ser que ofendesse porque ela é ofensiva, porque é
pesada, né, a carne de porco ataca o intestino às vezes, né!? Ela é uma carne
muito ofensiva, precisa ter repouso depois de acabar de comer, mas a carne
dos porcos de hoje nunca que são que nem naquele tempo. Era legítimo, o
bicho era criado (Zé Bete, Gameleira, 2018).

Alguns aspectos importantes, presentes na narrativa acima, merecem atenção.


Primeiro a noção de que o controle da criação, o bicho criado na roça, é mais saudável, na
medida em que é mais puro. Assim como a farinha menos lavada é mais saborosa e forte, o
bicho criado também é considerado um alimento mais seguro, pois a atenção e a liberdade
concedida aos bichos no sistema de criação na solta garante uma carne mais apurada, sem
química. O segundo ponto se refere à ofensa que é provocada por determinados alimentos.
Neste caso, mesmo sendo bicho criado e legítimo, a carne de porco ainda é considerada
como um alimento com qual é necessário um determinado cuidado, pois ela pode causar
congestão e também pode “atacar o intestino” e ir “para a cabeça”. Sobre alguém que comeu

212
carne de porco, “diziam os velhos” que “subiu para cabeça, atacou a mente e a pessoa ficou
avariada ou perdeu o sentido”. Além da carne de porco, outro alimento também considerado
ofensivo é o arroz. Em oposição, como mostraram novamente Woortmann e Woortmann
(1997), a carne de galinha é percebida como fraca e, por isso, menos ofensiva.
A ofensa aqui se deve também à força do alimento. Este mesmo termo é utilizado
pelos quilombolas ribeirinhos para se referirem as picadas de cobra. “Ofensa de cobra” é o
modo de dizer local. Note-se, portanto, que a carne de porco e as cobras não atacam, mas
sim ofendem uma pessoa e/ou o corpo de uma pessoa. Por isso, me parece, também podem
ser tratadas com as forças do espírito. É possível observar isso na pesquisa que vem sendo
desenvolvida por Stefanuto (2021), sobre as práticas de benzimento em sítios do interior
paulista, onde a autora discute que o benzimento é uma das técnicas que constitui o trabalho
de cuidado com as criações. Nestes casos, um dos benzimentos realizados no interior
paulista tem como fim a expulsão das cobras dos pastos. A autora apresenta também outros
casos em que os problemas com as cobras são resolvidos através do trabalho dos benzedores.
Tendo como foco principal de análise a relação de moradores das áreas rurais do
município de Urucuia (MG) com as cobras, Pereira (2017) discute que “a noção de ‘ofensa’
evoca algum tipo de dano físico ou moral sofrido por pessoa ou coisa” (PEREIRA, 2017, p.
98). No caso de picadas de cobras, portanto, o que ocorre é a transmutação de seres em
ofendidos e ofensores. Outra observação interessante realizada pelo autor é a importância
dada para a relação entre ofensa e sangue. Assim como os alimentos que, ao entrarem em
contato com o sangue após serem ingeridos, garantem a potência, a saúde ou – eu
acrescentaria – também podem ofender os corpos, o veneno da cobra, ao se misturar ao
sangue, “inverte sua função vital” (PEREIRA, 2017, p. 99). Contudo, nas palavras do autor,
“não se trata, em absoluto, apenas de falência fisiológica”, pois “além de atuar na carne, a
peçonha também pode ter efeitos na alma” (PEREIRA, 2017, p. 100). Por essa razão, explica
Pereira (2017), a cura

também pode evocar poderes morais e divinos. A reza para São Bento –
realizada sobre o ferimento por meio de palavras incompreensíveis e sinais
da cruz – promete anular o efeito do veneno que, então, deve sair do corpo
da vítima sem afetá-lo. Os poderes morais e divinos muitas vezes também
parecem estar relacionados à personagens que parecem protegidos ou
imunes aos ataques de cobra (PEREIRA, 2017, p. 100).

Logo, através das ofensas, dos quebrantes, do olho ruim ou olho gordo, vemos que
a saúde do corpo físico não é a única preocupação dos quilombolas ribeirinhos. Além dos

213
benzimentos e simpatias, a força dos alimentos é uma aliada poderosa na proteção contra
estes males que atacam, além do corpo, o espírito. Na mesma visita que fiz a João Lucas,
quando pude ver a situação de suas pimenteiras, ganhei do dono da roça algumas mandiocas.
Enquanto o ajudava a arrancar as raízes do chão, João Lucas contou que não costuma comer
mandioca, pois ela é um dos alimentos que têm a capacidade de abrir o corpo. Ao contrário
disso, costuma comer muito quiabo, que é bom para fechar o corpo. No mesmo dia,
conversando com Dona Maria, a questionei sobre esta relação entre os alimentos e a
capacidade de cada um deles de fechar ou abrir os corpos das pessoas. Segundo ela, além
do quiabo, a abóbora, o tipí (ou guiné) e a arruda também são bons para fechar o corpo.
Como ela me disse, “tem muita gente que acredita no tipí, diz que é forte”. Já a arruda, “tem
muita gente que gosta de plantar, que diz que é bom por causa do ôio ruim de quem deseja
o mal”. Fechar o corpo, desse modo, tem relação com manter o corpo protegido e menos
suscetível aos perigos: isto é, serve para tirar ou impedir o olho ruim e o olho gordo.
Muito ainda poderia ser explorado a respeito das forças que circulam e atuam nos
lugares entre o céu e a terra (ou na atmosfera, para usar um termo elaborado por Coccia
[2018])83, afetando positiva ou negativamente a vida dos viventes da beira do rio. No
entanto, a fim de aprofundar mais nestas reflexões, seria necessário um conjunto maior de
dados etnográficos sobre estes temas, o que torna a discussão apresentada aqui ainda inicial
no que se refere ao “invisível” presente nas paisagens entre o céu e a terra. Nesta seção,
portanto, limitei-me a pensar sobre a existência destas muitas forças e fluidos em sua
conexão com as plantas. Isto porque, como vimos, o mal “invisível” se torna visível a partir
de seus efeitos, não penas nos corpos das pessoas, mas também das plantas. E se o mal tem
efeitos nas plantas, são também as plantas que podem ajudar a afastá-lo, curá-lo ou proteger
as pessoas.84 Na beira do rio, os astros, com toda sua força, garantem a durabilidade das
plantas e dos mantimentos, e as plantas, também com sua força, nutrem corpos para torná-
los fortes, fechados, física e espiritualmente saudáveis e seguros.

83
A noção de atmosfera apresentada por Coccia (2018) se aproxima da ideia apresentada nesta seção, dos
lugares ou paisagens existentes entre o céu e a terra. Conforme o autor, não habitamos a terra, mas sim a
atmosfera, pois “a terra firme é apenas o limite extremo desse fluido cósmico no seio do qual tudo se comunica,
tudo se toca e tudo se estende” (COCCIA, 2018, p. 39). Ainda, para o autor, não estamos apenas no mundo,
mas sim imersos de maneira que tudo aquilo que nos rodeia nos compenetra. Essa mistura radical, chamada
atmosfera, faz com que tudo possa coexistir em um mesmo lugar, sem que isso sacrifique formas e substâncias.
“Tudo está em tudo”, declara Coccia (2018). E se tudo está em tudo, é porque no mundo tudo pode circular, se
transmitir e se traduzir.
84
De maneira bastante distinta, Shiratori (2018) também discute as relações entre olhar, veneno, sangue, plantas
e céu entre os Jamamadi, povo indígena que habita a região do médio curso do rio Purus (Amazônas).

214
5.4. Os pés da memória

Morava muita gente nessa região nossa né. Como é um lugar que tem
estórica, então esses pés de árvore que existem aí nesses beradão são
centenários. E esses pés de manga, de quando eu conheço por criança,
sempre morou gente aí. Não vai nascer um pé de manga ali daquele jeito
bem cultivadinho, bonito daquele jeito. É em todo território aqui em Maria
da Cruz. Aqui nunca nasceu um pé de manga assim nativo, sempre é
alguém que planta. Pé de manga, ele (...) o subsolo aqui é tão seco, se você
não regar ele, ele não vive não (João Bolinha, Sangradouro Grande, 2014).

O relato acima foi um dos primeiros a me despertar o interesse pelas plantas na beira
do rio. As referências constantes dos quilombolas ribeirinhos aos pés, especificamente os
pés de manga, me chamaram bastante a atenção e me fizeram compreender que era algo que
merecia um investimento etnográfico maior. Como podemos acompanhar, logo no início da
narrativa de João Bolinha, o ribeirinho conecta a quantidade de pessoas que moravam nos
beiradões do Chicão aos pés de manga existentes no local. Juntos, pessoas e pés constituíram
a estórica do lugar. Da mesma forma, durante a realização do trabalho de campo, outro
morador, apontando para os pés de manga, me disse: “olha lá, é pé de manga que é de
convivência das famílias, lá na frente também é pé de manga, dentro desta área aqui também
tem pé de manga, que era dos moradores velhos antigos”. Nesta segunda narrativa a relação
com os pés se torna mais evidente, pois eles são de convivência das pessoas e suas famílias.
Em ambas as falas, outro ponto deve ser destacado: o de que as mangueiras são cultivadas e
permanecem, mesmo após a morte de quem as cultivou, como provas cabais da relação
ancestral das pessoas com os lugares nos quais estas árvores se mantêm em pé.
Assim como na beira do rio os pés são, entre outras coisas, dispositivos de memória,
na coletânea organizada por Andrello (2012) sobre o processo de identificação dos sítios
sagrados na região do Alto Rio Negro, os elementos não humanos que compõem a paisagem
– os rios, cachoeiras, pedras, praias, plantas, entres outros – também evocam memórias, pois
a história dos povos que habitam essa região está inscrita nesses elementos. Conforme
observou Hugh-Jones (2012) na mesma coletânea, alguns lugares, e os elementos que os
compõem, se prestam como dispositivos mnemônicos para os povos que ali habitam. Outras
autoras foram específicas ao destacarem esta relação entre plantas e memória. Entre elas,

215
Oliveira (2006) apresenta como certas espécies cultivadas pelos Wajãpi desempenharam um
papel importante no processo de demarcação da terra indígena. Isto porque, como argumenta
a autora, o ciclo de vida mais longo de algumas plantas e sua permanência em certos locais
fazem delas “marcas materiais fixas que unem espaço e tempo” (OLIVEIRA, 2019, p. 8).
Algo também discutido por Viegas (2007), que mostra como os pés de jaca existentes nos
territórios Tupinambá são relevantes para lembrar e identificar as antigas habitações dos
indígenas. Menezes (2016), por sua vez, destaca o quanto as castanheiras suscitam os anciões
Puruborá a resgatarem as lembranças do tempo antigo, quando havia paz e fartura.
Da mesma forma como acontece nos contextos indígenas citados acima, em que as
plantas acionam memórias relacionadas ao território, as habitações e os tempos antigos de
paz e fartura, elas também o fazem na beira do rio. Foram diversos os momentos em que,
em conversas com os moradores sobre o tempo de primeiro, os pés emergiam no meio da
narrativa, reforçando a ideia de que eles são a prova viva da estória contada. Este foi o caso
de Maria, como podemos conferir no relato abaixo.

É igual muita gente mora, eu ó, quantos anos eu morava aqui. Fui pra
cidade por causa das meninas, que estavam estudando e não podiam ficar
aqui. Agora não, que tem ônibus, tem coisa para os meninos irem. De
primeiro que não tinha. E não tinha estrada, só era no carreirinho, tudo
fechado de mato. Comecei plantar ali no Barreirinho, lá naquela ilha. Você
não foi lá ainda, mas o pé de manga que eu plantei até hoje está lá. Tinha
um barraco lá, porque eu ia, mais as meninas às vezes não queriam ir
embora, meu marido não queria voltar, aí ficava lá até de tardinha. Quando
era cinco horas, nós pegávamos o barco e íamos embora para a cidade. O
pezão de manga até hoje está lá, de prova para todo mundo ver lá. Colhi
muito feijão de arrranque e milho. Abóbora nós colhemos um bocado,
mandioca nós tiramos um trator e levamos lá para a casa de farinha do
finado Tinim, lá no – como que chama? – São Domingo que o povo chama
lá, o Jabá. Lá no Jabá e fizemos farinha. Aí mudamos aqui para o
Barreirinho. Barreirinho era eu, era o finado João Tiú, finado Casé. Tudo
já morreram. Tem outros lá que já morreu também, mas que plantava tudo
ali. Tem um que é vivo ainda, que é Marcolino, mas não trabalhou mais,
ficou velho e não trabalhou mais na vazante. Mas eu ainda fiquei muitos
anos aí (Maria, Croatá, 2018).

Para falar que já planta na Ilha do Barreirinho há muito tempo, Maria enfatiza que o
pezão de manga plantado no lugar é a prova para quem quiser ver. Além disso, a existência
do pé reforça a narrativa contada por ela, que diz respeito ao que se plantava, o que se colhia
e as relações que se estabeleciam na beira do rio. Mesmo que não morasse na ilha, Maria e
sua família se utilizavam de um barraco construído por eles próprios para se abrigarem do
sol quente. Ainda que a residência na ilha não fosse fixa, como dificilmente poderia ser, isso

216
não impediu o cultivo de frutíferas. Este é um habito comum entre os quilombolas, o de
cultivar frutíferas onde quer que vivam. Como me disse João de Dôra, “onde a gente passa
a gente mostra que a gente deixou rastro da gente ali”. Após me dizer isso, ele e sua esposa,
Dôra, enumeraram todos os pés que possuem no seu terreno, dentre eles, “três pés de manga,
um de mexerica, limão, seis pés de coco, dois pés de goiaba e dois pés de acerola”. Também
demonstraram seu interesse de cultivar mais outros pés.
Por serem os pés de fruta considerados como rastros das pessoas, sua existência
sempre remete aos seus donos, aqueles que os plantaram ou cuidaram deles. Conversando
com Seu Pedro, ele recordava dos moradores antigos que viveram em Sangradouro Grande
e, ao mencioná-los, os conectavam com seus pés e também outros cultivos.

Ali onde a Lídia tirou para fazer a associação, era onde tinha a casa do meu
tio Antônio da Crôa, era ali. Tinha um pé de umbu lá dentro do barranco,
pezão de umbu, esse já morreu. Tinha uma casa de oficina para lá um
pouquinho, e ali no meio era só banana, um bananal, naquele tempo chovia
muito, todo lugar que ele plantava dava. Lá para baixo morava meu pai,
mais embaixo morava uma tia minha por nome Maria, que era irmã de
minha mãe, mais embaixo morava um véi por nome Zé Preto, ali mesmo
encostado tinha um véi por nome Manel de Tomáz, mais embaixo um
pouquinho um véi por nome Vicente, pai de compadre Miguelão. Mais em
baixo um pouquinho, perto daquela baixa, pro lado de cá um pouquinho
tinha uma velhona alta por nome Maria, a gente chamava ela de Maria
Cotoca, ela mancava de uma perna, irmã do finado Eugênio, que era pai de
comadre Francisca. Aí tinha compadre Zequinha, compadre Bernadino, ali
mesmo encostado no finado Bernadino tinha o finado João Meira, que era
meu cunhado, casado com essa dita Francisca. Mais embaixo, tudo assim
pertinho um do outro, mais em baixo, tinha um por nome Né. Manel, a
gente chamava ele de Né. E a mulher dele chamava Maria Salomé. Do
outro lado, na beira do sangradô, mais embaixo um pouco, naquelas
mangueiras morava uma véia por nome Cristina, que era tia nossa também,
chamava ela de tia. Tinha o genro dela que chamava Josefino e filha dela
chamava Josefa, moravam tudo ali naquele lugar. Aí tinha uma casa de
oficina também para o lado do rio, fazia farinha, era um divertimento bom,
tinha um caminhozão por dentro assim, a gente passava de terreno em
terreno do povo para ir lá para baixo. Ali assim, mais embaixo um
pouquinho, tinha uma véia por nome Lúcia. Era tia nossa, minha tia Lúcia.
Naquele pé de umbu, ali morava um José de Lúcia, José que era filho dessa
véia Lúcia. Tinha uma casa de oficina também. Mais embaixo naqueles
outros pés de manga morava uma véia por nome Isaltina e outra por nome
Osona, a gente chamava a véia de tribusona, atentando ela. Mais embaixo
um pouquinho naquelas mangueiras tinha finado Chico Severino. Lá mais
embaixo um pouquinho, quase lá no poço das pedras, morava um véi por
nome Vicente, era um tocador de violão muito bom esse véi, tinha uma
filha por nome Judite, uma moça muito forte. Alembro como hoje (Pedro,
Remansinho, 2016).

217
Na narrativa acima podemos ver como falar de parentes, conhecidos, compadres e
finados remete aos pés em que estes viviam próximos, e vice-versa. De primeiro, todas as
casas, fixas ou não, tinha um pé de laranja, de limão, de mamão ou de mexerica plantados
nas suas proximidades. A convivência com estes pés era tão intensa que, provavelmente por
esta razão, eles sempre apareçam nas estórias que escutei durante a pesquisa de campo. As
duas primas, Olívia e Madalena, ao lembrarem dos seus tempos de infância, contam sobre
pés os associando aos momentos de felicidade que tiveram com sua avó.

Lá na beira do Sangradô Grande, eu morei lá muito tempo com minha vó


Idalina, que é a mãe da minha mãe. Nós moramos lá muito tempo. Nós
moramos lá, de lá a gente desceu para a beira do rio, tem até um pezão de
manga espada lá, um pezão de limão, tudo plantado. E foi ela que plantou
lá (Madalena, Sangradouro Grande, 2018).

Na casa da minha vó era que nem aqui, era pinha, limão, tudo ela plantava,
tinha tudo. Tinha um pezão de umbu e ela podava ele assim, por baixo, pra
gente não se machucar, porque os galhos ficam caídos assim, então ela
podava tudinho. Por baixo fazia uma sombrona e a gente brincava lá
embaixo. Maria, Ramiro, Manoel, os meninos do tio Pedro, os do tio
Antônio, juntava aquele monte de neto (Olívia, Sangradouro Grande,
2018).

Sobre estes afamados e rememorados pés de Sangradouro Grande, Dona Nilza


também reforçou que eles não nasceram ali sozinhos, mas que foram plantados pelos
membros da família dos Lídia, dentre eles a própria Sá Lídia, Seu Mané Preto, Afonsa, Sá
Joana e Seu Pedro. Isto porque, como vimos, uma vez que as casas não ficam sempre sob o
domínio de um mesmo morador, ela disse, “cada um dono que morava, que mora, vai
plantando”. Além da apreciação dos pés devido as suas sombras – lugares importantes da
socialidade ribeirinha, pois “quando era meio dia, sentava todo mundo debaixo daquela
sombrona” – , eles também eram uma ajuda ao permitirem aos moradores comerem seus
frutos. Pela sombra e pela fruta, “é uma alegria ficar debaixo do pé de manga”, me disse
Nilza.
Sobre os pés de manga, Seu Vicente disse que acha engraçado que os mineiros só
gostem de plantar mangueiras. João, de Gameleira, afirmou que isso acontece porque na
região “elas criam demais”, isto é, se reproduzem rápido e dão muitos frutos. Seu Vicente
também contou que elas eram muito apreciadas pelos moradores antigos, pois achavam e
continuam achando a fruta muito gostosa. Desde que se entendeu por gente, meu interlocutor
se alembra de ver estes pés de fruta pela beira do rio. No entanto, ele disse que estes pés de

218
fruta, principalmente as mangueiras, eram mais comuns nos altos, nas fazendas do Bom
Jantar e do Capão Grosso. Isto porque os mais velhos “tinham uma conversa”, um dizer, que
quem plantava algumas qualidades de frutíferas não desfrutava dos seus frutos, pois a pessoa
podia morrer. Isso causava medo e desconfiança do povo antigo. O medo e a desconfiança
não se limitavam apenas aos pés de manga, mas também a outras árvores como o cajueiro.
Como disse Seu Zé Bete, “o povo fala que quem planta caju desfruta dele pouco”, por isso
“não é todo mundo que gosta de plantar”. Após dizer isso, o ribeirinho riu, explicando que
isso ocorre porque a árvore demora a crescer e dar frutos. Assim, aquele que o planta não
desfruta muito do pé.
Por essa razão, o povo antigo ia buscar mangas e outras frutas em outros lugares,
como no finado Zé Viola, no finado Geraldo, no finado Dô e no finado Pacheco, antigos
fazendeiros da região. Com um grupo de dez pessoas, disse Seu Vicente, as mulheres saíam
com latas na cabeça para catar manga de leite, manga rosa, manga espada e manga cavalo
no Bom Jantar. O povo ia catar com tanta frequência que, muitas vezes, “dava até briga”,
me explicou Seu Zé Bete. As razões destas brigas eram os conflitos com os proprietários das
fazendas, que se incomodavam com a circulação constante das pessoas em suas terras. As
disputas pelas mangas também se davam com os bichos, pois o gado gostava de descansar
na sombra das mangueiras e, estando ali, também comia a fruta caída no chão. Como
disseram, “tinha vez que a gente ia catar manga lá e não podia entrar, por conta do gado”.
Em razão disso, e apesar de ouvirem os dizeres do povo antigo, os mais novos não se
importaram e “hoje plantam e comem bonzinhos”. Seu Vicente deu o exemplo da finada
Catarina, aquela que zelou por ele, que plantou dois pés de manga no seu terreno e ainda
comeu dos seus frutos antes de vir a falecer.
Se, por um lado, os conflitos com os antigos fazendeiros da região incentivaram os
moradores a cultivarem seus próprios pés de fruta, o surgimento das grandes fazendas a
partir da implementação das políticas de modernização da agricultura, criadas entre as
décadas de 60 e 70, provocaram uma ruptura na reciprocidade estabelecida entre os
quilombolas e os viventes vegetais da beira do rio. Neste período, como já foi discutido, os
habitantes ficaram sem acesso à terra e a única possibilidade de se viver dela foi através do
regime que eles denominam de meia, em que os fazendeiros disponibilizavam um pedaço de
terra para as famílias plantarem. No entanto, os fazendeiros destinavam estas áreas para que
as famílias preparassem a terra para o plantio do capim e, desse modo, o cultivo de frutíferas
não era permitido. Essa transformação da relação com a terra transformou também a

219
paisagem. O que antes era mato e povoado por pessoas, deu lugar para as mangas85 – pasto
para o gado. Como explica um dos meus interlocutores:

No tempo que nós vivíamos aqui, nós plantávamos milho, mandioca e


feijão. É do que a gente vivia né. E é como se diz, pondo roça ... Que nesse
tempo aqui, cada um ano uma roça. O homem (fazendeiro), quando a gente
plantava roça já chegava com o saco de capim para plantar no pé do milho.
A gente plantava o milho, no outro ano não podia nem plantar porque já
estava cheio de capim e ele não ia aceitar cortar o capim, aí ia ter que fazer
outra roça. Foi aí que nós pegamos dali ó, de uma cerca que tem ali,
cortamos isso aí de cabeça a riba e saímos de Sangradouro Grande e virou
tudo manga isso aqui. Esses matos aí, cada um pé de pau desses foi porque
criou desses tempos para cá, mas aqui tudo era roça, aqui tinha um
capinzão aqui ó, que eu era vaqueiro de finado Juvêncio, trabalhando de
vaqueiro, peguei muito gado aqui dentro mais ele. O gado varava por aí,
caía dentro do capim aqui ó, nós montávamos de cima, do jeito que o capim
era tanto que o gado não podia nem correr direito. Tinha dia que nós
pegávamos ela era na perna para segurar. Eu e o finado Juvêncio Meireles.
Estou dizendo a você: aqui era um capinzão doido, depois acabou, está com
muitos anos, criou o mato outra vez. E as árvores, assim em um lugar
largado, elas criam muito ligeiro (Pedro, Sangradouro Grande, 2014).

Como disse Seu Vicente, “o interesse dele [do fazendeiro] era capim. As vezes dava
até para plantar roça, mas ele não deixava não, falava: ‘você tem que plantar capim’”. Esse
modelo de produção imposto às famílias, de plantar capim para o fazendeiro, somado às
restrições, por parte dos mesmos fazendeiros, para que os agregados não plantassem
frutíferas, inviabilizava a permanência das pessoas no lugar. Segundo Seu Arnaldo, o
fazendeiro “tinha uma norma que impedia todos os vaqueiros e agregados a não plantarem
sequer um pé de árvore, dizendo ele que era para um negócio de posse”.
Ao que parece, as dificuldades criadas pelos fazendeiros para o plantio de frutíferas
está relacionada com a implementação do Estatuto da Terra, levada a cabo, no Norte de
Minas, pela RURALMINAS, que era responsável pelas terras devolutas existentes no
território deste estado. Como apresenta Silva (1999) em relação ao funcionamento da Lei n.
6.177 de 14 de novembro de 1973, no processo de “transformação da posse em propriedade,
por intermédio da legitimação”, a RURALMINAS recolhia, “por vários meios”, as provas
de ocupação (RURALMINAS, s.d. p.3 apud SILVA, 1999, P. 37). Tendo isso em vista,
podemos pensar que as frutíferas poderiam ser indicativas do uso ancestral da terra pelos
quilombolas e seus descendentes, como os pés de manga que, como disse João Bolinha, “se

85
Não custa dizer que manga, além de ser uma fruta, também é uma das formas como os habitantes denominam
as áreas de pasto. No entanto, não pude encontrar, até o momento, nada que possa sugerir a relação entre os
termos.

220
não regar, não vive não”. Talvez isso explique a constantes referências dos meus
interlocutores as mangueiras.
As dificuldades criadas pelos fazendeiros para o plantio das roças, as restrições para
o cultivo de frutíferas, ao mesmo tempo em que se levava a cabo a implementação das
mangas, resultou, como já discutimos, na transformação da paisagem, na dispersão dos
habitantes para outras regiões ou na concentração das famílias em pequenos terrenos nos
limites das comunidades locais. Com tudo isso, o que se pôde ver foi a tentativa de destruição
dos marcos vegetais que ancoram a memória dos quilombolas e indicam sua ancestralidade
com o lugar. Em um relato sobre a ameaça que as frutíferas representavam para o fazendeiro,
Maria Barba Dura conta:

O encarregado veio correr com nós. Chegou, aí nós fomos lá para a fazenda
e eles falaram que era para nós sair com três dias. Manel disse: “não tem
nada a ver, eu só saio daqui com direito na mão”86. Se pagar para nós o
direito desde quando nós moramos aqui, nós saímos. Aí mamãe falou com
ele: “ó, aqui, você não é dono da fazenda”. Seu A.I. já tinha vendido para
a firma, aí o que estava trabalhando na firma veio correr com nós. Aí ele
falou com Manel: “amanhã você vai lá para a firma”. Aí Manel chegou lá
e eles bateram boca, bateram boca, ele fez não sei quantas cartas. Aí Manel
falou: “eu não vou assinar nada”. Manel todo nervoso e ele falou [o
encarregado]: “amanhã cedo eu vou lá com o trator, meter o trator no pé de
laranja, no pé de manga, banana e com você e meter vocês tudo no meio
do rio”. Manel respondeu para ele: “você pode ir, o trator vai cair na água
sozinho e você vai ficar no seco, eu vou meter a mão na sua cara que você
não sai de lá”. Manel passou o dia todinho esperando por eles com a
espingarda. “Para que essa espingarda meu filho?” “Para matar um urubu”.
Ele foi lá foi bom (Maria Barba Dura, Sangradouro Grande, 2014).

O desfecho destas estórias, como a contada por Maria Barba Dura, foi a expulsão das
famílias da beira do rio. Ainda que esta família em especifico tenha, com toda sua bravura
e força, conseguido se manter em suas terras, muitas outras famílias sofreram com as
ameaças e pressões dos fazendeiros e firmas. Com a saída das famílias, os pés de fruta
também foram morrendo. Como contou Amelinha, “de primeiro aqui tinha muito pé de
laranja, muito pé de fruta que foi morrendo tudo”. Isto porque, ela ainda acrescentou,
quando os donos morrem, as plantas acabam morrendo também. Este mesmo tipo de
observação também foi feita por Seu Zé Bete, quando contava que, depois que seus pais se
mudaram da Vargem do Ferrão, onde havia algumas mangueiras plantadas, os “pés parece

86
O direito neste caso está relacionado ao usucapião.

221
que sentiram a maior falta” de seus donos, pois acabaram-se todos, morreram todos. Fato
que expressa a reciprocidade nos afetos entre pessoas e plantas.
Nos últimos anos, como já mencionado anteriormente, estas famílias que foram
obrigadas a deixarem a beira do rio naquele período começaram a retomar seus territórios
e, para isso, as plantas, sobretudo os pés de manga, são constantemente evocadas. Assim, se
os habitantes tiveram que deixar suas áreas devido à impossibilidade de cultivo dos pés, é
também por meio deles que as retomadas foram realizadas. Antes de reconstruírem suas
casas na beira do rio, como contou Lídia, ela e sua família começaram primeiro a plantar a
roça e, só um tempo depois, seguros de que não haveria uma forte ameaça por parte do
encarregado da fazenda, é que eles entraram na terra para levantarem suas casas.

Então, como a gente pesca sempre na beirada do rio, sempre a gente subia
aqui para essas terras acima e revendo as coisas né, e a gente sempre
conhecia aqui. Aí uma vez eu conversando com uma prima minha, a
Amelinha. Aí a Amelinha falou: “tia, mas tem umas terras boas ali onde
nossos parentes plantavam”. “Eu sei qual que é Amelinha”. “Mas a senhora
não entrou lá ainda”. Eu falei: “não, um lugar eu entrei, nos pés de laranja
lá para cima, pé de limão, manga, mas aqui para baixo não”. “A senhora
quer ir lá ver?”. Eu falei: “vou!” Aí eu vim. Quando eu cheguei, bem ali
naquela baixada nossa, ela já tinha plantado uns pés de abóbora, uns pés
de milho. Ela já tinha plantado nas baixadas. Mas estava bonito. Aí eu
falei: “nossa Amelinha, você já plantou?” Ela falou: “já plantei tia, mas eu
estou com um medo...” E eu falei: “não, já que você plantou, nós vamos
plantar também. Nós vamos entrar nessa terra” (Lídia, Sangradouro
Grande, 2014).

Os quilombolas de Brejo dos Crioulos, pesquisador por Mourthé (2017), também


narram as transformações da paisagem causadas tanto pela chegada das fazendas quanto em
decorrência das ações quilombolas de retomada. O autor descreve como seus interlocutores
percebem estas transformações.

O capim que segura a terra, associado ao gado, componente da paisagem


da monocultura nas mangas das fazendas, vai cedendo lugar às várias
culturas: arroz, abóbora, feijão, fava, maxixe, melancia, milho e as hortas.
Dona Isaldina, moradora de Serra D’água, contou que a “luta muda o mato,
muda a paisagem” (MOURTHÉ, 2017, p. 106).

Como mostra o autor, o capim plantado nas fazendas “segura a terra”, impedindo o
uso dela para outros cultivos. Esta afirmação mostra que os efeitos da criação dos pastos,
narrados pelos quilombolas pesquisados por Mourthé (2017), parecem ter sido tão
desastrosos para este coletivo quanto foram para meus interlocutores. De outra perspectiva,

222
as retomadas e ocupações reconfiguram a paisagem a partir da diversificação das plantas na
medida em que as pessoas passam a cultivá-las nos quintais, nas áreas, e a cuidar da
vegetação das matas próximas aos lugares onde habitam. A retomada do território envolve,
portanto, além da construção das casas, o cuidado com os “quintais”, com seus canteiros,
frutíferas, galinheiros e chiqueiros. Isso faz parte, como observaram outros antropólogos
(VIEGAS, 2007; CARDOSO e MODERCIN, 2012), do processo de transformar aquele
lugar em casa. Assim, para os quilombolas ribeirinhos, retomar o território é também
retomar suas relações com as plantas.
Estas retomadas e ocupações com as plantas se fazem cotidianamente, acontecendo
toda vez que as mudas e sementes circulam entre os moradores, que as plantam em seus
terrenos, ou mesmo quando os moradores viajam com os movimentos políticos-sociais,
trazendo uma diversidade de qualidades com a intenção de cultivá-las. Até quando os
cultivos não são intencionais, eles podem ocorrer por práticas cotidianas dos moradores.
Esse é o exemplo fornecido à mim por Seu Vicente quando conversávamos sobre pés de
laranja. Segundo ele, certa vez, quando estava na cidade, passando pela casa de um
conhecido seu, que cultivava um laranjal no quintal, este o chamou dizendo: “Vicente, vem
ver aqui que bonitinho”. Enquanto o dono regava os pés, Seu Vicente olhava maravilhado
os pés bastante carregados de laranja. Em seguida, Seu Vicente ganhou quatro laranjas de
seu conhecido. Contudo, como me disse meu interlocutor, resolveu aguardá-las para chupar
em sua casa. Chegando na roça, resolveu fazê-lo embaixo dos pés de manga do seu terreno.
Como ele me disse: “plantamos um feijão e os caroços [da laranja] caíram lá e nasceu um pé
da mesma laranja”. Dessa mesma árvore Seu Vicente disse já ter retirado duas mudas para
plantar em lugares diferentes, tanto que, como ele disse, hoje “tem muito pé de laranja aqui”.

223
Figura 36 - Dona Olívia plantando muda de pé de umbu
Fotografia: Izadora Acypreste, 2018

Assim como os pés de manga têm seus nomes e estórias, estes novos pés, como as
laranjeiras plantadas por Seu Vicente e sua família, além de tantas outras que vêm sendo
cultivadas pelos outros moradores, também vão tecendo novas estórias, que serão contadas
e recontadas por seus filhos e netos. Foi isso que observou Seu Santo, quando lhe perguntava
sobre os pés antigos, cultivados por seus antepassados. Como podemos acompanhar em sua
narrativa:

Olha que coisa bonita que você falou: “eu gostaria de ver aquelas plantas,
aqueles pés de árvore que vocês tinham aqui, que era dos seus avós”. Quer
dizer que é uma coisa que eu tenho na minha memória. Se nós tivermos

224
fazendo agora, vai chegar um determinado tempo que meus netos: “olha
onde é que vovô trabalhava, esse pé de goiaba aqui foi que ele plantou na
morada nossa”. Né? A minha memória bateu dessa maneira. Fica uma
estória que você está querendo tirar a limpo. Eu vou levar você ali para
dentro do mato, eu vou levar você lá no pé de manga véi que tem ali ainda,
está lá, era uma morada véia antiga. E outras estão aqui, o mato está muito
elevado, um tanto de mato. Ali você passou, já viu um pé de manga morto
lá, na beira lá de cima, outras moradas aí que já acabou. Sabe? Igual eu
falei para você, esses anos secos, essa matona aí era bonita de se ver, mas
tinha tanto pé de árvore. Secou, veio água, desfez muito. Mas a gente tem
esse interesse de rever alguma coisa, de refazer, né? (Seu Santo, Croatá,
2018).

Além destes cultivos cotidianos, as retomadas do território também são importantes


nesse processo de recriar, rever, refazer e continuar a cultivar estórias. Através da ocupação
e reocupação de seus territórios tradicionais, os quilombolas coletivamente se esforçam para
evitarem as queimadas das matas e também para deixarem o mato das áreas desagradadas
pela fazenda se criarem livremente, impedindo que terceiros soltem gado nestas áreas ou
derrubem suas árvores. Como afirmou Seu Arnaldo, “cada árvore é um filho de sangue, dói
quando corta”. Por essa razão, retomar e preservar seus lugares é “uma luta muito profunda”,
pois envolve manter, criar e proteger seus “filhos de sangue” e também a memória de seus
finados. Retomando a metáfora das árvores, nos apresentada por Zé Orlando na introdução
da tese, é possível dizer que os pés são a raiz da estórica produzida entre quilombolas e
viventes. Sendo assim, é apenas através da ação conjunta com estes pés que a vida do povo
da beira do rio pode continuar a crescer e criar suas ramas, na direção do futuro.
Na investida para repensar o conceito de lugar a partir de uma análise estreitamente
teorizada e fundamentada nas interconexões entre as relações natureza-sociedade, Jones e
Cloke (2002), escolheram as árvores para tal empreendimento. Como afirmaram, se as
“geografias animais” se tornaram parte vital e vibrante da “geografia humana”, então a flora
também “deveria tornar-se um elemento integrante na compreensão dos lugares” (JONES e
CLOKE, 2002, p. 74)87. Com isso, o objetivo dos autores é destacar o papel poderoso das
árvores, muitas vezes despercebido, na construção dos lugares e paisagens. Através do
diálogo com diversos autores, entre eles Ingold (2000), os dois geógrafos mostram como as
plantas, através de sua agência, sua presença ativa e criativa, fabricam lugares. Da mesma
forma, as árvores são culturalmente construídas a depender de suas localizações físicas e dos
contextos simbólicos e imaginativos nas quais estão presentes. Para os autores, “juntas, essas

87
“(…) should (...) become an integral element in the understanding of places” (JONES e CLOKE, 2002, p.
74).

225
forças se combinam e se recombinam em formações densas e ricas em espaços específicos,
contribuindo para a produção do lugar e, assim, constituindo os lugares em questão” (JONES
e CLOKE, 2002, p. 73)88.
Tal como propõe Jones e Cloke (2002), procurei, ao longo deste capítulo, lançar luz
sobre a vida das plantas e como ela acontece de maneira compartilhada com a vida das
pessoas. Se a paisagem da beira do rio existe tal como venho tentando mostrar, isto ocorre
em grande medida por causa das relações passadas dos quilombolas ribeirinhos com o lugar,
uma relação que permanece viva através dos rastros deixados por seus ancestrais por meio
dos pés.
Mas se as pessoas deixam seus rastros por meio dos pés, outros viventes também o
fazem, entre eles uma diversidade de animais, bichos e criações, como o gado, que avançou
com suas patas por toda a margem do rio São Francisco e com os quais os quilombolas
tiveram, em certos casos, ou quiseram, em outros, se relacionar. As relações com estes outros
viventes serão discutidas no próximo capítulo.

88
“Together these forces combine and recombine in rich, dense formations in particular spaces contributing to
the production of place and thereby constituting the places concerned” (JONES e CLOKE, 2002, p. 73).

226
Capítulo 6
ANIMAIS, BICHOS, CRIAÇÕES E O COMPADRE

6.1. Animais, bichos e criações

Era manhã de domingo na comunidade de Croatá e, na casa da benção, onde me


hospedava, já se ouvia uma grande agitação. Na cozinha, Enedina passava o café enquanto
seus filhos, Bibi e Jeferson, conversavam entre si em frente ao tanque de lavar roupa, que
fica próximo ao local. Em um dos bojos do tanque, mergulhavam Osama. Hora ou outra,
perguntavam aos berros algo para a mãe. Ao ver o pobre cachorro mergulhado em uma água
verde, perguntei do que se tratava. Jeferson, o filho mais novo, respondeu explicando que
era “água de São Caetano”, pois Osama estava com pulgas e a planta é boa para resolver este
problema. Naquela mesma manhã, aproveitei para perguntá-los quais eram as diferenças
entre algumas das categorias usadas para identificar os animais. Bibi me explicou que,
animal, faz referência aos cavalos e ao gado. Já as criações são as galinhas, porcos, cocás
(galinha d’angola) entre outros que eles mantêm em seus terrenos. Os bichos são aqueles do
mato, não domesticados.89
Ao descrever esta cena, procuro nesta seção apresentar os animais, bichos e criações,
viventes que também fazem parte da vida cotidiana dos quilombolas ribeirinhos. Apesar da
explicação fornecida a mim por Bibi, sobre a classificação destes seres, pude notar ao longo
da pesquisa que elas são bastante contextuais. Cavalos e bois, por exemplo, embora sejam
considerados como animais, na maioria das vezes também são referidos enquanto criações.
Já as criações, por vezes também são chamadas de bichos. Os bichos do mato, embora não
possam ser considerados como criações, podem, sem dúvida, serem chamados de animais.
Como destacou Oliveira (2006), estas alternâncias ocorrem porque as classificações nativas
estão ligadas às diversas dimensões da vida social e, por isso mesmo, os seres (animais ou
vegetais) podem ser classificados de acordo com os contextos enunciativos em que

89
É importante ressaltar que termo bicho também pode aparecer no feminino. Para se referirem às onças e
cobras, por exemplo, é costume dizerem “a bicha”, que faz referência à apenas um indivíduo da espécie.

227
aparecem, algo também notado por Vander Velden (2012), em sua pesquisa entre os
Karitiana, e por Sanchez (2019b), entre os Kujubim no vale do Guaporé (RO).
Apesar da interessante complexidade existente em torno dos modos de classificação
destes viventes, não é meu objetivo aprofundar nessa temática. Estas categorias, de animais,
bichos e criações, me servem apenas como ponto de partida para uma descrição, mesmo que
breve, sobre como estes seres estão presentes na vida dos quilombolas ribeirinhos. Inspirada
em Vander Velden (2012, p. 25), procuro pensar estes bichos como “parte dos incessantes
esforços comunitários destinados a produzir uma boa vida cotidiana”, fazendo o esforço de,
como argumenta o autor, não limitar sua importância aos aspectos produtivos dos
quilombolas ou reduzi-los a elementos de cenário, a partir da descrição de detalhes rotineiros
e sem importância. Ao contrário, por meio do olhar direcionado aos bichos, a proposta é
conectar e aprofundar esta discussão com os outros temas que já vêm sendo desenvolvidos
ao longo da tese. Entre eles: o movimento – antes de gente e plantas, mas agora também dos
bichos; a convivência, que constitui o cotidiano na beira do rio; e a ideia de “criação”, que
constitui o ser quilombola ribeirinho.
Considerando, então, que as categorias presentes no universo ribeirinho para a
referência aos animais são estas já elencadas (animais, bichos e criações) e que elas são,
além de tudo, contextuais, buscarei uma forma alternativa para apresentá-las. Como
denominou Vander Velden (2012), estas podem ser consideradas “inquietas companhias”,
ou seja, seres que estão sempre fugindo dos terrenos ou das pessoas, invadindo roças, casas
e se alimentando do que não deveriam. Nesse sentido, Vander Velden (2012, 2018), Pereira
(2007), Andriolli e Pereira (2016) e Teixeira (2020) já haviam notado estas constantes
movimentações dos bichos em diferentes contextos etnográficos. Estes seres inquietos
circulam por áreas urbanas, casas, quintais, campos e matas, sendo seus movimentos
observados e narrados pelas pessoas. Como mostram Andriolli e Pereira (2016), os bichos e
seus movimentos são um importante tópico da vida cotidiana na roça. Estas observações e
narrativas também estão presentes na vida dos quilombolas da beira do rio, que estão sempre
atentos aos comportamentos e deslocamentos dos animais e sempre têm algo a dizer sobre
eles. Portanto, será a partir deste tema que procurarei apresentar os bichos da beira do rio.
Partindo da perspectiva do movimento, é possível descrever os bichos como sendo
os “de quintal” ou “de terreno”, os “de criação” e os “do mato”. Fora estes, uma vez que não
se movimentam por terra, ainda temos os pássaros e os peixes. Outra categoria, que poderia
ser apresentada de maneira distinta, pois incluem bichos que causam medo ou algum grau

228
de asco nas pessoas – no limite, aqueles que Rose e Van Dooren (2011) chamaram de
“unloved others” – são as cobras, gafanhotos, caranguejos (aranha caranguejeira), pulgas,
pichilinga (piolho-de-galinha), carrapatos, mosquitos, moscas, entre outros.
A linha que separa os animais de “de quintal” e de “de criação” é tênue, uma vez que
todos eles são de criação, sendo, independentemente de seus movimentos, cuidados e zelados
por seus donos. Mas existem algumas diferenças que podem ser observadas a partir da
descrição da convivência dos quilombolas com estes seres. Cachorros e gatos, são aqueles
que vivem soltos pelos quintais. Sozinhos ou acompanhados, se deslocam livremente pelos
terrenos e pelo mato, embora sempre prefiram ficar perto de seus donos para receberem os
cuidados oferecidos por estes, que os alimentam e os zelam, como no caso descrito no início
do capítulo. Apesar de suas andanças por diversos lugares, os cães costumam estar sempre
perto da casa ou das pessoas e, embora fiquem a maior parte do dia deitados sob alguma
sombra, estão sempre atentos ao movimento das pessoas, dispostos a latir, caso algum
estranho se aproxime, ou mesmo a correr atrás de motos e bicicletas que, por ventura, passem
pelas estradas. A latição dos cachorros é notada pelos quilombolas que, ao ouvirem-na,
imaginam a aproximação de algum chegante. Em caso contrário, quando os cães estão em
latição por motivos considerados vãos, estes são repreendidos por seus donos, que se irritam
com a barulhada.
A presença dos cães na roça, em geral, é considerada algo positivo, uma vez que é
exatamente sua latição que ajuda na proteção da casa e de seus moradores. Além disso, nos
casos de ataques noturnos de raposas aos galinheiros, são também os cães que avisam sobre
a presença sorrateira do bicho. Como argumenta Teixeira (2020), os avisos dos cães são
parte de um “vigiar e narrar” bastante presente nos universos rurais e discutido por
Comerford (2014). A barulhada dos cachorros, principalmente à noite, faz os moradores
tecerem comentários no dia seguinte e especularem sobre as razões da latição. Minha anfitriã
em Sangradouro Grande, Dona Olívia, sempre comentava algo a este respeito e me
perguntava se eu tinha ouvido a barulhada noturna. Em seguida, prometia que, se o mesmo
acontecesse na noite seguinte, se levantaria para ver o que se passava. Seu receio estava
relacionado a possível presença de algum bicho, que poderia se aproximar do seu galinheiro
para comer suas galinhas. Em uma dessas ocasiões, seu filho Rubão a desmotivou, pois já
havia descoberto o motivo da latição dos cães. O caso era que havia ouvido notícias de onça
pelas redondezas e, certamente, essa seria a razão dos latidos dos cachorros.

229
Talvez, devido ao seu importante papel em “vigiar” o terreno e “narrar” sobre a
aproximação de pessoas e bichos, eles sejam bem alimentados pelas pessoas, pois assim
podem exercer melhor a sua “função”. Misturas com fubá, abóbora cozida, mingau de
farinha de mandioca, peixe e feijão cozido, alimentos que costumavam ser e ainda são
abundantes na beira do rio, são as comidas destinadas aos cães. Na falta destes ingredientes,
o arroz cozido é a opção para alimentá-los. É claro que, para além de sua “função”, os
quilombolas estabelecem relações afetivas com estes animais. Isso fica evidente nos
cuidados cotidianos e na observação do comportamento individual de cada cachorro, que é,
em muitos casos, nomeado a partir de suas características comportamentais. Durante a
pesquisa de campo, muitas vezes só vinha a descobrir seus nomes quando algum morador
comentava algo sobre o comportamento dos seus cães. Este foi o caso do cachorro de Manel,
que é considerado um sonso porque, quando vê um animal do mato, não o mata, apenas
morde e depois solta o bicho. Já Pimenta, cachorra de Dona Osvaldina, recebeu este nome
por ser atentada e terrível, “igual uma pimenta malagueta”.

Figura 37 - Cachorro Osama acompanha movimento das crianças


Fotografia: Izadora Acypreste, 2018.

Apesar dos afetos das pessoas com os cães, eles nem sempre estão sujeitos ao cuidado
e à proteção. Conforme argumenta Teixeira (2020), o ato de criar envolve, entre outras

230
coisas, o governo da vontade do outro, de maneira que isso auxilie no seu entendimento.
Bichos, como discute o autor e como também pude ouvir em campo, são inocentes e
irracionais. Por isso mesmo, se, por um lado, não podem ser judiados, pois não sabem o que
fazem, por outro, podem ser governados para que aprendam a viver entre os outros
(TEIXEIRA, 2020). Pude observar isso certa vez quando uma moradora, ao catar ovos no
galinheiro, deixou um deles cair no chão. Sua atitude de imediato foi evitar que sua gata
comesse o ovo quebrado, explicando que precisava fazer isso para que ela não acostumasse
a se alimentar de ovos de galinha. Caso isso acontecesse, poderia criar o hábito de invadir o
galinheiro para roubar os ovos.
Semelhante a outros contextos etnográficos em que cachorros (ou outras criações)
atuem de maneira eticamente condenável pelas pessoas (VANDER VELDEN, 2012;
TEIXEIRA, 2020), como quando se alimentam de outros animais de criação, estes podem
vir a ser sacrificados por seus donos. Esta decisão, me parece, é encarada com grande pesar
e deve ser tomada sempre pelo próprio dono do cão. Caso não seja sacrificado por seu dono,
mas sim por outro morador, a situação nunca estará livre de alguma tensão, pois pode ser
considerada pelo dono como uma ofensa ou ataque pessoal. Este foi o caso narrado por uma
moradora da beira do rio, em que foi necessário, inclusive, a realização de um boletim de
ocorrência. O sacrifício do cachorro de um quilombola por um criadô foi entendido como
uma desavença pessoal. A morte do cachorro de um, que havia matado um animal do outro,
não foi o maior problema em si, mas significou um desdobramento de um conflito já
existente entre os quilombolas e o criadô. Desse modo, a disputa, que foi levada ao fórum,
acabou ficando sem resolução, pois o quilombola sequer quis se posicionar a respeito da
morte do seu cão. Seu medo e o da comunidade, ao fazerem o boletim de ocorrência, era a
ameaça que o criadô passou a representar para o grupo depois de ter matado a tiros o
cachorro. O assunto “ficou por isso mesmo”, mas ainda hoje os moradores consideram um
risco cruzar com o sujeito pelas estradas que dão acesso à comunidade.
Além dos cachorros, outros animais também podem ser identificados enquanto “de
terreno” por sua liberdade de circularem por diferentes espaços. Estes são os cocás, patos,
jegues, cabras e papagaios. Estes animais, diferentemente do cachorro que tem sua “função”,
estariam mais relacionadas àquilo que os Karitiana, estudados por Vander Velden (2012)
chamam de “enfeite”, pois sua presença, além de não ser tão expressiva, é considerada mais
do ponto de vista afetivo ou mesmo experimental. Algo que também foi notado por Stefanuto
(2017) entre os Kaingang da terra indígena Toldo Chimbangue em relação à presença das

231
aves que embelezam o entorno das casas deste povo. Amelinha, por exemplo, dizia que sua
cabra, além de fornecer alguma quantidade de leite para a família, antes de tudo, era seu
xodó. Os cocás, criados por alguns moradores, são um exemplo da experimentação em
relação a criação do bicho. São animais que vivem soltos e livres pelos terrenos e nunca
ficam presos, a exemplo das galinhas. Ainda que sejam criados para mod’e se ter o de comer,
os quilombolas reclamam que eles gostam de botar seus ovos em lugares escondidos e que
pegar o bicho, é algo bastante trabalhoso. Patos são ainda piores, pois, como também disse
Amelinha: “eita bicho que atenta!”. Aqueles que minha interlocutora tentou criar acabaram
na sua panela. Os papagaios, também chamados de loros, são encontrados em algumas casas
da beira do rio. Com eles, os moradores passam o dia conversando, uma vez que a ave, como
se sabe, repete os sons emitidos pelas pessoas.
Assim como os papagaios, que vivem próximos das casas, outros animais do terreno
também são mantidos nas imediações. Os mais comuns são os porcos, galinhas, cavalos e
bois. No tempo antigo, antes da chegada das fazendas e da introdução das cercas, estes bichos
eram criados soltos durante o dia e presos durante a noite. Se antes as roças eram cercadas
para impedir a invasão dos bichos, hoje são os bichos que vivem cercados. Sendo assim,
como vimos anteriormente, se os quilombolas perderam sua liberdade de acesso as terras
livres e soltas, o mesmo pode ser dito em relação aos bichos.
A solta já vem aparecendo ao longo da tese e, além de se referir às terras livres,
também está relacionada ao modo de criação dos bichos, que também ficavam livres para se
movimentarem e obterem parte da sua alimentação no mato. Em outras etnografias sobre
populações rurais do Norte de Minas Gerais e em outras regiões do país (COSTA, 1999;
ALMEIDA, 2008; TAVARES, 2008; COSTA FILHO, 2008; MOURTHÉ, 2015;
ZAMBRINI, 2016), a solta, ou o sistema de criação na solta, também aparece como
sinônimo de liberdade e fartura, um tempo em que as pessoas criavam seu gado e outros
bichos na terra livre. A preferência para criação, como disse Dona Olívia, era de bichos
“que ponhava em qualquer lugar”. Como contou também Seu Zé Bete, de primeiro tinha
muita criação de carneiro, tanto que, “quando era de manhã, que abria o mangueiro e soltava
[os bichos], chegava fazia aquela fileira, caminhando um atrás do outro”. “Era bonito
demais”, disse ele, completando que gostava de ver principalmente os bichos saírem pulando
do mangueiro.
Outra estória contada pelos quilombolas é sobre os “porcos que rachavam”. Ramiro,
lembrando do povo antigo que morava em Sangradouro Grande, disse que eles “criavam

232
umas porcalhadas” que chegavam a rachar de tão gordos. Enquanto rachados, mas ainda
vivos, as galinhas tentavam comer a carne e as entranhas do bicho. A solução dos criadores
era tapar as rachaduras no corpo do animal com barro. Porcos criados livres e gordos, a ponto
de racharem, são demonstrativos da fartura presente no tempo antigo e que é lembrada pelos
quilombolas. Como disse Seu Zé Bete:

Tudo isso existia, mas depois os proprietários foram acusando de não criar,
dizendo que estragava o pasto, aquele monte de coisa, e o pessoal acabou
com criação. Até o porco, quem criava porco aí era solto, de noite eles iam
todos e fechava o mangueiro para dormir preso. Isso acabou tudo. Hoje se
quiser criar um, é no criatório e muito bem feito, através de cimentado (Zé
Bete, Gameleira, 2018).

Como já discutimos, o modo de criação dos animais tem uma relação direta com a
qualidade dos alimentos que eles podem fornecer. As mudanças no sistema de criação
anunciadas por Zé Bete afetaram em grande nível a qualidade da carne do bicho. As
precauções com a carne de porco, que já é naturalmente ofensiva, precisam ser ainda maiores
com o bicho criado “através de cimentado”.90 Além disso, as novas qualidades de porco
criadas hoje dão mais trabalho para os quilombolas. Isso foi o que fez Dona Osvaldina
desanimar com a criação.

Agora deu para uns porcos ruins. Compra porco e eles não querem comer
milho, querem é lavagem. Não engorda nem nada, desperdiça. Compra
milho para misturar com terra e não engorda. Desanimei! Lutei com porco
e esse porco, quanto mais passava dia, em vez de estar engordando estava
era voltando para trás. Não teve jeito não. Criar mesmo é galinha, que é
menos trabalho (Dona Osvaldina, Várzea da Cruz, 2018).

Engordar porco é um modo dos quilombolas dizerem que criam porcos. A expressão
também significa o quanto alguém trabalhou em determinado momento ou lugar e obteve os
frutos do seu esforço. Quando Seu Pedro me contava sobre sua experiência de ter vivido no
rio do Peixe, onde “arranjou uma casa” para morar, disse que lá plantou roça, colheu muita
coisa, construiu casa de farinha com motor, criou muita galinha e engordou porco. Devido
ao seu trabalho bem sucedido no rio do Peixe, como ele disse, “melhorou os trem” para ele.
Com os frutos do seu esforço, comprou a casa onde vive atualmente em Remansinho. Por
outro lado, como aparece no depoimento de Dona Osvaldina, criar porcos sem conseguir

90
Estas precauções com a carne de porco, que pode ser considerada ofensiva, também aparece nas etnografias
de Vander Velden (2012), como “reimosa”, e de Dantas (2016), como “carregada”.

233
engordá-los é sinônimo de fracasso e pode causar desânimo na pessoa. Outro motivo que faz
os moradores desanimarem com as criações está relacionado à própria mudança com o
sistema de criação na solta. Sobre isso, dizia seu Pedro:

Mas ali, moço, é bom de criar, mas do jeito que está não pode, porque as
cercas tudo ... bode é um caso sério e não tem jeito não, e porco ... O povo
hoje não quer fazer cerca de madeira, só quer arame, cerca de arame não
segura porco e nem bode, só se fizer juntinho assim, ninguém aguenta
fazer. Que antigamente a roça era cercada de madeira e os bichos soltos.
Criava o porco solto. A hora que o porco entrava na roça de um, falava
com o dono: “olha moço, o porco seu está entrando na roça”. Pegava e
botava uma cangona nele, caía lá, tapava aquele buraco e consertava. Dava
para todo mundo criar. Mas depois que A.I. tomou de conta, botou arame
lá e pronto [acabou] (Seu Pedro, Remansinho, 2017).

Independente do sucesso com as criações, a luta dos quilombolas com os bichos é


algo altamente valorizado e respeitado na beira do rio, estando também conectado com a
ideia de labuta, já discutida anteriormente. As duas expressões, luta e labuta, estão
carregadas de valor moral. Como discutido por Comerford (1999), o termo luta pode
aparecer em vários contextos enunciativos e pode apresentar diferentes sentidos, sendo uma
forma de qualificar o enfrentamento das dificuldades do cotidiano (financeiras, com a terra,
com as plantas, com os bichos e com a política) e, ao mesmo tempo, da parte daquele que
luta, é uma forma de assumir o próprio valor. Estas dificuldades e a luta dos moradores
acabam sendo reconhecidas pelos outros, que se solidarizam entre si no enfrentamento das
mesmas.
Quando contavam sobre o tempo de primeiro, quando havia muita fartura, mas
também muito sofrimento, os quilombolas reforçavam que era um tempo marcado pela
solidariedade e reciprocidade entre os moradores. “Era o estilo do coletivo, só era de pessoas
fraca e não tinha tanto atrito”, me contou Seu Santo. Essa reciprocidade, presente no tempo
das soltas, se refere não apenas às relações entre as pessoas, mas também se estende aos
bichos. Se não, os bichos são, ao menos em parte, importantes atores na solidariedade entre
os quilombolas.
Atualmente, apesar dos fazendeiros “acusarem de não criar”, das mudanças em
relação ao sistema de criação e das mudanças na qualidade dos próprios bichos, muitos
animais ainda são criados na beira do rio, ainda que em menor número e diversidade. Sobre
as criações atuais, disse Seu Saulo:

234
Porque hoje, o coitado do vazanteiro, se ele criar muito é uma cabecinha
de gado, duas, tem muitos que é mais, mas outros, mal é uma, duas pra dar
um leite a uma criança. Mas o que ele cria mais é galinha, um porco, um
animal pra pegar uma carroça, pra arrear um animal pra ir na rua [cidade]
montado quando ele não pode ir de bicicleta. Mas é só isso que o vazanteiro
mexe mais, é só com essas coisas, coisa pouca (Seu Saulo, Croatá, 2018).

Como expressou seu Saulo, criação na beira do rio hoje é “coisa pouca”. Galinhas,
seja em maior ou menor quantidade, são criadas por todos os moradores. Por isso mesmo,
em cada terreno é possível encontrar um galinheiro. A maioria também possui um ou mais
porcos. No caso daqueles que só possuem um, é comum ver o animal sendo criado preso na
corda, para que não seja necessário a construção do chiqueiro. Cavalos também são criações,
porém, sua presença é bastante limitada na beira do rio, estando mais presentes entre aquelas
famílias que criam uma quantidade maior de gado e que, por isso, precisam de “um animal
para andar” e atravessar o mato para buscar o rebanho em algum lugar mais distante. Estes,
quando existentes, ficam presos em cordas amarradas em algum pau ou soltos em locais
próximos onde exista disponibilidade de mato para se alimentarem. Muito pode ser dito
sobre a presença do gado, mas deixemos esta discussão para mais adiante. Por hora, resta
dizer que, apesar de sua importância para a estórica da beira do rio, são poucos os moradores
que os criam.

Figura 38 - Porco criado na corda


Fotografia: Izadora Acypreste, 2017

235
A despeito das mudanças que vêm acontecendo na beira do rio desde o fim das
soltas, a luta e a reciprocidade em torno das criações ainda são bastante presentes no
cotidiano das pessoas. Ao discutir as lutas dos quilombolas do Norte de Minas Gerais,
Mourthé (2021) descreve que as andanças das pessoas pelo “mundo dos movimentos” fazem
circular uma rede de ajudas e trocas que envolve moradores colaborando uns com os outros
enquanto alguém está viajando. Segundo o autor, “através de relações de ajudas mútuas,
parentes, vizinhos e amigos costumam auxiliar uns aos outros nas etapas de preparo da terra,
plantio, na limpa, colheita, nos cuidados com as plantações e no manejo das criações”
(MOURTHÉ, 2021, p. 193, grifos do autor). Assim, para que um possa viajar, é necessário
poder contar com a colaboração de algum familiar, amigo ou vizinho. Enedina, por exemplo,
quando teve que ir para Goiás com o movimento, sem ter quem a ajudasse com as criações,
deixou uma “porca parida com seis leitaõzinhos”. Quando retornou, “só tinha um porco vivo,
cinco tinham morrido”. Isto porque, como ela explica, “os animais não são iguais a gente”,
pois precisam da atenção constante de seus donos. Na mesma narrativa, ela reforçou que,
apesar de ter perdido seus porcos, a luta com o movimento é para garantir a possibilidade de
continuar lutando com os bichos.
Ainda que os donos das roças, terrenos e criações estejam presentes, estas ajudas
com os bichos também são importantes no cotidiano dos moradores. No diálogo abaixo, de
uma cena presenciada durante a pesquisa, podemos ver como estas ajudas ocorrem
cotidianamente.

- Bom dia mais uma vez, como é que você está? Atravessou lá do outro
lado? Seu cavalo ontem estava atravessado em cima do arame.
- Ô meu Deus!
- Eu tentei ligar pra você, mas eu tirei. Eu só estou te avisando pra você ir
olhar. Você passou pra lá, achei que ia demorar um pouquinho, queria que
olhasse. Ali no pau jaú, eu tive que ir lá soltar o arame. Vai ver! O lugar
que ele estava em cima, já escurecendo, fui mais o menino, soltamos o
arame e tiramos ele. Ele estava com a cara virada pra cima. Aí eu fiz isso
lá, quero que você olhe. Eu fui lá, olhei ele, estava de barriga cheia. Ele
estava apegado assim com o arame. Quero que você veja.
- Brigadão! Muito obrigado! Tenho que pegar meu cavalo e trazer pra cá.

No diálogo acima, um quilombola dizia a um criadô que seu cavalo havia sido
desenroscado do arame da cerca. O criadô, descobrindo a situação, agradece ao quilombola
pela ajuda com o animal. Como já mencionei, existem diferenças de mentalidade entre um
grupo e o outro, o que tem se desdobrado em conflitos. Contudo, ainda que estas diferenças

236
existam, a ajuda do quilombola ao animal e, indiretamente, ao criadô, expressa a moralidade
presente na relação com os bichos. Quando presenciei o diálogo, acompanhada do
quilombola, não sabia que a outra pessoa com quem ele conversava era do grupo dos criadô,
algo que só vim a descobri depois que este último seguiu seu caminho de bicicleta pela
estrada. Além disso, meu interlocutor enfatizou que o dono do cavalo não era “muito
chegado” com ele. Ainda assim, se viu na obrigação de dar a sua ajuda ao animal.
Acompanhar este caso me fez crer que as criações podem tanto acentuar conflitos já
existentes ou fazer surgir novos (como no caso da morte do cachorro, que foi levada ao
fórum), quanto apaziguar relações tensas. Neste último caso, a moralidade em torno da vida
dos animais pode gerar, intencionalmente ou não, trocas recíprocas nas relações.
Fora as criações, existe toda sorte de bichos do mato, sendo os mais comuns e
frequentemente referenciados os veados, raposas, onças, macacos, capivaras, tatus, coelhos,
jacarés, quatis, tamanduás, gatos-do-mato e tiús. Embora estejam pelo mato e, no passado,
fossem até caçados, os encontros com estes animais atualmente são cada vez menos
frequentes, principalmente com os grandes mamíferos. De primeiro era comum os
moradores observarem rastros de onça pelos lugares onde caminhavam, outras vezes até as
encontravam sentadas ou eram perseguidos por elas nas estradas. Raposas e veados também
eram vistos caminhando ou correndo em algum lugar ou outro. Outros bichos, como
capivaras, tatus e tamanduás, mesmo que de maneira não recorrente, ainda podem ser
encontrados nas matas. Alguns destes gostam de se aproximar dos terrenos para se
alimentarem das criações e cultivos dos quilombolas, como o guaxo (guaxinim ou cachorro-
do-mato) que come as melancias e abóboras cultivadas nas vazantes. Ao fazê-lo, furam todos
os mantimentos, deixando “só as cumbucas”. O guaxo, segundo Dona Nilza, “é um bicho
que o pezinho dele é igual pezinho de gente” e “a mãozinha dele é igual a mãozinha de um
menino pequeno”. Na ocasião, ela me contava que havia visto o rastro dele na casa de outra
moradora. Talvez, devido à presença deste animal nas roças estar associada à prática de
comer indevidamente as melancias e abóboras plantadas pelos quilombolas, uma das
famílias da beira do rio recebeu este apelido de família: os Guaxo. Outro animal, neste caso
um réptil, que também aparece nos terrenos dos moradores e gosta de comer os ovos de
galinha, são os tiús.
Pouco pude ouvir sobre a caça dos bichos do mato na beira do rio, mas aqueles com
os quais conversei sobre o assunto diziam que de primeiro tinha muita caça. Se antes ela
existia, hoje é cada vez menos comum, pois estes animais que costumavam ser caçados estão

237
cada vez mais escassos. Segundo Dona Nilza, “depois que o povo botou fogo nas matas, que
virou essa derrubada”, os bichos deixaram de aparecer. Ela disse ainda que “esse negócio de
onça e veado, hoje é difícil ver”, pois “esses bichos gostam é de mata fechada”. O mesmo
comentava Dona Olívia, quando perguntava para seu filho se depois que pegou fogo na beira
do rio ele tinha visto novamente a cerva que andava por lá com seu filhote. Apesar da
ocorrência do fogo, Rubão afirmou que os bichos ainda estavam por lá. Depois da resposta
do seu filho, ela disse lamentando que os animais, cuja presença não tem sido muito comum,
se forem vistos por mais alguém poderão ser caçados em breve para serem comidos. Na
beira do rio, os veados são caçados pela forma que eles denominam enquanto “caça de
espera”. Como estes animais são atraídos pelo fruto do tamboril, os caçadores passam a noite
em cima do próprio pé ou de alguma outra árvore nas proximidades, aguardando a
aproximação do bicho.91
Pássaros e peixes, como eu já mencionei, por não se movimentarem por terra podem
ser descritos de maneira separada dos demais bichos. Claro que, como sabemos, os pássaros
podem caminhar sobre a terra, mas consideremos aqui sua principal forma de movimento, o
voo. Apesar das enormes diferenças entre os dois, pássaros e peixes, existe algo em comum
entre as duas categorias, que é o fato de ambos ensejarem nos quilombolas certas
capacidades de interpretação de seus comportamentos e anúncios. Mesmo que os peixes
normalmente não possam ser vistos, uma vez que estão em baixo da água, os pescadores
costumam saber detalhadamente os lugares onde podem encontrar cada uma das espécies
existentes no São Francisco. Cada tipo de peixe gosta de habitar lugares específicos do rio
e, por isso, os quilombolas sabem exatamente onde colocam suas redes e outros utensílios
de pesca para capturá-los. Os pássaros, mesmo quando não estão sendo vistos voando ou
pousados em algum tronco de árvore, emitem seus cantos que são ouvidos a todo momento
pelos moradores. Alguns destes cantos possuem outros significados e importâncias além de
sua beleza característica.

91
Não pretendo me debruçar sobre esta discussão pois, como já mencionei, a caça não tem sido uma atividade
frequente na beira do rio. Contudo, é importante um comentário, mesmo que breve, sobre ela, principalmente
devido a sua ilegalidade. Como sabemos, a caça de veados, e de tantos outros animais, é uma atividade ilegal
que ainda acontece não apenas na beira do rio, mas em diversas regiões do país (como apontam ANTUNES et
al., 2016 e GALETTI et al., 2016). Ao mencionar a caça e o lamento de Dona Olívia sobre a possível captura
do animal, não é meu intuito fazer nenhum julgamento moral daqueles que realizam esta prática. Com discutiu
Vander Velden (2018), atividades como a caça e o tráfico de animais, muitos deles em extinção, podem envolver
engajamentos multiespecíficos variados e, por isso, é preciso compreender que as noções de ilegalidade em
torno do tráfico e da caça geralmente não têm levado em consideração, de forma atenta, a “cultura” destas
práticas. Isto é, as motivações que levam as pessoas a matarem ou capturarem determinados animais.

238
Sobre os peixes, é importante dizer que os que costumam dar notícias sobre seus
comportamentos são os pescadores mais experientes, que têm a pesca como principal
atividade produtiva. Conforme Thé (2003), as espécies mais comuns do rio São Francisco
são tucunaré, dourado, curimatá (ou curimba), surubim, mandim, piau, piranha, corvina,
matrinchã, traíra e bagre. A autora, em um estudo em etnobiologia, apresenta o
conhecimento dos pescadores artesanais do São Francisco sobre o comportamento dos
peixes, entre eles o período de desova de cada espécie, o local de desova, o “cuidado
parental”, a migração, o dimorfismo sexual e os hábitos alimentares. Além disso, Thé (2003)
também discute quais tipos de apetrechos de pesca costumam ser utilizados pelos pescadores
em cada período do ano.
Conhecer o comportamento dos peixes, entre outras coisas, é fundamental para
garantir uma boa pescaria. Em muitos momentos, desde minhas primeiras experiências de
campo nas margens do São Francisco, eram frequentes as reclamações dos pescadores sobre
a diminuição do estoque de peixes no rio. Apesar disso, outros pescadores afirmam que “a
fartura da beira do rio é pescar” e que “qualquer menininho consegue dinheiro pescando”.
Seu Santo, por exemplo, disse que com as “mãos que Deus lhe deu” já pegou surubim de
setenta e cinco quilos. Dona Maria também dizia que, do pirá, seu marido já havia pegado
alguns do tamanho de um porco gordo. Peba, por outro lado, explicou que o povo diz que no
rio não tem mais peixes porque não sabem que a moradeira deles é no fundo do rio. Neste
caso, os peixes só saem do fundo para se alimentarem, mas depois retornam para o fundo.
Quando o rio enche, “eles começam a andar, vão desovar” e, com isso, qualquer pescador
que for pescar consegue pegar um peixe. Além do mais, ressaltou Peba, “a gente acha que
peixe é besta, mas os peixes são inteligentes”. A fazer tal afirmação, explicou o seguinte:

Olha, tem um peixe aqui chamado caranha, ele é assim ... eles aqui quase
não pescam dessa pescaria que eu pesco, não. Lá eu pesco só com uns
pedaços de rede daqui até essa parede aí, só que a malha é grande, é só
malha 20, esses trem. Só que quando chega à tarde, aí eu vou lá e ... nos
primeiros dias que eu vou, eu vou e armo 20 pedaços, quando chega no
outro dia, eu vou lá e pego 8 caranhas, por exemplo. Só que quando é no
outro dia, eu deixo os pedaços de rede do mesmo jeito, quando é no outro
dia eu vou lá e pego duas caranhas. E as vezes quando é outro dia eu não
pego nenhuma. Aí pode tirar a rede, pode deixar uma semana [sem rede].
O que acontece é que uma [caranha] vai contando para a outra (Peba,
Sangradouro Grande, 2016).

Estes conhecimentos sobre os comportamentos e a agência dos peixes, também foi


algo observado e discutido por Sautchuk (2011) em relação à pesca do pirarucu na região do
239
estuário do Amazonas. Em sua pesquisa, o autor argumenta que o trabalho da pesca se
desenrola em associação com diversos aspectos, entre eles o comportamento do peixe. Além
disso, existem horário preferenciais para “topar o pirarucu”. Na pesquisa de Thé (2003), a
autora apresenta uma série de narrativas dos pescadores artesanais do São Francisco sobre o
comportamento dos peixes. Entre os depoimentos citados pela autora, descrevo um deles
abaixo:

O peixe é igual nós. A gente amanhece o dia, vai para o serviço, mas, ao
meio dia, vem para casa almoçar. Acabou de almoçar, fez ali o que tinha
que fazer, torna a voltar. À noite, procura sua casa. Do mesmo jeitinho é o
peixe; a morada dele é na pausada. Igualzinho a nós o peixe também viaja;
ele amanhece o dia, arriba no mundo caçando isca; quando enche a barriga
volta para cama, toma um fôlego e torna a sair. Quando é noite ele vem
dormir. Os pescadores limparam o rio todo, arrancaram os paus; aí o peixe
chega e não acha lugar para apoitar, para descansar (THÉ, 2003, p. 27).

Outro lugar onde os peixes gostam de ficar é em baixo dos paus que caem do
barranco no rio. Sabendo disso, Peba disse que gosta de armar sua rede “por trás do pau”,
amarrando uma ponta da rede na beira e a outra presa em uma pedra no meio do rio.
Considerando os casos contados por Peba e pelos interlocutores de Thé (2003), podemos ver
que estar atento ao movimento, ao estacionamento e à comunicação dos peixes é muito
importante, algo que os pescadores precisam saber com excelência para garantirem uma
pesca bem sucedida.
Dito isso, e retomando as observações sobre os pássaros, como discutiram Araújo et
al. (2019, p. 86), “as áreas ao longo da bacia do rio São Francisco são consideradas áreas de
endemismo de aves pela BirdLife International”, que é uma parceria global de ONGs
conservacionistas que têm como foco a vida das aves. A diversidade de pássaros na beira do
rio é observada pelos quilombolas, que os reconhecem por suas características físicas e
cantos específicos. Semelhante ao que discutiram Pissolato e Mendes Júnior (2016) para o
contexto Guarani, pode se dizer que os pássaros são partes constitutivas da “paisagem
sonora” da beira do rio. Conversando com Dona Osvaldina, ela dizia que desde o ano
passado [2017] estava assuntando um “passarinho miudinho” que ela ouvira cantar de
manhã, cujo som é um tí-ti tí-ti. Na mesma manhã dizia ter ouvido um canto de sabiá e de
uma seriema. Certa vez, ao notar a presença de um cardeal no quintal de Dona Maria, ela foi
logo dizendo que o passarinho de “cabecinha vermelha” e seus filhotes sempre vinham ao
seu terreno para se alimentarem de algo que ela, propositalmente, deixava em algum lugar.

240
Por meio das visitas, Dona Maria havia observado que os filhotes do passarinho, que ainda
não tinham a cabeça vermelha, estavam começando a “pegar a cor”. Além disso, contou que
vez ou outra coloca seu loro para ficar com eles. Pela apreciação que têm por estes bichinhos
que voam, na maioria das vezes eles são referenciados no diminutivo. Mesmo quando não
os notava, os quilombolas me chamavam a atenção para algum passarinho que pousava por
perto. Assim, os pássaros, em geral, são presenças ou visitas muito apreciadas pelos
moradores por suas belezas, delicadezas e cantos.
As noções, como já mencionado, de bichos inocentes e irracionais, aos passarinhos
parecem valer fortemente. Diferente de como acontece com os outros bichos que, quando
atacam as criações e roças, recebem as repreensões dos quilombolas, com os passarinhos as
pessoas são mais complacentes, ainda que estes possam causar alguns estragos nas roças.
Alguns deles apenas pousam para comer as sementes recém plantadas nas roças ou comem
as frutas dos pés cultivados nos terrenos. Outros, contudo, são quase como pragas, mesmo
que não sejam definidos assim por meus interlocutores. Entre estes, os periquitos e jandaias
são os mais comuns. Como estes voadores “rendem demais”, pois “todo ano chocam”,
quando invadem as roças de milho, deixam para trás só os “pacotes de palha”. Quando o
dono da roça aparece na plantação, “chega a voar aquele tanto de periquito”, me disse Dona
Nilza. Alguns pombos também ousam pousar nas roças para comerem as folhas das
plantações.
Fora a apreciação – ou não tanto – pelos pássaros, o que mais chama atenção é o fato
deles serem, como discutiu Cebolla Badie (2000), seres “mensageiros”. A primeira vez que
ouvi sobre estes anúncios foi quando, ainda durante a realização da pesquisa de mestrado,
conversando com Maria, de Sangradouro Grande, ela ouviu o canto de um acauã. Em uma
afirmação que quase passou despercebida por mim naquele momento, ela disse que o pássaro
estava anunciando a morte de alguém. Alguns dias depois passei a considerar mais
seriamente a relação entre os pássaros e suas previsões, pois, por infortúnio, um sobrinho da
minha interlocutora, que é também filho de Dona Olívia, veio a falecer em São Paulo, cidade
onde morava. A notícia deixou toda a família estarrecida e eu, por minha vez, não conseguia
esquecer o aviso do pássaro. Anos depois, agora na pesquisa de doutorado, pude ouvir
novamente sobre os anúncios dos pássaros, mas desta vez, eles anunciavam sobre a chegada
das chuvas. Sobre esse assunto, me deterei a ele com mais profundidade no próximo capítulo
da tese.

241
Tendo apresentado brevemente os principais animais com os quais os quilombolas
se relacionam na beira do rio, gostaria de acrescentar uma descrição sobre outros bichos
que, independentemente de sua forma ou alcance de movimento, me chamaram a atenção
por produzirem nos quilombolas um conjunto de sentimentos e sensações que vão desde o
medo até o nojo. Entre este conjunto de bichos peçonhentos, perigosos ou que, por mais
inofensivos que sejam, simplesmente causam medo nos moradores, estão as cobras, o
caranguejo, o gafanhoto, os carrapatos, pulgas, pichilingas, moscas varejeiras e uma
diversidade de “mosquitos”. Por menores e mais insignificantes que pareçam, como
argumentou Vander Velden (2016), é preciso dar a devida atenção a estes seres, ainda que a
antropologia tenha tido mais interesse pelos grandes predadores, isto é, por aqueles que
“exercem forte atração ao pensamento social e aos modos de ser ocidentais modernos”
(VANDER VELDEN, 2016, p. 409). No limite, ainda argumenta o autor, é preciso olhar
para além daqueles que podem comer os humanos ou que podem ser comidos pelos
humanos.
Apesar das boas relações com os outros bichos descritos até o momento, estes
“unloved others” (ROSE e VAN DOOREN, 2011) também são personagens importantes nas
vidas e estórias dos quilombolas ribeirinhos. No início da tese tivemos a oportunidade de
nos encontrarmos com o primeiro deles, o “mosquito” transmissor da malária, que vem, por
isso mesmo, construindo estórica junto aos quilombolas. Mas, durante a pesquisa, o que
primeiro despertou minha curiosidade sobre estes seres era o medo que eles causavam nas
pessoas. Até então, eu supunha que as cobras seriam as maiores causadora destes medos,
devido à sua ofensa poderosa. No entanto, várias vezes ouvi os quilombolas dizerem que
seus maiores receios eram, na verdade, em relação a outros bichos. Lembro quando Rubão
disse que morria de medo de aranha caranguejeira, sendo que, alguns dias antes, voltando da
roça havia me mostrado sua perneira cheia de furos, sugerindo picadas de cobras. De outra
vez, Totinha me disse que tinha “mais medo de um cachorro valente, uma vaca parida, se
possível até de uma barata e aquele gafanhotão”, mas que cobra, ele não gostaria de pisar
nela, mas se apenas a visse em algum lugar não ficaria com medo.
Embora, como discute Vander Velden (2016), alguns destes seres, como alguns
insetos, também sejam responsáveis pela morte de muitas pessoas, os medos dos
quilombolas nem sempre estão associados aos perigos reais destes bichos. No caso das
cobras, mesmo que elas apresentem um perigo real e os quilombolas, de fato, tenham medo
e contem muitas estórias sobre elas, como disse Totinha, ela “só pega quando Deus quer,

242
quando Deus não quer ele te mostra antes, você pula e ela fica lá”. Em seguida, contou seu
caso dizendo:

Cascavel já chegou [perto] um tanto que eu ia embaraçar nele, eu passei a


vista e ele já estava [preparando o bote], aí eu não sei como eu pisei que já
pulava lá longe, ele entortou pro lado assim e saiu andando, chegou,
achatou, lambendo a língua. Eu tirei um pulo que foi Deus mesmo pra me
livrar desse momento. Depois eu fui fazer [repetir] esse pulo sozinho pra
ver se eu fazia [conseguia] e não fiz [consegui] (Totinha, Gameleira, 2018).

As cobras são presenças constantes na vida das pessoas, mas quando as primeiras
chuvas de verão começam a cair e “o mato começa a reflorestar” é quando as peçonhentas
“aparecem mais”. No período chuvoso, quando os sapos passam a frequentar constantemente
os terrenos e o interior das casas dos moradores, acabam por atraí-las. Conversando sobre
as cobras com a família de Enedina, ela disse que eles haviam recentemente tomado banho
com uma e só descobriram quando a viram “saindo passando” pela cozinha. De outra vez,
Karol, filha de Enedina, dormiu com uma embaixo de sua cama. Quando descobriram a
bicha, deduziram que ela já estava ali por alguns dias. Apesar das estórias e da peçonha das
cobras encontradas, a família não parecia tão preocupada com sua presença. Neste caso,
explicaram que elas só apresentam perigo se “mexer com ela”, pois “se não mexer, elas ficam
lá e depois vão embora”. Em todo caso, existem soluções para lidar com elas, entre estes o
benzimento. Segundo Bibi, seu sistema é pegar o porrete para benzê-la. Brincadeira à parte
do adolescente, como discutiu Pereira (2017), os benzedores também são chamados para
realizarem rezas de cura para os ofendidos ou para afastarem cobras dos pastos.
Apesar de não serem causadoras dos maiores medos nos quilombolas, eles
reconhecem os perigos que elas representam, pois “quando ela não mata a pessoa, ela deixa
sintoma”. Por serem presenças incômodas, mas constantes, meus interlocutores também
produzem elaborações sobre seu comportamento. Na beira do rio, as cobras mais
mencionadas são a cascavel e a quatro presas. Sobre estas duas, os moradores contam uma
piada (que também aparece, com algumas diferenças, em PEREIRA, 2017).

João: Diz que a cascavel combinou mais a quatro presa: “comadre, quando
a senhora dá um bote e acerta” ... a outra falou: “é comadre, eu tiro o corpo
fora pra não cair em riba de mim”. A outra falou: “ô comadre, eu gosto de
picar, mas não saio do lugar”.
Izadora: A quatro presas falando com a cascavel?
João: É. E a cascavel derruba na hora.
Izadora: Qual delas têm o veneno mais forte?

243
Totinha: A cascavel.
Izadora: A cascavel. Pica e já sai correndo?
Totinha: A cascavel não corre não, faz a rodinha e fica lá, se ele tiver
enfezado, for passando aqui assim e der pra ele jogar, ele joga. Ele não joga
errado não. A pessoa está ali perto, ele só joga pra pegar mesmo, não joga
pra errar não.
Izadora: Joga certeiro.
(João e Totinha, Gameleira, 2018)

Como aparece em meu diálogo com João e Totinha, além da característica dos botes
das duas cobras, o temperamento delas também aparece. A cobra, ao que parece, ofende
principalmente quando está enfezada. Este temperamento das cobras também foi
mencionado por Totinha, quando me contava sobre a picada que levou. Na ocasião ele dizia
que, quando foi pegado, pensou se tratar de uma picada de formiga boca d’água e disse: “ô,
formiga danada”. Mas quando olhou: “era ela [cobra] saindo de fininho, mordendo a língua
e olhando pra mim”. Depois de picado, embora tenha dado umas pancadas na bicha, foi
embora sem matá-la, explicando que “se matar, o veneno ataca mais”.
Esta “malícia” identificada nas cobras – principalmente na cascavel –, que saem
olhando para sua vítima depois de desferirem o seu golpe, ou que, mesmo depois de mortas,
de alguma maneira, podem invocar a alteração do seu veneno no corpo do ofendido, também
foi discutida por Pereira (2017). Conforme o autor, os habitantes de Urucuia também
identificam o comportamento “vingativo” da cascavel, que pode vir a deixar de se alimentar
para, no seu momento de vingança, estarem “só [puro] o veneno”. A raiva que a cascavel
sente, segundo os quilombolas, pode ocasionar na morte da própria cobra. Nesse sentido,
João me dizia que matou uma cascavel “fazendo raiva nela”. Ao ver uma, de longe foi
“jogando pedaço de pau nela”. Com isso, a bicha foi enraivando e morreu de sua própria
raiva, mesmo sem ferimentos graves.
Talvez por saberem bem sobre o seu temperamento, os quilombolas, mesmo
conhecendo seu perigo, conseguem lidar com a presença maliciosa das cobras. Já outros
bichos, por menores que sejam, são presenças bastante incômodas. Dos mosquitos, Totinha
disse ter o maior medo, principalmente das “muriçoconas avermelhadas” e dos transmissores
da dengue. Para ir na mata, disse vestir blusa, calça comprida e sapato, tudo isso porque lá
o “braço chega escurece de muriçoca”. Se bater a mão no braço, contou ele, “lava tudo de
sangue”. Na pescaria disse fazer do mesmo jeito. Mas, mais incômoda ainda é a mosca
varejeira, causadora do berne.92 Trabalhando perto de Curvelo, Totinha também disse que

92
Embora as larvas dos dípteros sinantrópicos, as moscas varejeiras, sejam as causadoras do berne, seus ovos

244
“pegou dois nas costas”. Na sua opinião, “se acreditasse em feitiço, dizia que foi feitiço”.
Um dos bernes ele próprio tirou, os outros “ficaram uma pedra, aquela pelotona, levantavam,
enchiam e chegavam a dar fadiga”. Na época, ensinaram a ele que se pegasse uma vela e
pingasse a cera de vela quente sobre o bicho, eles saíam. O problema foi que, quando tentou
o procedimento, o bicho morreu dentro de sua carne e “virou aquele laranjão”. Depois disso,
o quilombola não teve alternativa a não ser ir ao médico.
Além destes insetos, os moradores e suas criações também precisam conviver
frequentemente com os carrapatos, pulgas e pichilingas. Como chamou a atenção Vander
Velden (2016), ao discutir os mosquitos transmissores da malária entre os Karitiana, é
preciso pensar não apenas nestes seres indesejados, mas também nas “regras de convivência
entre anfitriões e hóspedes”. Outro ponto discutido pelo autor é a importância de olhar para
os encontros inter e intraespecíficos que estas incômodas companhias fazem acontecer.
Assim, na beira do rio, não é possível pensar alguns destes seres e as doenças que eles
causam sem considerar o conjunto de saberes quilombolas sobre a utilização dos remédios
do mato, seja para o controle das doenças, seja para o alívio dos seus sintomas. Existem
muitas raízes, cascas e folhas de plantas que são úteis no combate dos problemas causados
pelas presenças indesejáveis dos carrapatos, pulgas e pichilingas. Também já mencionei as
plantas utilizadas pelos quilombolas no tratamento dos sintomas da malária. Atualmente os
moradores também têm utilizado folhas de eucalipto, ou mesmo os pés de eucalipto que,
com seu cheiro forte, afastam os pernilongos. Os ventos noturnos, quando chacoalham as
folhas, liberam o cheiro da planta que, naturalmente, afasta os insetos. Inclusive, ao invés de
baterem “veneno”, amassam as folhas da planta e misturam com água para utilizarem nas
plantas contra as pragas. O mesmo procedimento pode ser realizado com capim-santo. A
utilização do eucalipto é particularmente interessante porque mostra as alianças
interespecíficas de que fala Vander Velden (2016), pois, embora os eucaliptos sejam
exóticos invasores – ou até mesmo inimigos, quando se trata de monoculturas desta espécie
estrangeira – , neste contexto os quilombolas estabeleceram uma relação de aliança com eles.
O que aparece de novo aqui, na verdade, é que, para algumas doenças e problemas
de saúde, os próprios animais ou partes de seus corpos também podem ser utilizados. A
banha de cascavel, por exemplo, “serve pra um bocado de coisa”. Para uma criança ou
“pessoa velha, que sente problema de bronquite, dá pra eles escondido, coloca três pinguinho

podem ser transmitidos para a pele dos humanos por meio de outros insetos, principalmente os hematófagos,
como as muriçocas.

245
no café ou no leite, mexe, e dá àquela pessoa”. Para o remédio funcionar, a pessoa que o
ingere nunca poderá sabê-lo. Como me explicaram, é uma simpatia. As simpatias que são
realizadas com os bichos considerados por eles como nojentos, como lagartixas, baratas
d’água, ovos de aruá (caramujo), entre outros, exigem, por um lado, a necessidade daquele
que prepara o remédio de lidar com o próprio nojo e, por outro, o total desconhecimento do
doente sobre a utilização do remédio que, na maioria das vezes, é feito por meio da ingestão
junto com algum outro alimento.93
Tendo apresentado de uma maneira geral a convivência com os bichos na beira do
rio, será necessário ainda uma discussão sobre aquele que talvez não seja o mais importante,
mas que tem um papel fundamental na vida dos meus interlocutores: o gado bovino. Além
deste ruminante, também é importante mencionar a presença de um outro ser que, ainda que
os quilombolas ribeirinhos não o considerem como um tipo de animal ou peixe, vive nas
águas do São Francisco, povoa diversas estórias contadas pelos moradores da sua beira e é
conhecido como compadre d’água, caboclo ou caboclinho.

6.2. “O negócio de gado é carinho”

Desde o século XVII, encontram-se referências sobre a pecuária praticada


ás margens do São Francisco. (...) Essa vocação tão precoce da região se
perpetuou até os nossos dias atuais. Nos anos 50, a paisagem humana
caracterizava-se pela existência dos currais toscamente construídos, não
muito distantes da ribeira: escolhia-se, de preferência, os terrenos mais
elevados a salvo das enchentes. Na falta de fontes nas proximidades dos
pastos, o “gado curraleiro” ou “pé duro”, como se dizia na época, vinha
beber no rio. Em cima do barranco, podia-se avistar o vaqueiro todo
encourado, bem protegido contra a áspera vegetação das caatingas e dos
carrascais. É possível que esta breve descrição da pecuária sirva também
para os tempos pioneiros: dos tempos coloniais até os anos 50, as mudanças
não devem ter sido muito substanciais. (NEVES, 1991, p. 34)

Na passagem acima, Neves (1991) faz uma observação sobre o que ele diz ser a
“vocação singular do homem sanfranciscano: a pecuária”. O trecho citado apresenta um

93
Conforme Teixeira (2016), a utilização medicinal dos animais, seja como “terapeutas”, seja pelo
aproveitamento de partes de seus corpos, secreções, excrementos ou materiais produzidos por eles, é
identificada como zooterapia. Sobre o aruá, por exemplo, Neto (2006) afirma que ele é amplamente utilizado
no Nordeste para o tratamento de várias doenças, entre elas as respiratórias, como a asma.

246
conjunto de informações sobre as singularidades da vida no vale do Rio São Francisco, sendo
elas, além criação do gado, uma certa noção de paisagem com a presença dos currais, do
barranco, das enchentes do rio, dos pastos, do vaqueiro e da vegetação característica da
caatinga. A partir desse trecho escrito por Neves (1991), dou início a apresentação desta
seção, que pretende discutir a relação dos quilombolas com mais um importante vivente, o
gado. Como vemos no trecho narrado pelo autor, a presença do animal nas caatingas e
cerrados do país é indissociável da imagem que a maioria de nós compartilhamos sobre estas
regiões. Embora se trate de uma espécie introduzida pelos colonizadores europeus, sua
chegada “precoce” nas caatingas, serras e campos gerais marcou significativamente a
característica da própria paisagem e também as relações políticas e econômicas destas
regiões (como apresentaram PIERSON, 1972a; QUEIROZ, 1977; RIBEIRO, 2005;
RIBEIRO, 2013). Na verdade, mais certo seria dizer que o gado foi um dos percursores da
constituição de uma sociedade não indígena nos cerrados e caatingas. Isto porque, olhando
para o percurso histórico destas regiões a partir do gado, compreendemos as “cadeias de
domesticação” (TSING, 2012) que constituíram a própria região. Para apresentar tal cadeia
de domesticação, ainda que seja necessário um sobrevoo nas narrativas historiográficas que
tratam do gado na região, me interessa aqui tomar a perspectiva dos quilombolas sobre a
presença deste animal em suas vidas e na dos outros viventes da beira do rio.
A existência de extensas áreas naturais de plantas forrageiras foram o atrativo para a
chegada do gado no cerrado. Em suas viagens pelo Brasil, em passagem pela Serra da
Canastra, Saint-Hilaire (1937, p. 115) diz ter se encontrado com o “capim frecha” (capim-
flecha ou capim-amargoso), gramínea de coloração prateada e com altura de até um metro
que, como afirmou o viajante, caracterizava as melhores pastagens para o gado naquele
período. Dentre os quatro fatores que Capistrano de Abreu (1930) disse terem sido os
principais para a difusão do gado na bacia do São Francisco, estas pastagens naturais foram
uma delas. Além desse, conforme organiza Pierson (1972a, p. 268), os outros fatores foram:
o fato da criação do gado requerer “menos trabalho do que a produção da maioria dos outros
produtos”, além de não exigir “traquejamento especial algum”; e, considerando a distância
dos campos cerrados até o litoral (destino do animal para venda ou abate), o gado era um
produto que se locomovia por si, “não necessitando de outro transporte se não seus próprios
pés”. A presença do sal nas “baixadas salobras” do vale do São Francisco também favorecia
a criação do animal. Sobre este assunto, Neves (1991, p. 66) descreveu que “a produção do
sal era beneficiada pelas grandes cheias do São Francisco”, pois “o transbordamento do rio

247
ocasionava o aumento do volume das águas nas lagoas” e, “quando estas baixavam,
apresentavam-se as condições propícias para a extração do produto”. Assim, como podemos
ver, as características da paisagem e as do próprio animal formaram uma composição que,
mesmo após as mudanças profundas que ocorreram ao longo dos séculos, ainda perduram.
Viajantes, memorialistas e pesquisadores descreveram o quanto o povoamento nos
interiores do país foi motivado pela criação do gado, uma vez que as pessoas seguiram as
patas do boi. Claro, é importante dizer que esta não foi a única motivação para a ocupação
não indígena no vale do São Francisco, pois muitas das brenhas do cerrado e da caatinga
também foram os locais escolhidos pelos negros fugidos para a instalação dos quilombos e
mocambos. Como argumentou Gomes (2015, p. 16), “a natureza (fauna e flora) era aliada
dos quilombolas, pois áreas de planaltos, montanhas, pântanos, manguezais, planícies,
cavernas, morros, serras, florestas, rios, etc. eram transformadas em refúgio”. De maneira
similar ao que apresenta o autor, já vimos que outro pequeno ser voador e transmissor da
malária também foi um importante aliado dos quilombolas para se manterem nas margens
do rio. No entanto, o que nos interessa aqui é seguir as trilhas do gado para compreender o
contexto local atual, principalmente o que os quilombolas dizem sobre o assunto.
Desde que os primeiros bovinos foram trazidos para o Brasil, o animal começou a se
espalhar, primeiramente pelo Recôncavo Baiano e, depois, pelo atual estado de Sergipe, em
seguida Pernambuco e ao longo da calha do rio São Francisco.94 Na medida em que, guiados
por boiadeiros e vaqueiros, o gado subia o rio em busca de pastagens nativas, água e sal,
novos currais, sedes de fazendas e pousos obrigatórios para aqueles que viajavam eram
estabelecidos ao longo do caminho. Com isso, o gado foi abrindo passagem e as estradas
pelas quais passavam “tornaram-se vias de transporte e comunicação ao longo das quais
outros povoados com frequência apareciam” (PIERSON, 1972a, p. 274). Um evento
importante, mencionado tanto por Capistrano de Abreu (1930) quanto pelos quilombolas,
foi quando o gado “aprendeu a nadar”. Assim, os animais, que ficavam ou na margem direita
ou na margem esquerda, passaram a se deslocar livremente por ambos os lados do rio
acompanhados dos vaqueiros ou, para ser mais exata, dos canoeiros. Como contaram Seu Zé
Bete e Seu Vicente, “jogava aquele tanto de gado [no rio] e os canoeiros ali empareados com
o gado”, “canoeiro de um lado e de outro, e o gado, ia só com a cabeça de fora”.

Pierson (1972a) afirma que o primeiro gado, vindo das Ilhas de Cabo Verde, chegou à Salvador em 1550. Já
94

Queiroz (1977) diz que foi no ano de 1535 que o gado passou a ser introduzido no Nordeste.

248
O estabelecimento das “fazendas de criar” em ambas margens do rio não exigia
despesas tão grandes e, por essa razão, argumenta Queiroz (1977, p. 58), era “acessível à
pessoas de posses medíocres”. Muitos dos rebanhos criados nos interiores do país eram de
posse dos grandes proprietários de terra e senhores de engenho, que pagavam um quarto do
aumento anual do rebanho para os vaqueiros, que eram os responsáveis pelo cuidado dos
animais. Nesse sentido, como podemos observar na descrição abaixo, o gado era zelado de
maneira inestimável pelos vaqueiros.

Os animais do vaqueiro eram criados juntamente com os do patrão;


teoricamente era-lhe possível tornar-se criador, já que, depois de um certo
tempo, possuía também um rebanho. Podia partir então em direção Oeste,
para as terras desconhecidas, e se instalar por conta própria (QUEIROZ,
1977, p. 59).

O sistema de criação estabelecido, conforme Capistrano de Abreu (1930, p. 100),


fazia com que “os mulatos, os mestiços e pretos forros” se entregassem “com gosto” à
criação “na esperança de um dia virem a ser fazendeiros”. Além disso, segundo Ribeiro
(2013) e Queiroz (1977), as “fazendas de criar”, ou currais, se bastavam em si mesmas, o
que era, inclusive, algo celebrado pelos próprios criadores. Por sua característica singular, a
palavra fazenda era utilizada somente para se referir aos currais, em contraposição ao
engenho, que era o termo utilizado para identificar as propriedades açucareiras (QUEIROZ,
1977). Ribeiro (2013), por exemplo, explica que foi essa autonomia das fazendas que
permitiu a expansão da pecuária, porque ela combinava a criação do gado com as atividades
de lavoura e criação de outros animais. Como discutiu Vander Velden (2020, p. 68), a
expansão do gado “se fazia sempre acompanhar de distintos animais” também exóticos à
paisagem sul-americana, “como cavalos, cabras, cães e galinhas”. Estas outras atividades,
de lavoura e criação, não eram realizadas pelos próprios criadores, o que trazia a necessidade
de acolher outros “moradores”, em geral agregados e posseiros, que se espalhavam pela
propriedade e eram responsáveis pela agricultura de abastecimento (QUEIROZ, 1997).
Muitos dos quilombolas da beira do rio, ou seus antepassados, fizeram parte dos agregados
das fazendas de gado. No entanto, diferente do que descreve Queiroz (1997), as terras em
que os quilombolas viviam eram livres, e não propriedade dos fazendeiros. O que os
quilombolas contam é sobre o processo de transformação das terras livre em propriedade,
algo que foi favorecido, em grande medida, pelo trabalho dos agregados, pois envolveu o
“amansamento” (RIBEIRO, 2013) da terra através da derrubada da mata para a abertura das

249
roças, como veremos adiante. Mas antes de avançarmos para este ponto, que Ribeiro (2013)
argumenta ter sido uma das primeiras “inovações técnicas” na criação do gado, é importante
mencionar o sistema de primeiro da criação do gado: a solta.
Nos tempos pioneiros das “fazendas de criar”, não era necessário quase que manejo
algum com o gado, pois estes viviam soltos nos brejos e nas áreas dos Gerais que os criadores
consideravam como “desertas”. A noção de “deserto” aqui faz referência à forma com que o
pensamento colonial e imperial tratava as vastas regiões dos cerrados e caatingas naqueles
tempos. Contudo, bem sabemos que eram áreas já ocupadas por povos indígenas que, antes
ou durante a instalação das “fazendas de criar”, foram dizimados pelos bandeirantes paulistas
no intuito de transformarem aquelas extensas áreas em sesmarias. Além da presença
indígena, como já mencionado, os negros escravizados também fizeram destas áreas seus
locais de refúgio. Como apontam Neves (1991) e Ribeiro (2006), ainda que a ocupação feita
pelos colonizadores só tenha se tornado possível através da dizimação dos indígenas, a
presença destes povos ainda era marcante nas proximidades dos currais, pois as referências
aos roubos de animais por indígenas e quilombolas eram frequentes. Neves (1991), inclusive,
argumenta que a presença da igreja através das missões foi uma importante aliada dos
criadores de gado e da “empresa colonial” pois, do ponto de vista dos criadores, tornava os
indígenas “mais dóceis”. A partir dessa ideia de docilidade, é possível imaginar o papel das
missões em transformar “a nível ideológico” (NEVES, 1991), ou, eu diria, cosmológico, a
relação indígena com o gado. Podemos ver estas diferentes incorporações do animal pelos
povos indígenas em Vander Velden (2020a), quando o autor argumenta que a convivência
com estes ruminantes ia além do “aproveitamento desses grandes herbívoros adventícios
como caça ou animais de presa”, pois registos bibliográficos indicam que diversos povos
indígenas também utilizavam partes “dos corpos destes animais na produção de certos
artefatos de importância prática e ritual”. Não apenas isso, a criação bovina também foi
adotada pelos indígenas e os rebanhos foram incorporados em “suas vidas produtivas, suas
práticas sociais e culturais e mesmo às suas lógicas míticas” (VANDER VELDEN, 2020a,
p. 71-72).
Como também afirma Ribeiro (2006), na introdução do seu livro Sertão, lugar
desertado: o cerrado na cultura de Minas Gerais, “esvaziar é uma estratégia histórica para
justificar a dominação”. Assim, “o que não é de ninguém pode ser meu”, pois “precisa e
deve ser apropriado por alguém de mérito”. Para o autor, a noção de “deserto” também é
utilizada para justificar “a imposição de ordem do colonizador sobre o mundo natural” que,

250
neste caso, são os biomas do cerrado e da caatinga, “ambientes desertados”, que “se
transfiguram numa espécie de natureza menor, menos acolhedora, mais que um desafio, uma
ameaça a ser vencida, transformada a imagem e semelhança do universo civilizado”
(RIBEIRO, 2006, p. 13).
Estando livre nas áreas “desertas” do cerrado e da caatinga, o gado só era reunido
durante o período das chuvas para, então, ser fechado nos currais ou levado para as feiras e
matadouros das cidades. Fora isso, os vaqueiros se limitavam a irem de tempos em tempos
aos pastos verificar a saúde dos animais e conferir a quantidade do rebanho (RIBEIRO,
2005). Esse sistema de criação de gado modelou, como argumentou Queiroz (1997), todo
um “tipo de vida”, incluindo uma linguagem própria – ou, como observou Evans-Pritchard
(2011) sobre os Nuer, um “idioma bovino” – que funcionou durante um longo período até
que algumas mudanças ocorreram e foram transformando gradativamente o sistema de
criação do gado. Ainda que muitas mudanças tenham ocorrido, as associações com o gado
ainda aparecem na linguagem local. Este é o caso, por exemplo, dos quilombolas de Brejo
dos Crioulos, que dizem estar “encurralados” ao explicarem sobre a condição que passaram
a viver “após serem vitimados pelos processos de expropriação e restrição territorial”
originados com a chegada das grandes fazendas (MOURTHÉ, 2021, p. 59). Além disso, ao
circularmos pela região do Norte de Minas Gerais, vemos o quanto os nomes das cidades,
distritos e povoados escancaram as relações históricas com o gado. Como observou Araújo
(2009), esse modo de vida propiciou a emergência de uma centena de lugares nomeados
como Gado Bravo, Gado Velhaco, Gado Velho, entre outros. A estes nomes, eu acrescentaria
ainda os municípios de Salinas (nome do rio onde, no período colonial, foram encontradas
ricas jazidas de sal-gema), Curral de Dentro e Manga (nome comumente atribuído às áreas
de pasto para o gado). Na historiografia da região também encontramos menções aos nomes
antigos dos municípios, entre eles: Santo Antônio da Manga (atual São Romão) e Brejo do
Salgado (atual Januária, local onde havia uma intensa comercialização de sal).
Sobre as mudanças que ocorreram em relação à criação do gado, Ribeiro (2013)
identifica o que ele chamou de “inovações técnicas”. A primeira delas se refere ao emprego
de novas variedades de capins exóticos em substituição às forragens nativas. Entre estas
novas espécies, se destacam o capim-gordura ou meloso, o capim-colonião, o capim-angola
ou bengo (do gênero Brachiaria) e o capim-jaraguá. Segundo o autor, entre eles, o colonião
“se tornou símbolo por excelência da boa pecuária” nos vales do Jequitinhonha e Mucuri. A
propagação das suas sementes era feita “pela foice”, mas também pelo vento e pelas patas

251
do próprio boi (RIBEIRO, 2013, p. 270). Além disso, o autor apresenta que esta espécie
exigia um tipo de manejo que envolvia a queima e o descanso da terra para a rebrota do
capim, um tipo de trabalho que, como pude ouvir em campo, envolveu muito trabalho dos
quilombolas que estavam em situação de agregados ou meeiros dos fazendeiros. Apesar das
transformações que as novas qualidades de capim trouxeram, Ribeiro (2013) argumenta que
a maior e mais importante “inovação técnica” foi o “melhoramento genético dos rebanhos”
com a substituição do gado curraleiro, ou comum, pelo zebu.

Figura 39 - Carro de boi na cidade de Januária


Fonte: Domínio Público, sem data, sem informação do autor.

O que estas “inovações técnicas” têm de comum é que todas elas, juntas, fizeram da
criação bovina um negócio lucrativo e, assim, o preço do boi “só fez melhorar, o preço da
terra nunca mais parou de subir, e a cada vez que um fazendeiro forte vendia uma boiada
sabia que poderia comprar mais uma fazenda” (RIBEIRO, 2013, p. 287, grifos do autor).95

95
Esta observação de Ribeiro (2013) sobre o tempo antigo não parece ter mudado muito, mesmo com as
“inovações técnicas” mais recentes. Podemos ver isso em uma entrevista concedida por um pecuarista em que
ele faz a mesma observação realizada por Ribeiro (2013). Nas palavras do pecuarista: “Antigamente a pessoa
tinha fazenda, mas não deixava o filho ficar na fazenda, tocar a fazenda, era tudo muito simples, não tinha
muita técnica. Hoje é muita técnica. Se a pessoa não estiver bem a par da técnica, bem instruído, não consegue
tocar. [...] Os jovens têm que ir para a fazenda, estudar, pegar bastante técnica e ficar adepto a elas. Não adianta
ir e ficar contra a evolução. A evolução genética, alimentar é muito grande. Apenas o seguinte, tem um detalhe:
naquela época a gente trabalhava o ano inteiro e comprava o vizinho. Hoje você trabalha o ano inteiro e
conserva trator, a caminhonete, a cerca. Aquela época a terra era barata. Se você não tocar bem, o vizinho te

252
Como discutiu Queiroz (1977), o aumento do preço da terra trouxe um outro grande
problema para os quilombolas, que se tratava do “habito de cercar propriedades”. A autora
também argumenta que a mudança da criação extensiva para a intensiva exigiu mais capital
financeiro, que os pequenos criadores não possuíam. Isso permitiu que os fazendeiros com
mais disponibilidades financeiras, os fortes, comprassem as terras dos pequenos e médios
proprietários. Nesse esquema, afirma Queiroz (1977, p. 64), “o gado-sujeito superou o gado-
livre”. Completando sua reflexão, é possível dizer que não foi somente a liberdade do gado
a ser perdida, mas também a das pessoas, da terra e das plantas. Sobre isso, os quilombolas
ribeirinhos têm muito a dizer. Se vimos até agora as versões mais generalizantes sobre o
avanço e as mudanças em relação à pecuária no vale do São Francisco, interessa a partir
daqui compreender de que maneira os quilombolas ribeirinhos conviveram com elas e o que
eles têm elaborado sobre a presença deste ruminante em suas vidas.
Através das conversas que tive com os moradores sobre suas relações com o gado,
fossem elas nos tempos antigos ou no atual, pude perceber que as experiências dos
quilombolas ribeirinhos com o animal são as mais diversas. De um modo geral, como bem
expressou Seu Santo: “do meu entendimento, já existiu gado”. No passado, enquanto alguns
tiveram membros de suas famílias trabalhando como vaqueiros, outros, estando como
agregados das fazendas ou não, acompanharam os infelizes estragos e as mudanças que a
presença cada vez mais intensiva do gado trouxeram. Em Gameleira, Seu Vicente se
lembrava das boiadas, provavelmente vindas de Goiás ou de Urucuia, que passavam na
estrada de chão que corta a comunidade, atravessando sua roça e destruindo suas plantações.
Fora estas eventuais situações, o gado vivia mesmo era solto. Assim como a terra, que era
solta, o gado vivia igualmente solto. Sobre isso, Seu Zé Bete explicou que antes “era tudo
campo aberto, não tinha divisão de manga de seu fulano, manga de seu sicrano, a divisão
era só no terreno, as pessoas tinham as áreas de terra, mas não era cercado como está hoje,
não tinha nada disso, era como se fosse um campo, um campo aberto”.
De primeiro, segundo Seu Vicente, “um bocado de gente criava gado, porque criava
solto, né!?”. Sua afirmação, seguida pela explicação, vai ao encontro do que foi apresentado
até o momento sobre a relação entre as terras soltas e as facilidades de se viver da criação,
pois os vastos campos abertos permitiam que os animais se alimentassem livremente, sem
que o criador dispusesse de uma grande quantidade de terras. O gado criado por eles também

compra”. Disponível em: https://www.comprerural.com/conheca-o-primeiro-confinamento-do-brasil/. Acesso


em 27/08/2021.

253
não era muito, se comparado aos plantéis das fazendas de gado atuais, e na época giravam
em torno de sessenta a oitenta cabeças de gado.96 Além de ouvir sobre os criadores do tempo
de primeiro, a conversa com o mesmo morador me permitiu perceber as camadas que
compunham a vida na beira do rio. Embora houvesse criadores, a maior parte dos moradores
viviam da pesca e do cultivo nas roças e vazantes. Isso nos permite compreender a
experiência com o gado a partir de um outro ângulo, diferente da visão entusiasmada do
avanço da pecuária que levou o país à “época do couro” (CAPISTRANO DE ABREU, 1998)
e do trabalho afamado dos vaqueiros por suas aventuras nas “lidas” arriscadas para as
“pegas” de boi no mato (RIBEIRO, 2013; PEREIRA, 2019). Vivendo como agregados e
meeiros, ou mesmo próximos das fazendas de criação, os quilombolas e suas plantas tiveram
outras experiências com o gado que, poderíamos dizer, foram muito menos deslumbrantes.
Uma outra conversa que tive com Seu Vicente expressa bem o ângulo pelo qual
procuro mostrar as relações com o gado. Segundo meu interlocutor, no tempo de primeiro
os criadores, “os que estavam no lugar de maior”, eram na verdade agregados dos
fazendeiros que criavam seu gado nas terras livres. Como ele explicou sobre estes agregados
criadores: “eu não sei porque a gente quer botar o sentido só na altura deles, no valor que
eles têm”, pois “eles não tinham tanto valor assim, mas a gente, como é pobre mesmo, ficava
achando que tinha”. O que meu interlocutor me dizia, então, era que os que ocupavam “lugar
de maior” em relação ao que poderíamos chamar de “cadeia produtiva do gado” eram, na
verdade, também agregados dos donos de terra. E nessa cadeia, os quilombolas ocupavam
uma posição bem menos prestigiosa. Como explicou Ramiro:

Aqui era tudo mata. Mandava medir aqui e [o fazendeiro dizia]: “bota roça
aí!”. A gente botava a roça aqui. Esse ano aqui, você roçava a roça,
plantava o milho, plantava tudo seu. No outro ano, você batia aquela
capoeira, já plantava o milho, mas com a semente [de capim] já no pé do
milho. No outro ano, você já não mexia ali não, porque já estava
empastado. Aí ele te dava outro pedaço. Aí foi empastando tudinho. Depois
que foi empastando tudo, ele foi correndo com esse pessoal (Ramiro,
Sangradouro Grande, 2017).

A narrativa de Ramiro demonstra como foi, na prática, o que aconteceu segundo as


discussões apresentadas por Ribeiro (2013), quando argumenta que a pecuária só se

96
A título de comparação, como podemos verificar na reportagem disponibilizada a seguir, as atuais fazendas
de gado no Norte de Minas Gerais podem chegar a ter 120 mil cabeças de gado. Disponível em:
https://www.comprerural.com/confinamento-no-norte-de-minas-tera-120-mil-animais-video/. Acesso em:
27/08/2021.

254
expandiu porque combinou suas atividades com as de lavoura e o “agrego”. Conforme o
autor,

derrubar matas virgens apenas para formar pastos seria um serviço caro e,
às vezes, desperdiçado, porque raramente o pasto prospera em terras recém
desmatadas (...) Mas como a derrubada era feita pelos posseiro e agregados
para produzir mantimentos, a criação de gado poderia em seguida ocupar
a terra já amansada. Por isso, a pecuária geralmente surgia depois da
derrubada da mata virgem e a formação das primeiras lavouras (RIBEIRO,
2013, p. 268).

Referindo-se às matas dos vales dos rios Jequitinhonha e Mucuri, o autor sugere,
então, que elas não foram derrubadas para a criação do gado, mas que o trabalho dos
agregados e posseiros foi o que permitiu sua expansão. A sugestão de Ribeiro (2013) não
deixa de ser verdade, porém, talvez por seu enfoque especial no trabalho dos vaqueiros, sua
narrativa esconde as estratégias dos próprios criadores em engendrar as condições
necessárias para a criação do gado. Algo que não apenas Ramiro, mas também outros
quilombolas explicam bem. A este respeito, Seu Santo me disse:

Aí foi evoluindo. Evoluindo problema de manga. Aí meu pai plantava uma


roça esse ano, no outro ano tinha que plantar o pasto. Ele tinha que plantar
as coisinhas da alimentação nossa e plantar o pasto. Quando tirava o
mantimento que tinha lá, tirava o milho, tirava o feijão, as abóboras, aí já
deixava aquela manga. Aí já botava outra roça. Porque a manga lá era do
fazendeiro. É assim que foi evoluindo as mangas. Sempre eram os escravos
que faziam. Isso mais aquelas pessoas que utilizava aquela terra, que era
do fazendeiro, e lhe dar, para você botar roça. Aí você ficava alegre: “que
beleza! Graças a Deus! Oia! Eu não tinha onde plantar uma roça. Seu A.I.
me deu um pedacinho de terra mod’e eu botar uma roça”. E ia naquela
alegria. Tinha a foice, roçava, sofrendo ali, passando fome. Aquela roça
colhia bastante milho, feijão, que chovia né!? Aí no outro ano ele já tinha
que plantar o pasto. Entregava aquela [roça] e fazia outra. Aí para
aproveitar essa cerca, que cerca era feita de quê? De pau, de madeira. Era
uma cerca de madeira cruzada assim, de pau por cima do outro. Então você,
para aproveitar aquela cerca, botava a outra roça ligada nessa. Então em
vez de você fazer quatro cerca igual a primeira, só fazia três. Aproveitava
aquela cerca da manga. Com dois, três anos ele já estava com uma manga
grande. Por mais que você botava uma roça maior, mas crescia a manga.
Então, eles trabalhavam nesse estilo aí, a gente é que trabalhava para eles.
E assim que era a evolução aqui da região (Seu Santo, Croatá, 2018).

Com a narrativa de Seu Santo podemos ver claramente que o que significou
“inovação técnica” para uns, para outros – “os escravos que faziam” – significou exploração
e precarização da vida. Algo também enfatizado por Seu Pedro, quando contou que ele e sua
família sofreram plantando pasto para o fazendeiro. O que antes era roça, virou “tudo manga,

255
empastou tudo”. Explicou ainda que o fazendeiro “não botou uma roça, dizendo que era
dono e não pôs uma roça, tudo foi nós que fizemos”. No final, depois de terem empastado
toda a área, ainda foram expulsos da terra.
Segundo explicou Seu Santo, com o aumento dos rebanhos criados pelos fazendeiros,
passou a ser necessário um número maior de vaqueiros e de cavalos para o trabalho com as
criações, fator este que contribuiu para o aumento das áreas de manga. Isto porque, me
explicou certa vez Ramiro, cavalo não rama igual o gado, não come as folhagens das árvores
e “passa batido”, pois “só come de cabeça baixa”. No tempo da seca, por exemplo, quando
o capim está seco, o cavalo “não arriba a cabeça para ramar”. Já o gado rama tudo, disse
Ramiro. Assim, os mangueiros foram criados inicialmente para os equinos, tal como me foi
explicado por Seu Santo na narrativa abaixo:

O primeiro passo: fazia um mangueiro para botar o cavalo. O cavalo que o


vaqueiro trabalhava. Então o vaqueiro tinha que trabalhar hoje e tinha que
trabalhar amanhã, ou talvez até a semana. Então ele não tinha manga,
quando ele chegava, ele desarreava aquele cavalo e amarrava ele lá numas
marvas. No outro dia o cavalo amanhecia, não tinha nada para comer,
marva seca, ele panhava ele [cavalo] e ia para o mato outra vez trabalhar.
Trabalhava o dia. Quando ele chegava, de lá ele já tinha que trazer outro
animal que estava lá no mato para ele trabalhar depois de amanhã. Então
qual a estratégia que eles usaram? Fazer umas mangueiras para botar os
cavalos. Então botava aquele cavalo ali e o cavalo aguentava trabalhar a
semana. O cavalo de noite, quando soltava o cavalo, o cavalo comia. Tinha
comida para o cavalo comer. Aí foi crescendo as mangas. Precisava de um
cavalo. Era dois vaqueiros, precisava de dois cavalos. Fazenda foi
crescendo, precisava de mais vaqueiro, precisava de mais cavalo, precisava
de mais espaço. Aí foi crescendo as mangas (Seu Santo, Croatá, 2017).

Depois que as mangas para os cavalos já haviam sido introduzidas, essas áreas
também puderam ser utilizadas para algumas vacas de leite. Como conhecedores dessa
criação, meus amigos quilombolas contam sobre as intempéries no cuidado delas. Durante
o dia, os bezerros das vacas paridas eram costumeiramente deixados, após amamentarem,
amarrados em um pau enquanto a vaca ia “ramar dentro do mato”. No final da tarde ela
aparecia para amamentar mais uma vez seu bezerro: “o peito dela enchia, doía e ela vinha
berrando”, me explicou Seu Santo. Quando a vaca retornava, ela era presa no curral pelos
vaqueiros e só voltava para ramar no dia seguinte. O problema desse sistema era que,
algumas vezes, as vacas iam para muito longe procurar lugares melhores para comer e, por
esse motivo, acabavam retornando apenas tarde da noite. Apesar disso, ela acabava
retornando “por causa dos filhos que estavam lá”, explicou novamente Seu Santo. Outras,

256
no entanto, não retornavam para seus bezerros, permanecendo um dia inteiro ou mais do que
isso “no meio do mato”. Nestes casos, era necessário que os vaqueiros fossem buscar a vaca.
Assim, para evitar estas desventuras com as vacas paridas, elas passaram a permanecer
presas nas mangas feitas para os cavalos. Partindo dessa premissa, o aumento dos rebanhos
fez aumentar o número de vaqueiros e o número de cavalos, impulsionando a criação de
novos pastos.
Este momento, de começo da criação intensiva de gado, é entendido pelos moradores
como o início de outro grande problema: a dizer, a transformação radical da paisagem
causada pela substituição da mata pelo pasto. Antes, apesar da presença de algumas
fazendas, os moradores contam que tinham liberdade para colocarem suas roças nas terras
livres; porém, com a expansão das mangas e dos cercamento das terras, eles passaram a ser
privados de colocarem suas roças nas soltas. Além disso, como já foi discutido
anteriormente, com os pastos plantados, os fazendeiros também passaram a impedir o cultivo
das árvores frutíferas. Sobre esse impedimento, Seu Arnaldo disse:

Goiaba? Pé de goiaba se a gente pegasse uma mudinha e plantasse no


quintal, ele mandava cortar. “Não, isso aqui não é para isso não, já tem
muito aí. [Aqui] é para gado, é para criação, mexer com gado, não é com
lavoura não”. Ele tinha esse hábito de pensar, a gente era menino, a gente
observava. Quando nós viemos, já depois de idade, para uma parte da
vazante, da ilha, então a gente ficava observando..., de acordo com as
cheias, quando era uma cheia grande a gente trabalhava mais no alto,
quando era tempo de cheia pequena a gente já trabalhava nos baixões. E
mesmo assim ele impedia. Tinha época que ele chegava aqui, tinha roça de
feijão, roça de abóbora, ali ele brigava, achava ruim, até mesmo expulsava.
Quer dizer, ele não sentia bem (Seu Arnaldo, Croatá, 2018).

O fim das áreas de solta, a mudança da criação extensiva para a intensiva e as


sucessivas leis de terra (em especial a de 1969) só fizeram acelerar as transformações da
paisagem da beira do rio. Os quilombolas e seus finados acompanharam todas estas
mudanças, as quais me foram explicadas em diversos momentos. Sem tentar seguir uma
ordem cronológica dos acontecimentos – o que não conseguiria mesmo que o intencionasse,
uma vez que elas não aconteceram de maneira sucessiva, mas sim concomitantemente –
procurarei apresentar tais mudanças. Uma delas, já mencionada anteriormente, foi a chegada
das cercas e, paralelamente, as diversas estratégias utilizadas pelos fazendeiros para a
expropriação das terras utilizadas pelos quilombolas. Os primeiros donos das terras, como
já vimos, criavam seu gado no mesmo regime de solta que outros pequenos criadores. Seu
Zé Bete conta que sempre teve aqueles cercadinhos para os vaqueiros separarem uma vaca,

257
mas que a maior “parte não tinha cerca, aí depois que ele [fazendeiro] tomou de conta, veio
cercando, apareceu esse negócio de desmatar”. Disse ainda que “essa coisa de desmatar” era
algo desconhecido para eles, pois “falar em gradear terra era coisa de fazendeiro”. A notícia,
explicou Zé Bete, vinha de São Paulo: “ah, lá o pessoal planta o terreno gradeado. Daí pra
cá ele começou. Foi que ele começou desmatando, jogando semente”.
Seu Vicente também lembra quando o fazendeiro começou a cercar, dizendo “que
vinha uma lei, aí que todo mundo [que tinha terra] fizesse sua cerca”. Nesse período, que
também coincidiu com a cheia de 79, inclusive os pequenos criadores, que viviam de
agregados, “pegaram e venderam o gado, tiraram metade do gado, porque não podia criar”.
Isso porque, “os bichos batiam mais nos lugares de chapada”, isto é, nas soltas que se
estendiam para além da beira do rio. A mudança repentina fez com que estes criadores
ficassem “naquela ignorância de querer criar do lado de dentro dos outros, mas eles [os
fazendeiros] não deixaram”. Nessa época, me disse Maria em uma outra conversa, passou a
ter “cerca para tudo quanto é canto”.97
A chegada das cercas tirou as áreas de solta, as terras livres, que os fracos utilizavam
para a criação de seus pequenos rebanhos e para o plantio de suas roças. Além disso, as
cercas vieram com o “pacote tecnológico” completo, que envolvia, entre outras coisas, a
expropriação de terra, o desmatamento e a introdução de variedades exóticas de capim.98
Após este acontecimento, outras transformações ocorreram e modificaram a relação
das pessoas com o gado e com a terra. Entre elas, a substituição da mata pelo capim e a
introdução de novas raças de gado. Como explicou Seu Saulo, enquanto os quilombolas
plantam “um pé de milho, um pé de mandioca, pé de gergelim para comer paçoca”, os
fazendeiros não, pois “o desenvolvimento deles é só aquilo, eles plantam capim colônia
[capim-colonião], adropono [capim-andropogon], braquiária, esses capins aí que eles
plantam”. Todos estes, segundo os quilombolas, são capins que não existiam na beira do rio.
João, de Gameleira, disse que trabalhou demais em fazendas da região cortando ou colhendo
capim. Segundo ele, “teve uma época que ele [o fazendeiro] plantou capim, topou capim

97
O cineasta Glauber Rocha parece ter captado o exato sentido que as cercas representam para coletivos como
os quilombolas da beira do rio. Em trecho citado por Godoi (1998) na epígrafe de seu artigo, Glauber Rocha
diz: “O certo é que – nos confins do sertão – Deus criou o mundo e o diabo, o arame farpado”. O trecho é
recitado pelo personagem Antônio das Mortes no filme O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro.
98
“Pacote tecnológico” é um termo utilizado no universo agropecuário para se referir ao conjunto de
agroquímicos (agrotóxicos e fertilizantes), “sementes geneticamente modificadas e a propriedade intelectual
que as envolve” (MASCARENHAS, SILVA e ARAÚJO, 2020, p. 419). Ao utilizar o termo, a ideia é mostrar
as outras estratégias não oficialmente inclusas no “pacote”, mas que, isso não é novidade, estão integradas ao
avanço da agropecuária no Brasil e o aumento de sua produtividade.

258
nesse mundão todo”. Seu Vicente enfatizou que “esse braquiária, aqui não tinha braquiária,
aí chegou semente de braquiária”. Foi em 1979, ele se alembra, que a firma compradora da
fazenda Itapiraçaba plantou os primeiros capins por meio de avião. Como conta o morador:
“eles iam lá para o porto, lá na Januária, abastecia e vinha de lá jogando, espalhando a
semente aí”. Em Gameleira, onde mora, a semente não se espalhou, mas, como ele disse,
“nos terrenos de compadre Manel, aí beirando, ficou”. Antes destes capins exóticos, pude
ouvir que os capins existentes na beira do rio eram o capim-açu e a coerana. O primeiro
deles o gado não come porque é amargoso. Já o segundo, embora seja saboroso para o gado,
é também intoxicante para o animal. A intoxicação do gado através da alimentação com os
capins e matos nativos, segundo Seu Vicente, foi a razão de terem “inventado o capim”. Em
suas palavras,

O capim-açu o gado não come. É um capim bonito, mas eles não comem.
Ele amarga, não sei o porquê. Já tem outra, uma rama verde, vamos dizer
assim, que o gado já come. Tem umas que é até proibido o gado comer
porque mata. Coerana, tem um mato aqui que chama coerana. O tamboril
também.99 A coerana, se o gado comer, mata, morre. É igual a mamona,
segundo dizem, intoxica. Então eles plantam, inventam o capim, já vem de
longe. Vamos dizer assim, a propaganda de lá chega aqui (Seu Vicente,
Gameleira, 2018)

Embora o mesmo nome seja utilizado para os capins exóticos e nativos, é comum os
moradores também utilizarem o termo mato para fazerem menção aos nativos. Podemos ver
estas diferenças no trecho citado de Seu Vicente, mas também abaixo, na conversa com Seu
Saulo. Sobre esta diferença, ele explica:

Saulo: O capim só atrapalha. Ajuda a proteger o barranco do rio. Ele lá


mesmo, do barranco do rio, o que protege o rio é o capim de lá do barranco
mesmo, mas de cá não, de cá não. Por exemplo, o rio está aqui, aqui é o
barranco dele aqui, aqui nesse barranco tem uma moitinha de capim
tampando de fora a fora essa água dele aqui, você não pode chegar aqui e
arrancar ele aqui. Se você arrancar ele, essa água daqui quando ela encher
ela vem e derruba isso aqui, vem quebrando, os pedaços aqui no ano que
vem já tá tudo dentro d’água. E o capim estando aqui não, ele protege, a
lama que vem vai assentando no capim, vai colando nele, vai rendendo, e
firmando o barranco. Que se tirar ele daqui ele quebra, vem daqui pra aqui.

99
Em uma conversa posterior com Seu Santo, ele disse que o tamboril, assim como o juá de boi, na verdade
não intoxica. Embora o povo diga que eles fazem mal para o gado, ele explicou que eles não fazem bem para
as vacas prenhas, pois “elas costumam entreter” com os frutos destes pés e “não vão beber, aí elas acabam
perdendo a cria devido elas ficarem entretidas” com a fruta, que é doce. Mas, segundo ele, isso só ocorre se os
frutos forem de “muita quantia”. O entretenimento das vacas com os frutos é compreensível para qualquer um
que, algum dia, já tenha se enfiado em baixo de um pé carregado de frutos maduros, como uma jabuticabeira.
Nestas ocasiões, assim como ocorre com as vacas, um humano poderia se esquecer de qualquer compromisso...

259
Izadora: Mas vocês falam capim, tem o capim que é o capim do fazendeiro
e tem o capim nativo?
Saulo: Capim colônia que eles plantam, chega, gradeia a terra, semeia com
a plantadeira e tudo. E esse outro que eu estou falando protege o barranco
do rio.

Na conversa acima podemos ver os efeitos da introdução dos capins exóticos na


paisagem da beira do rio. Ao ser substituído, o mato, ou capim nativo, deixa de cumprir o
seu papel de firmar e proteger o barranco do rio. O resultado dessa mudança é o
desbarrancamento da terra, que cai na água e contribui para o assoreamento do rio. Sobre
esse assunto, Seu Santo, comentando sobre o uso de determinados maquinários nas ilhas,
explicou que

o que acabou com rio foi justamente isso, o desmatamento na beirada dele.
E o trator que eles tacam aí dentro da ilha, esbagaça a ilha. A terra é virada
[e] todos os anos quando a água vem, essa terra tá solta. Qual é a tendência?
Qualquer corridinha [de água] que dá, vai acompanhando a terra que tá
assoreada e levando pro leito do rio. Então vai aterrando o rio. O rio vai
sempre virando um prato raso, que vai enchendo de terra. A velocidade
dele acabou. Quem vê esse São Francisco, hoje é uma lagoa. Que o São
Francisco era assim, ele era um rio que dois homens na idade desse menino
aí, para remar e atravessar ele de um lado a outro, chegava lá com a camisa
molhada. Hoje qualquer uma criança dessa atravessa o rio. E eu alcancei
ele com grande velocidade. Quando ele tinha essa velocidade, não jogava
terra no leito dele não, ele tirava para fora. O que fez ele estar nessa
situação? As barragens, essa assoreação de terra. Foi isso que fez ele estar
na situação que está. Então, a gente observa isso, pequeno, analfabeto que
nem nós somos, mas disso a gente já tem conhecimento (Seu Santo, Croatá,
2018).

Além das mudanças decorrentes da substituição do mato pelo pasto que, ao longo do
tempo, teve seus efeitos no volume e velocidade das águas do rio, houve mais uma, com a
introdução de novas raças de gado. Assim, as ações dos fazendeiros foram completadas com
a gradual substituição do gado curraleiro por outras raças. No tempo de primeiro, tanto os
fazendeiros quanto os agregados criavam um tipo de gado identificado enquanto curraleiro,
ou gado vivedor. Segundo os moradores, o gado curraleiro é “um gadinho comum”, de
“peitinho curto”, um gado natural do vanzantão, que era “nascido e criado na região”. A
introdução do gado curraleiro no vale do São Francisco, como afirma Correia (2013),
ocorreu por volta do final do século XVII, quando se deu a entrada e fixação mais sistemática
das bandeiras paulistas nos sertões, e quando as capitanias da Bahia e de Pernambuco
introduziam o gado curraleiro, advindos das colônias africanas e instaurando o sistema de
criação “na larga”, uma prática que se manteve e ainda se mantém na região que “vai do
260
Piauí até as margens do São Francisco, espraiando-se até o Tocantins” (CORREIA, 2013, p.
37). No que se refere à substituição do gado curraleiro por outras raças, Leal (2018) aponta
que o gado zebuíno, de origem indiana, desde a virada do século XIX para o XX já vinha
sendo “importado, selecionado e melhorado por criadores do Triangulo Mineiro” (LEAL,
2018, p. 26) e, como se adaptava bem ao clima tropical do país, avançava por todas as
regiões.
Conforme os quilombolas ribeirinhos, as ações de extinção do gado curraleiro foram
realizadas por meio da mistura, hoje sendo praticamente impossível encontrá-lo. Segundo
Seu Santo, os fazendeiros foram trazendo garrotes e misturando com as matrizes, “ele tinha
um rebanho de vaca curraleira, ele trazia um garrote nelore e colocava aí junto, aí começou
fazendo a mistura”. Com isso, disse ainda o quilombola, “foi acabando com aquelas matrizes
curraleiras e deixando aquelas origens novas nascer, aí já puxava mais para o lado do
garrote”.
Entre as raças de gado encontradas na região, as mais comuns são a Girolanda100 e a
Nelore. A primeira é caracterizada por meus interlocutores pela sua qualidade na produção
de leite, mas também por ser “apropriado mais para criar na ração”. Diferente da Nelore, a
“girolanda não é muito de andar para comer”, pois é um “gado de cocheira, um gado de você
levar comida para ele”. Por isso mesmo é considerada uma raça mais fraca. Como explicou
Ronaldo de Croatá, nos tempos de seca a girolanda “sente muito”. Já o Nelore, mesmo na
seca, “sustenta”, pois “é do estilo do bode” e come de tudo. Segundo Seu Santo, “ele afunda
a cabeça num pé de juá e panha folha em cima”. Porém, o gado Nelore não é bom de leite.
De todo modo, com o desaparecimento do gado curraleiro, pude ouvir que “da natureza
daqui é o Nelore hoje”.
A respeito desta noção de natureza apresentada pelos quilombolas, de modo parecido,
em pesquisa sobre a canaricultura no interior do estado de São Paulo, Sanchez (2019) se
deparou com a afirmação de um criador de canários que dizia que “a natureza destes pássaros
é dentro da gaiola”. A partir de tal afirmação, o autor procura desdobrar a ideia de natureza
apresentada por seu interlocutor. Se as noções de natureza e cultura no pensamento ocidental
aparecem, respectivamente, como algo dado e construído, Sanchez (2019) defende, a partir
de seu contexto etnográfico, que a natureza também é algo construído, uma vez que os
canaricultores constroem, nas gaiolas e conjuntamente à várias outras técnicas, a natureza

100
Girolando é nome utilizado para identificar a esta raça, sendo ela um cruzamento entre as raças Gir e
Holandesa. Nota-se que os quilombolas utilizam o termo no feminino, por essa razão utilizo o itálico.

261
de seus canários. Quando me explicavam sobre como o gado curraleiro era adaptado ao
vazantão, meus interlocutores diziam que o gado era como eles, que haviam nascido e se
criado ali, e se eles tivessem que sair dali e ir para outra cidade, por exemplo, iria “custar
muito adaptar com o jeito de lá”. Assim, na paisagem da beira do rio, pessoas, bois e vacas
são criados, e a natureza, longe de ser algo dado, é constantemente produzida através de
engajamentos múltiplos e mútuos.101
A relação dos fazendeiros com o gado é sentida pelos quilombolas ribeirinhos como
um espelho da própria relação dos fazendeiros com eles mesmos, pessoas fracas. Isto
porque, me parece, o que os fazendeiros fizeram com o gado é o mesmo que fizeram com os
quilombolas, na medida em que desvalorizaram o gado de cor e passaram a introduzir o gado
branco, o nelore. Isso aparece claramente nas narrativas dos quilombolas, como quando
dizem que “hoje eles [os fazendeiros] não estão querendo um gado de cor” (i.e., o gado
curraleiro), pois, como me chamaram a atenção: “você vê que até um gado de cor perdeu a
validade, você vê a diferença que faz entre eu e você”. Esta noção de “gado branco”
associada às práticas dos fazendeiros também é discutida por Süssekind (2012) em sua
pesquisa sobre as práticas científicas de conservação da onça-pintada e as práticas de manejo
do gado em fazendas do Mato Grosso do Sul. Na região, assim como ocorreu no Norte de
Minas Gerais, o gado pantaneiro foi gradualmente substituído por outras raças, em especial
a Nelore. Em seu contexto etnográfico, como explica o autor, “o gado branco remete (...) a
toda uma série de práticas que tendem a substituir os antigos costumes e tornar o ambiente
homogêneo a partir de parâmetros mercadológicos” (SÜSSEKIND, 2012, p. 118).
Atualmente, o gado branco se mantém presente na beira do rio, estando inclusive
entre os quilombolas. No entanto, é possível perceber algumas tensões e diferenciações em
relação à criação desse animal. As tensões vividas são decorrentes da falta de áreas de solta
para a criação do gado. As diferenciações estão relacionadas à forma de criação do animal,
cuja particularidade que caracteriza a pecuária quilombola é compreender que “o negócio de
gado é carinho”.

101
Como podemos perceber, o gado nascido e criado se adapta e vira natureza. O mesmo ocorre com algumas
plantas exóticas, como também vimos. Neste caso, cabe questionar porque o capim do fazendeiro não vira
natureza. O que me parece é que as alianças (como notei em relação ao eucalipto) e o manejo (termo quilombola
para se referir à lida com as roças e criações) são importantes aspectos para transformar seres exóticos em
natureza local. Isto porque os quilombolas também plantam o capim do fazendeiro, mas o fazem de maneira
controlada, em pequenos espaços. O sistema de plantação do capim quilombola, portanto, difere
completamente daquele do fazendeiro, que derruba as matas e se utiliza de tratores sobre grandes extensões de
terra.

262
Já fiz menção, anteriormente, à presença de um grupo de moradores que vivem nas
proximidades de Croatá e que são denominados pelos quilombolas como os criadô. Segundo
o Relatório Antropológico sobre esta comunidade (ARAÚJO et al, 2019, p. 191), existe uma
“distinção entre o modo de vida dos criadores de gado e dos pescadores, vazanteiros e
quilombolas”. Ainda que os quilombolas também possuam seus pequenos rebanhos, a
distinção entre os dois grupos está no modo como cada um deles cria os animais. Conforme
uma narrativa quilombola apresentada no relatório, os criadô retomaram as terras da
comunidade junto com os quilombolas, mas por não trabalharem “de acordo com as normas”
dos moradores de Croatá e não se reconhecerem enquanto quilombolas, um grupo se separou
do outro e fundou a Associação Santa Luzia. As diferenças, como dizem os moradores do
quilombo é que, embora sejam fracos como os quilombolas, “eles não falam a mesma
língua”. Isso porque desmatam, gradeiam, colocam fogo e buscam ascender socialmente
criando gado na meia (ARAÚJO, 2019).
Com isso, podemos ver que, apesar de todas as mudanças que ocorreram em relação
à criação do gado, o animal ainda é (um) bem sedutor e faz com que muitos fracos o vejam
como possibilidade de ascensão social, da mesma forma como ocorria nos tempos pioneiros
da criação do gado. Conforme explicou uma moradora, isso acontece porque os criadô ficam
“naquela ideia de fazendeiro” e “não muda a mentalidade”. Apesar de alguns quilombolas
também criarem seus pequenos rebanhos, eles insistem que é importante “criar o gado na
mão” e esse modelo difere completamente do manejo realizado pelos criadô e pelos
fazendeiros.
Durante a pesquisa de campo pude ouvir algumas vezes menções às noções de gado
bravo e gado manso. Na medida em que busquei compreender do que se tratavam estas duas
expressões, compreendi que elas estão, de alguma maneira, relacionadas ao modo de criação
do bicho. A distinção entre gado bravo e gado manso, portanto, não está relacionada à
natureza do animal, mas sim ao seu comportamento condicionado pelo modo de criação.
Nos relatos a respeito ao modo de criação deste animal nos tempos antigos, o gado era temido
devido à sua braveza, apresentando um risco sobretudo para as crianças, que eram orientadas
a não ficarem próximas dos animais. “Marruá” é o termo que aparece nas obras literárias e
folclóricas que trataram do gado bravo. Andriolli (2011), em sua pesquisa no Parque
Nacional Grande Sertão Veredas, citando Câmara Cascudo (1972), explica que “marruá” é
considerado o “touro que vive livre pelos matos sem passar pelo curral”, o que “o torna bravo
e faz da sua captura o assunto do sertanejo” (ANDRIOLLI, 2011, p. 91). Ao que parece, é

263
na relação com o marruá, ou gado bravo, que se constrói toda a reputação de coragem dos
vaqueiros.102
Em contraposição ao gado bravo, em uma das minhas visitas à casa de um
quilombola, a primeira cena que pude presenciar foi o morador no curral fazendo carinho
em uma de suas vacas. Mais tarde, nesse mesmo dia, quando retornávamos de uma
caminhada pelo mato, esse mesmo interlocutor, ao encontrar seu gado ramando pela área,
assoviou para o rebanho, que imediatamente passou a segui-lo. Esses dados parecem indicar
uma relação entre a solta, os currais, o gado bravo e o gado manso. Se antes a criação nas
soltas permitia ao gado desenvolver seu temperamento bravo e, por isso, precisava ser
caçado e dominado (como mostram RIETH, LIMA e BARRETO [2016] para o caso da
pecuária no pampa brasileiro), a criação em áreas menores e cercadas, permite a produção
de um outro tipo de engajamento com o animal. A proximidade, o carinho e a criação do
gado na mão são as formas desenvolvidas pelos quilombolas para manterem seus rebanhos
em pequenas áreas de terra.

102
O nome marruá aparece também nas obras de João Guimarães Rosa. Em Manuelzão, acompanhamos a
estória da captura do Boi Bonito pelo vaqueiro Menino. Depois de muito ser perseguido pelo vaqueiro, o boi
se entrega dizendo que havia esperado muito tempo por seu captor e que para ele era guardado e destinado.
Aqui, a agência do marruá é exposta não apenas na sua decisão de se entregar ao seu algoz, mas também no
fato de que, na estória, o boi tem nome e o vaqueiro é só um menino. Finda a estória, Guimarães Rosa diz que
“no princípio do mundo, ascendia um tempo em que o homem teve de brigar com todos os outros bichos, para
merecer de receber, primeiro, o que era – o espírito primeiro”. Com esse trecho final, me pergunto se estaria o
autor falando, mesmo que sem intenção, de domesticação. Se assim for, a criação não pode mesmo deixar de
ser pensada também como uma troca recíproca entre humanos e animais, como já argumentou Haraway (2003).

264
Figura 40 - Karol oferecendo carinho ao gado.
Fotografia: Izadora Acypreste, 2018.

Ao dizerem que criam o gado na mão, os quilombolas ribeirinhos estão se referindo


a um conjunto de práticas que envolve o pastoreio, a provisão de alimentos para o rebanho
e o atencioso cuidado com o movimento do gado. Considerando a falta de recursos dos
moradores para compra de ração bovina, os quilombolas precisam lançar mão de todos os
recursos para manterem seus rebanhos, colhendo as marvas e plantando pés de palma, que
são utilizadas como ração, principalmente nos períodos de seca. Além disso, estão sempre
atentos ao bem estar do gado. Para isso, plantam árvores próximas aos currais para que os
bichos possam se aproveitar da sombra e não fiquem tão abatidos. Este cuidado também
envolve pastorear os animais para os locais certos onde eles encontrarão água, comida e
sombra. Talvez por causa desse cuidado constante, as vacas também recebem nomes
próprios. Seu Faustino, que conseguiu comprar sua primeira vaca com o dinheiro adquirido
a partir da venda de seu barco, hoje tem seis vacas e me falou o nome de cada uma delas.
Tem a Pioneira, a Amazonas, a Dengosa, que recebeu esse nome porque chorava muito, a
Meia Lua e as outras, todas com nome de cidades do Norte de Minas: Bocaiúva, Janaúba e
Varzelândia. Este modelo quilombola de nomear as vacas também pode ser observado em
comparação ao modelo do fazendeiro que, de maneira diferente, numera o seu gado.

265
Conversando certa vez com Bibi, por exemplo, ele comentava sobre a vaca 1208 do
fazendeiro, que já havia tentado atacá-lo.

Figura 41 - Seu Faustino preparando Pioneira para a ordenha.


Fotografia: Izadora Acypreste, 2018.

Estes cuidados com os rebanhos também são importantes porque a presença do gado
muito próximo das áreas de roça pode gerar alguns conflitos entre os moradores. Por essa
razão, é necessário que os moradores compartilhem a mesma linguagem e respeitem as
normas de criação. Sobre isso, Ronaldo explicou que tudo depende do manejo do gado. O
dono tem que saber controlar o animal, caso contrário, o bicho dará muito trabalho para o
dono e para os outros. Conforme o morador de Croatá, para amansar o gado, “tem que
dominar no cabresto e prender todo dia no curral”. Quando as vacas parem, é preciso ir
amansando o bezerro prendendo-o todo dia no cabresto para que o bicho se acostume com o
dono. Assim, quando se cria muito gado, o trabalho de amansamento se torna muito mais
dificultoso.
Quando não amansado, o gado costuma gerar problemas entre os moradores ao
invadirem as roças. Certa vez, ao ter sua roça invadida pelo gado, Ramiro comentou: “coisa
que eu não estou gostando é gado”. Depois explicou que todo mundo tem o direito de criar,
mas também tem o direito de plantar. Assim, para que todos possam usufruir de seus direitos,

266
é preciso saber criar o bicho e não o deixar “pisando e socando a terra dos outros, porque
endurece a terra”, principalmente as áreas da vazante, cuja fertilidade depende diretamente
da absorção das águas do rio. Apesar destes aborrecimentos, os moradores se resolvem em
relação ao manejo do gado. O que eles identificam como sendo o maior problema, causador
destes conflitos, é a pouca disponibilidade de terra para terem onde soltar os bois e vacas.
Estas negociações em relação ao gado podem ser observadas em um diálogo entre dois
moradores. Diálogo que mostra também o cotidiano de cuidados com os animais.

- Bom dia, você está bom? Está no giro (andando), né?


- Eita rapaz, fui levar o gado ali embaixo, e vou levantar duas ..., o gado
deu uma doença, rapaz!
- Não melhorou, não?
- Aquele veterinário que fica lá em ..., ele veio aí moço, olhou o gado, falou:
“moço, o gado do senhor caiu quase tudo”. Eu falei: “caiu quase tudo,
moço!”. Porque aqui eu vou levando devagarzinho, os outros levantou,
agora uma vaca, a que estava parida é que está ainda pra levantar, levando
com muito trabalho, e agora, quando foi anteontem, o menino veio, eu tinha
falado com o senhor, mas não deu pra...”
- Eu não tinha estojo, moço! Fiquei sem estojo.
- Eu tenho, moço!
- Eu não fui aquele dia porque eu não tinha o estojo.
- Eu tenho, era pra mim falar com você que eu tenho o estojo com agulha,
com tudo, é estojo novo, eu tenho. E aí o problema é o seguinte, eu estou
sofrendo, desde que eu arrumei aquele terreninho ali, aquele pastinho de
Z., estou botando e com medo do gado passar pro lado seu, mas acho que
não passa não. O gado meu tem muito medo de espinho. Se botar um
espinhozinho não passa, moço!
- Medo de furar os pés.
- É!
- Nós encontramos com ele [o gado]. Vai com Deus, viu!
- Amém nós todos!

Na ocasião, os dois moradores conversavam sobre os cuidados relativos ao gado. O


dono do rebanho não apenas se preocupava com a saúde de suas criações, mas também com
a possibilidade delas invadirem a roça do seu interlocutor. A garantia para que isso não
acontecesse era o fato dos animais terem medo de espinho. Apesar do risco que ameaçava o
dono da roça, o diálogo entre os moradores e a moralidade expressa pelo criador, quando
dizia que estava sofrendo de preocupação, ajudam na manutenção das boas relações dentro
da comunidade. Manter essa cordialidade parece ser importante para os quilombolas porque
remete aos tempos antigos, quando os animais mesmo sendo criados soltos, eram cuidados
e vigiados por todos coletivamente. De qualquer forma, como disse Madalena, apesar da

267
área não ser apropriada para a criação do gado e o tamanho das terras não serem o suficiente
para manter os bichos, sua criação é importante.

Eu vejo o povo criticando quem tem um gadinho, mas eu sei, eu mesmo


nem critico, como é que você vai viver em um lugar desse sem uma criação
boa? Tem que ter, você veio para cá foi para isso, se for para ficar sem criar
nada, você fica na cidade. Então, se for só para plantar, se o cara for viver
de planta aqui ele morre de fome, porque aqui não chove (Madalena,
Sangradouro Grande, 2018).

A questão colocada por Madalena sobre a seca é importante para os quilombolas


ribeirinhos e também é interpretada de diferentes maneiras pelas pessoas. Enquanto uns
querem, como eles dizem, “algo diferente” apesar das vantagens que a criação do gado pode
garantir a quem os possui, seja na obtenção do leite ou na reserva de valor, outros acreditam
na possibilidade e necessidade de diversificação das atividades para se manterem na beira
do rio. Como ressaltou Seu Santo, “o apropriado aqui, o que a gente interessa mais é uma
vaca de leite, uma vaca para a sobrevivência nossa aqui, porque o interesse nosso não é
vender bezerro”. Porém, mesmo aqueles que possuem criações compartilham do
entendimento de que é preciso criar o gado na mão, respeitando os modelos de manejo e
compartilhando a mesma linguagem e mentalidade de criação com os demais moradores.
Ao apresentar, nesta seção que aqui encerro, as relações, conhecimentos e práticas
quilombolas com os animais, seja o gado ou as outras criações e bichos, procurei mostrar
que elas também constroem modos e modelos que podem tanto marcar conexões entre
aqueles que se consideram enquanto um povo, quanto distinguir coletivos, ideias e
mentalidades. Os bichos são, portanto, componentes também importantes na constituição da
vida, das moralidades e dos sistemas da beira do rio. Após esta descrições e observações
sobre os animais e suas relações com os quilombolas, poderíamos interromper a conversa
com estes viventes; porém, considero que mais um esforço é necessário para apresentar
outros seres que habitam as águas do Chicão, a saber: os compadres d’água e caboclinhos.

6.3. O compadre d’água

Talvez a primeira pergunta a ser colocada sobre esta seção é: porque discutir o
compadre d’água em um capítulo que trata sobremaneira dos animais, criações e bichos?

268
Considerando que o compadre também é conhecido enquanto caboclo pelos quilombolas
ribeirinhos, ao mapear as formas com que estes seres aparecem na literatura antropológica
disponível, podemos perceber que eles emergem ora enquanto humanos, ora enquanto
espíritos, entidades ou guias. Considerando isso – se humanos, espíritos, entidades ou guias
– , novamente cabe a pergunta: porque apresentá-los neste momento da tese? Ao colocar esta
questão, procuro chamar a atenção para a particularidade do compadre na beira do rio e,
com base nisto, buscar compreender o que consiste a relação dos quilombolas ribeirinhos
com este ser que, embora não seja um animal, certamente não é um humano. Para além de
defini-lo enquanto tal ou tal categoria, ou mesmo de afirmar com profundidade sobre o que
ele significa para meus interlocutores, considero importante apresentá-lo aqui como registro
etnográfico, uma vez que ele também compõe a paisagem da beira do rio.
Conforme Lima (1999, p. 6), a categoria “caboclo” tem sido usada como uma forma
de “classificação social complexa que inclui dimensões geográficas, raciais e de classe”
presente em diversas regiões do país e que se refere, principalmente, “ao filho do branco e
do índio”. Embora o termo caboclo possa aparecer enquanto forma pejorativa para tratar os
indígenas, existe uma diversidade de estudos e discussões etnográficas que tratam da
presença dos caboclos nas religiões de matriz africana (QUERINO, 1938; FERRETI, 1994;
SANTOS, 1995; BOYER, 1999; PRANDI, VALLADO e SOUZA, 2001; BANAGGIA,
2017; RABELO e ARAGÃO, 2018) e nas cosmologias de povos indígenas no Nordeste do
país (ALARCON, 2013; CARDOSO, 2016; GONDIM, 2016).
Ferreti (1994), ao tratar do caboclo em uma das religiões de matriz africana, o
Tambor de Mina, explica que as duas formas com que ele aparece nos segmentos da
sociedade brasileira estão conectadas. Confirmando o argumento de Lima (1999), Santos
(1995) explica que, sendo o caboclo uma referência à origem ameríndia da sociedade
brasileira, a incorporação dos caboclos no candomblé seria uma forma de incluir as entidades
brasileiras, afinal, eles são os “donos da terra”, em contraposição aos orixás, que são
entidades africanas. Em uma reflexão sobre o lugar dos caboclos no candomblé de Salvador,
Rabelo e Aragão (2018, p. 102) se debruçaram sobre a literatura que trata da “inserção dos
caboclos em religiões dedicadas ao culto dos deuses africanos (orixás, inquices, voduns)”.
Em seus levantamentos, observaram que a inserção dos caboclos nas religiões de matriz
africana está relacionada “à lógica rizomática da religiosidade afro-brasileira” que, em lugar
de dissolver as diferenças, conecta tais diferenças deixando que elas subsistam enquanto tal
(ANJOS, 2008, p. 82 apud RABELO e ARAGÃO, 2018, p. 102).

269
Em se tratando da presença dos caboclos nas cosmologias indígenas, entre os
Tupinambá da Serra do Padeiro, Alarcon (2013, p. 27) observa que este costumava ser “um
termo pejorativo empregado pelos não-índios para se referir aos indígenas”. Segundo os
Tupinambá, citados pela autora, era o termo utilizado pelos brancos para chamar os
indígenas de preguiçosos ou bestas. Pelos próprios indígenas, por outro lado, o termo era
empregado tanto para dizerem que eram misturados como para reforçarem a indianidade de
seus antepassados. A outra forma como os caboclos aparecem entre os povos indígenas do
Nordeste é enquanto “seres encantados” (ALARCON, 2013; CARDOSO, 2016; GONDIM,
2016). Entre os Tremembé de Almofala, estudados por Gondim (2016), os caboclos com os
quais os indígenas compartilham a vida são “encantados” e incluem os de Umbanda,
“também chamados de guias ou mestres – como Nego Gerson, Cabocla Jurema, Sete
Flechas, Tapuia, Maria Padilha, Maria Molambo, Zé Pilintra, entre outros” (GONDIM,
2016, p. 30) – e os “‘moradores das matas’, como o Guajara, o Caipora e as Mães D’água”.
Entre os Pataxó do extremo sul baiano estes seres também possuem seus encantes e, entre
eles, Cardoso (2016) apresenta os “caboclinhos d’água”, seres invisíveis que vivem em um
determinado ponto da praia. Ainda que não sejam indígenas, os moradores da Ilha do
Massangano, estudados por Nóbrega (2019), também identificam os caboclos da “corrente
das águas”, que são os pequenos marujos, os nego d’água e as sereias.
Dada a diversidade de formas com que os caboclos aparecem em diferentes contextos
etnográficos, ao descrever as relações dos meus interlocutores com estes seres, procurarei
não me deter à apenas uma delas, pois, apesar de sugerirem as origens do compadre do rio
São Francisco, não correspondem contextualmente à vida na beira do rio, uma vez que a
maior parte dos quilombolas ribeirinhos não são praticantes de religiões de matriz africana
e também não se afirmam enquanto indígenas. Longe de sugerir que o que ocorre na beira
do rio é uma espécie de “mestiçagem” racial ou “sincretismo” religioso, tomo como
inspiração as reflexões de Goldman (2017, p.16) quando, ao criticar estas análises, propõe
um contradiscurso que não pressuponha “a homogeneização como horizonte da interação
entre diferenças”, isto é, que não suponha “que a combinação de elementos de origem diversa
deva necessariamente desembocar nem em um processo de simples confusão sincrética, nem
em um processo de homogeneização laminadora”. Para isso, argumenta o autor, apenas a
análise do material empírico seria capaz de tirar o privilégio do discurso antropológico,
subordinando-o à palavra nativa. Nestes casos, não se trata de pensar as “misturas” “nem de
um ponto de vista genético (no sentido amplo do termo), nem a partir de um modelo

270
tipológico”, tampouco “determinar com precisão o que é afro, o que é indígena, o que é
resultado de sua mistura, ou, eventualmente, o que não seria nem uma coisa nem outra — e
isso seja em sentido propriamente biológico ou genealógico, seja em sentido cultural ou
social” (GOLDMAN, 2017, p. 23).
Citando ainda o conjunto de artigos que compõem o Dossiê (Contra) Mestiçagens
Ameríndias e Afro-Americanas (PAZZARELLI, SAUMA e HIROSE, 2017), Goldman
(2017) diz, inclusive, que o caboclo parece ser “uma figura central para a compreensão desse
sofisticado mecanismo” nativo de fazer misturas, pois

por caboclo entende-se, em praticamente todo o Brasil, um conjunto de


seres espirituais que assumem características semelhantes, mas não
idênticas, nos diversos contextos em que aparecem. Eles se caracterizam,
em geral, por não se confundir com as divindades propriamente ditas e, ao
mesmo tempo, por apresentarem algum tipo de afastamento significativo
em relação aos antepassados e espíritos de mortos em geral. E ainda que
isso não ocorra em todas as partes, costumam ser pensados como “vivos”,
seja no sentido de que são seres que passaram deste plano da existência
para outro sem conhecer a experiência da morte, seja no sentido de que
sempre existiram, habitaram e protegeram determinado território. Nem
totalmente africanos, nem totalmente indígenas, nem totalmente vivos,
nem totalmente mortos, nem totalmente divinos, nem totalmente humanos,
os caboclos só existem em suas modulações (GOLDMAN, 2017, p. 23).

Como sugere Goldman (2017), se não é o caso de determinarmos de antemão a


origem das práticas sociais e culturais nativas, também não devemos definir de antemão a
natureza dos seres com os quais nossos interlocutores convivem nos contextos em que estas
relações são estabelecidas. No caso dos caboclos, por exemplo, se são humanos, animais,
espíritos, entre tantas outras possibilidades de ser, talvez seja algo que sequer tenha que ser
decidido, uma vez que tais categorias estanques são uma preocupação nossa, dos ocidentais
modernos, assim como as fronteiras bem marcadas entre os domínios da natureza, da cultura
e da assim chamada sobrenatureza.
Tendo tais reflexões em mente, buscarei seguir substancialmente o que os
quilombolas ribeirinhos dizem sobre a existência deste ser, fazendo conexões, caso
necessário, com a bibliografia disponível sobre o caboclo. Todavia, o que mais me interessa
nesta seção é conectar tais elaborações com as outras questões colocadas a mim por meus
interlocutores, que vêm sendo discutidas ao longo da tese e que envolvem o entrelaçamento
das diferentes formas de vida dos múltiplos viventes. A proposta, então, é mostrar como os
compadres se relacionam com as pessoas e se incluem em suas cosmologias.

271
Desde logo, três aspectos podem ser ressaltados considerando a frequência com que
aparecem nas narrativas quilombolas, sendo o primeiro deles o nome usual para se referir
aos caboclos: compadres e companheiros. Nota-se aqui, portanto, os termos de parentesco
associados a este ser. O segundo aspecto se refere às dificuldades de se acessar relatos sobre
sua presença, devido a uma pretensa descrença dos moradores em relação à sua existência.
Por fim, é importante considerar que as mudanças do rio têm ameaçado a existência dos
caboclinhos.
Em suas viagens pelo Vale do São Francisco, Carvalho (1937) escreveu que ao longo
do rio existiam muitos malefícios e coisas ruins, sendo todos eles mais ou menos conhecidos
pelos ribeirinhos. A diferença entre estes malefícios era a de que a maioria deles poderiam
ser prevenidos ou remediados, como as febres, a sífilis e a falta eventual de alimentos. No
entanto, nas palavras do autor, contra os “terríveis bichos d’água” não há remédio que se
encontre. No trecho abaixo, que antecede uma série de estórias ribeirinhas reproduzidas por
Carvalho (1937) sobre o compadre, o autor resume as travessuras destes “bichos d’água”.

Quando elles veem assúmptar as barcas, remexer nos “bois” dos remeiros,
atraz de gente e do caldeirão de feijoada, cozinhando no barranco, ahi é
que são ellas: esses bichos dagua são imponderaveis, pouca gente lida com
elles e ninguem sabe ao certo como apparecem. E o peor é que povoam
toda a extensão do rio, constituem familias e de paes para filhos se
transmittem os odios e as amizades que teem aos barranqueiros. Por toda
parte que se navegue, encontrasse a população ribeirinha cheia de lendas e
aventuras do Caboclo Dagua, bicho exquesito, pretinho como breu, com
cara igual a cabaça de groseira, de pisado forte no fundo do rio e que ronca
e trinca as pedras do leito, quando está com raiva, ou foi ferido
(CARVALHO, 1937, p. 122).

Assim como Carvalho (1937) notou, as travessuras dos “bichos d’água”, bem como
os ódios e as amizades que estes estabelecem com os ribeirinhos, também ouvi entre os
quilombolas a respeito deste temperamento instável dos compadres. Apesar do seu
comportamento malino e bravo, a relação das pessoas com este ser também passa por uma
série de combinações e agrados que, embora algumas vezes possa ser o suficiente para
apaziguar as relações, estão sempre sujeitas aos afetos entre as pessoas e o compadre, como
veremos nas narrativas adiante.

Eu não sei não, sei que existia, ele é um toquinho pretinho assim, a cabeça
dele não tem um fio de cabelo, uma vez eu estava pescando no rio mais
meu marido e nós fomos armar a rede, dali a apouco nós descemos a rede,
jogar essa rede e fomos descendo para ver. A lua clareou e, quando clareou,
estava aquele bichinho assim dentro d’água, ó, subindo e descendo,

272
subindo e descendo. Aí eu falei: “Menino, será o que é aquilo?”. A
cabecinha igual uma cuia, aí [marido] falou: “ali é o compadre, e nós
vamos tirar essa rede, se não ele vai virar esse barco”. E chegava a lumiar
a cabecinha dele. Não tem um fio de cabelo na cabeça dele. Eu falava:
“Menino de Deus, vamos tirar essa rede daqui e vamos embora, que dali a
pouco ele chega aqui e não quer que nós pesca aqui, e aí vira o barco e nós
vamos morrer afogados”. Aí nós íamos embora (Maria, Croatá, 2018).

Na narrativa acima, como vemos, Maria conta sobre seu encontro com o compadre.
Também me dizia que era comum encontrá-lo na praia, quando ela e outras mulheres
estavam lavando roupa no rio. Enquanto lavavam, ele ficava maretando. Elas observavam
as maretas na água, que faziam tcháaa, tcháa, tcháaa. Com isso, a água batia no barranco
e ficava toda suja, atrapalhando a lavagem das roupas. Quando isso acontecia, as mulheres
diziam: “ô meu compadre, deixa eu acabar de lavar minha roupa meu compadre, não faz
assim não, deixa eu acabar de lavar minha roupa, para com essa mareta aí meu compadre”.
Conforme Maria, depois que ele escutava, a água ia se acalmando. O rio mareta também
quando venta ou quando algum barco passa, formando algumas ondulações e agitações na
água. Assim, quando está maretando sem que haja vento ou embarcações para provocar tal
agitação, não restam dúvidas para as pessoas de quem está provocando esta agitação na água.
Eliane, uma quilombola da margem direita do São Francisco, contou que, quando
chega na beira do rio e a maré está alta, pede aos companheiros d’água para aliviarem, pois,
segundo ela, a água com muita força é perigosa. O rio e os companheiros atendem ao pedido
e “quando pensa que não, você vai ver o rio, lento, fazendo lento, vai alenteando, até ele
ficar uma maré mais calma, mais lenta, aí você pode fazer sua viagem”.

Tem essa combinação com os companheiros do rio. Quando eu vou pro


rio mesmo eu falo, antes de sair de casa, eu falo assim: “ó meus
companheiros, me protege!” Me protege, que só ele que pode. Porque ele
no rio tem dele de três tipo, tem dele vermelho, tem dele do preto e tem
dele do afogueado, assim meio queimado. Tem dele de três tipos. O preto
é brincalhão, que se ele gostar da pessoa, ele brinca demais com a pessoa.
Agora o vermelho, se a pessoa chegar na beira do rio e o sangue dele não
bater, não encosta não! Pode ir lá mesmo do alto, que se você encostar, ele
tenta te puxar para dentro do rio. Ele não gosta, o sangue não bate. O
vermelho é o mais perigoso. É, e tem ele o macho e a fêmea (Eliane,
Caraíbas, Caderno de Campo Projeto DS São Francisco, p. 259).

Da mesma forma que existem, como aponta Eliane, “três tipos” de compadre, Seu
Vicente também me disse que existem três tipos de pessoas, sendo estes os brancos, os

273
morenos e os avermelhados. Neste caso, o morador deu exemplo de seu filho Sinvaldo, que
é “avermelhado moreno”.103
Além das cores, ou dos três tipos, de compadre, a narrativa de Eliane também faz
referência aos afetos entre pessoas e caboclos. Neste caso, para as combinações e agrados
terem eficácia, é necessário o sangue entre os dois bater. Ainda segundo Eliane, algumas
pessoas têm sangue de caboclo e, aqueles que têm o sangue da cabocla fêmea, “o macho
não gosta, o macho ciúma da fêmea”. A pessoa com sangue da cabocla fêmea, quando vai
para o rio, “pode tá ruim de peixe o que for”, não volta para casa sem peixe. Isto porque,
“ela dá o peixe” para a pessoa. Eliane diz que tem a impressão de que “o macho ciúma por
conta disso”. Esta pescadora contou também a estória de Manoel, um conhecido dela que
tem sangue de cabocla fêmea.

Esses dias mesmo ele falou para nós, lá na casa da minha mãe. Falou para
mim e minha mãe. Disse que estava querendo ir no rio. Estava meio ruim
de peixe, mas ele falou assim: “É, vou no rio, vou pescar”. Aí, eu sei que
ele deu duas tarrafada, tirou uns seis curimatá aqui assim, e um
surubinzinho. Aí pensou assim “Oh! Já ganhei o dia”. E foi embora.
Quando ele foi lá, que voltou de tarde e foi lá, ele chegou, aí o compadre
jogou o motor dele dentro d’água. (Risada) Deu um tombo nele. Deu um
tombo no motor dele, jogou dentro d’água. Ainda bem que ele jogou na
beira. Ele tirou o motor do barco e jogou n’água. Acho que o macho quis
jogar no fundo, aí a fêmea foi e tomou e jogou na beira. Aí, diz ele que
chegou lá, diz ele que estava vendo batucando dentro do barco, que ele vê,
tinha os dois molequinhos assim, a fêmea, com cabelo longo, e o macho
carequinha, preto. O preto é bem carequinha, carequinha, carequinha
mesmo. Ele não tem cabelo na cabeça. Pretinho, pretinho, pretinho,
pretinho! Ele é aqui assim, eu já vi ele, o macho, preto. Aí ele disse que
chegou lá, estava um batucão no barco, aí ele chegou de cá no barranco,
que ele olhou, estava a fêmea, mais o macho, tentando... um puxava para
lá, outro puxava para cá. Acho que a fêmea queria proteger os negócios de
pesca dele, e o macho queria dar fim. Aí, diz ele que chegou do barranco,
subiu assim em cima do pau, viu os dois lá, chegou mais perto assim, aí o
macho quando viu ele, pulou dentro d’água e a fêmea ficou, porque ele tem
sangue da fêmea. Ele tem sangue da cabocla fêmea (Eliane, Caraíbas,
Caderno de Campo Projeto DS São Francisco, p. 259-260).

Depois de todo o sufoco passado por Manoel em seu encontro com os caboclos,
conforme Eliane, ele ainda resolveu “dar um lanço”, conseguindo pescar mais cinco quilos
de peixe. Assim, como podemos observar, as vidas dos ribeirinhos são protegidas pelos

103
Sobre “moreno” fazer referência a uma cor, o trabalho de Costa (1999) mostra como isso acontece entre os
moradores do quilombo de Brejo dos Crioulos. Nóbrega (2019) também discute as elaborações dos moradores
da Ilha do Massangano sobre as cores das pessoas que, de alguma maneira, também estão relacionadas com o
sangue.

274
compadres, ou ameaçadas por eles, nos casos em que o sangue deste ser “não bater com o
da pessoa”. Sangue e afeto, portanto, andam juntos nas relações estabelecidas tanto entre as
pessoas quanto entre elas e os compadres d’água. Conforme Luz de Oliveira (2013b, p. 150),
em sua pesquisa com os pescadores e vazanteiros do rio São Francisco, quando o compadre
“tem simpatia por um pescador, pode ser prestativo e protetor, favorecendo a pesca e a
navegação, e protegendo as roças dos vazanteiros contra inundações e ripiquetes”, podendo
até “salvar pessoas do afogamento”. Caso não haja simpatia, o compadre “pode tornar-se
vingativo e irado”, provocando “a queda de barreiras nas margens do rio com o objetivo de
destruir a casa de seu desafeto” (LUZ DE OLIVEIRA, 2013b, p. 150). O temperamento dos
caboclos também é algo notado não penas pelos quilombolas ribeirinhos, mas também nos
terreiros de candomblé, como notaram Rabelo e Aragão (2018). Segundo estes autores,
quando as pessoas recebem o caboclo, este chega de maneira mais violenta, nervosa, pesada
e grosseira se comparado à chegada dos orixás, que costumam ser mais leves e finos.
Segundo Luz de Oliveira (2013b), por seu temperamento irado e vingativo, é
necessário “fazer camaradagem” e agrados ao caboclo. Em Sangradouro Grande, Mariana e
Preto contaram que uma “pinguinha da boa” e um “fuminho” não podem faltar para o
pescador, sendo estes itens fundamentais para a combinação com os compadres. Esta é uma
prática bastante comum entre os pescadores, a de botar cachaça e fumo nas praias, barrancos
e ilhas para o compadre, no intuito de agradá-lo. Sobre estas práticas, Maria disse:

Mas o povo dava muito, tinha gente que coisava, nós ainda colocamos um
bocado de tempo, eu e meu marido – “aqui vai para os compadres”.
Comprava fumo de rolo e colocava na beira do rio. Agora, quem panhava,
nós não sabemos quem panhava. Sabemos que nós botávamos lá e quando
era no outro dia, quando a gente ia lá, não estava lá, e a gente falava que
era ele que panhava, eu acho que era, não sei não, de primeiro o povo era
besta (Maria, Croatá, 2018).

Estabelecendo esta relação de simpatia, confiança e reciprocidade, os pescadores não


apenas garantem sua segurança como também uma boa pescaria. Talvez seja exatamente
estas reciprocidades que o fazem transmutar de “bicho d’água” (CARVALHO, 1937) para
compadres ou companheiros.
Os afetos entre pessoas e caboclos são tão importantes que o compadre não se
permite ver por qualquer um. Como me disse Peba, quem costuma vê-lo são apenas alguns
poucos, os outros em geral não o veem. Quando o veem, este pode aparecer na forma de
paus, cabaças e outras coisas que costumam aparecer nas águas do rio ou que fazem parte

275
do universo da beira do rio. Além do encontro com o compadre dentro da água, ele pode
aparecer em sonhos também. Isto foi o que me disse João Lucas, contando ainda que, quando
sonha com ele, não pesca nada, pois considera o sonho como uma espécie de aviso e não vai
para o rio pescar. Nas estórias que me contou, o morador disse ter visto, certa vez, algo
parecido com uma cobra de “um olho sozinho” e bem brilhante no meio do rio. João Lucas
também me contou da experiência de sua mãe com o compadre, pois ela, ao andar pela ilha,
viu dois rastros no chão. Os rastros, neste caso, indicavam que quem pisara ali possuía um
pé de gente e outro de animal.
Apesar das poucas estórias que pude ouvir em campo sobre os compadres, em geral
as pessoas, mesmo aquelas que contam tais estórias, explicam que são estórias antigas, pois
eram coisas que o povo de antigamente, que era besta, costumava acreditar. Outros também
dizem que antes existia, mas que hoje não existe mais.
Conversando com Mariana e Preto, pude perceber um certo incômodo dos dois em
afirmarem a existência do compadre. Quando me diziam que uma cachaça e um fumo não
podiam faltar ao pescador, perguntei as razões disso. Em seguida, os dois se calaram. Tentei
novamente, dizendo que já tinha ouvido falar sobre algumas coisas que existem no rio.
Mariana disse que nunca tinha visto, mas que certa vez sua rede “sumiu do nada, no meio
do nada”. Preto duvidou, argumentando que poderia ter enganchado em alguma coisa, mas
Mariana estava segura de que não havia nada em que a rede pudesse se prender. Ela ainda
completou:

Eu que não duvido. Muita gente agrada ele. E ele também não gosta de
desboque também não. Nome feio, palavrão. As pessoas as vezes até
brincam um com o outro, mas não usa palavrão ou faz bagunça dentro do
rio, porque, você pode olhar, é raro você ver alguém bagunçando dentro
do rio (Mariana, Sangradouro Grande, 2017).

Depois disso, Preto não quis discordar e comentou: “eu não acredito, mas também
não desacredito também que não tem não”. O mesmo tipo de afirmação foi feita por Maria
que, antes de me contar suas estórias, quando perguntei a ela sobre a existência do compadre,
me respondeu dizendo que “diz o povo que ainda tem”. A referência de Maria ao povo, aqui
no seu sentido indefinido, se parece com as discussões de Favret-Saada (1980, 2005) sobre
a feitiçaria no Bocage francês. Durante sua pesquisa, como argumenta a autora, os
camponeses do Bocage recusavam-se a “jogar a Grande Divisão” e falar sobre feitiçaria com
a pesquisadora, sabendo de antemão os resultados disso: o de que ela ficaria com “o melhor

276
lugar (aquele do saber, da ciência, da verdade, do real, quicá algo ainda mais alto), e eles,
com o pior”, o do atraso e da imbecilidade (FAVRET-SAADA, 2005, p. 157). O que não
me parece muito diferente da percepção dos quilombolas ribeirinhos que, embora contem
sobre seus encontros com o compadre, sempre ressaltam que não acreditam e que são
estórias que o povo conta, afinal, ninguém quer ser qualificado enquanto besta.
Outro aspecto, também discutido por Favret-Saada (1980), é que, no Bocage francês,
os conhecimentos sobre a feitiçaria não são tratados como “coisa” que pode ser
compreendida de maneira intelectualizada, como faz a ciência. O que ocorre é o processo de
ter sido enfeitiçado, que passa por uma série de conversas que podem trazer a certeza de que
os infortúnios de alguém não são de origem natural, mas sim resultados de bruxaria. Assim
também, me parece, se dá a relação com os companheiros d’água. Algo que também foi
discutido por Almeida (2004) ao falar de “panema” entre os seringueiros amazônicos.
Segundo o autor, “panema” é uma condição que pode acometer o caçador, que se torna
incapaz de obter seu alimento através da caça. Conforme Almeida (2004), “panema” poderia
sugerir uma crença por parte dos seringueiros no sobrenatural, mas este não é o caso, pois é
considerado um fato empírico. Isto porque “os seringueiros não encontram dificuldades em
entender que nós, da cidade, acreditamos em toda sorte de entidades invisíveis que afetam
nossos corpos e que estão presentes no que comemos – germes, bactérias, vírus e assim por
diante”; e, da mesma forma que nós, “eles convivem, analogamente, com entidades
invisíveis, cujos efeitos são observados por eles em seu cotidiano” (ALMEIDA, 2004, p.
42).
Peba, por exemplo, disse que nunca topou com o compadre. “Se tiver eu não
conheço”, afirmou ele. Mas em seguida contou o caso de seu tio, que ia descendo o rio
quando olhou para trás e viu uma bola descer atrás dele sobre a água. Quando a bola chegou
perto, sumiu e virou um bicho. Assombrado, o tio de Peba encostou o barco no barranco, o
amarrou e “já saiu correndo”. Apesar da estória contada pelo tio, Peba acredita que “isso”
devia ter antes, no passado, quando o rio era mais fundo. Assim como os peixes possuem
suas moradeiras, os compadres, habitantes das águas, também as possuem. Mas como hoje
está “praticamente tudo raso”, “aí não tem jeito para eles ficarem”, pois o compadre “mora
é no fundo das locas”, disse Peba. As mudanças no rio, que vêm sendo descritas ao longo
desta tese, também têm afetado a existência dos companheiros d’água.
É possível sugerir, na verdade, que a vida dos compadres está diretamente associada
à saúde do rio e da terra. Como discutiu Luz de Oliveira (2013b),

277
Quando uma ofensa ou maltrato é feito ao “cumpadre”, a lagoa fica suja e
o peixe some. Na ilha da Capivara, em Januária, eu ouvi o relato sobre o
pescador que era também caçador e prendeu um “cumpadre”
“pequenininho, mas forçoso” dentro da jaula na Lagoa Branca. Pouco
tempo depois, esse pescador morreu e a lagoa que tinha água “alvinha e
muito peixe, sujou, ficou preta de massaroá [vegetação que cresce dentro
da lagoa] e o peixe sumiu (LUZ DE OLIVEIRA, 2013b, p. 151)

Em minha conversa com Maria sobre os compadres, ela também conectava as


mudanças no rio e no comportamento das pessoas ao desaparecimento dos seres d’água.
Além dos companheiros, ela também contou sobre as sereias, dizendo que muita gente
“botava pente em cima de uma pedra, que era para a sereia panhar para poder pentear o
cabelo”. Enfatizando que “de primeiro tinha, mas hoje em dia não tem ‘isso’ mais não”. Nas
palavras da moradora:

Eram só os homens! Os pescadores que viam. E diz que ela sentava na


pedra quando o sol vinha saindo e diz que ela ficava assim, e o cabelão era
grandão assim, cobria tudo, e aí tinha gente que botava pente, comprava
pente novinho e levava pra botar em cima da pedra que era para ela panhá
pra pentear o cabelo. Primeiro, sei lá, mas hoje em dia eu fico assim
pensando, mas a gente era tão besta nessa época que acreditava em tudo, e
hoje em dia eu vejo um povo tudo rebelde, tudo sei lá ... não sei não... Hoje
em dia tem menino que responde a mãe na cara da mãe, põe a mãe de
mentirosa, onde é que um filho meu fosse falar: “a senhora é mentirosa”.
Ah, menino, não falava não, nunca falou, e hoje em dia não, hoje em dia é
tudo diferente. Mudou e foi muito, mudou foi muito (Maria, Croatá, 2018).

Novamente, Maria fala sobre ser besta, mas neste caso, dada a comparação que
minha interlocutora faz, é possível perceber um outro sentido para a palavra. Ao invés da
referência a uma possível estupidez, o que ela parece querer expressar com o termo é a
capacidade de ser inocente, puro e respeitoso. O que faz mais sentido quando ela continua
dizendo que o povo hoje “faz muita coisa errada”, principalmente em relação ao uso do rio.
Sobre isso ela dizia:

Você vê que quando era na época da pescaria, que fechava, o povo não
pescava, que era pra deixar aquele peixe produzir, né!? Para render! Hoje
em dia fecha a pesca e o povo está direto pescando. Como rende o peixe?
Vai indo, vai indo acaba o peixe. O que tem no mundo que hoje em dia não
acaba? Tudo se acaba! Não, mas eles não obedecem não, não obedecem de
jeito nenhum, não cumpre a lei certa, não. E de primeiro não, de primeiro
o povo era tudo analfabeto, mas tinha aquela consciência, não vai pescar
não, que é pro peixe render pra nós mesmo e para os outros, para todo
mundo, né!? Mas hoje em dia eles sabem de tudo e estão pescando, estão
pegando (Maria, Croatá, 2018).

278
Estas narrativas me fazem concordar com Luz de Oliveira (2013b, p. 151), quando a
autora diz que “a relação baseada na reciprocidade e na aliança que vincula pelo compadrio
os seres da terra e da água possibilita aos vazanteiros usufruírem do rio, de suas lagoas
criadeiras e das terras crescentes”. Isto porque, como vimos ao longo da tese, as alianças
estabelecidas entre as pessoas por meio das acolhidas e reciprocidades diversas também se
estendem aos compadres d’água. Além disso, a mentalidade compartilhada pelos
quilombolas a respeito das formas de uso da terra, das águas e de criação dos bichos é o que
sustenta as possibilidades de um futuro nas e das águas, das terras e dos viventes. Assim,
aqueles de mentalidade diferente, que fazem “muita coisa errada”, “não obedecem” e “não
cumprem a lei certa”, quebram a união entre pessoas, viventes e outros agentes, bem como
põem em risco o futuro das vidas da beira do rio.
Ao utilizarem um termo de parentesco para se referirem aos caboclos, ao
reconhecerem que podem compartilhar do mesmo sangue que eles, e ao falarem que, tal
como as pessoas e animais, os compadres têm seu próprio temperamento, podendo, assim,
estabelecer relações de cuidado, proteção, ajuda e também de ódios e vinganças, percebemos
que, independentemente da categoria que utilizam para identificá-los – se humanos, não
humanos, mais-que-humanos ou mesmo menos-que-humanos –, é possível estabelecer
alianças com eles através de diversos agrados e combinações. Estas práticas, parece-me,
fazem parte de um modelo quilombola mais amplo de estabelecer relações recíprocas sejam
elas com quem for, seja com outras pessoas e coletivos, seja com as plantas, seja com os
animais. Nesse sentido, através das percepções quilombolas sobre as mudanças do tempo,
isto é, a falta de chuvas, a perda da força do rio e a morte dos pés, procurarei mostrar, no
próximo e último capítulo, como estas alianças, que são produzidas através das ajudas,
cuidados e afetos entre os viventes, são importantes para preservação e restauração das
matas, para a garantia da vida dos animais e para a manutenção da vitalidade do rio.

279
Capítulo 7
O CHORO DAS ÁRVORES

7.1. O tempo está muito diferençado

Era outubro de 2017 e, nesse período, eu circulava pelas comunidades da beira do


rio juntamente a outros pesquisadores do projeto DS São Francisco104. O trabalho envolvia
nos espalharmos pelas comunidades visitando os moradores e realizando conversas que se
desenrolavam paralelamente. Algumas vezes, também nos reuníamos todos para visitas
conjuntas. Apesar dos diferentes diálogos e informações que surgiam em cada conversa, um
assunto era comum em todas elas: o calor e a falta de chuvas. Lembro-me que nos dias que
se seguiram a este trabalho coletivo de campo, a pesquisa foi menos “produtiva” do que o
esperado. Isto porque, depois do almoço, a força necessária para seguir com as visitas não
era suportada pelo corpo, que acabava por ficar fraco devido ao calor. Embora a temperatura
alta fosse comum ao povo da beira do rio, era insuportável para nós “de fora”. Ao meio dia,
o sol ardia a ponto de deixar nossos corpos inertes. Mesmo a cabeça não parecia tão apta a
desenvolver algum pensamento mais consistente. Quem se arriscasse a caminhar pelas
estradas entre as dez da manhã e as cinco da tarde sentiria a pele queimar, a cabeça ferver e
os cabelos parecerem as próprias chamas do fogo. Neste período, inclusive, aprendi sobre a
importância de um bom chapéu de palha, que se tornou para mim um item essencial de
pesquisa de campo. Após os almoços de cada dia, a única coisa que nos restava era descansar
sob a sombra de algum pé, os locais mais frescos para se permanecer durante o dia. Fazíamos
isso sendo acompanhados ou acompanhando os próprios moradores. Ali, embaixo das
árvores, os pés eram não apenas refúgios do calor, mas também o assunto das conversas.
Nestas ocasiões, os moradores comentavam sobre a morte de muitas árvores, que não
estavam aguentando a quentura da terra e tinham suas folhas todas queimadas pelo sol.
Em um destes dias, em Várzea da Cruz, as mulheres faziam uma penitência para
chover, que eu soube ser uma prática bastante comum na comunidade e que é realizada todo
ano. Elas já estavam no sétimo dia de penitência, que consistia no total de nove. Naquela

104
Estes eram Elisa Araújo, Luciana Monteiro e Pedro Henrique Mourthé. Este último, apesar de não fazer
parte da equipe do projeto, nos acompanhou na ida a campo às comunidades de Januária.

280
ocasião, tive a oportunidade de acompanhar as penitentes, que se reuniram na igreja católica
em torno das duas horas da tarde. Como me explicaram, a penitência deveria ser feita durante
o período de sol quente do dia, para submeterem seus corpos ao sofrimento.105 A penitência,
então, começou com a reza do terço na pequena igreja da comunidade, que na época ainda
se encontrava em fase de acabamento. Em seguida, caminhamos rezando até o cemitério,
que se localiza não muito longe da igreja. No caminho, uma das três mulheres que
participavam da penitência, Elaine, puxava a oração da Ave Maria enquanto as outras duas
acompanhavam a reza, incluindo esta antropóloga. Todas carregavam consigo flores e
garrafas PET cheias de água que, ao longo do trajeto, era despejada gradualmente sobre a
areia da estrada. Chegando ao cemitério, as mulheres finalizaram a reza do terço e o restante
da água foi despejada sobre os túmulos. Uma delas me explicou que as flores e a água eram
para os mortos, pois era preciso refrescar suas almas, para que elas tivessem pena dos vivos.
A penitência não durou mais que uma hora e, em nosso retorno do cemitério, Dona Maria
Almeida disse que das muitas penitências que já realizou, algumas vezes chovia antes
mesmo da penitência ser finalizada. Nas vezes em que a chuva não caía durante a penitência,
já se iniciava outra em seguida. Ela disse também que, apesar do tempo e da moleza do corpo
ocasionada pelo calor, é preciso estar sempre em movimento, pois o corpo não pode ficar
parado.

105
O sofrimento é um dos aspectos que caracteriza a penitência, como nos mostra Lima (2006) em sua pesquisa
no Médio São Francisco.

281
Figura 42 - Mulheres em penitência.
Fotografia: Izadora Acypreste, 2017.

Esta experiência de campo no mês quente de outubro foi o que despertou minha
atenção para as percepções e teorizações dos quilombolas sobre a falta de chuvas,
principalmente por sua relação com a morte dos pés. Apesar do meu interesse e das muitas
tentativas, tratar desse assunto por meio da expressão “mudanças climáticas” se mostrou
algo totalmente infrutífero. Não porque os quilombolas ribeirinhos não saibam do que se
trata, mas porque não é através desta expressão que eles explicam as transformações que
vêm acontecendo na beira do rio.106 Assim, recordando as conversas que aconteceram em
Várzea da Cruz e das contemplações de Dona Osvaldina, quando disse que o tempo
“diferençou demais”, passei a questionar os moradores sobre o tempo na sua acepção
climática. Pois, como já vimos ao longo da tese, existem também os tempos estóricos na
beira do rio.107
Sobre estas variações de tempos, ao discutir sobre o “tempo da política”, Palmeira
(2002, p. 175, grifos do autor) observa que “em princípio tudo é ‘temporalizável’, mas só é

106
Podemos ver algo parecido entre os seringueiros amazônicos, quando Almeida (2004) discute o termo
“ecologia” e sua importância para a organização política deste coletivo.
107
Em uma pesquisa sobre a seca no sertão de Pernambuco, Pereira (2020, p. 252) chama a atenção para outros
tempos. Entre eles, “aquele para “se referir à um cálculo”, como “tempo para fazer, tempo para chegar, tempo
para laçar um boi”; e aquele que se refere à qualidade, “tempo ruim, tempo bom, tempo bonito para chover”.

282
‘temporalizado’ (isto é, transformado em tempo, como o tempo da política, o tempo das
festas etc.) o que é considerado socialmente relevante pela coletividade em determinado
momento”. Por isso mesmo, continua o autor, “o rol de tempos não é fixo, como também
não são permanentes suas incompatibilidades”. Assim, se os tempos antigos, como o de
primeiro, o carracismo, o das soltas, o da divisão, entre outros, são importantes para os
quilombolas narrarem sobre as transformações que ocorreram na paisagem e em suas vidas,
ao que parece, novos tempos se anunciam, uma vez que começam a diferençar.
Considerando essa diversidade de tempos, perguntar sobre essa categoria polissêmica
é estar sujeito a receber as mais diversas respostas. Tudo acaba dependendo do rumo da
prosa. Porém, dada a situação preocupante que a falta de chuvas tem provocado na região,
mesmo sem questioná-los, meus interlocutores estavam sempre a fazer comentários sobre a
perda de suas roças e sementes, sobre o milho que não embonecou108, sobre os bichos que
não têm água para beber, sobre a cheia que não veio, sobre as lagoas que secaram, entre
tantos outros efeitos do longo período de estiagem no qual têm vivido. Assim, por meio
destas experiências e observações cotidianas, o tema das mudanças do tempo estava sempre
em pauta nas nossas conversas. É sobre este tempo climático e suas transformações, portanto,
de que tratará este capítulo.
Em 2018, conversando com Madalena em Sangradouro Grande, ela disse que, caso
eu estivesse em campo no período de colheita do ano anterior, teria “visto o povo todo triste”.
Isto porque, segundo ela:

pensa em uma lavoura de milho que ficou linda, mas de chegar a espiga ...
Acho que Deus falou assim: “peraí, que vocês vão colher!” Mas foi um sol,
um sol que matou tudo, secou tudo. Todo mundo estava com a esperança
de colher muito milho, porque teve muito milho, colheu nada. Pessoal via
era sair caminhão de palha de milho. Vender, né!? Para não perder tudo,
vender baratinho para os fazendeiros darem ao gado (Madalena,
Sangradouro Grande, 2018)

Assim como Madalena, Seu Faustino também disse que sempre planta milho, fava,
feijão e “um capinzinho para as vacas comerem”. Contudo, contou também que todo ano
perde suas sementes. No ano de 2016, plantou setenta e cinco quilos de milho e não colheu
sequer uma espiga. Sua sorte foi que, no ano anterior, “entrou um pouquinho de água” na
ilha, onde costuma plantar, do que se aproveitou para cultivar trinta quilos de feijão. Com a

Termo utilizado para se referir ao período de maturação do milho em que os cabelos do milho (estigmas)
108

emergem para fora da palha

283
colheita, Seu Faustino disse ter ficado muito satisfeito, pois acabou colhendo o dobro do que
plantou de milho. Das abóboras, ele disse ter “panhado bastante”, “mais de duas mil
abóboras”. Mas no ano em que conversamos, 2017, disse que não plantaria na ilha, “porque
[o rio] não lavou”. Explicou ainda que “ilha é o seguinte, ela só presta se lavar, se não lavar,
não presta não”. Isto porque, quando o rio enche, a areia que o rio traz vem com o que eles
chamam de foeiro, que são folhas em decomposição que, tal como dizem, “segura o
molhado” da terra, deixando-a boa para plantação de abóbora e de outras qualidades de
mantimentos. Sem a cheia a terra fica arenosa, fracassada e sem liga, algo de que a maioria
das plantações não gosta.
Em outra conversa com Maria, ela disse que o tempo mudou muito. Em seguida, fez
seu relato sobre estas mudanças, observando algo parecido ao que disse Seu Faustino: de
que em 2017 a “chuva foi pouca”, mas que em 2018 “choveu bom”. No primeiro ano, plantou
um pouco de milho e feijão, que deram pouco, já no último ano, “deu um bocado de milho”.
Como vemos nas narrativas, existe uma diversidade de experiências em relação aos
plantios e colheitas, sendo alguns anos considerados ruins e outros bons. Estas diferenças
em relação ao que se colhe, mesmo quando os moradores se referem ao mesmo período,
acontecem porque cada pessoa costuma plantar em um lugar diferente, em uma determinada
área. Assim, uma chuva que cai pode ser boa o suficiente para encher o rio, que lava a terra
das vazantes, trazendo foeiro e deixando-a boa para a plantação. Mas essa mesma quantidade
de chuva pode não ser o suficiente para molhar e amolecer as terras dos altos. Daí decorrem
as diferenças entre aqueles que conseguem colher e aqueles que não conseguem. Como
também abordado, os moradores contam com três momentos de plantio e, assim, uma pessoa
pode colher bastante abóbora nas vazantes, mas nenhuma espiga de milho nos altos. A esse
respeito, Dona Nilza dizia:

Se não tiver chuva não dá para você plantar, não. Só planta se chover para
a terra amolecer. Igual vazante você planta agora, o rio vem e come, você
torna a plantar e quando for de fim de chuva você já torna a plantar mais
terra. Que nem no alto aqui, só planta nas águas. Acabou, acabou! Se não
plantar esse ano, só no ano que vem de novo. Se o tempo for bom de água,
você planta, se não for... (Dona Nilza, Sangradouro Grande, 2018).

Mesmo nos “tempos bons de água”, a chuva forte pode judiar e fazer as pessoas
perderem suas roças, pois ela “pega na flor do mantimento”, “na flor do pendão do milho,
do feijão” e “morre tudo”. Desse modo, vemos que não é apenas a falta de chuvas que afeta
os plantios dos quilombolas ribeirinhos, mas também a alteração dos seus ciclos.

284
Enquanto alguns moradores me falavam sobre as perdas dos últimos anos, outros
refletiam sobre estas perdas como um fenômeno mais duradouro, que já vem ocorrendo há
mais tempo, pois, como dizem, “o tempo está ruim para a roça”, porque não chove direito e
a terra fica “seca direto”, fica fracassada demais. Sobre isso Seu Pedro costumava dizer:
“esse Norte de Minas aqui está ruim demais para a chuva”. Isto porque antes a chuva vinha
e, mesmo que demorasse, vinha “invernado quase cinco dias”, mas agora “chove de parcela”.
Na ocasião ele contava que assiste a “televisão falando de chuva lá para São Paulo”, mas
para o Norte de Minas, “nada”. De vez enquanto ele observa o céu, vê “aquela formação” e
pensa: “eita, tal lugar está chovendo”, mas chegava lá e não havia chovido nada. “Mas onde
é que choveu?” – se pergunta ele, que também reponde dizendo não saber. Um tempo
enganador, me parece.
Talvez pela idade, por terem tido a oportunidade de assuntar bastante o tempo, Seu
Carlito e Dona Osvaldina são exímios conhecedores dessas mudanças. Com o casal pude
aprender muito, sendo boa parte das discussões desta seção fruto de nossas conversas. Sobre
os períodos de seca, Seu Carlito dizia que “sempre tinha”. Porém, isso ocorria de tempos em
tempos, mas depois de dois ou três anos, a chuva voltava a sua frequência normal. Sobre
estas mudanças, ele comentava:

Eu vou falar para você, nós já tivemos muita mandioca, muita mandioca
mesmo. Era de um jeito que as mulheres, que tiram essa goma para a
tapioca, diz elas que não estavam nem querendo tirar mais, porque ela
estava sem preço. E teve tempo também que mandioca secou, murchou,
secou devido ao solo. Em 71 teve essa seca. Agora só uma coisa eu vou
falar para você, que hoje nós não estamos vendo quase é o peixe. Hoje é
difícil ver peixe. Naquele tempo peixe era em qualquer buraco que chegava
aí, era nas vargens, era peixe, era muito, muito, muito peixe. Mas essa falta
de farinha, de tempo em tempo sempre tinha. Mas era assim, de dois anos,
três anos e daí continuava mandioca do mesmo jeito (Seu Carlito, Várzea
da Cruz, 2017).

Nos tempos de chuva e fartura, as manivas, embora fossem muitas, não chegavam a
perder. Como Seu Carlito continuou contando, “naquele tempo você amontoava a maniva”
e, “no mês de maio você abria um buraquinho, botava elas aí e pronto”. “Maniva, deitava
ela assim no chão, só com o sereno daí um pouco maniva estava nascendo, estava os pezinhos
de mandioca saindo”, disse ele. O sereno, conforme continuou explicando o casal, é muito
importante para as plantações e antes era algo que não faltava. Dona Osvaldina se lembrava
que, quando era ainda criança, saía de manhã para estudar na Gameleira e, para isso,
precisava atravessar os pastos no meio do caminho. Ao fazer isso, ela conta que “da cintura,

285
dos peitos assim para baixo, molhava tudo só de orvalho, de tanto orvalho que tinha”. Da
mesma forma, as mandiocas, quando era de manhã, estavam “branquinhas de sereno”. Mas
“hoje, cadê? Ninguém vê” mais orvalho, disse ela. Isto porque o tempo “diferencô demais”.
Em suas palavras:

A gente levantava de manhã, você olhava para as mandiocas pequenas, que


tanto fosse pequena fosse grande, estavam branquinhas de sereno. Chegava
a pingar assim ó. Os capins ficavam alvinhos. [Falava:] “Menina, mas essa
noite caiu sereno!” Acabou! Já tem uns dois anos que ninguém vê isso.
Não tem sereno mais não, por isso que estão morrendo as árvores, porque
tinha o sereno pra conservar. Você está vendo? Quase não está fazendo frio
nas épocas de frio. O frio está pouco. De quando eu conheci, o frio está
pouco. Agora não, que não está na época de frio, mas quando vai de maio
para junho, o frio começava para nós aqui era no mês de abril. Fim de abril
começava o frio. Maio, fazendo farinha, ficava imaginando: “ai meu pai
do céu, fazer farinha com um frio desse?” Acabou! Mês de maio está
fazendo é calor. Diferencô demais, menina! Diferencô demais! (Dona
Osvaldina, Várzea da Cruz, 2017).

Em poucas palavras, Dona Osvaldina nos explica a relação entre o tempo quente e a
morte dos pés, pois o sereno ajuda na conservação das árvores. Além disso, ela também
pontuou outros assuntos importantes, como a falta do frio. 109 Neste caso, é importante
explicar que, na beira do rio, o frio não é o mesmo que o inverno. “Quando está chovendo,
que [a gente] conhece por inverno”, explicou Osvaldina. Já quando chove muito, é
invernada. Ela também disse que quando vê “falar na televisão” sobre “o inverno” ou que
“vai começar o inverno”, costuma ficar “assim assuntando” e pensa: “eu não estou
entendendo nada”. Isto porque o inverno, “nas profecias deles [dos apresentadores de
televisão]” ocorre no final de junho, período conhecido como seca entre os moradores da
beira do rio.
Se a televisão e seus apresentadores fazem profecias, tal como disse Dona Osvaldina,
os quilombolas fazem previsões ou advinhações. Em campo pude ouvir algumas estórias
sobre as formas de se fazer previsões, sobre as pessoas que conseguiam ou conseguem fazê-
las, bem como sobre as árvores e bichos que anunciam a chegada das chuvas. A capacidade
de fazer adivinhações e compreender os sinais das árvores e animais, como me disseram, é
considerada uma “ciência dos mais velhos”.

109
Conforme dados apresentados por Pierson (1972a), a temperatura mais elevada do município de Januária,
na época em que escreveu seu livro, girava em torno de 23,9°C. Já a precipitação média era de 975,9mm.
Atualmente, conforme os dados do Instituto Nacional de Meteorologia (INMET), a temperatura mais alta
registrada nos últimos anos foi de 40,9°C e a precipitação média atualmente é de 448,3mm.

286
Seu Carlito disse que fazia adivinhação todo ano. As mais comuns eram as
adivinhações de fogueira, quando os moradores contavam os “seis meses das águas”. Os
seis meses se referem ao período entre outubro e março, quando as águas da chuva costumam
cair. Esta contagem é feita a partir dos dias entre as festas dos santos: São João e São Pedro,
quando os moradores conseguem calcular o período exato de chegada das chuvas. Entre o
dia da fogueira – dia de São João (24 de junho) – até o dia de São Pedro (29 de junho) são
seis dias. Assim, se a chuva caísse no primeiro dia, isso indicava que as chuvas começariam
logo no primeiro mês das águas: outubro. Se a chuva caísse no segundo dia, indicava que as
águas começariam no segundo mês: novembro. E assim por diante. Nestas datas festivas, o
nublado do céu no dia também indicava o período do mês em que a chuva cairia. Portanto,
se o nublado ocorresse de manhã, a chuva chegaria logo no início do mês. Caso o nublado
se formasse à noite, as chuvas só chegariam no final do mês. Era recorrendo a esta ciência
que os mais velhos faziam as suas adivinhações de fogueira.
Dona Olívia também me contou sobre estas previsões, dizendo que não sabe como
elas são feitas, mas que, certa vez, um homem foi comprar uns “porquinhos” com ela e lhe
falou: “olha, Dona Olívia, esse ano vai ser bom de chuva, eu vi na fogueira, no dia da
fogueira que vai ter muita chuva esse ano”. Logo ela pensou: “sujeito tá caducando, onde já
se viu falar?”. Mas reconheceu que sua mãe também conseguia fazer estas previsões, ainda
que não fossem de fogueira. Seu Faustino também comentou que seu avô tinha um outro
sistema de previsão, neste caso relacionado aos trovões. No entanto, ele não se lembrava
exatamente como era feita, pois ele era apenas um menino de sete anos quando ouviu o avô
contar sobre esta previsão.
Algumas vezes, no dia da festa de fogueira, Osvaldina se lembra que as pessoas não
conseguiam nem mesmo acender o fogo, pois já estava chovendo. Conforme contou,
“passarinho de chuva cantava, formava arco [arco-íris] e, naqueles dias [as pessoas
comentavam]: ‘ó, mês assim vai ser bom de chuva’”. Podemos ver que os passarinhos de
chuva são mencionados por ela, sendo estes bichos, assim como algumas árvores que
chauviam, alguns dos anunciadores das chuvas. Sobre eles, Dona Osvaldina explicava:

Aquele arco no céu, né!? Como é que chama? Arco-íris? Formava no céu
nos dias que eram das adivinhações. E os passarinhos de chuva cantavam.
Passarinho de chuva cantava e formava aquele arco no céu. “Menino, até
arco tá formando? Pois esse ano vai ser, esse mês vai ser bom de chuva”.
Algumas pessoas gravavam, quando chegava naquele mês: chuva! “Eu
bem falei, eu não falei?”. “Essa aqui deu certinho, as previsões do tempo
deram certinho, mês de outubro tá chovendo, mês de novembro”. E era

287
certo, se começasse até meio dia ela dizia “ó, vai ser no início do mês”.
Meio dia estava aquele solão e a tarde nublava, aí falava: “ó, ela vai ser no
meio do mês”. Do meio para o fim do mês, e era certo. Caía um vento, o
povo dizia: “esse mês é mês seco, esse mês não vai ter chuva, é mês de
vento”. E era mesmo. Depois mudou né, diz que Deus falou que o dia que
eles quisessem saber o segredo dele, que ele mudava, né!? Mudou mesmo.
Minha mãe falava que quando os home quisesse saber do segredo dele que
ele muda. E está mudado, está mudado (Dona Osvaldina, Várzea da Cruz,
2017).

Enquanto contavam sobre estas adivinhações, Seu Carlito comentou que, inclusive,
“a seriema estava cantando de manhã no terreno”. Dona Osvaldina em seguida emendou:
“aquilo lá era adivinhando chuva!” Sobre esta capacidade de algumas aves adivinharem as
chuvas, Seu Santo também confirmou, explicando que, quando “elas começam a cantar a
gente já está sabendo que a chuva está aproximando”. Entre elas, continuou ele, “a seriema
dá muito sinal de chuva”, e isto porque ela canta com mais frequência na época de chuva.
Além da seriema, Dona Olívia se lembrou que sua mãe explicava que os outros pássaros,
quando fazem casa nas copas das árvores, dependendo da direção para qual é aberta a
portinha da casa do passarinho, pode indicar se haverá enchente ou não. Segundo minha
interlocutora, sua mãe também fazia previsão com a lua, observando um círculo em volta do
astro quando estava para chover. Apesar da ciência de sua mãe, Dona Olívia disse que nunca
parou para observar as casas dos passarinhos e, no caso da lua, disse que cansa de olhar, mas
não consegue ver nada.
Além dos passarinhos de chuva e da lua, algumas árvores também costumam ser
anunciadoras. Seu Santo me explicou que o marizeiro, por exemplo, costuma chuviscar ou
chauviar antes das chuvas, soltando alguns respingos de água. Mesmo quando já está
chovendo, disse ele, é a “chuva chovendo e ele pingando água”. Chamou-me ainda a atenção,
dizendo que “quando a chuva para, onde tem ele [marizeiro], chega espuma”. Isto porque, a
árvore fica “chorando com a espera da chuva” e, “depois que a chuva chega, aí agora ela
chora referente à enchente”. Assim como o marizeiro, a quixabeira também é capaz de fazer
estas indicações, sendo ambas árvores do vazantão. Para além de serem anunciadoras, Dona
Nilza disse que as árvores também são responsáveis por “chamar a chuva”. Segundo ela:

Nilza: As árvores que chamam a chuva. Você vê que, quando está para
chover, você pode ficar embaixo da árvore que você vê aqueles pinguinhos
friinhos, chovendo, chorando água em você. E depois que o povo cortou
as árvores, a chuva afastou. Derrubou as árvores da beira do rio, queimou,
não chove mais como era de primeiro aqui. Quando não tem mais árvore

288
para chamar chuva na beira do rio. É por isso que as águas também secam,
as árvores também ajudam as águas.
Izadora: Ajudam como?
Nilza: Ajuda a segurar a umidade das águas. Antigamente o povo roçava,
mas não derrubava os paus. E esses paus assim, você não derrubava não.
De pau, só aqueles fininhos que podia derrubar. E hoje o povo mete a
motosserra e derruba, e vai derrubando. Agora o ventinho tão bom que as
árvores dão na gente, olha! (Ventava durante nossa conversa)
Izadora: É verdade!
Nilza: De primeiro o povo tinha dó de derrubar uma árvore, uma madeira.
Agora o povo não tem dó. Mete a motosserra e derruba cada pauzão de
aroeira, e com isso vai retirando a chuva, fica ruim de chuva para a gente.
De primeiro, chuva era fácil de chover, de uns tempos para cá ... ah, muito
difícil! As vezes a chuva vem, depois torna a ir embora. De primeiro, em
um tempo desse, você já tinha um feijão de corda, já tinha o milho, chovia
era cinco, seis dias, tinha vez que era a semana de inverno. Agora você vê,
chove, você planta a semente, que cola no chão que não dá para nascer,
você perde a semente. O povo derruba as árvores da beira do rio tudo, que
chama as chuvas para ajudar, o rio seca. As árvores conservam as águas
do rio, aquelas árvores verdinhas ajudam a umidade das águas. Se pegar
fogo, o rio fica triste. O rio fica alegre das plantas todas ao redor dele. Já
fala o rio São Francisco, o rio São Francisco com as árvores todas
verdinhas na beira do rio. O povo taca fogo, o rio vai ficar alegre com as
árvores mortas? Cada um tem sua alegria, o rio também tem sua alegria
do que Deus deixou, ele tem também. Para conservar as águas para a gente.
Alegre daquele vento mexendo as árvores. Às vezes você chega na beira
do rio e está aquele quenturão. É quente e você não acha uma árvore boa
para você sentar debaixo, tudo sapecado, tudo queimado
(Dona Nilza, Sangradouro Grande, 2018).

Como mostra a moradora, o rio fica alegre quando, ao longo de suas águas que
correm lentamente, o vento sopra fazendo farfalhar as folhas das árvores. As pessoas
também ficam alegres com isso, pois encontram sombra sob a copa das árvores e estando
ali, podem pausar para um descanso, sentindo o vento bater na pele e ouvindo o som do rio
que corre, das folhas que se balançam e dos pássaros que sobrevoam e cantam sobre o verde
das árvores. Sem essa interação de agências, sons e movimentos, o rio fica triste. Assim
como o rio, Dona Nilza disse que também estava triste, quase chorando enquanto observava
a situação do rio e das árvores.
A circunstância lamentável da morte das árvores e do secamento do rio também foi
algo mencionado pelo casal Carlito e Osvaldina. Certa vez, enquanto conversávamos, eles
comentavam sobre o equívoco dos agentes do IEF que, ao levarem para a comunidade mudas
de aroeira, baru, pinha, caju, e de outras plantas para o plantio, não conseguiam perceber a
situação das árvores na beira do rio. Enquanto os agentes se preocupavam apenas com o
desmatamento, os moradores atentavam para as complexas relações que desencadeavam na

289
morte dos pés que, como venho tentando mostrar, envolve as agências de outras pessoas
(fazendeiros, criadô) conjuntamente a de outros objetos e seres (tratores, capins, gado,
cercas, entre outros). Quando o IEF visitava Várzea da Cruz para plantar as mudas, Seu
Carlito, embora os tenha ajudado, mostrando os locais para estas serem plantadas, avisou:
“olha, uma coisa eu vou falar para vocês, porque esse tempo de pouca chuva, essas árvores
não vão aguentar, não”. Dona Osvaldina também interrogou os agentes, falando: “uai, vai
plantar agora?” Ao que eles responderam: “Não, é mês de dezembro”. Ironicamente,
Osvaldina contou que mesmo em dezembro não choveu e as mudas que os agentes plantaram
já morreram todas. Como forma de comprovar suas afirmações, Seu Carlito, apontando para
os pés do seu terreno, mostrou a condição em que eles se encontravam. Disse ainda que
metade dos seus pés já havia morrido. Pés estes que já existiam há muitos anos no terreno.

Figura 43 - Árvores queimadas pelo sol


Fotografia: Izadora Acypreste, 2017.

De primeiro, continuou contando o casal, quando era mês de outubro, os moradores


já estavam plantando nas águas. Algumas vezes, no final de setembro já começavam a
plantar, pois as águas já tinham chegado. Da mesma forma, “no meio de setembro as árvores
brotavam”, pois recebiam as chuvas de broto que fazem crescer suas novas folhagens. Tanto
que, no mês de outubro, “era aquele verde no campo”, pois as árvores já estavam todas com

290
suas folhas. Outubro era um mês bonito, disseram os dois. Em seguida, começaram a falar
sobre os pés:

Osvaldina: Sapucaia, jenipapo, macambira dava uns cachos vermelhinhos.


Juá, jatobá, essas árvores ninguém plantavam elas não, elas nasciam aí ó,
e davam.
Carlito: As mangas, olha, nós andamos de Belo Horizonte para cá olhando
chácara de manga, tem pé de manga que você não vê uma manga. Os pés
de manga aqui davam que eu vou te contar, forravam o chão. Cadê? Pequi,
ô moço, dois pés de pequi mortos lá. Gente de Montes Claros vinha panhar
pequi aí e ia embora que não aguentava levar de tanto pequi.
Osvaldina: Vem gente de Belo Horizonte, de Montes Claros na época de
dezembro. Aquilo ali estava forrado que não tinha onde você pisar. Eles
vinham pegar aqui.
Carlito: Está acabando tudo. Falta de chuva. Devido à falta de chuva, a
chuva vai demorando, o sol vai esquentando, as árvores vão e não
aguentam mais o calor da terra. Não aguentam o calor da terra... eu passei
essa cisterna aqui 15 anos sem limpar ela, sem dar rebaixo. 15 anos! Do
ano retrasado para cá eu já dei rebaixo nela umas seis vezes. Porque o rio
está chupando, está chupando as águas, o rio está secando. Lá em Pirapora
lá, diz que tem lugar que está rasinho, rasinho que a embarcação teve que
parar. Em Pirapora! Eu vi lá como é que é a pedreira lá, o lugar lá que as
águas correm, mas que está difícil, está difícil!
(Dona Osvaldina e Seu Carlito, Várzea da Cruz, 2017)

Como vimos no quinto capítulo desta tese, a morte dos pés leva consigo o registro
material das memórias dos parentes antigos e da relação de primeiro com a beira do rio.
Segundo Seu Santo, “as árvores mais antigas que tinham, que era das moradias velhas, por
causa do problema da seca, elas morreram”. Nos lugares onde estas moradias eram
localizadas, explicou meu interlocutor, ainda pode-se encontrar os cacos das telhas das casas
velhas, “mas as árvores mesmo, que tinham naqueles tempos”, muitas delas não resistiram
e morreram, como os pés de manga, de tamarindo, de umbu e de caju. Seu Santo ainda
desafiou, dizendo que se eu andasse nestas regiões, nas moradas antigas do pessoal, eu veria
com meus próprios olhos a estória que ele me contava, a atual realidade da beira do rio.
Tanto Nilza quanto Carlito apontaram para a relação importante entre as árvores e o
rio. Pois, com a morte das árvores, o rio fica triste e também chupa toda a água da terra,
onde os moradores cultivam seus canteiros, suas roças e suas frutíferas. Para aqueles que
vivem nos altos, mesmo a obtenção da água para ser utilizada nos afazeres domésticos e no
cuidado com os bichos fica mais difícil. Quando o rio tinha força, disse Seu Santo, “todos
os anos essa terra remontava, tinha remonto”, pois ele jogava a areia de dentro do rio para
fora, para os barrancos e “limpava a área fluente dele (seu curso)”, não permitindo a
formação das praias. A este respeito, Dona Nilza também disse que antes o rio era fundo,
291
mas “agora só tem praia, virou um bocado de praia”. Tanto que o barco navega o rio
“encostado na terra”.
Lembro-me de que, quando realizava o primeiro período de campo em Gameleira,
fiquei curiosa sobre a areia grossa que forrava a estrada que cruza a comunidade. Certa vez,
enquanto caminhava até a casa de um dos moradores, sentia o peso das pernas ao me mover,
pois meus pés afundavam na areia grossa e sem liga do chão. A areia presente ali é igual a
da praia do rio e, por Gameleira se situar no alto, fiquei sem entender porque aquele tipo de
areia se encontrava ali. Intrigada, perguntei a Seu Vicente sobre aquele solo, ao que ele me
explicou ser areia de desmonte. Neste caso, segundo ele, “desmonte é aquela [terra] que a
enxurrada leva, chove e carrega assim, vai jogando pra lá”. Ao ouvir tal explicação, procurei
saber melhor como isso funcionava, pois já tinha ouvido o termo anteriormente em Croatá.
Nosso diálogo foi o que se segue:

Izadora: O senhor falou de areia de desmonte, como funciona isso?


Vicente: Modo de dizer, modo de falar de um lugar, de lançante que a gente
fala. O lançante é aquele lugar, vamos dizer assim, nesse sentido aqui, que
aqui chove e escorrega pra lá, então vem aquelas enxurradas de longe.
Izadora: De cima lá da serra?
Vicente: De cima, vem trazendo, vem empurrando, o que mais vai é a areia,
mesmo que tenha barro, mas o que vai mais é areia, vem correndo.
Izadora: Ela é mais leve, né?
Vicente: É, é só ver que aqui, nessa beira daqui pra acolá, até ali em cima
é areia pra danar, porque ela vem desses corredores aí. E vem amontoando,
amontoando, a ponto que eles metem máquina aí e tiram metade [da areia]
e joga pro lado, tanto aqui como aqui embaixo, em qualquer lugar.
Izadora: Entendi. Mas antes era assim também ou foi mais por causa do
desmate?
Vicente: O desmate também ajuda, porque destampa, ela já tem lugar de
ir, mas toda vida teve assim. Onde eu conheci aqui sempre teve isso daqui.
Agora no lugar de desmate sempre tem porque o mato que fica em pé
atrapalha metade da água de chuva, a água vem, as vezes traz a folha, folha
seca, ramo, e encosta aqui, daqui, aqui tem outra, encosta aqui, a água já
não vai ter força pra descer como vinha.
Izadora: Então fala areia de desmonte, né?
Vicente: É, areia de desmonte, lugar de desmonte, sempre tem esses, todo
mundo aqui conhece, eu conheço
(Seu Vicente, Gameleira, 2018).

Embora os quilombolas não façam uma conexão direta entre remonte e desmonte, a
similaridade entre os dois termos e o que cada um deles significa me fez pensá-los como
pares opostos para refletir sobre a mudança do tempo na beira do rio. Se o remonte é
produzido pela força do rio, que empurra a terra do leito para os barrancos, o desmonte é
resultado da força das águas da chuva que arrastam a areia, a terra fraca, dos altos para as
292
baixadas, em um movimento que é facilitado pelo desmate e a inexistências do mato que
ajuda a segurar a terra. Com o desmonte, a areia dos altos corre em direção à baixada do
rio, que, por sua vez, atualmente não tem tido a força necessária para empurrá-la de volta
para os barrancos. O resultado é a formação das praias e o assoreamento do rio. E, como
vimos, este aspecto do rio é o que vem entristecendo os quilombolas ribeirinhos. E se antes
as árvores choravam para chamarem a chuva, hoje são os quilombolas que choram com a
situação da paisagem.
Sobre isso, Seu Carlito refletiu, dizendo que todos pagam pelas consequências destas
ações irresponsáveis com as águas, as árvores e os bichos.

Os idosos pagam pelo que fazem. As crianças, por conta dos idosos, sofrem
também. E os bichos, que não têm culpa nenhuma, também sofrem devido
a chuva não vim. Quer dizer que o castigo vem para todos. Vem para todo
mundo! Agora fica a falta de chuva, até os pastos estão sem água, tem hora
que nessas vasilhas de água aí junta tanto passarinho bebendo água, tanto
passarinho, tantas coisas aí, eu falo: “deixa os bichinhos beberem”. Põe
comida para os pintos, esses passarinhos flecham na comida, e eu digo:
“pode comer à vontade, porque vocês não têm, é nós é que temos que dar”.
E também aqui tem o seguinte, se eu ver um com estilingue aqui dentro eu
falo: “ó, aqui eu não quero ver nem o rastro de mexer com estilingue aqui
dentro, não quero que judia, de jeito nenhum, deixa os bichinhos viverem,
deixa viver” (Seu Carlito, Várzea da Cruz, 2017).

O que Seu Carlito parece querer dizer em sua narrativa é que todos são responsáveis
pela vida uns dos outros. E a vida, seja do rio, das árvores, das pessoas ou dos bichos, estão
todas entrelaçadas, de maneira que uma não é possível sem a outra. Neste caso, as ajudas
mútuas são fundamentais para garantir a existência dos viventes da beira do rio e o bem estar
geral da paisagem.
Considerando que a falta de chuva é pensada por Seu Carlito como um castigo que
todos pagam por, em algum momento, terem quebrado a reciprocidade entre os viventes, ele
e outros moradores teorizam sobre o possível fim da beira do rio. Quando perguntei a Seu
Carlito sobre quais eram as razões da falta das chuvas, ele respondeu dizendo que além do
desmate, talvez exista uma outra razão, mas que não é algo que alguém poderia
verdadeiramente saber. Ainda assim, arriscou em uma formulação.

Isso então é uma coisa que a gente ... pode ser que o fim ia ser era assim.
Bom, é uma coisa e outra, porque olha, o que nós conhecemos de chuva,
era chuva que a gente quase não podia nem trabalhar, tantas vezes eu ia
sair para ir para roça e ficava. Chegava na porta para ir para a roça sem
poder ir. Chovendo! Formava uma nuvenzinha de nada e dali a pouco a

293
chuva caía. Agora, hoje já não está do jeito que estava, que dizer que o
tempo está diminuindo. Vai diminuindo. Então por isso é que digo, está
uma coisa que nós não estamos quase sabendo entender se é o fim das
épocas ou se é porque tinha era que ser assim mesmo, ou não sei o que é
que está acontecendo. Sei que a chuva está faltando. A chuva faltando e as
árvores morrendo e ... desse jeito! (Seu Carlito, Várzea da Cruz, 2017).

Apesar das práticas de previsão e adivinhação, as razões da falta de chuvas por um


período mais longo não parecem ser algo que pode ser previsto ou adivinhado. Portanto, “se
é o fim das épocas” ou se “tinha que ser assim mesmo”, não é possível saber. O que se sabe
é que o tempo está diminuindo. Mas isso não impede os quilombolas ribeirinhos de fazerem
suas conjecturas sobre este possível “fim das épocas”, que é algo diferente das previsões,
adivinhação. Neste caso, já vimos Dona Osvaldina dizer, quando o home quisesse saber o
segredo de Deus, ele mudaria as coisas. Esta parece ser uma das primeiras conjecturas
quilombola sobre o home que, através de seus conhecimentos, em algum momento passa a
acreditar que tem força maior que a de Deus. E Deus, para lembrar o home sobre seu lugar,
muda todas as coisas para deixá-lo cego e despido de toda a sua ciência que intenciona prever
e controlar as coisas.
Embora nas narrativas do casal Carlito e Osvaldina exista um tanto de autocrítica,
me parece que nem todos fariam parte desse conjunto denominado home. Alguns deles,
como já ouvimos, foram mais sabidos e usaram de seus conhecimentos para enganar os
fracos, tomar de conta das terras, cercá-las, derrubar os pés, plantar seus capins, gradear as
lagoas e desmontar toda a beira do rio. Apesar de fazerem suas previsões e adivinhações,
os quilombolas sempre souberam, ao contrário dos sabidos, que os acontecimentos da beira
do rio estão sujeitos à outras forças, que escapam do controle e da previsão, pois estão
submetidas a um conjunto de interações entre agentes animados e inanimados. Isso foi o que
me pareceu dizer Seu Saulo, quando falava sobre as enchentes. Mesmo reconhecendo a atual
fraqueza do rio, ele disse:

Moça, nada pra Deus é difícil, mas vai encurtando, né. Cada ano passa e
muda uma coisa, cada ano que passa ele muda uma coisa. É igual o estudo.
Estuda um estudo esse ano, quando for no outro ano, já vai passar pra outro.
Porque aquilo pra você já venceu e você vai passar pra outro, até chegar
no que é de você (Seu Saulo, Croatá, 2018).

Ainda que tenham seus conhecimentos e ciências, os quilombolas da beira do rio


sabem que estão subjugados, juntamente aos bichos e plantas, a esta força divina, conhecida
por eles enquanto Deus. Certa vez, conversando com Seu Arnaldo, ele dizia algo sobre a

294
situação da terra na beira do rio. Em determinada altura da conversa, ele lançou a pergunta:
“Mas quem Deus fez primeiro? Os homens ou a terra?” Em seguida, o próprio Seu Arnaldo
deu a resposta: “a terra”. O que mostra que os quilombolas entendem que eles são apenas
um elemento de uma composição de seres e coisas existentes. Sobre essa posição menor,
diante de uma força divina maior, Zé Orlando, Totinha e João faziam suas reflexões.

Deus falou lá, quando ele desmatou, quando ele acabou o mundo com o
dilúvio, ele fez uma aliança com o homem e falou: “eu vou marcar uma
arco-íris ali ó, e quando você ver aquele arco-íris no céu, é um sinal da
minha aliança com o homem, que eu nunca acabaria o mundo com água”.
E o mundo tá acabando sem o quê? Sem água! (Zé Orlando, Sangradouro
Grande, 2017).

Como podemos ver, as leituras bíblicas, como a citada por Zé Orlando, convergem
com as observações dos quilombolas ribeirinhos sobre as mudanças que vem acontecendo
na beira do rio ao longo dos tempos. Mas estas conjecturas sobre a agência divina sobre “o
fim das épocas” estão sempre sujeitas a diferentes interpretações. Isto é o que podemos notar
no diálogo entre João e Totinha.

Totinha: Na época, sempre eles falavam: “o mundo está pra acabar, a vinda
de Jesus está próxima”. Desde eu pequenininho eu escuto falar que a vinda
de Jesus está próxima. Aí vai rompendo, chegando, quando foi pra chegar
o ano de 2000, aí teve gente que destruiu o que tinha, um bocado das
meninas desgramou a namorar: “o mundo está acabando e eu não vou
namorar nenhuma vez? Eu vou namorar ao menos uma vez”. Teve gente
que pegou fazenda e vendeu. E depois dois mil chegou, dois mil e um. Está
vendo aí? Quem vai saber o dia que Deus vai acabar com esse mundo
nosso? Quem sabe é só ele, então essas meninas que caíram nessa aí, e
outros que venderam fazenda pra não deixar nada, eles que ficaram sem
ela.
João: A bíblia fala que diz que Deus vem como um ladrão. Não avisa, pega
de surpresa.
Totinha: Ele vem como um ladrão nas nuvens. Mas ele não falou pra nós
também não, nós não vamos saber como ele vai vim também.
João: Está escrito na bíblia.
Totinha: Pois é, mas nem tudo Deus vai marcar lá pra nós sabermos. Na
bíblia tem tanta passagem, acha que Deus vai escrever o passado dele todo?
João: A pessoa pega uma bíblia pra ler e nunca que lê ela toda.
Totinha: O segredo de Deus quem sabe é só ele, o que tá escrito na bíblia
quem fez foi o homem
(Tinha e João, Gameleira, 2018).

Independente das decisões divinas, do segredo de Deus, como disse Zé Orlando: “nós
não temos muita desanimação porque a gente sabe que Deus falou que isso ia acontecer”.
Tanto sua afirmação quanto as discussões apresentadas ao longo da tese permitem afirmar

295
que os quilombolas ribeirinhos sabem sobre sua responsabilidade em estabelecer trocas
recíprocas com os outros viventes e sobre a importância das ajudas mútuas, que são
fundamentais para manter tudo bonito, animado e alegre. Como veremos na próxima e
última seção deste capítulo, através de uma labuta intensa e sem desanimação, meus
interlocutores têm resistido às mudanças do tempo através do cultivo de suas plantas, da
criação de seus bichos e do estabelecimento de boas relações com seus pares – humanos ou
não – para se manterem em seus lugares de vida.

7.2. Retomar as plantas, amansar o gado e resistir ao tempo

Considerando que, ao longo da tese, percorremos não apenas as narrativas sobre a


convivência dos quilombolas com a beira do rio no tempo presente, mas também de como
tal convivência se dava no tempo de primeiro, não poderíamos deixar de apresentar a maneira
como estas convivências multiespecíficas, principalmente com as plantas, apontam para o
futuro. Apesar das mudanças do tempo e de um futuro que parece muitas vezes incerto e
desanimador, a proposta nesta seção é fazer o esforço, junto com os quilombolas, de olhar
sem desanimação para as possibilidades da continuidade dessas trocas recíprocas entre os
viventes na beira do rio. O segredo de Deus, como vimos, é bom não saber, mas
considerando que o futuro não parece ser muito favorável para os quilombolas, seus pés e
bichos, resta a esperança de que o reestabelecimento da reciprocidade e das ajudas mútuas
com a paisagem, quem sabe, mudem as coisas.
Conforme apresentado na primeira parte deste texto, na última década os moradores
que tiveram que deixar suas terras após a chegada dos fazendeiros passaram a retomar seus
territórios. Ao contarem sobre este retorno, muitos descreveram as condições que
encontraram a beira do rio. Contavam também sobre a labuta envolvida no replantio das
árvores, nas correrias coletivas para impedir as queimadas que constantemente ameaçavam
(e ameaçam) as matas e os bichos, bem como as lutas para se manterem em seus territórios
através da conexão com os movimentos, instituições e políticos locais.
Quando montaram seus barracos de lona na beira do rio, com um grupo maior de
pessoas e com a intenção de se estabelecerem permanentemente, os quilombolas me
disseram ter encontrado uma terra toda esbagaçada e abandonada, onde só existia

296
“capoeirão largado”. Como me disse um interlocutor, “tinha mata, mas era só de pau fino”.
Mesmo que, quando não estão sendo trabalhadas, as matas tenham a tendência a crescer
rápido, em algumas partes elas estavam tão desagradadas ao ponto de não conseguirem mais
se recuperar. Enquanto este morador fazia suas observações, sua esposa, que estava ao lado,
confirmou o que dizia o marido, completando que nas áreas onde se estabeleceram as
fazendas “estava tudo pelado”, sem nenhum pau e, se “você olhar assim, não tem uma
sombra”.
Esta condição das áreas deixadas pelas fazendas, não apenas em relação às matas,
mas também aos bichos, é considerada pelos quilombolas como abandono. Como já citei
anteriormente, uma das fazendas, a Itapiraçaba, decretou falência em 2008 após lesar fundos
de pensão paulistas e, por essa razão, seus imóveis se tornaram indisponíveis e partes de uma
massa falida. A fazenda abandonada então “foi apropriada por um pretenso gerente que passa
a arrendá-la para a criação de gado” (ARAÚJO et al, 2019, p. 163). Quando retomaram a
área, a situação em que os quilombolas encontraram o gado era lamentável. Como me
disseram, “era só osso de gado”. Isto porque o gado estava todo morrendo: “olhava aqui pro
lado e tinha umas oitenta e poucas caveiras, tudo aqui ao redor”, disse um dos quilombolas.
Dentro da lagoa, de sede, morreram pelo menos 60 cabeças de gado, pois na lagoa não tinha
água, “só tinha lama”. Com isso, o gado “atolava, vaqueiro vinha, puxava e jogava lá para o
seco”. O descuido e o desinteresse em “investir no território” por parte do fazendeiro são
motivo das reprovações dos quilombolas. A forma com que os fazendeiros lidam com as
lagoas também é motivo de desespero por parte dos meus interlocutores. Pude observar isso
quando fazia campo em Sangradouro Grande. Na ocasião, uma moradora, extremamente
preocupada, me levou até a Lagoa das Garças para me mostrar as ações do fazendeiro, que
havia colocado fogo e passado o trator em uma parte da lagoa. Como já vimos, a Garças é
uma lagoa cujo o papel no caminho das águas é importantíssimo. Portanto, o fogo e os
tratores colocam em risco todo o sistema de absorção de água pelo solo, prejudicando o
sistema natural de acumulação e circulação de água.

297
Figura 44 - Deterioração da Lagoa das Garças por ações dos fazendeiros
Fotografia: Izadora Acypresre, 2017.

Como observou uma interlocutora sobre a atuação das fazendas:

Então assim, entramos aqui pra fazer a diferença porque o latifúndio não
pensa em preservar. Ele faz um empréstimo no banco e não vai investir
aqui, ele vai investir em São Paulo, em uma loja de carro, em uma loja de
outras coisas, ele não vai investir em território, porque eles sabem que
futuramente não vai tirar nada daqui, né!? Nós passamos lá pela sede, lá
tem a sede lá fora, na parte alta, lá tem a casa, tem a piscina, tudo
abandonado. A gente vê que eles estavam devendo milhões e milhões para
o banco (Moradora da beira do rio, 2018).

O abandono expressa as diferentes moralidades entre quilombolas e fazendeiros em


relação aos bens, sejam eles físicos – como a casa, piscina, entre outros – ou “naturais”,
como a terra, os animais e plantas. Ao dizer que o fazendeiro “não vai investir em território”,
sugiro, minha interlocutora está chamando a atenção para estas diferenças entre as formas
das fazendas de utilizarem a terra e os modos quilombolas de relação com os lugares em que
vivem que, como já vem sendo discutido, envolve também a relação com os outros viventes.
Sobre isso, outro morador foi mais direto e didático. Ao narrar sobre o bagaço em que
deixaram da terra, o vazanteiro disse:

Isso aqui a gente sabe que é um trabalho que eles tinham aqui dentro, uma
riqueza que eles ganhavam muito dinheiro, eles ganharam dinheiro. A
298
briga deles aqui com nós está sendo essa, porque eles ganharam muito
dinheiro aqui, saiu muitos caminhão de boi, de vaca gorda, eles
trabalhando em cima de nós. Naquilo que é da gente, sabe? Então, eles hoje
têm aquela importunância de não querer entregar fácil. Eles querem que
ressarce o que eles gastaram aqui dentro. Mas eles tiraram muito mais
(Morador da beira do rio, 2018).

O que as narrativas apresentadas parecem sugerir é que querer tirar algo da terra sem
investir, isto é, retribuir o que se plantou, colheu e criou nela, como fazem os fazendeiros, é
considerada uma ofensa grave à própria terra. Não bastasse a quantidade de dinheiro
adquirido “em cima” dos quilombolas e em uma terra que também pertence aos meus
interlocutores, os fazendeiros ainda têm a importunância de tentar mantê-los fora de suas
terras ou, ainda, de reivindicarem o ressarcimento pelo suposto investimento feito nessas
mesmas terras. Para os quilombolas ribeirinhos, “investir” é trabalhar junto com os outros
viventes. Quando caminhava com Seu Santo pelo mato, ele me mostrou uma parte da mata,
dizendo que aquela área havia se reflorestado depois que eles retomaram o território.
Encontrando a área toda desbravada e as lagoas esbagaçadas, não chegaram a plantar
mudas, mas deixaram que a própria mata se refizesse protegendo-a contra a ação de terceiros.
Meu interlocutor também explicou que a lagoa havia sido cavada com “máquina grande,
máquina muito resistente, na faixa de quatro metros de fundura”. Por causa dessa intervenção
e do desmatamento, a lagoa se encontrava seca, mas, com muito trabalho, os quilombolas
ajudaram para que as margens da lagoa se reflorestassem e a lagoa voltasse a ter água. Hoje,
após os resultados de seu investimento de tempo e cuidado com a área da lagoa, Seu Santo
disse: “a gente está rindo com os paus de alegria”.
Sobre a importância desse trabalho de reflorestamento, Seu Santo expressou suas
ideias:

Eu vejo assim, olha. Para te ser sincero eu sou analfabético. Eu tenho assim
um certo pensar que eu não sei se é certo, mas eu vejo uma área aqui que
é de preservação, sabemos que ela é uma área de preservação ambiental,
mas se ela tem um espaço que dá para mim plantar lá cinquenta pés de
quiabo, ela dá para mim tirar um sustento desses cinquenta pés de quiabo.
Se onde eu vou plantar estes cinquenta pés de quiabo, eu posso plantar lá
três ou quatro pés de goiaba, eu estou preservando. Eu acho que eu tenho
esse pensar comigo. Se eu posso ir lá e arrumar uma mudinha de jenipapo,
trazer e plantar naquela área, eu acho que eu estou preservando. Esse é
meu pensar, que eu acho que a preservação, ela nasce é daí. Poderia ser
muito bonito daqui se todo mundo pensasse em plantar um bocado de pé
de manga até lá em Enedina, por onde você veio a pé. Você chegasse aqui
e encontrasse uma carreira de pé de manga, plantado daqui até lá. Umas
três ou quatro ruas de pé de goiaba, de fora a fora. Então eu acho que é

299
assim, é por aí. É dessa maneira que eu penso. Eu aqui planto um pé de
abóbora, planto um pé de feijão, um milho, eu planto ali um pé de caxixe,
eu planto ali na frente um pé de amora. Cultura que as vezes você tira uma
e a outra prevalece (Seu Santo, Croatá, 2018).

O zelo quilombola com as matas também se dá através dos esforços coletivos de


impedirem as queimadas criminosas que alguns “espíritos de porco” iniciam para
derrubarem as áreas de mata para criação dos pastos para o gado. Enedina conta que, quando
“deu fogo” na mata fechada, a comunidade inteira se mobilizou para controlar as chamas.
Segundo ela, como o acesso à mata é difícil, os bombeiros não foram realizar o trabalho e
os moradores precisaram tomar suas providências. Fazendo aceiros nas folhagens e puxando
com a enxada para que o fogo não atravessasse de uma parte da mata para a outra, idosos,
adultos e crianças somaram suas forças até de madrugada para acabar com a queimada. O
trabalho dos quilombolas permitiu que boa parte da mata se mantivesse intacta. Apesar de
todo o esforço, uma grande parte da vegetação “o fogo queimou mesmo, sem dó”, lamentou
Enedina. Com o incêndio, muitos animais também morreram. Depois desta experiência,
ainda que tenham feito um boletim de ocorrência e não saibam quem foi o responsável pelo
início do fogo, Enedina disse que a comunidade se mantém sempre atenta. Muitas vezes
estas queimadas começam de maneira desproposital, mas eles disseram que precisam se
manterem em alerta aos interesses daqueles que querem de fato acabar com as matas para
criarem seus rebanhos.
Além do combate ao fogo, os quilombolas ribeirinhos tomam suas responsabilidades
no combate ou, mais certo seria dizer, na transformação das “ideias de fazendeiros”. Isso
envolve conscientizar a todos sobre o uso de tratores nas áreas de vazante e lagoas, sobre o
plantio de capim, sobre a utilização das cercas e sobre os modos de criação do gado. A
respeito da utilização de tratores nas ilhas, Seu Santo contou que eles passaram a ser
utilizados porque “o povo achou que trabalhar com trator ia ser um jeito mais fácil de
trabalhar”. Apesar do uso disseminado desta prática, Seu Santo disse ser “contra ela demais
desde quando iniciou”, pois, por causa desse uso dos tratores, as ilhas começaram a
enfraquecer e hoje estão todas acabadas. Nesse sentido, é preciso conscientizar o povo sobre
as formas vazanteiras tradicionais de cultivo da terra para que as terras da ilha e das vazantes
voltem a ter força.
Neste diálogo com outro morador, Seu Arnaldo, ele afirmou que, além dos tratores,
“o capim também tem que acabar”. Isto, explicava ele, por causa das relações diretas entre
o capim, o gado e as cercas. Como ele dizia:
300
O capim na área não deixa ... tem que botar gado, e se botar gado, o gado
come a horta, então o capim tem que acabar, em uma área de reserva tem
que acabar, não pode plantar capim, não. E também depende, que se fazer
uma capineira, não digo uma capineira para cortar, mas fazer capim para
fazer cerca, tem que cortar madeira. Então, quer dizer que, faz um corte
aqui, faz outro acolá, daqui a pouco caça um pau de reserva e não acha,
está tudo cortado, tudo enfincado, porque todo ano tem que fazer [cerca].
Essa madeira branca corta, põe, é só um ano, então todo ano tem que
renovar, então não há mata que chegue. Então tem que acabar com esse
negócio de cerca. Cerca para quê? (Seu Arnaldo, Croatá, 2018).

Se manter na labuta para replantarem as árvores, para protegerem as lagoas e a mata,


para criarem seus bichos e para manterem seus territórios não é tarefa fácil. Sabendo disso,
os moradores vão fazendo suas articulações e alianças com os movimentos, instituições e
políticos locais. Como eles bem sabem, a vida só é possível através da união e das ajudas
mútuas, seja entre humanos ou entre outros viventes. Algo muito parecido com as reflexões
de Tsing (2019, p. 87), quando afirma que “ocupar é dedicar-se ao trabalho de viver juntos”,
pois, ao invés de indivíduos, somo parceiros dentro de teias ecológicas multiespécie. Os
quilombolas também parecem já saber aquilo que tem sido por proposto por Haraway
(2016), sobre “fazer parentes”, isto é, “fazer-com – tornar-com, compor-com – ‘terranos’”,
lembrando-nos que “parentes” deve significar mais do que apenas “entidades ligadas por
ancestralidade ou genealogia” e que “‘fazer parentes’ é fazer pessoas, não necessariamente
como indivíduos ou como seres humanos”.
Um exemplo fornecido por Seu Santo pode ser bastante elucidativo da inspiração
quilombola para fazerem estas parcerias, pois percebem que ninguém e nenhum coletivo
deve estar realmente sozinho. O exemplo de Seu Santo, claro, fazia referência às plantas.
Assim ele me disse: “a planta tem a vida, é igualmente a nossa, se você não tiver um
acompanhamento com ela, ela não vai ter uma vida boa não. Nós temos que acompanhar o
ritmo dela sobreviver”.
.

301
CONSIDERAÇÕES FINAIS

302
Criar, cultivar e nutrir

Através destes três temas – as plantas, o gado e o tempo – procurei discutir como a
vida dos quilombolas é produzida através de engajamentos multiespecíficos. Tendo as
plantas como ponto de partida e fio condutor da análise, tentei compreender os elementos
que tornam possível estas vidas ribeirinhas.
Vivendo na beira do rio e estabelecendo, nesta paisagem, um conjunto de interações
com os mais diversos viventes e agentes – animados e inanimados – compreendi que seria
preciso começar uma descrição etnográfica sobre esta paisagem, mostrando o movimento do
povo, o caminho das águas e os gestos da terra. Sendo estes um “sistema circulatório” que
produz estóricas, afinal, como afirma Tsing (2019, p. 82), “paisagens são sempre históricas”.
Estórias que incluem uma diversidade de práticas, conhecimentos e ciências, que foram e
continuam se modificando com as mudanças dos tempos.
Uma das principais mudanças se refere à perda da liberdade, pois se antes pessoas e
bichos podiam se movimentar quando e para onde quisessem, a chegada das fazendas, com
suas “inovações técnicas”, transformaram os tempos de fartura em um tempo onde as cercas
e o capim tomaram de conta do meio do mundo. Neste momento, assim como os quilombolas
ribeirinhos, os pés de fruta e os mantimentos da roça também perderam, por um longo
período, a disputa com o capim e as cercas.
Apesar destas mudanças, nem tudo foi perdido, pois as acolhidas, as amizades e as
ajudas entre pessoas e viventes ainda permanecem como um valor moral compartilhado entre
os quilombolas ribeirinhos e todos aqueles que estejam dispostos a somar forças, “vestir a
camisa da comunidade” e compartilhar de uma mesma mentalidade. Nestas alianças, não é
apenas a agência humana que importa, pois os quilombolas sabem que são também as ajudas
não humanas que produzem vida. As águas ajudam a terra, fertilizando-a e a tornando forte.
A terra, por sua vez, ajuda os quilombolas na medida em que, através de sua força, pode
fazer uma planta dar ou não. As plantas também ajudam as águas, chorando e “chamando
chuva” para manter a “umidade” e a vitalidade do rio. Mas, para isso, é preciso que o povo
as ajude também, mantendo os paus em pé e cultivando outros tantos. O povo também é
responsável por ajudar uns aos outros, transformando gente de fora em gente do lugar,
estranhos em amigos, parentes e compadres, para que assim seja possível transformar a
mentalidade daqueles que permanecem com as “ideias de fazendeiro”.

303
Como descrito em diferentes momentos desta tese, na beira do rio tudo pode ser
criado. As pessoas são nascidas e criadas, os animais e bichos também são criados, bem
como as plantas podem se “criar muito ligeiro” quando livres para fazê-lo. Mas assim como
as ajudas são e devem ser multiespecíficas, a criação adequada depende diretamente destas
interrelações. Considerando que muitas forças podem atuar na vida dos quilombolas
ribeirinhos, incluindo aquelas que vêm dos astros ou dos afetos e desafetos relacionados à
compatibilidade ou incompatibilidade entre sangues, é preciso saber se proteger através das
rezas e da utilização dos remédios do mato. E, para utilizá-los, é preciso conhecê-los, algo
que só é possível na medida em que se é criado no lugar. Criação que, é importante lembrar,
não se limita à relação estabelecida desde o nascimento, mas que também pode ser produzida
através da convivência cotidiana com todos aqueles que compõem a paisagem.
Portanto, o carinho, o amor, o cuidado e o zelo são fundamentais na tarefa de cultivar
e nutrir estas relações multiespecíficas. Apesar das labutas, lutas e sofrimentos, os
quilombolas sabem o valor das brincadeiras, festas, folias, alegrias, prazeres e,
principalmente, do riso compartilhado entre si e com os outros viventes. Sendo estes
momentos e sentimentos compartilhados cotidianamente através da convivência. Assim,
compreendemos que um pé de árvore não é apenas algo inerte e solitário, mas uma prova
material de toda uma teia de vidas e de estórias. E o conjunto destes pés sendo, portanto, a
materialização na paisagem de muitas estórias, memórias e relações pessoais e coletivas.
Considerando ainda que cada árvore é um “filho de sangue” e que sangue, assim
como outros fluxos, na beira do rio são forças, quando são cortadas ou até mesmo
queimadas, enfraquecem todo o sistema compartilhado entre viventes, uma vez que tais
ações quebram a reciprocidade entre eles. Os resultados disso são os sofrimentos que
acometem a todos – humanos e não humanos – nos tempos atuais de falta de chuvas, de
invernadas, de secamento do rio e de desmonte da paisagem. Os quilombolas ribeirinhos,
como procurei mostrar ao longo da tese, sabem bem da complexidade da forma com que rio,
terras, plantas, astros, parentes, famílias, finados, compadres, bichos, animais e criações
estão interconectados. Por isso mesmo, sem desanimação, buscam defender seus modelos
de trabalho com a terra na medida em que se movimentam, retomam seus territórios,
cultivam suas roças, criam seus animais, refazem as matas e lagoas, continuando, portanto,
a estabelecer persistentemente suas alianças com os coletivos humanos e com os outros
coletivos viventes.

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322
323
ANEXOS

Anexo I – Fotografia e identificação de plantas

Figura 45 - Algodão de Seda (Calotropis procera)


Fotografia: Izadora Acypreste, 2017

324
Figura 46 - Erva Cidreirinha do Mato (Lippia alba)
Fotografia: Izadora Acypreste, 2017

Figura 47 - Pé de Seriguela (Spondias purpúrea)


Fotografia: Izadora Acypreste, 2017

325
Figura 48 - Qualidade de tangerina (Citrus reticulata). Fruto envolto com tecido para proteção
contra o sol.
Fotografia: Izadora Acypreste, 2018

Figura 49 - Pé de Pinha (Annona squamosa)


Fotografia: Izadora Acypreste, 2018

326
Figura 50 - Atemoia (Annona cherimola Mill x Annona squamosa)
Fotografia: Izadora Acypreste, 2018

Figura 51 - Lagadiço Lambe Beiço (Mimosa pudica)


Fotografia: Izadora Acypreste, 2018

327
Figura 52 - Pé de Jenipapo (Genipa americana)
Fotografia: Izadora Acypreste, 2018

Figura 53 - Coró de Galo/Esporão de Galo (Vassobia breviflora)


Fotografia: Izadora Acypreste, 2018

328
Figura 54 - Maçanzeira (Fruta de Ema / Oiti de Ema / Caratinguiba: Licania humilis)
Fotografia: Izadora Acypreste, 2018

Figura 55 - Galho de Picão (Bidens pilosa)

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Fotografia: Izadora Acypreste, 2018

Figura 56 - Galho de Muquêm (Albizia inundata)


Fotografia: Izadora Acypreste, 2018

Figura 57 - Canafista (Canafístula: Peltophorum dubium)


Fotografia: Izadora Acypreste, 2018

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Figura 58 - Embaúba (Cecropia angustifólia)
Fotografia: Izadora Acypreste, 2018

Figura 59 - Sabonete (Sapindus saponaria)


Fotografia: Izadora Acypreste, 2018

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Figura 60 - Jatobá (Hymenaea courbaril)
Fotografia: Izadora Acypreste, 2018

Figura 61 - Moleque Duro (Cordia leucocephala)


Fotografia: Izadora Acypreste, 2018

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Figura 62 - Cipó de Lagartixa (Pyrostegia venusta)
Fotografia: Izadora Acypreste, 2018

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