Tese Lucas Keer de Oliveira

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Londrina PR, de 02 a 05 de Julho de 2019.

III CONGRESSO INTERNACIONAL DE POLÍTICA SOCIAL E SERVIÇO SOCIAL:


DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
IV SEMINÁRIO NACIONAL DE TERRITÓRIO E GESTÃO DE POLITICAS SOCIAIS
III CONGRESSO DE DIREITO À CIDADE E JUSTIÇA AMBIENTAL

Relações étnico-raciais, povos indígenas, povos e comunidades tradicionais

Jovens Avá Guarani: estratégias de resistência no Oeste


do Paraná

Cynthia Franceska Cardoso 1

Resumo: Refletir a respeito das estratégias de resistência e re-existência dos povos


originários nos conduz aos processos históricos, políticos e sociais que permearam as suas
transformações culturais, sociais, políticas e econômicas e a conhecer a partir das suas
narrativas suas percepções sobre esses processos. Desta forma, este texto apresenta, a
partir de relatos de jovens Avá Guarani do Oeste do Paraná, algumas de suas estratégias
para sobreviver frente à secular opressão que foram e são submetidos, assim como seus
ancestrais.
Palavras-chave: Estratégias de resistência; re-existência; jovens Avá Guarani.

Abstract: Reflecting on the strategies of resistance and re-existence of the original people
leads us to know the historical, political and social processes that permeated their cultural,
social, political and economic transformations and to know from their narratives their
perceptions about these processes. In this way, this text presents from the reports of young
Ava Guarani from the west of Paraná some of their strategies to survive the secular
oppression to which they were and are submitted, as well as their ancestors.

Keywords: Strategies of resistance; re-existence; young Ava Guarani.

INTRODUÇÃO

O debate acadêmico a respeito dos jovens indígenas, juventudes indígenas, é


ainda incipiente, haja vista que nas sociedades indígenas a categoria social “jovem” difere
bastante de povo para povo e da noção de jovem que existe entre os não indígenas.
A maioria desses “jovens” traz consigo o histórico de resistência, luta e
sobrevivência dos seus ancestrais. Contudo, o que e como podem esperar melhores
condições de vida no futuro diante a um cenário político e econômico desastroso para os

1
Assistente social; pós-doutoranda no Programa de Estudos Pós Graduados em Administração da
Universidade Estadual de Maringá; Doutora em Serviço Social pela Pontíficia Universidade Católica
de São Paulo. e-mail: thynca@gmail.com

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povos indígenas como o atual? Estudar para quê? Manter a tradição para quê? À maioria
dos jovens indígenas, habitantes do Brasil, não é ofertada muita perspectiva de vida.
A parca perspectiva de um futuro para os jovens Avá, na atualidade, é produto dos
últimos cinco séculos de opressão e etnocídio cometido por diferentes atores, em distintos
contextos políticos, econômicos e sociais, contra o povo Guarani. Por outro lado, a sua
existência hoje, também, aponta que, embora tenham sofrido diversos reveses, resistem e
re-existem em seus territórios.
A participação, enquanto pesquisadora, no projeto de pesquisa multidisciplinar
intitulado “Conflitos e resistências para a conquista e demarcação de Terras Indígenas no
Oeste do Paraná: os caminhos e as expressões do fortalecimento das lideranças e da
cultura Guarani”, com o povo Avá Guarani no Oeste do Paraná, especificamente, na tríplice
fronteira entre o Paraguai, Paraná e Mato Grosso do Sul, possibilitou conhecer quem são os
jovens Avá Guarani e quais estratégias de resistência adotam para sobreviver e re-existir
diante dos inúmeros conflitos sociais que os colocam no limite da sua humanidade.
Deste modo, foi necessário retomar alguns processos históricos, políticos e sociais,
desde o tempo da colonização da América Latina, para compreendermos melhor e
podermos delinear quais interesses permeiam uma das regiões mais conflituosas entre
indígenas e não indígenas no Brasil e quais as estratégias os jovens criaram para seguir
resistindo às diversas pressões, tanto externas, dos karaí2, não indígenas, quanto internas,
da família e da comunidade.
Na região dos municípios de Santa Helena, São Miguel do Iguaçu, Itaipulândia,
Diamante d’Oeste, Guaíra e Terra Roxa, pesquisamos diversas aldeias. Contudo,
apresentamos neste texto, tendo em vista que a pesquisa está em andamento, um recorte
do nosso universo de estudo, a partir dos dados obtidos nas aldeias de Jevy, em Guaíra, e
Araporã, em Santa Helena, ambas são áreas de retomada dos territórios tradicionais, em
disputa judicial.
Nessas aldeias, assim como em outras, que se encontram na mesma situação,
constatamos que os jovens Avá, embora vivam historicamente em uma região de conflito
com alguns dos poderes públicos municipais, latifundiários e com a Itaipu Binacional,
resistem e re-existem a partir da manutenção e da reapropriação dos costumes e da cultura
Avá, transmitidos pelos mais velhos “xamõi” e, também, pela educação escolar indígena e
universitária.
Para isso, nos valemos de alguns recursos da etnografia e da história oral, como:
idas a campo para coleta de dados, por meio de entrevistas estruturadas e semi-

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Karaí é designação utilizada, em especial, pelos Avá para se referir ao não indígena. O termo juruá
tem o mesmo significado, mas é comumente mais usado pelos guarani mbyá.

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estruturadas, realizadas com alguns xamõi (mais velhos, avôs), jovens e lideranças, a partir
do resgate e registro dessas narrativas; da observação participante e não participante e de
levantamentos bibliográficos.
Assim, estruturamos o texto em três partes: primeiro, apresentamos a metodologia
utilizada; sequencialmente, quem são os Guarani, onde vivem, especificamente, os Avá
Guarani, participantes da pesquisa, na mesma seção, resgatamos, brevemente, o histórico
de colonização no oeste do Paraná e, por fim, expomos algumas narrativas dos jovens
quanto às suas perspectivas futuras e as considerações finais.

METODOLOGIA

Delinear a metodologia a ser utilizada com populações indígenas requer, muitas


vezes, utilizar de alguns recursos da etnografia e da história oral. Para tanto, foi realizado
levantamento bibliográfico a respeito do povo Avá Guarani, do processo de colonização na
região Oeste do Paraná e Sul do Mato Grosso do Sul, coleta de dados primários e
secundários, realizadas tanto in loco quanto em bibliotecas físicas e virtuais e em sites de
pesquisa.
Foram realizadas, também, três idas a campo, em média com a permanência de
três dias em cada munícipio. No município de Santa Helena, foram visitadas duas aldeias:
Curva Guarani e Araporã. Em São Miguel do Iguaçu, na Terra Indígena Ocoy. Em Diamante
do Oeste, a Terra Indígena Añe Te Te. Na região de Guaíra, a aldeia Jevy e a Porã. Por fim,
em Terra Roxa Yvyra ty porã, o xamõi.
Esses recursos facilitam a mediação com os sujeitos sociais envolvidos na
pesquisa, além de possibilitar melhor compreensão dos desafios colocados às comunidades
e da realidade social na qual estão inseridos. Embora, não seja o propósito da história oral
solucionar problemas levantados durante as entrevistas, ela colabora no processo de
desvelamento do presente ao revisitar o passado.
A utilização de roteiros para a observação participante e para as entrevistas
direcionadas e, principalmente, das narrativas, permite, conforme Ichikawa e Santos (2006),
compreender que o passado narrado por atores, até então, sem vozes, continua no
presente. Proporcionam visualizar quais as estratégias de luta, resistência e sobrevivência
relatadas no decorrer das entrevistas. Também, intenciona a reflexão conjunta com os
jovens e com os xamõi, a respeito da história, do modo de ser e viver Avá Guarani e a
participação e o desenvolvimento conjunto do projeto com os envolvidos, ensejando seu
protagonismo e emancipação num processo de construção coletiva.

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1. OS AVÁ GUARANI D’OESTE DO PARANÁ

Para melhor compreender quem são, como vivem e onde estão os Guarani, é
necessário nos situarmos historicamente, até mesmo porque a história dos povos originários
é cotidianamente posta em dúvida por parte da sociedade não indígena. Assim, recorremos
a Bartolomeu Melià (1988), Egon Schaden (1986), Maria Inês Ladeira (2001), entre outros, a
fim de situarmos como se desenvolveu o processo de sobrevivência, resistência e re-
existência Guarani no Brasil.
Embora a presença dos Guarani em nosso continente seja imemorial, estima-se
que o habitem há pelo menos 2.000 anos. Primeiramente, vieram das bacias amazônicas
com as dispersões territoriais dos grupos Tupi e, em seguida, dos próprios Guarani;
intensificaram-se, provavelmente pressionados por um grande aumento demográfico e
também a partir de motivação de fundo religioso, na busca por uma terra sem males. Esses
grupos passaram a ocupar o interior e litoral dos estados do Paraná e São Paulo, Paraguai,
Uruguai e Argentina (LADEIRA, 2001; SCHADEN, 1986; MELIÀ, 1988).
O povo Guarani pertence ao tronco linguístico Tupi e à família linguística Tupi-
Guarani, sendo dividido em três subgrupos: Kaiova, Nhandéva (Xiripa, Chiripa, Avá) e Mbya.
Os primeiros subgrupos habitam principalmente os estados do Paraná e Mato Grosso do Sul
e o último subgrupo vive, em sua maioria, no interior e litoral dos estados do Sul e Sudeste,
desde os estados do Rio Grande do Sul até o Espírito Santo (LADEIRA, 2001; MELIÀ,
1988).
Os Guarani são nominados diferentemente de acordo com a região em que vivem,
no entanto, compartilham, de modo geral, de uma mesma cultura e língua que os une
enquanto povo, nação. São eles:

Mbyá (Argentina, Brasil y Paraguay); Avá-Guaraní (Paraguay), conocidos también


como Ñandeva, Guaraní o Chiripá (Brasil y Argentina); Paĩ-Tavyterã (Paraguay),
conocidos como Kaiowá (Brasil); Ava-Guaraní y Isoseño (Bolivia y Argentina),
conocidos como Guaraní Occidental (Partaguay), y también como Chiriguanos o
Chahuancos (Argentina); Gwarayú (Bolivia); Sirionó, Mbía o Yuki (Bolivia);
Guarasug’we (Bolivia), Tapieté o Guaraní-Ñandeva (Bolivia, Argentina y Paraguay);
Aché (Paraguay) (PEREIRA, 2016, p. 10).

Embora mantenham uma unidade linguística e cultural, há elementos que os


diferem:
“Em muitos aspectos as diferenças são notáveis. Ela vai se manifestar, na cestaria,
por exemplo, mas vai se manifestar sobretudo na língua - são verdadeiros dialetos -,
vai se manifestar nos rituais, vai se manifestar também nos instrumentos rituais
como a maraca, alguns comuns a todos, mas também com diferenças, enfim, no
modo de governo, etc” (LINI, 2016, p. 36).

No ato da chegada dos exploradores, o povo Guarani se autodenominava Avá


(homem). Estima-se que, nesse período, havia entre um a dois milhões de Guarani no

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continente. Após cinco séculos de contato, essa população foi reduzida drasticamente, mas
não foi extinta. (MELIÀ, 1988).
No período pré-colombiano, ocupavam praticamente todo o território continental;
hoje vivem na Bolívia, Paraguai, Argentina e Brasil. Os Guarani são um dos maiores povos
indígenas da América do Sul e do Brasil, estima-se “mais de 280.000 personas, unidas por
una lengua y una cultura en común, distribuidas en 1.416 comunidades, aldeas, barrios
urbanos o núcleos familiares, desde el litoral del Atlántico hasta al pie de la cordillera de los
Andes”. Estima-se que atualmente no Brasil sejam mais de 80.000 pessoas. (PEREIRA,
2016, p.6).
A invasão do território e o contato forçado com os Guarani são datados desde
1505. Contudo, até hoje se mantém a essência cultural, a língua, a cosmovisão, ainda que
para tal feito tenham se apropriado de elementos externos a sua cultura e os utilizados em
benefício da sobrevivência. A resistência secular Guarani ocorre, também, a partir do
estabelecimento no “tekoha”, lugar onde vivem, território, e desenvolvem o “nhadereko”, o
modo de ser Guarani: “El tekohá significa y produce al mismo tiempo relaciones
económicas, relaciones sociales y organización político-religiosa, que son esenciales para la
vida guaraní: sin tekohá no hay tekó, sin territorio no hay vida guaraní”. (PEREIRA, 2016,
p.12).
Reiteramos essa asserção durante a entrevista com o jovem e vice-cacique,
Miguel3, 26 anos de idade, da aldeia Araporã4, no município de Santa Helena “A terra
demarcada é importante para ter cultura, sem terra, sem local, não tem cultura, precisamos
ter dignidade. A família espera dignidade”.
Uma das características principais é a mobilidade, o trânsito entre aldeias, que faz
parte de uma estratégia de resistência, muitas vezes forçada sob as pressões externas,
noutras vezes por oferecer, também, e principalmente, momentos de intercâmbios de
sementes, mudas, de fortalecimento de alianças políticas e sociais, por exemplo, por meio
do casamento, de reflexão a respeito dos problemas enfrentados nas comunidades. Às
vezes, pelo aumento na taxa de natalidade e, até mesmo, por conta de conflitos internos,
optam por mudar de aldeia, do tekoha. Muitas vezes, pejorativamente, são vistos como
nômades, visão propagada com o intuito de desqualifica-los enquanto “donos originários”
dos territórios em disputa.
Os Guarani se movimentam em seu território tradicional, delimitado e, raramente,
abandonam por completo as suas antigas aldeias. Os dos principais motivos que levaram e

3
Entrevista concedida por Miguel Oliveira Werá. set. 2018. Entrevistadora: Cynthia Franceska
Cardoso. Santa Helena, 2018. 1 arquivo. mp3 (20 min.).
4
De acordo com Miguel, a área em que está foi retomada há um ano e cinco meses por quinze
famílias.

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levam centenas de Guarani a se deslocarem é a busca de uma terra “melhor” para morar,
com mais florestas, e o estabelecimento em locais mais isolados, que dificultem o acesso de
estranhos. Os Guarani vivem numa região ecologicamente circunscrita que abrange
territórios históricos e geograficamente definidos (LADEIRA, 2001).
A sobrevivência ocorreu a partir de estratégias de resistência que utilizam até hoje,
no embate, nas alianças ou nas dispersões para o interior e/ou lugares mais seguros.
Compondo o núcleo central dessa resistência está a transmissão e manutenção da língua e
da cultura Guarani e a cosmovisão que os mantêm unidos e resistentes.
A organização social, política, econômica e cultural dos Guarani se desenvolve no
tekoha, território, local onde o modo de ser Guarani pode ser vivenciado. Isso se dá a partir
do estabelecimento, no território, da família extensa, composta por avós, tios, sobrinhos,
cunhadas, cônjuges e filhos. O modo de produção é da reciprocidade, não se estruturam
coletivamente, por exemplo, cada roça pertence a um núcleo familiar, contudo para a
realização do roçado todos participam e a sua produção é consumida primeiramente pelo
núcleo familiar e o excedente compartilhado com os parentes. Essa solidariedade é
fundamental para o funcionamento da dinâmica social interna, pois as relações de poder
são, de certa forma, controladas por todos. “Es una economía solidaria que se basa en la
reciprocidad e intercambio de dones. No hay incentivo ni espacio para la acumulación y
limita las posibilidades de ejercer e imponer el poder de unos sobre los otros”. (PEREIRA,
2016, p.14).
Pensar a busca da “terra sem males”, na contemporaneidade, exige, de antemão,
refletir a respeito da realidade social em que estão e foram inseridos num momento em que
assassinatos de lideranças por disputas territoriais são cada dia mais frequentes, em que a
omissão e a conivência dos poderes públicos com a situação degradante e desumana que
enfrentam os povos indígenas no Brasil, especialmente, os Guarani, por ter sido seu
território tradicional objeto de esbulho do Estado brasileiro há décadas e de desde o fim dos
anos 1970, também, do agronegócio que, além de expulsá-los de seu território de origem,
transformou as florestas em campos de monocultivo de soja, milho e cana de açúcar.
O território tradicional dos Guarani no oeste do Paraná resiste permeado por
diversas transformações sociais, culturais, políticas e econômicas produzidas a partir do
contato forçado com a sociedade não indígena, que resulta em situações de opressão,
hostilização, ameaças à vida dos Guarani, por meio de organizações ligadas ao
agronegócio5; assassinato de lideranças; o não reconhecimento dos Guarani, enquanto

5
Em 2013, proprietários de terra na região de Guaíra e Terra Roxa fundaram a Ongdip (Organização
Nacional de garantia ao direito de propriedade) com o objetivo de resguardar “suas propriedades”
terminam por incitar o ódio aos povos indígenas da região e desqualificar o trabalho realizado pela
Funai.

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habitantes originários do território, por parte da população não indígena; o alcoolismo; a


fome pelo, fato dessa população estar em áreas diminutas e não reconhecidas pelo Estado,
que implica, também, na pouca variedade e quantidade do plantio para a subsistência;
desnutrição; a constante disputa territorial; a falta de perspectiva para o futuro dos jovens;
suicídio entre os jovens; violência interna e externa; a dependência financeira de programas
sociais, como os de transferência de renda, aposentadoria rural, auxílio maternidade e de
cestas básicas para a sobrevivência; a falta de saneamento básico, de saúde e de
assistência do órgao federal, Funai6, entre outros.
Quanto à escassez de alimentos, gerada pelo confinamento em pequenas reservas,
à beira de estradas, em áreas degradadas, e pela falta de apoio dos poderes públicos 7:

Porque não temos área para plantar porque estamos em área de conflito. Se a gente
for à prefeitura pedir ajuda, por exemplo, para gradear a terra, eles já falam: não
pode porque lá é um lugar dos outros vocês estão fazendo a retomada e nos não
podemos porque os outros vão entrar com processo contra a gente. Por isso que
falta alimento, porque se nós produzir, eu tenho certeza e você também, não vai
faltar alimento para gente. Porque um ajuda o outro, o que eu não tenho o outro tem;
se o meu não esta produzindo e o do outro tá ele me da um pouco; nos não temos
esse poder de ajudar muito um ao outro. E agora está gerando mais crianças
também e vai precisar de mais terra. Tem muitos que estão casados e nos vamos
precisar de mais terra. E por isso que falta também para gente.

A maior parte dos tekoha foi suprimida pela exploração e desapropriação indevida
tanto pelo Estado brasileiro quanto pelas empresas do agronegócio de soja, celulose, cana
de açúcar, mineradoras e empreendimentos turísticos. O esbulho territorial a que vêm sendo
expostos os levam a viver em condições subumanas à beira de rodovias, em territórios
diminutos e/ou em áreas que não há possibilidade de cultivo se quer dos alimentos
tradicionais, como milho, amendoim, batata, entre outros. (COMISSÃO GUARANI
YVYRUPA, 2017).
En el caso de los grandes conglomerados, el confinamiento en espacios exiguos,
además de dificultar las prácticas agrícolas, trajo el desafío de tener que adecuar la
organización social a esa nueva situación, marcada por la superpoblación,
superposición de espacios familiares y transformaciones en la organización eco-
nómica. Vivir en reservas limita drásticamente las posibilidades de reproducción del
sistema social guaraní – avá rekó –, y ejerce presiones de toda orden para que se
adopten los padrones de la cultura no indígena – karaí rekó o juruá rekó. Este
proceso está en la raíz de los principales problemas sociales y conflictos vividos por
los Guaraníes en el Brasil que representan el pueblo indígena más numeroso del
país. (PEREIRA, 2016, p. 32).

6
A coordenação técnica local, CTL, contava em novembro de 2018, com apenas dois funcionários, o
coordenador e uma técnica para prestar assistência aos municípios de Guaíra, Terra Roxa, Diamante
d’Oeste, Santa Helena, São Miguel do Iguaçu e Itaipulândia. O Censo de 2010 apontava,
aproximadamente, 2000 indígenas na região, atualmente estima-se 3.000 pessoas.
7
Entrevista concedida por Armindo Benites e Gabriel Verá. nov. 2018. Entrevistadora: Cynthia
Franceska Cardoso. Guaíra, 2018. 1 arquivo. mp3 (40 min.).

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Importa, também, relembrar a história de invasão de seus territórios tradicionais na


região do Mato Grosso do Sul e Oeste do Paraná, onde se concentra a maior parte da
população Guarani no Brasil.

1.1 A ocupação da região da Bacia do Prata

Sigamos, então, ao processo histórico de existência dos Avá Guarani na região da


Bacia do Prata, hidrograficamente formada pelas Bacias dos rios Paraguai, Uruguai e
Paraná e seus afluentes.
Após os primeiros séculos de contatos, datados desde 1505, ocorre a Guerra da
Tríplice Aliança (1864-1870), entre a Argentina, o Uruguai e o Brasil contra o Paraguai, a
qual deixou marcas na dinâmica social dos Guarani. Isso porque a Guerra do Paraguai deu
início a ocupação e colonização do interior do país, principalmente no território dos Guarani.
A marcha para o Oeste pretendia explorar o interior do país e logrou grande êxito para os
exploradores da erva-mate e da madeira, aos colonos e a projetos agropecuários, contudo
resultou na saída compulsória dos Avá Guarani que, neste período, assim como na década
de 1980, fugiram para outros locais, como Paraguai, Bolívia e Mato Grosso do Sul ou
trabalhar em regime quase escravo nas lavouras e no corte da madeira (CALEIRO, 2016).
Essas saídas forçadas dos seus territórios tradicionais estão presentes nos relatos
dos jovens8: “Meu avô saiu corrido daqui para o MS por causa dos brancos. Fugiram para o
Paraguai, Bolívia e Mato Grosso do Sul. Meus avós falavam sobre a volta a região, sobre a
retomada, pois a área em que estamos um antigo cemitério Avá”, falava o avô para o
Armindo.
Com o estabelecimento da Companhia Mate Laranjeira, em 1882, juntamente com
a exploração da madeira na região e, mais tarde, o estabelecimento da pecuária extensiva,
a população Guarani é reduzida drasticamente. Fato que vai se acirrar no século seguinte
com a criação da Colônia Agrícola de Dourados, em 1943, com a ida de militares e colonos.
O agravamento do genocídio consentido pelo Estado brasileiro ocorrerá com a construção
da Usina Hidrelétrica Binacional de Itaipu.
Nesse contexto, esse esbulho iniciado no século XIX é acentuado no século
seguinte. No início do século XX, em 1939, é criado o Parque Nacional do Iguaçu, o qual
não permitia a presença de humanos. Inicia-se mais uma ofensiva aos Guarani da região.
Após meados do século, sobretudo, a partir da década de 1970-80, com a mecanização da
agricultura e dos monocultivos de soja, milho e cana de açúcar, a situação dos Guarani foi
se agravando e ocorreram novas fugas para outras regiões. Ao mesmo tempo,

8
Entrevista concedida por Armindo Benites e Gabriel Verá. nov. 2018. Entrevistadora: Cynthia
Franceska Cardoso. Guaíra, 2018. 1 arquivo. mp3 (40 min.).

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principalmente nos municípios afetados pela construção da hidrelétrica Binacional de Itaipu,


deu-se a desapropriação de diversas aldeias e a submersão de parte da cultura material e
imaterial dos seus ancestrais, após a formação do lago de Itaipu. Nesse momento, diversas
famílias migram para o Paraguai, Mato Grosso do Sul, Bolívia e Argentina em busca de
sobrevivência, diante às ameaças de morte, assassinatos e retiradas forçadas de famílias
inteiras dos locais, objetos de disputas (COMISSÃO GUARANI YVYRUPA, 2017).
Os Censos de 1991, 2000, e 2010 apresentam o número de habitantes nessa
região, em alguns municípios chega a zerar, haja vista a dispersão a que foram forçados e,
também, a baixa estimativa proposital da população. Segundo Melià (LINI, 2016), o
crescimento repentino apresentado em alguns censos são também explicados pela pouca
importância atribuída a essas populações.

Tabela 1 – Estimativa da população indígena no oeste do Paraná


Área
Brasil Estado Pop Município 1991 2000 2010 TI Situação
(ha.)
Guaíra 11 263 456 Retomada

Terra Roxa 16 48 143 Retomada


1774,706
13 166 423 Tekoha Añetete RI
Diamante D'oeste 3
817963 Paraná 25915 0 0 0 Tekoha Itamarã RI 242
São Miguel do
213 491 646 Avá Guarani do Ocoy RI 231,887
Iguaçu
Santa Helena 0 14 110 Retomada

Itaipulândia 20 32 20 Retomada

Total 273 1014 1798


Fonte: Adaptação dos dados obtidos no Censo 2010. disponível em:
https://indigenas.ibge.gov.br/estudos-especiais-3/o-brasil-indigena/povos-etnias.html.

Com o fortalecimento e organização dos povos indígenas, iniciado na década de


1980, que foram expulsos de seus territórios ou que tiveram seus ancestrais mortos na
disputa territorial, apoiados por parte da sociedade civil organizada, os processos de
retomada dos territórios tradicionais, em diversas regiões do país, começam a se intensificar
a partir dos anos 2000.
É essa resistência, re-existência, que faz do povo Guarani a maior nação da
América do Sul. Nesse processo de luta, em que suas vidas são colocadas em risco
cotidianamente, o enfrentamento ao que é dado por uma política de Estado genocida não os
intimida, os fortalece.

1.2 Os jovens Avá Guarani

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Constatamos, nas histórias contadas pelos jovens, que os ritos de passagem, de


iniciação se modificaram com o passar dos tempos, assim como outros costumes.
Falar em jovem indígena, na atualidade, requer uma retomada na história desse
povo, a fim de refletirmos a respeito de quem era considerado “jovem” há tempos e quem é
o jovem indígena hoje? Se antes tínhamos rituais de iniciação que marcavam a transição da
infância para a juventude, hoje, diante das transformações sociais econômicas políticas
culturais, que, também, perpassam e afetam a dinâmica dos povos originários, como
podemos explicar essa nova categoria social, ainda incipiente tanto para a academia quanto
para os próprios indígenas que veem seus jovens e se veem com novos desafios até então
desconhecidos?
A categoria jovens indígenas está dentro de um quadro mais amplo de direitos
coletivos dos povos indígenas nas Américas como um todo, e na América Latina em
particular [...]. Pode ser considerada uma categoria em transição ou em construção,
na realidade brasileira atual. Se considerarmos o ponto de vista interno às
sociedades indígenas em cada ambiente social observa-se a construção de
categorias de idade que variam estrutural e culturalmente, apresentando-se uma
diversificação bastante relevante. Os estudos antropológicos e as etnologias
produzidas em campo não produziram um conhecimento específico sobre a
juventude porque esta não se revelou como categoria social específica. No entanto,
os estudos demonstram que as categorias de idade são afeitas ao status social que
os indivíduos adquirem ao longo da vida, chegando a seis ou sete categorias etárias
em muitas sociedades (RANGEL; VALE, 2008, p. 254-55).

O Estatuto da Juventude (BRASIL, 2013) preconiza que são jovens os que


possuem entre 15 a 29 anos de idade, com variações entre jovens adultos e jovens
adolescentes. Mas, e para o indígenas?
Para os indígenas, se tornava jovem a partir de rituais de iniciação, cada povo com
um ritual diferente para gêneros diferentes. Alguns povos ainda mantêm os ritos de
passagem, a partir dos quais os indígenas deixam de ser crianças e passam a ser
reconhecidos socialmente enquanto adultos, ou seja, adquirem responsabilidades até então
não assumidas. De modo geral, os meninos estão aptos a sustentar a família, responsáveis
por trazer alimentos à casa e as mulheres a cuidar dos filhos, da roça.
Todavia, com a transformação socioambiental, alguns povos já não possuem nem
mesmo terra para plantio ou fauna e flora para explorar. Somado a isso, a entrada de
políticas e programas sociais públicos, das políticas de assistência social, saúde e educação
trouxe aos povos originários renda e/ou salários nas aldeias, alterando a dinâmica cotidiana,
bem como hábitos alimentares e costumes.
Identificamos essas situações no relato de uma jovem e professora, Josiele 9, 20
anos de idade, da aldeia Jevy, em Guaíra, que nos contou como é ser jovem, mulher e
indígena:

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Entrevista concedida por Josiele Lopes. nov. 2018. Entrevistadora: Cynthia Franceska Cardoso.
Guaíra, 2018. 1 arquivo. mp3 (20 min.).

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É muito legal, mas a gente sofre muito preconceito, daí fica ansioso. Também,
porque não tem nem previsão de demarcação do território. Não tem nem escola na
aldeia depois da 5ª série. Para estudar só na cidade, mas tem muito preconceito. A
maioria dos alunos está desistindo da escola por causa do preconceito na cidade. É
importante o jovem estudar bastante para conseguir emprego, buscar conhecimento
fora, nas universidades para trazer para a comunidade. Mas, como enfrentamos
muito preconceito fora da aldeia, saímos pouco. Usamos a internet como ferramenta
tecnológica para nos comunicarmos com parentes de outras aldeias. Os jovens são
bem ativos nas redes sociais. Na minha casa tem acesso a internet pelo celular.
Também, nos reunimos com jovens de outras aldeias uma, duas vezes por mês. O
jovem costuma se divertir um pouco, sair. Aqui não tem muita coisa pra fazer, só
jogar bola e só isso. A gente vem na casa de reza uma vez por semana. Um dia
desses veio um grupo de outra aldeia jogar bola aqui.

O território passa a ser um local tedioso para os jovens que não tem outra diversão a
não ser jogos de futebol aos finais de semana, raras vezes alguma comemoração na aldeia.
Na cidade não são bem vindos aos espaços de lazer e tão pouco possuem recursos
financeiros para tal. A que tipo de entretenimento esses jovens tem acesso? A natureza, os
cantos, danças e rezas, a caça, a pesca, a feitura do artesanato próprios da tradição Ava
Guarani, ocuparia a maior do seu tempo se a cultura fosse algo imutável.
No entanto, os jovens indígenas, também, querem ter acesso a artigos eletrônicos, a
redes sociais, ao lazer, à educação, à saúde, a bens de consumo, como roupas, sapatos,
aparelhos eletrônicos, como qualquer outro jovem, à medida que a cultura se transforma
com as mudanças sociais, econômicas, políticas, ambientais e tecnológicas. O fato é que
não lhes são dadas condições para tal. O que comumente lhes é ofertado é a busca pela
manutenção da tradição, contudo, os jovens passam, também, a questionar: até que ponto a
manutenção da tradição lhes proporciona condições melhores de vida?
Contraditoriamente, em todas as narrativas dos jovens a respeito do papel dos mais
velhos na vida comunitária, mencionaram a importância dos ensinamentos dos mais velhos
que os fortalece para continuar na luta. Os jovens Avá Guarani mantêm viva em sua
memória as histórias transmitidas pelos xamõi, segundo eles, são elas que lhes contam
quem são, de onde vieram e qual seria seu propósito na vida:

Antigamente essa terra era nossa mesmo. Minha vó correu daqui e foi pro MS.
Antigamente era tudo moradia dos índios. Dai começou os brancos a chegar, a falar
que isso aqui é nosso e a comprar a terra. Daí vem outro fazendeiro e fala isso aqui
é nosso. Daí os antigos saíram correndo. Fazer o que? Daí passou o tempo e
voltamos a nossa terra de novo. Por isso muitos fazendeiros falam que a gente vem
do Paraguai, mas não é. Nós voltamos para nossa terra. Falam que a gente veio
atrás de cesta, de aposentadoria, mas não é isso, voltamos a nossa terra.
Está em estudo. Aqui para todo lado tem cemitério velho, de antigamente. Todo
nosso povo. Perto do rio tem cemitério. Na verdade da escolinha para baixo era tudo
cemitério. O outro fica lá na cidade real de Guaíra. Eles falavam antigamente, por
isso nós fizemos a retomada que é nossa. Como o meu bisavô falava pra gente e a
gente sentava e escutava que essa parte da região do Paraná, entre Guaíra, que a
beirada era tudo aldeia, ele falava chorando: que tinha uma guerra que vinha
exterminando todo mundo, nos ouvimos essa notícia e corremos. E acabou tendo
mesmo; matou quase todos. Um dia meu bisavô falava: um dia as nossas crianças
vão acordar e falava pra gente: vocês tem uma terra naquela região que é nossa,
também falou que os brancos.

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Londrina PR, de 02 a 05 de Julho de 2019.

Daqui da região correram para todo lado pro Paraguai, Mato Grosso do Sul, Bolívia,
correndo das guerras. Daí nós viemos para cá e vimos que era verdade mesmo o
que falava nossos bisavôs: vão que é verdade, vocês vão ver o lugar onde foi
executado, onde tinha uma guerra, onde tem a tábua que foi enterrada e que tinha
um cemitério e vocês vão sentir na pele e no coração o que fizeram com a gente, os
brancos, os portugueses.
Daí desde então os Guarani se reuniram e ficaram aqui na região e em Terra Roxa.
Nós retomamos a região que era usada pelos antigos.

A maioria dos entrevistados relatou almejar sair da aldeia em busca de recursos


materiais e financeiros para realizar melhorias na própria comunidade.
Em várias entrevistas tanto com os jovens quanto com os mais velhos, a
importância dada à cosmovisão Guarani transmitida, principalmente, pelos xamõi, é decisiva
no fortalecimento das gerações mais novas para a continuidade da luta dos seus ancestrais.
Não lhes resta senão crer, valorizar e reapropriar do que lhes fora transmitido ao longo dos
anos.
Parte dessa visão é transmitida pelos xamõi aos jovens, ao dizer que os jovens têm
que ser e estar preparados para luta, assim como os seus ancestrais, que não podem deixar
a morte dos mais velhos ter sido em vão. Os jovens, quando questionados sobre o seu
papel na comunidade e a perspectiva para o futuro, embora encontrem contradições e
inquietações no caminho, como: a ausência de perspectivas futuras, os poucos
investimentos na educação e na saúde indígena, os altos índices de suicídio, o uso abusivo
de drogas e álcool, são uníssonos em reiterar que a sua participação nas reuniões
comunitárias, onde os moradores compartem das dificuldades e dos eventos cotidianos, e
ainda, em encontros regionais, nacionais e transnacionais nas chamadas aty10, no
movimento indígena, principalmente, nos rituais na opy e a articulação por meio das redes
sociais, o ingresso nas universidades são estratégias de resistência e fortalecimento da luta
do seu povo.
Em uma das entrevistas realizadas com dois jovens11, Gabriel, 25 anos de idade, e
Armindo, 23 anos, na aldeia Jevy, em Guaíra, quando perguntamos a respeito do papel do
jovem e quando o Avá era considerado jovem, responderam:

Importante para o jovem participar da retomada porque aí eles têm a noção do que
vem pela frente, porque os mais velhos já estão cansados de viver nessa situação,
os que são mais novos têm mais folego de lutar nessas áreas de conflito para poder
avançar em cima, para poder aprender como estão trabalhando as lideranças, os
que são mais velhos, para ouvir e aprender, para poder ser um líder, para poder
lutar a favor da família porque ele vai ser adulto vai ter criança. Os mais velhos falam
que já estão cansados, vocês devem ouvir, participar para que um dia se um
cacique falecer e se ninguém tem esse entendimento, a sabedoria de como ele

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Termo em Guarani faz referência a grande reunião, encontro. Na década de 1980 os Guarani
passaram a se organizar, assim como indígenas em outras regiões do país, e deram início a Aty
Guassu, grande assembleia Guarani. Nos anos 2000, foi criada a Comissão Guarani Yvyrupa reúne
lideranças Guarani de todo o Brasil para discutir sobre políticas públicas.
11
Entrevista concedida por Armindo Benites e Gabriel Verá. nov. 2018. Entrevistadora: Cynthia
Franceska Cardoso. Guaíra, 2018. 1 arquivo. mp3 (40 min.).

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lutava, o jovem não vai ter cabeça, não vai saber como agir, como lutar, por isso é
importante que todos os jovens e crianças participem da reunião, de encontros.
A comunidade reconhece a gente, o jovem, pela cultura, porque temos uma cultura.
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Quando começa a fazer o jeroky , a ajudar o xamõi, eles começam a dar ideias
para nós, como temos que fazer na nossa aldeia, como temos que agir, quando a
gente, por exemplo, estamos sofrendo, em área de conflito. Não temos a
possibilidade de ir para a cidade fazer faculdade, embora hoje em dia já tenha um
recursinho para o indígena. Então, na aldeia os mais velhos nos reconhecem como
alguém que tem que estar na aldeia ajudando. Começamos a falar com os mais
velhos que nos orientam como levar a vida e estudar. Hoje em dia já tem uma boa
escolinha provisória nas aldeias. Lutamos fazendo a vida, plantando, ajudando um
ao outro, aprendendo a dar respeito pros mais velhos e pros mais novos. Isso
começa desde pequeno, os mais velhos ensinam desde pequenos, lá pelos três
anos. Aprende no dia a dia, na verdade não tem um dia para aprender, nós
ensinamos no cotidiano. Essa minha filha (estava no local a bebê de um dos
entrevistados), a primeira coisa que ensinamos é a respeitar as pessoas, depois a
cozinhar, a cuidar da casa. O menino, também, ensinamos, mas lá pelos oito anos,
vai aprender a reza, cultura, saber dançar, fazer pintura na cara, cantar, plantar
batata e amendoim.

A transmissão da cosmovisão Guarani termina por fortalecer e compor as


estratégias de resistência desse povo. Nesse sentido, a participação e iniciação dos jovens
em rituais é um dos momentos em que a dança e o cantos na língua transmitem os
ensinamentos dos mais velhos e reafirma a cultura para os mais jovens. Nesse momento, os
ñanderu, pajés, se reúnem na casa de reza, opy, para entrar em contato com as divindades
e dar sentido a existência e resistência do povo. Embora a transmissão do ñandereko não
seja transmitida exclusivamente na opy, haja vista que no cotidiano Guarani, a sua visão de
mundo, o modo de se relacionar entre si e com os não indígenas, com a natureza são
fortalecidos sistematicamente. “No es sólo religión, sino filosofía, poesía, teología y
fundamento de su identidad. Los rituales guaraníes constan generalmente de canto y danza;
son oración danzada, danza que es oración” (PEREIRA, 2016, p. 17).
As realidades sociais são diferentes nas aldeias e terras indígenas visitadas
durante a pesquisa de campo, haja vista que as primeiras estão em processo de retomada,
em constante tensão com o poder público, a Itaipu Binacional e fazendeiros locais, por
serem reocupações recentes dos seus territórios e alvos de esbulho por parte do Estado
brasileiro desde o século passado. Nas terras indígenas, ou seja, em territórios
reconhecidos e legitimados pelo Estado nacional, as tensões advindas da disputa pela terra
não existe, embora existam outras dificuldades, como a falta de investimentos dos poderes
públicos, assim como a ausência de perspectiva futura para os jovens, que enfrentam
problemas semelhantes aos que estão em aldeias de retomadas.

CONSIDERAÇÕES

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Ritual religioso realizado na opy, através do canto e da dança.

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Ao abordarmos a presença Guarani no território nacional, a sua maneira de se


relacionar com o mundo e entre si, o processo de ocupação da região Oeste do Paraná, o
papel social dos jovens na sociedade Avá Guarani, suas expectativas e seus desafios,
consideramos estar intrinsecamente relacionados aos aspectos históricos, políticos,
econômicos, sociais e culturais, desde a história da colonização do Brasil até a atualidade, o
que nos propicia compreender melhor a realidade social dos povos indígenas.
A recapitulação de alguns desses aspectos aliada ao resgate da história oral
transmitida pelos xamõi aos jovens Guarani expõe quão cruel e dramática foi e continua
sendo a subjugação secular a que são expostos. Esse assujeitamento desvela os interesses
econômicos e políticos escusos do agronegócio e do Estado brasileiro que
desafortunadamente acompanha os Avá Guarani há mais de cinco séculos.
Ser jovem num país em que a juventude recebe um olhar mais atento apenas a
partir de 2013, com o Estatuto da Juventude, é, sobretudo, superar desafios cotidianos
propagados desde o uso abusivo do álcool e das drogas, da falta de perspectiva futura, de
oportunidades de trabalho digno, de ter alternativas para o lazer, de acessar educação e
saúde de qualidade, de se compreender enquanto parte de um meio ambiente em constante
degradação, de não ter acesso a tecnologias da informação e a bens de consumo.
Somam-se a esses desafios mais de 500 anos de reiterados processos de luta em
prol da sobrevivência, da liberdade, do respeito e da dignidade, que marcaram a sua
existência enquanto ser humano e os forçaram a repensar novas formas de re-existir no
território. Então, podemos nos aproximar de que, em seus relatos, a resistência, fortemente
amparada pela transmissão da cosmovisão, dos costumes dos xamõi aos jovens, se dá no
ato de existir, de sobreviver todos os dias, ainda que no limite da humanidade, em situações
degradantes e, por vezes, humilhantes. Contudo, conscientes de sua própria história, do
respeito à luta dos seus ancestrais, transformam desafios em superação. A falta de
educação e saúde adequadas os impulsiona a buscar o conhecimento nas universidades
para melhorar as suas condições e da comunidade e conhecer mais os seus direitos; o
pouco acesso que têm a tecnologias da informação usam para se articular com jovens de
outros povos e regiões e fortalecer cada vez mais o movimento indígena; a degradação
ambiental que veem e sentem cotidianamente agravada pelo agronegócio passa pela
tentativa de recuperação em áreas diminutas, por meio de pequenos e limitados plantios,
que não os deixa sucumbir à fome; o uso abusivo de drogas e álcool, muitas vezes, os leva
a refletir sobre como se fortalecer enquanto grupo.
Todos os sortilégios a que são expostos o povo e, por conseguinte, os jovens Avá
Guarani, os incumbe a repensar diferentes estratégias para re-existir e resistir por séculos

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em seus territórios tradicionais, palco do etnocídio dos seus ancestrais, todavia não foi, e
não é, em vão. “Nós estamos re-voltando a um território que é nosso”, declara Miguel Werá.

REFERÊNCIAS

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SCHADEN, Egon. Aspectos Fundamentais da cultura Guarani. 3.ed. São Paulo: EDUSP,
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