21. Contos autor Eça de Queirós
21. Contos autor Eça de Queirós
21. Contos autor Eça de Queirós
Fonte:
QUEIRÓS, Eça de. Contos. Porto : Lello & Irmão, [19-?].
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CONTOS
Eça de Queirós
COMEÇOU por me dizer que o seu caso era simples - e que se chamava Macário...
Devo contar que conheci este homem numa estalagem do Minho. Era alto e grosso: tinha uma calva
larga, luzidia e lisa, com repas brancas que se lhe eriçavam em redor: e os seus olhos pretos, com a pele em
roda engelhada e amarelada, e olheiras papudas, tinham uma singular clareza e retidão - por trás dos seus
óculos redondos com ares de tartaruga. Tinha a barba rapada, o queixo saliente e resoluto. Trazia uma gravata
de cetim negro apertada por trás com uma fivela; um casaco comprido cor de pinhão, com as mangas estreitas
e justas e canhões de veludilho. E pela longa abertura do seu colete de seda, onde reluzia um grilhão antigo,
saíam as pregas moles duma camisa bordada.
Era isto em setembro: já as noites vinham mais cedo, com uma friagem fina e seca e uma escuridão
aparatosa. Eu tinha descido da diligência, fatigado, esfomeado, tiritando num cobrejão de listas escarlates.
Vinha de atravessar a serra e os seus aspectos pardos e desertos. Eram oito horas da noite. Os céus
estavam pesados e sujos. E, ou fosse um certo adormecimento cerebral produzido pelo rolar monótono da
diligência, ou fosse a debilidade nervosa da fadiga, ou a influência da paisagem escarpada e árida, sobre o
côncavo silêncio noturno, ou a opressão da eletricidade, que enchia as alturas - o fato é que eu - que sou
naturalmente positivo e realista - tinha vindo tiranizado pela imaginação e pelas quimeras. Existe, no fundo de
cada um de nós, é certo - tão friamente educados que sejamos - um resto de misticismo; e basta às vezes uma
paisagem soturna, o velho muro dum cemitério, um ermo ascético, as emolientes brancuras dum luar, para
que esse fundo místico suba, se alargue como um nevoeiro, encha a alma, a sensação e a idéia, e fique assim o
mais matemático ou o mais crítico - tão triste, tão visionário, tão idealista - como um velho monge poeta. A
mim, o que me lançara na quimera e no sonho fora o aspecto do mosteiro de Rastelo, que eu tinha visto, à
claridade suave e outonal da tarde, na sua doce colina. Então, enquanto anoitecia, a diligência rolava
continuamente ao trote esgalgado dos seus magros cavalos brancos, e o cocheiro, com o capuz do gabão
enterrado na cabeça, ruminava o seu cachimbo - eu pus-me elegìacamente, ridìculamente, a considerar a
esterilidade da vida: e desejava ser um monge, estar num convento, tranqüilo, entre arvoredos ou na
murmurosa concavidade dum vale, e enquanto a água da cerca canta sonoramente nas bacias de pedra, ler a
Imitação, e ouvindo os rouxinóis nos loureirais, ter saudades do céu. - Não se pode ser mais estúpido. Mas eu
estava assim, e atribuo a esta disposição visionária a falta de espírito - e a sensação - que me fez a história
daquele homem dos canhões de veludilho.
A minha curiosidade começou à ceia, quando eu desfazia o peito duma galinha afogada em arroz
branco, com fatias escarlates de paio - e a criada, uma gorda e cheia de sardas, fazia espumar o vinho verde no
copo, fazendo-o cair de alto de uma caneca vidrada. O homem estava defronte de mim, comendo
tranquilamente a sua geléia: perguntei-lhe, com a boca cheia, o meu guardanapo de linho de Guimarães
suspenso nos dedos - se ele era de Vila Real.
− Vivo lá. Há muitos anos - disse-me ele.
− Terra de mulheres bonitas, segundo me consta - disse eu.
O homem calou-se.
− Hem? - tornei.
O homem contraiu-se num silêncio saliente. Até aí estivera alegre, rindo dilatadamente; loquaz e cheio
de bonomia. Mas então imobilizou o seu sorriso fino.
Compreendi que tinha tocado a carne viva de uma lembrança. Havia decerto no destino daquele velho
uma mulher. Aí estava o seu melodrama ou a sua farsa, porque inconscientemente estabeleci-me na idéia de
que o fato, o caso daquele homem, devia ser grotesco e exalar escárnio.
De sorte que lhe disse:
− A mim têm-me afirmado que as mulheres de Vila Real são as mais bonitas do Norte. Para olhos
pretos Guimarães, para corpos Santo Aleixo, para tranças os Arcos: é lá que se vêem os cabelos claros, cor de
trigo.
O homem estava calado, comendo, com os olhos baixos:
− Para cinturas finas Viana, para boas peles Amarante - e para isto tudo Vila Real. Eu tenho um amigo
que veio casar a Vila. Talvez conheça. O Peixoto, um alto, de barba loura, bacharel.
− O Peixoto, sim - disse-me ele, olhando gravemente para mim.
− Veio casar a Vila Real como antigamente se ia casar à Andaluzia - questão de arranjar a fina flor da
perfeição. - À sua saúde.
Eu evidentemente constrangia-o, porque se ergueu, foi à janela com um passo pesado, e reparei então
nos seus grossos sapatos de casimira, com sola forte e atilhos de couro. E saiu.
Quando pedi o meu castiçal, a criada trouxe-me um candeeiro de latão lustroso e antigo e disse:
− O senhor está com outro. É no n.º 3.
Nas estalagens do Minho, às vezes, cada quarto é um dormitório impertinente.
− Vá - disse eu.
O n.º 3 era no fundo do corredor. Às portas dos lados os hóspedes tinham posto o seu calçado para
engraxar: estavam umas grossas botas de montar, enlameadas, com esporas de correia; os sapatos brancos
dum caçador; botas de proprietário, de altos canos vermelhos; as botas dum padre, altas, com a sua borla de
retrós; os botins cambados, de bezerro, de um estudante, e a uma das portas, o n.º 15, havia umas botinas de
mulher, de duraque, pequeninas e finas, e ao lado as pequeninas botas duma criança, todas coçadas e batidas,
e os seus canos de pelica-mor caíam-lhe para os lados com os atacadores desatados. Todos dormiam. Defronte
do n.º 3 estavam os sapatos de casimira com atilhos: e quanto abri a porta vi o homem dos canhões de
veludilho, que amarrava na cabeça um lenço de seda: estava com uma jaqueta curta de ramagens, uma meia
de lã, grossa e alta, e os pés metidos nuns chinelos de ourelo.
− O senhor não repare - disse ele.
− À vontade - e para estabelecer intimidade tirei o casaco.
Não direi os motivos por que ele daí a pouco, já deitado, me disse a sua história. Há um provérbio
eslavo da Galícia que diz: “O que não contas à tua mulher, conta-lo a um estranho, na estalagem”. Mas ele
teve raivas inesperadas e dominantes para a sua larga e sentida confidência. Foi a respeito do meu amigo, do
Peixoto, que fora casar a Vila Real. Vi-o chorar, àquele velho de quase sessenta anos. Talvez a história seja
julgada trivial: a mim, que nessa noite estava nervoso e sensível, pareceu-me terrível - mas conto-a apenas
como um acidente singular da vida amorosa...
Começou pois por me dizer que o seu caso era simples - e que se chamava Macário.
Perguntei-lhe então se era duma família que eu conhecera, que tinha o apelido de Macário. E como ele
me respondeu que era primo desses, eu tive logo do seu caráter uma idéia simpática, porque os Macários eram
uma antiga família, quase uma dinastia de comerciantes, que mantinham com uma severidade religiosa a sua
velha tradição de honra e de escrúpulo. Macário disse-me que nesse tempo, em 1823 ou 33, na sua mocidade,
seu tio Francisco tinha, em Lisboa, um armazém de panos, e ele era um dos caixeiros. Depois o tio
compenetrara-se de certos instintos inteligentes e do talento prático e aritmético de Macário, e deu-lhe a
escrituração. Macário tornou-se o seu guarda-livros.
Disse-me ele que sendo naturalmente linfático e mesmo tímido, a sua vida tinha nesse tempo uma
grande concentração. Um trabalho escrupuloso e fiel, algumas raras merendas no campo, um apuro saliente de
fato e de roupas brancas, era todo o interesse da sua vida. A existência, nesse tempo, era caseira e apertada.
Uma grande simplicidade social aclarava os costumes: os espíritos eram mais ingênuos, os sentimentos menos
complicados.
Jantar alegremente numa horta, debaixo das parreiras, vendo correr a água das regas - chorar com os
melodramas que rugiam entre os bastidores do Salitre, alumiados a cera, eram contentamentos que bastavam à
burguesia cautelosa. Além disso, os tempos eram confusos e revolucionários: e nada torna o homem
recolhido, conchegado à lareira, simples e facilmente feliz - como a guerra. É a paz que, dando os vagares da
imaginação - causa as impaciências do desejo.
Macário, aos vinte e dois anos, ainda não tinha - como dizia uma velha tia, que fora querida do
desembargador Curvo Semedo, da Arcádia - sentido Vénus.
Mas por esse tempo veio morar para defronte do armazém dos Macários, para um terceiro andar, uma
mulher de quarenta anos, vestida de luto, uma pele branca e baça, o busto bem feito e redondo e um aspecto
desejável. Macário tinha a sua carteira no primeiro andar, por cima do armazém, ao pé duma varanda, e dali
viu uma manhã aquela mulher com o cabelo preto solto e anelado, um chambre branco e braços nus, chegar-
se a uma pequena janela de peitoril, a sacudir um vestido. Macário afirmou-se e sem mais intenção dizia
mentalmente que aquela mulher, aos vinte anos, devia ter sido uma pessoa cativante e cheia de domínio:
porque os seus cabelos violentos e ásperos, o sobrolho espesso, o lábio forte, o perfil aquilino e firme
revelavam um temperamento ativo e imaginações apaixonadas. No entanto, continuou serenamente alinhando
as suas cifras. Mas à noite estava sentado fumando à janela do seu quarto, que abria sobre o pátio: era em
Julho e a atmosfera estava eléctrica e amorosa: a rabeca dum vizinho gemia uma xácara mourisca, que então
sensibilizava, e era dum melodrama: o quarto estava numa penumbra doce e cheia de mistério - e Macário,
que estava em chinelas, começou a lembrar-se daqueles cabelos negros e fortes e daqueles braços que tinham
a cor dos mármores pálidos: espreguiçou-se, rolou mòrbidamente a cabeça pelas costas da cadeira de vime,
como os gatos sensíveis que se esfregam, e decidiu bocejando que a sua vida era monótona. E ao outro dia,
ainda impressionado, sentou-se à sua carteira com a janela toda aberta, e olhando o prédio fronteiro, onde
viviam aqueles cabelos grandes - começou a aparar vagarosamente a sua pena de rama. Mas ninguém se
chegou à janela de peitoril, com caixilhos verdes. Macário estava enfastiado, pesado - e o trabalho foi lento.
Pareceu-lhe que havia na rua um sol alegre, e que nos campos as sombras deviam ser mimosas e que se estaria
bem vendo o palpitar das borboletas brancas nas madressilva! E, quando fechou a carteira, sentiu defronte
correr-se a vidraça; eram decerto os cabelos pretos. Mas apareceram uns cabelos louros. Oh! E Macário veio
logo salientemente para a varanda aparar um lápis. Era uma rapariga de vinte anos, talvez - fina, fresca, loura
como uma vinheta inglesa: a brancura da pele tinha alguma coisa da transparência das velhas porcelanas, e
havia no seu perfil uma linha pura, como de uma medalha antiga, e os velhos poetas pitorescos ter-lhe-iam
chamado - pomba, arminho, neve e ouro.
Macário disse consigo:
− É filha.
A outra vestia de luto, mas esta, a loura, tinha um vestido de cassa com pintas azuis, um lenço de
cambraia traspassado sobre o peito, as mangas perdidas com rendas, e tudo aquilo era asseado, moço, fresco,
flexível e tenro.
Macário, nesse tempo, era louro com a barba curta. O cabelo era anelado e a sua figura devia ter aquele
ar seco e nervoso que depois do século XVIII e da revolução - foi tão vulgar nas raças plebéias.
A rapariga loura reparou naturalmente em Macário, e naturalmente desceu a vidraça, correndo por trás
uma cortina de cassa bordada. Estas pequenas cortinas datam de Goethe e têm na vida amorosa um
interessante destino: revelam. Levantar-lhe uma ponta e espreitar, franzi-la suavemente, revela um fim; corrê-
la, pregar nela uma flor, agitá-la, fazendo sentir que por trás um rosto atento se move e espera - são velhas
maneiras com que, na realidade e na arte, começa o romance. A cortina ergueu-se devagarinho e o rosto loiro
espreitou.
Macário não me contou por pulsações - a história minuciosa do seu coração. Disse singelamente que
daí a cinco dias - estava doido por ela. O seu trabalho tornou-se logo vagaroso e infiel e o seu belo cursivo
inglês, firme e largo, ganhou curvas, ganchos, rabiscos, onde estava todo o romance impaciente dos seus
nervos. Não a podia ver pela manhã: o sol mordente de julho batia e escaldava a pequena janela de peitoril. Só
pela tarde a cortina se franzia, se corria a vidraça, e ela, estendendo uma almofadinha no rebordo do peitoril,
vinha encostar-se mimosa e fresca com o seu leque. Leque que preocupou Macário: era uma ventarola
chinesa, redonda, de seda branca, com dragões escarlates bordados à pena, uma cercadura de plumagem azul,
fina e trêmula como uma penugem e o seu cabo de marfim, de onde pendiam duas borlas de fio de ouro, tinha
incrustações de nácar à linda maneira persa.
Era um leque magnífico e naquele tempo inesperado nas mãos plebéias duma rapariga vestida de
cassa. Mas como ela era loura e a mãe tão meridional, Macário, com esta intuição interpretativa dos
namorados, disse à sua curiosidade: será a filha dum inglês. O inglês vai à China, à Pérsia, a Ormuz, à
Austrália e vem cheio daquelas jóias dos luxos exóticos, e nem Macário sabia porque é que aquela ventarola
de mandarina o preocupava assim: mas segundo ele me disse - aquilo deu-lhe no goto.
Tinha-se passado uma semana, quando um dia Macário viu, da sua carteira, que ela, a loura, saía com a
mãe, porque se acostumara a considerar mãe dela aquela magnífica pessoa, magnificamente pálida e vestida
de luto.
Macário veio à janela e viu-as atravessar a rua e entrarem no armazém. No seu armazém! Desceu logo
trêmulo, sôfrego, apaixonado e com palpitações. Estavam elas já encostadas ao balcão e um caixeiro
desdobrava-lhes defronte casimiras pretas. Isto comoveu Macário. Ele mesmo mo disse.
− Porque enfim, meu caro, não era natural que elas viessem comprar, para si, casimiras pretas.
E não: elas não usavam amazonas, não quereriam decerto estofar cadeiras com casimira preta, não
havia homens em casa delas; portanto aquela vinda ao armazém era um meio delicado de o ver de perto, de
lhe falar, e tinha o encanto penetrante duma mentira sentimental. Eu disse a Macário que, sendo assim, ele
devia estranhar aquele movimento amoroso, porque denotava na mãe uma cumplicidade equívoca. Ele
confessou-me que nem pensava em tal. O que fez foi chegar ao balcão e dizer estupidamente:
− Sim senhor, vão bem servidas, estas casimiras não encolhem.
E a loura ergueu para ele o seu olhar azul, e foi como se Macário se sentisse envolvido na doçura dum
céu.
Mas quando ele ia dizer-lhe uma palavra reveladora e veemente, apareceu ao fundo do armazém o tio
Francisco, com o seu comprido casaco cor de pinhão, de botões amarelos. Como era singular e desusado
achar-se o sr. guarda-livros vendendo ao balcão e o tio Francisco, com a sua crítica estreita e celibatária, podia
escandalizar-se, Macário começou a subir vagarosamente a escada em caracol que levava ao escritório, e
ainda ouviu a voz delicada da loura dizer brandamente:
− Agora queria ver lenços da Índia.
E o caixeiro foi buscar um pequenino pacote daqueles lenços, acamados e apertados numa tira de papel
dourado.
Macário, que tinha visto naquela visita uma revelação de amor, quase uma declaração, esteve todo o
dia entregue às impaciências amargas da paixão. Andava distraído, abstrato, pueril, não deu atenção à
escrituração, jantou calado, sem escutar o tio Francisco que exaltava as almôndegas, mal reparou no seu
ordenado que lhe foi pago em pintos às três horas, e não entendeu bem as recomendações do tio e a
preocupação dos caixeiros sobre o desaparecimento dum pacote de lenços da Índia.
− É o costume de deixar entrar pobres no armazém - tinha dito no seu laconismo majestoso o tio
Francisco. - São 12$000 réis de lenços. Lance à minha conta.
Macário, no entanto, ruminava secretamente uma carta, mas sucedeu que ao outro dia, estando ele à
varanda, a mãe, a de cabelos pretos, veio encostar-se ao peitoril da janela, e neste momento passava na rua um
rapaz amigo de Macário, que, vendo aquela senhora, afirmou-se e tirou-lhe, com uma cortesia toda risonha, o
seu chapéu de palha. Macário ficou radioso: logo nessa noite procurou o seu amigo, e abruptamente, sem
meia-tinta:
− Quem é aquela mulher que tu hoje cumprimentaste defronte do armazém?
− É a Vilaça. Bela mulher.
− E a filha?
− A filha?
− Sim, uma loura, clara, com um leque chinês.
− Ah! Sim. É filha.
− É o que eu dizia...
− Sim, e então?
− É bonita.
− É bonita.
− É gente de bem, hem?
− Sim, gente de bem.
− Está bom. Tu conhece-las muito?
− Conheço-as. Muito não. Encontrava-as dantes em casa de D. Cláudia.
− Bem, ouve lá.
E Macário, contando a história do seu coração acordado e exigente e falando do amor com as
exaltações de então, pediu-lhe, como a glória da sua vida, que achasse um meio de o encaixar lá. Não era
difícil. As Vilaças costumavam ir aos sábados à casa de um tabelião muito rico na rua dos Calafates: eram
assembléias simples e pacatas, onde se cantavam motetes ao cravo, se glosavam motes e havia jogos de
prendas do tempo da senhora D. Maria I, e às 9 horas a criada servia a orchata. Bem. Logo no primeiro
sábado, Macário, de casaca azul, calças de ganga com presilhas de trama de metal, gravata de cetim roxo,
curvava-se diante da esposa do tabelião, a sr.ª D. Maria da Graça, pessoa seca e aguçada, com um vestido
bordado, um nariz adunco, uma enorme luneta de tartaruga, a pluma de marabout nos seus cabelos grisalhos.
A um canto da sala já lá estava, entre um frufru de vestidos enormes, a menina Vilaça, a loura, vestida de
branco, simples, fresca, com o seu ar de gravura colorida. A mãe Vilaça, a soberba mulher pálida, cochichava
com um desembargador de figura apopléctica. O tabelião era um homem letrado, latinista e amigo das musas;
escrevia num jornal de então, a Alcofa das Damas: porque era sobretudo galante, e ele mesmo se intitulava,
numa ode pitoresca, moço escudeiro de Vênus. Assim, as suas reuniões eram ocupadas pelas belas-artes - e
nessa noite, um poeta do tempo devia vir ler um poemeto intitulado Elmira ou a vingança do veneziano!...
Começavam então a aparecer as primeiras audácias românticas. As revoluções da Grécia principiavam a atrair
os espíritos romanescos e saídos da mitologia para os países maravilhosos do Oriente. Por toda a parte se
falava no paxá de Janina. E a poesia apossava-se vorazmente deste mundo novo e virginal de minaretes,
serralhos, sultanas cor de âmbar, piratas do Arquipélago, e salas rendilhadas, cheias de perfume do aloés onde
paxás decrépitos acariciam leões. - De sorte que a curiosidade era grande - e, quando o poeta apareceu com os
cabelos compridos, o nariz adunco e fatal, o pescoço entalado na alta gola do seu fraque à Restauração e um
canudo de lata na mão - o sr. Macário é que não experimentou sensação alguma, porque lá estava todo
absorvido, falando com a menina Vilaça. E dizia-lhe meigamente:
− Então, noutro dia, gostou das casimiras?
− Muito - disse ela baixo.
E, desde esse momento, envolveu-os um destino nupcial.
No entanto, na larga sala a noite passava-se espiritualmente. Macário não pôde dar todos os
pormenores históricos e característicos daquela assembléia. Lembrava-se apenas que um corregedor de Leiria
recitava o Madrigal a Lídia: lia-o de pé, com uma luneta redonda aplicada sobre o papel, a perna direita
lançada para diante, a mão na abertura do colete branco de gola alta. E em redor, formando círculo, as damas,
com vestidos de ramagens, cobertas de plumas, as mangas estreitas terminadas num fofo de rendas, mitenes
de retrós preto cheias da cintilação dos anéis, tinham sorrisos ternos, cochichos, doces murmurações, risinhos,
e um brando palpitar de leques recamados de lantejoulas. - Muito bonito, diziam, muito bonito! E o
corregedor, desviando a luneta, cumprimentava sorrindo - e via-se-lhe um dente podre.
Depois, a preciosa D. Jerónima da Piedade e Sande, sentando-se com maneiras comovidas ao cravo,
cantou com a sua voz roufenha a antiga ária de Sully:
Oh Ricardo, oh meu rei,
O mundo te abandona.
O que obrigou o terrível Gaudêncio, democrata de 20 e admirador de Robespierre, a rosnar rancorosamente
junto de Macário:
− Reis!... víboras!
Depois, o cônego Saavedra cantou uma modinha de Pernambuco muito usada no tempo do senhor D.
João VI: lindas moças, lindas moças. E a noite ia assim correndo literária, pachorrenta, erudita, requintada e
toda cheia de musas.
Oito dias depois, Macário era recebido em casa da Vilaça, num domingo. A mãe convidara-o, dizendo-
lhe:
− Espero que o vizinho honre aquela choupana.
E até o desembargador apopléctico, que estava ao lado, exclamou:
− Choupana?! Diga alcáçar, formosa dama!
Estavam, nesta noite, o amigo do chapéu de palha, um velho cavaleiro de Malta, trôpego, estúpido e
surdo, um beneficiado da Sé, ilustre pela sua voz de tiple, e as manas Hilárias, a mais velha das quais tendo
assistido, como aia de uma senhora da casa da Mina, à tourada de Salvaterra, em que morreu o conde dos
Arcos, nunca deixava de narrar os episódios pitorescos daquela tarde: a figura do conde dos Arcos de cara
rapada e uma fita de cetim escarlate no rabicho; o soneto que um magro poeta, parasita da casa de Vimioso,
recitou quando o conde entrou, fazendo ladear o seu cavalo negro, arreado à espanhola, com um xairel onde
as suas armas estavam lavradas em prata: o tombo que nesse momento um frade de S. Francisco deu da
trincheira alta, e a hilaridade da corte, que até a sr.ª condessa de Pavolide apertava as mãos nas ilhargas:
depois el-rei o sr. D. José I, vestido de veludo escarlate, recamado de ouro, todo encostado ao rebordo do seu
palanque, e fazendo girar entre dois dedos a sua caixa de rapé cravejada, e por trás, imóveis, o físico Lourenço
e o frade, seu confessor; depois o rico aspecto da praça cheia de gente de Salvaterra, maiorais, mendigos dos
arredores, frades, lacaios, e o grito que houve, quando D. José I entrou: − Viva el-rei, nosso senhor! E o povo
ajoelhou, e el-rei tinha-se sentado, comendo doces, que um criado trouxe num saco de veludo, atrás dele.
Depois a morte do conde dos Arcos, os desmaios, e até el-rei todo debruçado, batendo com a mão no
parapeito, gritando na confusão, e o capelão da casa dos Arcos que tinha corrido a buscar a extrema-unção.
Ela, Hilária, ficara estarrecida de pavor: sentia os urros dos bois, gritos agudos de mulheres, os ganidos dos
flatos, e vira então um velho, todo vestido de veludo preto, com a fina espada na mão, debater-se entre
fidalgos e damas que o seguravam, e querer atirar-se à praça, bramindo de raiva! “É o pai do conde!”,
explicavam em volta. Ela então desmaiara nos braços de um padre da Congregação. Quando veio a si, achou-
se junto da praça; a berlinda real estava à porta, com os boleeiros emplumados, os machos cheios de guizos, e
os batedores a cavalo, à frente: via-se lá dentro el-rei, escondido ao fundo, pálido, sorvendo febrilmente rapé,
todo encolhido com o confessor; e defronte, com uma das mãos apoiada à alta bengala, forte, espadaúdo, o
aspecto carregado, o marquês de Pombal falava devagar e intimativamente, gesticulando com a luneta. Mas os
batedores picaram, os estalos dos boleeiros retiniram, e a berlinda partiu a galope, enquanto o povo gritava:
Viva el-rei!, nosso senhor! - e o sino da capela do paço tocava a finados! Era uma honra que el-rei concedia à
casa dos Arcos.
Quando D. Hilária acabou de contar, suspirando, estas desgraças passadas, começou-se a jogar. Era
singular que Macário não se lembrava o que tinha jogado nessa noite radiosa. Só se recordava que tinha
ficado ao lado da menina Vilaça (que se chamava Luísa), que reparara muito na sua fina pele rosada, tocada
de luz, e na meiga e amorosa pequenez da sua mão, com uma unha mais polida que o marfim de Diepa. E
lembrava-se também de um acidente excêntrico, que determinara nele, desde esse dia, uma grande hostilidade
ao clero da Sé. Macário estava sentado à mesa, e ao pé dele Luísa: Luísa estava toda voltada para ele, com
uma das mãos apoiando a sua fina cabeça loura e amorosa, e a outra esquecida no regaço. Defronte estava o
beneficiado, com o seu barrete preto, os seus óculos na ponta aguda do nariz, o tom azulado da forte barba
rapada e as suas duas grandes orelhas, complicadas e cheias de cabelo, separadas do crânio como dois
postigos abertos. Ora, como era necessário no fim do jogo pagar uns tentos ao cavaleiro de Malta, que estava
ao lado do beneficiado, Macário tirou da algibeira uma peça e quando o cavaleiro, todo curvado e com um
olho pisco, fazia a soma dos tentos nas costas dum ás, Macário conversava com Luísa, e fazia girar sobre o
pano verde a sua peça de ouro, como um bilro ou um pião. Era uma peça nova que luzia, faiscava, rodando, e
feria a vista como uma bola de névoa dourada. Luísa sorria vendo-o girar, girar, e parecia a Macário que todo
o céu, a pureza, a bondade das flores e a castidade das estrelas estavam naquele claro sorriso distraído,
espiritual, arcangélico, com que ela seguia o giro fulgurante da peça de ouro nova. Mas, de repente, a peça,
correndo até à borda da mesa, caiu para o lado do regaço de Luísa e desapareceu, sem se ouvir no soalho de
tábuas o seu ruído metálico. O beneficiado abaixou-se logo cortêsmente: Macário afastou a cadeira, olhando
para debaixo da mesa: a mãe Vilaça alumiou com um castiçal, e Luísa ergueu-se e sacudiu com pequenina
pancada o seu vestido de cassa. A peça não apareceu.
− É célebre! - disse o amigo de chapéu de palha - eu não ouvir tinir no chão.
− Nem eu, nem eu - disseram.
O beneficiado, curvado, buscava tenazmente, e a Hilária mais nova rosnava o responso de Santo
Antônio.
− Pois a casa não tem buracos - dizia a mãe Vilaça.
− Sumiço assim! - resmungava o beneficiado.
No entanto, Macário exalava-se em exclamações desinteressadas:
− Pelo amor de Deus! Ora que tem! Amanhã aparecerá! Tenham a bondade! Por quem são! Então, sr.ª
D. Luísa! Pelo amor de Deus! Não vale nada.
Mas mentalmente estabeleceu que houvera uma subtração - e atribuiu-a ao beneficiado. A peça rolara,
decerto, até junto dele, sem ruído; ele pusera-lhe em cima o seu vasto sapato eclesiástico e tachado; depois, no
movimento brusco e curto que tivera, empolgara-a vilmente. E, quando saíram, o beneficiado, todo
embrulhado no seu vasto capote de camelão, dizia a Macário pela escada:
− Ora o sumiço da peça, hem? Que brincadeira!
− Acha, sr. beneficiado?! - disse Macário parando, pasmado da impudência.
− Ora essa! Se acho?! Se lhe parece! Uma peça de 7$000 réis! Só se o senhor as semeia... Safa! Eu
dava em doido!
Macário teve tédio daquela astúcia fria. Não lhe respondeu. O beneficiado é que acrescentou:
− Amanhã mande lá pela manhã, homem. Que diabo!... Deus me perdoe! Que diabo! Uma peça não se
perde assim. Que bolada, hem!
E Macário tinha vontade de lhe bater.
Foi neste ponto que Macário me disse, com a sua voz singularmente sentida:
− Enfim, meu amigo, para encurtarmos razões, resolvi-me casar com ela.
− Mas a peça?
− Não pensei mais nisso! Pensava eu lá na peça! Resolvi-me casar com ela!
II
Macário contou-me o que o determinara mais precisamente àquela resolução profunda e perpétua. Foi um
beijo. Mas esse caso, casto e simples, eu calo-o: − mesmo porque a única testemunha foi uma imagem em
gravura da Virgem, que estava pendurada no seu caixilho de pau-preto, na saleta escura que abria para a
escada... Um beijo fugitivo, superficial, efêmero. Mas isso bastou ao seu espírito reto e severo para o obrigar a
tomá-la como esposa, a dar-lhe uma fé imutável e a posse de sua vida. Tais foram os seus esponsais. Aquela
simpática sombra das janelas vizinhas tornara-se para ele um destino, o fim moral da sua vida e toda a idéia
dominante do seu trabalho. E esta história toma, desde logo, um alto caráter de santidade e de tristeza.
Macário falou-me muito do caráter e da figura do tio Francisco: a sua possante estatura, os seus óculos
de ouro, a sua barba grisalha, em colar, por baixo do queixo, um tique nervoso que tinha numa asa do nariz, a
dureza da sua voz, a sua austera e majestosa tranquilidade, os seus princípios antigos, autoritários e tirânicos,
e a brevidade telegráfica das suas palavras.
Quando Macário lhe disse, uma manhã, ao almoço, abruptamente, sem transições emolientes: “Peço-
lhe licença para casar”, o tio Francisco, que deitava o açúcar no seu café, ficou calado, remexendo com a
colher, devagar, majestoso e terrível: e quando acabou de sorver pelo pires, com grande ruído, tirou do
pescoço o guardanapo, dobrou-o, aguçou com a faca o seu palito, meteu-o na boca e saiu: mas à porta da sala
parou, e voltando-se para Macário, que estava de pé, junto da mesa, disse secamente:
− Não.
− Perdão, tio Francisco!
− Não.
− Mas oiça, tio Francisco...
− Não.
Macário sentiu uma grande cólera.
− Nesse caso, faço-o sem licença.
− Despedido da casa.
− Sairei. Não haja dúvida.
− Hoje.
− Hoje.
E o tio Francisco ia a fechar a porta, mas voltando-se:
− Olá! - disse ele a Macário, que estava exasperado, apopléctico, raspando nos vidros da janela.
Macário voltou-se com uma esperança.
− Dê-me daí a caixa de rapé - disse o tio Francisco.
Tinha-lhe esquecido a caixa! Portanto, estava perturbado.
− Tio Francisco... - começou Macário.
− Basta. Estamos a 12. Receberá o seu mês por inteiro. Vá.
As antigas educações produziam estas situações insensatas. Era brutal e idiota. Macário afirmou-me
que era assim.
Nessa tarde Macário achava-se no quarto duma hospedaria da Praça da Figueira com seis peças, o seu
baú de roupa branca e a sua paixão. No entanto estava tranqüilo. Sentia o seu destino cheio de apuros. Tinha
relações e amizades no comércio. Era conhecido vantajosamente: a nitidez do seu trabalho, a sua honra
tradicional, o nome da família, o seu tato comercial, o seu belo cursivo inglês, abriam-lhe, de par em par,
respeitosamente, todas as portas dos escritórios. No outro dia foi procurar alegremente o negociante Faleiro,
antiga relação comercial da sua casa.
− De muito boa vontade, meu amigo - disse-me ele. - Quem mo dera cá! Mas, se o recebo, fico de mal
com seu tio, meu velho amigo de vinte anos. Ele declarou-mo categòricamente. Bem vê. Força maior. Eu
sinto, mas...
E todos, a quem Macário se dirigiu, confiado em relações sólidas, receavam ficar de mal com o seu tio,
velho amigo de vinte anos.
E todos sentiam, mas...
Macário dirigiu-se então a negociantes novos, estranhos à sua casa e à sua família, e sobretudo aos
estrangeiros: esperava encontrar gente livre da amizade de vinte anos do tio. Mas, para esses, Macário era
desconhecido, e desconhecidos por igual a sua dignidade e o seu hábil trabalho. Se tomavam informações,
sabiam que ele fora despedido da casa do tio repentinamente, por causa duma rapariga loura, vestida de cassa.
Esta circunstância tirava as simpatias a Macário. O comércio evita o guarda-livros sentimental. De sorte que
Macário começou a sentir-se num momento agudo. Procurando, pedindo, rebuscando, o tempo passava,
sorvendo, pinto a pinto, as suas seis peças.
Macário mudou para uma estalagem barata, e continuou farejando. Mas, como fora sempre de
temperamento recolhido, não criara amigos. De modo que se encontrava desamparado e solitário - e a vida
aparecia-lhe como um descampado.
As peças findaram. Macário entrou, pouco a pouco, na tradição antiga da miséria. Ela tem solenidades
fatais e estabelecidas: começou por empenhar - depois vendeu. Relógio, anéis, casaco azul, cadeia, paletó de
alamares, tudo foi levando pouco a pouco, embrulhado debaixo do xale, uma velha seca e cheia de asma.
No entanto via Luísa de noite, na saleta escura que dava para o patamar: uma lamparina ardia em cima
da mesa: era feliz ali naquela penumbra, todo sentado castamente, ao pé de Luísa, a um canto de um velho
canapé de palhinha. Não a via de dia, porque trazia já a roupa usada, as botas cambadas, e não queria mostrar
à fresca Luísa, toda mimosa nas suas cambraias asseadas, a sua miséria remendada: ali, àquela luz tênue e
esbatida, ele exalava a sua paixão crescente e escondia o seu fato decadente. Segundo me disse Macário - era
muito singular o temperamento de Luísa. Tinha o caráter louro como o cabelo - se é certo que o louro é uma
cor fraca e desbotada: falava pouco, sorria sempre com os seus brancos dentinhos, dizia a tudo pois sim: era
muito simples, quase indiferente, cheia de transigências. Amava decerto Macário, mas com todo o amor que
podia dar a sua natureza débil, aguada, nula. Era como uma estriga de linho, fiava-se como se queria: e às
vezes, naqueles encontros noturnos, tinha sono.
Um dia, porém, Macário encontrou-a excitada: estava com pressa, o xale traçado à toa, olhando sempre
para a porta interior.
− A mamã percebeu - disse ela.
E contou-lhe que a mãe desconfiava, ainda rabugenta e áspera, e decerto farejava aquele plano nupcial
tramado como uma conjuração.
− Por que não me vens pedir à mamã?
− Mas, filha, se eu não posso! Não tenho arranjo nenhum. Espera. É mais um mês talvez. Tenho agora
aí um negócio em bom caminho. Morríamos de fome.
Luísa calou-se, torcendo a ponta do xale, com os olhos baixos.
− Mas ao menos - disse ela - enquanto eu te não fizer sinal da janela, não subas mais, sim?
Macário rompeu a chorar, os soluços saíam violentos e desesperados.
− Chuta! - dizia-lhe Luísa. - Não chores alto!...
Macário contou-me a noite que passou, ao acaso pelas ruas, ruminando febrilmente a sua dor, e
lutando, sob a friagem de Janeiro, na sua quinzena curta. Não dormiu, e logo pela manhã, ao outro dia, entrou
como uma rajada no quarto do tio Francisco e disse-lhe abruptamente, secamente:
− É tudo o que tenho - e mostrou-lhe três pintos. - Roupa, estou sem ela. Vendi tudo. Daqui a pouco
tenho fome.
O tio Francisco, que fazia a barba à janela, com o lenço da Índia amarrado na cabeça, voltou-se e,
pondo os óculos, fitou-o.
− A sua carteira lá está. Fique - e acrescentou com um gesto decisivo - solteiro.
− Tio Francisco, oiça-me!...
− Solteiro, disse eu - continuou o tio Francisco, dando o fio à navalha numa tira de sola.
− Não posso.
− Então, rua!
Macário saiu, estonteado. Chegou a casa, deitou-se, chorou e adormeceu. Quando saiu, à noitinha, não
tinha resolução, nem idéia. Estava como uma esponja saturada. Deixava-se ir.
De repente, uma voz disse de dentro de uma loja:
− Eh! pst! olá!
Era o amigo do chapéu de palha: abriu grandes braços pasmados.
− Que diacho! Desde manhã que te procuro.
E contou-lhe que tinha chegado da província, tinha sabido a sua crise e trazia-lhe um desenlace.
− Queres?
− Tudo.
Uma casa comercial queria um homem hábil, resoluto e duro, para ir numa comissão difícil e de
grande ganho a Cabo Verde.
− Pronto! - disse Macário. − Pronto! Amanhã.
E foi logo escrever a Luísa, pedindo-lhe uma despedida, um último encontro, aquele em que os braços
desolados e veementes tanto custam a desenlaçar-se. Foi. Encontrou-a toda embrulhada no seu xale, tiritando
de frio. Macário chorou. Ela, com a sua passiva e loura doçura, disse-lhe:
− Fazes bem. Talvez ganhes.
E ao outro dia Macário partiu.
Conheceu as viagens trabalhosas dos mares inimigos, o enjôo monótono num beliche abafado, os
duros sóis das colônias, a brutalidade tirânica dos fazendeiros ricos, o peso dos fardos humilhantes, as
dilacerações da ausência, as viagens ao interior das terras negras e a melancolia das caravanas que costeiam
por violentas noites, durante dias e dias, os rios tranqüilos, de onde se exala a morte.
Voltou.
E logo nessa noite a viu a ela, Luísa, clara, fresca, repousada, serena, encostada ao peitoril da janela,
com sua ventarola chinesa. E ao outro dia, sofregamente, foi pedi-la à mãe. Macário tinha feito um ganho
saliente - e a mãe Vilaça abriu-lhe uns grandes braços amigos, cheia de exclamações. O casamento decidiu-se
para daí a um ano.
− Por quê? - disse eu a Macário.
E ele explicou-me que os lucros de Cabo Verde não podiam constituir um capital definitivo: eram
apenas um capital de habilitação. Trazia de Cabo Verde elementos de poderosos negócios: trabalharia,
durante um ano, heroicamente, e ao fim poderia, sossegadamente, criar uma família.
E trabalhou: pôs naquele trabalho a força criadora da sua paixão. Erguia-se de madrugada, comia à
pressa, mal falava. À tardinha ia visitar Luísa. Depois voltava sofregamente para a fadiga, como um avaro
para o seu cofre. Estava grosso, forte, duro, fero: servia-se com o mesmo ímpeto das idéias e dos músculos:
vivia numa tempestade de cifras. Às vezes Luísa, de passagem, entrava no seu armazém: aquele pousar de ave
fugitiva dava-lhe alegria, fé, reconforto para todo um mês cheiamente trabalhado.
Por esse tempo o amigo do chapéu de palha veio pedir a Macário que fosse seu fiador por uma grande
quantia, que ele pedira para estabelecer uma loja de ferragens em grande. Macário, que estava no vigor do seu
crédito, cedeu com alegria. O amigo do chapéu de palha é que lhe dera o negócio providencial de Cabo
Verde. Faltavam então dois meses para o casamento. Macário já sentia, por vezes, subirem-lhe ao rosto as
febris vermelhidões da esperança. Já começara a tratar dos banhos. Mas um dia o amigo do chapéu de palha
desapareceu com a mulher de um alferes. O seu estabelecimento estava em começo. Era uma confusa
aventura. Não se pôde nunca precisar nitidamente aquele embróglio doloroso. O que era positivo é que
Macário era fiador, Macário devia reembolsar. Quando o soube, empalideceu e disse simplesmente:
− Liquido e pago!
E quando liquidou, ficou outra vez pobre. Mas nesse mesmo dia, como o desastre tivera uma grande
publicidade, e a sua honra estava santificada na opinião, a casa Peres & C.ª, que o mandara a Cabo Verde,
veio propor-lhe uma outra viagem e outros ganhos.
− Voltar a Cabo Verde outra vez!
− Faz outra vez fortuna, homem. O senhor é o diabo! - disse o sr. Eleutério Peres.
Quando se viu assim, só e pobre, Macário desatou a chorar. Tudo estava perdido, findo, extinto; era
necessário recomeçar pacientemente a vida, voltar às longas misérias de Cabo Verde, tornar a tremer os
passados desesperos, suar os antigos suores! E Luísa? Macário escreveu-lhe. Depois rasgou a carta. Foi a casa
dela: as janelas tinham luz: subiu até ao primeiro andar, mas aí tomou-o uma mágoa, uma cobardia de revelar
o desastre, o pavor trêmulo de uma separação, o terror de ela se recusar, negar-se, hesitar! E quereria ela
esperar mais? Não se atreveu a falar, explicar, pedir; desceu, pé ante pé. Era noite. Andou ao acaso pelas ruas:
havia um sereno e silencioso luar. Ia sem saber: de repente ouviu, de uma janela alumiada, uma rabeca que
tocava a xácara mourisca. Lembrou-se do tempo em que conhecera Luísa, do bom sol claro que havia então,
e do vestido dela, de cassa com pintas azuis! Estava na rua onde eram os armazéns do tio. Foi caminhando.
Pôs-se a olhar para a sua antiga casa. A janela do escritório estava fechada. Quantas vezes dali vira Luísa, e o
brando movimento do seu leque chinês! Mas uma janela, no segundo andar, tinha luz: era o quarto do tio.
Macário foi observar mais de longe: uma figura estava encostada, por dentro, à vidraça: era o tio Francisco.
Veio-lhe uma saudade de todo o seu passado simples, retirado, plácido. Lembrava-lhe o seu quarto, e a velha
carteira com fecho de prata, e a miniatura de sua mãe, que estava por cima da barra do leito; a sala de jantar e
o seu velho aparador de pau-preto, e a grande caneca da água, cuja asa era uma serpente irritada. Decidiu-se, e
impelido por um instinto, bateu à porta. Bateu outra vez. Sentiu abrir a vidraça, e a voz do tio perguntar:
− Quem é?
− Sou eu, tio Francisco, sou eu. Venho dizer-lhe adeus.
A vidraça fechou-se, e daí a pouco a porta abriu-se com um grande ruído de ferrolhos. O tio Francisco
tinha um candeeiro de azeite na mão. Macário achou-o magro, mais velho. Beijou-lhe a mão.
− Suba - disse o tio.
Um poeta lírico
AQUI está, simplesmente, sem frases e sem ornatos, a história triste do poeta Korriscosso. De todos os poetas
líricos de que tenho notícia, é este, certamente, o mais infeliz. Conheci-o em Londres, no hotel de Charing-
Cross, uma madrugada regelada de Dezembro. Tinha eu chegado ao continente, prostrado por duas horas de
Canal da Mancha... Ah! Que mar! E era só uma brisa fresca de Noroeste: mas ali, no tombadilho, sob uma
capa de oleado de que um marujo me tinha coberto, como se cobre um corpo morto, fustigado da neve e da
vaga, oprimido por aquela treva tumultuosa que o paquete ia rompendo aos roncos e aos encontrões - parecia-
me um tufão dos mares da China...
Apenas entrei no hotel, gelado e estremunhado, corri ao vasto fogão do peristilo, e ali fiquei,
saturando-me daquela paz quente em que a sala estava adormecida, com os olhos beatamente postos na boa
brasa escarlate... E foi então que vi aquela figura esguia e longa, já de casaca e gravata branca, que do outro
lado da chaminé, de pé, com a taciturna tristeza duma cegonha que cisma, olhava também os carvões
ardentes, com um guardanapo no braço. Mas o porteiro tinha rolado a minha bagagem, e eu fui inscrever-me
ao bureau. A guarda-livros, tesa e loura, com um perfil antiquado de medalha safada, pousou o seu crochê ao
lado da sua chávena de chá, acariciou com um gosto doce os dois bandós louros, assentou corretamente o meu
nome, de dedinho no ar, fazendo rebrilhar um diamante, e eu ia subir a vasta escadaria, − quando a figura
magra e fatal se dobrou num ângulo, e murmurou-me num inglês silabado:
− Já está servido o almoço das sete...
Mas eu não queria o almoço das sete. Fui dormir.
Mais tarde, já repousado, fresco do banho, quando desci ao restaurante para o lunch, avistei logo,
plantado melancolicamente ao pé da larga janela, o indivíduo esguio e triste. A sala estava deserta numa luz
parda: os fogões flamejavam; e fora, no silêncio do domingo, nas ruas mudas, a neve caía sem cessar dum céu
amarelento e baço. Eu via apenas as costas do homem; mas havia na sua linha magra e um pouco dobrada
uma expressão tão evidente de desalento, que me interessei por aquela figura. O cabelo comprido, de tenor,
caído sobre a gola da casaca, era, manifestamente, dum meridional; e toda a sua magreza friorenta se encolhia
ao aspecto daqueles telhados cobertos de neve, na sensação daquele silêncio lívido... Chamei-o. Quando ele se
voltou, a sua fisionomia, que apenas entrevira na véspera, impressionou-me: era um carão longo e triste,
muito moreno, de nariz judaico e uma barba curta e frisada de Cristo em estampa romântica; a testa era destas
que, em boa literatura, se chama, creio eu, fronte: era larga e era lustrosa. Tinha o olhar encovado e vago, com
uma indecisão de sonho nadando num fluido enternecido... E que magreza! Quando andava, a calça curta
torcia-se em torno da canela como pregas de bandeira em torno dum mastro: a casaca tinha dobras de túnica
ampla; as duas abas compridas e agudas eram desgraçadamente grotescas. Recebeu a ordem do meu almoço,
sem me olhar, num tédio resignado: arrastou-se para o comptoir onde o maître d’hotel lia a Bíblia, passou a
mão pela testa com um gesto errante e dolente, e disse-lhe numa voz surda:
− Número 307. Duas costeletas. Chá...
O maître d’hotel afastou a Bíblia, inscreveu o menu - e eu acomodei-me à mesa, e abri o volume de
Tennyson que trouxera para almoçar comigo - porque, creio que lhes disse, era domingo, dia sem jornais e
sem pão fresco. Fora continuava a nevar sobre a cidade muda. A uma mesa distante, um velho cor de tijolo e
todo branco de cabelo e de suíças, que acabara de almoçar, dormitava de mãos no ventre, boca aberta e luneta
na ponta do nariz. E o único som vinha da rua, uma voz gemente que a neve abafava mais, uma voz pedinte
que à esquina defronte garganteava um salmo... Um domingo de Londres.
Foi o magro que me trouxe o almoço - e apenas ele se aproximou, com o serviço do chá, eu senti logo
que aquele volume de Tennyson nas minhas mãos o tinha interessado e impressionado; foi um olhar rápido,
gulosamente fixado na página aberta, um estremecimento quase imperceptível - emoção fugitiva, decerto,
porque depois de ter pousado o serviço, rodou sobre os calcanhares e foi plantar-se, melancòlicamente, à
janela, de olho triste e posto na neve triste. Eu atribuí aquele movimento curioso ao esplendor da
encadernação do volume, que eram os Idílios de El-Rei, em marroquim negro, com o escudo de armas de
Lançarote do Lago - o pelicano de ouro sobre um mar de sinopla.
Nessa noite parti no expresso para a Escócia, e ainda não tinha passado Iorque, adormecida na sua
gravidade episcopal, já me esquecera o criado romanesco do restaurante de Charing-Cross. Foi só daí a um
mês, ao voltar a Londres, que entrando no restaurante, e revendo aquela figura lenta e fatal atravessar com um
prato de rosbife numa das mãos e na outra um pudim de batata, senti renascer o antigo interesse. E nessa noite
mesmo tive a singular felicidade de saber o seu nome e de entrever um fragmento do seu passado. Era já tarde
e eu voltava do Covent-Garden, quando no peristilo do hotel encontrei, majestoso e próspero, o meu amigo
Bracolletti.
Não conhecem Bracolletti? A sua presença é formidável; tem a amplidão pançuda, o negro cerrado da
barba, a lentidão, o cerimonial dum paxá gordo. Mas esta ponderosa gravidade turca é temperada, em
Bracolletti, pelo sorriso e pelo olhar. Que olhar! Um olhar doce, que me faz lembrar o dos animais da Síria: é
o mesmo enternecimento. Parece errar no seu fluido macio a religiosidade meiga das raças que dão os
Messias... Mas o sorriso! O sorriso de Bracolletti é a mais completa, a mais perfeita, a mais rica das
expressões humanas; há finura, inocência, bonomia, abandono, ironia doce, persuasão, naqueles dois lábios
que se descerram e que deixam brilhar um esmalte de dentes de virgem!... Ah! Mas também este sorriso é a
fortuna de Bracolletti.
Moralmente, Bracolletti é um hábil. Nasceu em Esmirna de pais gregos; é tudo o que ele revela: de
resto, quando se lhe pergunta pelo seu passado, o bom grego rola um momento a cabeça de ombro a ombro,
esconde sob as pálpebras cerradas com bonomia o seu olho maometano, desabrocha o sorriso duma doçura de
tentar abelhas, e murmura, como afogado em bondade e em enternecimento:
− Eh! mon Dieu! Eh! mon Dieu…
Nada mais. Parece, porém, que viajou - porque conhece o Peru, a Criméia, o Cabo da Boa Esperança,
os países exóticos - tão bem como Regent-Street: mas é evidente para todos que a sua existência não foi
tecida, como a dos vulgares aventureiros do Levante, de ouro e estopa, de esplendores e pelintrices: é um
gordo e, portanto, um prudente: o seu magnífico solitário nunca deixou de lhe brilhar no dedo: nenhum frio
jamais o surpreendeu sem uma peliça de dois mil francos: e nunca deixa de ganhar, todas as semanas, no
Fraternal Clube, de que é um membro querido, dez libras ao whist. É um forte.
Mas tem uma debilidade. É singularmente guloso de rapariguinhas de doze a catorze anos: gosta delas
magrinhas, muito louras, e com o hábito de praguejar. Coleciona-as pelos bairros pobres de Londres, com
método. Instala-as em casa, e ali as tem, como passarinhos na gaiola, metendo-lhes a papinha no bico,
ouvindo-as palrar todo baboso, animando-as a que lhe roubem os xelins da algibeira, gozando o
desenvolvimento dos vícios naquelas flores da lama de Londres, pondo-lhes ao alcance as garrafas de gin para
que os anjinhos se embebedem; − e quando alguma, excitada de álcool, de cabelo ao vento e face acesa, o
injuria, o arrepela, baba obscenidades - o bom Bracolletti, encruzado no sofá, de mãos beatamente cruzadas
na pança, o olhar afogado em êxtase, murmura no seu italiano da costa Síria:
− Piccolina! Gentilletta!
Querido Bracolletti! Foi, realmente, com prazer que o abracei, nessa noite, em Charing-Cross: e como
nos não víamos há muito, fomos cear juntos ao restaurante. O criado triste lá estava no seu comptoir, curvado
sobre o Journal des Débats. E apenas Bracolletti apareceu, na sua majestade de obeso, o homem estendeu-lhe
silenciosamente a mão; foi um shake-hands solene, enternecido e sincero.
Bom Deus, eram amigos! Arrebatei Bracolletti para o fundo da sala, e vibrando de curiosidade,
interroguei-o com sofreguidão. Quis primeiro o nome do homem.
− Chama-se Korriscosso - disse-me Bracolletti, grave.
Quis depois a sua história. Mas Bracolletti, como os deuses da Ática que, nos seus embaraços no
mundo, se recolhiam à sua nuvem, Bracolletti refugiou-se na sua vaga reticência.
− Eh! mon Dieu!... Eh! mon Dieu!…
− Não, não, Bracolletti. Vejamos. Quero-lhe a história... Aquela face fatal e byroniana deve ter uma
história...
Bracolletti então tomou todo o ar cândido que lhe permitem a sua pança e as suas barbas - e confessou-
me, deixando cair as frases às gotas, que tinham viajado ambos na Bulgária e no Montenegro... Korriscosso
foi seu secretário... Boa letra... Tempos difíceis... Eh! mon Dieu!...
− De onde é ele?
Bracolletti respondeu sem hesitar, baixando a voz, com um gesto repassado de desconsideração:
− É um grego de Atenas.
O meu interesse sumiu-se como a água que a areia absorve. Quando se tem viajado no Oriente e nas
escalas do Levante, adquire-se fàcilmente o hábito, talvez injusto, de suspeitar do grego: aos primeiros que se
vêem, sobretudo tendo uma educação universitária e clássica, o entusiasmo acende-se um pouco, pensa-se em
Alcibíades e em Platão, nas glórias duma raça estética e livre, e perfilam-se na imaginação as linhas augustas
do Pártenon. Mas, depois de os ter freqüentado, às mesas redondas e nos tombadilhos das Messageries, e
principalmente depois de ter escutado a lenda de velhacaria que eles têm deixado desde Esmirna até Túnis, os
outros que se vêem provocam, apenas, estes movimentos: abotoar rapidamente o casaco, cruzar fortemente os
braços sobre a cadeia do relógio e aguçar o intelecto para rechaçar a escroquerie. A causa desta reputação
funesta é que a gente grega, que emigra para as escalas do Levante, é uma plebe torpe, parte pirata e parte
lacaia, bando de rapina astuto e perverso. A verdade é que, apenas soube Korriscosso um grego, lembrei-me
logo que o meu belo volume de Tennyson, na minha última estada em Charing-Cross, me desaparecera do
quarto, e recordei o olhar de gula e de presa que cravara nele Korriskosso... Era um bandido!
E durante a ceia não falamos mais de Korriscosso. Serviu-nos outro criado, rubro, honesto e são. O
lúgubre Korriscosso não se afastou do comptoir, abismado no Journal des Débats.
Nessa noite aconteceu, ao recolher-me ao meu quarto, que me perdi... O hotel estava atulhado, e eu
tinha sido alojado naqueles altos de Charing-Cross, numa complicação de corredores, escadas, recantos,
ângulos, onde é quase necessário roteiro e bússola.
De castiçal na mão, penetrei num passadiço onde corria um bafo morno de viela mal arejada. As portas
aí não tinham números, mas pequenos cartões colados onde estavam inscritos nomes: John, Smith, Charlie,
Willie... Enfim, eram evidentemente as habitações dos criados. De uma porta aberta saía a claridade de um
bico de gás; adiantei-me, e vi logo Korriscosso, ainda de casaca, sentado a uma mesa alastrada de papéis, de
testa pendida sobre a mão, escrevendo.
− Pode-me indicar o caminho para o número 508?
Ele ergueu para mim um olhar estremunhado e enevoado; parecia ressurgir de muito longe, de um
outro universo; batia as pálpebras, repetindo:
− 508? 508?...
Foi então que eu avistei, sobre a mesa, entre papéis, colarinhos sujos e um rosário - o meu volume de
Tennyson! Ele viu o meu olhar, o bandido! e acusou-se todo numa vermelhidão que lhe inundou a face
chupada. O meu primeiro movimento foi não reconhecer o livro: como era um movimento bom, e obedecendo
logo à moral superior do mestre Talleyrand, reprimi-o; apontando o volume com um dedo severo, um dedo de
Providência irritada, disse-lhe:
− É o meu Tennyson...
Não sei que resposta ele tartamudeou, porque eu, apiedado, retomado também pelo interesse que me
dava aquela figura picaresca de grego sentimental, acrescentei num tom repassado de perdão e de justificação:
− Grande poeta, não é verdade? Que lhe pareceu? Tenho a certeza que se entusiasmou...
Korriscosso corou mais: mas não era o despeito humilhado do salteador surpreendido: era, julguei eu, a
vergonha de ver a sua inteligência, o seu gosto poético adivinhados - e de ter no corpo a casaca coçada de
criado de restaurante. Não respondeu. Mas as páginas do volume, que eu abri, responderam por ele; a
brancura das margens largas desaparecia sob uma rede de comentários a lápis: Sublime! Grandioso! Divino!
− palavras lançadas numa letra convulsiva, num tremor de mão, agitada por uma sensibilidade vibrante...
No entanto Korriscosso permanecia de pé, respeitoso, culpado, de cabeça baixa, com o laço da gravata
branca fugindo para o cachaço. Pobre Korriscosso! Compadeci-me daquela atitude, revelando todo um
passado sem sorte, tantas tristezas de dependência... Lembrei-me que nada impressiona o homem do Levante,
como um gesto de drama e de palco; estendi-lhe ambas as mãos num movimento à Talma, e disse-lhe:
− Eu também sou poeta!...
Esta frase extraordinária pareceria grotesca e impudente a um homem do Norte; o levantino viu logo
nela a expansão de uma alma irmã. Porque, não lhes disse? o que Korriscosso estava escrevendo, numa tira de
papel, eram estrofes: era uma ode.
Daí a pouco, com a porta fechada, Korriscosso contava-me a sua história - ou antes fragmentos,
anedotas desirmanadas da sua biografia. É tão triste, que a condenso. De resto, havia na sua narração lacunas
de anos; − e eu não posso reconstituir com lógica e seqüência a história deste sentimental. Tudo é vago e
suspeito. Nasceu com efeito em Atenas; seu pai parece que era carregador no Pireu. Aos 18 anos, Korriscosso
servia de criado a um médico, e nos intervalos do serviço frequentava a Universidade de Atenas; estas coisas
são frequentes là-bas, como ele dizia. Formou-se em leis: isto habilitou-o, mais tarde, em tempos difíceis, a
ser um intérprete de hotel. Desse tempo datam as suas primeiras elegias num semanário lírico, intitulado Ecos
da Ática. A literatura levou-o diretamente à política e às ambições parlamentares. Uma paixão, uma crise
patética, um marido brutal, ameaças de morte, forçam-no a expatriar-se. Viajou na Bulgária, foi em Salonica
empregado numa sucursal do Banco Otomano, remeteu endechas dolorosas a um jornal da província - a
Trombeta da Argólida. Aqui há uma dessas lacunas, um buraco negro na sua história. Reaparece em Atenas,
com fato novo, liberal e deputado.
Este período de sua glória foi breve, mas suficiente para o pôr em evidência; a sua palavra colorida,
poética, recamada de imagens engenhosas e lustrosas, encantou Atenas: tinha o segredo de florir, como ele
dizia, os terrenos mais áridos; duma discussão de imposto ou de viação fazia saltar éclogas de Teócrito. Em
Atenas este talento leva ao poder: Korriscosso era indicado para gerir uma alta administração do Estado: o
ministério, porém, e com ele a maioria de que Korriscosso era o tenor querido, caíram, sumiram-se, sem
lógica constitucional, num destes súbitos desabamentos políticos tão comuns na Grécia, em que os governos
se aluem, como as casas em Atenas - sem motivo. Falta de base, decrepitude de materiais e de
individualidades... Tudo tende para o pó num solo de ruínas...
Nova lacuna, novo mergulho obscuro na história de Korriscosso…
Volta à superfície; membro de um clube republicano de Atenas, pede num jornal a emancipação da
Polônia, e a Grécia governada por um concílio de gênios. Publica então os seus Suspiros da Trácia. Tem
outro romance de coração... E enfim - e isto disse-mo, sem explicações, - é obrigado a refugiar-se em
Inglaterra. Depois de tentar em Londres várias posições, coloca-se no restaurante de Charing-Cross.
− É um porto de abrigo - disse-lhe eu, apertando-lhe a mão.
Ele sorriu com amargura. Era decerto um porto de abrigo, e vantajoso. É bem alimentado; as gorjetas
são razoáveis; tem um velho colchão de molas, − mas as delicadezas da sua alma são, a todo o momento,
dolorosamente feridas...
Dias atribulados, dias crucificados, os daquele poeta lírico, forçado a distribuir numa sala, a burgueses
estabelecidos e glutões, costeletas e copos de cerveja! Não é a dependência que o aflige; a sua alma de grego
não é particularmente ávida de liberdade, basta-lhe que o patrão seja cortês. E, como ele me disse, é-lhe grato
reconhecer que os fregueses de Charing-Cross nunca lhe pedem a mostarda ou o queijo sem dizer if you
please; e quando saem, ao passar por ele, levam dois dedos à aba do chapéu: isto satisfaz a dignidade de
Korriscosso.
Mas o que o tortura é o contato constante com o alimento. Se ele fosse um guarda-livros dum
banqueiro, primeiro caixeiro dum armazém de sedas... Nisso há uma sobra de poesia - os milhões que se
revolvem, as frotas mercantes, a brutal força do ouro, ou então dispor ricamente os estofos, os cortes de seda,
fazer correr a luz nas ondulações dos moirés, dar ao veludo as molezas da linha e da prega... Mas num
restaurante como se pode exercer o gosto, a originalidade artística, o instinto da cor, do efeito, do drama - a
partir nacos de rosbife ou de presunto de Iorque?!... Depois, como ele disse, dar a comer, fornecer alimento, é
servir exclusivamente a pança, a tripa, a baixa necessidade material: no restaurante, o ventre é Deus: a alma
fica fora, com o chapéu que se pendura no cabide ou com o rolo de jornais que se deixou no bolso do paletó.
E as convivências, e a falta de conversação! Nunca se voltarem para ele senão para lhe pedirem salame
ou sardinhas de Nantes! Nunca abrir os seus lábios, de onde pendia o parlamento de Atenas, senão para
perguntar: − Mais pão? Mais bife? - Esta privação de eloquência é-lhe dolorosa.
Além disso o serviço impede-lhe o trabalho. Korriscosso compõe de memória; quatro passeios pelo
quarto, um repelão ao cabelo, e a ode sai-lhe harmoniosa e doce... Mas a interrupção glutona da voz do
freguês, pedindo nutrição, é fatal a esta maneira de trabalhar. Às vezes, encostado a uma janela, de
guardanapo no braço, Korriscosso está fazendo
uma elegia; são tudo luares, roupagens alvas de virgens pálidas, horizontes celestes, flores de alma
dolorida... É feliz; está remontando aos céus poéticos, nas planícies azuladas onde os sonhos acampam,
galopando de estrela em estrela... De repente, uma grossa voz faminta berra de um canto:
− Bife e batatas!
Ai! As aladas fantasias batem o vôo como pombas espavoridas! E aí vem o infeliz Korriscosso,
precipitado dos cimos ideais, de ombros vergados e as abas da casaca baloiçando, perguntar com o sorriso
lívido:
− Passado ou meio cru?
Ah! É um amargo destino!
− Mas - perguntei-lhe eu - por que não deixa este covil, este templo do ventre?
Ele deixou pender a sua bela cabeça de poeta. E disse-me a razão que o prende: disse-me, quase
chorando nos meus braços, com o nó da gravata branca no cachaço: Korriscosso ama.
Ama uma Fanny, criada de todo o serviço em Charing-Cross. Ama-a desde o primeiro dia em que
entrou no hotel: amou-a no momento em que a viu lavando as escadas de pedra, com os braços roliços nus, e
os cabelos louros, os fatais cabelos louros, deste louro que entontece os meridionais, cabelos ricos, de um tom
de cobre, dum tom de ouro-mate, torcendo-se numa trança de deusa. E depois a carnação, uma carnação de
inglesa de Yorkshire - leite e rosas...
E o que Korriscosso tem sofrido! Toda a sua dor exala-a em odes - que passa a limpo ao domingo, dia
de repouso e dia do Senhor! Leu-mas. E eu vi quanto a paixão pode perturbar um ser nervoso: que ferocidade
de linguagem, que lances de desespero, que gritos de alma dilacerada arremessados dali, daqueles altos de
Charing-Cross, para a mudez do céu frio! É que Korriscosso tem ciúmes. A desgraçada Fanny ignora aquele
poeta a seu lado, aquele delicado, aquele sentimental, e ama um policeman. Ama um policeman, um colosso,
um alcides, uma montanha de carne eriçada duma floresta de barbas, com o peito como o flanco de um
couraçado, com pernas como fortalezas normandas. Este Polifemo, como diz Korriscosso, tem,
ordinariamente, serviço no Strand; e a pobre Fanny passa o seu dia a espreitá-lo de um postigo, dos altos do
hotel.
Todas as suas economias as gasta em quartilhos de gin, de brandy, de genebra, que à noite lhe leva em
copinhos debaixo do avental; mantém-no fiel pelo álcool; o monstro, plantado enormemente a uma esquina,
recebe em silêncio o copo, atira-o de um golpe às fauces tenebrosas, arrota cavamente, passa a mão cabeluda
pela barba de hércules e segue taciturnamente, sem um obrigado, sem um amo-te, batendo o lajedo com a
vastidão das suas solas sonoras. A pobre Fanny admira-o babosa... E talvez nesse momento, à outra esquina, o
magro Korriscosso, fazendo no nevoeiro um esguio relevo de poste telegráfico, soluce com a face magra entre
as mãos transparentes.
Pobre Korriscosso! Se ele ao menos a pudesse comover... Mas quê! Ela despreza-lhe o corpo de tísico
triste; e a alma não lha compreende... Não que Fanny seja inacessível a sentimentos ardentes, expressos em
linguagem melodiosa. Mas Korriscosso só pode escrever as suas elegias na sua língua materna... E Fanny não
compreende grego... E Korriscosso é só um grande homem - em grego.
Quando desci ao meu quarto, deixei-o soluçando sobre o catre. Tenho-o visto depois, outras vezes, ao
passar em Londres. Está mais magro, mais fatal, mais mirrado de zelos, mais curvado quando se move pelo
restaurante com a travessa do rosbife, mais exaltado no seu lirismo... Sempre que ele me serve dou-lhe um
xelim de gorjeta: e depois, ao retirar, aperto-lhe sinceramente a mão.
No moinho
D. MARIA DA PIEDADE era considerada em toda a vila como “uma senhora modelo”. O velho
Nunes, diretor do correio, sempre que se falava nela, dizia, acariciando com autoridade os quatro pêlos da
calva:
− A vila tinha quase orgulho na sua beleza delicada e tocante; era uma loura, de perfil fino, a pele
ebúrnea, e os olhos escuros de um tom de violeta, a que as pestanas longas escureciam mais o brilho sombrio
e doce. Morava ao fim da estrada, numa casa azul de três sacadas; e era, para a gente que às tardes ia fazer o
giro até ao moinho, um encanto sempre novo vê-la por trás da vidraça, entre as cortinas de cassa, curvada
sobre a sua costura, vestida de preto, recolhida e séria. Poucas vezes saía. O marido, mais velho que ela, era
um inválido, sempre de cama, inutilizado por uma doença de espinha; havia anos que não descia à rua;
avistavam-no às vezes também à janela murcho e trôpego, agarrado à bengala, encolhido na robe-de-chambre,
com uma face macilenta, a barba desleixada e com um barretinho de seda enterrado melancolicamente até ao
cachaço. Os filhos, duas rapariguitas e um rapaz, eram também doentes, crescendo pouco e com dificuldade,
cheios de tumores nas orelhas, chorões e tristonhos. A casa, interiormente, parecia lúgubre. Andava-se nas
pontas dos pés, porque o senhor, na excitação nervosa que lhe davam as insônias, irritava-se com o menor
rumor; havia sobre as cômodas alguma garrafada da botica, alguma malga com papas de linhaça; as mesmas
flores com que ela, no seu arranjo e no seu gosto de frescura, ornava as mesas, depressa murchavam naquele
ar abafado de febre, nunca renovado por causa das correntes de ar; e era uma tristeza ver sempre algum dos
pequenos ou de emplastro sobre a orelha, ou a um canto do canapé, embrulhado em cobertores com uma
amarelidão de hospital.
Maria da Piedade vivia assim, desde os vinte anos. Mesmo em solteira, em casa dos pais, a sua
existência fora triste. A mãe era uma criatura desagradável e azeda; o pai, que se empenhara pelas tavernas e
pelas batotas, já velho, sempre bêbedo, os dias que aparecia em casa passava-os à lareira, num silêncio
sombrio, cachimbando e escarrando para as cinzas. Todas as semanas desancava a mulher. E quando João
Coutinho pediu Maria em casamento, apesar de doente já, ela aceitou, sem hesitação, quase com
reconhecimento, para salvar o casebre da penhora, não ouvir mais os gritos da mãe, que a faziam tremer,
rezar, em cima no seu quarto, onde a chuva entrava pelo telhado. Não amava o marido, decerto; e mesmo na
vila tinha-se lamentado que aquele lindo rosto de Virgem Maria, aquela figura de fada, fosse pertencer ao
Joãozinho Coutinho, que desde rapaz fora sempre entrevado. O Coutinho, por morte do pai, ficara rico; e ela,
acostumada por fim àquele marido rabugento, que passava o dia arrastando-se sombriamente da sala para a
alcova, ter-se-ia resignado, na sua natureza de enfermeira e de consoladora, se os filhos ao menos tivessem
nascido sãos e robustos. Mas aquela família que lhe vinha com o sangue viciado, aquelas existências
hesitantes, que depois pareciam apodrecer-lhe nas mãos, apesar dos seus cuidados inquietos, acabrunhavam-
na. Às vezes só, picando a sua costura, corriam-lhe as lágrimas pela face: uma fadiga da vida invadia-a, como
uma névoa que lhe escurecia a alma.
Mas se o marido de dentro chamava desesperado, ou um dos pequenos choramingava, lá limpava os
olhos, lá aparecia com a sua bonita face tranquila, com alguma palavra consoladora, compondo a almofada a
um, indo animar a outro, feliz em ser boa. Toda a sua ambição era ver o seu pequeno mundo bem tratado e
bem acarinhado. Nunca tivera desde casada uma curiosidade, um desejo, um capricho: nada a interessava na
terra senão as horas dos remédios e o sono dos seus doentes. Todo o esforço lhe era fácil quando era para os
contentar: apesar de fraca, passeava horas trazendo ao colo o pequerrucho, que era o mais impertinente, com
as feridas que faziam dos seus pobres beicinhos uma crosta escura: durante as insônias do marido não dormia
também, sentada ao pé da cama, conversando, lendo-lhe as Vidas dos Santos, porque o pobre entrevado ia
caindo em devoção. De manhã estava um pouco mais pálida, mas toda correta no seu vestido preto, fresca,
com os bandós bem lustrosos, fazendo-se bonita para ir dar as sopas de leite aos pequerruchos. A sua única
distração era à tarde sentar-se à janela com a sua costura, e a pequenada em roda aninhada no chão, brincando
tristemente. A mesma paisagem que ela via da janela era tão monótona como a sua vida: embaixo a estrada,
depois uma ondulação de campos, uma terra magra plantada aqui e além de oliveiras e, erguendo-se ao fundo,
uma colina triste e nua, sem uma casa, uma árvore, um fumo de casal que pusesse naquela solidão de terreno
pobre uma nota humana e viva.
Vendo-a assim tão resignada e tão sujeita, algumas senhoras da vila afirmavam que ela era beata;
todavia ninguém a avistava na igreja, a não ser ao domingo, com o pequerrucho mais velho pela mão, todo
pálido no seu vestido de veludo azul. Com efeito, a sua devoção limitava-se a esta missa todas as semanas. A
sua casa ocupava-a muito para se deixar invadir pelas preocupações do Céu: naquele dever de boa mãe,
cumprido com amor, encontrava uma satisfação suficiente à sua sensibilidade; não necessitava adorar santos
ou enternecer-se com Jesus. Instintivamente mesmo pensava que toda a afeição excessiva dada ao Pai do Céu,
todo o tempo gasto em se arrastar pelo confessionário ou junto do oratório, seria uma diminuição cruel do seu
cuidado de enfermeira: a sua maneira de rezar era velar os filhos: e aquele pobre marido pregado numa cama,
todo dependente dela, tendo-a só a ela, parecia-lhe ter mais direito ao seu fervor que o outro, pregado numa
cruz, tendo para amar toda uma humanidade pronta. Além disso, nunca tivera estas sentimentalidades de alma
triste que levam à devoção. O seu longo hábito de dirigir uma casa de doentes, de ser ela o centro, a força, o
amparo daqueles inválidos, tornara-a terna, mas prática: e assim era ela que administrava agora a casa do
marido, com um bom senso que a afeição dirigira, uma solicitude de mãe próvida. Tais ocupações bastavam
para entreter o seu dia: o marido, de resto, detestava visitas, o aspecto de caras saudáveis, as comiserações de
cerimônia; e passavam-se meses sem que em casa de Maria da Piedade se ouvisse outra voz estranha à
família, a não ser a do dr. Abílio - que a adorava, e que dizia dela com os olhos esgazeados:
− É uma fada! é uma fada!...
Foi por isso grande a excitação na casa, quando João Coutinho recebeu uma carta de seu primo Adrião,
que lhe anunciava que em duas ou três semanas ia chegar à vila. Adrião era um homem célebre, e o marido da
Maria da Piedade tinha naquele parente um orgulho enfático. Assinara mesmo um jornal de Lisboa, só para
ver o seu nome nas locais e na crítica. Adrião era um romancista: e o seu último livro, Madalena, um estudo
de mulher trabalhado a grande estilo, duma análise delicada e sutil, consagrara-o como um mestre. A sua
fama, que chegara até à vila, num vago de legenda, apresentava-o como uma personalidade interessante, um
herói de Lisboa, amado das fidalgas, impetuoso e brilhante, destinado a uma alta situação no Estado. Mas
realmente na vila era sobretudo notável por ser primo do João Coutinho.
D. Maria da Piedade ficou aterrada com esta visita. Via já a sua casa em confusão com a presença do
hóspede extraordinário. Depois a necessidade de fazer mais toilette, de alterar a hora do jantar, de conversar
com um literato, e tantos outros esforços cruéis!... E a brusca invasão daquele mundano, com as suas malas, o
fumo do seu charuto, a sua alegria de são, na paz triste do seu hospital, dava-lhe a impressão apavorada duma
profanação. Foi por isso um alívio, quase um reconhecimento, quando Adrião chegou e muito simplesmente
se instalou na antiga estalagem do tio André, à outra extremidade da vila. João Coutinho escandalizou-se:
tinha já o quarto do hóspede preparado, com lençóis de rendas, uma colcha de damasco, pratas sobre a
cômoda, e queria-o todo para si, o primo, o homem célebre, o grande autor... Adrião porém recusou:
− Eu tenho os meus hábitos, vocês têm os seus... Não nos contrariemos, hem?... o que faço é vir cá
jantar. De resto, não estou mal no tio André... Vejo da janela um moinho e uma represa que são um
quadrozinho delicioso... E ficamos amigos, não é verdade?
Maria da Piedade olhava-o assombrada: aquele herói, aquele fascinador por quem choravam mulheres,
aquele poeta que os jornais glorificavam, era um sujeito extremamente simples, − muito menos complicado,
menos espetaculoso que o filho do recebedor! Nem formoso era: e com o seu chapéu desabado sobre uma
face cheia e barbuda, a quinzena de flanela caindo à larga num corpo robusto e pequeno, os seus sapatos
enormes, parecia-lhe a ela um dos caçadores de aldeia que às vezes encontrava, quando de mês a mês ia
visitar as fazendas do outro lado do rio. Além disso não fazia frases; e a primeira vez que veio jantar, falou
apenas, com grande bonomia, dos seus negócios. Viera por eles. Da fortuna do pai, a única terra que não
estava devorada, ou abominàvelmente hipotecada, era a Curgossa, uma fazenda ao pé da vila, que andava
além disso mal arrendada... o que ele desejava era vendê-la. Mas isso parecia-lhe a ele tão difícil como fazer a
Ilíada!... E lamentava sinceramente ver o primo ali, inútil sobre uma cama, sem o poder ajudar nesses passos
a dar com os proprietários da vila. Foi por isso, com grande alegria, que ouviu João Coutinho declarar-lhe que
a mulher era uma administradora de primeira ordem, e hábil nestas questões como um antigo rábula!...
− Ela vai contigo ver a fazenda, fala com o Teles, e arranja-te isso tudo... E na questão de preço, deixa-
a a ela!...
− Mas que superioridade, prima! - exclamou Adrião maravilhado. - Um anjo que entende de cifras!
Pela primeira vez na sua existência Maria da Piedade corou com a palavra dum homem. De resto
prontificou-se logo a ser a procuradora do primo...
No outro dia foram ver a fazenda. Como ficava perto, e era um dia de março fresco e claro, partiram a
pé. Ao princípio, Acanhada por aquela companhia de um leão, a pobre senhora caminhava junto dele com o ar
de um pássaro assustado: apesar de ele ser tão simples, havia na sua figura enérgica e musculosa, no timbre
rico da sua voz, nos seus olhos, nos seus olhos pequenos e luzidios alguma coisa de forte, de dominante, que a
enleava. Tinha-se-lhe prendido à orla do seu vestido um galho de silvado, e como ele se abaixara para o
desprender delicadamente, o contato daquela mão branca e fina de artista na orla da sua saia incomodou-a
singularmente. Apressava o passo para chegar bem depressa à fazenda, aviar o negócio com o Teles e voltar
imediatamente a refugiar-se, como no seu elemento próprio, no ar abafado e triste do seu hospital. Mas a
estrada estendia-se, branca e longa, sob o sol tépido - e a conversa de Adrião foi-a lentamente acostumando à
sua presença.
Ele parecia desolado daquela tristeza da casa. Deu-lhe alguns bons conselhos: o que os pequenos
necessitavam era ar, sol, uma outra vida diversa daquele abafamento de alcova...
Ela também assim o julgava: mas quê! o pobre João, sempre que se lhe falava de ir passar algum
tempo à quinta, afligia-se terrivelmente: tinha horror aos grandes ares e aos grandes horizontes: a natureza
forte fazia-o quase desmaiar; tornara-se um ser artificial, encafuado entre os cortinados da cama...
Ele então lamentou-a. decerto poderia haver alguma satisfação num dever tão santamente cumprido...
Mas, enfim, ela devia ter momentos em que desejasse alguma outra coisa além daquelas quatro paredes,
impregnadas do bafo de doença...
− Que hei-de eu desejar mais? - disse ela.
Adrião calou-se: pareceu-lhe absurdo supor que ela desejasse, realmente, o Chiado ou o Teatro da
Trindade... No que ele pensava era noutros apetites, nas ambições do coração insatisfeito... Mas isto pareceu-
lhe tão delicado, tão grave de dizer àquela criatura virginal e séria - que falou da paisagem...
− Já viu o moinho? - perguntou-lhe ela.
− Tenho vontade de o ver, se mo quiser ir mostrar, prima.
− Hoje é tarde.
Combinaram logo ir visitar esse recanto de verdura, que era o idílio da vila.
Na fazenda, a longa conversa com o Teles criou uma aproximação maior entre Adrião e Maria da
Piedade. Aquela venda que ela discutia com uma astúcia de aldeã punha entre eles como que um interesse
comum. Ela falou-lhe já com menos reserva quando voltaram. Havia nas maneiras dele, dum respeito tocante,
uma atração que a seu pesar a levava a revelar-se, a dar-lhe a sua confiança: nunca falara tanto a ninguém: a
ninguém jamais deixara ver tanto da melancolia oculta que errava constantemente na sua alma. De resto as
suas queixas eram sobre a mesma dor - a tristeza do seu interior, as doenças, tantos cuidados graves... E
vinha-lhe por ele uma simpatia, como um indefinido desejo de o ter sempre presente, desde que ele se tornava
assim depositário das suas tristezas.
Adrião voltou para o seu quarto, na estalagem do André, impressionado, interessado por aquela
criatura tão triste e tão doce. Ela destacava sobre o mundo de mulheres que até ali conhecera, como um perfil
suave de ano gótico entre fisionomias da mesa redonda. Tudo nela concordava deliciosamente: o ouro do
cabelo, a doçura da voz, a modéstia na melancolia, a linha casta, fazendo um ser delicado e tocante, a que
mesmo o seu pequenino espírito burguês, certo fundo rústico de aldeã e uma leve vulgaridade de hábitos
davam um encanto: era um anjo que vivia há muito tempo numa vilota grosseira e estava por muitos lados
preso às trivialidades do sítio: mas bastaria um sopro para o fazer remontar ao céu natural, aos cimos puros da
sentimentalidade...
Achava absurdo e infame fazer a corte à prima... Mas involuntàriamente pensava no delicioso prazer
de fazer bater aquele coração que não estava deformado pelo espartilho, e de pôr enfim os seus lábios numa
face onde não houvesse pós de arroz... E o que o tentava sobretudo era pensar que poderia percorrer toda a
província em Portugal, sem encontrar nem aquela linha de corpo, nem aquela virgindade tocante de alma
adormecida... Era uma ocasião que não voltava.
O passeio ao moinho foi encantador. Era um recanto de natureza, digno de Corot, sobretudo à hora do
meio-dia em que eles lá foram, com a frescura da verdura, a sombra recolhida das grandes árvores, e toda a
sorte de murmúrios de água corrente, fugindo, reluzindo entre os musgos e as pedras, levando e espalhando
no ar o frio da folhagem, da relva, por onde corriam cantando. O moinho era dum alto pitoresco, com a sua
vclha edificação de pedra secular, a sua roda enorme, quase podre, coberta de ervas, imóvel sobre a gelada
limpidez da água escura. Adrião achou-o digno duma cena de romance, ou, melhor, da morada duma fada.
Maria da Piedade não dizia nada, achando extraordinária aquela admiração pelo moinho abandonado do tio
Costa. Como ela vinha um pouco cansada, sentaram-se numa escada desconjuntada de pedra, que mergulhava
na água da represa os últimos degraus: e ali ficaram um momento calados, no encanto daquela frescura
murmurosa, ouvindo as aves piarem nas ramas. Adrião via-a de perfil, um pouco curvada, esburacando com a
ponteira do guarda-sol as ervas bravas que invadiam os degraus: era deliciosa assim, tão branca, tão loura,
duma linha tão pura, sobre o fundo azul do ar: o seu chapéu era de mau gosto, o seu mantelete antiquado, mas
ele achava nisso mesmo uma ingenuidade picante. O silêncio dos campos em redor isolava-os - e,
insensivelmente, ele começou a falar-lhe baixo. Era ainda a mesma compaixão pela melancolia da sua
existência naquela triste vila, pelo seu destino de enfermeira... Ela escutava-o de olhos baixos, pasmada de se
achar ali tão só com aquele homem tão robusto, toda receosa e achando um sabor delicioso ao seu receio...
Houve um momento em que ele falou do encanto de ficar ali para sempre na vila.
− Ficar aqui? Para quê? - perguntou ela, sorrindo.
− Para quê? para isto, para estar sempre ao pé de si...
Ela cobriu-se de um rubor, o guarda-solinho escapou-lhe das mãos. Adrião receou tê-la ofendido, e
acrescentou logo rindo:
− Pois não era delicioso?... Eu podia alugar este moinho, fazer-me moleiro... A prima havia de me dar
a sua freguesia...
Isto fê-la rir; era mais linda quando ria: tudo brilhava nela, os dentes, a pele, a cor do cabelo. Ele
continuou gracejando, com o seu plano de se fazer moleiro, e de ir pela estrada tocando o burro, carregado de
sacas de farinha.
− E eu venho ajudá-lo, primo! - disse ela, animada pelo seu próprio riso, pela alegria daquele homem a
seu lado.
− Vem? - exclamou ele. - Juro-lhe que me faço moleiro! Que paraíso, nós aqui ambos no moinho,
ganhando alegremente a nossa vida, e ouvindo cantar esses melros!
Ela corou outra vez do fervor da sua voz, e recuou como se ele fosse já arrebatá-la para o moinho. Mas
Adrião agora, inflamado àquela idéia, pintava-lhe na sua palavra colorida toda uma vida romanesca, de uma
felicidade idílica, naquele esconderijo de verdura: de manhã, a pé cedo, para o trabalho; depois o jantar na
relva à beira da água; e à noite as boas palestras ali sentados, à claridade das estrelas ou sob a sombra cálida
dos céus negros de verão...
E de repente, sem que ela resistisse, prendeu-a nos braços, e beijou-a sobre os lábios, dum só beijo
profundo e interminável. Ela tinha ficado contra o seu peito, branca, como morta: e duas lágrimas corriam-lhe
ao comprido da face. Era assim tão dolorosa e fraca, que ele soltou-a; ela ergueu-se, apanhou o guarda-
solinho e ficou diante dele, com o beicinho a tremer, murmurando:
− É malfeito... É malfeito...
Ele mesmo estava tão perturbado - que a deixou descer para o caminho: e daí a um momento, seguiam
ambos calados para a vila. Foi só na estalagem que ele pensou:
− Fui um tolo!
Mas no fundo estava contente da sua generosidade. À noite foi à casa dela: encontrou-a com o
pequerrucho no colo, lavando-lhe em água de malva as feridas que ele tinha na perna. E então, pareceu-lhe
odioso distrair aquela mulher dos seus doentes. De resto um momento como aquele no moinho não voltaria.
Seria absurdo ficar ali, naquele canto odioso da província, desmoralizando, a frio, uma boa mãe... A venda da
fazenda estava concluída. Por isso, no dia seguinte, apareceu de tarde, a dizer-lhe adeus: partia à noitinha na
diligência: encontrou-a na sala, à janela costumada, com a pequenada doente aninhada contra as suas saias...
Ouviu que ele partia, sem lhe mudar a cor, sem lhe arfar o peito. Mas Adrião achou-lhe a palma da mão tão
fria como um mármore: e quando ele saiu, Maria da Piedade ficou voltada para a janela escondendo a face
dos pequenos, olhando abstratamente a paisagem que escurecia, com as lágrimas, quatro a quatro, caindo-lhe
na costura...
Amava-o. Desde os primeiros dias, a sua figura resoluta e forte, os seus olhos luzidios, toda a
virilidade da sua pessoa, se lhe tinham apossado da imaginação. O que a encantava nele não era o seu talento,
nem a sua celebridade em Lisboa, nem as mulheres que o tinham amado: isso para ela aparecia-lhe vago e
pouco compreensível: o que a fascinava era aquela seriedade, aquele ar honesto e são, aquela robustez de
vida, aquela voz tão grave e tão rica; e antevia, para além da sua existência ligada a um inválido, outras
existências possíveis, em que se não vê sempre diante dos olhos uma face fraca e moribunda, em que as noites
se não passam a esperar as horas dos remédios. Era como uma rajada de ar impregnado de todas as forças
vivas da natureza que atravessava, sùbitamente, a sua alcova abafada: e ela respirava-a deliciosamente...
Depois, tinha ouvido aquelas conversas em que ele se mostrava tão bom, tão sério, tão delicado: e à força do
seu corpo, que admirava, juntava-se agora um coração terno, duma ternura varonil e forte, para a cativar...
Esse amor latente invadiu-a, apoderou-se dela uma noite que lhe apareceu esta idéia, esta visão: − Se ele fosse
meu marido! Toda ela estremeceu, apertou desesperadamente os braços contra o peito, como confundindo-se
com a sua imagem evocada, prendendo-se a ela, refugiando-se na sua força... Depois ele deu-lhe aquele beijo
no moinho.
E partira!
Então começou para Maria da Piedade uma existência de abandonada. Tudo de repente em volta dela -
a doença do marido, achaques dos filhos, tristezas do seu dia, a sua costura - lhe pareceu lúgubre. Os seus
deveres, agora que não punha neles toda a sua alma, eram-lhe pesados como fardos injustos. A sua vida
representava-se-lhe como desgraça excepcional: não se revoltava ainda: mas tinha desses abatimentos, dessas
súbitas fadigas de todo o seu ser, em que caía sobre a cadeira, com os braços pendentes, murmurando:
− Quando se acabará isto?
Refugiava-se então naquele amor como uma compensação deliciosa. Julgando-o todo puro, todo de
alma, deixava-se penetrar dele e da sua lenta influência. Adrião tornara-se, na sua imaginação, como um ser
de proporções extraordinárias, tudo o que é forte, e que é belo, e que dá razão à vida. Não quis que nada do
que era dele ou vinha dele lhe fosse alheio. Leu todos os seus livros, sobretudo aquela Madalena que também
amara, e morrera dum abandono. Essas leituras calmavam-na, davam-lhe como uma vaga satisfação ao
desejo. Chorando as dores das heroínas de romance, parecia sentir alívio às suas.
Lentamente, essa necessidade de encher a imaginação desses lances de amor, de dramas infelizes,
apoderou-se dela. Foi durante meses um devorar constante de romances. Ia-se assim criando no seu espírito
um mundo artificial e idealizado. A realidade tornava-se-lhe odiosa, sobretudo sob aquele aspecto da sua casa,
onde encontrava sempre agarrado às saias um ser enfermo. Vieram as primeiras revoltas. Tornou-se
impaciente e áspera. Não suportava ser arrancada aos episódios sentimentais do seu livro, para ir ajudar a
voltar o marido e sentir-lhe o hálito mau. Veio-lhe o nojo das garrafadas, dos emplastros, das feridas dos
pequenos a lavar. Começou a ler versos. Passava horas só, num mutismo, à janela, tendo sob o seu olhar de
virgem loura toda a rebelião duma apaixonada. Acreditava nos amantes que escalam os balcões, entre o canto
dos rouxinóis: e queria ser amada assim, possuída num mistério de noite romântica...
O seu amor desprendeu-se pouco a pouco da imagem de Adrião e alargou-se, estendeu-se a um ser
vago que era feito de tudo o que a encantara nos heróis de novela; era um ente meio príncipe e meio facínora,
que tinha, sobretudo, a força. Porque era isto que admirava, que queria, por que ansiava nas noites cálidas em
que não podia dormir - dois braços fortes como aço, que a apertassem num abraço mortal, dois lábios de fogo
que, num beijo, lhe chupassem a alma. Estava uma histérica.
Às vezes, ao pé do leito do marido, vendo diante de si aquele corpo de tísico, numa imobilidade de
entrevado, vinha-lhe um ódio torpe, um desejo de lhe apressar a morte...
E no meio desta excitação mórbida do temperamento irritado, eram fraquezas súbitas, sustos de ave
que pousa, um grito ao ouvir bater uma porta, uma palidez de desmaio se havia na sala flores muito
cheirosas... À noite abafava; abria a janela; mas o cálido ar, o bafo morno da terra aquecida do sol, enchiam-
na dum desejo intenso, duma ânsia voluptuosa, cortada de crises de choro.
A Santa tornava-se Vênus.
E o romanticismo mórbido tinha penetrado naquele ser, e desmoralizara-o tão profundamente, que
chegou ao momento em que bastaria que um homem lhe tocasse, para ela lhe cair nos braços: − e foi o que
sucedeu enfim, com o primeiro que a namorou, daí a dois anos. Era o praticante da botica.
Por causa dele escandalizou toda a vila. E agora, deixa a casa numa desordem, os filhos sujos e
ramelosos, em farrapos, sem comer até altas horas, o marido a gemer abandonado na sua alcova, toda a
trapagem dos emplastros por cima das cadeiras, tudo num desamparo torpe - para andar atrás do homem, um
maganão odioso e sebento, de cara balofa e gordalhufa, luneta preta com grossa fita passada atrás da orelha e
bonezinho de seda posto à catita. Vem de noite às entrevistas de chinelo de ourelo: cheira a suor: e pede-lhe
dinheiro emprestado para sustentar uma Joana, criatura obesa, a quem chamam na vila a bola de unto.
Civilização
EU possuo preciosamente um amigo (o seu nome é Jacinto) que nasceu num palácio, com quarenta
contos de renda em pingues terras de pão, azeite e gado.
Desde o berço, onde sua mãe, senhora gorda e crédula de Trás-os-Montes, espalhava, para reter as
Fadas Benéficas, funcho e âmbar, Jacinto fora sempre mais resistente e são que um pinheiro das dunas. Um
lindo rio, murmuroso e transparente, com um leito muito liso de areia muito branca, refletindo apenas pedaços
lustrosos de um céu de verão ou ramagens sempre verdes e de bom aroma, não ofereceria, àquele que o
descesse numa barca cheia de almofadas e de champanhe gelado, mais doçura e facilidades do que a vida
oferecia ao meu camarada Jacinto. Não teve sarampo e não teve lombrigas. Nunca padeceu, mesmo na idade
em que se lê Balzac e Musset, os tormentos da sensibilidade. Nas suas amizades foi sempre tão feliz como o
clássico Orestes. Do Amor só experimentara o mel - esse mel que o amor invariàvelmente concede a quem o
pratica, como as abelhas, com ligeireza e mobilidade. Ambição, sentira somente a de compreender bem as
idéias gerais, e a “ponta do seu intelecto” (como diz o velho cronista medieval) não estava ainda romba nem
ferrugenta... E todavia, desde os vinte e oito anos, Jacinto já se vinha repastando de Schopenhauer, do
Ecclesiastes, de outros pessimistas menores, e três, quatro vezes por dia, bocejava, com um bocejo cavo e
lento, passando os dedos finos sobre as faces, como se nelas só palpasse palidez e ruína. Por quê?
Era ele, de todos os homens que conheci, o mais complexamente civilizado - ou antes aquele que se
munira da mais vasta soma de civilização material, ornamental e intelectual. Nesse palácio (floridamente
chamado o Jasmineiro) que seu pai, também Jacinto, construíra sobre uma honesta casa do século XVII,
assoalhada a pinho e branqueada a cal − existia, creio eu, tudo quanto para bem do espírito ou da matéria os
homens têm criado, através da incerteza e dor, desde que abandonaram o vale feliz de Septa-Sindu, a Terra
das Águas Fáceis, o doce país ariano. A biblioteca, que em duas salas, amplas e claras como praças, forrava as
paredes, inteiramente, desde os tapetes de Caramânia até ao teto de onde, alternadamente, através de cristais,
o sol e a electricidade vertiam uma luz estudiosa e calma - continha vinte e cinco mil volumes, instalados em
ébano, magnificamente revestidos de marrroquim escarlate. Só sistemas filosóficos (e com justa prudência,
para poupar espaço, o bibliotecário apenas colecionara os que irreconciliàvelmente se contradizem) havia mil
oitocentos e dezessete!
Uma tarde que eu desejava copiar um ditame de Adam Smith, percorri, buscando este economista ao
longo das estantes, oito metros de economia política! Assim se achava formidàvelmente abastecido o meu
amigo Jacinto de todas as obras essenciais da inteligência - e mesmo da estupidez. E o único inconveniente
desse monumental armazém do saber era que todo aquele que lá penetrava, inevitàvelmente lá adormecia, por
causa das poltronas, que, providas de finas pranchas móveis para sustentar o livro, o charuto, o lápis das
notas, a taça de café, ofereciam ainda uma combinação oscilante e flácida de almofadas, onde o corpo
encontrava logo, para mal do espírito, a doçura, a profundidade e a paz estirada dum leito.
Ao fundo, e como um altar-mor, era o gabinete de trabalho de Jacinto. A sua cadeira, grave e abacial,
de couro, com brasões, datava do século XIV, e em torno dela pendiam numerosos tubos acústicos, que, sobre
os panejamentos de seda cor de musgo e cor de hera, pareciam serpentes adormecidas e suspensas num velho
muro de quinta. Nunca recordo sem assombro a sua mesa, recoberta toda de sagazes e sutis instrumentos para
cortar papel, numerar páginas, colar estampilhas, aguçar lápis, raspar emendas, imprimir datas, derreter lacre,
cintar documentos, carimbar contas! Uns de níquel, outros de aço, rebrilhantes e frios, todos eram de um
manejo laborioso e lento: alguns, com as molas rígidas, as pontas vivas, trilhavam e feriam: e nas largas
folhas de papel Whatman em que ele escrevia, e que custavam 500 réis, eu por vezes surpreendi gotas de
sangue do meu amigo. Mas a todos ele considerava indispensáveis para compor as suas cartas (Jacinto não
compunha obras), assim como os trinta e cinco dicionários, e os manuais, e as enciclopédias, e os guias, e os
diretórios, atulhando uma estante isolada, esguia, em forma de torre, que silenciosamente girava sobre o seu
pedestal, e que eu denominara o Farol. O que, porém, mais completamente imprimia àquele gabinete um
portentoso carácter de civilização eram, sobre as suas peanhas de carvalho, os grandes aparelhos, facilitadores
do pensamento, − a máquina de escrever, os autocopistas, o telégrafo Morse, o fonógrafo, o telefone, o
teatrofone, outros ainda, todos com metais luzidios, todos com longos fios. Constantemente sons curtos e
secos retiniam no ar morno daquele santuário. Tique, tique, tique! Dlim, dlim, dlim! Craque, craque, craque!
Trrre, trrre, trrre!... Era o meu amigo comunicando. Todos esses fios mergulhados em forças universais
transmitiam forças universais. E elas nem sempre, desgraçadamente, se conservavam domadas e
disciplinadas! Jacinto recolhera no fonógrafo a voz do conselheiro Pinto Porto, uma voz oracular e rotunda,
no momento de exclamar com respeito, com autoridade:
− “Maravilhosa invenção! Quem não admirará os progressos deste século?”
Pois, numa doce noite de S. João, o meu supercivilizado amigo, desejando que umas senhoras parentas
de Pinto Porto (as amáveis Gouveias) admirassem o fonógrafo, fez romper do bocarrão do aparelho, que
parece uma trompa, a conhecida voz rotunda e oracular:
− Quem não admirará os progressos deste seculo?
Mas, inábil ou brusco, certamente desconcertou alguma mola vital - porque de repente o fonógrafo
começa a redizer, sem descontinuação, interminàvelmente, com uma sonoridade cada vez mais rotunda, a
sentença do conselheiro:
− Quem não admirará os progressos deste século?
Debalde Jacinto, pálido, com os dedos trêmulos, torturava o aparelho. A exclamação recomeçava,
rolava, oracular e majestosa:
− Quem não admirará os progressos deste século?
Enervados, retiramos para uma sala distante, pesadamente revestida de panos de Arrás. Em vão! A voz
de Pinto Porto lá estava, entre os panos de Arras, implacável e rotunda:
− Quem não admirará os progressos deste século?
Furiosos, enterramos uma almofada na boca do fonógrafo, atiramos por cima mantas, cobertores
espessos, para sufocar a voz abominável. Em vão! sob a mordaça, sob as grossas lãs, a voz rouquejava, surda
mas oracular:
− Quem não admirará os progressos deste século?
As amáveis Gouveias tinham abalado, apertando desesperadamente os xales sobre a cabeça. Mesmo à
cozinha, onde nos refugiamos, a voz descia, engasgada e gosmosa:
− Quem não admirará os progressos deste século?
Fugimos espavoridos para a rua.
Era de madrugada. Um fresco bando de raparigas, de volta das fontes, passava cantando com braçados
de flores:
Todas as ervas são bentas
Em manhã de S. João...
Jacinto, respirando o ar matinal, limpava as bagas lentas do suor. Recolhemos ao Jasmineiro, com o
sol já alto, já quente. Muito de manso abrimos as portas, como no receio de despertar alguém. Horror! Logo
da antecâmara percebemos sons estrangulados, roufenhos: “admirará... progressos... século!...” Só de tarde
um eletricista pôde emudecer aquele fonógrafo horrendo.
Bem mais aprazível (para mim) do que esse gabinete temerosamente atulhado de civilização - era a
sala de jantar, pelo seu arranjo compreensível, fácil e íntimo. À mesa só cabiam seis amigos que Jacinto
escolhia com critério na literatura, na arte e na metafísica, e que, entre as tapeçarias de Arras, representando
colinas, pomares e portos da Ática, cheias de classicismo e de luz, renovavam ali repetidamente banquetes
que, pela sua intelectualidade, lembravam os de Platão. Cada garfada se cruzava com um pensamento ou com
palavras destramente arranjadas em forma de pensamento.
E a cada talher correspondiam seis garfos, todos de feitios dessemelhantes e astuciosos: − um para as
ostras, outro para o peixe, outro para as carnes, outro para os legumes, outro para a fruta, outro para o queijo.
Os copos, pela diversidade dos contornos e das cores, faziam, sobre a toalha mais reluzente que esmalte,
como ramalhetes silvestres espalhados por cima de neve. Mas Jacinto e os seus filósofos, lembrando o que o
experiente Salomão ensina sobre as ruínas e amarguras do vinho, bebiam apenas em três gotas de água uma
gota de Bordéus (Chateaubriand, 1860). Assim o recomendam - Hesíodo no seu Nereu, e Díocles nas suas
Abelhas. E de águas havia sempre no Jasmineiro um luxo redundante - águas geladas, águas carbonatadas,
águas esterilizadas, águas gasosas, águas de sais, águas minerais, outras ainda, em garrafas sérias, com
tratados terapêuticos impressos no rótulo... O cozinheiro, mestre Sardão, era daqueles que Anaxágoras
equiparava aos Retóricos, aos Oradores, a todos os que sabem a arte divina de “temperar e servir a Idéia”: e
em Síbaris, cidade do Viver Excelente, os magistrados teriam votado a mestre Sardão, pelas festas de Juno
Lacínia, a coroa de folhas de ouro e a túnica milésia que se devia aos benfeitores cívicos. A sua sopa de
alcachofras e ovas de carpa; os seus filetes de veado macerados em velho Madeira com purê de nozes; as suas
amoras geladas em éter, outros acepipes ainda, numerosos e profundos (e os únicos que tolerava o meu
Jacinto) eram obras de um artista, superior pela abundância das ideias novas - e juntavam sempre a raridade
do sabor à magnificência da forma. Tal prato desse mestre incomparável parecia, pela ornamentação, pela
graça florida dos lavores, pelo arranjo dos coloridos frescos e cantantes, uma jóia esmaltada do cinzel de
Cellini ou Meurice. Quantas tardes eu desejei fotografar aquelas composições de excelente fantasia, antes que
o trinchante as retalhasse! E essa superfinidade do comer condizia deliciosamente com a do servir. Por sobre
um tapete, mais fofo e mole que o musgo da floresta da Brocelianda, deslizavam, como sombras fardadas de
branco, cinco criados e um pajem preto, à maneira viscosa do século XVIII. As travessas (de prata) subiam da
cozinha e da copa por dois ascensores, um para as iguarias quentes, forrado de tubos onde a água fervia;
outro, mais lento, para as iguarias frias, forrado de zinco, amônia e sal, e ambos escondidos por flores tão
densas e viçosas, que era como se até a sopa saísse fumegando dos românticos jardins de Armida. E muito
bem me lembro de um domingo de maio em que, jantando com Jacinto um bispo, o erudito bispo de
Chorazin, o peixe emperrou no meio do ascensor, sendo necessário que acudissem, para o extrair, pedreiros
com alavancas.
II
NAS tardes em que havia “banquete de Platão” (que assim denominávamos essas festas de trufas e idéias
gerais), eu, vizinho e íntimo, aparecia ao declinar do sol e subia familiarmente aos quartos do nosso Jacinto -
onde o encontrava sempre incerto entre as suas casacas, porque as usava alternadamente de seda, de pano, de
flanelas Jaegher, e de foulard das Índias. O quarto respirava o frescor e aroma do jardim por duas vastas
janelas, providas magnìficamente (além das cortinas de seda mole Luís XV) de uma vidraça exterior de cristal
inteiro, duma vidraça interior de cristais miúdos, dum toldo rolando na cimalha, dum estore de sedinha
frouxa, de gazes que franziam e se enrolavam como nuvens e duma gelosia móvel de gradaria mourisca.
Todos estes resguardos (sábia invenção de Holland & C.ª, de Londres) serviam a graduar a luz e o ar -
segundo os avisos de termômetros, barômetros e higrômetros, montados em ébano, e a que um meteorologista
(Cunha Guedes) vinha, todas as semanas, verificar a precisão.
Entre estas duas varandas rebrilhava a mesa de toilette, uma mesa enorme de vidro, toda de vidro, para
a tornar impenetrável aos micróbios, e coberta de todos esses utensílios de asseio e alinho que o homem do
século XIX necessita numa capital, para não desfear o conjunto suntuário da civilização. Quando o nosso
Jacinto, arrastando as suas engenhosas chinelas de pelica e seda, se acercava desta ara - eu, bem aconchegado
num divã, abria com indolência uma revista, ordinariamente a Revista Electropática, ou a das Indagações
Psíquicas. E Jacinto começava... Cada um desses utensílios de aço, de marfim, de prata, impunham ao meu
amigo, pela influência onipoderosa que as coisas exercem sobre o dono (sunt tyranniae rerum), o dever de o
utilizar com aptidão e deferência. E assim as operações do alindamento de Jacinto apresentavam a
prolixidade, reverente e insuprimível, dos ritos dum sacrifício.
Começava pelo cabelo... Com uma escova chata, redonda e dura, acamava o cabelo, corredio e louro,
no alto, aos lados da risca; com uma escova estreita e recurva, à maneira do alfange dum persa, ondeava o
cabelo sobre a orelha; com uma escova côncava, em forma de telha, empastava o cabelo, por trás, sobre a
nuca... Respirava e sorria. Depois, com uma escova de longas cerdas, fixava o bigode; com uma escova leve e
flácida acurvava as sobrancelhas; com uma escova feita de penugem regularizava as pestanas. E deste modo
Jacinto ficava diante do espelho, passando pêlos sobre o seu pêlo, durante catorze minutos.
Penteado e cansado, ia purificar as mãos. Dois criados, ao fundo, manobravam com perícia e vigor os
aparelhos do lavatório - que era apenas um resumo dos maquinismos monumentais da sala de banho. Ali,
sobre o mármore verde e róseo do lavatório, havia apenas duas duches (quente e fria) para a cabeça; quatro
jatos, graduados desde zero até cem graus; o vaporizador de perfumes; o repuxo para a barba; e ainda
torneiras que rebrilhavam e botões de ébano que, de leve roçados, desencadeavam o marulho e o estridor de
torrentes nos Alpes... Nunca eu, para molhar os dedos, me cheguei àquele lavatório sem terror - escarmentado
da tarde amarga de janeiro em que bruscamente, dessoldada a torneira, o jato de água a cem graus rebentou,
silvando e fumegando, furioso, devastador... Fugimos todos, espavoridos. Um clamor atroou o Jasmineiro. O
velho Grilo, escudeiro que fora do Jacinto pai, ficou coberto de ampolas na face, nas mãos fiéis.
Quando Jacinto acabava de se enxugar laboriosamente a toalhas de felpo, de linho, de corda entrançada
(para restabelecer a circulação), de seda frouxa (para lustrar a pele), bocejava, com um bocejo cavo e lento.
E era este bocejo, perpétuo e vago, que nos inquietava a nós, seus amigos e filósofos. Que faltava a
este homem excelente? Ele tinha a sua inabalável saúde de pinheiro bravo, crescido nas dunas; uma luz da
inteligência, própria a tudo alumiar, firme e clara, sem tremor ou morrão; quarenta magníficos contos de
renda; todas as simpatias duma cidade chasqueadora e céptica; uma vida varrida de sombras, mais liberta e
lisa do que um céu de verão... E todavia bocejava constantemente, palpava na face, com os dedos finos, a
palidez e as rugas. Aos trinta anos Jacinto corcovava, como sob um fardo injusto! E pela morosidade
desconsolada de toda a sua ação parecia ligado, desde os dedos até à vontade, pelas malhas apertadas duma
rede que se não via e que o travava. Era doloroso testemunhar o fastio com que ele, para apontar um endereço,
tomava o seu lápis pneumático, a sua pena elétrica - ou, para avisar o cocheiro, apanhava o tubo telefônico!...
Neste mover lento do braço magro, nos vincos que lhe arrepanhavam o nariz, mesmo nos seus silêncios,
longos e derreados, se sentia o brado constante que lhe ia na alma: − Que maçada! Que maçada! Claramente
a vida era para Jacinto um cansaço - ou por laboriosa e difícil, ou por desinteressante e oca. Por isso o meu
pobre amigo procurava constantemente juntar à sua vida novos interesses, novas facilidades. Dois inventores,
homens de muito zelo e pesquisa, estavam encarregados, um em Inglaterra, outro na América, de lhe noticiar
e de lhe fornecer todas as invenções, as mais miúdas, que concorressem a aperfeiçoar a confortabilidade do
Jasmineiro. De resto, ele próprio se correspondia com Edison. E, pelo lado do pensamento, Jacinto não
cessava também de buscar interesses e emoções que o reconciliassem com a vida - penetrando à cata dessas
emoções e desses interesses pelas veredas mais desviadas do saber, a ponto de devorar, desde janeiro a março,
setenta e sete volumes sobre a evolução das idéias morais entre as raças negróides. Ah! nunca homem deste
século batalhou mais esforçadamente contra a seca de viver! Debalde! Mesmo de explorações tão cativantes
como essa, através da moral dos negróides, Jacinto regressava mais murcho, com bocejos mais cavos!
E era então que ele se refugiava intensamente na leitura de Schopenhauer e do Ecclesiastes. Por quê?
Sem dúvida porque ambos esses pessimistas o confirmavam nas conclusões que ele tirava de uma experiência
paciente e rigorosa: “que tudo é vaidade ou dor, que, quanto mais se sabe, mais se pena e que ter sido rei de
Jerusalém e obtido os gozos todos na vida só leva a maior amargura...” Mas por que rolara assim a tão escura
desilusão? O velho escudeiro Grilo pretendia que “Sua Ex.ª sofria de fartura!”
III
ORA justamente depois desse Inverno, em que ele se embrenhara na moral dos negróides e instalara a luz
elétrica entre os arvoredos do jardim, sucedeu que Jacinto teve a necessidade moral iniludível de partir para o
Norte, para o seu velho solar de Torges. Jacinto não conhecia Torges, e foi com desusado tédio que ele se
preparou, durante sete semanas, para essa jornada agreste. A quinta fica nas serras - e a rude casa solarenga,
onde ainda resta uma torre do século XV, estava ocupada, havia trinta anos, pelos caseiros, boa gente de
trabalho, que comia o seu caldo entre a fumaraça da lareira, e estendia o trigo a secar nas salas senhoriais.
Jacinto, logo nos começos de março, escrevera cuidadosamente ao seu procurador Sousa, que habitava
a aldeia de Torges, ordenando-lhe que compusesse os telhados, caiasse os muros, envidraçasse as janelas.
Depois mandou expedir, por comboios rápidos, em caixotes que transpunham a custo os portões do
Jarmineiro, todos os confortos necessários a duas semanas de montanha - camas de penas, poltronas, divãs,
lâmpadas de Carcel, banheiras de níquel, tubos acústicos para chamar os escudeiros, tapetes persas para
amaciar os soalhos. Um dos cocheiros partiu com um cupê, uma vitória, um breque, mulas e guizos.
Depois foi o cozinheiro, com a bateria, a garrafeira, a geleira, bocais de trufas, caixas profundas de
águas minerais. Desde o amanhecer, nos pátios largos do palacete, se pregava, se martelava, como na
construção de uma cidade. E as bagagens, desfilando, lembravam uma página de Heródoto ao narrar a invasão
persa. Jacinto emagrecera com os cuidados daquele Êxodo. Por fim, largamos numa manhã de junho, com o
Grilo e trinta e sete malas.
Eu acompanhava Jacinto, no meu caminho para Guilães, onde vive minha tia, a uma légua farta de
Torges: e íamos num vagão reservado, entre vastas almofadas, com perdizes e champanhe num cesto. A meio
da jornada devíamos mudar de comboio - nessa estação, que tem um nome sonoro em ola e um tão suave e
cândido jardim de roseiras brancas. Era domingo de imensa poeira e sol - e encontramos aí, enchendo a
plataforma estreita, todo um povaréu festivo que vinha da romaria de S. Gregório da Serra.
Para aquele trasbordo, em tarde de arraial, o horário só nos concedia três minutos avaros. O outro
comboio já esperava, rente aos alpendres, impaciente e silvando. Uma sineta badalava com furor. E, sem
mesmo atender às lindas moças que ali saracoteavam, aos bandos, afogueadas, de lenços flamejantes, o seio
farto coberto de ouro, e a imagem do santo espetada no chapéu - corremos, empurramos, furamos, saltamos
para o outro vagão, já reservado, marcado por um cartão com as iniciais de Jacinto. Imediatamente o trem
rolou. Pensei então no nosso Grilo, nas trinta e sete malas! E debruçado da portinhola avistei ainda junto ao
cunhal da estação, sob os eucaliptos, um monte de bagagens, e homens de boné agaloado que, diante delas,
bracejavam com desespero.
Murmurei, recaindo nas almofadas:
− Que serviço!
Jacinto, ao canto, sem descerrar os olhos, suspirou:
− Que maçada!
Toda uma hora deslizamos lentamente entre trigais e vinhedo; e ainda o sol batia nas vidraças, quente e
poeirento, quando chegamos à estação de Gondim, onde o procurador de Jacinto, o excelente Sousa, nos devia
esperar com cavalos para treparmos a serra até ao solar de Torges. Por trás do jardim da estação, todo florido
também de rosas e margaridas, Jacinto reconheceu logo as suas carruagens ainda empacotadas em lona.
Mas quando nos apeamos no pequeno cais branco e fresco - só houve em torno de nós solidão e
silêncio... Nem procurador, nem cavalos! O chefe da estação, a quem eu perguntara com ansiedade “se não
aparecera ali o sr. Sousa, se não conhecia o sr. Sousa”, tirou afavelmente o seu boné de galão. Era um moço
gordo e redondo, com cores de maçã-camoesa, que trazia sob o braço um volume de versos. “Conhecia
perfeitamente o sr. Sousa! Três semanas antes jogara ele a manilha com o sr. Sousa! Nessa tarde, porém,
infelizmente, não avistara o sr. Sousa!” O comboio desaparecera por detrás das fragas altas que ali pendem
sobre o rio. Um carregador enrolava o cigarro, assobiando. Rente da grade do jardim, uma velha, toda de
negro, dormitava agachada no chão, diante duma cesta de ovos. E o nosso Grilo, e as nossas bagagens!... O
chefe encolheu risonhamente os ombros nédios. Todos os nossos bens tinham encalhado, decerto, naquela
estação de roseiras brancas que tem um nome sonoro em ola. E nós ali estávamos, perdidos na serra agreste,
sem procurador, sem cavalos, sem Grilo, sem malas.
Para que esfiar miudamente o lance lamentável? Ao pé da estação, numa quebrada da serra, havia um
casal foreiro à quinta, onde alcançamos para nos levarem e nos guiarem a Torges, uma égua lazarenta, um
jumento branco, um rapaz e um podengo. E aí começamos a trepar, enfastiadamente, esses caminhos agrestes
- os mesmos, decerto, por onde vinham e iam, de monte a rio, os Jacintos do século XV. Mas, passada uma
trémula ponte de pau que galga um ribeiro todo quebrado por fragas (e onde abunda a truta adorável), os
nossos males esqueceram, ante a inesperada, incomparável beleza daquela serra bendita. O divino artista que
está nos Céus compusera, certamente, esse monte numa das suas manhãs de mais solene e bucólica
inspiração.
A grandeza era tanta como a graça... Dizer os vales fofos de verdura, os bosques quase sacros, os
pomares cheirosos e em flor, a frescura das águas cantantes, as ermidinhas branqueando nos altos, as rochas
musgosas, o ar de uma doçura de paraíso, toda a majestade e toda a lindeza - não é para mim, homem de
pequena arte. Nem creio mesmo que fosse para mestre Horácio. Quem pode dizer a beleza das coisas, tão
simples e inexprimível? Jacinto adiante, na égua tarda, murmurava:
− Ah! que beleza!
Eu atrás, no burro, com as pernas bambas, murmurava:
− Ah! que beleza!
Os espertos regatos riam, saltando de rocha em rocha. Finos ramos de arbustos floridos roçavam as
nossas faces, com familiaridade e carinho. Muito tempo um melro nos seguiu, de choupo a castanheiro,
assobiando os nossos louvores. Serra bem acolhedora e amável... Ah! que beleza!
Por entre ahs maravilhados chegamos a uma avenida de faias, que nos pareceu clássica e nobre.
Atirando uma nova vergastada ao burro e à égua, o nosso rapaz, com o seu podengo ao lado, gritava:
− Aqui é que estêmos!
E ao fundo das faias havia, com efeito, um portão de quinta, que um escudo de armas de velha pedra,
roída de musgo, grandemente afidalgava. Dentro já os cães ladravam com furor. E mal Jacinto, e eu atrás dele
no burro de Sancho, transpusemos o limiar solarengo, correu para nós, do alto da escadaria, um homem
branco, rapado como um clérigo, sem colete, sem jaleca, que erguia para o ar, num assombro, os braços
desolados. Era o caseiro, o Zé Brás. E logo ali, nas pedras do pátio, entre o latir dos cães, surdiu uma
tumultuosa história, que o pobre Brás balbuciava, aturdido, e que enchia a face de Jacinto de lividez e cólera.
O caseiro não esperava S. Ex.ª. Ninguém esperava S. Ex.ª. (Ele dizia sua inselência).
O procurador, o sr. Sousa, estava para a raia desde maio, a tratar a mãe que levara um coice de mula. E
decerto houvera engano, cartas perdidas... Porque o sr. Sousa só contava com S. Ex.ª em setembro, para a
vindima. Na casa nenhuma obra começara. E, infelizmente para S. Ex.ª, os telhados ainda estavam sem telhas,
e as janelas sem vidraças...
Cruzei os braços, num justo espanto. Mas os caixotes - esses caixotes remetidos para Torges, com
tanta prudência, em abril, repletos de colchões, de regalos, de civilização!... O caseiro, vago, sem
compreender, arregalava os olhos miúdos onde já bailavam lágrimas. Os caixotes?! Nada chegara, nada
aparecera. E na sua perturbação o Zé Brás procurava entre as arcadas do pátio, nas algibeiras das pantalonas...
Os caixotes? Não, não tinha os caixotes?
Foi então que o cocheiro de Jacinto (que trouxera os cavalos e as carruagens) se acercou, gravemente.
Esse era um civilizado - e acusou logo o governo. Já quando ele servia o sr. Visconde de S. Francisco se
tinham assim perdido, por desleixo do governo, da cidade para a serra, dois caixotes com vinho velho da
Madeira e roupa branca de senhora. Por isso ele, escarmentado, sem confiança na Nação, não largara as
carruagens - e era tudo o que restava a S. Ex.ª: o breque, a vitória, o cupé e os guizos. Somente, naquela rude
montanha, não havia estradas onde elas rolassem. E como só podiam subir para a quinta em grandes carros de
bois - ele lá as deixara embaixo, na estação, quietas, empacotadas na lona...
Jacinto ficara plantado diante de mim, com as mãos nos bolsos:
− E agora?
Nada restava senão recolher, cear o caldo do tio Zé Brás e dormir nas palhas que os fados nos
concedessem. Subimos. A escadaria nobre conduzia a uma varanda, toda coberta, em alpendre,
acompanhando a fachada do casarão e ornada, entre os seus grossos pilares de granito, por caixotes cheios de
terra, em que floriam cravos. Colhi um cravo. Entramos. E o meu pobre Jacinto contemplou, enfim, as salas
do seu solar! Eram enormes, com as altas paredes rebocadas a cal que o tempo e o abandono tinham
enegrecido, e vazias, desoladamente nuas, oferecendo apenas como vestígio de habitação e de vida, pelos
cantos, algum monte de cestos ou algum molho de enxadas. Nos tetos remotos de carvalho negro alvejavam
manchas - que era o céu já pálido do fim da tarde, surpreendido através dos buracos do telhado. Não restava
uma vidraça. Por vezes, sob os nossos passos, uma tábua podre rangia e cedia.
Paramos, enfim, na última, a mais vasta, onde havia duas arcas tulheiras para guardar o grão; e aí
depusemos, melancòlicamente, o que nos ficara de trinta e sete malas - os paletós alvadios, uma bengala e um
Jornal da Tarde. Através das janelas desvidraçadas, por onde se avistavam copas de arvoredos e as serras
azuis de além-rio, o ar entrava, montesino e largo, circulando plenamente como em um eirado, com aromas de
pinheiro bravo. E, lá debaixo, dos vales, subia, desgarrada e triste, uma voz de pegureira cantando. Jacinto
balbuciou:
− É horroroso!
Eu murmurei:
− É campestre!
IV
O ZÉ BRÁS, no entanto, com as mãos na cabeça, desaparecera a ordenar a ceia para suas inselências. O
pobre Jacinto, esbarrondado pelo desastre, sem resistência contra aquele brusco desaparecimento de toda a
civilização, caíra pesadamente sobre o poial duma janela, e dali olhava os montes. E eu, a quem aqueles ares
serranos e o jantar do pegureiro sabiam bem, terminei por descer à cozinha, conduzido pelo cocheiro, através
das escadas e becos, onde a escuridão vinha menos do crepúsculo do que de densas teias de aranha.
A cozinha era uma espessa massa de tons e formas negras, cor de fuligem, onde refulgia ao fundo,
sobre o chão de terra, uma fogueira vermelha que lambia grossas panelas de ferro, e se perdia em fumarada
pela grade escassa que no alto coava a luz. Aí um bando alvoroçado e palreiro de mulheres depenava frangos,
batia ovos, escarolava arroz, com santo fervor... Do meio delas o bom caseiro, estonteado, investiu para mim
jurando que “a ceia de suas inselências não demorava um credo”. E como eu o interrogava a respeito de
camas, o digno Brás teve um murmúrio vago e tímido sobre “enxergazinhas no chão”.
− É o que basta, sr. Zé Brás - acudi eu para o consolar.
− Pois assim Deus seja servido! - suspirou o homem excelente, que atravessava, nessa hora, o transe
mais amargo da sua vida serrana.
Voltando acima, com estas consolantes novas de ceia e cama, encontrei ainda o meu Jacinto no poial
da janela, embebendo-se todo da doce paz crepuscular, que lenta e caladamente se estabelecia sobre vela e
monte. No alto já tremeluzia uma estrela, a Vésper diamantina, que é tudo o que neste céu cristão resta do
esplendor corporal de Vénus! Jacinto nunca considerara bem aquela estrela - nem assistira a este majestoso e
doce adormecer das coisas. Esse enegrecimento de montes e arvoredos, casais claros fundindo-se na sombra,
um toque dormente de sino que vinha pelas quebradas, o cochilar das águas entre relvas baixas - eram para ele
como iniciações. Eu estava defronte, no outro poial. E senti-o suspirar como um homem que enfim descansa.
Assim nos encontrou nesta contemplação o Zé Brás, com o doce aviso de que estava na mesa a
ceiazinha. Era adiante, noutra sala mais nua, mais negra. E aí, o meu supercivilizado Jacinto recuou com um
pavor genuíno. Na mesa de pinho, recoberta com uma toalha de mãos, encostada à parede sórdida, uma vela
de sebo meio derretida num castiçal de latão alumiava dois pratos de louça amarela, ladeados por colheres de
pau e por garfos de ferro. Os copos, de vidro grosso e baço, conservavam o tom roxo do vinho que neles
passara em fartos anos de fartas vindimas. O covilhete de barro com as azeitonas deleitaria, pela sua singeleza
ática, o coração de Diógenes. Na larga broa estava cravado um facalhão... Pobre Jacinto!
Mas lá abancou resignado, e muito tempo, pensativamente, esfregou com o seu lenço o garfo negro e a
colher de pau. Depois, mudo, desconfiado, provou um gole curto do caldo, que era de galinha e rescendia.
Provou, e levantou para mim, seu companheiro e amigo, uns olhos largos que luziam, surpreendidos. Tornou
a sorver uma colherada de caldo, mais cheia, mais lenta... E sorriu, murmurando com espanto:
− Está bom!
Estava realmente bom: tinha fígado e tinha moela: o seu perfume enternecia. Eu, três vezes, com
energia, ataquei aquele caldo: foi Jacinto que rapou a sopeira. Mas já, arredando a broa, arredando a vela, o
bom Zé Brás pousara na mesa uma travessa vidrada, que trasbordava de arroz com favas. Ora, apesar da fava
(que os gregos chamaram ciboria) pertencer às épocas superiores da civilização, e promover tanto a sapiência
que havia em Sício, na Galácia, um templo dedicado a Minerva Ciboriana - Jacinto sempre detestara favas.
Tentou todavia uma garfada tímida. De novo os seus olhos, alargados pelo assombro, procuraram os meus.
Outra garfada, outra concentração.,. E eis que o meu dificílimo amigo exclama:
− Está óptimo!
Eram os picantes ares da serra? Era a arte deliciosa daquelas mulheres que embaixo remexiam as
panelas, cantando o Vira, meu bem? Não sei: − mas os louvores de Jacinto a cada travessa foram ganhando
em amplidão e firmeza. E diante do frango louro, assado no espeto de pau, terminou por bradar:
− Está divino!
Nada porém o entusiasmou como o vinho, o vinho caindo de alto, da grossa caneca verde, um vinho
gostoso, penetrante, vivo, quente, que tinha em si mais alma que muito poema ou livro santo! Mirando à luz
de sebo o copo rude que ele orlava de espuma, eu recordava o dia geórgico em que Virgílio, em casa de
Horácio, sob a ramada, cantava o fresco palhete da Rética. E Jacinto, com uma cor que eu nunca vira na sua
palidez schopenháurica, sussurrou logo o doce verso:
Rethica quo te carmina dicat.
Quem dignamente te cantará, vinho daquelas serras?!
Assim jantamos deliciosamente, sob os auspícios do Zé Brás. E depois voltamos para as alegrias
únicas da casa, para as janelas desvidraçadas, a contemplar silenciosamente um suntuoso céu de verão, tão
cheio de estrelas que todo ele parecia uma densa poeirada de ouro vivo, suspensa, imóvel, por cima dos
montes negros. Como eu observei ao meu Jacinto, na cidade nunca se olham os astros por causa dos
candeeiros - que os ofuscam: e nunca se entra por isso numa completa comunhão com o universo. O homem
nas capitais pertence à sua casa, ou se o impelem fortes tendências de sociabilidade, ao seu bairro. Tudo o
isola e o separa da restante natureza - os prédios obstrutores de seis andares, a fumaça das chaminés, o rolar
moroso e grosso dos ônibus, a trama encarceradora da vida urbana... Mas que diferença, num cimo de monte,
como Torges? Aí todas essas belas estrelas olham para nós de perto, rebrilhando, à maneira de olhos
conscientes, umas fixamente, com sublime indiferença, outras ansiosamente, com uma luz que palpita, uma
luz que chama, como se tentassem revelar os seus segredos ou compreender os nossos... E é impossível não
sentir uma solidariedade perfeita entre esses imensos mundos e os nossos pobres corpos. Todos somos obra da
mesma vontade. Todos vivemos da ação dessa vontade imanente. Todos, portanto, desde os Úranos até os
Jacintos, constituímos modos diversos de um ser único, e através das suas transformações somamos na mesma
unidade. Não há idéia mais consoladora do que esta - que eu, e tu, e aquele monte, e o Sol que, agora, se
esconde, somos moléculas do mesmo Todo, governadas pela mesma Lei, rolando para o mesmo Fim. Desde
logo se somem as responsabilidades torturantes do individualismo. Que somos nós? Formas sem força, que
uma Força impele. E há um descanso delicioso nesta certeza, mesmo fugitiva, de que se é o grão de pó
irresponsável e passivo que vai levado no grande vento, ou a gota perdida na torrente! Jacinto concordava,
sumido na sombra. Nem ele nem eu sabíamos os nomes desses astros admiráveis. Eu, por causa da maciça e
indesbastável ignorância de bacharel, com que saí do ventre de Coimbra, minha mãe espiritual. Jacinto,
porque na sua ponderosa biblioteca tinha trezentos e dezoito tratados sobre astronomia! Mas que nos
importava, de resto, que aquele astro além se chamasse Sírio e aquele outro Aldebarã? Que lhes importava a
eles que um de nós fosse José e o outro Jacinto? Éramos formas transitórias do mesmo ser eterno - e em nós
havia o mesmo Deus. E se eles também assim o compreendiam, estávamos ali, nós à janela num casarão
serrano, eles no seu maravilhoso infinito, perfazendo um ato sacrossanto, um perfeito ato de Graça - que era
sentir conscientemente a nossa unidade e realizar, durante um instante, na consciência, a nossa divinização.
Assim enevoadamente filosofávamos - quando Zé Brás, com uma candeia na mão, veio avisar que
“estavam preparadas as camas de suas inselências...” Da idealidade descemos gostosamente à realidade, e que
vimos então nós, os irmãos dos astros? Em duas salas tenebrosas e côncavas, duas enxergas, postas no chão, a
um canto, com duas cobertas de chita; à cabeceira um castiçal de latão, pousando sobre um alqueire: e aos
pés, como lavatório, um alguidar vidrado em cima de uma cadeira de pau!
Em silêncio, o meu supercivilizado amigo palpou a sua enxerga e sentiu nela a rigidez dum granito.
Depois, correndo pela face descaída os dedos murchos, considerou que, perdidas as suas malas, não tinha nem
chinelas nem roupão! E foi ainda o Zé Brás que providenciou, trazendo ao pobre Jacinto, para ele desafogar
os pés, uns tremendos tamancos de pau, e para ele embrulhar o corpo, docemente educado em Síbaris, uma
camisa da caseira, enorme, de estopa mais áspera que estamenha de penitente, e com folhos crespos e duros
como lavores em madeira... Para o consolar, lembrei que Platão, quando compunha o Banquete, Xenofonte,
quando comandava os Dez Mil, dormiam em piores catres. As enxergas austeras fazem as fortes almas - e é só
vestido de estamenha que se penetra no Paraíso.
− Tem você - murmurou o meu amigo, desatento e seco - alguma coisa que eu leia?... Eu não posso
adormecer sem ler!
Eu possuía apenas o número do Jornal da Tarde, que rasguei pelo meio e partilhei com ele
fraternalmente. E quem não viu então Jacinto, senhor de Torges, acaçapado à borda da enxerga, junto da vela
que pingava sobre o alqueire, com os pés nus encafuados nos grosssos socos, perdido dentro da camisa da
patroa, toda em folhos, percorrendo na metade do Jornal da Tarde, com os olhos turvos, os anúncios dos
paquetes - não pode saber o que é uma vigorosa e real imagem do desalento!
Assim o deixei - e daí a pouco, estendido na minha enxerga também espartana, subia, através dum
sonho jovial e erudito, ao planeta Vénus, onde encontrava, entre os olmos e os ciprestes, num vergel, Platão e
Zé Brás, em alta camaradagem intelectual, bebendo o vinho da Rética pelos copos de Torges! Travámos todos
três bruscamente uma controvérsia sobre o século XIX. Ao longe, por entre uma floresta de roseiras mais altas
que carvalhos, alvejavam os mármores duma cidade e ressoavam cantos sacros. Não recordo o que Xenofonte
sustentou acerca da civilização e do fonógrafo. De repente tudo foi turbado por fuscas nuvens, através das
quais eu distinguia Jacinto, fugindo num burro que ele impelia furiosamente com os calcanhares, com uma
vergasta, com berros, para os lados do Jasmineiro!
CEDO, de madrugada, sem rumor, para não despertar Jacinto que, com as mãos sobre o peito, dormia
plàcidamente no seu leito de granito - parti para Guiães. E durante três quietas semanas, naquela vila onde se
conservam os hábitos e as idéias do tempo de El-Rei D. Dinis, não soube do meu desconsolado amigo, que
decerto fugira dos seus tetos esburacados e remergulhara na civilização. Depois, por uma abrasada manhã de
agosto, descendo de Guiães, de novo trilhei a avenida de faias e entrei o portão solarengo de Torges, entre o
furioso latir dos rafeiros. A mulher do Zé Brás apareceu alvoroçada à porta da tulha. E a sua nova foi logo que
o ser. D. Jacinto (em Torges, o meu amigo tinha dom) andava lá embaixo com o Sousa nos campos de
Freixomil
− Então, ainda cá está o sr. D. Jacinto?!
Sua inselência ainda estava em Torges - e sua inselência ficava para a vindima!... Justamente eu
reparava que as janelas do solar tinham vidraças novas; e a um canto do pátio pousavam baldes de cal; uma
escada de pedreiro ficara arrimada contra a varanda; e num caixote aberto, ainda cheio de palha de empacotar,
dormiam dois gatos.
− E o Grilo apareceu?
− O sr. Grilo está no pomar, à sombra.
− Bem! e as malas?
− O sr. D. Jacinto já tem o seu saquinho de couro...
Louvado Deus! O meu Jacinto estava, enfim, provido de civilização! Subi contente. Na sala nobre,
onde o soalho fora composto e esfregado, encontrei uma mesa recoberta de oleado, prateleiras de pinho com
louça branca de Barcelos e cadeiras de palhinha, orlando as paredes muito caiadas que davam uma frescura de
capela nova. Ao lado, noutra sala, também de faiscante alvura, havia o conforto inesperado de três cadeiras de
verga da Madeira, com braços largos e almofadas de chita: sobre a mesa de pinho, o papel almaço, o
candeeiro de azeite, as penas de pato espetadas, num tinteiro de frade, pareciam preparadas para um estudo
calmo e ditoso de humanidades: e na parede, suspensa de dois pregos, uma estantezinha continha quatro ou
cinco livros, folheados e usados, o D. Quixote, um Virgílio, uma História de Roma, as Crônicas de Froissart.
Adiante era certamente o quarto de D. Jacinto, um quarto claro e casto de estudante, com um catre de ferro,
um lavatório de ferro, a roupa pendurada de cabides toscos. Tudo resplandecia de asseio e ordem. As janelas
cerradas defendiam do sol de Agosto, que escaldava fora os peitoris de pedra. Do soalho, borrifado de água,
subia uma fresquidão consoladora. Num velho vaso azul um molho de cravos alegrava e perfumava. Não
havia um rumor. Torges dormia no esplendor da sesta. E envolvido naquele repouso de convento remoto,
terminei por me estender numa cadeira de verga junto à mesa, abri languidamente o Virgílio, murmurando:
Fortunate Jacinthe! tu inter arva nota
Et fontes sacros frigus captabis opacum.
Já mesmo irreverentemente adormecera sobre o divino bucolista, quando me despertou um brado
amigo. Era o nosso Jacinto. E imediatamente o comparei a uma planta, meio murcha e estiolada, no escuro,
que fora profusamente regada e revivera em pleno sol. Não corcovava. Sobre a sua palidez de supercivilizado,
o ar da serra ou a reconciliação com a vida tinha espalhado um tom trigueiro e forte que o virilizava
soberbamente. Dos olhos, que na cidade eu lhe conhecera sempre crepusculares, saltava agora um brilho de
meio-dia, decidido e largo, que mergulhava francamente na beleza das coisas. Já não passava as mãos
murchas sobre a face - batia com elas rijamente na coxa... Que sei eu?! Era uma reencarnação. E tudo o que
me contou, pisando alegremente com os sapatos brancos o soalho, foi que se sentira, ao fim de três dias em
Torges, como desanuviado, mandara comprar um colchão macio, reunira cinco livros nunca lidos, e ali
estava...
− Para todo o verão?
− Para todo o sempre! E agora, homem das cidades, vem almoçar umas trutas que eu pesquei, e
compreende enfim o que é o Céu.
As trutas eram, com efeito, celestes. E apareceu também uma salada fria de couve-flor e vagens, e um
vinho branco de Azães... Mas quem condignamente vos cantará, comeres e beberes daquelas serras?
De tarde, finda a calma, passeamos pelos caminhos, coleando a vasta quinta, que vai de vales a
montes. Jacinto parava a contemplar com carinho os milhos altos. Com a mão espalmada e forte batia no
tronco dos castanheiros, como nas costas de amigos recuperados. Todo o fio de água, todo o tufo de erva, todo
o pé de vinha o ocupava como vidas filiais que cantavam em certos choupos. Exclamava enternecido:
− Que encanto, a flor do trevo!
À noite, depois de um cabrito assado no forno, a que mestre Horácio teria dedicado uma Ode (talvez
mesmo um Carme Heróico), conversamos sobre o Destino e a Vida. Eu citei, com discreta malícia,
Schopenhauer e o Ecclesiastes... Mas Jacinto ergueu os ombros, com seguro desdém. A sua confiança nesses
dois sombrios explicadores da vida desaparecera, e irremediavelmente, sem poder mais voltar, como uma
névoa que o Sol espalha. Tremenda tolice! afirmar que a vida se compõe, meramente, duma longa ilusão - é
erguer um aparatoso sistema sobre um ponto especial e estreito da vida, deixando fora do sistema toda a vida
restante, como uma contradição permanente e soberba. Era como se ele, Jacinto, apontando para uma urtiga,
crescida naquele pátio, declarasse, triunfalmente: − “Aqui está uma urtiga! Toda a quinta de Torges, portanto,
é uma massa de urtigas”. - Mas bastaria que o hóspede erguesse os olhos para ver as searas, os pomares e os
vinhedos!
De resto, desses dois ilustres pessimistas, um o alemão, que conhecia ele da vida - dessa vida de que
fizera, com doutoral majestade, uma teoria definitiva e dolente? Tudo o que pode conhecer quem, como este
genial farsante, viveu cinqüenta anos numa soturna hospedaria de província, levantando apenas os óculos dos
livros para conversar, à mesa redonda, com os alferes da guarnição! E o outro, o israelita, o homem dos
Cantares, o muito pedantesco rei de Jerusalém, só descobre que a vida é uma ilusão aos setenta e cinco anos,
quando o poder lhe escapa das mãos trêmulas e o seu serralho de trezentas concubinas se torna ridiculamente
supérfluo à sua carcaça frígida. Um dogmatiza funebremente sobre o que não sabe - e o outro sobre o que não
pode. Mas que se dê a esse bom Schopenhauer uma vida tão completa e cheia como a de César, e onde estará
o seu schopenhauerismo? Que se restitua a esse sultão, besuntado de literatura, que tanto edificou e
professorou em Jerusalém, a sua virilidade - e onde estará o Ecclesiastes? De resto, que importa bendizer ou
maldizer a vida? Afortunada ou dolorosa, fecunda ou vã, ela tem de ser vida. Loucos aqueles que, para a
atravessar, se embrulham desde logo em pesados véus de tristeza e desilusão, de sorte que na sua estrada tudo
lhe seja negrume, não só as léguas realmente escuras, mas mesmo aquelas em que cintila um sol amável. Na
terra tudo vive - e só o homem sente a dor e a desilusão da vida. E tanto mais as sente, quanto mais alarga e
acumula a obra dessa inteligência que o torna homem, e que o separa da restante natureza, impensante e
inerte. É no máximo de civilização que ele experimenta o máximo de tédio. A sapiência, portanto, está em
recuar até esse honesto mínimo de civilização, que consiste em ter um teto de colmo, uma leira de terra e o
grão para nela semear. Em resumo, para reaver a felicidade, é necessário regressar ao Paraíso - e ficar lá,
quieto, na sua folha de vinha, inteiramente desguarnecido de civilização, contemplando o anho aos saltos
entre o tomilho, e sem procurar, nem com o desejo, a árvore funesta da Ciência! Dixi!
Eu escutava, assombrado, este Jacinto novíssimo. Era verdadeiramente uma ressurreição no magnífico
estilo de Lázaro. Ao surge et ambula que lhe tinham sussurado as águas e os bosques de Torges, ele erguia-se
do fundo da cova do Pessimismo, desembaraçava-se das suas casacas de Poole, et ambulabat, e começava a
ser ditoso. Quando recolhi ao meu quarto, àquelas horas honestas que convém ao campo e ao Optimismo,
tomei entre as minhas a mão já firme do meu amigo e, pensando que ele enfim alcançara a verdadeira realeza,
porque possuía a verdadeira liberdade, gritei-lhe os meus parabéns à maneira do moralista de Tíbure:
Vive et regna, fortunate Jacinthe!
Daí a pouco, através da porta aberta que nos separava, senti uma risada fresca, moça, genuína e
consolada. Era Jacinto que lia o D. Quixote. Oh bem-aventurado Jacinto! Conservava o agudo poder de
criticar, e recuperara o dom divino de rir!
Quatro anos vão passados. Jacinto ainda habita Torges. As paredes do seu solar continuam bem
caiadas, mas nuas.
De Inverno enverga um gabão de briche e acende um braseiro. Para chamar o Grilo ou a moça, bate as
mãos, como fazia Catão. Com os seus deliciosos vagares, já leu a Ilíada. Não faz a barba. Nos caminhos
silvestres, pára e fala com as crianças. Todos os casais da serra o bendizem. Oiço que vai casar com uma
forte, sã e bela rapariga de Guiães. Decerto crescerá ali uma tribo, que será grata ao Senhor!
Como ele, recentemente, me mandou pedir livros da sua livraria (uma Vida de Buda, uma História da
Grécia e as obras de S. Francisco de Sales), fui, depois destes quatro anos, ao Jasmineiro deserto. Cada passo
meu sobre os fofos tapetes de Caramânia soou triste como num chão de mortos. Todos os brocados estavam
engelhados, esgaçados. Pelas paredes pendiam, como olhos fora de órbitas, os botões elétricos das
campainhas e das luzes: − e havia vagos fios de arame, soltos, enroscados, onde a aranha regalada e reinando
tecera teias espessas. Na livraria, todo o vasto saber dos séculos jazia numa imensa mudez, debaixo duma
imensa poeira. Sobre as lombadas dos sistemas filosóficos alvejava o bolor: vorazmente a traça devastara as
Histórias Universais: errava ali um cheiro mole de literatura apodrecida: − e eu abalei, com o lenço no nariz,
certo de que naqueles vinte mil volumes não restava uma verdade viva! Quis lavar as mãos, maculadas pelo
contato com estes detritos de conhecimentos humanos. Mas os maravilhosos aparelhos do lavatório, da sala de
banho, enferrujados, perros, dessoldados, não largaram uma gota de água; e, como chovia nessa tarde de abril,
tive de sair à varanda, pedir ao Céu que me lavasse.
Ao descer, penetrei no gabinete de trabalho de Jacinto e tropecei num montão negro de ferragens,
rodas, lâminas, campainhas, parafusos... Entreabri a janela e reconheci o telefone, o teatrofone, o fonógrafo,
outros aparelhos, tombados das suas peanhas, sórdidos, desfeitos, sob a poeira dos anos. Empurrei com o pé
esse lixo do engenho humano. A máquina de escrever, escancarada, com os buracos negros marcando as letras
desarraigadas, era como uma boca alvar e desdentada. O telefone parecia esborrachado, enrodilhado nas suas
tripas de arame. Na trompa do fonógrafo, torta, esbeiçada, para sempre muda, fervilhavam carochas. E ali
jaziam, tão lamentáveis e grotescas, aquelas geniais invenções, que eu saí rindo, como duma enorme facécia,
daquele supercivilizado palácio.
A chuva de abril secara: os telhados remotos da cidade negrejavam sobre um poente de carmesim e
ouro. E, através das ruas mais frescas, eu ia pensando que este nosso magnífico século XIX se assemelharia,
um dia, àquele Jasmineiro abandonado e que outros homens, com uma certeza mais pura do que é a Vida e a
Felicidade, dariam, como eu, com o pé no lixo da supercivilização e, como eu, ririam alegremente da grande
ilusão que findara, inútil e coberta de ferrugem.
Àquela hora, decerto, Jacinto, na varanda, em Torges, sem fonógrafo e sem telefone, reentrado na
simplicidade, via, sob a paz lenta da tarde, ao tremeluzir da primeira estrela, a boiada recolher entre o canto
dos boieiros.
O Tesouro
Os três irmãos de Medranhos, Rui, Guannes e Rostabal, eram então, em todo o Reino das Astúrias, os fidalgos
mais famintos e os mais remendados.
Nos paços de Medranhos, a que o vento da serra levara vidraça e telha, passavam eles as tardes desse
inverno, engelhados nos seus pelotes de camelão, batendo as solas rotas sobre as lajes da cozinha, diante da
vasta lareira negra, onde desde muito não estalava lume, nem fervia a panela de ferro. Ao escurecer
devoravam uma côdea de pão negro, esfregada com alho. Depois, sem candeia, através do pátio, fendendo a
neve, iam dormir à estrebaria, para aproveitar o calor das três éguas lazarentas que, esfaimadas como eles,
roíam as traves da manjedoura. E a miséria tornara esses senhores mais bravios que lobos.
Ora, na Primavera, por uma silenciosa manhã de domingo, andando todos os três na mata de
Roquelanes a espiar pegadas de caça e a apanhar tortulhos entre os robles, enquanto as três éguas pastavam a
relva nova de abril, − os irmãos de Medranhos encontraram, por trás de uma mouta de espinheiros, numa cova
de rocha, um velho cofre de ferro. Como se o resguardasse uma torre segura, conservava as suas três chaves
nas suas três fechaduras. Sobre a tampa, mal decifrável através da ferrugem, corria um dístico em letras
árabes. E dentro, até às bordas, estava cheio de dobrões de ouro!
No terror e esplendor da emoção, os três senhores ficaram mais lívidos do que círios. Depois,
mergulhando furiosametne as mãos no ouro, estalaram a rir, num riso de tão larga rajada, que as folhas tenras
dos olmos, em roda, tremiam... E de novo recuaram, bruscamente se encararam, com os olhos a flamejar,
numa desconfiança tão desabrida que Guannes e Rostabal apalpavam nos cintos os cabos das grandes facas.
Então Rui, que era gordo e ruivo, e o mais avisado, ergueu os braços, como um árbitro, e começou por decidir
que o tesouro, ou viesse de Deus ou do demônio, pertencia aos três, e entre eles se repartiria, rigidamente,
pesando-se o ouro em balanças. Mas como poderiam carregar para Medranhos, para os cimos da serra, aquele
cofre tão cheio? Nem convinha que saíssem da mata com o seu bem, antes de cerrar a escuridão. Por isso ele
entendia que o mano Guannes, como mais leve, devia trotar para a vila vizinha de Retortilho, levando já ouro
na bolsinha, a comprar três alforges de couro, três maquias de cevada, três empadões de carne e três botelhas
de vinho. Vinho e carne eram para eles, que não comiam desde a véspera: a cevada era para as éguas. E assim
refeitos, senhores e cavalgaduras, ensacariam o ouro nos alforges e subiriam para Medranhos, sob a segurança
da noite sem Lua.
− Bem tramado! - gritou Rostabal, homem mais alto que um pinheiro, de longa guedelha e com uma
barba que lhe caía desde os olhos raiados de sangue até à fivela do cinturão.
Mas Guannes não se arredava do cofre, enrugado, desconfiado, puxando entre os dedos a pele negra do
seu pescoço de grou. Por fim, brutalmente:
− Manos! O cofre tem três chaves... Eu quero fechar a minha fechadura e levar a minha chave!
− Também eu quero a minha, mil raios! - rugiu logo Rostabal.
Rui sorriu. Decerto, decerto! A cada dono do ouro cabia uma das chaves que o guardavam. E cada um
em silêncio, agachado ante o cofre, cerrou a sua fechadura com força. Imediatamente Guannes, desanuviado,
saltou na égua, meteu pela vereda de olmos, a caminho de Retortilho, atirando aos ramos a sua cantiga
costumada e dolente:
Olé! Olé!
Sale la cruz de la iglesia,
Vestida de negro luto...
II
NA clareira, em frente à mouta que encobria o tesouro (e que os três tinham desbastado a cutiladas), um fio de
água, brotando entre rochas, caía sobre uma vasta laje encravada, onde fazia como um tanque, claro e quieto,
antes de se escoar para as relvas altas. E ao lado, na sombra de uma faia, jazia um velho pilar de granito,
tombado e musgoso. Ali vieram sentar-se Rui e Rostabal, com os seus tremendos espadões entre os joelhos.
As duas éguas tosavam a boa erva pintalgada de papoilas e botões de ouro. Pela ramaria andava um melro a
assobiar. Um cheiro errante de violetas adoçava o ar luminoso. E Rostabal, olhando o sol, bocejava com
fome.
Então Rui, que tirara o sombrero e lhe cofiava as velhas plumas roxas, começou a considerar, na sua
fala avisada e mansa, que Guannes, nessa manhã, não quisera descer com eles à mata de Roquelanes. E assim
era a sorte ruim! Pois que se Guannes tivesse quedado em Medranhos, só eles dois teriam descoberto o cofre,
e só entre eles dois se dividiria o ouro! Grande pena! Tanto mais que a parte de Guannes seria em breve
dissipada, com rufiões, aos dados, pelas tavernas.
− Ah! Rostabal, Rostabal! Se Guannes, passando aqui sozinho, tivesse achado este ouro, não dividia
conosco, Rostabal!
O outro rosnou surdamente e com furor, dando um puxão às barbas negras:
− Não, mil raios! Guannes é sôfrego... Quando o ano passado, se te lembras, ganhou os cem ducados
ao espadeiro de Fresno, nem me quis emprestar três para eu comprar um gibão novo!
− Vês tu! - gritou Rui, resplandecendo.
Ambos se tinham erguido do pilar de granito, como levados pela mesma idéia, que os deslumbrava. E,
através das suas largas passadas, as ervas altas silvavam.
− E para quê - prosseguia Rui. − Para que serve todo o ouro que nos leva! Tu não o ouves, de noite,
como tosse! Ao redor da palha em que dorme, todo o chão está negro do sangue que escarra! Não dura até às
outras neves, Rostabal! Mas até lá terá dissipado os bons dobrões que deviam ser nossos, para levantarmos a
nossa casa, e para tu teres ginetes, e armas, e trajes nobres, e o teu terço de solarengos, como compete a quem
é, como tu, o mais velho dos de Medranhos...
− Pois que morra, e morra hoje! - bradou Rostabal.
− Queres!
Vivamente, Rui agarrara o braço do irmão e apontava para a vereda de olmos, por onde Guannes
partira cantando:
− Logo adiante, ao fim do trilho, há um sítio bom, nos silvados. E hás-de ser tu, Rostabal, que és o
mais forte e o mais destro. Um golpe de ponta pelas costas. E é justiça de Deus que seja tu, que muitas vezes,
nas tavernas, sem pudor, Guannes te tratava de cerdo e de torpe, por não saberes a letra nem os números.
− Malvado!
− Vem!
Foram. Ambos se emboscaram por trás dum silvado, que dominava o atalho, estreito e pedregoso,
como um leito de torrente. Rostabal, assolapado na vala, tinha já a espada nua. Um vento leve arrepiou na
encosta as folhas dos álamos - e sentiram o repique leve dos sinos de Retortilho. Rui, coçando a barba,
calculava as horas pelo sol, que já se inclinava para as serras. Um bando de corvos passou sobre eles,
grasnando. E Rostabal, que lhes seguira o voo, recomeçou a bocejar, com fome, pensando nos empadões e no
vinho que o outro trazia nos alforges.
Enfim! Alerta! Era, na vereda, a cantiga dolente e rouca, atirada aos ramos:
Olé! Olé!
Sale la cruz de la iglesia
Toda vestida de negro...
Rui murmurou: − “Na ilharga! Mal que passe!” O chouto da égua bateu o cascalho, uma pluma num
sombrero vermelhejou por sobre a ponta das silvas.
Rostabal rompeu de entre a sarça por uma brecha, atirou o braço, a longa espada; − e toda a lâmina se
embebeu molemente na ilharga de Guannes, quando ao rumor, bruscamente, ele se virara na sela. Com um
surdo arranco, tombou de lado, sobre as pedras. Já Rui se arremessava aos freios da égua: − Rostabal, caindo
sobre Guannes, que arquejava, de novo lhe mergulhou a espada, agarrada pela folha como um punhal, no
peito e na garganta.
− A chave! - gritou Rui.
E arrancada a chave do cofre ao seio do morto, ambos largaram pela vereda - Rostabal adiante,
fugindo, com a pluma do sombrero quebrada e torta, a espada ainda nua entalada sob o braço, todo encolhido,
arrepiado com o sabor de sangue que lhe espirrara para a boca; Rui, atrás, puxando desesperadamente os
freios da égua, que, de patas fincadas no chão pedregoso, arreganhando a longa dentuça amarela, não queria
deixar o seu amo assim estirado, abandonado, ao comprido das sebes.
Teve de lhe espicaçar as ancas lazarentas com a ponta da espada: − e foi correndo sobre ela, de lâmina
alta, como se perseguisse um mouro, que desembocou na clareira onde o sol já não dourava as folhas.
Rostabal arremessara para a relva o sombrero e a espada; e debruçado sobre a laje escavada em tanque, de
mangas arregaçadas, lavava, ruidosamente, a face e as barbas.
A égua, quieta, recomeçou a pastar, carregada com os alforjes novos que Guannes comprara em
Retortilho. Do mais largo, abarrotado, surdiam dois gargalos de garrafas. Então Rui tirou, lentamente, do
cinto, a sua larga navalha. Sem um rumor na selva espessa, deslizou até Rostabal, que resfolgava, com as
longas barbas pingando. E serenamente, como se pregasse uma estaca num canteiro, enterrou a folha toda no
largo dorso dobrado, certeira sobre o coração.
Rostabal caiu sobre o tanque, sem um gemido, com a face na água, os longos cabelos flutuando na
água. A sua velha escarcela de couro ficara entalada sob a coxa. Para tirar de dentro a terceira chave do cofre,
Rui solevou o corpo - e um sangue mais grosso jorrou, escorreu pela borda do tanque, fumegando.
III
AGORA eram dele, só dele, as três chaves do cofre!... e Rui, alargando os braços, respirou deliciosamente.
Mal a noite descesse, com o ouro metido nos alforges, guiando a fila das éguas pelos trilhos da serra, subiria a
Medranhos e enterraria na adega o seu tesouro! E quando ali na fonte, e além rente aos silvados, só restassem,
sob as neves de dezembro, alguns ossos sem nome, ele seria o magnífico senhor de Medranhos, e na capela
nova do solar renascido mandaria dizer missas ricas pelos seus dois irmãos mortos... Mortos, como? Como
devem morrer os Medranhos - a pelejar contra o Turco!
Abriu as três fechaduras, apanhou um punhado de dobrões, que fez retinir sobre as pedras. Que puro
ouro, de fino quilate! E era o seu ouro! Depois de examinar a capacidade dos alforges - e encontrando as duas
garrafas de vinho, e um gordo capão assado, sentiu uma imensa fome. Desde a véspera só comera uma lasca
de peixe seco. E há quanto tempo não provava capão!
Com que delícia se sentou na relva, com as penas abertas, e entre elas a ave loura, que rescendia, e o
vinho cor de âmbar! Ah! Guannes fora bom mordomo - nem esquecera azeitonas. Mas por que trouxera ele,
para três convivas, só duas garrafas? Rasgou uma asa do capão: devorava a grandes dentadas. A tarde descia,
pensativa e doce, com nuvenzinhas cor-de-rosa. Para além, na vereda, um bando de corvos grasnava. As
éguas fartas dormitavam, com o focinho pendido. E a fonte cantava, lavando o morto.
Rui ergueu à luz a garrafa de vinho. Com aquela cor velha e quente, não teria custado menos de três
maravedis. E pondo o gargalo à boca, bebeu em sorvos lentos, que lhe faziam ondular o pescoço peludo. Oh
vinho bendito, que tão prontamente aquecia o sangue! Atirou a garrafa vazia - destapou outra. Mas, como era
avisado, não bebeu porque a jornada para a serra, com o tesouro, requeria firmeza e acerto. Estendido sobre o
cotovelo, descansando, pensava em Medranhos coberto de telha nova, nas altas chamas da lareira por noites
de neve, e o seu leito com brocados, onde teria sempre mulheres.
De repente, tomado de uma ansiedade, teve pressa de carregar os alforges. Já entre os troncos a sombra
se adensava. Puxou uma das éguas para junto do cofre, ergueu a tampa, tomou um punhado de ouro... mas
oscilou, largando os dobrões que retilintaram no chão, e levou as duas mãos aflitas ao peito. Que é, D. Rui!
Raios de Deus! era um lume, um lume vivo, que se lhe acendera dentro, lhe subia até às goelas. Já rasgara o
gibão, atirava os passos incertos e, a arquejar, com a língua pendente, limpava as grossas bagas dum suor
horrendo que o regelava como neve. Oh Virgem Mãe! Outra vez o lume, mais forte, que alastrava, o roía!
Gritou:
− Socorro! Além! Guannes! Rostabal!
Os seus braços torcidos batiam o ar desesperadamente. E a chama dentro galgava - sentia os ossos a
estalarem como as traves duma casa em fogo.
Cambaleou até à fonte para apagar aquela labareda, tropeçou sobre Rostabal; e foi com o joelho
fincado no morto, arranhando a rocha, que ele, entre uivos, procurava o fio de água, que recebia sobre os
olhos, pelos cabelos. Mas a água mais o queimava, como se fosse um metal derretido. Recuou, caiu para cima
da relva que arrancava aos punhados, e que mordia, mordendo os dedos, para lhe sugar a frescura. Ainda se
ergueu, com uma baba densa a escorrer-lhe nas barbas: e de repente, esbugalhando pavorosamente os olhos,
berrou como se compreendesse enfim a traição, todo o horror:
− É veneno!
Oh! D. Rui, o avisado, era veneno! Porque Guannes, apenas chegara a Retortilho, mesmo antes de
comprar os alforges, correra cantando a uma viela, por detrás da catedral, a comprar ao velho droguista judeu
o veneno que, misturado ao vinho, o tornaria a ele, a ele somente, dono de todo o tesouro.
Anoiteceu. Dois corvos de entre o bando que grasnava, além nos silvados, já tinham pousado sobre o
corpo de Guannes. A fonte, cantando, lavava o outro morto. Meio enterrada na erva, toda a face de Rui se
tornara negra. Uma estrelinha tremeluzia no céu.
O tesouro ainda lá está, na mata de Roquelanes.
Frei Genebro
NESSE tempo ainda vivia, na sua solidão das montanhas da Úmbria, o divino Francisco de Assis - e já por
toda a Itália se louvava a santidade de Frei Genebro, seu amigo e seu discípulo.
Frei Genebro, na verdade,completara a perfeição em todas as virtudes evangélicas. Pela abundância e
perpetuidade da Oração, ele arrancava da sua alma as raízes mais miúdas do Pecado, e tornava-a limpa e
cândida como um desses celestes jardins em que o solo anda regado pelo Senhor, e onde só podem brotar
açucenas. A sua penitência, durante vinte anos de claustro, fora tão dura e alta que já não temia o Tentador; e
agora, só com o sacudir a manga do hábito, rechaçava as tentações, as mais pavorosas ou as mais deliciosas,
como se fossem apenas moscas importunas. Benéfica e universal à maneira de um orvalho de Verão, a sua
caridade não se derramava somente sobre as misérias do pobre, mas sobre as melancolias do rico. Na sua
humilíssima humildade não se considerava nem o igual dum verme. Os bravios barões, cujas negras torres
esmagavam a Itália, acolhiam reverentemente e curvavam a cabeça a esse franciscano descalço e mal
remendado que lhes ensinava a mansidão. Em Roma, em S. João de Latrão, o papa Honório beijara as feridas
de cadeias que lhe tinham ficado nos pulsos, do ano em que na Mourama, por amor dos escravos, padecera a
escravidão. E como nessas idades os anjos ainda viajavam na terra, com as asas escondidas, arrimados a um
bordão, muitas vezes, trilhando uma velha estrada pagã ou atravessando uma selva, ele encontrava um moço
de inefável formosura, que lhe sorria e murmurava:
− Bons-dias, irmão Genebro!
Ora um dia, indo esse admirável mendicante de Espoleto para Terni, e avistando no azul e no sol da
manhã, sobre uma colina coberta de carvalhos, as ruínas do castelo de Otofrid, pensou no seu amigo Egídio,
antigo noviço como ele no mosteiro de Santa Maria dos Anjos, que se retirara àquele ermo para se avizinhar
mais de Deus, e ali habitava uma cabana de colmo, junto das muralhas derrocadas, cantando e regando as
alfaces do seu horto, porque a sua virtude era amena. E como mais de três anos tinham passado desde que
visitara o bom Egídio, largou a estrada, passou embaixo, no vale, sobre as alpondras, o riacho que fugia entre
os aloendros em flor, e começou a subir, lentamente, a colina frondosa. Depois da poeira e ardor do caminho
de Espoleto, era doce a larga sombra dos castanheiros e a relva que lhe refrescava os pés doridos. A meia
encosta, numa rocha onde se esguedelhavam silvados, sussurrava e luzia um fio de água. Estendido ao lado,
nas ervas húmidas, dormia, ressonando consoladamente, um homem, que decerto por ali guardava porcos,
porque vestia um grosso surrão de couro e trazia, pendurada da cinta, uma buzina de porqueiro. O bom frade
bebeu de leve, afugentou os moscardos que zumbiam sobre a rude face adormecida e continuou a trepar a
colina, com o seu alforge, o seu cajado, agradecendo ao Senhor aquela água, aquela sombra, aquela frescura,
tantos bens inesperados. Em breve avistou, com efeito, o rebanho de porcos, espalhados sob as frondes,
roncando e foçando as raízes, uns magros e agudos, de cerdas duras, outros redondos, com o focinho curto
afogado em gordura, e os bacorinhos correndo em torno às tetas das mães, luzidios e cor-de-rosa.
Frei Genebro pensou nos lobos e lamentou o sono do pastor descuidado. No fim da mata começava a
rocha, onde os restos do castelo Lombardo se erguiam, revestidos de hera, conservando ainda alguma seteira
esburacada sob o céu ou, numa esquina de torre, uma goteira que, esticando o pescoço de dragão, espreitava
por meio das silvas bravas.
A cabana do ermitão, telhada de colmo que lascas de pedra seguravam, apenas se percebia, entre
aqueles escuros granitos, pela horta que em frente verdejava, com os seus talhões de couve e estacas de
feijoal, entre alfazema cheirosa. Egídio não andaria afastado, porque sobre o murozinho de pedra solta ficara
pousado o seu cântaro, o seu podão e a sua enxada. E docemente, para o não importunar, se àquela hora de
sesta estivesse recolhido e orando, Frei Genebro empurrou a porta de pranchas velhas, que não tinha loquete
para ser mais hospitaleira.
− Irmão Egídio!
Do fundo da choça rude, que mais parecia cova de bicho, veio um lento gemido:
− Quem me chama? Aqui neste canto, neste canto a morrer!... A morrer, meu irmão!
Frei Genebro acudiu em grande dó; encontrou o bom ermitão estirado num monte de folhas secas,
encolhido em farrapos, e tão definhado que a sua face, outrora farta e rosada, era como um pedacinho de
velho pergaminho muito enrugado, perdido entre os flocos das barbas brancas. Com infinita caridade e doçura
o abraçou.
− E há quanto tempo, há quanto tempo neste abandono, irmão Egídio?
Louvado Deus, desde a véspera! Só na véspera, à tarde, depois de olhar uma derradeira vez para o Sol
e para a a sua horta, se viera estender naquele canto para acabar... Mas havia meses que com ele entrara um
cansaço, que nem podia segurar a bilha cheia quando voltava da fonte.
− E dizei, irmão Egídio, pois que o Senhor me trouxe, que posso eu fazer pelo vosso corpo? Pelo
corpo, digo; que pela alma bastante tendes vós feito na virtude desta solidão!
Gemendo, arrepanhando para o peito as folhas secas em que jazia, como se fossem dobras dum lençol,
o pobre ermitão murmurou:
− Meu bom Frei Genebro, não sei se é pecado, mas toda esta noite, em verdade vos confesso, me
apeteceu comer um pedaço de carne, um pedaço de porco assado!... Mas será pecado?
Frei Genebro, com a sua imensa misericórdia, logo o tranquilizou. Pecado? Não, certamente! Aquele
que, por tortura, recusa ao seu corpo um contentamento honesto, desagrada ao Senhor. Não ordenava ele aos
seus discípulos que comessem as boas coisas da terra? O corpo é servo; e está na vontade divina que as suas
forças sejam sustentadas, para que preste ao espírito, seu amo, bom e leal serviço. Quando Frei Silvestre, já
tão doentinho, sentira aquele longo desejo de uvas moscatéis, o bom Francisco de Assis logo o conduziu à
vinha, e por suas mãos lhe apanhou os melhores cachos, depois de os abençoar para serem mais sumarentos e
mais doces...
− É um pedaço de porco assado que apeteceis? - exclamava risonhamente o bom Frei Genebro,
acariciando as mãos transparentes do ermitão. - Pois sossegai, irmão querido, que bem sei como vos vou
contentar!
E imediatamente, com os olhos a reluzir de caridade e de amor, agarrou o afiado podão que pousava
sobre o muro da horta. Arregaçando as mangas do hábito, e mais ligeiro que um gamo, porque era aquele um
serviço do Senhor, correu pela colina, até aos densos castanheiros onde encontrara o rebanho de porcos. E aí,
andando sorrateiramente de tronco para tronco, surpreendeu um bacorinho desgarrado que focava a bolota,
desabou sobre ele e, enquanto lhe sufocava o focinho e os gritos, decepou, com dois golpes certeiros do
podão, a perna por onde o agarrara. Depois, com as mãos salpicadas de sangue, a perna do porco bem alta a
pingar sangue, deixando a rês a arquejar numa poça de sangue, o piedoso homem galgou a colina, correu à
cabana, gritou para dentro alegremente:
− Irmão Egídio, a peça de carne já o Senhor a deu! E eu, em Santa Maria dos Anjos, era bom
cozinheiro.
Na horta do ermitão arrancou uma estaca do feijoal, que, com o podão sangrento, aguçou em espeto.
Entre duas pedras acendeu uma fogueira. Com zeloso carinho assou a perna do porco. Tanta era a sua
caridade que para dar a Egídio todos os antegostos daquele banquete, raro em terra de mortificação, anunciava
com vozes festivas e de boa promessa:
− Já vai alourando o porquinho, irmão Egídio! A pele já tosta, meu santo!
Entrou enfim na choça, triunfalmente, com o assado que fumegava e rescendia, cercado de frescas
folhas de alface. Ternamente, ajudou a sentar o velho, que tremia e se babava de gula. Arredou das pobres
faces maceradas os cabelos que o suor da fraqueza empastara. E, para que o bom Egídio se não vexasse com a
sua voracidade e tão carnal apetite, ia afirmando, enquanto lhe partia as febras gordas, que também ele
comeria regaladamente daquele excelente porco, se não tivesse almoçado à farta na Locanda dos Três
Caminhos
Mas nem bocado agora me podia entrar, meu irmão! Com uma galinha inteira me atochei! E depois
uma fritada de ovos! E de vinho branco, um quartilho!
E o santo homem mentia santamente - porque, desde madrugada, não provara mais que um magro
caldo de ervas, recebido por esmola à cancela de uma granja. Farto, consolado, Egídio deu um suspiro, recaiu
no seu leito de folha seca. Que bem lhe fizera, que bem lhe fizera! O Senhor, na sua justiça, pagasse a seu
irmão Genebro aquele pedaço de porco! Até sentia a alma mais rija para a temerosa jornada... E o ermitão
com as mãos postas, Genebro ajoelhado, ambos louvaram, ardentemente, o Senhor que, a toda a necessidade
solitária, manda de longe o socorro.
Então, tendo coberto Egídio com um pedaço de manta e posto, a seu lado, a bilha cheia de água fresca,
e tapado, contra as aragens da tarde, a fresta da cabana, Frei Genebro, debruçado sobre ele, murmurou:
− Meu bom irmão, vós não podeis ficar neste abandono... Eu vou levado por obra de Jesus, que não
admite tardança. Mas passarei no convento de Sambricena e darei recado para que um noviço venha e cuide
de vós com amor, no vosso transe. Deus vos vele entretanto, meu irmão; Deus vos sossegue e vos ampare
com a sua mão direita!
Mas Egídio cerrara os olhos, nem se moveu, ou porque adormecera, ou porque o seu espírito, tendo
pago aquele derradeiro salário ao corpo, como a um bom servidor, para sempre partira, finda a sua obra na
terra. Frei Genebro abençoou o velho, tomou o seu bordão, desceu a colina dos grandes carvalhos. Sob a
fronde, para os lados onde andava o rebanho, a buzina do porqueiro ressoava agora num toque de alarme e de
furor. Decerto acordara, descobrira o seu porco mutilado... Estugando o passo, Frei Genebro pensava quanto
era magnânimo o Senhor em permitir que um homem, feito à sua imagem augusta, recebesse tão fácil
consolação duma perna de cerdo assada entre duas pedras.
Retomou a estrada, marchou para Terni. E prodigiosa foi, desde esse dia, a atividade da sua virtude.
Através de toda a Itália, sem descanso, pregou o Evangelho Eterno, adoçando a aspereza dos ricos, alargando
a esperança dos pobres. O seu imenso amor ia ainda para além dos que sofrem, até àqueles que pecam,
oferecendo um alívio a cada dor, estendendo um perdão a cada culpa: e com a mesma caridade com que
tratava os leprosos, convertia os bandidos. Durante as invernias e a neve, vezes inumeráveis dava, aos
mendigos, a sua túnica, as suas alpercatas; os abades dos mosteiros ricos, as damas devotas de novo o
vestiam, para evitar o escândalo da sua nudez através das cidades; e sem demora, na primeira esquina, ante
qualquer esfarrapado, ele se despojava sorrindo. Para remir servos que penavam sob um amo fero, penetrava
nas igrejas, arrancava do altar os candelabros de prata, afirmando, jovialmente, que mais apraz a Deus uma
alma liberta que uma tocha acesa.
Cercado de viúvas, de crianças famintas, invadia as padarias, os açougues, até as tendas dos cambistas,
e reclamava imperiosamente, em nome de Deus, a parte dos deserdados. Sofrer, sentir a humilhação, eram,
para ele, as únicas alegrias completas: nada o deliciava mais do que chegar de noite, molhado, esfaimado,
tiritando, a uma opulenta abadia feudal e ser repelido da portaria como um mau vagabundo: só então,
agachado nos lodos do caminho, mastigando um punhado de ervas cruas, ele se reconhecia verdadeiramente
irmão de Jesus, que não tivera também, como têm sequer os bichos do mato, um covil para se abrigar. Quando
um dia, em Perusa, as confrarias saíram ao seu encontro, com bandeiras festivas, ao repique dos sinos, ele
correu para um monte de esterco, onde se rolou e se sujou, para que daqueles que o vinham engrandecer só
recebesse compaixão e escárnio. Nos claustros, nos descampados, em meio das multidões, durante as lides
mais pesadas, orava constantemente, não por obrigação, mas porque na prece encontrava um deleite adorável.
Deleite maior, porém, era, para o franciscano, ensinar e servir. Assim, longos anos errou entre os homens,
vertendo o seu coração como a água de um rio, oferecendo os seus braços como alavancas incansáveis; e tão
depressa, numa ladeira deserta, aliviava uma pobre velha da sua carga de lenha, como numa cidade revoltada,
onde reluzissem armas, se adiantava, com o peito aberto, e amansava as discórdias.
Enfim, uma tarde, em véspera de Páscoa, estando a descansar nos degraus de Santa Maria dos Anjos,
avistou de repente, no ar liso e branco, uma vasta mão luminosa que sobre ele se abria e faiscava. Pensativo,
murmurou:
− Eis a mão de Deus, a sua mão direita, que se estende para me acolher ou para me repelir.
Deu logo a um pobre, que ali rezava a Ave-Maria, com a sua sacola nos joelhos, tudo o que no mundo
lhe restava, que era um volume do Evangelho, muito usado e manchado das suas lágrimas. No domingo, na
igreja, ao levantar da Hóstia, desmaiou. Sentindo então que ia terminar a sua jornada terrestre, quis que o
levassem para um curral, o deitassem sobre uma camada de cinzas.
Em santa obediência ao guardião do convento, consentiu que o limpassem dos seus trapos, lhe
vestissem um hábito novo: mas, com os olhos alagados de ternura, implorou que o enterrassem num sepulcro
emprestado como fora o de Jesus, seu senhor.
E, suspirando, só se queixava de não sofrer:
− O Senhor que tanto sofreu, por que me não manda a mim o padecimento bendito?
De madrugada pediu que abrissem, bem largo, o portão do curral.
Contamplou o céu que clareava, escutou as andorinhas que, na frescura e silêncio, começavam a cantar
sobre o beiral do telhado, e, sorrindo, recordou uma manhã, assim de silêncio e frescura, em que, andando
com Francisco de Assis à beira do lago de Perusa, o mestre incomparável se detivera ante uma árvore cheia de
pássaros e, fraternalmente, lhes recomendara que louvassem sempre o Senhor! “Meus irmãos, meus irmãos
passarinhos, cantai bem o vosso Criador, que vos deu essa árvore para que nela habiteis, e toda esta limpa
água para nela beber, e essas penas bem quentes para vos agasalharem, a vós e aos vossos filhinhos!” Depois,
beijando humildemente a manga do monge que o amparava, Frei Genebro morreu.
II
LOGO que ele cerrou os olhos carnais, um Grande Anjo penetrou diafanamente no curral e tomou, nos
braços, a alma de Frei Genebro. Durante um momento, na fina luz da madrugada, deslizou por sobre o prado
fronteiro tão levemente que nem roçava as pontas orvalhadas da relva alta. Depois, abrindo as asas, radiantes
e níveas, transpôs, num voo sereno, as nuvens, os astros, todo o céu que os homens conhecem.
Aninhada nos seus braços, como na doçura de um berço, a alma de Genebro conservava a forma do
corpo que sobre a terra ficara; o hábito franciscano ainda a cobria, com um resto de poeira e de cinza nas
pregas rudes; e, com um olhar novo que, agora, tudo trrespassava e tudo compreendia, ela contemplava, num
deslumbramento, aquela região em que o Anjo parara, para além dos universos transitórios e de todos os
rumores siderais. Era um espaço sem limite, sem contorno e sem cor. Por cima começava uma claridade,
subindo espalhada à maneira duma aurora, cada vez mais branca, e mais luzente, e mais radiante, até que
resplandecia num fulgor tão sublime que nela um sol coruscante seria como uma nódoa pardacenta. E por
baixo estendia-se uma sombra cada vez mais baça, mais fusca, mais cinzenta, até que formava como um
espesso crespúsculo de profunda, insondável tristeza. Entre essa refulgência ascendente e a escuridão inferior,
permanecera o Anjo imóvel, com as asas fechadas. E a alma de Genebro perfeitamente sentia que estava ali,
esperando também, entre o Purgatório e o Paraíso. Então, subitamente, nas alturas, apareceram os dois
imensos pratos duma Balança - um que rebrilhava como diamante e era reservado às suas Boas Obras, outro,
negrejando mais que carvão, para receber o peso das suas Obras Más. Entre os braços do Anjo, a alma de
Genebro estremeceu... Mas o prato diamantino começou a descer lentamente. Oh! Contentamento e glória!
Carreado com as suas Boas Obras, ele descia, calmo e majestoso, espargindo claridade. Tão pesado vinha, que
as suas grossas cordas se retesavam, rangiam. E entre elas, formando como uma montanha de neve, alvejava
magnìficamente as suas virtudes evangélicas. Lá estavam as incontáveis esmolas que semeara no mundo,
agora desabrochadas em alvas flores, cheias de aroma e de luz.
A sua humildade era um cimo, aureolado por um clarão. Cada uma das suas penitências cintilava mais
lìmpidamente que cristais puríssimos. E a sua oração perene subia e enrolava-se em torno das cordas, à
maneira duma deslumbrante névoa de ouro.
Sereno, tendo a majestade de um astro, o prato das Boas Obras parou, finalmente, com a sua carga
preciosa. O outro, lá em cima, não se movia também, negro, da cor do carvão, inútil, esquecido, vazio. Já das
profundidades, sonoros bandos de Serafins voavam, balançando palmas verdes. O pobre franciscano ia entrar
triunfalmente no Paraíso - e aquela era a milícia divina que o acompanharia cantando. Um frêmito de alegria
passou na luz do Paraíso, que um Santo novo enriquecia. E a alma de Genebro anteprovou as delícias da Bem-
Aventurança.
Subitamente, porém, no alto, o prato negro oscilou como a um peso inesperado que sobre ele caísse! E
começou a descer, duro, temeroso, fazendo uma sombra dolente através da celestial claridade. Que Má Ação
de Genebro trazia ele, tão miúda que nem se avistava, tão pesada que forçava o prato luminoso a subir,
remontar ligeiramente, como se a montanha de Boas Ações que nele transbordavam fossem um fumo
mentiroso? Os Serafins recuavam, com as asas trementes. Na alma de Frei Genebro correu um arrepio imenso
de terror. O negro prato descia, firme, inexorável, com as cordas retesas. E na região que se cavava sob os pés
do Anjo, cinzenta, de inconsolável tristeza, uma massa de sombra, molemente e sem rumor, arfou, cresceu,
rolou, como a onda duma maré devoradora.
O prato, mais triste que a noite, parara - parara em pavoroso equilíbrio com o prato que rebrilhava. E
os Serafins, Genegro, o Anjo que o trouxera, descobriram, no fundo daquele prato que inutilizava um Santo,
um porco, um pobre porquinho com uma perna barbaramente cortada, arquejando, a morrer, numa poça de
sangue... O animal mutilado pesava tanto na balança da justiça como a montanha luminosa de virtudes
perfeitas!
Então, das alturas, surgiu uma vasta mão, abrindo os dedos que faiscavam. Era a mão de Deus, a sua
mão direita, que aparecera a Genebro na escada de Santa Maria dos Anjos e que, agora, supremamente se
estendia para o acolher ou para o repelir. Toda a luz e toda a sombra, desde o Paraíso fulgente ao Purgatório
crepuscular, se contraíram num recolhimento de inexprimível amor e terror. E na extática mudez, a vasta mão,
através das alturas, lançou um gesto que repelia...
Então o Anjo, baixando a face compadecida, alargou os braços e deixou cair, na escuridão do
Purgatório, a alma de Frei Genebro.
ADÃO, Pai dos Homens, foi criado no dia 28 de Outubro, às 2 horas da tarde...
Assim o afirma, com majestade, nos seus Annales Veteris et Novi Testamenti, o muito douto e muito
ilustre Usserius, Bispo de Meath, Arcebispo de Armagh e chanceler-mor da Sé de S. Patrício.
A Terra existia desde que a Luz se fizera, a 23, na manhã de todas as manhãs. Mas já não era essa
Terra primordial, parda e mole, ensopada em águas barrentas, abafada numa névoa densa, erguendo, aqui e
além, rígidos troncos duma só folha e dum só rebento, muito solitária, muito silenciosa, com uma vida toda
escondida, apenas surdamente revelada pelo remexer de bichos obscuros, gelatinosos, sem cor e quase sem
forma, crescendo no fundo dos lodos. Não! agora, durante os dias genesíacos de 26 e 27, toda ela se
completara, se abastecera e se enfeitara, para acolher condignamente o Predestinado que vinha. No dia 28 já
apareceu perfeita, perfecta, com as provisões e alfaias que a Bíblia enumera, as ervas verdes de espiga
madura, as árvores providas do fruto entre a flor, todos os peixes nadando nos mares resplandecentes, todas as
aves voando pelos ares aclarados, todos os animais pastando sobre as colinas viçosas, e os regatos regando, e
o fogo armazenando no seio da pedra, e o cristal, e o ônix, e o ouro muito bom do país de Hevilath...
Nesses tempos, meus amigos, o Sol ainda girava em torno da Terra. Ela era moça e formosa e preferida
de Deus. Ele ainda se não submetera à imobilidade augusta que lhe impôs mais tarde, entre amuados suspiros
da Igreja, mestre Galileu, estendendo um dedo do fundo do seu pomar, rente aos muros do Convento de S.
Mateus de Florença. E o Sol, amorosamente, corria em volta da Terra, como o noivo dos Cantares, que, nos
lascivos dias da ilusão, sobre o outeiro de mirra, sem descanso e pulando mais levemente que os gamos de
Galaad, circundava a Bem-Amada, a cobria com o fulgor dos seus olhos, coroado de sal-gema, a faiscar de
fecunda impaciência. Ora desde essa alvorada do dia 28, segundo o cálculo majestático de Usserius, o Sol,
muito novo, sem sardas, sem rugas, sem falhas na sua cabeleira flamante, envolvera a terra, durante oito
horas, numa contínua e insaciada caricia de calor e de luz. Quando a oitava hora cintilou e fugiu, uma emoção
confusa, feita de medo e feita de glória, perpassou por toda a Criação, agitando num frémito as relvas e as
frondes, arrepiando o pêlo das feras, empolando o dorso dos montes, apressando o borbulhar das nascentes,
arrancando dos pórfiros um brilho mais vivo... Então, numa floresta muito cerrada e muito tenebrosa, certo
Ser, desprendendo lentamente a garra do galho de árvore onde se empoleirara toda essa manhã de longos
séculos, escorregou pelo tronco comido de hera, pousou as duas patas no solo que o musgo afofava, sobre as
duas patas se firmou com esforçada energia, e ficou ereto, e alargou os braços livres, e lançou um passo forte,
e sentiu a sua dessemelhança da Animalidade, e concebeu o deslumbrado pensamento do que era, e
verdadeiramente foi! Deus, que o amparara, nesse instante o criou. E vivo, da vida superior, descido da
inconsciência da árvore, Adão caminhou para o Paraíso.
Era medonho. Um pêlo crespo e luzidio cobria todo o seu grosso, maciço corpo, rareando apenas em
torno dos cotovelos, dos joelhos rudes, onde o couro aparecia curtido e da cor de cobre fosco. Do achatado,
fugidio crânio, vincado de rugas, rompia uma guedelha rala e ruiva, tufando sobre as orelhas agudas. Entre as
rombas queixadas, na fenda enorme dos beiços trombudos, estirados em focinho, as presas reluziam, afiadas
rijamente para rasgar a febra e esmigalhar o osso. E sob as arcadas sombriamente fundas, que um felpo
hirsuto orlava como um silvado orla o arco duma caverna, os olhos redondos, dum amarelo de âmbar, sem
cessar se moviam, tremiam, esgazeados de inquietação e de espanto... Não, não era belo, nosso Pai venerável,
nessa tarde de Outono, quando Jeová o ajudou com carinho a descer da sua Árvore! E todavia, nesses olhos
redondos, de fino âmbar, mesmo através do tremor e do espanto, rebrilhava uma superior beleza - a Energia
Inteligente que o ia trôpegamente levando, sobre as pernas arqueadas, para fora da mata onde passara a sua
manhã de longos séculos a pular e a guinchar por cima dos ramos altos.
Mas (se os Compêndios de Antropologia nos não iludem) os primeiros passos humanos de Adão não
foram logo atirados, com alacridade e confiança, para o destino que o esperava entre os quatro rios do Éden.
Entorpecido, envolvido pelas influências da Floresta, ainda despega com custo a pata de entre o folhoso chão
de fetos e begônias, e gostosamente se roça pelos pesados cachos de flores que lhe orvalham o pêlo, e acaricia
as longas barbas de líquen, onde gozara as doçuras da irresponsabilidade. Nas ramagens que tão
generosamente, através tão longas idades, o nutriram e o embalaram, ainda colhe as bagas sumarentas, os
rebentões mais tenros. Para transpor os regatos, que por todo o bosque reluzem e sussurram depois da sazão
das chuvas, ainda se pendura duma rija liana, entrelaçada de orquídeas, e se balança, e arqueia o pulo, com
pesada indolência. E receio bem que, quando a aragem restolhasse pela espessura, carregada com o cheiro
morno e acre das fêmeas acocoradas nos cimos, o Pai dos Homens ainda dilatasse as ventas chatas e soltasse
do peito felpudo um grunhido rouco e triste.
Mas caminha... As suas pupilas amarelas, onde faísca o Querer, sondam, esbugalhadas, através da
ramaria, procuram para além o mundo que deseja e receia, e a que sente já a zoada violenta como toda feita de
batalha e rancor. E, à maneira que a penumbra das folhagens clareia, vai surgindo, dentro do seu crânio
bisonho, como uma alvorada que penetra numa toca, o sentimento das Formas diferentes e da Vida diferente
que as anima. Essa rudimentar compreensão só trouxe a nosso Pai venerável turbação e terror. Todas as
tradições, as mais orgulhosas, concordam em que Adão, na sua entrada inicial pelas planícies do Éden, tremeu
e gritou como criancinha perdida em arraial turbulento. E bem podemos pensar que, de todas as Formas,
nenhuma o apavorava mais que a dessas mesmas árvores onde vivera, agora que as reconhecia como seres tão
dessemelhantes do seu Ser e imobilizadas numa inércia tão contrária à sua Energia. Liberto da Animalidade,
em caminho para a Humanização, o arvoredo que lhe fora abrigo natural e doce só lhe pareceria agora um
cativeiro de degradante tristeza. E esses ramos tortuosos, empecendo a sua marcha, não seriam braços fortes
que se estendiam para o empolgar, o repuxar, o reter nos cimos frondosos? Esse ramalhado sussurro que o
seguia, composto do desassossego irritado de cada folha, não era a selva toda, num alvoroço, reclamando o
seu secular morador? De tão estranho medo nasceu, talvez, a primeira luta do Homem com a Natureza.
Quando um galho alongado o roçasse, decerto nosso Pai atiraria contra ele as garras desesperadas para o
repelir e lhe escapar. Nesses bruscos ímpetos quantas vezes se desequilibrou, e as suas mãos se abateram
desamparadamente sobre o solo de mato ou rocha, de novo precipitado na postura bestial, retrogradando à
inconsciência, entre o clamor triunfal da Floresta! Que angustioso esforço então para se erguer, recuperar a
atitude humana e correr, com os felpudos braços despegados da terra bruta, livres para a obra imensa da sua
Humanização! Esforço sublime, em que ruge, morde as raízes detestadas e, quem sabe? levanta já os olhos de
âmbar lustrosos para os céus, onde, confusamente, sente Alguém que o vem amparando - e que na realidade o
levanta.
Mas, de cada um desses tombos modificantes, nosso Pai ressurge mais humano, mais nosso Pai. E há
já consciência, pressa da Racionalidade, nos ressoantes passos com que se arranca ao seu limbo arboral,
despedaçando as enrediças, fendendo o bravio denso, despertando os tapires adormecidos sob cogumelos
monstruosos ou espantando algum urso moço e tresmalhado que, de patas contra um olmo, chupa, meio
borracho, as uvas desse farto Outono.
Enfim, Adão emerge da Floresta obscura: − e os seus olhos de âmbar vivamente se cerram sob o
deslumbramento em que o envolve o Éden.
Ao fundo dessa encosta, onde parara, resplandecem vastas campinas (se as Tradições não exageram)
com desordenada e sombria abundância. Lentamente, através, um rio corre, semeado de ilhas, ensopando, em
fecundos e espraiados remansos, as verduras onde já talvez cresce a lentilha e se alastra o arrozal. Rochas de
mármore rosado rebrilham com um rubor quente. De entre bosques de algodoeiros, brancos como crespa
espuma, sobem outeiros cobertos de magnólias, dum esplendor ainda mais branco. Além a neve coroa uma
serra com um radiante nimbo de santidade, e escorre, por entre os flancos despedaçados, em finas franjas que
refulgem. Outros montes dardejam mudas labaredas. Da borda de rígidas escarpas, pendem perdidamente,
sobre profundidades, palmeirais desgrenhados. Pelas lagoas a bruma arrasta a luminosa moleza das suas
rendas. E o mar, nos confins do mundo, faiscando, tudo encerra, como um aro de ouro. − Nesse fecundo
espaço toda a Criação se espaneja, com a força, a graça, a braveza vivaz duma mocidade de cinco dias, ainda
quente das mãos do seu Criador. Profusos rebanhos de auroques, de pelagem ruiva, pastam majestosamente,
enterrados nas ervas tão altas que nelas desaparece a ovelha e o seu anho. Temerosos e barbudos urus,
brigando contra gigantescos veados-elefas, entrechocam cornos e galhos com o seco fragor de robles que o
vento racha. Um bando de girafas rodeia uma mimosa a que vai trincando, delicadamente, nos trêmulos
cimos, as folhinhas mais tenras. À sombra dos tamarindos, repousam disformes rinocerontes, sob o voo
apressado de pássaros que lhes catam serviçalmente a vérmina. Cada arremesso de tigre causa uma debandada
furiosa de ancas, e chifres, e clinas, onde, mais certo e mais leve, se arqueia o pulo grácil dos antílopes. Uma
rija palmeira verga toda ao peso da jibóia que nela se enrosca. Entre duas penedias, por vezes, aparece, numa
profusão de juba, a face magnífica de um leão que, serenamente, olha o Sol, a imensidade radiante. No remoto
azul, enormes condores dormem imóveis, de asas abertas, entre o sulco níveo e róseo das garças e dos
flamingos. E em frente à encosta, num alto, entre o matagal, passa, lenta e montanhosa, uma récua de
mastodontes, com a rude clina do dorso eriçada ao vento, e a tromba a bambolear entre os dentes mais
recurvos que foices.
Assim vetustíssimas crônicas contam o vetustíssimo Éden, que era nas campinas do Eufrates, talvez na
trigueira Ceilão, ou entre os quatro claro rios que hoje regam a Hungria, ou mesmo nestas terras benditas onde
a nossa Lisboa aquece a sua velhice ao soalheiro, cansada de proezas e mares. Mas quem pode garantir estes
bosques e estes bichos, pois que desde esse dia 25 de outubro, que inundava o Paraíso de esplendor outonal, já
passaram, muito breves e muito cheios, sobre o grão de pó que é o nosso mundo, mais de sete vezes
setecentos mil anos? Só parece certo que, diante de Adão apavorado, um grande pássaro passou. Um pássaro
cinzento, calvo e pensativo, com as penas esguedelhadas como as pétalas de um crisântemo, que saltitava
pesadamente sobre uma das patas, erguendo na outra, bem agarrado, um molho de ervas e ramos. O nosso Pai
venerável, com a fusca face franzida, no doloroso esforço de compreender, pasmava para aquele pássaro que
ao lado, sob o abrigo de azáleas em flor, terminava muito gravemente a construção duma cabana! Vistosa e
sólida cabana, com o seu chão de greda bem alisado, galhos fortes de pinheiros e faia formando estacas e
traves, um seguro tecto de relva seca, e na parede de enrediças bem liadas o desafogo duma janela!... Mas o
Pai dos Homens, nessa tarde, ainda não compreendeu.
Depois caminhou para o largo rio, desconfiadamente, sem se afastar da ourela do bosque abrigador.
Lento, farejando o cheiro novo dos gordos herbívoros da planície, com os punhos rijamente cerrados contra o
peito peludo, Adão vai arfando entre o apetite daquela resplandecente Natureza e o terror dos seres nunca
avistados que a atulham e atroam com tão fera turbulência. Mas dentro dele borbulha, não cessa, a nascente
sublime, a sublime nascente da Energia, que o impele a desentranhar da crassa bruteza, e a ensaiar, com
esforços que são semipenosos porque são já semilúcidos, os Dons que estabelecerão a sua supremacia sobre
essa Natureza incompreendida e o libertarão do seu terror. Assim, na surpresa de todas aquelas inesperadas
aparições do Éden, reses, pastagens, montes nevados, imensidades radiosas, Adão solta roucas exclamações,
gritos com que desafoga, vozes gaguejadas, em que por instinto reproduz outras vozes, e brados, e toadas, e
mesmo o reboliço das criaturas, e mesmo o estrondo das águas despenhadas... E esses sons ficam já na escura
memória de nosso Pai ligados às sensações que lhes arrancam: − de sorte que o guincho áspero que lhe
escapara ao topar um canguru com a sua ninhada embolsada no ventre, de novo lhe ressoará nos lábios
trombudos, quando outros cangurus, fugindo dele, adiante, se embrenhem na sombra negra das caneleiras. A
Bíblia, com a sua exageração oriental, cândida e simplista, conta que Adão, logo na sua entrada pelo Éden,
distribuiu nomes a todos os animais, e a todas as plantas, muito definitivamente, muito eruditamente, como se
compusesse o Léxico da Criação, entre Buffon, já com os seus punhos, e Lineu, já com os seus óculos. Não!
eram apenas grunhidos, roncos mais verdadeiramente augustos porque todos eles se plantavam na sua
consciência nascente como as toscas raízes dessa Palavra pela qual verdadeiramente se humanou, e foi depois,
sobre a terra, tão sublime e tão burlesco.
E bem podemos pensar, com orgulho, que ao descer a borda do rio Edénico, nosso Pai, compenetrado
do que era, e quanto diverso dos outros seres! já se afirmava, se indivudalizava, e batia no peito sonoro, e
rugia soberbamente: − Eheu! Eheu! Depois, alongando os olhos reluzentes por aquela longa água que corria
vagarosamente para além, já tenta exteriorizar o seu espantado sentimento dos espaços, e rosna com pensativa
cobiça: − Lhlâ!Lhlâ!
II
CALMO, magnificamente fecundo, corria ele, o nobre rio do Paraíso, por entre as ilhas, quase afundadas sob
o peso do rijo arvoredo, todas flagrantes, e atroadas pelo clamor das cacatuas. E Adão, trotando pesadamente
pela margem baixa, já sente a atração das águas disciplinadas que andam e vivem - essa atração que será tão
forte nos seus filhos, quando no rio descobrirem o bom servidor que desaltera, estruma, rega, mói e acarreta.
Mas quantos terrores especiais ainda o arrepiam, o atiram com espavoridos pulos para o abrigo dos salgueiros
e dos choupos! Noutras ilhas, de areia fina e rosada, preguiçam pedregosos crocodilos, achatados sobre o
ventre, que arfam molemente, escancarando as fundas goelas na tépida preguiça da tarde, embebendo todo o
ar com um cheirinho de almíscar. Por entre os canaviais, coleiam e refulgem gordas cobras de água, de colo
alteado, que fitam Adão com furor, dardejando e silvando. E, para nosso Pai que nunca os avistara,
certamente seriam pavorosas as tartarugas imensas desse começo do Mundo, pastando com arrastada
mansidão, através dos prados novos. Mas uma curiosidade o atrai, quase resvala na riba lodosa onde a franja
de água roça e marulha. Na largueza do rio espraiado, uma longa e negra fila de auroques, serenamente, com
os cornos altos e a espessa barba a flutuar, nada para a outra margem, campina coberta de louras messes onde
talvez já amaduram as espigas sociáveis do centeio e do milho. Nosso Pai venerável olha a fila lenta, olha o
rio lustroso, concebe o enevoado desejo de também atravessar para aqueles longes em que as ervas rebrilham,
e arrisca a mão na corrente - na rija corrente que lha repuxa, como para o atrair e iniciar. Ele grunhe, arranca a
mão - e segue, com ásperas patadas, esmagando, sem mesmo lhes sentir o perfume, os frescos morangos
silvestres que ensanguentam a relva... Em breve pára, considerando um bando de aves alcandoradas numa
penedia toda riscada de guanos, que espreitam, com o bico atento, para baixo, onde as águas apertadas
refervem. Que espreitam elas, as brancas garças? Lindos peixes em cardume, que rompem contra a levada e
pulam, lampejando nas espumas claras. E bruscamente, num desabrido abanar de asas brancas, uma garça,
depois outra, fende o céu alto, levanto, atravessado no bico, um peixe que se estorce e reluz. Nosso Pai
venerável coça a ilharga. A sua crassa gula, entre aquela abundância do rio, também apetece uma presa: e
atira a garra, colhe, no seu voo soante, cascudos insectos que farisca e trinca. Mas nada certamente assombrou
o Primeiro Homem como um grosso tronco de árvore meio apodrecido, que boiava, descia na corrente,
levando sentados numa ponta, com segurança e graça, dois bichos sedosos, louros, de focinho esperto e fofas
caudas vaidosas. Para os seguir, os observar, ansiosamente correu, enorme e desengonçado. E os seus olhos
faiscavam, como se já compreendesse a malícia daqueles dois bichos, embarcados num toro de arvore e
viajando, sob a macia frescura da tarde, no rio do Paraíso.
No entanto, a água que ele costeava era mais baixa, turva e tarda. Já na sua larguesa não verdejam
ilhas, nem nela se molha a orla das fartas pastagens. Para além, sem limite, fundidas nas neblinas, fogem
descampadas solidões, de onde rola um vento lento e húmido. Nosso Pai venerável enterrava as patas em ribas
moles, através de aluviões, de lixos silvestres, em que chapinavam, para seu intenso horror, enormes rãs
coaxando furiosamente. E o rio em breve se perdeu numa vasta lagoa, escura e desolada, resto das grandes
águas sobre que flutuara o Espírito de Jeová. Uma tristeza humana apertou o coração de nosso Pai. Do meio
de grossas bolhas, que se empolavam na estanhada lisura da água triste, constantemente surdiam horrendas
trombas, a escorrer de limos verdes, que bufavam ruidosamente, logo se afundavam, como repuxadas pelos
lodos viscosos. E quando de entre os altos e negros canaviais, manchando a vermelhidão da tarde, se elevou,
se alargou sobre ele uma nuvem estridente de moscardos vorazes, Adão foge, estonteado, trilha saibros
pegajosos, rasga o pêlo na aspereza dos cardos brancos que o vento estorce, resvala por uma encosta de
cascalho e seixo, e pára em areia fina. Arqueja: as suas longas orelhas remexem, escutando, para além das
dunas, um vasto rumor que rola e desaba e retumba... É o mar. Nosso Pai transpõe as pálidas dunas - e diante
dele está o Mar!
Então foi o pavor supremo. Com um pulo, batendo convulsamente os punhos no peito, recua até onde
três pinheiros, mortos e sem rama, lhe oferecem o refúgio hereditário. Por que avançam assim para ele, sem
cessar, numa inchada ameaça, aqueles rolos verdes, com a sua clina de espuma, e se atiram, se esmigalham,
refervem, babujam rudemente a areia? Mas toda a outra vasta água permanece imóvel, como morta, com uma
grande mancha de sangue que lateja. Todo esse sangue caiu, decerto, da ferida do Sol, redonda e vermelha,
sangrando em cima, num céu dilacerado por fundos golpes já roxos. Para além da névoa leitosa que cobre as
lagoas, dos charcos salgados, onde a maresia ainda chega e se espraia muito longe, um monte flameja e
fumega. E sempre diante de Adão, contra Adão, os verdes rolos da verde vaga avançam, e ribombam, e
alastram a praia de algas, de conchas, de gelatinas que alvejam lìvidamente.
Mas eis que todo o mar se povoa! E, encolhido contra o pinheiro, nosso Pai venerável dardeja os olhos
inquietos e trêmulos, para aqui, para além - para os rochedos cobertos de sargaço onde gordíssimas focas
rebolam majestosamente; para os repuxos de água, que ao largo esguicham até às nuvens roxas e recaem
numa chuva radiante; para uma linda armada de búzios, imensos búzios alvos e nacarados, vogando à bolina,
circundando as penedias, com manobra elegante... Adão pasma sem saber que estas são as Amonites, e que
nenhum outro homem, depois dele, verá a luzida e rósea armada singrando nos mares deste mundo. Ainda ele
a admira, talvez com a impressão inicial da beleza das coisas, quando bruscamente, num tremor de sulcos
brancos, toda a maravilhosa frota soçobra! Com o mesmo salto mole, as focas tombam, trambulham na vaga
funda. E um terror passa, um terror levantado do mar, tão intenso que um bando de albatrozes, muito seguro
sobre uma escarpa, bate, com azoados gritos, o voo espavorido.
Nosso Pai venerável aferra a mão a um galho de pinheiro, sondando, num arrepio, a imensidão deserta.
Então, ao longe, sob o clarão enfiado do Sol que se esconde, um dorso imenso sai, lentamente, das águas,
como uma comprida colina, toda espetada de negras, agudas lascas de rocha. E avança! Adiante um tumulto
de bolhas redemoinha e rebenta; e de entre elas emerge, por fim, resfolegando cavamente, uma tromba
disforme, de fauces entreabertas, onde lampejam e se somem cardumes de peixes que os seus sorvos vêm
tragando...
É um monstro, um pavoroso monstro marinho! E bem podemos supor que nosso Pai, esquecendo toda
a sua dignidade humana (ainda recente), trepou desesperadamente ao pinheiro até onde os galhos findavam.
Mas mesmo nesse abrigo os seus poderosos queixos batiam, num medo convulso, ante o horrífico ser surgido
das profundidades. Com um baque raspante, esmigalhando conchas, seixos e galhos de coral, o monstro
esbarra na areia, que fundamente escava, e sobre que retesa as duas patas, mais grossas que troncos de teca,
com as unhas todas enrodilhadas de silvas marinhas. Da caverna das suas fauces, através dos dentes terríficos,
que os limos e musgos esverdeiam, sopra um bafo espesso de fadiga ou de furor, tão forte que faz rodopiar as
algas secas e os búzios ligeiros. Entre as crostas pedregosas, que lhe couraçam a fronte, negrejam dois cornos
curtos e rombos. Os seus olhos, lívidos e vítreos, são como duas enormes luas mortas. A imensa cauda
dentada arrasta pelo mar distante, e a cada rabeio lento levanta uma tempestade.
Por essas feições, pouco amáveis, já reconhecestes o Ictiossauro, o mais horrendo dos cetáceos
concebidos por Jeová. Era ele! - talvez o derradeiro, que durara nas trevas oceânicas até esse dia memorável
de 28 de outubro, para que nosso Pai entrevisse as origens da Vida. E agora está em frente de Adão, ligando
os tempos velhos aos tempos novos - e, com as escamas do dorso assanhadas, muge devastadoramente. Nosso
Pai venerável, enroscado ao tronco alto, guincha de vivo horror... E eis que, do lado dos charcos enevoados,
um silvo fende os céus, uivado e arremetido, como o de um áspero vento numa garganta de serrania. O quê?
outro monstro?... Sim, o Plesiossauro. É também o derradeiro Plesiossauro que corre do fundo dos pântanos.
E agora de novo se trava, para assombro do primeiro Homem (e gosto dos paleontologistas) o combate que foi
a desolação dos pré-humanos dias da Terra. Lá aparece a fabulosa cabeça do Plesio, terminada em bico-de-
ave, bico de duas braças, mais agudo que o dardo mais agudo, erguida sobre um longuíssimo e esguio pescoço
que ondula, arqueia, esfuzia, dardeja com pavorosa elegância! Duas barbatanas de incomparável rijeza vêm
movendo o seu disforme corpo, mole, glutinoso, todo em rugas, manchado por uma lepra de fungos
esverdinhados. E tão imenso é assim rojando, com o pescoço empinado, que, diante da duna onde se levantam
os pinheiros que acoitam Adão, ele parece uma outra duna negra sustentando um pinheiro solitário.
Furiosamente avança. - E de repente é um horroroso tumulto de mugidos, e sibilos, e choques ribombantes, e
areias torvelinhando, e grossos mares espadanando. Nosso Pai venerável salta dum pinheiro para outro
pinheiro, tremendo tanto que, com ele, tremem os rijos troncos. E quando se arrisca a espreitar, ao recrescer
dos bramidos, só percebe, na enrolada massa dos dois monstros, através de uma névoa de espuma que os
esguichos de sangue avermelham, o bico do Plesio todo enterrado no ventre mole do Ictio, cuja cauda,
erguida, se estorce furiosamente na palidez dos céus espantados. De novo esconde perdidamente a face, nosso
Pai venerável! Um urro de monstruosa agonia rola na praia. As pálidas dunas estremecem, as cavernas
soturnas ressoam. Depois é uma paz muito larga, em que o ruído do mar Oceano não é mais que um
consolado murmúrio de alívio. Adão espia, debruçado entre os galhos... O Plesio recuara ferido para a tépida
lama dos seus pântanos. E sob a praia jaz o Ictio morto, como uma colina onde a vaga da tarde mansamente se
quebra.
Então, nosso Pai venerável cautelosamente escorrega do seu pinheiro, e se abeira do monstro. A areia,
em redor, está medonhamente revolta; − e por toda ela, em lentos regos, em poças escuras, o sangue, mal
chupado, fumega. Tão montanhoso é o Ictio, que Adão, erguendo a face assombrada, nem avista as puas do
monstro, eriçadas ao longo daquele alcantilado espinhaço, a que o bico do Plesio arrancou escamas mais
pesadas que lajes. Mas diante das mãos trementes do Homem estão os rasgões do ventre mole, de onde o
sangue pinga, e gorduras babam, e imensas tripas esfiadas escorrem, e pendem febras atassalhadas de carne
rosada... E as chatas ventas do nosso Pai venerável estranhamente se alargam e farejam.
Toda essa tarde ele caminhara, desde a Floresta, através do Paraíso, chupango bagas, rilhando raízes,
trincando os insectos de casca picante. Mas agora o sol penetrou no mar - e Adão tem fome, nesse areal
marinho, onde só alvejam cardos que o vento estorce. Oh! aquela carne rija, sangrenta, ainda viva, que exala
um cheiro tão fresco e salino! As suas rombas mandíbulas ruidosamente se escancaram num bocejo enfastiado
e famélico... O Oceano arfa, como adormecido... Então, irresistìvelmente, Adão mergulha numa das feridas do
sáurio os dedos que lambe e rechupa, moles de sangue e gorduras. O espanto dum sabor novo imobiliza o
homem frugal que vem das ervas e das frutas. Depois, com um salto, arremete contra a montanha de
abundância, e arranca uma febra que trinca e traga, a grunhir, num furor, numa pressa em que há o gozo e há
o medo da primeira carne comida.
Tendo ceado assim postas cruas dum monstro marinho, nosso Pai venerável sente uma grande sede.
São salgadas as poças que na areia rebrilham. Pesado e triste, com os beiços empastados de banha e de
sangue, Adão, sob o calado crepúsculo, atravessa as dunas, repenetra nas terras, rebuscando sôfregamente
água doce. Por toda a relva, nesses tempos de universal umidade, fugia e chalrava um regato. Em breve,
estendido numa riba lodosa, Adão bebeu consoladamente, em fundos sorvos, sob o voo espantado de moscas
fosforescentes que se lhe prendiam na guedelha.
Era junto dum bosque de carvalhos e faias. A noite, que já se adensara, enegrecia um chão todo de
plantas, onde a malva se encostava à hortelã, e a salsa ao fundo ligeiro. Nessa clareira fresca penetrou nosso
Pai venerável, estafado com a marcha e os espantos daquela tarde do Paraíso. E apenas se estendera na
alfombra cheirosa, com a hirsuta face pousada sobre as palmas unidas, os joelhos colhidos contra o ventre
distendido como um tambor, mergulhou num sono como ele nunca dormira - todo povoado de sombras
moventes, que eram aves construindo uma casa, patas de insectos tecendo uma teia, dois bichos vogando nas
águas rolantes.
Ora conta a Lenda que então, em torno do Primeiro Homem adormecido, começaram a surdir, por
entre o mato baixo, focinhos fariscantes, finas orelhas espetadas, olhinhos reluzindo como botões de azeviche
e espinhaços inquietos que a emoção arqueava - enquanto que, dos cimos dos carvalhos e faias, num abafado
frémito de asas, se debruçavam bicos recurvos, bicos retesos, bicos bravios, bicos pensativos, todos alvejando
na claridade delgada da lua, que subia por trás dos montes e banhava as frondes altas. Depois, à orla da
clareira, uma hiena apareceu, coxeando, miando com lástima. Através da campina trotaram dois lobos,
esgalgados, famélicos, com os verdes olhos acesos. Os leões não tardaram, com as reais faces erguidas,
soberanamente enrugadas, numa profusão de jubas flamantes. Em confusa manada, que chegava bufando, os
cornos dos auroques entrechocavam com impaciência os galhos palmares das renas. Todos os pêlos se
arrepiaram quando o tigre e a pantera negra, ondulando calada e aveludadamente, resvalaram, com as línguas
pendentes e vermelhas como coalhos de sangue. Dos vales, das serranias, das fragas, outros acudiam, numa
pressa tão ansiosa, que os horrendos cavalos primitivos se empinavam por sobre os cangurus, e a tromba do
hipopótamo, a escorrer de limos, empurrava as ancas lentas do dromedário. Entre as patas e os cascos
apinhados coleavam em aliança o furão, a sardanisca, a doninha, a cobra fulgente que engole a doninha, e o
alegre manguço que assassina a cobra. Um bando de gazelas tropeçava, magoando as pernas finas contra a
crosta dos crocodilos, que subiam em fila da borda das lagoas, de goelas preparadas e a gemer. Já toda a
planície arfava, sob a Lua, no mole remexer dos dorsos apertados, de onde se erguia, ora o pescoço da girafa,
ora o corpo da jibóia, como mastros naufragados, balançados entre vagas. E por fim, abalando o solo,
enchendo o céu, com a tromba enrolada entre os dentes recurvos, assomou o rugoso mastodonte.
Era toda a Animalidade do Paraíso que, sabendo o Primeiro Homem adormecido, sem defesa, num
ermo bosque, corria, na imensa esperança de o destruir e eliminar da terra a Força Inteligente, destinada a
submeter a Força Bruta. Mas, naquela pavorosa turba que fumegava, se atropelava à borda da clareira onde
Adão dormia sobre a hortelã e a malva, nenhuma fera avançava. Os longos dentes reluziam, feramente
arreganhados; todos os cornos repontavam; cada guarra saída dilacerava com ânsia a terra mole; e os bicos, de
cima das ramas, terçavam os fios da Lua com bicadas famintas... Mas nem ave descia, nem fera avançava -
porque ao lado de Adão velava uma Figura séria e branca, de asas brancas fechadas, os cabelos presos num
aro de estrelas, o peito guardado numa couraça de diamante e as duas refulgentes mãos apoiadas ao punho
duma espada que era de lume - e vivia.
A aurora despontou, com ardente pompa, comunicando à terra alegre, à terra braviamente alegre, à
terra ainda sem andrajos, à terra ainda sem sepulturas, uma alegria superior, mais graves, religiosa e nupcial.
Adão acordou: e, batendo as fuscas pálpebras, na surpresa do seu acordar humano, sentiu sobre a ilharga um
peso macio e que era doce. Nesse terror que, desde as árvores, não desamparava o seu coração, pulou e com
tão ruidoso pulo que, pela selva, os melros, os rouxinóis, as toutinegras, todos os passarinhos de festa e de
amor, despertaram e romperam num canto de congratulações e de esperanças. − E, oh maravilha! diante de
Adão, e como despegado dele, estava outro Ser a ele semelhante, mas mais esbelto, suavemente coberto dum
pêlo mais sedoso, que o contemplava com largos olhos lustrosos e líquidos. Uma coma ruiva, dum ruivo
tostado, rolava, em espessas ondas, até às suas ancas arredondadas numa plenitude harmoniosa e fecunda. De
entre os braços peludinhos, que cruzara, surdiam, abundantes e gordos, os dois peitos da cor do medronho,
com uma penugem crespa orlando o bico, que se enristava, intumescido. E roçando, num roçar lento, num
roçar muito doce, os joelhos pelados, todo aquele sedoso e tenro Ser se ofertava com uma submissão pasmada
e lasciva. Era Eva... Eras tu, Mãe Venerável!
III
E entre toda essa bicharia adversa, Adão não contava um aliado. Os seus próprios parentes, os
Antropóides, invejosos e farsantes, o apedrejavam com enormes cocos. Só um animal, e formidável,
conservava pelo Homem uma majestosa e pachorrenta simpatia. Era o Mastodonte. Mas a enevoada
Inteligência de nosso Pai ainda, nesses dias edênicos, não compreendia a bondade, a justiça, o serviçal
coração do paquiderme admirável. Por isso, certo da sua fraqueza e do seu isolamento, ele viveu, durante
esses trágicos anos, num ansiado terror. Tão ansiado e longo, que o seu arrepio, como uma longa ondulação,
se perpetuou por toda a sua descendência - e é o velho medo de Adão que nos torna inquietos quando
atravessamos a mata mais segura na solidão crepuscular.
E depois consideremos que ainda restavam pelo Paraíso, entre bichos de formas racionais, polidas, já
preparadas para a prosa nobre de Mr. De Buffon, alguns dos grotescos monstros que desonraram a Criação
antes da madrugada purificadora de 25 de outubro. Decerto Jeová poupou a Adão o degradante horror de
viver no Paraíso em companhia dessa escandalosa avantesma a que os paleongologistas, assombrados, deram
o nome de Iguanodão! Na véspera do advento do Homem, Jeová, muito caridosamente, afogou todos os
Iguanodões nos lodos de um pântano, a um canto escondido do Paraíso, onde hoje se estende a Flandres. Mas
Adão e Eva ainda conheceram os Pterodáctilos. Oh! esses Pterodáctilos!... Corpos de Jacaré, escamosos e
penugentos; duas lúgubres, negras, carnudas asas de morcego: um bico disparatado, mais grosso que o corpo,
tristonhamente caído, eriçado de centenas de dentes, finos como os duma serra. E não voava! Descia, de asas
moles e mudas, e nelas abafava a presa como num pano viscoso e gelado, para a retalhar toda com os
estalados golpes das mandíbulas fétidas. E esse funambulesco avejão enturvava o céu do Paraíso com a
mesma abundância com que os melros ou as andorinhas cruzam os santos ares de Portugal. Os dias de nossos
Pais veneráveis foram por eles torturados - e nunca o seu pobre coração tremia tanto como quando, de além
dos montes, se vinha despenhando, com sinistro estridor de asas e bicos, a revoada dos Pterodáctilos.
Como sobreviveram nossos Pais, nesse Jardim de Delícias? Decerto muito faiscou e trabalhou a espada
do Anjo que os guardava!
Pois bem, meus amigos! A todos esses furiosos seres deve o homem a sua carreira triunfal. Sem os
Sáurios, e os Pterodáctilos, e a Hiena Espeléia, e o arrepiado terror que espalhavam, e a necessidade de ter,
contra o seu ataque, sempre bestial, uma defesa sempre racional - a Terra permaneceria um temeroso Paraíso,
onde erraríamos todos, desgrenhados e nus, chupando pela borda dos mares as banhas cruas de monstros
naufragados. Ao encolhido medo de Adão se deve a supremacia da sua descendência. Foi o bicho perseguidor
que o forçou a subir aos cimos da Humanidade. E bem sabedores das Origens se mostraram os poetas
mesopotâmicos do Gênesis, nesses versículos sutis em que um animal, e o mais perigoso, a Serpente, leva
Adão, por amor de Eva, a colher o fruto do Saber! Se não rugisse outrora o Leão das cavernas, não trabalhava
hoje o Homem das cidades - pois que a Civilização nasceu do desesperado esforço defensivo contra o
Inanimado e o Inconsciente. A Sociedade é realmente a obra da fera. Que a Hiena e o Tigre, no Paraíso,
começassem por acariciar lânguidamente o ombro peludo de Adão com pata amiga - Adão ficaria irmão do
Tigre e da Hiena, partilhando as suas tocas, as suas presas, os seus ócios, os seus gostos bravios. E a Energia
Inteligente que o descera da Árvore em breve se apagaria dentro da sua bruteza inerte, como se apaga a faísca,
mesmo entre galhos secos, se um frio sopro, vindo de um buraco escuro, não a estimula a viver, para vencer a
friagem e vencer a escuridão.
Mas uma tarde (como ensinaria o exato Usserius), saindo Adão e Eva da espessura dum bosque, um
urso enorme, o Pai dos Ursos, apareceu diante deles, ergueu as negras patas, escancarou a goela sangrenta...
Então, assim colhido, sem refúgio, na apertada ânsia de defender a sua fêmea, o Pai dos Homens arremessou
contra o Pai dos Ursos o cajado a que se arrimava, um forte galho de teca, arrancado na mata, que findava em
lasca aguda... E o pau atravessou o coração da fera.
Ah! Desde essa tarde bendita houve verdadeiramente, sobre a terra, um Homem.
Era já um Homem, e superior, quando lançou um passo espantado e arrancou o pau do seio do monstro
estendido e lhe mirou a ponta gotejante de sangue - com a testa toda franzida, no afã de compreender. Os seus
olhos resplandeceram, num deslumbrado triunfo. Adão compreendera...
Nem cuidou mais da boa carne do urso! Remergulhou na floresta, e toda a tarde, enquanto a luz se
arrastou pelas frondes, arrancou ramos aos troncos, cautelosamente, destramente, para que as pontas
quebrassem bem lascadas e agudas. Ah! que soberbo estalar de hastes, pelo fundo bosque, através da frescura
e da sombra, para a obra da primeira Redenção! Selva amável, que foste a primeira oficina, quem soubera
onde jazes, na tua secular sepultura, tornada negro carvão!... Quando da mata largaram, fumegando de suor,
para recolher à toca distante, nossos Pais veneráveis vergavam sob o peso glorioso de dois grossos molhos de
armas.
E então não cessam mais os feitos do Homem. Ainda os corvos e os chacais não tinham esburgado a
carcaça do Pai dos Ursos - já nosso Pai racha uma ponta do seu cajado vitorioso; entala na fenda um desses
seixos afiados e bicudos, em que por vezes se feriam as suas patas, descendo à beira dos rios; e segura o fino
estilhaço na racha com os lios, muito arrochados, de uma fibra de enrediça seca. E eis a lança! Como essas
pedras não abundam, Adão e Eva ensanguentam as garras, tentando fender os pedregões redondos de sílex em
lascas curtas, que venham perfeitas, com ponta e com gume, para rasgar, cravar. A pedra resiste, pouco
desejosa de ajudar o Homem que, nos dias genesíacos do grande Outubro, ela tentara suplantar (como contam
as prodigiosas Crônicas de Backum). - Mas de novo lampeja a face de Adão, numa idéia que o sulca, como
faísca emanada da Eterna Sabedoria. Apanha um pedregulho, bate a rocha, arranca a lasca... E eis o martelo!
Depois, noutra tarde bendita, costeando uma escura e bravia colina, descobre, com aqueles seus olhos
que já rebuscam e comparam, um calhau negro, áspero, facetado, sombriamente luzidio. Pasma do seu peso -
e logo pressente nele um maço superior, de decisiva rijeza. Com que alvoroço o leva, agarrado contra o peito,
para martelar o sílex rebelde! Ao lado de Eva, que o espera à beira do rio, logo malha rijamente sobre a
pederneira... E oh espanto! uma fagulha salta, refulge, morre! Ambos recuam, se entreolham, num terror
quase sagrado! É um lume, um vivo lume, que ele assim arrancou com as suas mãos da rocha bruta -
semelhante ao lume vivo que dardeja de entre as nuvens. De novo bate, a tremer. A centelha brilha, a centelha
passa, e Adão remira e fareja o escuro calhau. Mas não compreende. E pensativos, nossos Pais veneráveis
sobem, com os cabelos ao vento, para a sua caverna costumada, que é no pendor dum cerro, junto duma fonte
borbulhando entre fetos.
E aí, no seu retiro, Adão, com uma curiosidade onde lateja uma esperança, novamente entala o sílex,
grosso como uma abóbora, entre os calosos pés, e recomeça a martelar, sob o bafo de Eva, que se debruça e
arfa. Sempre a faúlha salta, rebrilha na sombra, tão refulgente como aqueles lumes que, agora, palpitam,
olham, de além, das alturas. Mas esses lumes permanecem, através da negrura do céu e da noite, vivos, a
espreitar, na sua radiância. E aquelas estrelinhas da pedra ainda não têm vivido e já têm morrido... Será o
vento que as leva, ele que tudo leva, vozes, nuvens e folhas? Nosso Pai venerável, fugindo do vento malévolo
que ronda no monte, recua até ao fundo mais abrigado da caverna, onde se afofam as camadas de feno muito
seco, que são o seu leito. E de novo fere a pedra, despedindo centelha após centelha, enquanto Eva, agachada,
abriga com as mãos aqueles refulgentes e fugitivos seres. E eis que dos fenos um fumozinho se eleva, e se
engrossa, e se enrola, e através dele, vermelha, uma chama ressalta... É o Fogo! Nossos Pais fogem
espavoridamente da caverna, obscurecida por uma fumaraça cheirosa, onde flamejam alegres, rutilantes
línguas, que lambem a rocha. Acocorados à porta da toca, ambos arquejam, no pasmo e terror da sua obra,
com os olhos a chorar do fumo acre. E, mesmo através do susto e do espanto, sentem uma doçura muito nova
que os penetra e que vem daquela luz e vem daquele calor... Mas já o fumo se escapou da caverna, o vento
roubador o levou. As chamas rastejam, incertas e azuladas: em breve só resta um borralho que descora, se
acinzenta, se abate em cisco: e a derradeira faúlha corre, tremeluz, passa. O fogo morreu! Então, na alma
nascente de Adão, entra a dor duma ruína. Desesperadamente puxa os grossos beiços e geme. Saberá ele
jamais recomeçar o feito maravilhoso?... E é nossa Mãe, já consoladora, que o consola. Com as suas rudes
mãos comovidas, porque realiza sobre a terra a sua primeira obra, junta outro montão de fenos secos, pousa
entre eles o sílex redondo, toma o escuro calhau, bate rijamente, num faulhar de estrelinhas. E de novo o fumo
rola, e de novo a chama refulge. Oh triunfo! eis a fogueira, a fogueira inicial do Paraíso, e não casualmente
rebentada, mas acendida por uma clara Vontade que, agora, para todo sempre, cada noite e cada manhã,
poderá repetir com segurança a façanha suprema.
À nossa Mãe Venerável pertence então, na caverna, a doce e augusta tarefa do Lume. Ela o cria, ela o
nutre, ela o defende, ela o perpetua. E, como mãe deslumbrada, descobre cada dia, nesse resplandecente filho
dos seus cuidados, uma virtude ou graça nova. Agora já Adão sabe que o seu fogo espanta todas as feras e que
no Paraíso existe enfim um buraco seguro, que é o seu buraco! Não só seguro, mas amável - porque o lume o
alumia, o aquece, o alegra, o purifica. E quando Adão, com um molho de lanças, desce à planície ou se
embrenha na selva a caçar a presa, já mata com redobrada ânsia, para recolher depressa àquela boa segurança
e consolação do lume. Ah! que docemente ele o penetra, e lhe seca no pêlo a friagem dos matos, e doura
como um sol a penedia da sua toca! E depois ainda lhe prende os olhos, e os enleva, e o guia num cismar
fecundo, em que inspiradamente lhe aparecem formas de flechas, malhos com cabos, ossos recurvos que
fisgam os peixes, lascas dentadas que correm o pau!... À sua fêmea forte deve Adão esta hora criadora!
E quanto lhe não deve a Humanidade! Recordemos, meus irmãos, que nossa Mãe, com aquela
adivinhação superior que mais tarde a tornou Profetisa e Sibila, não hesitou, quando a Serpente lhe disse,
coleando entre as Rosas: − “Come do fruto do Saber, que os teus olhos se abrirão e serás como os Deuses
sabedores!” Adão teria comido a serpente, bocado mais suculento. Nem acreditaria em frutos que comunicam
a Divindade e Sapiência, ele que tanta fruta comera nas árvores e se conservava insciente e bestial como o
urso e o auroque. Eva, porém, com a credulidade sublime que sempre no mundo opera as transformações
sublimes, comeu logo a maçã, e a casca, e a pevide. E persuadindo Adão a que partilhasse do transcendente
pomo, muito doce e enredosamente o convenceu do proveito, da felicidade, da glória e da força que dá o
Saber! Esta alegoria dos poetas do Gênesis, com esplêndida subtileza, nos revela a imensa obra de Eva nos
anos dolorosos do Paraíso. Por ela Deus continua a Criação superior, a do Reino espiritual, a que desenrola
sobre a terra o lar, a família, a tribo, a cidade. É Eva que cimenta e bate as grandes pedras angulares na
construção da Humanidade.
Senão, vede! Quando o bravio caçador recolhe à caverna, derreado sob o peso da caça morta,
cheirando todo a relva, e a sangue, e a fera, é ele, decerto, que esfola a rês com a faca de pedra, e retalha as
postas, e esburga os ossos (que sôfregamente guarda sob a coxa e reserva para a sua ração, porque contêm a
moela preciosa). Mas Eva junta essa pele, cuidadosamente, às outras peles armazenadas; esconde os ossos
partidos, porque as suas lascas agudas pregam e furam; e numa cavidade da rocha fresca guarda a carne que
sobejou. Ora em breve uma dessas fartas postas esquece, caída junto à fogueira perpétua. O lume alastra,
lentamente lambe a carne pelo lado mais gordo, até que um cheiro, desconhecido e saboroso, afaga e alarga as
rudes narinas de nossa Mãe venerável. De onde vem ele, o gostoso aroma? Do fogo, onde a posta de veado ou
de lebre grelha e rechina. Então Eva, inspirada e grave, empurra a carne para a brasa viva; e espera, ajoelhada,
até que a espeta com uma ponta de osso, e a retira da chama ruidosa, e a trinca, em sombrio silêncio. Os seus
olhos rebrilhantes anunciam outra conquista. E, com a pressa amorosa com que oferece a Maçã a Adão, lhe
apresenta agora aquela carne tão nova, que ele cheira desconfiado, e depois devora a rijas dentadas, roncando
de gozo! E eis que, por esse pedaço de gamo assado, nossos Pais sobem vitoriosamente outro escalão da
Humanidade!
A água ainda a bebem na nascente vizinha, entre os fetos, com a face mergulhada no veio claro.
Depois de beber, Adão, arrimado à sua grossa lança, olha ao longe o rolar do rio lento, os montes coroados de
neve ou de lume, o Sol sobre o mar - pensando, com arrastado pensar, se a presa será mais certa e as selvas
menos cerradas. Mas Eva recolhe logo à caverna, para se entregar, sem descanso, a uma tarefa que a encanta.
Encruzada no chão, toda atenta sob a coma crespa, nossa Mãe fura, com um ossinho agudo, buracos finos na
orla duma pele, e depois na orla de outra pele. E, tão embebida que nem sente Adão entrar e remexer nas suas
armas, une as duas peles sobrepostas, passando através dos buracos uma delgada fibra das algas que secam
diante do lume. Adão considera com desdém esse trabalho miúdo que não acrescenta força à sua força. Não
pressente ainda, o bruto Pai, que aquelas peles cosidas serão o resguardo do seu corpo, a armação da sua
tenda, o saco do seu farnel, o odre da sua água, e o tambor em que bata quando for um Guerreiro, e a página
em que escreva quando for um Profeta!
Outros gostos e modos de Eva o irritam também: e por vezes, com uma desumanidade que é já toda
humana, nosso Pai arrebata pelos cabelos a sua fêmea, e a derruba, e a pisa sob a pata calosa. Assim um furor
o tomou, uma tarde, avistando, no regaço de Eva, sentada diante da fogueira, um cachorrinho mole e trôpego,
que ela, com carinho e paciência, ensinava a sugar numa febra de carne fresca. À beira da fonte descobrira o
cachorrinho perdido e ganindo; e muito mansamente o recolhera, o aquecera, o alimentara, com uma sensação
que lhe era doce, e lhe abria na espessa boca, ainda mal sabedora de sorrir, um sorriso de maternidade. Nosso
Pai venerável, com as pupilas a reluzir, atira a garra, quer devorar o cachorro que entrara na sua toca. Mas
Eva defende o animal pequenino, que treme e que a lambe. O primeiro sentimento de Caridade, informe como
a primeira flor que brotou dos limos, aparece na terra! E, com as curtas e roucas vozes que eram o falar dos
nossos Pais, Eva tenta talvez afiançar que será útil, na caverna do homem, a amizade dum bicho... Adão puxa
o beiço trombudo. Depois, em silêncio, mansamente, corre os dedos pelo lombo macio do cachorrinho
encolhido. E este é, na História, um momento espantoso! Eis que o Homem domestica o Animal! Desse
cachorro agasalhado no Paraíso nascerá o cão amigo, por ele a aliança com o cavalo, depois o domínio sobre a
ovelha. O rebanho crescerá; o pastor o levará; o cão fiel o guardará. Eva, da beira do seu lume, prepara os
povos errantes que pastoreiam os gados.
Depois, naquelas longas manhãs em que Adão bravio caçava, Eva, errando de vale a monte, apanhava
conchas, ovos de aves, curiosas raízes, sementes, com o gosto de acumular, de abastecer a sua toca de
riquezas novas, que escondia nas fendas da rocha. Ora um punhado dessas sementes caíra, através dos seus
dedos, sobre a terra úmida e negra, quando recolhia pela beira da fonte. Uma ponta verde brotou; depois uma
haste cresceu; depois uma espiga amadurou. Os seus grãos são gostosos. Eva, pensativa, enterra outras
sementes, na esperança de criar em torno do seu lar, num bocado do seu torrão, altas ervas que espiguem, e
lhe tragam o grão adocidado e tenro... E eis a seara! E assim nossa Mãe torna possíveis, do fundo do Paraíso,
os povos estáveis que lavram a terra.
No entanto, bem podemos supor que Abel nasceu - e, uns após outros, os dias deslizam no Paraíso,
mais seguros e fáceis. Já os vulcões lentamente se vão apagando. As rochas não se despenham já com fragor
sobre a abundância inocente dos vales. Tão amansadas andam as águas, que na sua transparência se miram,
com demora e cuidado, as nuvens e os ramos dos olmos. Raramente um Pterodáctilo macula, com o escândalo
do seu bico e das suas asas, os céus, onde o sol alterna com a bruma, e os estios se franjam de chuvas ligeiras.
E nessa tranqüilidade que se estabelece, há como uma submissão consciente. O Mundo pressente e aceita a
supremacia do Homem. A floresta já não arde com a leviandade do restolho, sabendo que em breve o Homem
lhe pedirá a estaca, a trave, o remo, o mastro. O vento, nas gargantas da serra, brandamente se disciplina, e
ensaia os sopros regulares com que trabalhará a mó do moinho. O mar afogou os seus monstros, e estira o
dorso preparado para o cortar da quilha. A terra torna estável a sua gleba, e molemente se umedece, para
quando chegar o arado e a semente. E todos os metais se alinham em filão, e alegremente se dispõem para o
fogo que lhes dará forma e beleza.
E pela tarde Adão recolhe contente, com caça abundante. A lareira flameja: e alumia a face de nosso
Pai, que o esforço da Vida embelezou, onde já os beiços se adelgaçam, e a testa se encheu com o lento pensar,
e os olhos sossegaram num brilho mais certo. O anho, espetado num pau, assa e pinga nas brasas. No chão
pousam cascas de coco, cheias de clara água da fonte. Uma pele de urso tornou macio o leito de fetos. Outra
pele, pendurada, abriga a boca da caverna. A um canto, que é a oficina, estão os montões de sílex e o malho; a
outro canto, que é o arsenal, estão as lanças e as clavas. Eva torce os fios duma lã de cabra. Ao bom calor,
sobre folhelho, dorme Abel, muito gordo, todo nu, com um pêlo mais ralo na carninha mais branca.
Partilhando do folhelho e do mesmo calor, vela o cão, já crescido, com o olho amorável, o focinho entre as
patas. E Adão (oh, a estranha tarefa!), muito absorto, tenta gravar, com uma ponta de pedra, sobre um osso
largo, os galhos, o dorso, as pernas estiradas de um veado a correr!... A lenha estala. Todas as estrelas do céu
estão presentes. Deus, pensativo, contempla o crescer da Humanidade.
E agora que acendi, na noite estrelada do Paraíso, com galhos bem secos da Árvore da Ciência, este
verídico lar, consenti que vos deixe, oh Pais veneráveis!
Já não receio que a Terra instável vos esmague; ou que as feras superiores vos devorem; ou que,
apagada, à maneira duma lâmpada imperfeita, a Energia que vos trouxe da Floresta, vós retrogradeis à vossa
Árvore. Sois já irremediavelmente humanos - e cada manhã progredireis, com tão poderoso arremesso para a
perfeição do Corpo e esplendor da Razão, que em breve, dentro dumas centenas de milhares de curtos anos,
Eva será Helena e Adão será o imenso Aristóteles.
Mas não sei se vos felicite, oh Pais veneráveis! Outros irmãos vossos ficaram na espessura das arvores
- e a sua vida é doce. Todas as manhãs o Orangotango acorda entre os seus lençóis de folhas de pendenia,
sobre o fofo colchão de musgos que ele, com cuidado, acamou por cima dum catre de ramos cheirosos.
Lânguidamente, sem cuidados, preguiça na moleza dos musgos, escutando as límpidas árias dos pássaros,
gozando os fios do sol que se emaranham por entre a renda das folhas e lambendo no pêlo dos seus braços o
orvalho açucarado. Depois de bem se coçar e bem se esfregar, sobe com pachorra à arvore dileta, que elegeu
em todo o bosque pela sua frescura, pela elasticidade embaladora das suas ramagens. Daí, tendo respirado as
brisas carregadas de aromas, salta, com lestos pulos, através das sempre fáceis, sempre fartas ucharias do
bosque, onde almoça a banana, a manga, a goiaba, todos os finos frutos que o tornam tão são e alheio a males
como as árvores onde os colheu. Percorre então, sociàvelmente, as ruas e as vielas palreiras da espessura;
cabriola com destros amigos, em jogos amáveis de ligeireza e força; galanteia as Orangas gentis que o catam,
e penduradas com ele, duma liana florida, balançam chalrando; trota, entre alegres ranchos, pela borda das
águas claras; ou, sentado na ponta dum ramo, escuta algum velho e facundo chimpanzé contando divertidas
histórias de caça, de viagens, de amores e de troças às feras pesadas, que circulam nas relvas e não podem
trepar. Cedo recolhe à sua árvore e, estendido na folhosa rede, brandamente se abandona à delícia de sonhar,
num sonho acordado, semelhante às nossas Metafísicas e às nossas Epopeias, mas que, rolando todo sobre
sensações reais, é, ao contrário dos nossos incertos sonhos, um sonho todo feito de certeza. Por fim a Floresta
lentamente se cala, a sombra escorrega entre os troncos: − e o Orango ditoso desce ao seu catre de pendenias e
musgos, e adormece na imensa paz de Deus - de Deus que ele nunca se cansou em comentar, nem sequer em
negar, e que todavia sobre ele derrama, com imparcial carinho, os bens inteiros da sua Misericórdia.
Assim ocupou o seu dia o Orango, nas Árvores. E no entanto, como gastou, nas Cidades, o seu dia o
Homem, primo do Orango? Sofrendo − por ter os dons superiores que faltam ao Orango! Sofrendo - por
arrastar consigo, irresgatàvelmente, esse mal incurável que é a sua Alma! Sofrendo - porque nosso Pai Adão,
no terrível dia 28 de outubro, depois espreitar e farejar o Paraíso, não ousou declarar reverentemente ao
Senhor: − “Obrigado, oh meu doce Criador; dá o governo da Terra a quem melhor escolheres, ao Elefante ou
ao Canguru, que eu por mim, bem mais avisado, volto já para a minha árvore!...”
Mas, enfim, desde que nosso Pai venerável não teve a previdência ou a abnegação de declinar a grande
Supremacia - continuemos a reinar sobre a Criação e a ser sublimes... Sobretudo continuemos a usar,
insaciàvelmente, do dom melhor que Deus nos concedeu entre todos os dons, o mais puro, o único
genuìnamente grande, o dom de o amar - pois que não nos concedeu também o dom de o compreender. E não
esqueçamos que Ele já nos ensinou, através de vozes levantadas em Galileia, e sob as mangueiras de
Veluvana, e nos vales severos de Yen-Chou, que a melhor maneira de o amar é que uns aos outros nos
amemos, e que amemos toda a sua obra, mesmo o verme, e a rocha dura, e a raiz venenosa, e até esses vastos
seres que não parecem necessitar o nosso amor, esses Sóis, esses Mundos, essas esparsas Nebulosas, que,
inicialmente fechadas, como nós, na mão de Deus, e feitas da nossa substância, nem decerto nos amam - nem
talvez nos conhecem.
A Aia
ERA uma vez um rei, moço e valente, senhor de um reino abundante em cidades e searas, que partira a
batalhar por terras distantes, deixando solitária e triste a sua rainha e um filhinho, que ainda vivia no seu
berço, dentro das suas faixas.
A Lua-cheia que o vira marchar, levado no seu sonho de conquista e de fama, começava a minguar -
quando um dos seus cavaleiros apareceu, com as armas rotas, negro do sangue seco e do pó dos caminhos,
trazendo a amarga nova de uma batalha perdida e da morte do rei, traspassado por sete lanças entre a flor da
sua nobreza, à beira de um grande rio. A rainha chorou magnìficamente o rei. Chorou ainda desoladamente o
esposo, que era formoso e alegre. Mas, sobretudo, chorou ansiosamente o pai que assim deixava o filhinho
desamparado, no meio de tantos inimigos da sua frágil vida e do reino que seria seu, sem um braço que o
defendesse, forte pela força e forte pelo amor.
Desses inimigos o mais temeroso era seu tio, irmão bastardo do rei, homem depravado e bravio,
consumido de cobiças grosseiras, desejando só a realeza por causa dos seus tesouros, e que havia anos vivia
num castelo sobre os montes, com uma horda de rebeldes, à maneira de um lobo que, de atalaia no seu fojo,
espera a presa. Ai! a presa agora era aquela criancinha, rei de mama, senhor de tantas províncias, e que
dormia no seu berço com seu guizo de ouro fechado na mão!
Ao lado dele, outro menino dormia noutro berço. Mas este era um escravozinho, filho da bela e robusta
escrava que amamentava o príncipe. Ambos tinham nascido na mesma noite de Verão. O mesmo seio os
criava. Quando a rainha, antes de adormecer, vinha beijar o prìncipezinho, que tinha o cabelo louro e fino,
beijava também por amor dele o escravozinho, que tinha o cabelo negro e crespo. Os olhos de ambos reluziam
como pedras preciosas. Sòmente, o berço de um era magnífico e de marfim, entre brocados - e o berço do
outro pobre e de verga. A leal escrava, porém, a ambos cercava de carinho igual, porque se um era o seu filho
- o outro seria o seu rei.
Nascida naquela casa real, ela tinha a paixão, a religião dos seus senhores. Nenhum pranto correra
mais sentidamente do que o seu pelo rei morto à beira do grande rio. Pertencia, porém, a uma raça que
acredita que a vida da terra se continua no Céu. O rei seu amo, decerto, já estaria agora reinando num outro
reino, para além das nuvens, abundante também em searas e cidades. O seu cavalo de batalha, as suas armas,
os seus pajens tinham subido com ele às alturas. Os seus vassalos, que fossem morrendo, prontamente iriam,
nesse reino celeste, retomar em torno dele a sua vassalagem. E ela um dia, por seu turno, remontaria num raio
de luz a habitar o palácio do seu senhor, e a fiar de novo o linho das suas túnicas, e a acender de novo a
caçoleta dos seus perfumes; seria no Céu como fora na terra, e feliz na sua servidão.
Todavia, também ela tremia pelo seu prìncipezinho! Quantas vezes, com ele pendurado do peito,
pensava na sua fragilidade, na sua longa infância, nos anos lentos que correriam antes que ele fosse ao menos
do tamanho de uma espada, e naquele tio cruel, de face mais escura que a noite e coração mais escuro que a
face, faminto do trono, e espreitando de cima do seu rochedo entre os alfanges da sua horda! Pobre
prìncipezinho da sua alma! Com uma ternura maior o apertava então nos braços. Mas se o seu filho chalrava
ao lado - era para ele que os seus braços corriam com um ardor mais feliz. Esse, na sua indigência, nada tinha
a recear da vida. Desgraças, assaltos da sorte má nunca o poderiam deixar mais despido das glórias e bens do
mundo do que já estava ali no seu berço, sob o pedaço de linho branco que resguardava a sua nudez. A
existência, na verdade, era para ele mais preciosa e digna de ser conservada do que a do seu príncipe, porque
nenhum dos duros cuidados com que ela enegrece a alma dos senhores roçaria sequer a sua alma livre e
simples de escravo. E, como se o amasse mais por aquela humildade ditosa, cobria o seu corpinho gordo de
beijos pesados e devoradores - dos beijos que ela fazia ligeiros sobre as mãos do seu príncipe.
No entanto um grande temor enchia o palácio, onde agora reinava uma mulher entre mulheres. O
bastardo, o homem de rapina, que errava no cimo das serras, descera à planície com a sua horda, e já através
de casais e aldeias felizes ia deixando um sulco de matança e ruínas. As portas da cidade tinham sido seguras
com cadeias mais fortes. Nas atalaias ardiam lumes mais altos. Mas à defesa faltava disciplina viril. Uma roca
não governa como uma espada. Toda a nobreza fiel perecera na grande batalha. E a rainha desventurosa
apenas sabia correr a cada instante ao berço do seu filhinho e chorar sobre ele a sua fraqueza de viúva. Só a
ama leal parecia segura - como se os braços em que estreitava o seu príncipe fossem muralhas de uma
cidadela que nenhuma audácia pode transpor.
Ora uma noite, noite de silêncio e de escuridão, indo ela a adormecer, já despida, no seu catre, entre os
seus dois meninos, adivinhou, mais que sentiu, um curto rumor de ferro e de briga, longe, à entrada dos
vergéis reais. Embrulhada à pressa num pano, atirando os cabelos para trás, escutou ansiosamente. Na terra
areada, entre os jasmineiros, corriam passos pesados e rudes. Depois houve um gemido, um corpo tombando
molemente, sobre lajes, como um fardo. Descerrou violentamente a cortina. E além, ao fundo da galeria,
avistou homens, um clarão de lanternas, brilhos de armas... Num relance tudo compreendeu - o palácio
surpreendido, o bastardo cruel vindo roubar, matar o seu príncipe! Então, ràpidamente, sem uma vacilação,
uma dúvida, arrebatou o príncipe do seu berço de marfim, atirou-o para o pobre berço de verga - e tirando o
seu filho do berço servil, entre beijos desesperados, deitou-o no berço real que cobriu com um brocado.
Bruscamente um homem enorme, de face flamejante, com um manto negro sobre a cota de malha,
surgiu à porta da câmara, entre outros, que erguiam lanternas. Olhou - correu ao berço de marfim onde os
brocados luziam, arrancou a criança, como se arranca uma bolsa de ouro, e abafando os gritos no manto,
abalou furiosamente.
O príncipe dormia no seu novo berço. A ama ficara imóvel no silêncio e na treva.
Mas brados de alarme atroaram de repente o palácio. Pelas janelas perpassou o longo flamejar das
tochas. Os pátios ressoavam com o bater das armas. E desgrenhada, quase nua, a rainha invadiu a câmara,
entre as aias, gritando pelo seu filho. Ao avistar o berço de marfim, com as roupas desmanchadas, vazio, caiu
sobre as lajes, num choro, despedaçada. então calada, muito lenta, muito pálida, a ama descobriu o pobre
berço de verga... O príncipe lá estava, quieto, adormecido, num sonho que o fazia sorrir, lhe iluminava toda a
face entre os seus cabelos de ouro. A mãe caiu sobre o berço, com um suspiro, como cai um corpo morto.
E nesse instante um novo clamor abalou a galeria de mármore. Era o capitão dos guardas, a sua gente
fiel. Nos seus clamores havia, porém, mais tristeza que triunfo. O bastardo morrera! Colhido, ao fugir, entre o
palácio e a cidadela, esmagado pela forte legião de archeiros, sucumbira, ele e vinte da sua horda. O seu corpo
lá ficara, com flechas no flanco, numa poça de sangue. Mas ai! dor sem nome! O corpozinho tenro do
príncipe lá ficara também, envolto num manto, já frio, roxo ainda das mãos ferozes que o tinham esganado!...
Assim tumultuosamente lançavam a nova cruel os homens de armas - quando a rainha, deslumbrada, com
lágrimas entre risos, ergueu nos braços, para lho mostrar, o príncipe que despertara.
Foi um espanto, uma aclamação. Quem o salvara? Quem?... Lá estava junto do berço de marfim vazio,
muda e hirta, aquela que o salvara! Serva sublimemente leal! Fora ela que, para conservar a vida ao seu
príncipe, mandara à morte o seu filho... Então, só então, a mãe ditosa, emergindo da sua alegria extática,
abraçou apaixonadamente a mãe dolorosa, e a beijou, e lhe chamou irmã do seu coração... E de entre aquela
multidão que se apertava na galeria veio uma nova, ardente aclamação, com súplicas de que fosse
recompensada, magnìficamente, a serva admirável que salvara o rei e o reino.
Mas como? Que bolsas de ouro podem pagar um filho? Então um velho de casta nobre lembrou que
ela fosse levada ao tesouro real, e escolhesse de entre essas riquezas, que eram como as maiores dos maiores
tesouros da Índia, todas as que o seu desejo apetecesse...
A rainha tomou a mão da serva. E sem que a sua face de mármore perdesse a rigidez, com um andar de
morta, como num sonho, ela foi assim conduzida para a Câmara dos Tesouros. Senhores, aias, homens de
armas, seguiam num respeito tão comovido que apenas se ouvia o roçar das sandálias nas lajes. As espessas
portas do Tesouro rodaram lentamente. E, quando um servo destrancou as janelas, a luz da madrugada, já
clara e rósea, entrando pelos gradeamentos de ferro, acendeu um maravilhoso e faiscante incêndio de ouro e
pedrarias! Do chão de rocha até às sombrias abóbadas, por toda a câmara, reluziam, cintilavam, refulgiam os
escudos de ouro, as armas marchetadas, os montões de diamantes, as pilhas de moedas, os longos fios de
pérolas, todas as riquezas daquele reino, acumuladas por cem reis durante vinte séculos. Um longo ah, lento e
maravilhado, passou por sobre a turba que emudecera. Depois houve um silêncio, ansioso. E no meio da
câmara, envolta na refulgência preciosa, a ama não se movia... Apenas os seus olhos, brilhantes e secos, se
tinham erguido para aquele céu que, além das grades, se tingia de rosa e de ouro. Era lá, nesse céu fresco de
madrugada, que estava agora o seu menino. Estava lá, e já o Sol se erguia, e era tarde, e o seu menino chorava
decerto, e procurava o seu peito!... Então a ama sorriu e estendeu a mão. Todos seguiam, sem respirar, aquele
lento mover da sua mão aberta. Que jóia maravilhosa, que fio de diamantes, que punhado de rubis, ia ela
escolher?
A ama estendia a mão - e sobre um escabelo ao lado, entre um molho de armas, agarrou um punhal.
Era um punhal de um velho rei, todo cravejado de esmeraldas, e que valia uma província.
Agarrara o punhal, e com ele apertado fortemente na mão, apontando para o céu, onde subiam os
primeiros raios do Sol, encarou a rainha, a multidão, e gritou:
− Salvei o meu príncipe, e agora - vou dar de mamar ao meu filho!
E cravou o punhal no coração.
O Defunto
NO ano de 1474, que foi por toda a Cristandade tão abundante em mercês divinas, reinando em Castela el-rei
Henrique IV, veio habitar na cidade de Segóvia, onde herdara moradias e uma horta, um cavaleiro moço, de
muito limpa linhagem e gentil parecer, que se chamava D. Rui de Cardenas.
Essa casa, que lhe legara seu tio, arcediago e mestre em cânones, ficava ao lado e na sombra silenciosa
da igreja de Nossa Senhora do Pilar; e, em frente, para além do adro, onde cantavam as três bicas de um
chafariz antigo, era o escuro e gradeado palácio de D. Alonso de Lara, fidalgo de grande riqueza e maneiras
sombrias, que já na madureza da sua idade, todo grisalho, desposara uma menina falada em Castela pela sua
alvura, cabelos cor de sol-claro e colo de garça real. D. Rui tivera justamente por madrinha, ao nascer, Nossa
Senhora do Pilar, de quem sempre se conservou devoto e fiel servidor; ainda que, sendo de sangue bravo e
alegre, amava as armas, a caça, os saraus bem galanteados, e mesmo por vezes uma noite ruidosa de taverna
com dados e pichéis de vinho. Por amor, e pelas facilidades desta santa vizinhança, tomara ele o piedoso
costume, desde a sua chegada a Segóvia, de visitar todas as manhãs, à hora de Prima, a sua divina madrinha e
de lhe pedir, em três Ave-Marias, a bênção e a graça.
Ao escurecer, mesmo depois de alguma rija correria por campo e monte com lebréus ou falcão, ainda
voltava para, à saudação de Vésperas, murmurar docemente uma Salve-Rainha.
E todos os domingos comprava no adro, a uma ramalheteira mourisca, algum ramo de junquilhos, ou
cravos, ou rosas singelas, que espalhava, com ternura e cuidado galante, em frente ao altar da Senhora.
A esta venerada igreja do Pilar vinha também cada domingo D. Leonor, a tão falada e formosa mulher
do senhor de Lara, acompanhada por uma aia carrancuda, de olhos mais abertos e duros que os de uma coruja,
e por dois possantes lacaios que a ladeavam e guardavam como torres. Tão ciumento era o senhor D. Alonso
que, só por lho haver severamente ordenado o seu confessor, e com medo de ofender a Senhora, sua vizinha,
permitia esta visita fugitiva, a que ele ficava espreitando sofregamente, de entre as rexas de uma gelosia, os
passos e a demora. Todos os lentos dias da lenta semana os passava a senhora D. Leonor no encerro do
gradeado solar de granito negro, não tendo para se recrear e respirar, mesmo nas calmas do Estio, mais que
um fundo de jardim verde-negro, cercado de tão altos muros, que apenas se avistava, emergindo deles, aqui,
além, alguma ponta de triste cipreste. Mas essa curta visita a Nosa Senhora do Pilar bastou para que D. Rui se
enamorasse dela tresloucadamente, na manhã de Maio em que a viu de joelhos ante o altar, numa réstia de sol,
aureolada pelos seus cabelos de ouro, com as compridas pestanas pendidas sobre o livro de Horas, o rosário
caindo de entre os dedos finos, fina toda ela e macia, e branca, de uma brancura de lírio aberto na sombra,
mais branca entre as rendas negras e os negros cetins que à volta do seu corpo cheio de graça se quebravam,
em pregas duras, sobre as lajes da capela, velhas lajes de sepulturas. Quando depois dum momento de enleio e
de delicioso pasmo se ajoelhou, foi menos para a Virgem do Pilar, sua divina Madrinha, do que para aquela
aparição mortal, de quem não sabia o nome nem a vida, e só que por ela daria vida e nome, se ela se rendesse
por tão incerto preço. Balbuciando, com uma prece ingrata, as três Ave-Marias com que cada manhã saudava
Maria, apanhou o seu sombreiro, desceu levemente a nave sonora e no portal se quedou, esperando por ela
entre os mendigos lazarentos que se catavam ao sol. Mas, quando ao cabo de um tempo, em que D. Rui sentiu
no coração um desusado bater de ansiedade e medo, a senhora D. Leonor passou e se deteve, molhando os
dedos na pia de mármore de água benta, os seus olhos, sob o véu descido, não se ergueram para ele, ou
tímidos ou desatentos. Com a aia de olhos muito abertos colada aos vestidos, entre os dois lacaios, como entre
duas torres, atravessou vagarosamente o adro, pedra por pedra, gozando decerto, como encarcerada, o
desafogado ar e o livre sol que o inundavam. E foi um espanto para D. Rui quando ela penetrou na sombria
arcada, de grossos pilares, sobre que assentava o palácio, e desapareceu por uma esguia porta recoberta de
ferragens. Era, pois, essa a tão falada D. Leonor, a linda e nobre senhora de Lara...
Então começaram sete arrastados dias, que ele gastou sentado a um poial da sua janela, considerando
aquela negra porta recoberta de ferragens como se fosse a do Paraíso, e por ela devesse sair um anjo para lhe
anunciar a Bem-Aventurança. Até que chegou o vagaroso domingo: e passando ele no adro, à hora de Prima,
ao repicar dos sinos, com um molho de cravos amarelos para a sua divina Madrinha, cruzou D. Leonor, que
saía de entre os pilares da escura arcada, branca, doce e pensativa, como uma lua de entre as nuvens. Os
cravos quase lhe caíram naquele gostoso alvoroço em que o peito lhe arfou mais que um mar, e a alma toda
lhe fugiu em tumulto através do olhar com que a devorava. E ela ergueu também os olhos para D. Rui, mas
uns olhos repousados, uns olhos serenos, em que não luzia curiosidade, nem mesmo consciência de se estarem
trocando com outros, tão acesos e enegrecidos pelo desejo. O moço cavaleiro não entrou na igreja, com
piedoso receio de não prestar à sua Madrinha divina a atenção, que decerto lhe roubaria toda aquela que era só
humana, mas dona já do seu coração, e nele divinizada.
Esperou sôfregamente à porta, entre os mendigos, secando os cravos com o ardor das mãos trémulas,
pensando quanto era demorado o rosário que ela rezava. Ainda D. Leonor descia a nave, já ele sentia dentro
de alma o doce rugir das sedas fortes que ela arrastava nas lajes. A branca senhora passou -e o mesmo
distraído olhar, desatento e calmo, que espalhou pelos mendigos e pelo adro, o deixou escorregar sobre ele, ou
porque não compreendesse aquele moço que de repente se tornara tão pálido, ou porque não o diferenciava
ainda das coisas e das formas indiferentes.
D. Rui abalou, com um fundo suspiro; e, no seu quarto, pôs devotamente ante a imagem da Virgem as
flores que não oferecera, na igreja, ao seu altar. Toda a sua vida se tornou então um longo queixume por sentir
tão fria e desumana aquela mulher, única entre as mulheres, que prendera e tornara sério o seu coração ligeiro
e errante. Numa esperança, a que antevia bem o desengano, começou a rondar os muros altos do jardim - ou
embuçado numa capa, com o ombro contra uma esquina, lentas horas se quedava contemplando as grades das
gelosias, negras e grossas como as dum cárcere. Os muros não se fendiam, das grades não saía sequer um
rasto de luz prometedora. Todo o solar era como um jazigo onde jazia uma insensível, e por trás das frias
pedras havia ainda um frio peito. Para se desafogar compôs, com piedoso cuidado, em noites veladas sobre o
pergaminho, trovas gementes que o não desafogavam. Diante do altar da Senhora do Pilar, sobre as mesmas
lajes onde a vira ajoelhada, pousava ele os joelhos, e ficava, sem palavras de oração, num cismar amargo e
doce, esperando que o seu coração serenasse e se consolasse, sob a influência d’Aquela que tudo consola e
serena. Mas sempre se erguia mais desditoso e tendo apenas a sensação de quanto eram frias e rígidas as
pedras sobre que ajoelhara. O mundo todo só lhe parecia conter rigidez e frieza.
Outras claras manhãs de domingo encontrou D. Leonor: e sempre os olhos dela permaneciam
descuidados e como esquecidos, ou quando se cruzavam com os seus era tão singelamente, tão limpos de toda
a emoção, que D. Rui os preferiria ofendidos e faiscando de ira, ou soberbamente desviados com soberbo
desdém. Decerto D. Leonor já o conhecia: − mas, assim, conhecia também a ramalheteira mourisca agachada
diantedo seu cesto à beira da fonte; ou os pobres que se catavam ao sol diante do portal da Senhora. Nem D.
Rui já podia pensar que ela fosse desumana e fria. Era apenas soberanamente remota, como uma estrela que
nas alturas gira e refulge, sem saber que, em baixo, num mundo que ela não distingue, olhos que ela não
suspeita a contemplam, a adoram e lhe entregam o governo da sua ventura e sorte.
Então D. Rui pensou:
− Ela não quer, eu não posso: foi um sonho que findou, e Nossa Senhora a ambos nos tenha na sua
graça!
E como era cavaleiro muito discreto, desde que a reconheceu assim inabalável na sua indiferença, não
a procurou, nem sequer ergueu mais os olhos para as grades das suas janelas, e até nem penetrava na igreja de
Nossa Senhora quando casualmente, do portal, a avistava ajoelhada, com a sua cabeça tão cheia de graça e de
ouro, pendida sobre o Livro das Horas.
II
A VELHA aia, de olhos mais abertos e duros que os de uma coruja, não tardara em contar ao senhor de Lara
que um moço audaz, de gentil parecer, novo morador nas velhas casas do arcediago, constantemente se
atravessava no adro, se postava diante da igreja para atirar o coração pelos olhos à senhora D. Leonor. Bem
amargamente o sabia já o ciumento fidalgo, porque quando da sua janela espreitava, como um falcão, a airosa
senhora a caminho da igreja, observara os giros, as esperas, os olhares dardejados daquele moço galante - e
puxara as barbas de furor. Desde então, na verdade, a sua mais intensa ocupação era odiar D. Rui, o
impudente sobrinho do cônego, que ousava erguer o seu baixo desejo até à alta senhora de Lara.
Constantemente agora o trazia vigiado por um serviçal - e conhecia todos os seus passos e pousos, e os
amigos com quem caçava ou folgava, e até quem lhe talhava os gibões, e até quem lhe polia a espada, e cada
hora do seu viver. E mais ansiosamente ainda vigiava D. Leonor - cada um dos seus movimentos, os mais
fugitivos modos, os silêncios e o conversar com as aias, as distrações sobre o bordado, o jeito de cismar sob as
árvores do jardim, e o ar e a cor com que recolhia da igreja... Mas tão inalteradamente serena, no seu sossego
de coração, se mostrava a senhora D. Leonor, que nem o ciúme mais imaginador de culpas poderia achar
manchas naquela pura neve. Redobradamente áspero então se voltava o rancor de D. Alonso contra o
sobrinho do cônego, por ter apetecido aquela pureza, e aqueles cabelos cor de sol-claro, e aquele colo de garça
real, que eram só seus, para esplêndido gosto da sua vida. E quando passeava na sombria galeria do solar,
sonora e toda de abóbada, embrulhado na sua samarra orlada de peles, com o bico da barba grisalha espetado
para diante, a grenha crespa eriçada para trás e os punhos cerrados, era sempre remoendo o mesmo fel:
− Tentou contra a virtude dela, tentou contra a minha honra... É culpado por duas culpas e merece duas
mortes!
Mas ao seu furor quase se misturou um terror, quando soube que D. Rui já não esperava no adro a
senhora D. Leonor, nem rondava amorosamente os muros do palacete, nem penetrava na igreja quando ela lá
rezava, aos domingos; e que tão inteiramente se alheava dela que uma manhã, estando rente da arcada, e
sentindo bem ranger e abrir a porta por onde a senhora ia aparecer, permanecera de costas voltadas, sem se
mover, rindo com um cavaleiro gordo que lhe lia um pergaminho. Tão bem afectada indiferença só servia
decerto (pensou D. Alonso) a esconder alguma bem danada tenção! Que tramava ele, o destro enganador?
Tudo no desabrido fidalgo se exacerbou - ciúme, rancor, vigilância, pesar da sua idade grisalha e feia. No
sossego de D. Leonor suspeitou manha e fingimento; − e imediatamente lhe vedou as visitas à Senhora do
Pilar.
Nas manhãs costumadas corria ele à igreja para rezar o rosário, a levar as desculpas de D. Leonor -
“que no puede venir (murmurava curvado diante do altar) por lo que sabeis, virgem puríssima!”
Cuidadosamente visitou e reforçou todos os negros ferrolhos das portas do seu solar.
De noite soltava dois mastins nas sombras do jardim murado.
À cabeceira do vasto leito, junto da mesa onde ficava a lâmpada, um relicário e o copo de vinho quente
com canela e cravo para lhe retemperar as forças - luzia sempre uma grande espada numa. Mas, com tantas
seguranças, mal dormia - e a cada instante se solevava em sobressalto de entre as fundas almofadas, agarrando
a senhora D. Leonor com mão bruta e sôfrega, que lhe pisava o colo, para rugir muito baixo, numa ânsia: “Diz
que me queres só a mim!...” Depois, com a alvorada, lá se empoleirava, a espreitar, como um falcão, as
janelas de D. Rui. Nunca o avistava, agora, nem à porta da igreja às horas de missa, nem recolhendo do
campo, a cavalo, ao toque de Ave-Marias.
E por o sentir assim sumido dos sítios e giros costumados - é que mais o suspeitava dentro do coração
de D. Leonor.
Enfim, uma noite, depois de muito trilhar o lajedo da galeria, remoendo surdamente desconfianças e
ódios, gritou pelo intendente e ordenou que se preparassem trouxas e cavalgaduras. Cedo, de madrugada,
partiria, com a senhora D. Leonor, para a sua herdade de Cabril, a duas léguas de Segóvia! A partida não foi
de madrugada, como uma fuga de avarento que vai esconder longe o seu tesouro: − mas realizada com aparato
e demora, ficando a liteira diante da arcada, a esperar longas horas, de cortinas abertas, enquanto um
cavalariço passeava pelo adro a mula branca do fidalgo, enxairelada à mourisca, e do lado do jardim a récua
de machos, carregados de baús, presos às argolas, sob o sol e a mosca, aturdiam a viela com o tilintar dos
guizos. Assim D. Rui soube a jornada do senhor de Lara: − e assim a soube toda a cidade.
Fora um grande contentamento para D. Leonor, que gostava de Cabril, dos seus viçosos pomares, dos
jardins, para onde abriam, rasgadamente e sem grades, as janelas dos seus aposentos claros: aí ao menos tinha
largo ar, pleno sol, e alegretes a regar, um viveiro de pássaros, e tão compridas ruas de loureiro e teixo, que
eram quase a liberdade. E depois esperava que no campo se aligeirassem aqueles cuidados que traziam, nos
derradeiros tempos, tão enrugado e taciturno seu marido e senhor. Não logrou esta esperança, porque ao cabo
de uma semana ainda se não desanuviara a face de D. Alonso - nem decerto havia frescura de arvoredos,
sussurros de águas correntes, ou aromas esparsos nos rosais em flor, que calmassem agitação tão amarga e
funda. Como em Segóvia, na galeria sonora de grande abóbada, sem descanso passeava, enterrado na sua
samarra, com o bico da barba espetado para diante, a grenha basta eriçada para trás, e um jeito de arreganhar
silenciosamente o beiço, como se meditasse maldades a que gozava de antemão o sabor acre. E todo o
interesse da sua vida se concentrara num serviçal, que constantemente galopava entre Segóvia e Cabril, e que
ele por vezes esperava no começo da aldeia, junto ao Cruzeiro, ficando a escutar o homem que desmontava,
ofegante, e logo lhe dava novas apressadas.
Uma noite em que D. Leonor, no seu quarto, rezava o terço com as aias, à luz duma tocha de cera, o
senhor de Laras entrou muito vagarosamente, trazendo na mão uma folha de pergaminho e uma pena
mergulhada no seu tinteiro de osso. Com um rude aceno despediu as aias, que o temiam como a um lobo. E,
empurrando um escabelo para junto da mesa, volvendo para D. Leonor a face a que impusera tranquilidade e
agrado, como se apenas viesse por coisas naturais e fáceis:
− Senhora - disse - quero que me escrevais aqui uma carta que muito convém escrever...
Tão costumada era nela a submissão, que, sem outro reparo ou curiosidade, indo apenas pendurar na
barra do leito o rosário em que rezara, se acomodou sobre o escabelo, e os seus dedos finos, com muita
aplicação, para que a letra fosse esmerada e clara, traçaram a primeira linha curta que o Senhor de Lara ditara
e era: “Meu cavaleiro...” Mas quando ele ditou a outra, mais longa, e dum modo amargo, D. Leonor arrojou a
pena, como se a pena escaldasse, e, recuando da mesa, gritou, numa aflição:
− Senhor, para que convém que eu escreva tais coisas e tão falsas?...
Num brusco furor, o senhor de Lara arrancou do cinto um punhal, que lhe agitou junto à face, rugindo
surdamente:
− Ou escreveis o que vos mando e que a mim me convém, ou, por Deus, que vos varo o coração!
Mais branca que a cera da tocha que os alumiava, com a carne arrepiada ante aquele ferro que luzia,
num tremor supremo e que tudo aceitava, D. Leonor murmurou:
− Pela Virgem Maria, não me façais mal!... Nem vos agasteis, senhor, que eu vivo para vos obedecer e
servir... Agora, mandai, que eu escreverei.
Então, com os punhos cerrados nas bordas da mesa, onde pousara o punhal, esmagando a frágil e
desditosa mulher sob o olhar duro que fuzilava, o senhor de Lara ditou, atirou roucamente, aos pedaços, aos
repelões, uma carta que dizia, quando finda e traçada em letra bem incerta e trémula: − “Meu cavaleiro: Muito
mal haveis compreendido, ou muito mal pagais o amor que vos tenho, e que não vos pude nunca, em Segóvia,
mostrar claramente... Agora aqui estou em Cabril, ardendo por vos ver; e se o vosso desejo corresponde ao
meu, bem fàcilmente o podeis realizar, pois que meu marido se acha ausente noutra herdade, e esta de Cabril
é toda fácil e aberta. Vinde esta noite, entrai pela porta do jardim, do lado da azinhaga, passando o tanque, até
ao terraço. Aí avistareis uma escada encostada a uma janela da casa, que é a janela do meu quarto, onde sereis
bem docemente agasalhado por quem ansiosamente vos espera...”
− Agora, senhora, assinai por baixo o vosso nome, que isso sobretudo convém!
D. Leonor traçou vagarosamente o seu nome, tão vermelha como se a despissem diante de uma
multidão.
− E agora - ordenou o marido mais surdamente, através dos dentes cerrados - endereçai a D. Rui de
Cardenas!
Ela ousou erguer os olhos, na surpresa daquele nome desconhecido.
− Andai!... A D. Rui de Cardenas! - gritou o homem sombrio.
E ela endereçou a sua desonesta carta a D. Rui de Cardenas.
D. Alonso meteu o pergaminho no cinto, junto ao punhal que embainhara, e saiu em silêncio com a
barba espetada, abafando o rumor dos passos nas lajes do corredor.
Ela ficara sobre o escabelo, as mãos cansadas e caídas no regaço, num infinito espanto, o olhar perdido
na escuridão da noite silente. Menos escura lhe parecia a morte que essa escura aventura em que se sentia
envolvida e levada!. Quem era esse D. Rui de Cardenas, de quem nunca ouvira falar, que nunca atravessara a
sua vida, tão quieta, tão pouco povoada de memórias e de homens? E ele decerto a conhecia, a encontrara, a
seguira, ao menos com os olhos, pois que era coisa natural e bem ligada receber dela carta de tanta paixão e
promessa...
Assim, um homem, e moço decerto bem nascido, talvez gentil, penetrava no seu destino bruscamente,
trazido pela mão de seu marido? Tão ìntimamente mesmo se entranhara esse homem na sua vida, sem que ela
se apercebesse, que já para ele se abria de noite a porta do seu jardim, e contra a sua janela, para ele subir, se
arrumava de noite uma escada!... E era seu marido que muito secretamente escancarava a porta, e muito
secretamente levantava a escada... Para quê?...
Então, num relance, D. Leonor compreendeu a verdade, a vergonhosa verdade, que lhe arrancou um
grito ansiado e mal sufocado. Era uma cilada! O senhor de Lara atraía a Cabril esse D. Rui com uma
promessa magnífica, para dele se apoderar, e decerto o matar, indefeso e solitário! E ela, o seu amor, o seu
corpo, eram as promessas que se faziam rebrilhar ante os olhos seduzidos do moço desventuroso. Assim seu
marido usava a sua beleza, o seu leito, como a rede de ouro em que devia cair aquela presa estouvada! Onde
haveria maior ofensa? E também quanta imprudência! Bem poderia esse D. Rui de Cardenas desconfiar, não
aceder ao convite tão abertamente amoroso, e depois mostrar por toda a Segóvia, rindo e triunfando, aquela
carta em que lhe fazia oferta do seu leito e do seu corpo a mulher de Alonso de Lara! Mas não! o
desventurado correria a Cabril - e para morrer, miseràvelmente morrer no negro silêncio da noite, sem padre,
nem sacramentos, com a alma encharcada em pecado de amor! Para morrer, decerto - porque nunca o senhor
de Lara permitiria que vivesse o homem que recebera tal carta. Assim, aquele moço morria por amor dela, e
por um amor que, sem lhe saber nunca um gosto, lhe valia logo a morte! Decerto por amor dela - pois que tal
ódio do senhor de Lara, ódio que, com tanta deslealdade e vilania, se cevava, só podia nascer de ciúmes, que
lhe escureciam todo o dever de cavaleiro e de cristão. Sem dúvida ele surpreendera olhares, passos, tenções
deste senhor D. Rui, mal acautelado por bem namorado.
Mas como? quando? Confusamente se lembrava ela de um moço que um domingo a cruzara no adro, a
esperara ao portal da igreja, com um molho de cravos na mão... Seria esse? Era de nobre parecer, muito
pálido, com grandes olhos negros e quentes. Ela passara − indiferente... Os cravos que segurava na mão eram
vermelhos e amarelos... A quem os levava?... Ah! se o pudesse avisar, bem cedo, de madrugada!
Como, se não havia em Cabril serviçal ou aia de quem se fiasse? Mas deixar que uma bruta espada
varasse traiçoeiramente aquele coração, que vinha cheio dela, palpitando por ela, todo na esperança dela!.,.
Oh! a desabrida e ardente correria de D. Rui, desde Segóvia a Cabril, com a promessa do encantador
jardim aberto, da escada posta contra a janela, sob a mudez e proteção da noite! Mandaria realmente o senhor
de Lara encostar uma escada à janela? Decerto, para com mais facilidade o poderem matar, ao pobre, e doce,
e inocente moço, quando ele subisse, mal seguro sobre um frágil degrau, as mãos embaraçadas, a espada a
dormir na bainha... E assim, na outra noite, em face ao seu leito, a sua janela estaria aberta, e uma escada
estaria erguida contra a sua janela à espera de um homem! Emboscado na sombra do quarto, seu marido
seguramente mataria esse homem...
Mas se o senhor de Lara esperasse fora dos muros da quinta, assaltasse brutalmente, nalguma
azinhaga, aquele D. Rui de Cardenas, e, ou por menos destro, ou por menos forte, num terçar de armas, caísse
ele traspassado, sem que o outro conhecesse a quem matara? E ela, ali, no seu quarto, sem saber, e todas as
portas abertas, e a escada erguida, e aquele homem assomando à janela na sombra macia da noite tépida, e o
marido que a devia defender morto no fundo duma azinhaga... Que faria ela, Virgem Mãe? Oh! decerto
repeliria, soberbamente, o moço temerário. Mas o espanto dele e a cólera do seu desejo enganado! “Por Vós é
que eu vim chamado, senhora!” E ali trazia, sobre o coração, a carta dela, com seu nome, que a sua mão
traçara. Como lhe poderia contar a emboscada e o dolo? Era tão longo de contar, naquele silêncio e solidão da
noite, enquanto os olhos dele, húmidos e negros, a estivessem suplicando e trespassando... Desgraçada dela se
o senhor de Lara morresse, a deixasse solitária, sem defesa, naquela vasta casa aberta! Mas quanto desgraçada
também se aquele moço, chamado por ela, e que a amava, e que por esse amor vinha correndo deslumbrante,
encontrasse a morte no sítio da sua esperança, que era o sítio do seu pecado, e, morto em pleno pecado,
rolasse para a eterna desesperança... Vinte e cinco anos, ele - se era o mesmo de quem se lembrava, pálido, e
tão airoso, com um gibão de veludo roxo e um ramo de cravos na mão, à porta da igreja, em Segóvia...
Duas lágrimas saltaram dos cansados olhos de D. Leonor. E dobrando os joelhos, levantando a alma
toda para o céu, onde a Lua se começava a levantar, murmurou, numa infinita magoa e fé:
− Oh! Santa Virgem do Pilar, Senhora minha, vela por nós ambos, vela por todos nós!...
III
D. RUI entrava, pela hora da calma, no fresco pátio da sua casa, quando de um banco de pedra, na sombra, se
ergueu um moço de campo, que tirou de dentro do surrão uma carta, lha entregou, murmurando:
− Senhor, daí-vos pressa em ler, que tenho de voltar a Cabril, a quem me mandou...
D. Rui abriu o pergaminho; e, no deslumbramento que o tomou, bateu com ele contra o peito, como
para o enterrar no coração...
O moço do campo insistia, inquieto:
− Aviai, senhor, aviai! Nem precisais responder. Basta que me deis um sinal de vos ter vindo o
recado...
Muito pálido, D. Rui arrancou uma das luvas bordadas a retrós, que o moço enrolou e sumiu no surrão.
E já abalava na ponta das alpercatas leves, quando, com um aceno, D. Rui o deteve:
− Escuta. Que caminho tomas tu para Cabril?
− O mais curto e sòzinho para gente afoita, que é pelo Cerro dos Enforcados.
− Bem.
D. Rui galgou as escadas de pedra, e no seu aposento, sem mesmo tirar o sombreiro, de novo leu junto
da gelosia aquele pergaminho divino, em que D. Leonor o chamava de noite ao seu quarto, à posse inteira do
seu ser. E não o maravilhava esta oferta - depois de uma tão constante, imperturbada indiferença. Antes nela
logo percebeu um amor muito astuto, por ser muito forte, que, com grande paciência, se esconde ante os
estorvos e os perigos, e mudamente prepara a sua hora de contentamento, melhor e mais deliciosa por tão
preparada. Sempre ela o amara, pois, desde a manhã bendita em que os seus olhos se tinham cruzado no portal
de Nossa Senhora. E enquanto ele rondava aqueles muros do jardim, maldizendo uma frieza que lhe parecia
mais fria que a dos frios muros, já ela lhe dera a sua alma, e cheia de constância, com amorosa sagacidade,
recalcando o menor suspiro, adormecendo desconfianças, preparava a noite radiante em que lhe daria também
o seu corpo.
Tanta firmeza, tão fino engenho nas coisas do amor, ainda lha tornavam mais bela e mais apetecida!
Com que impaciência olhava então o Sol, tão desapressado nessa tarde em descer para os montes! Sem
repouso, no seu quarto, com as gelosias cerradas para melhor concentrar a sua felicidade, tudo aprontava
amorosamente para a triunfal jornada: as finas roupas, as finas rendas, um gibão de veludo negro e as
essências perfumadas. Duas vezes desceu à cavalariça a verificar se o seu cavalo estava bem ferrado e bem
pensado. Sobre o soalho, vergou e revergou, para a experimentar, a folha da espada que levaria à cinta... Mas
o seu maior cuidado era o caminho para Cabril, apesar de bem o conhecer, e a aldeia apinhada em torno ao
mosteiro franciscano, e a velha ponte romana com o seu Calvário, e a azinhaga funda que levava à herdade do
senhor de Lara. Ainda nessa Inverno por lá passara, indo montear com dois amigos de Astorga, e avistara a
torre dos de Lara, e pensara: − “Eis a torre da minha ingrata!” Como se enganava! As noites agora eram de
Lua, e ele sairia de Segóvia caladamente, pela porta de S. Mauros. Um galope curto o punha no Cerro dos
Enforcados... Bem o conhecia também, esse sítio de tristeza e pavor, com os seus quatro pilares de pedra,
onde se enforcavam os criminosos, e onde os seus corpos ficavam, baloiçados da ventania, ressequidos do sol,
até que as cordas apodrecessem e as ossadas caíssem, brancas e limpas da carne pelo bico dos corvos. Por trás
do cerro era a lagoa das Donas. A derradeira vez que por lá andara, fora em dia do apóstolo S. Matias, quando
o corregedor e as confrarias de caridade e paz, em procissão, iam dar sepultura sagrada às ossadas caídas no
chão negro, esburgadas pelas aves. Daí o caminho, depois, corria liso e direito a Cabril.
Assim D. Rui meditava a sua jornada venturosa, enquanto a tarde ia caindo. Mas, quando escureceu, e
em torno às torres da igreja começaram a girar os morcegos, e nas esquinas do adro se acenderam os nichos
das Almas, o valente moço sentiu um medo estranho, o medo daquela felicidade que se acercava e que lhe
parecia sobrenatural. Era, pois, certo que essa mulher de divina formosura, famosa em Castela, e mais
inacessível que um astro, seria sua, toda sua, no silêncio e segurança duma alcova, dentro em breves instantes,
quando ainda se não tivessem apagado diante dos retábulos das Almas aqueles lumes devotos? E o que fizera
ele para lograr tão grande bem? Pisara as lajes de um adro, esperara no portal de uma igreja, procurando com
os olhos outros dois olhos, que não se erguiam, indiferentes ou desatentos. Então, sem dor, abandonara a sua
esperança... E eis que de repente aqueles olhos distraídos o procuram, e aqueles braços fechados se lhe abrem,
largos e nus, e com o corpo e com a alma aquela mulher lhe grita: − “Oh! mal-avisado, que não me
entendeste! Vem! Quem te desanimou já te pertence!” Houvera jamais igual ventura? Tão alta, tão rara era,
que decerto atrás dela, se não erra a lei humana, já devia caminhar a desventura! Já na verdade caminhava;
− pois quanta desventura em saber que depois de tal ventura, quando de madrugada, saindo dos divinos
braços, ele recolhesse a Segóvia, a sua Leonor, o bem sublime da sua vida, tão inesperadamente adquirido por
um instante, recairia logo sob o poder de outro amo!
Que importava! Viessem depois dores e zelos! Aquela noite era esplêndidamente sua, o mundo todo
uma aparência vã e a única realidade esse quarto de Cabril, mal alumiado, onde ela o esperaria, com os
cabelos soltos! Foi com sofreguidão que desceu a escada, se arremessou sobre o seu cavalo. Depois, por
prudência, atravessou o adro muito lentamente, com o sombreiro bem levantado da face, como num passeio
natural, a procurar fora dos muros a frescura da noite. Nenhum encontro o inquietou até à porta de S. Mauros.
Aí, um mendigo, agachado na escuridão dum arco, e que tocava monòtonamente a sua sanfona, pediu, em
lamúria, à Virgem e a todos os santos que levassem aquele gentil cavaleiro na sua doce e santa guarda. D. Rui
parara para lhe atirar uma esmola, quando se lembrou que nessa tarde não fora à igreja, à hora de vésperas,
rezar e pedir a bênção à sua divina madrinha. Com um salto, desceu logo do cavalo, porque, justamente, rente
ao velho arco, tremeluzia uma lâmpada alumiando um retábulo. Era uma imagem da Virgem com um peito
traspassado por sete espadas. D. Rui ajoelhou, pousou o sombreiro nas lajes com as mãos erguidas, muito
zelosamente, rezou uma Salve-Rainha. O clarão amarelo da Luz envolvia o rosto da Senhora, que, sem sentir
as dores dos sete ferros, ou como se eles só dessem inefáveis gozos, sorria com os lábios muito vermelhos.
Enquanto rezava, no convento de São Domingos, ao lado, a sineta começou a tocar a agonia. De entre a
sombra negra do arco, cessando a sanfona, o mendigo murmurou: “Lá está um frade a morrer!” D. Rui disse
uma Ave-Maria pelo frade que morria. A Virgem das sete espadas sorria docemente - o toque de agonia não
era, pois, de mau presságio!. D. Rui cavalgou alegremente e partiu.
Para além da porta de S. Mauros, depois de alguns casebres de oleiros, o caminho seguia, esguio e
negro, entre altas piteiras. Por trás das colinas, ao fundo da planície escura, subia o primeiro clarão, amarelo e
lânguido, da Lua-cheia, ainda escondida. E D. Rui marchava a passo, receando chegar a Cabril muito cedo,
antes que as aias e os moços findassem o serão e o rosário. Por que não lhe marcara D. Leonor a hora, naquela
carta tão clara e tão pensada?... Então a sua imaginação corria adiante, rompia pelo jardim de Cabril, galgava
aladamente a escada prometida - e ele largava também atrás, numa carreira sôfrega, que arrancava as pedras
do caminho mal junto. Depois sofreava o cavalo ofegante. Era cedo, era cedo! E retomava o passo penoso,
sentindo o coração contra o peito, como ave presa que bate às grades.
Assim chegou ao Cruzeiro, onde a estrada se fendia em duas, mais juntas que as pontas de uma
forquilha, ambas cortando através de pinheiral. Descoberto diante da imagem crucificada, D. Rui teve um
instante de angústia, pois não se recordava qual delas levava ao Cerro dos Enforcados. Já se embrenhara na
mais cerrada, quando, de entre os pinheiros calados, uma luz surgiu, dançando no escuro. Era uma velha em
farrapos, com as longas melenas soltas, vergada sobre um bordão e levando uma candeia.
− Para onde vai este caminho? - gritou Rui.
A velha balançou mais ao alto a candeia, para mirar o cavaleiro.
− Para Xarama.
E luz e velha imediatamente se sumiram, fundidas na sombra, como se ali tivessem surgido sòmente
para avisar o cavaleiro do seu caminho errado... Já ele virara arrebatadamente; e, rodeando o Calvário,
galopou pela outra estrada mais larga, até avistar, sobre a claridade do céu, os pilares negros, os madeiros
negros do Cerro dos Enforcados. Então estacou, direito nos estribos. Num cômoro alto, seco, sem erva ou
urze, ligados por um muro baixo, todo esbrechado, lá se erguiam, negros, enormes, sobre a amarelidão do
luar, os quatro pilares de granito semelhantes aos quatro cunhais duma casa desfeita. Sobre os pilares
pousavam quatro grossas traves. Das traves pendiam quatro enforcados negros e rígidos, no ar parado e mudo.
Tudo em torno parecia morto como eles.
Gordas aves de rapina dormiam empoleiradas sobre os madeiros. Para além, rebrilhava lìvidamente a
água morta da lagoa das Donas. E, no céu, a Lua ia grande e cheia.
D. Rui murmurou o Padre-Nosso devido por todo o cristão àquelas almas culpadas. Depois impeliu o
cavalo, e passava - quando, no imenso silêncio e na imensa solidão, se ergueu, ressoou uma voz, uma voz que
o chamava, suplicante e lenta:
− Cavaleiro, detende-vos, vinde cá!...
D. Rui colheu bruscamente as rédeas e, erguido sobre os estribos, atirou os olhos espantados por todo o
sinistro ermo. Só avistou o cerro áspero, a água rebrilhante e muda, os madeiros, os mortos. Pensou que fora
ilusão da noite ou ousadia de algum demónio errante. E, serenamente, picou o cavalo, sem sobressalto ou
pressa, como numa rua de Segóvia. Mas, por trás, a voz tornou, mais urgentemente o chamou, ansiosa, quase
aflita:
− Cavaleiro, esperai, não vos vades, voltai, chegai aqui!...
De novo D. Rui estacou e, virado sobre a sela, encarou afoitamente os quatro corpos pendurados das
traves. Do lado deles soava a voz, que, sendo humana, só podia sair de forma humana! Um desses enforcados,
pois, o chamara, com tanta pressa e ânsia.
Restaria nalguns, por maravilhosa mercê de Deus, alento e vida? Ou seria que, por maior maravilha,
uma dessas carcaças meio apodrecidas o detinha para lhe transmitir avisos de Além-da-Campa?... Mas que a
voz rompesse dum peito vivo ou dum peito morto, grande covardia era abalar, espavoridamente, sem a
atender e a ouvir.
Atirou logo para dentro do cerro o cavalo, que tremia; e, parando, direito e calmo, com a mão na
ilharga, depois de fitar, um por um, os quatro corpos suspensos, gritou:
− Qual de vós, homens enforcados, ousou chamar por D. Rui de Cardenas?
Então aquele que voltava as costas à Lua-cheia respondeu, do alto da corda, muito quieta e
naturalmente, como um homem que conversa da sua janela para a rua:
− Senhor, fui eu.
D. Rui fez avançar para diante dele o cavalo. Não lhe distinguia a face, enterrada no peito, escondida
pelas longas e negras melenas pendentes. Só percebeu que tinha as mãos soltas e desamarradas, e também
soltos os pés nus, já ressequidos e da cor do betume.
− Que me queres?
O enforcado, suspirando, murmurou:
− Senhor, fazei-me a grande mercê de me cortar esta corda em que estou pendurado.
D. Rui arrancou a espada, e de um golpe certo cortou a corda meio apodrecida. Com um sinistro som
de ossos entrechocados o corpo caiu no chão, onde jazeu um momento, estirado. Mas, imediatamente, se
endireitou sobre os pés mal seguros e ainda dormentes − e ergueu para D. Rui uma face morta, que era uma
caveira com a pele muito colada, e mais amarela que a Lua que nela batia. Os olhos não tinham movimento
nem brilho. Ambos os beiços se lhe arreganhavam num sorrido empedernido. De entre os dentes, muito
brancos, surdia uma ponta de língua muito negra.
D. Rui não mostrou terror, nem asco. E embainhando serenamente a espada:
− Tu estás morto ou vivo? - perguntou.
O homem encolheu os ombros com lentidão:
− Senhor, não sei... Quem sabe o que é a vida? Quem sabe o que é a morte?
− Mas que queres de mim?
O enforcado, com os longos dedos descarnados, alargou o nó da corda que ainda lhe laçava o pescoço
e declarou muito serena e firmemente:
− Senhor, eu tenho de ir convosco a Cabril, onde vós ides.
O cavaleiro estremeceu num tão forte assombro, repuxando as rédeas, que o seu bom cavalo se
empinou como assombrado também.
− Comigo a Cabril?!...
O homem curvou o espinhaço, a que se viam os ossos todos, mais agudos que os dentes de uma serra,
através de um longo rasgão da camisa de estamenha:
− Senhor - suplicou - não mo negueis. Que eu tenho a receber grande salário se vos fizer grande
serviço!
Então D. Rui pensou de repente que bem podia ser aquela uma traça formidável do Demônio. E,
cravando os olhos muito brilhantes na face morta que para ele se erguia, ansiosa, à espera do seu
consentimento - fez um lento e largo Sinal-da-Cruz.
O enforcado vergou os joelhos com assustada reverência:
− Senhor, para que me experimentais com esse sinal? Só por ele alcançamos remissão, e eu só dele
espero misericórdia.
Então D. Rui pensou que, se esse homem não era mandado pelo Demónio, bem podia ser mandado por
Deus! E logo devotamente, com um gesto submisso em que tudo entregava ao Céu, consentiu, aceitou o
pavoroso companheiro:
− Vem comigo, pois, a Cabril, se Deus te manda! Mas eu nada te pergunto e tu nada me perguntes.
Desceu logo o cavalo à estrada, toda alumiada da Lua. O enforcado seguia ao seu lado, com passos tão
ligeiros, que mesmo quando D. Rui galopava ele se conservava rente ao estribo, como levado por um vento
mudo. Por vezes, para respirar mais livremente, repuxava o nó da corda que lhe enroscava o pescoço. E,
quando passavam entre sebes onde errasse o aroma de flores silvestres, o homem murmurava com infinito
alívio e delícia:
− Como é bom correr!
D. Rui ia num assombro, num tormentoso cuidado. Bem compreendia agora que era aquele um
cadáver reanimado por Deus, para um estranho e encoberto serviço. Mas para que lhe dava Deus tão medonho
companheiro? Para o proteger? Para impedir que D. Leonor, amada do Céu pela sua piedade, caísse em culpa
mortal? E, para tão divina incumbência de tão alta mercê, já não tinha o Senhor anjos do Céu, que
necessitasse empregar um supliciado?... Ah! como ele voltaria alegremente a rédea para Segóvia, se não fora
a galante lealdade de cavaleiro, o orgulho de nunca recuar e a submissão às ordens de Deus, que sentia sobre
si pesarem...
Dum alto da estrada, de repente, avistaram Cabril, as torres do convento franciscano alvejando ao luar,
os casais adormecidos entre as hortas. Muito silenciosamente, sem que um cão ladrasse detrás das cancelas ou
de cima dos muros, desceram a velha ponte romana. Diante do Calvário, o enforcado caiu de joelhos nas lajes,
ergueu os lívidos ossos das mãos, ficou longamente rezando,entre longos suspiros. Depois ao entrar na
azinhaga, bebeu muito tempo, e consoladamente, de uma fonte que corria e cantava sob as frondes de um
salgueiro. Como a azinhaga era muito estreita, ele caminhava adiante do cavaleiro, todo curvado, os braços
cruzados fortemente sobre o peito, sem um rumor.
A Lua ia alta no céu. D. Rui considerava com amargura aquele disco, cheio e lustroso, que espargia
tanta claridade, e tão indiscreta, sobre o seu segredo. Ah! como se estragava a noite que devia ser divina! Uma
enorme Lua surdia de entre os montes para tudo alumiar. Um enforcado descia da forca para o seguir e tudo
saber. Deus assim o ordenara. Mas que tristeza chegar à doce porta, docemente prometida, com tal intruso ao
seu lado, sob aquele céu todo claro!
Bruscamente, o enforcado estacou, erguendo o braço, de onde a manga pendia em farrapos. Era o fim
da azinhaga que desembocava em caminho mais largo e mais batido: − e diante deles alvejava o comprido
muro da quinta do senhor de Lara, tendo aí um mirante, com varandins de pedra e todo revestido de hera.
− Senhor - murmurou o enforcado, segurando com respeito o estribo de D. Rui - logo a poucos passos
deste mirante é a porta por onde deveis penetrar no jardim. Convém que aqui deixeis o cavalo, amarrado a
uma árvore, se o tendes por seguro e fiel. Que na empresa em que vamos, já é de mais o rumor dos nossos
pés!...
Silenciosamente D. Rui apeou, prendeu o cavalo, que sabia fiel e seguro, ao tronco dum álamo seco.
E tão submisso se tornara àquele companheiro imposto por Deus, que sem outro reparo o foi seguindo
rente do muro que o luar batia.
Com vagarosa cautela, e na ponta dos pés nus, avançava agora o enforcado, vigiando do alto do muro,
sondando a negrura da sebe, parando a escutar rumores que só para ele eram percebíveis - porque nunca D.
Rui conhecera noite mais fundamente adormecida e muda.
E tal susto, em quem devia ser indiferente a perigos humanos, foi lentamente enchendo também o
valoroso cavaleiro de tão viva desconfiança, que tirava o punhal da bainha, enrodilhava a capa no braço e
marchava em defesa, com o olhar faiscando, como num caminho de emboscada e briga. Assim chegaram a
uma porta baixa, que o enforcado empurrou, e que se abriu sem gemer nos gonzos. Penetraram numa rua
ladeada de espessos teixos até a um tanque cheio de água, onde boiavam folhas de nenúfares, e que toscos
bancos de pedra circundavam, cobertos pela rama de arbustos em flor.
− Por ali! - murmurou o enforcado, estendendo o braço mirrado.
Era, além do tanque, uma avenida que densas e velhas árvores abobadavam e escureciam. Por ela se
meteram, como sombras na sombra, o enforcado adiante, D. Rui seguindo muito subtilmente, sem roçar um
ramo, mal pisando a areia. Um leve fio de água sussurrava entre relvas. Pelos troncos subiam rosas
trepadeiras, que cheiravam docemente. O coração de D. Rui recomeçou a bater numa esperança de amor.
− Chuta! - fez o enforcado.
E D. Rui quase tropeçou no sinistro homem que estacava, com os braços abertos como as traves de
uma cancela. Diante deles quatro degraus de pedra subiam a um terraço, onde a claridade era larga e livre.
Agachados, treparam os degraus - e ao fundo dum jardim sem árvores, todo em canteiros de flores bem
recortados, orlados de buxo curto, avistaram um lado da casa batido pela Lua-cheia. Ao meio, entre as janelas
de peitoril fechadas, um balcão de pedra, com manjericões aos cantos, conservava as vidraças abertas,
largamente. O quarto, dentro, apagado, era como um buraco de treva na claridade da fachada que o luar
banhava. E, arrimada contra o balcão, estava uma escada com degraus de corda.
Então o enforcado empurrou D. Rui vivamente dos degraus para a escuridão da avenida. E aí, com um
modo urgente, dominando o cavaleiro, exclamou:
− Senhor! Convém agora que me deis o vosso sombreiro e a capa! Vós quedais aqui na escuridão
destas árvores. Eu vou trepar àquela escada e espreitar para aquele quarto... E se for como desejais, aqui
voltarei, e com Deus sede feliz...
D. Rui recuou no horror de que tal criatura subisse a tal janela!
E bateu o pé, gritou surdamente:
− Não, por deus!
Mas a mão do enforcado, lívida na escuridão, bruscamente lhe arrancou o sombreiro da cabeça, lhe
puxou a capa do braço. E já se cobria, já se embuçava, murmurando agora, numa súplica ansiosa:
− Não mo negueis, senhor, que se vos fizer grande serviço, ganharei grande mercê!
E galgou os degraus! − estava no alumiado e largo terraço.
D. Rui subiu, atontado, e espreitou. E - oh maravilha! - era ele, D. Rui, todo ele, na figura e no modo,
aquele homem que, por entre os canteiros e o buxo curto, avançava, airoso e leve, com a mão na cintura, a
face erguida risonhamente para a janela, a longa pluma escarlate do chapéu balançando em triunfo. O homem
avançava no luar esplêndido. O quarto amoroso lá estava esperando, aberto e negro. E D. Rui olhava, com
olhos que faiscavam, tremendo de pasmo e cólera. O homem chegara à escada: destraçou a capa, assentou o
pé no degrau de corda! − “Oh! lá sobe, o maldito!” - rugiu D. Rui. O enforcado subia. Já a alta figura, que era
dele, D. Rui, estava a meio da escada, toda negra contra a parede branca. Parou!... Não! não parara: subia,
chegava, − já sobre o rebordo da varanda pousara o joelho cauteloso. D. Rui olhava, desesperadamente, com
os olhos, com a alma, com todo o seu ser... E eis que, de repente, do quarto negro surge um negro vulto, uma
furiosa voz brada: − “vilão, vilão!” − e uma lâmina de adaga faísca, e cai, e outra vez se ergue, e rebrilha, e se
abate, e ainda refulge, e ainda se embebe!... Como um fardo, do alto da escada, pesadamente, o enforcado cai
sobre a terra mole. Vidraças, portadas do balcão logo se fecham com fragor. E não houve mais senão o
silêncio, a serenidade macia, a Lua muito alta e redonda no céu de Verão.
Num relance D. Rui compreendera a traição, arrancara a espada, recuando para a escuridão da avenida
- quando, oh milagre! correndo através do terraço, aparece o enforcado, que lhe agarra a manga e grita:
− A cavalo, senhor, e abalar, que o encontro não era de amor, mas de morte!...
Ambos descem arrebatadamente a avenida, costeiam o tanque sob o refúgio dos arbustos em flor,
metem pela rua estreita orlada de teixos, varam a porta - e um momento param, ofegantes, na estrada, onde a
Lua, mais refulgente, mais cheia, fazia como um puro dia.
E então, só então, D. Rui descobriu que o enforcado conservava cravada no peito, até aos copos, a
adaga, cuja ponta lhe saía pelas costas, luzidia e limpa!... Mas já o pavoroso homem o empurrava, o
apressava:
− A cavalo, senhor, e abalar, que ainda está sobre nós a traição!
Arrepiado, numa ânsia de findar aventura tão cheia de milagre e de horror, D. Rui colheu as rédeas,
cavalgou sôfregamente. E logo, em grande pressa, o enforcado saltou também para a garupa do cavalo fiel.
Todo se arrepiou o bom cavaleiro, ao sentir nas suas costas o roçar daquele corpo morto, dependurado de uma
forca, atravessado por uma adaga. Com que desespero galopou então pela estrada infindável! Em carreira tão
violenta o enforcado nem oscilava, rígido sobre a garupa, como um bronze num pedestal. E D. Rui a cada
momento sentia um frio mais regelado que lhe regelava os ombros, como se levasse sobre eles um saco cheio
de gelo. Ao passar no cruzeiro murmurou: − “Senhor, valei-me!” − Para além do cruzeiro, de repente,
estremeceu com o quimérico medo de que tão fúnebre companheiro, para sempre, o ficasse acompanhando, e
se tornasse seu destino galopar através do mundo, numa noite eterna, levando um morto à garupa... E não se
conteve, gritou para trás, no vento da carreira que os vergastava:
− Para onde quereis que vos leve?
O enforcado, encostando tanto o corpo a D. Rui que o magoou com os copos da adaga, segredou:
− Senhor, convém que me deixeis no Cerro!
Doce e infinito alívio para o bom cavaleiro - pois o Cerro estava perto, e já lhe avistava, na claridade
desmaiada, os pilares e as traves negras... Em breve estacou o cavalo, que tremia, branqueado de espuma.
Logo o enforcado, sem rumor, escorregou da garupa, segurou, como bom serviçal, o estribo de D. Rui.
E com a caveira erguida, a língua negra mais saída de entre os dentes brancos, murmurou em respeitosa
súplica:
− Senhor, fazei-me agora a grande mercê de me pendurar outra vez da minha trave.
D. Rui estremeceu de horror:
− Por Deus! Que vos enforque, eu?...
O homem suspirou, abrindo os braços compridos:
− Senhor, por vontade de Deus é, e por vontade d’Aquela que é mais cara a Deus!
Então, resignado, submisso aos mandados do Alto, D. Rui apeou - e começou a seguir o homem, que
subia para o Cerro pensativamente, vergando o dorso, de onde saía, espetada e luzidia, a ponta da adaga.
Pararam ambos sob a trave vazia. Em torno das outras traves pendiam as outras carcaças. O silêncio era mais
triste e fundo que os outros silêncios da terra. A água da lagoa enegrecera. A Lua descia e desfalecia.
D. Rui considerou a trave onde restava, curto no ar, o pedaço de corda que ele cortara com a espada.
− Como quereis que vos pendure? - exclamou. - Àquele pedaço de corda não posso chegar com a mão:
nem eu só basto para lá vos içar.
− Senhor - respondeu o homem - aí a um canto deve haver um longo rolo de corda. Uma ponta dela ma
atareis a este nó que trago no pescoço a outra ponta a arremessareis por cima da trave, e puxando depois, forte
como sois, bem me podereis reenforcar.
Ambos curvados, com passos lentos, procuraram o rolo de corda. E foi o enforcado que o encontrou, o
desenrolou... Então D. Rui descalçou as luvas. E ensinado por ele (que tão bem o aprendera do carrasco) atou
uma ponta da corda ao laço que o homem conservava no pescoço, e arremessou fortemente a outra ponta, que
ondeou no ar, passou sobre a trave, ficou pendurada rente ao chão. E o rijo cavaleiro, fincando os pés,
retesando os braços, puxou, içou o homem, até ele se quedar, suspenso, negro no ar, como um enforcado
natural entre os outros enforcados.
− Estais bem assim?
Lenta e sumida, veio a voz do morto:
− Senhor, estou como devo.
Então D. Rui, para o fixar, enrolou a corda em voltas grossas ao pilar de pedra. E tirando o sombreiro,
limpando com as costas da mão o suor que o alagava, contemplou o seu sinistro e miraculoso companheiro.
Estava já rígido como antes, com a face pendida sob as melenas caídas, os pés inteiriçados, todo puído e
carcomido como uma velha carcaça. No peito conservava a adaga cravada. Por cima, dois corvos dormiam
quietos.
− E agora que mais quereis? - perguntou D. Rui, começando a calçar as luvas.
Sumidamente, do alto, o enforcado murmurou:
− Senhor, muito vos rogo agora que, ao chegar a Segóvia, tudo conteis fielmente a Nossa Senhora do
Pilar, vossa madrinha, que dela espero grande mercê para a minha alma, por este serviço que, a seu mandado,
vos fez o meu corpo!
Então, D. Rui de Cardenas tudo compreendeu - e, ajoelhando devotamente sobre o chão de dor e
morte, rezou uma longa oração por aquele bom enforcado.
Depois galopou para Segóvia. A manhã clareava, quando ele transpôs a porta de S. Mauros. No ar fino
os sinos claros tocavam a matinas. E entrando na igreja de Nossa Senhora do Pilar, ainda no desalinho da sua
terrível jornada, D. Rui, de rojo ante o altar, narrou à sua Divina Madrinha a ruim tenção que o levara a
Cabril, o socorro que do Céu recebera, e, com quentes lagrimas de arrependimento e gratidão, lhe jurou que
nunca mais poria desejo onde houvesse pecado, nem no seu coração daria entrada a pensamento que viesse do
Mundo e do Mal.
IV
A ESSA hora, em Cabril, D. Alonso de Lara, com olhos esbugalhados de pasmo e terror, esquadrinhava todas
as ruas e recantos e sombras do seu jardim.
Quando ao alvorecer, depois de escutar à porta da câmara onde nessa noite encerrara D. Leonor, ele
descera subtilmente ao jardim e não encontrara, debaixo do balcão, rente à escada, como deliciosamente
esperava, o corpo de D. Rui de Cardenas, teve por certo que o homem odioso, ao tombar, ainda com um resto
débil de vida, se arrastara sangrando e arquejando, na tentativa de alcançar o cavalo e abalar de Cabril... Mas,
com aquela rija adaga que ele três vezes lhe enterrara no peito, e que no peito lhe deixara, não se arrastaria o
vilão por muitas jardas, e nalgum canto devia jazer frio e inteiriçado. Rebuscou então cada rua, cada sombra,
cada maciço de arbustos. E - maravilhoso caso! - não descobria o corpo, nem pegadas, nem terra que
houvesse sido remexida, nem sequer rasto de sangue sobre a terra! E todavia, com mão certeira e faminta de
vingança, três vezes ele lhe embebera a adaga no peito, e no peito lha deixara!
E era Rui de Cardenas o homem que ele matara - que muito bem o conhecera logo, do fundo apagado
do quarto de onde espreitava, quando ele, à claridade da Lua, veio através do terraço, confiado, ligeiro, com a
mão na cintura, a face risonhamente erguida e a pluma do sombreiro meneando em triunfo! Como podia ser
coisa tão rara - um corpo mortal sobrevivendo a um ferro, que três vezes lhe vara o coração e no coração lhe
fica cravado? E a maior raridade era que nem no chão, debaixo da varanda, onde corria ao longo do muro uma
tira de goivos e cecéns, deixar um vestígio aquele corpo forte, caindo de tão alto pesadamente, inertemente,
como um fardo! Nem uma flor machucada - todas direitas, viçosas, como novas, com gotas leves de orvalho!
Imóvel de espanto, quase de terror, D. Alonso de Lara ali parava, considerando o balcão, medindo a altura da
escada, olhando esgazeadamente os goivos direitos, frescos, sem uma haste ou folha vergada. Depois
recomeçava a correr loucamente o terraço, a avenida, a rua de teixos, na esperança ainda duma pegada, dum
galho partido, de uma nódoa de sangue na areia fina.
Nada! Todo o jardim oferecia um desusado arranjo e limpeza nova, como se sobre ele nunca houvesse
passado nem o vento que desfolha, nem o sol que murcha.
Então, ao entardecer, devorado pela incerteza e mistério, tomou um cavalo, e sem escudeiro ou
cavalariço, partiu para Segóvia. Curvado e escondidamente, como um foragido, penetrou no seu palácio pela
porta do pomar: e o seu primeiro cuidado foi correr à galeria de abóbada, destrancar as portadas da janela e
espreitar àvidamente a casa de D. Rui de Cardenas. Todas as gelosias da valha morada do arcediago estavam
escuras, abertas, respirando a fresquidão da noite: − e à porta, sentado num banco de pedra, um moço de
cavalariça afinava preguiçosamente a bandurra.
D. Alonso de Lara desceu à sua câmara, lívido, pensando que não houvera certamente desgraça em
casa onde todas as janelas se abrem para refrescar, e no portão da rua os moços folgam. Então bateu as
palmas, pediu furiosamente a ceia. E, apenas sentado, ao topo da mesa, na sua alta sede de couro lavrado,
mandou chamar o intendente, a quem ofereceu logo, com estranha familiaridade, um copo de vinho velho.
Enquanto o homem, de pé, bebia respeitosamente, D. Alonso, metendo os dedos pelas barbas e forçando a sua
sombria face a sorrir, perguntava pelas novas e rumores de Segóvia. Nesses dias da sua estada em Cabril,
nenhum caso criara pela cidade espanto e murmuração?... O intendente limpou os beiços, para afirmar que
nada ocorrera em Segóvia de que andasse murmuração, a não ser que a filha do senhor D. Gutierres, tão moça
e tão rica herdeira, tomara o véu do convento das Carmelitas Descalças. D. Alonso insistia, fitando
vorazmente o intendente. E não se travara uma grande briga?... não se encontrara ferido, na estrada de Cabril,
um cavaleiro moço, muito falado?... O intendente encolhia os ombros: nada ouvira, pela cidade, de brigas ou
de cavaleiros feridos. Com um aceno desabrido D. Alonso despediu o intendente.
Apenas ceara, parcamente, logo voltou à galeria a espreitar as janelas de D. Rui. Estavam agora
cerradas; na última, da esquina, tremeluzia uma claridade. Toda a noite D. Alonso velou, remoendo
incansàvelmente o mesmo espanto. Como pudera escapar aquele homem, com uma adaga atravessada no
coração? Como pudera?... Ao luzir da manhã, tomou uma capa, um largo sombreiro, desceu ao adro, todo
embuçado e encoberto, e ficou rondando por diante da casa de D. Rui. Os sinos tocaram a matinas. Os
mercadores, com os gibões mal abotoados, saíam a erguer as portadas das lojas, a pendurar as tabuletas. Já os
hortelões, picando os burros carregados de seiras, atiravam os pregões da hortaliça fresca, e frades descalços,
com o alforge aos ombros, pediam esmola, benziam as moças.
Beatas embiocadas, com grossos rosários negros, enfiavam gulosamente para a igreja. Depois o
pregoeiro da cidade, parando a um canto do adro, tocou uma buzina, e numa voz tremenda começou a ler um
edital.
O senhor de Lara parara junto do chafariz, pasmado, como embebido no cantar das três bicas de água.
De repente pensou que aquele edital, lido pelo pregoeiro da cidade, se referia talvez a D. Rui, ao seu
desaparecimento... Correu à esquina do adro - mas já o homem enrolara o papel, se afastava majestosamente,
batendo nas lajes com a sua vara branca. E, quando se voltava para espiar de novo a casa, eis que os seus
olhos atónitos encontram D. Rui, D. Rui que ele matara - e que vinha caminhando para a igreja de Nossa
Senhora, ligeiro, airoso, a face risonha e erguida no fresco ar da manhã, de gibão claro, de plumas claras, com
uma das mãos pousando na cinta, a outra meneando distraìdamente um bastão com borlas de torçal de ouro!
D. Alonso recolheu então a casa com passos arrastados e envelhecidos. No alto da escadaria de pedra,
achou o seu velho capelão, que o viera saudar, e que, penetrando com ele na antecâmara, depois de pedir, com
reverência, novas da senhora D. Leonor, lhe contou logo dum prodigioso caso, que causava pela cidade grave
murmuração e espanto. Na véspera, de tarde, indo o corregedor visitar o cerro das forcas, pois se acercava a
festa dos Santos Apóstolos, descobrira, com muito pasmo e muito escândalo, que um dos enforcados tinha
uma adaga cravada no peito! Fora gracejo de um pícaro sinistro? Vingança que nem a morte saciara?... E para
maior prodígio ainda, o corpo fora despendurado da forca, arrastado em horta ou jardim (pois que presas aos
velhos farrapos se encontraram folhas tenras) e depois novamente enforcado e com corda nova!... E assim ia a
turbulência dos tempos, que nem os mortos se furtavam a ultrajes!
D. Alonso escutava com as mãos a tremer, os pêlos arrepiados. E imediatamente, numa ansiosa
agitação, bradando, tropeçando contra as portas, quis partir, e por seus olhos verificar a fúnebre profanação.
Em duas mulas ajaezadas à pressa, ambos abalaram para o Cerro dos Enforcados, ele e o capelão arrastado e
aturdido. Numeroso povo de Segóvia se juntara já no Cerro, pasmando para o maravilhoso horror - o morto
que fora morto!... Todos se arredaram ante o nobre senhor de Lara, que arremessando-se pelo cabeço acima,
estacara a olhar, esgazeado e lívido, para o enforcado e para a adaga que lhe varava o peito. Era a sua adaga:
− fora ele que matara o morto!
Galopou espavoridamente para Cabril. E aí se encerrou com o seu segredo, começando logo a
amarelecer, a definhar, sempre arredado da senhora D. Leonor, escondido pelas ruas sombrias do jardim,
murmurando palavras ao vento, até que na madrugada de S. João uma serva, que voltava da fonte com a sua
bilha, o encontrou morto, por baixo do balcão de pedra, todo estirado no chão, com os dedos encravados no
canteiro de goivos, onde parecia ter longamente esgaravatado a terra, a procurar...
V
PARA fugir a tão lamentáveis memórias, a senhora D. Leonor, herdeira de todos os bens da casa de Lara,
recolheu ao seu palácio de Segóvia. Mas como agora sabia que o senhor D. Rui de Cardenas escapara
miraculosamente à emboscada de Cabril, e como cada manhã, espreitando de entre as gelosias, meio cerradas,
o seguia, com olhos que se não fartavam e se humedeciam, quando ele cruzava o adro para entrar na igreja,
não quis ela, com receio das pressas e impaciências do seu coração, visitar a Senhora do Pilar enquanto
durasse o seu luto. Depois, uma manhã de domingo, quando, em vez de crepes negros, se pôde cobrir de sedas
roxas, desceu a escadaria do seu palácio, pálida de uma emoção nova e divina, pisou as lajes do adro, transpôs
as portas da igreja. D. Rui de Cardenas estava ajoelhado diante do altar, onde depusera o seu ramo votivo de
cravos amarelos e brancos. Ao rumor das sedas finas, ergueu os olhos com uma esperança muito pura e toda
feita de graça celeste, como se um anjo o chamasse. D. Leonor ajoelhou, com o peito a arfar, tão pálida e tão
feliz que a cera das tochas não era mais pálida, nem mais felizes as andorinhas que batiam as asas livres pelas
ogivas da velha igreja.
Ante esse altar, e de joelhos nessas lajes, foram eles casados pelo bispo de Segóvia, D. Martinho, no
Outono do ano da Graça de 1475, sendo já reis de Castela Isabel e Fernando, muito fortes e muito católicos,
por quem Deus operou grandes feitos sobre a terra e sobre o mar.
José Matias
LINDA tarde, meu amigo!... Estou esperando o enterro do José Matias − do José Matias de Albuquerque,
sobrinho do Visconde de Garmilde... O meu amigo certamente o conheceu − um rapaz airoso, louro como
uma espiga, com um bigode crespo de paladino sobre uma boca indecisa de contemplativo, destro cavaleiro,
duma elegância sóbria e fina. E espírito curioso, muito afeiçoado às ideias gerais, tão penetrante que
compreendeu a minha Defesa da Filosofia Hegeliana! Esta imagem do José Matias data de 1865: porque a
derradeira vez que o encontrei, numa tarde agreste de Janeiro, metido num portal da Rua de S. Bento, tiritava
dentro duma quinzena cor de mel, roída nos cotovelos, e cheirava abominàvelmente a aguardente.
Mas o meu amigo, numa ocasião que o José Matias parou em Coimbra, recolhendo do Porto, ceou com
ele, no Paço do Conde! Até o Craveiro, que preparava as Ironias e Dores de Satã, para acirrar mais a briga
entre a Escola Purista e a Escola Satânica, recitou aquele seu soneto, de tão fúnebre idealismo: Na jaula do
meu peito, o coração... E ainda lembro o José Matias, com uma grande gravata de cetim preto, tufada entre o
colete de linho branco, sem despegar os olhos das velas das serpentinas, sorrindo pàlidamente àquele coração
que rugia na sua jaula... Era uma noite de Abril, de Lua-cheia. Passeámos depois em bando, com guitarras,
pela Ponte e pelo Choupal. O Januário cantou ardentemente as endechas românticas do nosso tempo:
Ontem de tarde, ao sol-posto,
Contemplavas, silenciosa,
A torrente caudalosa
Que refervia a teus pés...
E o José Matias, encostado ao parapeito da Ponte, com a alma e os olhos perdidos na Lua! − Por que
não acompanha o meu amigo este moço interessante ao Cemitério dos Prazeres? Eu tenho uma tipóia, de
praça e com número, como convém a um Professor de Filosofia... O quê? Por causa das calças claras! Oh!
meu caro amigo! De todas as materializações da simpatia, nenhuma mais grosseiramente material do que a
casimira preta. E o homem que nós vamos enterrar era um grande espiritualista!
Vem o caixão saindo da igreja... Apenas três carruagens para o acompanhar. Mas realmente, meu caro
amigo, o José Matias morreu há seis anos, no seu puro brilho. Esse, que aí levamos, meio decomposto, dentro
de tábuas agaloadas de amarelo, é um resto de bêbedo, sem historia e sem nome, que o frio de Fevereiro
matou no vão dum portal.
O sujeito de óculos de ouro, dentro do cupé?... Não o conheço, meu amigo. Talvez um parente rico,
desses que aparecem nos enterros, com o parentesco correctamente coberto de fumo, quando o defunto já não
importuna, nem compromete. O homem obeso de carão amarelo, dentro da vitória, é o Alves Capão, que tem
um jornal onde desgraçadamente a Filosofia não abunda, e que se chama a Piada. Que relações o prendiam ao
Matias?... Não sei. Talvez se embebedassem nas mesmas tascas; talvez o José Matias ùltimamente
colaborasse na Piada; talvez debaixo daquela gordura e daquela literatura, ambas tão sórdidas, se abrigue uma
alma compassiva. Agora é a nossa tipóia... Quer que desça a vidraça? Um cigarro?... Eu trago fósforos. Pois
este José Matias foi um homem desconsolador para quem, como eu, na vida ama a evolução lógica e pretende
que a espiga nasça coerentemente do grão. Em Coimbra sempre o considerámos como uma alma
escandalosamente banal. Para este juízo concorria talvez a sua horrenda correcção. Nunca um rasgão brilhante
na batina! nunca uma poeira estouvada nos sapatos! nunca um pêlo rebelde do cabelo ou do bigode fugido
daquele rígido alinho que nos desolava! Além disso, na nossa ardente geração, ele foi o único intelectual que
não rugiu com as misérias da Polónia; que leu sem palidez ou pranto as Contemplações; que permaneceu
insensível ante a ferida de Garibáldi! E todavia, nesse José Matias, nenhuma secura ou dureza ou egoísmo ou
desafabilidade! Pelo contrário! Um suave camarada, sempre cordial, e mansamente risonho. Toda a sua
inabalável quietação parecia provir duma imensa superficialidade sentimental. E, nesse tempo, não foi sem
razão e propriedade que nós alcunhámos aquele moço tão macio, tão louro e tão ligeiro, de Matias-Coração-
de-Esquilo. Quando se formou, como lhe morrera o pai, depois a mãe, delicada e linda senhora de quem
herdara cinquenta contos, partiu para Lisboa, alegrar a solidão dum tio que o adorava, o general Visconde de
Garmilde. O meu amigo sem dúvida se lembra dessa perfeita estampa de general clássico, sempre de bigodes
terrìficamente encerados, as calças cor de flor de alecrim desesperadamente esticadas pelas presilhas sobre as
botas coruscantes, e o chicote debaixo do braço com a ponta a tremer, ávida de vergastar o Mundo! Guerreiro
grotesco e deliciosamente bom... O Garmilde morava então em Arroios, numa casa antiga de azulejos, com
um jardim, onde ele cultivava apaixonadamente canteiros soberbos de dálias. Esse jardim subia muito
suavemente até ao muro coberto de hera que o separava de outro jardim, o largo e belo jardim de rosas do
Conselheiro Matos Miranda, cuja casa, com um arejado terraço entre dois torrãozinhos amarelos, se erguia no
cimo do outeiro e se chamava a casa da “Parreira”. O meu amigo conhece (pelo menos de tradição, como se
conhece Helena de Tróia ou Inês de Castro) a formosa Elisa Miranda, a Elisa da Parreira... Foi a sublime
beleza romântica de Lisboa, nos fins da Regeneração. Mas realmente Lisboa apenas a entrevia pelos vidros da
sua grande caleche, ou nalguma noite de iluminação do Passeio Público entre a poeira e a turba, ou nos dois
bailes da Assembleia do Carmo, de que o Matos Miranda era um director venerado. Por gosto borralheiro de
provinciana, ou por pertencer àquela burguesia séria que nesses tempos, em Lisboa, ainda conservava os
antigos hábitos severamente encerrados, ou por imposição paternal do marido, já diabético e com sessenta
anos − a Deusa raramente emergia de Arroios e se mostrava aos mortais. Mas quem a viu, e com facilidade
constante, quase irremediàvelmente, logo que se instalou em Lisboa, foi o José Matias - porque, jazendo o
palacete do general na falda da colina, aos pés do jardim e da casa da Parreira, não podia a divina Elisa
assomar a uma janela, atravessar o terraço, colher uma rosa entre as ruas de buxo, sem ser deliciosamente
visível, tanto mais que nos dois jardins assoalhados nenhuma árvore espalhava a cortina da sua rama densa. O
meu amigo decerto trauteou, como todos trauteámos, aqueles versos gastos, mas imortais:
Era no Outono, quando a imagem tua
À luz da Lua...
Pois, como nessa estrofe, o pobre José Matias, ao regressar da praia da Ericeira em Outubro, no
Outono, avistou Elisa Miranda, uma noite no terraço, à luz da Lua! O meu amigo nunca contemplou aquele
precioso tipo de encanto Lamartiniano. Alta, esbelta, ondulosa, digna da comparação bíblica da palmeira ao
vento. Cabelos negros, lustrosos e ricos, em bandós ondeados. Uma carnação de camélia muito fresca. Olhos
negros, líquidos, quebrados, tristes, de longas pestanas... Ah! Meu amigo, até eu, que já então laboriosamente
anotava Hegel, depois de a encontrar numa tarde de chuva esperando a carruagem à porta do Seixas, a adorei
durante três exaltados dias e lhe rimei um soneto! Não sei se o José Matias lhe dedicou sonetos. Mas todos
nós, seus amigos, percebemos logo o forte, profundo, absoluto amor que concebera, desde a noite de Outono,
à luz da Lua, aquele coração, que em Coimbra considerávamos de esquilo! Bem compreende que homem tão
comedido e quieto não se exalou em suspiros públicos. Já, porém, no tempo de Aristóteles, se afirmava que
amor e fumo não se escondem; e do nosso cerrado José Matias o amor começou logo a escapar, como o fumo
leve através das fendas invisíveis duma casa fechada que arde terrìvelmente. Bem me recordo duma tarde que
o visitei em Arroios, depois de voltar do Alentejo. Era um domingo de Julho. Ele ia jantar com uma tia-avó,
uma D. Mafalda Noronha, que vivia em Benfica, na quinta dos Cedros, onde habitualmente jantavam também
aos domingos o Matos Miranda e a divina Elisa. Creio mesmo que só nessa casa ela e o José Matias se
encontravam, sobretudo com as facilidades que oferecem pensativas alamedas e retiros de sombra. As janelas
do quarto do José Matias abriam sobre o seu jardim e sobre o jardim dos Mirandas: e, quando entrei, ele ainda
se vestia, lentamente. Nunca admirei, meu amigo, face humana aureolada por felicidade mais segura e serena!
Sorria iluminadamente quando me abraçou, com um sorriso que vinha das profundidades da alma iluminada;
sorria ainda deliciadamente enquanto eu lhe contei todos os meus desgostos no Alentejo: sorriu depois
extàticamente, aludindo ao calor e enrolando um cigarro distraído; e sorriu sempre, enlevado, a escolher na
gaveta da cómoda, com escrúpulo religioso, uma gravata de seda branca. E a cada momento,
irresistìvelmente, por um hábito já tão inconsciente como o pestanejar, os seus olhos risonhos, calmamente
enternecidos, se voltavam para as vidraças fechadas... De sorte que, acompanhando aquele raio ditoso, logo
descobri, no terraço da casa da Parreira, a divina Elisa, vestida de claro, com um chapéu branco, passeando
preguiçosamente, calçando pensativamente as luvas, e espreitando também as janelas do meu amigo, que um
lampejo oblíquo do Sol ofuscava de manchas de ouro. O José Matias no entanto conversava, antes
murmurava, através do sorriso perene, coisas afáveis e dispersas. Toda a sua atenção se concentrara diante do
espelho, no alfinete de coral e pérola para prender a gravata, no colete branco que abotoava e ajustava com a
devoção com que um padre novo, na exaltação cândida da primeira missa, se reveste da estola e do amicto,
para se acercar do altar. Nunca eu vira um homem deitar, com tão profundo êxtase, água-de-colónia no lenço!
E depois de enfiar a sobrecasaca, de lhe espetar uma soberba rosa, foi com inefável emoção, sem reter um
delicioso suspiro, que abriu largamente, solenemente, as vidraças! Introibo ad altarem Deœ! Eu permaneci
discretamente enterrado no sofá. E, meu caro amigo, acredite! Invejei aquele homem à janela, imóvel, hirto na
sua adoração sublime, com os olhos, e a alma, e todo o ser cravados no terraço, na branca mulher calçando as
luvas claras, e tão indiferente ao Mundo como se o Mundo fosse apenas o ladrilho que ela pisava e cobria com
os pés!
E este enlevo, meu amigo, durou dez anos, assim esplêndido, puro, distante e imaterial! Não ria...
Decerto se encontravam na quinta de D. Mafalda: decerto se escreviam, e transbordantemente, atirando as
cartas por cima do muro que separava os dois quintais: mas nunca, por cima das heras desse muro,
procuraram a rara delícia duma conversa roubada ou a delícia ainda mais perfeita dum silêncio escondido na
sombra. E nunca trocaram um beijo... Não duvide! Algum aperto de mão fugidio e sôfrego, sob os arvoredos
de D. Mafalda, foi o limite exaltadamente extremo, que a vontade lhes marcou ao desejo. O meu amigo não
compreende como se mantiveram assim dois frágeis corpos, durante dez anos, em tão terrível e mórbido
renunciamento... Sim, decerto lhes faltou, para se perderem, uma hora de segurança ou uma portinha no muro.
Depois a divina Elisa vivia realmente num mosteiro, em que ferrolhos e grades eram formados pelos hábitos
rìgidamente reclusos de Matos Miranda, diabético e tristonho. Mas, na castidade deste amor, entrou muita
nobreza moral e finura superior de sentimento. O amor espiritualiza o homem - e materializa a mulher. Essa
espiritualização era fácil ao José Matias, que (sem nós desconfiarmos) nascera desvairadamente espiritualista;
mas a humana Elisa encontrou também um gozo delicado nessa ideal adoração de monge, que nem ousa
roçar, com os dedos trêmulos e embrulhados no rosário, a túnica da Virgem sublimada. Ele, sim! ele gozou
nesse amor transcendentemente desmaterializado um encanto sobre-humano. E durante dez anos, como o Rui
Blas do velho Hugo, caminhou, vivo e deslumbrado, dentro do seu sonho radiante, sonho em que Elisa
habitou realmente dentro da sua alma, numa fusão tão absoluta que se tornou consubstancial com o seu ser!
Acreditará o meu amigo que ele abandonou o charuto, mesmo passeando solitàriamente a cavalo pelos
arredores de Lisboa, logo que descobrira na quinta de D. Mafalda, uma tarde, que o fumo perturbava Elisa?
E esta presença real da divina criatura no seu ser criou no José Matias modos novos, estranhos,
derivando da alucinação. Como o Visconde de Garmilde jantava cedo, à hora vernácula do Portugal antigo,
José Matias ceava, depois de S. Carlos, naquele delicioso e saudoso Café Central, onde o linguado parecia
frito no céu, e o Colares no céu engarrafado. Pois nunca ceava sem serpentinas profusamente acesas e a mesa
juncada de flores. Porquê? Porque Elisa também ali ceava, invisível. Daí esses silêncios banhados num sorriso
religiosamente atento... Porquê? Porque a estava sempre escutando! Ainda me lembro dele arrancar do quarto
três gravuras clássicas de Faunos ousados e Ninfas rendidas... Elisa pairava idealmente naquele ambiente; e
ele purificava as paredes, que mandou forrar de sedas claras. O amor arrasta ao luxo, sobretudo amor de tão
elegante idealismo: e o José Matias prodigalizou com esplendor o luxo que ela partilhava. Decentemente não
podia andar com a imagem de Elisa numa tipóia de praça, nem consentir que a augusta imagem roçasse pelas
cadeiras de palhinha da plateia de S. Carlos. Montou, portanto, carruagens dum gosto sóbrio e puro: e assinou
um camarote na Ópera, onde instalou, para ela, uma poltrona pontifical, de cetim branco, bordado a estrelas
de ouro.
Além disso, como descobrira a generosidade de Elisa, logo se tornou congénere e sumptuosamente
generoso: e ninguém existiu então em Lisboa que espalhasse, com facilidade mais risonha, notas de cem mil-
réis. Assim desbaratou, ràpidamente, sessenta contos com o amor daquela mulher a quem nunca dera uma
flor!
E, durante esse tempo, o Matos Miranda? Meu amigo, o bom Matos Miranda não desmanchava nem a
perfeição, nem a quietação desta felicidade! Tão absoluto seria o espiritualismo do José Matias, que apenas se
interessasse pela alma de Elisa, indiferente às submissões do seu corpo, invólucro inferior e mortal?... Não
sei. Verdade seja! aquele digno diabético, tão grave, sempre de cachenez de lã escura, com as suas suíças
grisalhas, os seus ponderosos óculos de ouro, não sugeria ideias inquietadoras de marido ardente, cujo ardor,
fatalmente e involuntàriamente, se partilha e abrasa. Todavia nunca compreendi, eu, Filósofo, aquela
consideração, quase carinhosa, do José Matias pelo homem que, mesmo desinteressadamente, podia por
direito, por costume, contemplar Elisa desapertando as fitas da saia branca!... Haveria ali reconhecimento por
o Miranda ter descoberto numa remota rua de Setúbal (onde José Matias nunca a descortinaria) aquela divina
mulher, e por a manter em conforto, sòlidamente nutrida, finamente vestida, transportada em caleches de
macias molas? Ou recebera o José Matias aquela costumada confidência - “não sou tua, nem dele” - que tanto
consola do sacrifício, porque tanto lisonjeia o egoísmo?... Não sei. Mas, com certeza, este seu magnânimo
desdém pela presença corporal do Miranda no templo, onde habitava a sua Deusa, dava à felicidade de José
Matias uma unidade perfeita, a unidade dum cristal que por todos os lados rebrilha, igualmente puro, sem
arranhadura ou mancha. E esta felicidade, meu amigo, durou dez anos... Que escandaloso luxo para um
mortal!
Mas um dia, a terra, para o José Matias, tremeu toda, num terramoto de incomparável espanto. Em
Janeiro ou Fevereiro de 1871, o Miranda, já debilitado pela diabetes, morreu com uma pneumonia. Por estas
mesmas ruas, numa pachorrenta tipóia de praça, acompanhei o seu enterro numeroso, rico, com Ministros,
porque o Miranda pertencia às Instituições. E depois, aproveitando a tipóia, visitei o José Matias em Arroios,
não por curiosidade perversa, nem para lhe levar felicitações indecentes, mas para que, naquele lance
deslumbrador, ele sentisse ao lado a força moderadora da Filosofia... Encontrei porém com ele um amigo
mais antigo e confidencial, aquele brilhante Nicolau da Barca, que já conduzi também a este cemitério, onde
agora jazem, debaixo de lápides, todos aqueles camaradas com quem levantei castelos nas nuvens... O
Nicolau chegara da Velosa, da sua quinta de Santarém, de madrugada, reclamado por um telegrama do
Matias. Quando entrei, um criado atarefado arranjava duas malas enormes. O José Matias abalava nessa noite
para o Porto. Já envergara mesmo um fato de viagem, todo negro, com sapatos de couro amarelo: e depois de
me sacudir a mão, enquanto o Nicolau remexia um grogue, continuou vagando pelo quarto, calado, como
embaçado, com um modo que não era emoção, nem alegria pudicamente disfarçada, nem surpresa do seu
destino bruscamente sublimado. Não! se o bom Darwin não nos ilude no seu livro da Expressão das Emoções,
o José Matias, nessa tarde, só sentia e só exprimia embaraço! Em frente, na casa da Parreira, todas as janelas
permaneciam fechadas sob a tristeza da tarde cinzenta. E, todavia, surpreendi o José Matias atirando para o
terraço, ràpidamente, um olhar em que transparecia inquietação, ansiedade, quase terror! Como direi? Aquele
é o olhar que se resvala para a jaula mal segura onde se agita uma leoa! Num momento em que ele entrara na
alcova, murmurei ao Nicolau, por cima do grogue: − “O Matias faz perfeitamente em ir para o Porto...”
Nicolau encolheu os ombros: − “Sim, pensou que era mais delicado... Eu aprovei. Mas só durante os meses de
luto pesado...” Às sete horas acompanhámos o nosso amigo à estação de Santa Apolónia. Na volta, dentro do
cupé que uma grande chuva batia, filosofámos. Eu sorria contente: − “Um ano de luto, e depois muita
felicidade e muitos filhos... É um poema acabado!” − O Nicolau acudiu, sério: − “E acabado numa deliciosa e
suculenta prosa. A divina Elisa fica com toda a sua divindade e a fortuna do Miranda, uns dez ou doze contos
de renda... Pela primeira vez na nossa vida contemplamos, tu e eu, a virtude recompensada!”
Meu caro amigo! os meses cerimoniais de luto passaram, depois outros, e José Matias não se arredou
do Porto. Nesse Agosto o encontrei eu instalado fundamentalmente no Hotel Francfort, onde entretinha a
melancolia dos dias abrasados, fumando (porque voltara ao tabaco), lendo romances de Júlio Verne e bebendo
cerveja gelada até que a tarde refrescava e ele se vestia, se perfumava, se floria para jantar na Foz.
E apesar de se acercar o bendito remate do luto e da desesperada espera, não notei no José Matias nem
alvoroço elegantemente reprimido, nem revolta contra a lentidão do tempo, velho por vezes tão moroso e
trôpego... Pelo contrário! Ao sorriso de radiosa certeza, que nesses anos o iluminara com um nimbo de
beatitude, sucedera a seriedade carregada, toda em sombra e rugas, de quem se debate numa dúvida
irresolúvel, sempre presente, roedora e dolorosa. Quer que lhe diga? Nesse Verão, no Hotel Francfort, sempre
me pareceu que o José Matias, a cada instante da sua vida acordada, mesmo emborcando a fresca cerveja,
mesmo calçando as luvas ao entrar para a caleche que o levava à Foz, angustiadamente perguntava à sua
consciência: − “Que hei-de fazer? Que hei-de fazer?” − E depois, uma manhã, ao almoço, realmente me
assombrou, exclamando ao abrir o jornal, com um assomo de sangue na face: “O quê? Já são 29 de Agosto?
Santo Deus... Já o fim de Agosto!...”
Voltei a Lisboa, meu amigo. O Inverno passou, muito seco e muito azul. Eu trabalhei nas minhas
Origens do Utilitarismo. Um domingo, no Rossio, quando já se vendiam cravos nas tabacarias, avistei dentro
dum cupé a divina Elisa, com plumas roxas no chapéu. E nessa semana encontrei no meu Diário Ilustrado a
notícia curta, quase tímida, do casamento da sr.ª D. Elisa Miranda... Com quem, meu amigo? − Com o
conhecido proprietário, o sr. Francisco Torres Nogueira!...
O meu amigo cerrou aí o punho, e bateu na coxa, espantado. Eu também cerrei os punhos ambos, mas
agora para os levantar ao Céu onde se julgam os feitos da Terra, e clamar furiosamente, aos urros, contra a
falsidade, a inconstância ondeante e pérfida, toda a enganadora torpeza das mulheres, e daquela especial Elisa
cheia de infâmia entre as mulheres! Atraiçoar à pressa, atabalhoadamente, apenas findara o luto negro, aquele
nobre, puro, intelectual Matias! e o seu amor de dez anos, submisso e sublime!...
E depois de apontar os punhos para o Céu ainda os apertava na cabeça, gritando: − “Mas porquê?
porquê?” − Por amor? Durante anos ela amara enlevadamente este moço, e dum amor que se não desiludira
nem se fartara, porque permanecia suspenso, imaterial, insatisfeito. Por ambição? Torres Nogueira era um
ocioso amável como José Matias, e possuía em vinhas hipotecadas os mesmos cinquenta ou sessenta contos
que o José Matias herdara agora do tio Garmilde em terras excelentes e livres. Então porquê? certamente
porque os grossos bigodes negros do Torres Nogueira apeteciam mais à sua carne do que o buço louro e
pensativo do José Matias! Ah! bem ensinara S. João Crisóstomo que a mulher é um monturo de impureza,
erguido à porta do Inferno!
Pois, meu amigo, quando eu assim rugia, encontro uma tarde na rua do Alecrim o nosso Nicolau da
Barca, que salta da tipóia, me empurra para um portal, agarra excitadamente no meu pobre braço e exclama
engasgado: − “Já sabes? Foi o José Matias que recusou! Ela escreveu, esteve no Porto, chorou... Ele nem
consentiu em a ver! Não quis casar, não quer casar!” Fiquei trespassado. − “E então ela...” - “Despeitada,
fortemente cercada pelo Torres, cansada da viuvice, com aqueles belos trinta anos em botão, que diabo!
Cotada, casou!” Eu ergui os braços até à abóbada do pátio: − “Mas então esse sublime amor do José Matias?”
O Nicolau, seu íntimo e confidente, jurou com irrecusável segurança: − “É o mesmo sempre! Infinito,
absoluto... Mas não quer casar!” − Ambos nos olhámos, e depois ambos nos separámos, encolhendo os
ombros, com aquele assombro resignado que convém a espíritos prudentes perante o Incognoscível. Mas eu,
Filósofo, e portanto espírito imprudente, toda essa noite esfuraquei o acto do José Matias com a ponta duma
Psicologia que expressamente aguçara: − e já de madrugada, estafado, concluí, como se conclui sempre em
Filosofia, que me encontrava diante duma Causa Primaria, portanto impenetrável, onde se quebraria, sem
vantagem para ele, para mim ou para o Mundo, a ponta do meu Instrumento!
Depois a divina Elisa casou e continuou habitando a Parreira com o seu Torres Nogueira, no conforto e
sossego que já gozara com o seu Matos Miranda. No meado do Verão José Matias recolheu do porto a
Arroios, ao casarão do tio Garmilde, onde recuperou os seus antigos quartos, com as varandas para o jardim,
já florido de dálias que ninguém tratava. Veio Agosto, como sempre em Lisboa silencioso e quente. Aos
domingos José Matias jantava com D. Mafalda de Noronha, em Benfica, solitàriamente - porque o Torres
Nogueira não conhecia aquela venerada senhora da Quinta dos Cedros. A divina Elisa, com vestidos caros,
passeava à tarde no jardim entre as roseiras. De sorte que a única mudança, naquele doce canto de Arroios,
parecia ser o Matos Miranda no seu belo jazigo dos Prazeres, todo de mármore - e o Torres Nogueira no leito
excelente de Elisa.
Havia, porém, uma tremenda e dolorosa mudança - a do José Matias! Adivinha o meu amigo como
esse desgraçado consumia os seus estéreis dias? Com os olhos, e a memória, e a alma, e todo o ser cravados
no terraço, nas janelas, nos jardins da Parreira! Mas agora não era de vidraças largamente abertas, em aberto
êxtase, com o sorriso de segura beatitude: era por trás das cortinas fechadas, através duma escassa fenda,
escondido, surrupiando furtivamente os brancos sulcos do vestido branco, com a face toda devastada pela
angústia e pela derrota. E compreende porque sofria assim, esse pobre coração? Certamente porque Elisa,
desdenhada pelos seus braços fechados, correra logo, sem luta, sem escrúpulos, para outros braços, mais
acessíveis e prontos... Não, meu amigo! E note agora a complicada subtileza desta paixão. O José Matias
permanecia devotamente crente de que Elisa, na profundidade da sua alma, nesse sagrado fundo espiritual
onde não entram as imposições das conveniências, nem as decisões da razão pura, nem os ímpetos do
orgulho, nem as emoções da carne - o amava, a ele, ùnicamente a ele, e com um amor que não deperecera,
não se alterara, floria em todo o seu viço, mesmo sem ser regado ou tratado, como a antiga Rosa Mística! O
que o torturava, meu amigo, o que lhe cravara longas rugas em curtos meses, era que um homem, um marcho,
um bruto, se tivesse apoderado daquela mulher que era sua! e que do modo mais santo e mais socialmente
puro, sob o patrocínio enternecido da Igreja e do Estado, lambuzasse com os rijos bigodes negros, à farta, os
divinos lábios que ele nunca ousara roçar, na supersticiosa reverência e quase no terror da sua divindade!
Como lhe direi?... O sentimento deste extraordinário Matias era o de um monge, prostrado ante uma Imagem
da Virgem, em transcendente enlevo - quando de repente um bestial sacrílego trepa ao altar, e ergue
obscenamente a túnica da Imagem. O meu amigo sorri... E então o Matos Miranda? Ah! meu amigo! esse era
diabético, e grave, e obeso, e já existia instalado na Parreira, com a sua obesidade e a sua diabetes, quando ele
conhecera Elisa e lhe dera para sempre vida e coração. E o Torres Nogueira, esse, rompera brutalmente
através do seu puríssimo amor, com os negros bigodes, e os carnudos braços, e o rijo arranque dum antigo
pegador de touros, e empolgara aquela mulher - a quem revelara talvez o que é um homem!
Mas, com os demónios! essa mulher ele a recusara, quando ela se lhe oferecia, na frescura e na
grandeza dum sentimento que nenhum desdém ainda ressequira ou abatera. Que quer?... É a espantosa
tortuosidade espiritual deste Matias! Ao cabo de uns meses ele esquecera, positivamente esquecera essa
recusa afrontosa, como se fora um leve desencontro de interesses materiais ou sociais, passado há meses, no
Norte, e a que a distância e o tempo dissipavam a realidade e a amargura leve! E agora, aqui em Lisboa, com
as janelas de Elisa diante das suas janelas e as rosas dos dois jardins unidos rescendendo na sombra, a dor
presente, a dor real, era que ele amara sublimemente uma mulher, e que a colocara entre as estrelas para mais
pura adoração, e que um bruto moreno, de bigodes negros, arrancara essa mulher de entre as estrelas e a
arremessara para a cama!
Enredado caso, hem, meu amigo? Ah! muito filosofei sobre ele, por dever de filósofo! E concluí que o
Matias era um doente, atacado de hiperespiritualismo, duma inflamação violenta e pútrida do espiritualismo,
que receara apavoradamente as materialidades do casamento, as chinelas, a pele pouco fresca ao acordar, um
ventre enorme durante seis meses, os meninos berrando no berço molhado... E agora rugia de furor e
tormento, porque certo materialão, ao lado, se prontificara a aceitar Elisa em camisola de lã. Um imbecil?...
Não, meu amigo! um ultra-romântico, loucamente alheio às realidades fortes da vida, que nunca suspeitou que
chinelas e cueiros sujos de meninos são coisas de superior beleza em casa em que entre o sol e haja amor.
E sabe o meu amigo o que exacerbou, mais furiosamente, este tormento? É que a pobre Elisa mostrava
por ele o antigo amor! Que lhe parece? Infernal, hem?... Pelo menos se não sentia o antigo amor intacto na
sua essência, forte como outrora e único, conservava pelo pobre Matias uma irresistível curiosidade e repetia
os gestos desse amor... Talvez fosse apenas a fatalidade dos jardins vizinhos! Não sei. Mas logo desde
Setembro, quando o Torres Nogueira partiu para as suas vinhas de Carcavelos, a assistir à vindima, ela
recomeçou, da borda do terraço, por sobre as rosas e as dálias abertas, aquela doce remessa de doces olhares
com que durante dez anos extasiara o coração do José Matias.
Não creio que se escrevessem por cima do muro do jardim, como sob o regime paternal do Matos
Miranda... O novo senhor, o homem robusto da bigodeira negra, impunha à divina Elisa, mesmo de longe, de
entre as vinhas de Carcavelos, retraimento e prudência. E acalmada por aquele marido, moço e forte, menos
sentiria agora a necessidade de algum encontro discreto na sombra tépida da noite, mesmo quando a sua
elegância moral e o rígido idealismo do José Matias consentissem em aproveitar uma escada contra o muro...
De resto, Elisa era fundamentalmente honesta; e conservava o respeito sagrado do seu corpo, por o sentir tão
belo e cuidadosamente feito por Deus - mais do que da sua alma. E quem sabe?... Talvez a adorável mulher
pertencesse à bela raça daquela marquesa italiana, a Marquesa Julia de Malfieri, que conservava dois
amorosos ao seu doce serviço, um poeta para as delicadezas românticas e um cocheiro para as necessidades
grosseiras.
Enfim, meu amigo, não psicologuemos mais sobre esta viva, atrás do morto que morreu por ela! O
facto foi que Elisa e o seu amigo insensìvelmente recaíram na velha união ideal, através dos jardins em flor. E
em Outubro, como o Torres Nogueira continuava a vindimar em Carcavelos, o José Matias, para contemplar o
terraço da Parreira, já abria de novo as vidraças, larga e extàticamente!
Parece que um tão extreme espiritualista, reconquistando a idealidade do antigo amor, devia reentrar
também na antiga felicidade perfeita. Ele reinava na alma imortal de Elisa: − que importava que outro se
ocupasse do seu corpo mortal? Mas não! o pobre moço sofria, angustiadamente. E, para sacudir a pungência
destes tormentos, findou, ele tão sereno, duma tão doce harmonia de modos, por se tornar um agitado. Ah!
meu amigo, que redemoinho e estrépito de vida! Desesperadamente, durante um ano, remexeu, aturdiu,
escandalizou Lisboa! São desse tempo algumas das suas extravagâncias lendárias... Conhece a da ceia? Uma
ceia oferecida a trinta ou quarenta mulheres das mais torpes e das mais sujas, apanhadas pelas negras vielas
do Bairro Alto e da Mouraria, que depois mandou montar em burros, e gravemente, melancòlicamente, posto
na frente, sobre um grande cavalo branco, com um imenso chicote, conduziu aos altos da Graça, para saudar a
aparição do Sol!
Mas todo este alarido não lhe dissipou a dor - e foi então que, nesse Inverno, começou a jogar e a
beber! Todo o dia se encerrava em casa (certamente por trás das vidraças, agora que Torres Nogueira
regressara das vinhas), com olhos e alma cravados no terraço fatal; depois, à noite, quando as janelas de Elisa
se apagavam, saía numa tipóia, sempre a mesma, a tipóia do Gago, corria à roleta do Bravo, depois ao clube
do “Cavalheiro”, onde jogava frenèticamente até à tardia hora de cear, num gabinete de restaurante, com
molhos de velas acesas, e o colares, e o champanhe, e o conhaque correndo em jorros desesperados.
E esta vida, espicaçada pelas Fúrias, durou anos, sete anos! Todas as terras que lhe deixara o tio
Garmilde se foram, largamente jogadas e bebidas: e só lhe restava o casarão de Arroios e o dinheiro
apressado, porque o hipotecara. Mas, sùbitamente, desapareceu de todos os antros de vinho e de jogo. E
soubemos que o Torres Nogueira estava morrendo com uma anasarca!
Por esse tempo, e por causa dum negócio do Nicolau da Barca, que me telegrafara ansiosamente da sua
quinta de Santarém (negócio embrulhado, duma letra), procurei o José Matias em Arroios, às dez horas, numa
noite quente de Abril. O criado, enquanto me conduzia pelo corredor mal alumiado, já desadornado das ricas
arcas e talhas da Índia do velho Garmilde, confessou que S. Ex.ª não acabara de jantar... E ainda me lembro,
com um arrepio, da impressão desolada que me deu o desgraçado! Era no quarto que abria sobre os dois
jardins. Diante duma janela, que as cortinas de damasco cerravam, a mesa resplandecia, com duas serpentinas,
um cesto de rosas brancas e algumas das nobres pratas do Garmilde: e ao lado, todo estendido numa poltrona,
com o colete branco desabotoado, a face lívida descaída sobre o peito, um copo vazio na mão inerte, o José
Matias parecia adormecido ou morto.
Quando lhe toquei no ombro, ergueu num sobressalto a cabeça, toda despenteada: − “Que horas são?”
− Apenas lhe gritei, num gesto alegre, para o despertar, que era tarde, que eram dez, encheu precipitadamente
o copo, da garrafa mais chegada, de vinho branco, e bebeu lentamente, com a mão a tremer, a tremer...
Depois, arredando os cabelos da testa húmida: − “Então que há de novo?” − Esgazeado, sem compreender,
escutou, como num sonho, o recado que lhe mandava o Nicolau. Por fim, com um suspiro, remexeu uma
garrafa de champanhe dentro do balde em que ela gelava, encheu outro copo, murmurando: − “Um calor...
Uma sede!...” Mas não bebeu: arrancou o corpo pesado à poltrona de verga, e forçou os passos mal firmes
para a janela, a que abriu violentamente as cortinas, depois a vidraça... E ficou hirto, como colhido pelo
silêncio e escuro sossego da noite estrelada. Eu espreitei, meu amigo! Na casa da Parreira duas janelas
brilhavam, fortemente alumiadas, abertas à macia aragem. E essa claridade viva envolvia uma figura branca,
nas longas pregas de um roupão branco, parada à beira do terraço, como esquecida numa contemplação. Era
Elisa, meu amigo! Por trás, no fundo do quarto claro, o marido certamente arquejava, na opressão da
anasarca. Ela, imóvel, repousava, mandando um doce olhar, talvez um sorriso, ao seu doce amigo. O
miserável, fascinado, sem respirar, sorvia o encanto daquela visão benfazeja. E entre eles rescendiam, na
moleza da noite, todas as flores dos dois jardins... Sùbitamente Elisa recolheu, à pressa, chamada por algum
gemido ou impaciência do pobre Torres. E as janelas logo se fecharam, toda a luz e vida se sumiram na casa
da Parreira.
Então José Matias, com um soluço despedaçado, de transbordante tormento, cambaleou, tão
ansiadamente se agarrou à cortina que a rasgou, e tombou desamparado nos braços que lhe estendi, e em que
o arrastei para a cadeira, pesadamente, como a um morto ou a um bêbedo. Mas, volvido um momento, com
espanto meu, o extraordinário homem descerra os olhos, sorri num lento e inerte sorriso, murmura quase
serenamente: − “É o calor... Está um calor! Você não quer tomar chá?”
Recusei e abalei - enquanto ele, indiferente à minha fuga, estendido na poltrona, acendia trèmulamente
um imenso charuto.
Santo Deus! já estamos em Santa Isabel! Como estes lagóias vão arrastando depressa o pobre José
Matias para o pó e para o verme final! Pois, meu amigo, depois dessa curiosa noite, o Torres Nogueira
morreu. A divina Elisa, durante o novo luto, recolheu à quinta duma cunhada também viúva, à “Corte
Moreira”, ao pé de Beja. E o José Matias inteiramente se sumiu, se evaporou, sem que me revoassem novas
dele, mesmo incertas - tanto mais que o íntimo por quem as conheceria, o nosso brilhante Nicolau da Barca,
partira para a Ilha da Madeira, com o seu derradeiro pedaço de pulmão, sem esperança, por dever clássico,
quase dever social, de tísico.
Todo esse ano, também, andei enfronhado no meu Ensaio dos fenómenos afectivos. Depois, um dia, no
começo do Verão, descendo pela rua de S. Bento, com os olhos levantados, a procurar o n.º 214, onde se
catalogava a livraria do Morgado de azemel, quem avisto eu à varanda duma casa nova e de esquina? A
divina Elisa, metendo folhas de alface na gaiola de um canário! E bela, meu amigo! mais cheia e mais
harmoniosa, toda madura, e suculenta, e desejável, apesar de ter festejado em Beja os seus quarenta e dois
anos! Mas aquela mulher era da grande raça de Helena, que quarenta anos também depois do cerco de Tróia
ainda deslumbrava os homens mortais e os Deuses imortais. E, curioso acaso! logo nessa tarde, pelo Seco, o
João Seco da Biblioteca, que catalogava a livraria do Morgado, conheci a nova história desta Helena
admirável.
A divina Elisa tinha agora um amante... E ùnicamente por não poder, com a sua costumada
honestidade, possuir um legítimo e terceiro marido. O ditoso moço que ela adorava era com efeito casado...
Casado em Beja com uma espanhola que, ao cabo dum ano desse casamento e de outros requebros, partira
para Sevilha, passar devotamente a Semana Santa, e lá adormecera nos braços dum riquíssimo criador de
gado. O marido, pacato apontador de Obras Públicas, continuara em Beja, onde também vagamente ensinara
um vago desenho... Ora uma das suas discípulas era a filha da senhora da “Corte Moreira”: e aí na quinta,
enquanto ele guiava o esfuminho da menina, Elisa o conheceu e o amou, com uma paixão tão urgente que o
arrancou precipitamente às Obras Públicas, e o arrastou a Lisboa, cidade mais propícia do que Beja a uma
felicidade escandalosa, e que se esconde. O João Seco é de Beja, onde passara o Natal; conhecia
perfeitamente o apontador, as senhoras da “Corte Moreira”; e compreendeu o romance quando das janelas
desse n.º 214, onde catalogava a Livraria do Azemel, reconheceu Elisa na varanda da esquina, e o apontador
enfiando regaladamente o portão, bem vestido, bem calçado, de luvas claras, com aparência de ser
infinitamente mais ditoso naquelas obras particulares do que nas Públicas.
E dessa mesma janela do 214 o conheci eu também, o apontador! Belo moço, sólido, branco, de barba
escura, em excelentes condições de quantidade (e talvez mesmo de qualidade) para encher um coração viúvo,
e portanto “vazio”, como diz a Bíblia. Eu frequentava esse n.º 214, interessado no catalogo da Livraria,
porque o Morgado de Azemel possuía, pelo irónico acaso das heranças, uma colecção incomparável dos
Filósofos do século XVIII. E passadas semanas, saindo desses livros uma noite (o João Seco trabalhava de
noite) e parando adiante, à beira dum portal aberto, para acender o charuto, enxergo à luz tremente do fósforo,
metido na sombra, o José Matias! Mas que José Matias, meu caro amigo! Para o considerar mais detidamente,
raspei outro fósforo. Pobre José Matias! Deixara crescer a barba, uma barba rara, indecisa, suja, mole como
cotão amarelado: deixara crescer o cabelo, que lhe surdia em farripas secas de sob um velho chapéu-coco:
mas todo ele, no resto, parecia diminuído, minguado, dentro duma quinzena de mescla enxovalhada e dumas
calças pretas, de grandes bolsos, onde escondia as mãos com o gesto tradicional, tão infinitamente triste, da
miséria ociosa. Na espantada lástima que me tomou, apenas balbuciei: − “Ora esta! Você! Então que é feito?”
− E ele, com a sua mansidão polida, mas secamente, para se desembaraçar, e numa voz que a aguardente
enrouquecera: “Por aqui, à espera de um sujeito”. − Não insisti, segui. Depois, adiante, parando, verifiquei o
que num relance adivinhara - que o portal negro ficava em frente ao prédio novo e às varandas de Elisa!
Pois, meu amigo, três anos viveu o José Matias encafuado naquele portal!
Era um desses pátios de Lisboa antiga, sem porteiro, sempre escancarados, sempre sujos, cavernas
laterais da rua, de onde ninguém escorraça os escondidos da miséria ou da dor. Ao lado havia uma taverna.
Infalìvelmente, ao anoitecer, o José Matias descia a rua de S. Bento, colado aos muros, e,como uma sombra,
mergulhava na sombra do portal. A essa hora já as janelas de Elisa luziam, de Inverno embaciadas pela névoa
fina, de Verão ainda abertas e arejando no repouso e na calma. E para elas, imóvel, com as mãos nas
algibeiras, o José Matias se quedava em contemplação. Cada meia hora, subtilmente, enfiava para a taverna.
Copo de vinho, copo de aguardente; − e, de mansinho, recolhia à negrura do portal, ao seu êxtase. Quando as
janelas de Elisa se apagavam, ainda através da longa noite, mesmo das negras noites de Inverno - encolhido,
transido, a bater as solas rotas do lajedo, ou sentado ao fundo, nos degraus da escada - ficava esmagando os
olhos turvos na fachada negra daquela casa, onde a sabia dormindo com o outro!
Ao princípio, para fumar um cigarro apressado, trepava até ao patamar deserto, a esconder o lume que
o denunciaria no seu esconderijo. Mas depois, meu amigo, fumava incessantemente, colado à ombreira,
puxando o cigarro com ânsia, para que a ponta rebrilhasse, o alumiasse! E percebe porquê, meu amigo?...
Porque Elisa já descobrira que, dentro daquele portal, a adorar submissamente as suas janelas, com a alma de
outrora, estava o seu pobre José Matias!...
E acreditará o meu amigo que então, todas as noites, ou por trás da vidraça ou encostada à varanda
(com o apontador dentro, estirado no sofá, já de chinelas, lendo o Jornal da Noite), ela se demorava a fitar o
portal, muito quieta, sem outro gesto, naquele antigo e mudo olhar do terraço por sobre as rosas e as dálias? O
José Matias percebera, deslumbrado. E agora avivava desesperadamente o lume, como um farol, para guiar na
escuridão os amados olhos dela, e lhe mostrar que ali estava, transido, todo seu, e fiel!
De dia nunca ele passava na rua de S. Bento. Como ousaria, com o jaquetão roto nos cotovelos e as
botas cambadas? Por que aquele moço de elegância sóbria e fina tombara na miséria do andrajo? Onde
arranjava mesmo, cada dia, os três patacos para o vinho e para a posta de bacalhau nas tavernas? Não sei...
Mas louvemos a divina Elisa, meu amigo! muito delicadamente, por caminhos arredados e astutos, ela, rica,
procurara estabelecer uma pensão ao José Matias, mendigo. Situação picante, hem? a grata senhora dando
duas mesadas aos seus dois homens - o amante do corpo e o amante da alma! Ele, porém, adivinhou de onde
procedia a pavorosa esmola - e recusou, sem revolta, nem alarido de orgulho, até com enternecimento, até
com uma lágrima nas pálpebras que a aguardente inflamara!
Mas só com noite muito cerrada ousava descer à rua de S. Bento, e enfiar para o seu portal. E adivinha
o meu amigo como ele gastava o dia? A espreitar, a seguir, a farejar o apontador de Obras Públicas! Sim, meu
amigo! uma curiosidade insaciada, frenética, atroz, por aquele homem, que Elisa escolhera!... Os dois
anteriores, o Miranda e o Nogueira, tinham entrado na alcova de Elisa, pùblicamente, pela porta da Igreja, e
para outros fins humanos além do amor - para possuir um lar, talvez filhos, estabilidade e quietação na vida.
Mas este era meramente o amante, que ela nomeara e mantinha só para ser amada: e nessa união não aparecia
outro motivo racional senão que os dois corpos se unissem. Não se fartava, portanto, de o estudar, na figura,
na roupa, nos modos, ansioso por saber como era esse homem, que, para se completar, a sua Elisa preferia
entre a turba dos homens. Por decência, o apontador morava na outra extremidade da rua de S. Bento, diante
do Mercado. E essa parte da rua, onde o não surpreenderiam, na sua pelintrice, os olhos de Elisa, era o
paradeiro do José Matias, logo de manhã, para mirar, farejar o homem, quando ele recolhia da casa de Elisa,
ainda quente do calor da sua alcova. Depois não o largava, cautelosamente, como um larápio, rastejando de
longe no seu rasto. E eu suspeito que o seguia assim menos por curiosidade perversa do que para verificar se,
através das tentações de Lisboa, terríveis para um apontador de Beja, o homem conservava o corpo fiel a
Elisa. Em serviço da felicidade dela - fiscalizava o amante da mulher que amava!
Requinte furioso de espiritualismo e devoção, meu amigo! A alma de Elisa era sua e recebia
perenemente a adoração perene: e agora queria que o corpo de Elisa não fosse menos adorado, nem menos
lealmente, por aquele homem a quem ela entregara o corpo! Mas o apontador era fàcilmente fiel a uma
mulher tão formosa, tão rica, de meias de seda, de brilhantes nas orelhas, que o deslumbrava. E quem sabe,
meu amigo? talvez esta fidelidade, preito carnal à divindade de Elisa, fosse para o José Matias a derradeira
felicidade que lhe concedeu a vida. Assim me persuado, porque, no Inverno passado, encontrei o apontador,
numa manhã de chuva, comprando camélias a um florista da Rua do Ouro; e defronte, a uma esquina, o José
Matias, escaveirado, esfrangalhado, cocava o homem, com carinho, quase com gratidão! E talvez nessa noite,
no portal, tiritando, batendo as solas encharcadas, com os olhos enternecidos nas escuras vidraças, pensasse:
− “Coitadinha, pobre Elisa! Ficou bem contente por ele lhe trazer as flores!”
Isto durou três anos.
Enfim, meu amigo, anteontem, o João Seco apareceu em minha casa, de tarde, esbaforido: − “Lá
levaram o José Matias, numa maca, para o hospital, com uma congestão nos pulmões!”
Parece que o encontraram, de madrugada, estirado no ladrilho, todo encolhido no jaquetão delgado,
arquejando, com a face coberta de morte, voltada para as varandas de Elisa. Corri ao hospital. Morrera... Subi,
com o médico de serviço, à enfermaria. Levantei o lençol que o cobria. Na abertura da camisa suja e rota,
preso ao pescoço por um cordão, conservava um saquinho de seda, puído e sujo também. Decerto continha
flor, ou cabelos, ou pedaço de renda de Elisa, do tempo do primeiro encanto e das tardes de Benfica...
Perguntei ao médico, que o conhecia e o lastimava, se ele sofrera. − “Não! Teve um momento comatoso,
depois arregalou os olhos, exclamou Oh! com grande espanto, e finou.”
Era o grito da alma, no assombro e horror de morrer também? Ou era a alma triunfando por se
reconhecer enfim imortal e livre? O meu amigo não sabe; nem o soube o divino Platão; nem o saberá o
derradeiro filósofo na derradeira tarde do mundo.
Chegámos ao cemitério. Creio que devemos pegar às borlas do caixão... Na verdade, é bem singular
este Alves Capão, seguindo tão sentidamente o nosso pobre espiritualista... Mas, Santo Deus, olhe! Além, à
espera, à porta da Igreja, aquele sujeito compenetrado, de casaca, com paletó alvadio... É o apontador de
Obras Públicas! E traz um grosso ramo de violetas... Elisa mandou o seu amante carnal acompanhar à cova e
cobrir de flores o seu amante espiritual! Mas, oh meu amigo, pensemos que, certamente, nunca ela pediria ao
José Matias para espalhar violetas sobre o cadáver do apontador! É que sempre a Matéria, mesmo sem o
compreender, sem dele tirar a sua felicidade, adorará o Espírito, e sempre a si própria, através dos gozos que
de si recebe, se tratará com brutalidade e desdém! Grande consolo, meu amigo, este apontador com o seu
ramo, para um Metafísico que, como eu, comentou Espinosa e Malebranche, reabilitou Fichte e provou
suficientemente a ilusão da sensação! Só por isto valeu a pena trazer à sua cova este inexplicado José Matias,
que era talvez muito mais que um homem − ou talvez ainda menos que um homem... − Com efeito, está frio...
Mas que linda tarde!
A Perfeição
SENTADO numa rocha, na ilha de Ogígia, com a barba enterrada entre as mãos, de onde desaparecera a
aspereza calosa e tisnada das armas e dos remos, Ulisses, o mais subtil dos homens, considerava, numa escura
e pesada tristeza, o mar muito azul que, mansa e harmoniosamente, rolava sobre a areia muito branca. Uma
túnica bordada de flores escarlates cobria, em pregas moles, o seu corpo poderoso, que engordara. Nas
correias das sandálias, que lhe calçavam os pés amaciados e perfumados de essências, reluziam esmeraldas do
Egipto. E o seu bastão era um maravilhoso galho de coral, rematado em pinha de pérolas, como os que usam
os Deuses marinhos.
A divina Ilha, com os seus rochedos de alabastro, os bosques de cedros e tuias odoríferas, as messes
eternas dourando os vales, a frescura das roseiras revestindo os outeiros suaves, resplandecia, adormecida na
moleza da sesta, toda envolta em mar resplandecente. Nem um sopro dos Zéfiros curiosos, que brincam e
correm por sobre o Arquipélago, desmanchava a serenidade do luminoso ar, mais doce que o vinho mais
doce, todo repassado pelo fino aroma dos prados de violetas. No silêncio, embebido de calor afável, eram
duma harmonia mais embaladora os murmúrios de arroios e fontes, o arrulhar das pombas voando dos
ciprestes aos plátanos e o lento rolar e quebrar da onda mansa sobre a areia macia. E nesta inefável paz e
beleza imortal, o subtil Ulisses, com os olhos perdidos nas águas lustrosas, amargamente gemia, revolvendo o
queixume do seu coração...
Sete anos, sete imensos anos, iam passados desde que o raio fulgente de Júpiter fendera a sua nave de
alta proa vermelha, e ele, agarrado ao mastro partido, trambolhara na braveza mujidora das espumas sombrias,
durante nove dias, durante nove noites, até que boiara em águas mais calmas, e tocara as areias daquela ilha
onde Calipso, a Deusa radiosa, o recolhera e o amara! E durante esses imensos anos, como se arrastara a sua
vida, a sua grande e forte vida, que, depois da partida para os muros fatais de Tróia, abandonando entre
lágrimas inumeráveis a sua Penélope de olhos claros, o seu pequenino Telémaco enfaixado no colo da ama,
andara sempre tão agitada por perigos, e guerras, e astúcias, e tormentas, e rumos perdidos?... Ah! ditosos os
Reis mortos, com formosas feridas no branco peito, diante das portas de Tróia! Felizes os seus companheiros
tragados pela onda amarga! Feliz ele se as lanças troianas o trespassassem nessa tarde de grande vento e
poeira, quando, junto à Faia, defendia dos ultrajes, com a espada sonora, o corpo morto de Aquiles! Mas não!
vivera! − E agora, cada manhã, ao sair sem alegria do trabalhoso leito de Calipso, as Ninfas, servas da Deusa,
o banhavam numa água muito pura, o perfumavam de lânguidas essências, o cobriam com uma túnica sempre
nova, ora bordada a sedas finas, ora bordada de ouro pálido! No entanto, sobre a mesa lustrosa, erguida à
porta da gruta, na sombra das ramadas, junto ao sussurro dormente dum arroio diamantino, os açafates e as
travessas lavradas transbordavam de bolos, de frutas, de tenras carnes fumegando, de peixes cintilando como
tramas de prata. A intendenta venerável gelava os vinhos doces nas crateras de bronze, coroadas de rosas. E
ele, sentado num escabelo, estendia as mãos para as iguarias perfeitas, enquanto ao lado, sobre um trono de
marfim, Calipso, espargindo através da túnica nevada a claridade e o aroma do seu corpo imortal,
sublimemente serena, com um sorriso taciturno, sem tocar nas comidas humanas, debicava a ambrósia, bebia
em goles delgados o néctar transparente e rubro. Depois, tomando aquele bastão de Príncipe de Povos com
que Calipso o presenteara, repercorria sem curiosidade os sabidos caminhos da Ilha, tão lisos e tratados que
nunca as suas sandálias reluzentes se maculavam de pó, tão penetrados pela imortalidade da Deusa que jamais
neles encontrara folha seca, nem flor menos fresca pendendo da haste. Sobre uma rocha se sentava então,
contemplando aquele mar que também banhava Ítaca, lá tão bravio, aqui tão sereno, e pensava, e gemia, até
que as águas e os caminhos se cobriam de sombra, e ele recolhia à gruta para dormir, sem desejo, com a
Deusa que o desejava!... E durante estes imensos anos, que destino envolvera a sua Ítaca, a áspera ilha de
sombrias matas? Viviam eles ainda, os seres amados? Sobre a forte colina, dominando a enseada de Reitros e
os pinheirais de Neus, ainda se erguia o seu palácio, com os belos pórticos pintados de vermelho e roxo? Ao
cabo de tão lentos e vazios anos, sem novas, apagada toda a esperança como uma lâmpada, despira a sua
Penélope a túnica passageira da viuvez, e passara para os braços de outro esposo forte que, agora, manejava as
suas lanças e vindimava as suas vinhas? E o doce filho Telémaco? Reinaria ele em Ítaca, sentado, com o
branco ceptro, sobre o mármore alto da Agorá? Ocioso e rondando pelos pátios, baixaria os olhos sob o
império duro dum padrasto? Erraria por cidades alheias, mendigando um salário?... Ah! se a sua existência,
assim para sempre arrancada da mulher, do filho, tão doces ao seu coração, andasse ao menos empregada em
façanhas ilustres! Dez anos antes, também desconhecia a sorte de Ítaca, e dos seres preciosos que lá deixara
em solidão e fragilidade; mas uma empresa heróica o agitava; e cada manhã a sua fama crescia, como uma
árvore num promontório, que enche o céu e todos os homens contemplam. Então era a planície de Tróia - e as
brancas tendas dos Gregos ao longo do mar sonoro! Sem cessar, meditava astúcias de guerra; com soberba
facúndia discursava na Assembléia dos Reis; rijamente jungia os cavalos empinados ao timão dos carros; de
lança alta corria, entre a grita e a pressa, contra os Troianos de altos elmos, que surdiam, em roldão ressoante,
das portas Skaias!... Oh! e quando ele, Príncipe dos Povos, encolhido sob farrapos de mendigo, com os braços
maculados de chagas postiças, coxeando e gemendo, penetrara nos muros da orgulhosa Tróia, pelo lado da
Faia, para de noite, com incomparável ardil e bravura, roubar o Paládio tutelar da cidade! E quanto, dentro do
ventre do Cavalo de Pau, na escuridão, no aperto de todos aqueles guerreiros hirtos e cobertos de ferro,
calmava a impaciência dos que sufocavam, e tapava com a mão a boca de Anticlos bravejando furioso, ao
escutar fora na planície os ultrajes e os escárnios troianos, e a todos murmurava: “Cala, cala! que a noite desce
e Tróia é nossa...” E depois as prodigiosas viagens! O pavoroso Polifemo, ludibriado com uma astúcia que
para sempre maravilhará as gerações! As manobras sublimes entre Sila e Caríbdis! As Sereias, vogando e
cantando em torno do mastro, de onde ele, amarrado, as rechaçava com o mudo dardejar dos olhos mais
agudos que dardos! A descida aos Infernos, jamais concedida a um mortal!... E agora homem de tão rutilantes
feitos jazia numa ilha mole, eternamente preso, sem amor, pelo amor duma Deusa! Como poderia ele fugir,
rodeado de mar indomável, sem nave, nem companheiros para mover os remos longos? Os Deuses ditosos
certamente esqueciam quem tanto por eles combatera e sempre piedosamente lhes votara as reses devidas,
mesmo através do fragor e fumaraça das cidadelas derrubadas, mesmo quando a sua proa encalhava em terra
agreste!... E ao herói, que recebera dos Reis da Grécia as armas de Aquiles, cabia por destino amargo
engordar na ociosidade duma ilha mais lânguida que uma cesta de rosas, e estender as mãos amolecidas para
as iguarias abundantes, e, quando águas e caminhos se cobriam de sombra, dormir sem desejo com uma
Deusa que, sem cessar, o desejava.
Assim gemia o magnânimo Ulisses, à beira do mar lustroso... E eis que, de repente, um sulco de
desusado brilho, mais rutilantemente branco que o duma estrela caindo, riscou a rutilância do céu, desde as
alturas até à cheirosa mata de tuias e cedros, que assombreava um golfo sereno, a oriente da Ilha. Com
alvoroço bateu o coração do herói. Rasto tão refulgente, na refulgência do dia, só um Deus o podia traçar
através do largo Ouranos. Um Deus, pois, descera à Ilha?
II
UM Deus descera, um grande Deus... Era o Mensageiro dos Deuses, o leve, eloquente Mercúrio. Calçado com
aquelas sandálias que têm duas asas brancas, os cabelos cor de vinho cobertos pelo casco onde batem também
duas claras asas, erguendo na mão o Caduceu, ele fendera o Éter, roçara a lisura do mar sossegado, pisara a
areia da Ilha, onde as suas pegadas ficavam rebrilhando como palmilhas de ouro novo. Apesar de percorrer
toda a terra, com os recados inumeráveis dos Deuses, o luminoso Mensageiro não conhecia aquela ilha de
Ogígia - e admirou, sorrindo, a beleza dos prados de violetas tão doces para o correr e brincar das Ninfas, e o
harmonioso faiscar dos regatos por entre os altos e lânguidos lírios. Uma vinha, sobre esteios de jaspe,
carregada de cachos maduros, conduzia, como fresco pórtico salpicado de sol, até à entrada da gruta, toda de
rochas polidas, de onde pendiam jasmineiros e madressilvas, envoltas no sussurrar das abelhas. E logo avistou
Calipso, a Deusa ditosa, sentada num Trono, fiando em roca de ouro, com o fuso de ouro, a lã formosa de
púrpura marinha. Um aro de esmeraldas prendia os seus cabelos muito anelados e ardentemente louros. Sob a
túnica diáfana a mocidade imortal do seu corpo rebrilhava, como a neve, quando a aurora a tinge de rosas nas
colinas eternas povoadas de Deuses. E, enquanto torcia o fuso, cantava um trinado e fino canto, como trémulo
fio de cristal vibrando da Terra ao Céu. Mercúrio pensou: “Linda ilha, e linda Ninfa!”
Dum lume claro de cedro e tuia, subia, muito direito, um fumo delgado que perfumava toda a Ilha. Em
roda, sentada em esteiras, sobre o chão de ágata, as Ninfas, servas da Deusa, dobavam as lãs, bordavam na
seda as flores ligeiras, teciam as puras teias em teares de prata. Todas coraram, com o seio a arfar, sentindo a
presença do Deus. E sem deter o fuso faiscante, Calipso reconhecera logo o Mensageiro - pois que todos os
Imortais sabem, uns dos outros, os nomes, os feitos e os rostos soberanos, mesmo quando habitam retiros
remotos que o Éter e o Mar separam.
Mercúrio parara, risonho, na sua nudez divina, exalando o perfume do Olimpo. Então a Deusa ergueu
para ele, com composta serenidade, o esplendor largo dos seus olhos verdes:
− Oh Mercúrio! por que desceste à minha Ilha humilde, tu, venerável e querido, que eu nunca vi pisar a
terra? Diz o que de mim esperas. Já o meu aberto coração me ordena que te contente, se o teu desejo couber
dentro do meu poder e do Fado... Mas entra, repousa, e que eu te sirva, como doce irmã, à mesa da
hospitalidade.
Tirou da cintura a roca, arredou os anéis soltos do cabelo radiante - e com as suas nacaradas mãos
colocou sobre a mesa, que as Ninfas acercaram do lume aromático, o prato transbordando de Ambrósia, e as
infusas de cristal onde cintilava o Néctar.
Mercúrio murmurou: − “Doce é a tua hospitalidade, ó Deusa!” Pendurou o Caduceu do fresco ramo
dum plátano, estendeu os dedos reluzentes para a travessa de ouro, risonhamente louvou a excelência daquele
Néctar da Ilha. E contentada a alma, encostando a cabeça ao tronco liso do plátano que se cobriu de claridade,
começou, com palavras perfeitas e aladas:
− Perguntaste por que descia um Deus à tua morada, oh Deusa! E certamente nenhum Imortal
percorreria sem motivo, desde o Olimpo até Ogígia, esta deserta imensidade do mar salgado em que se não
encontram cidades de homens, nem templos cercados de bosques, nem sequer um pequenino santuário de
onde suba o aroma do incenso, ou o cheiro das carnes votivas, ou o murmúrio gostoso das preces... Mas foi
nosso Pai Júpiter, o tempestuoso, que me mandou neste recado. Tu recolheste, e reténs pela força
incomensurável da tua doçura, o mais subtil e desgraçado de todos os Príncipes que combateram durante dez
anos a alta Tróia, e depois embarcaram nas naves fundas para voltar à terra da Pátria. Muitos desses
conseguiam reentrar nos seus ricos lares, carregados de fama, de despojos e de histórias excelentes para
contar. Ventos inimigos, porém, e um fado mais inexorável, arremessaram a esta tua ilha, enrolado nas sujas
espumas, o facundo e astuto Ulisses... Ora o destino deste herói não é ficar na ociosidade imortal do teu leito,
longe daqueles que o choram, e que carecem da sua força e manhas divinas. Por isso Júpiter, regulador da
Ordem, te ordena, oh Deusa, que soltes o magnânimo Ulisses dos teus braços claros, e o restituas, com os
presentes docemente devidos, à sua Ítaca amada, e à sua Penélope, que tece e desfaz a teia ardilosa, cercada
dos Pretendentes arrogantes, devoradores dos seus gordos bois, sorvedores dos seus frescos vinhos!
A divina Calipso mordeu levemente o beiço; e sobre a sua face luminosa desceu a sombra das densas
pestanas cor de jacinto. Depois, com um harmonioso suspiro, em que ondulou todo o seu peito rebrilhante:
− Ah Deuses grandes, Deuses ditosos! como sois àsperamente ciumentos das Deusas, que, sem se
esconderem pela espessura dos bosques ou nas pregas escuras dos montes, amam os homens eloquentes e
fortes!... Este, que me invejais, rolou às areias da minha Ilha, nu, pisado, faminto, preso a uma quilha partida,
perseguido por todas as iras, e todas as rajadas, e todos os raios dardejantes de que dispõe o Olimpo. Eu o
recolhi, o lavei, o nutri, o amei, o guardei, para que ficasse eternamente ao abrigo das tormentas, da dor e da
velhice. E agora Júpiter trovejador, ao cabo de oito anos em que a minha doce vida se enroscou em torno
desta afeição como a vide ao olmo, determina que eu me separe do companheiro que escolhera para a minha
imortalidade! Realmente sois cruéis, oh Deuses, que constantemente aumentais a raça turbulenta dos
Semideuses dormindo com as mulheres mortais! E como queres que eu mande Ulisses à sua pátria, se não
possuo naves, nem remadores, nem piloto sabedor que o guie através das Ilhas? Mas quem pode resistir a
Júpiter, que ajunta as nuvens? Seja! e que Olimpo ria, obedecido. Eu ensinarei o intrépido Ulisses a construir
uma jangada segura, com que de novo fenda o dorso verde do mar...
Imediatamente o Mensageiro Mercúrio se levantou do escabelo pregado com prego de ouro, retomou o
seu Caduceu e, bebendo uma derradeira taça do Néctar excelente da Ilha, louvou a obediência da Deusa:
− Bem farás, oh Calipso! Assim evitas a cólera do Pai trovejante. Quem lhe resistiria? A sua
Omnisciência dirige a sua Omnipotência. E ele sustenta como ceptro uma árvore que tem por flor a Ordem...
As suas decisões, clementes ou cruéis, resultam sempre em harmonia. Por isso o seu braço se torna terrífico
aos peitos rebeldes. Pela tua pronta submissão serás filha estimada, e gozarás uma imortalidade repassada de
sossego, sem intrigas e sem surpresas...
Já as asas impacientes das suas sandálias palpitavam, e o seu corpo, com sublime graça, se balançava
por sobre as relvas e flores que alcatifavam a entrada da gruta.
− De resto − acrescentou − a tua Ilha, oh Deusa, fica no caminho das naves ousadas que cortam as
ondas. Em breve talvez outro herói robusto, tendo ofendido os Imortais, aportará à tua doce praia, abraçado a
uma quilha... Acende um facho claro, de noite, nas rochas altas!
E, rindo, o Mensageiro Divino serenamente se elevou, riscando no Éter um sulco de elegante fulgor
que as Ninfas, esquecida a tarefa, seguiam, com os frescos lábios entreabertos e o seio levantado no desejo
daquele imortal formoso.
Então Calipso, pensativa, lançando sobre os seus cabelos anelados um véu da cor do açafrão,
caminhou para a orla do mar, através dos prados, numa pressa que lhe enrodilhava a túnica, à maneira duma
espuma leve, em torno das pernas redondas e róseas. Tão levemente pisou a areia, que o magnânimo Ulisses
não a sentiu deslizar, perdido na contemplação das águas lustrosas, com a negra barba entre as mãos,
aliviando em gemidos o peso do seu coração. A Deusa sorriu, com fugitiva e soberana amargura. Depois,
pousando no vasto ombro do Herói os seus dedos tão claros como os de Éos, mãe do dia:
− Não te lamentes mais, desgraçado, nem te consumas, olhando o Mar! Os Deuses, que me são
superiores pela inteligência e pela vontade, determinam que tu partas, afrontes a inconstância dos ventos e
calques de novo a terra da Pátria.
Bruscamente, como o condor fendendo sobre a presa, o divino Ulisses, com a face assombrada, saltou
da rocha musgosa:
− Oh Deusa, tu dizes...
Ela continuou sossegadamente, com os formosos braços pendidos, enrodilhados no véu cor de açafrão,
enquanto a vaga rolava, mais doce e cantante, no amoroso respeito da sua presença divina:
− Bem sabes que não tenho naves de alta proa, nem remadores de rijo peito, nem piloto amigo das
estrelas, que te conduzam... Mas certamente te confiarei o machado de bronze que foi de meu pai, para tu
abateres as árvores que eu te marcar e construíres uma jangada em que embarques... Depois eu a proverei de
odres de vinho, de comidas perfeitas, e a impelirei com um sopro amigo para o mar indomado...
O cauteloso Ulisses recuara lentamente, cravando na Deusa um duro olhar que a desconfiança
enegrecia. E erguendo a mão, que tremia toda, com a ansiedade do seu coração:
− Oh Deusa, tu abrigas um pensamento terrível, pois que assim me convidas a afrontar numa jangada
as ondas difíceis, onde mal se mantêm fundas naves! Não, Deusa perigosa, não! Eu combati na grande guerra
onde os Deuses também combateram, e conheço a malícia infinita que contém o coração dos Imortais! Se
resisti às sereias irresistíveis, e me safei com sublimes manobras de entre Sila e Caríbdis, e venci Polifemo
com um ardil que eternamente me tornará ilustre entre os homens, não foi decerto, oh Deus, para que, agora,
na Ilha de Ogígia, como passarinho de pouca penugem no seu primeiro vôo do ninho,caia em armadilha
ligeira arranjada com dizeres de mel! Não, Deusa, não! Só embarcarei na tua extraordinária jangada se tu
jurares, pelo juramento terrífico dos Deuses, que não preparas, com esses quietos olhos, a minha perda
irreparável!
Assim bradava, à beira das ondas, com o peito a arfar, Ulisses, o Herói prudente... Então a Deusa
clemente riu, com um cantado e refulgente riso. E caminhando para o Herói, correndo os dedos celestes pelos
seus espessos cabelos mais negros que o pez!
− Oh maravilhoso Ulisses - disse - tu és, bem na verdade, o mais refalsado e manhoso dos homens,
pois que nem concebes que exista espírito sem manha e sem falsidade! Meu pai ilustre não me gerou com um
coração de ferro! Apesar de imortal, compreendo as desventuras mortais. Só te aconselhei o que eu, Deusa,
empreenderia, se o Fado me obrigasse a sair de Ogígia através do mar incerto!...
O divino Ulisses retirou lenta e sombriamente a cabeça da rosada caricia dos dedos divinos:
− Mas jura... Oh Deusa, jura, para que ao meu peito desça, como onda de leite, a saborosa confiança!
Ela ergueu o claro braço ao azul onde os Deuses moram:
− Por Gaia e pelo Céu superior, e pelas águas subterrâneas do Estígio, que é a maior invocação que
podem lançar os imortais, juro, oh homem, Príncipe dos homens, que não preparo a tua perda, nem misérias
maiores...
O valente Ulisses respirou largamente. E arregaçando logo as mangas da túnica, esfregando as palmas
das mãos robustas:
− Onde está o machado de teu pai magnífico? Mostra as árvores, oh Deusa!... O dia baixa e o trabalho
é longo!
− Sossega, oh homem sôfrego de males humanos! Os Deuses superiores em sapiência já determinaram
o teu destino... Recolhe comigo à doce gruta, a reforçar a tua força... Quando Éos vermelha aparecer, amanhã,
eu te conduzirei à floresta.
III
ERA, com efeito, a hora em que homens mortais e Deuses imortais se acercam das mesas cobertas de
baixelas, onde os espera a abundância, o repouso, o esquecimento dos cuidados e as amoráveis conversas que
contentam a alma. Em breve Ulisses se sentou no escabelo de marfim, que ainda conservava o aroma do
corpo de Mercúrio, e diante dele as Ninfas, servas da Deusa, colocaram os bolos, as frutas, as tenras carnes
fumegando, os peixes rebrilhantes como tramas de prata. Pousada num Trono de ouro puro, a Deusa recebeu
da Intendenta venerável o prato de Ambrósia e a taça de Néctar. Ambos estenderam as mãos para as comidas
perfeitas da Terra e do Céu. E logo que deram a oferenda abundante à Fome e à Sede, a ilustre Calipso,
encostando a face aos dedos róseos, e considerando pensativamente o Herói, soltou estas palavras aladas:
− Oh Ulisses muito subtil, tu queres voltar à tua morada mortal e à terra da Pátria... Ah! se
conhecesses, como eu, quantos duros males tens de sofrer antes de avistar as rochas de Ítaca, ficarias entre os
meus braços, amimado, banhado, bem nutrido, revestido de linhos finos, sem nunca perder a querida força,
nem a agudeza do entendimento, nem o calor da facúndia, pois que eu te comunicaria a minha imortalidade!...
Mas desejas voltar à esposa mortal, que habita na ilha áspera onde as matas são tenebrosas. E todavia eu não
lhe sou inferior, nem pela beleza, nem pela inteligência, porque as mortais brilham ante as Imortais como
lâmpadas fumarentas diante de estrelas puras.
O facundo Ulisses acariciou a barba rude. Depois, erguendo o braço, como costumava na Assembleia
dos Reis, à sombra das altas popas, diante dos muros de Tróia, disse:
− Oh Deusa venerável, não te escandalizes! Perfeitamente sei que Penélope te está muito inferior em
formosura, sapiência e majestade. Tu serás eternamente bela e moça, enquanto os Deuses durarem: e ela, em
poucos anos, conhecerá a melancolia das rugas, dos cabelos brancos, das dores da decrepitude e dos passos
que tremem apoiados a um pau que treme. O seu espírito mortal erra através da escuridão e da dúvida; tu, sob
essa fronte luminosa, possuis as luminosas certezas. Mas, oh Deusa, justamente pelo que ela tem de
incompleto, de frágil, de grosseiro e de mortal, eu a amo, e apeteço a sua companhia congénere! Considera
como é penoso que, nesta mesa, cada dia, eu coma vorazmente o anho das pastagens e a fruta dos vergéis,
enquanto tu ao meu lado, pela inefável superioridade da tua natureza, levas aos lábios, com lentidão soberana,
a Ambrósia divina! Em oito anos, oh Deusa, nunca a tua face rebrilhou com uma alegria; nem dos teus verdes
olhos rolou uma lágrima; nem bateste o pé, com irada impaciência; nem, gemendo com uma dor, te estendeste
no leito macio... E assim trazes inutilizadas todas as virtudes do meu coração, pois que a tua divindade não
permite que eu te congratule, te console, te sossegue, ou mesmo te esfregue o corpo dorido com o suco das
ervas benéficas. Considera ainda que a tua inteligência de Deusa possui todo o saber, atinge sempre a
verdade: e, durante o longo tempo que contigo dormi, nunca gozei a felicidade de te emendar, de te
contradizer, e de sentir, ante a fraqueza do teu, a força do meu entendimento! Oh Deusa, tu és aquele ser
terrífico que tem sempre razão! Considera ainda que, como Deusa, conheces todo o passado e todo o futuro
dos homens: e eu não pude saborear a incomparável delícia de te contar à noite, bebendo o vinho fresco, as
minhas ilustres façanhas e as minhas viagens sublimes! Oh Deusa, tu és impecável: e quando eu escorregue
num tapete estendido, ou me estale uma correia da sandália, não te posso gritar, como os homens mortais
gritam às esposas mortais: − “Foi culpa tua, mulher!” − erguendo, em frente à lareira, um alarido cruel! Por
isso sofrerei, num espírito paciente, todos os males com que os Deuses me assaltem no sombrio mar, para
voltar a uma humana Penélope que eu mande, e console, e repreenda, e acuse, e contrarie, e ensine, e humilhe,
e deslumbre, e por isso ame dum amor que constantemente se alimenta destes modos ondeantes, como o lume
se nutre dos ventos contrários!
Assim o facundo Ulisses desabafava, ante a taça de ouro vazia: e serenamente a Deusa escutava, com
um sorriso taciturno, e as mãos imóveis sobre o regaço, enrodilhadas na ponta do véu.
No entanto, Febo Apolo descia para Ocidente; e já das ancas dos seus quatro cavalos suados subia e se
espalhava por sobre o Mar um vapor rúbido e dourado. Em breve os caminhos da Ilha se cobriram de
sombras. E sobre os velos preciosos do leito, ao fundo da gruta, Ulisses, sem desejo, e a Deusa, que o
desejava, gozaram o doce amor, e depois o doce sono.
Cedo, apenas Éos entreabria as portas do largo Ouranos, a divina Calipso, que revestira uma túnica
mais branca que a neve do Pindo, e pregara nos cabelos um véu transparente e azul como o Éter ligeiro, saiu
da gruta, trazendo ao magnânimo Ulisses, já sentado à porta, sob a ramada, diante duma taça de vinho claro, o
machado poderoso de seu pai ilustre, todo de bronze, com dois fios e um rijo cabo de oliveira cortado nas
faldas do Olimpo. Limpando ràpidamente a dura barba com as costas da mão, o Herói arrebatou o machado
venerável:
− Oh Deusa, há quantos anos não palpo uma arma ou uma ferramenta, eu, devastador de cidadelas e
construtor de naves!
A Deusa sorriu. E, iluminada a lisa face, em palavras aladas:
− Oh Ulisses, vencedor de homens, se tu ficasses nesta ilha, eu encomendaria para ti, a Vulcano e às
suas forjas do Etna, armas maravilhosas...
− Que valem armas sem combates, ou homens que as admirem? De resto, oh Deusa, já muito batalhei,
e a minha glória entre as gerações está soberbamente segura. Só aspiro ao macio repouso, vigiando os meus
gados, concebendo sábias leis para os meus povos... Sê benévola, oh Deusa, e mostra as árvores fortes que me
convém cortar!
Em silêncio ela caminhou por um atalho, florido de altas e radiosas açucenas, que conduzia à ponta da
Ilha mais cerrada de matas, do lado do Oriente: e atrás seguia o intrépido Ulisses, com o luzidio machado ao
ombro. As pombas deixavam os ramos dos cedros, ou as concavidades das rochas onde bebiam, para
esvoaçarem em torno da Deusa num tumulto amoroso. Um aroma mais delicado, quando ela passava, subia
das flores abertas, como de incensadores. As relvas que a orla da sua túnica roçava reverdejavam num viço
mais fresco. E Ulisses, indiferente aos prestígios da Deusa, impaciente com a serenidade divina do seu andar
harmonioso, meditava a jangada, almejava pelo bosque.
Denso e escuro o avistou, enfim, povoado de carvalhos, de velhíssimas tecas, de pinheiros que
ramalhavam no alto Éter. Da sua orla descia um areal a que nem concha, nem galho quebrado de coral, nem
pálida flor de cardo marinho desmanchava a doçura perfeita. E o Mar refulgia com um brilho safírico, na
quietação da manhã branca e corada. Caminhando dos carvalhos às tecas, a Deusa marcou ao atento Ulisses
os troncos secos, robustecidos por sóis inumeráveis, que flutuariam, com ligeireza mais segura, sobre as águas
traidoras. Depois, acariciando o ombro do Herói, como outra árvore robusta também votada às águas cruéis,
recolheu à sua gruta, onde tomou a roca de ouro, e todo o dia fiou, e todo o dia cantou...
Com alvoroçada e soberba alegria, Ulisses atirou o machado contra um vasto carvalho que gemeu. E
em breve toda a Ilha retumbava, no fragor da obra sobre-humana. As gaivotas, adormecidas no silêncio eterno
daquelas ribas, bateram o voo em largos bandos, espantadas e gritando. As fluidas divindades dos ribeiros
indolentes, estremecendo num fulgente arrepio, fugiam para entre os canaviais e as raízes dos amieiros. Nesse
curto dia o valente Ulisses abateu vinte árvores, robles, pinheiros, tecas e choupos − e todas decotou,
esquadrou e alinhou sobre a areia. O seu pescoço e arcado peito fumegavam de suor, quando recolheu
pesadamente à gruta, para saciar a rude fome e beber a cerveja gelada. E nunca ele parecera tão belo à Deusa
imortal, que, sobre o leito de peles preciosas, apenas os caminhos se cobriram de sombra, encontrou,
incansada e pronta, a força daqueles braços que tinham abatido vinte troncos.
Assim, durante três dias, trabalhou o Herói.
E, como arrebatada nessa actividade magnífica que abalava a Ilha, a Deusa ajudava Ulisses,
conduzindo da gruta para a praia, nas suas mãos delicadas, as cordas e os pregos de bronze. As Ninfas, por
seu mandado, abandonando as tarefas suaves, teciam uma tela forte, para a vela que empurrariam com amor
os ventos amáveis. E a Intendenta venerável já enchia os odres de vinhos robustos, e preparava com
generosidade os víveres numerosos para a travessia incerta. No entanto a ganjaga crescia, com os troncos bem
ligados, e um banco erguido ao meio, de onde se empinava o mastro, desbastado num pinheiro, mais redondo
e liso que uma vara de marfim. Cada tarde a Deusa, sentada numa rocha à sombra do bosque, contemplava o
calafate admirável martelando furiosamente, e cantando, com rija alegria, um canto de remador. E, ligeiras, na
ponta dos pés luzidios, por entre o arvoredo, as Ninfas, escapando à tarefa, acudiam a espreitar, com
desejosos olhos fulgurantes, aquela força solitária, que soberbamente, no areal solitário, ia erguendo uma
nave.
IV
ENFIM no quarto dia, de manhã, Ulisses findou de esquadrar o leme, que reforçou com grades de amieiro
para melhor aparar o embate das ondas. Depois ajuntou um lastro copioso, com a terra da Ilha imortal e as
suas pedras polidas. Sem descanso, numa ânsia risonha, amarrou à verga alta a vela cortada pelas Ninfas.
Sobre pesados rolos, manobrando a alavanca, rolou a jangada imensa até à espuma da vaga, num esforço
sublime, com músculos tão retesos e veias tão inchadas, que ele mesmo parecia feito de troncos e cordas.
Uma ponta da jangada arfou, levantada com cadência pela onda harmoniosa. E o Herói, erguendo os braços
lustrosos de suor, louvou os Deuses Imortais.
Então, como a obra findara e a tarde rebrilhava, propícia à partida, a generosa Calipso trouxe Ulisses,
através das violetas e das anémonas, à fresca gruta. Pelas suas divinas mãos o banhou numa concha de nácar,
e o perfumou com essências sobrenaturais, e o vestiu com uma túnica formosa de lã bordada, e lançou sobre
os seus ombros um manto impenetrável às neblinas do mar, e lhe estendeu sobre a mesa, para ele saciar a
fome rude, as comidas mais sãs e mais finas da Terra. O Herói aceitava os amorosos cuidados, com paciente
magnanimidade. A Deusa, de gestos serenos, sorria taciturnamente.
Depois ela tomou a mão cabeluda de Ulisses, palpando com gosto os calos que lhe deixara o machado;
e pela borda do Mar o conduziu à praia, onde a vaga mansamente lambia os troncos da jangada forte. Ambos
descansaram sobre uma rocha musgosa. Nunca a Ilha resplandecera com uma beleza tão serena, entre um mar
tão azul, sob um céu tão macio. Nem a água frescas do Pindo bebida em marcha abrasada, nem o vinho
dourado que produzem as colinas de Quios, eram mais doces de sorver do que aquele ar repassado de aromas,
composto pelos Deuses para o respirar duma Deusa. A frescura imorredoira das árvores entrava no coração,
quase pedia a carícia dos dedos. Todos os rumores, o dos regatos na relva, o das ondas no areal, o das aves
nas sombras frondosas, subiam, suave e finamente fundidos, como as harmonias sagradas de um Templo
distante. O esplendor e a graça das flores retinham os raios pasmados do Sol. Tantos eram os frutos nos
vergéis, e as espigas nas messes, que a Ilha parecia ceder, afundada no Mar, sob o peso da sua abundância.
Então a Deusa, ao lado do Herói, levemente suspirou, e murmurou num sorriso alado:
− Oh, magnânimo Ulisses, tu certamente partes! O desejo te leva de rever a mortal Penélope, e o teu
doce Telémaco, que deixaste no colo da ama quando a Europa correu contra a Ásia, e agora já sustenta na
mão uma lança temida. Sempre dum amor antigo, com raízes fundas, brotará mais tarde uma flor, mesmo
triste. Mas diz! Se em Ítaca não te esperasse a esposa tecendo e destecendo a teia, e o filho ansioso que alonga
os olhos incansados para o mar, deixarias tu, oh homem prudente, esta doçuara, esta paz, esta abundância e
beleza imortal?
O Herói, ao lado da Deusa, estendeu o braço poderoso, como na Assembleia dos Reis, diante dos
muros de Tróia, quando plantava nas almas a verdade persuasiva:
− Oh Deusa, não te escandalizes! Mas ainda que não existissem, para me levar, nem filho, nem esposa,
nem reino, eu afrontaria alegremente os mares e a ira dos Deuses! Porque, na verdade, oh Deusa muito ilustre,
o meu coração saciado já não suporta esta paz, esta doçura e esta beleza imortal. Considera, oh Deusa, que em
oito anos nunca vi a folhagem destas árvores amarelecer e cair. Nunca este céu rutilante se carregar de nuvens
escuras; nem tive o contentamento de estender, bem abrigado, as mãos ao doce lume, enquanto a borrasca
grossa batesse nos montes. Todas essas flores que brilham nas hastes airosas são as mesmas, oh Deusa, que
admirei e respirei, na primeira manhã que me mostrastes estes prados perpétuos: − e há lírios que odeio, com
um ódio amargo, pela impassilidade da sua alvura eterna! Estas gaivotas repetem tão incessantemente, tão
implacàvelmente, o seu voo harmonioso e branco, que eu escondo delas a face, como outros a escondem das
negras Harpias! E quantas vezes me refugio no fundo da gruta, para não escutar o murmúrio sempre lânguido
destes arroios sempre transparentes! Considera, oh Deusa, que na tua Ilha nunca encontrei um charco; um
tronco apodrecido; a carcaça dum bicho morto e coberto de moscas zumbidoras. Oh Deusa, há oito anos, oito
anos terríveis, estou privado de ver o trabalho, o esforço, a luta e o sofrimento... Oh Deusa, não te
escandalizes! Ando esfaimado por encontrar um corpo arquejando sob um fardo; dois bois fumegantes
puxando um arado; homens que se injuriem na passagem duma ponte; os braços suplicantes duma mãe que
chora; um coxo, sobre sua muleta, mendigando à porta das vilas... Deusa, há oito anos que não olho para uma
sepultura... Não posso mais com esta serenidade sublime! Toda a minha alma arde no desejo do que se
deforma, e se suja, e se espedaça, e se corrompe... Oh Deusa imortal, eu morro com saudades da morte!
Imóvel, com as mãos imóveis no regaço, enrodilhadas nas pontas do véu amarelo, a Deusa escutara,
com um sorriso serenamente divino, o furioso queixume do Herói cativo... No entanto já pela colina as
Ninfas, servas da Deusa, desciam, trazendo à cabeça, e amparando-os com o braço redondo, os jarros de
vinho, os sacos de couro, que a Intendenta venerável mandava para abastecer a jangada. Silenciosamente, o
Herói lançou uma tábua desde a areia até ao bordo de altos toros. E enquanto sobre ela as Ninfas passavam,
ligeiras, com as manilhas de ouro tilintando nos pés luzidios, Ulisses, atento, contando os sacos e os odres,
gozava no seu nobre coração a abundância generosa. Mas, amarrados com cordas às cavilhas aqueles fardos
excelentes, todas as Ninfas, lentamente, se sentaram sobre o areal em torno da Deusa, para contemplarem a
despedida, o embarque, as manobras do Herói sobre o dorso das águas... Então uma cólera lampejou nos
largos olhos de Ulisses. E, diante de Calipso, cruzando furiosamente os valentes braços:
− Oh Deusa, pensas tu na verdade que nada falte para que eu largue a vela e navegue? Onde estão os
ricos presentes que me deves? Oito anos, oito duros anos, fui o hóspede magnífico da tua Ilha, da tua gruta, do
teu leito... Sempre os Deuses imortais determinaram que os hóspedes, no momento amigo da partida, se
ofertem consideráveis presentes! Onde estão elas, oh Deusa, essas riquezas abundantes que me deves por
costume da Terra e lei do Céu?
A Deusa sorriu, com sublime paciência. E com palavras aladas, que fugiam na aragem:
− Oh Ulisses, tu és claramente o mais interesseiro dos homens. E também o mais desconfiado, pois que
supões que uma Deusa negaria os presentes devidos àquele que amou... Sossega, oh subtil Herói... Os ricos
presentes não tardam, largos e rebrilhantes.
E, certamente, pela colina suave, outras Ninfas desciam, ligeiras, com os véus a ondular, trazendo nos
braços alfaias lustrosas, que ao sol rutilavam! O magnânimo Ulisses estendeu as mãos, os olhos devoradores...
E, enquanto elas passavam sobre a tabua rangente, o Herói astuto contava, avaliava no seu nobre espírito os
escabelos de marfim, os rolos de telas bordadas, os cântaros de bronze lavrado, os escudos cravejados de
pedras...
Tão rico e belo era o vaso de ouro que a derradeira Ninfa sustentava no ombro, que Ulisses deteve a
Ninfa, arrebatou o vaso, o sopesou, o mirou, e gritou, com soberbo riso estridente:
− Na verdade, este ouro é bom!
Depois de arrumadas e ligadas sob o largo banco as alfaias preciosas, o impaciente Herói, arrebatando
o machado, cortou a corda que prendia a jangada ao tronco dum roble, e saltou para o alto bordo que a
espuma envolvia. Mas então recordou que nem beijara a generosa e ilustre Calipso! Rápido, arremessando o
manto, pulou através da espuma, correu pela areia e pousou um beijo sereno na fronte aureolada da Deusa.
Ela segurou de leve o seu ombro robusto:
− Quantos males te esperam, oh desgraçado! Antes ficasses, para toda a imortalidade, na minha Ilha
perfeita, entre os meus braços perfeitos...
Ulisses recuou, com um brado magnífico:
− Oh Deusa, o irreparável e supremo mal está na tua perfeição!
E, através da vaga, fugiu, trepou sôfregamente à jangada, soltou a vela, fendeu o mar, partiu para os
trabalhos, para as tormentas, para as misérias - para a delícia das coisas imperfeitas!
O Suave milagre
NESSE tempo Jesus ainda se não afastara da Galileia e das doces, luminosas margens do Lago de Tiberíades:
− mas a nova dos seus milagres penetrara já até Enganin, cidade rica, de muralhas fortes, entre olivais e
vinhedos, no país de Issacar.
Uma tarde um homem de olhos ardentes e deslumbrados passou no fresco vale, e anunciou que um
novo Profeta, um Rabi formoso, percorria os campos e as aldeias da Galileia, predizendo a chegada do reino
de Deus, curando todos os males humanos. E enquanto descansava, sentado à beira da Fonte dos Vergéis,
contou ainda que esse Rabi, na estrada de Magdala, sarara da lepra o servo dum Decurião Romano, só com
estender sobre ele a sombra das suas mãos; e que noutra manhã, atravessando numa barca a terra dos
Gerasenos, onde começava a colheita do bálsamo, ressuscitara a filha de Jairo, homem considerável e douto
que comentava os Livros na Sinagoga. E como em redor, assombrados, seareiros, pastores e as mulheres
trigueiras com a bilha no ombro lhe perguntassem se esse era, em verdade, o Messias de Judeia, e se diante
dele refulgia a espada de fogo, e se o ladeavam, caminhando como as sombras de duas torres, as sombras de
Gog e de Magog - o homem, sem mesmo beber daquela água tão fria de que bebera Josué, apanhou o cajado,
sacudiu os cabelos e meteu pensativamente por sob o Aqueduto, logo sumido na espessura das amendoeiras
em flor. Mas uma esperança, deliciosa como o orvalho nos meses em que canta a cigarra, refrescou as almas
simples: logo, por toda a campina que verdeja até Áscalon, o arado pareceu mais brando de enterrar, mais leve
de mover a pedra do lagar: as crianças, colhendo ramos de anémonas, espreitavam pelos caminhos se além da
esquina do muro, ou de sob o sicómoro, não surgiria uma claridade: e nos bancos de pedra, às portas da
cidade, os velhos, correndo os dedos pelos fios das barbas, já não desenrolavam, com tão sapiente certeza, os
ditames antigos.
Ora então vivia em Enganim um velho, por nome Obed, duma família pontifical de Samaria, que
sacrificara nas aras do Monte Ebal, senhor de fartos rebanhos e de fartas vinhas − e com o coração tão cheio
de orgulho como o seu celeiro de trigo. Mas um vento árido e abrasado, esse vento de desolação que ao
mando do Senhor sopra das torvas terras de Assur, matara as reses mais gordas das suas manadas, e pelas
encostas onde as suas vinhas se enroscavam ao olmo, e se estiravam na latada airosa, só deixara, em torno dos
olmos e pilares despidos, sarmentos, cepas mirradas e a parra roída de crespa ferrugem. E Obed, agachado à
soleira da sua porta, com a ponta do manto sobre a face, palpava a poeira, lamentava a velhice, ruminava
queixumes contra Deus cruel.
Apenas ouvira falar desse novo Rabi da Galileia, que alimentava as multidões, amedrontava os
demónios, emendava todas as desventuras − Obed, homem lido, que viajara na Fenícia, logo pensou que Jesus
seria um desses feiticeiros, tão costumados na Palestina, como Apolónio, ou Rabi Ben-Dossa, ou Simão, o
Subtil. Esses, mesmo nas noites tenebrosas, conversam com as estrelas, para eles sempre claras e fáceis nos
seus segredos: com uma vara afugentam de sobre as searas os moscardos gerados nos lodos do Egipto: e
agarram entre os dedos as sombras das árvores, que conduzem, como toldos benéficos, para cima das eiras, à
hora da sesta. Jesus da Galileia, mais novo, com magias mais viçosas decerto, se ele largamente o pagasse,
sustaria a mortandade dos seus gados, reverdeceria os seus vinhedos. Então Obed ordenou aos seus servos que
partissem, procurassem por toda a Galileia o Rabi novo, e com promessa de dinheiros ou alfaias o trouxessem
a Enganim, no país de Issacar.
Os servos apertaram os cinturões de couro - e largaram pela estrada das Caravanas, que, costeando o
Lago, se estende até Damasco. Uma tarde, avistaram sobre o poente, vermelho como uma romã muito
madura, as neves finas do monte Hermon. Depois, na frescura duma manhã macia, o Lago de Tiberíade
resplandeceu diante deles, transparente, coberto de silêncio, mais azul que o céu, todo orlado de prados
floridos, de densos vergéis, de rochas de pórfiro e de alvos terraços por entre os palmares, sob o voo das rolas.
Um pescador que desamarrava preguiçosamente a sua barca duma ponta de relva, assombreada de aloendros,
escutou, sorrindo, os servos. O Rabi de Nazaré? Oh! desde o mês de Ijar, o Rabi descera, com os seus
discípulos, para os lados para onde o Jordão leva as águas.
Os servos, correndo, seguiram pelas margens do rio, até adiante do vau, onde ele se estira num largo
remanso, e descansa, e um instante dorme, imóvel e verde, à sombra dos tamarindos. Um homem da tribo dos
Essénios, todo vestido de linho branco, apanhava lentamente ervas salutares, pela beira da água, com um
cordeirinho branco ao colo. Os servos humildemente saudaram-no, porque o povo ama aqueles homens de
coração tão limpo, e claro, e cândido como as suas vestes cada manhã lavadas em tanques purificados. E sabia
ele da passagem do novo Rabi da Galileia que, como os Essénios, ensinava a a doçura, e curava as gentes e os
gados? O Essénio murmurou que o Rabi atravessara o Oásis de Engaddi, depois se adiantara para além...
− Mas onde, “além”? − Movendo um ramo de flores roxas que colhera, o Essénio mostrou as terras de Além-
Jordão, a planície de Moab. Os servos vadearam o rio - e debalde procuraram Jesus, arquejando pelos rudes
trilhos, até às fragas onde se ergue a cidadela sinistra de Makaur... No Poço de Yakob repousava uma larga
caravana, que conduzia para o Egipto mirra, especiarias e bálsamos de Gilead: e os cameleiros, tirando a água
com os baldes de couro, contaram aos servos de Obed que em Gadara, pela Lua-nova, um Rabi maravilhoso,
maior que David ou Isaías, arrancara sete demónios do peito duma tecedeira, e que, à sua voz, um homem
degolado pelo salteador Barrabás se erguera da sua sepultura e recolhera ao seu horto. Os servos,
esperançados, subiram logo açodadamente pelo caminho dos Peregrinos até Gadara, cidade de altas torres, e
ainda mais longe até às Nascentes de Amalha... Mas Jesus, nessa madrugada, seguido por um povo que
cantava e sacudias ramos de mimosas, embarcara no Lago num batel de pesca, e à vela navegara para
Magdala. E os servos de Obed, descoroçoados, de novo passaram o Jordão na Ponte das Filhas de Jacob. Um
dia, já com as sandálias rotas dos longos caminhos, pisando já as terras da Judeia Romana, cruzaram um
Fariseu sombrio, que recolhia a Efraim, montado na sua mula. Com devota reverência detiveram o homem da
Lei. Encontrara ele, por acaso, esse Profeta novo da Galileia que, como um Deus passeando na terra, semeava
milagres? A adunca face do Fariseu escureceu enrugada - e a sua cólera retumbou como um tambor
orgulhoso:
−Oh escravos pagãos! Oh blasfemos! Onde ouvistes que existissem profetas ou milagres fora de
Jerusalém! Só Jeová tem força no seu Templo. De Galileia surdem os néscios e os impostores...
E como os servos recuaram ante o seu punho erguido, todo enrodilhado de dísticos sagrados - o furioso
Doutor saltou da mula e, com as pedras da estrada, apedrejou os servos de Obed, uivando: Racca! Racca! e
todos os anátemas rituais. Os servos fugiram para Enganim. E grande foi a desconsolação de Obed, porque os
seus gados morriam, as suas vinhas secavam, − e todavia, radiantemente,, como uma alvorada por detrás de
serras, crescia, consoladora e cheia de promessas divinas, a fama de Jesus da Galileia.
Por esse tempo, um Centurião Romano, Públio Sétimo, comandava o forte que domina o vale de
Cesareia, até à cidade e ao mar. Públio, homem áspero, veterano da campanha de Tibério contra os Partas,
enriquecera durante a revolta de Samaria com presas e saques, possuía minas na Ática, e gozava, como favor
supremo dos Deuses, a amizade de Flaco, Legado Imperial da Síria. Mas uma dor roía a sua prosperidade
muito poderosa, como um verme rói um fruto muito suculento. Sua filha única, para ele mais amada que vida
e bens, definhava com um mal subtil e lento, estranho mesmo ao saber dos esculápios e mágicos que ele
mandara consultar a Sídon e a Tiro. Branca e triste como a Lua num cemitério, sem um queixume, sorrindo
pàlidamente a seu pai, definhava, sentada na alta esplanada do forte, sob um velário, alongando saudosamente
os negros olhos tristes pelo azul do mar de Tiro, por onde ela navegara de Itália, numa opulenta galera. Ao seu
lado, por vezes, um legionário, entre as ameias, apontava vagarosamente ao alto a flecha, e varava uma
grande águia, voando de asa serena, no céu rutilante. A filha de Sétimo seguia um momento a ave, torneando
até bater morta sobre as rochas: − depois, com um suspiro, mais triste e mais pálida, recomeçava a olhar para
o mar.
Então Sétimo, ouvindo contar, a mercadores de Chorazim, deste Rabi admirável, tão potente sobre os
Espíritos que sarava os males tenebrosos da alma, destacou três decúrias de soldados para que o procurassem
pela Galileia, e por todas as cidades da Decápola, até à costa e até Áscalon. Os soldados enfiaram os escudos
nos sacos de lona, espetaram nos elmos ramos de oliveira - e as suas sandálias ferradas apressadamente se
afastaram, ressoando sobre as lajes de basalto da estrada romana, que desde Cesareia até ao Lago corta toda a
Tetráquia de Herodes. As suas armas, de noite, brilhavam no topo das colinas, por entre a chama ondeante dos
archotes erguidos. De dia invadiam os casais, rebuscavam a espessura dos pomares, esfuracavam com a ponta
das lanças a palha das medas: e as mulheres, assustadas, para os amansar, logo acudiam com bolos de mel,
figos novos e malgas cheias de vinho, que eles bebiam dum trago, sentados à sombra dos sicómoros. Assim
correram a Baixa Galileia - e, do Rabi, só encontraram o sulco luminoso nos corações. Enfastiados com as
inúteis marchas, desconfiando que os Judeus sonegassem o seu feiticeiro para que Romanos não
aproveitassem do superior feitiço, derramavam com tumulto a sua cólera, através da piedosa terra submissa. À
entrada das pontes detinham os peregrinos, gritando o nome do Rabi, rasgando os véus às virgens: e, à hora
em que os cântaros se enchem nas cisternas, invadiam as ruas estreitas dos burgos, penetravam nas Sinagogas
e batiam sacrìlegamente com os punhos das espadas nas Thebahs, os Santos Armários de cedro que
continham os Livros Sagrados. Nas cercanias de Hebron arrastaram os Solitários pelas barbas para fora das
grutas para lhes arrancar o nome do deserto ou do palmar em que se ocultava o Rabi: − e dois mercadores
Fenícios que vinham de Jope com uma carga de malóbatro, e a quem nunca chegara o nome de Jesus,
pagaram por esse delito cem dramas a cada Decurião. Já a gente dos campos, mesmo os bravios pastores de
Idumeia, que levam as reses brancas para o Templo, fugiam espavoridos para as serranias, apenas luziam,
nalguma volta do caminho, as armas do bando violento. E da beira dos eirados, as velhas sacudiam como
taleigos a ponta dos cabelos desgrenhados, e arrojavam sobre eles as Más Sortes, invocando a vingança de
Elias. Assim tumultuosamente erraram até Áscalon: não encontraram Jesus: e retrocederam ao longo da costa,
enterrando as sandálias nas areias ardentes.
Uma madrugada, perto de Cesareia, marchando num vale, avistaram sobre um outeiro um verde-negro
bosque de loureiros, onde alvejava, recolhidamente, o fino e claro pórtico dum templo. Um velho, de
compridas barbas brancas, coroado de folhas de louro, vestido com uma túnica cor de açafrão, segurando uma
curta lira de três cordas, esperava gravemente, sobre os degraus de mármore, a aparição do Sol. Debaixo,
agitando um ramo de oliveira, os soldados bradaram pelo Sacerdote. Conhecia ele um novo Profeta que
surgira na Galileia, e tão destro em milagres que ressuscitava os mortos e mudava a água em vinho?
Serenamente, alargando os braços, o sereno velho exclamou por sobre a rociada verdura do vale:
− Oh romanos! pois acreditais que em Galileia ou Judeia apareçam profetas consumando milagres?
Como pode um bárbaro alterar a Ordem instituída por Zeus?... Mágicos e feiticeiros são vendilhões, que
murmuram palavras ocas, para arrebatar a espórtula dos simples... Sem a permissão dos Imortais nem um
galho seco pode tombar da árvore, nem seca folha pode ser sacudida na árvore. Não há profetas, não há
milagres... Só Apolo Délfico conhece o segredo das coisas!
Então, devagar, com a cabeça derrubada, como numa tarde de derrota, os soldados recolheram à
fortaleza de Cesareia. E grande foi o desespero de Sétimo, porque sua filha morria, sem um queixume,
olhando o mar de Tiro - e todavia a fama de Jesus, curador dos lânguidos males, crescia, sempre mais
consoladora e fresca, como a aragem da tarde que sopra do Hermon e, através dos hortos, reanima e levanta as
açucenas pendidas.
Ora entre Enganim e Cesareia, num casebre desgarrado, sumido na prega dum cerro, vivia a esse
tempo uma viúva, mais desgraçada mulher que todas as mulheres de Israel. O seu filhinho único, todo
aleijado, passara do magro peito a que ela o criara para os farrapos da enxerga apodrecida, onde jazera, sete
anos passados, mirrando e gemendo. Também a ela a doença a engelhara dentro dos trapos nunca mudados,
mais escura e torcida que uma cepa arrancada. E, sobre ambos, espessamente a miséria cresceu como o bolor
sobre cacos perdidos num ermo. Até na lâmpada de barro vermelho, secara há muito o azeite. Dentro da arca
pintada não restava grão ou côdea. No Estio, sem pasto, a cabra morrera. Depois, no quinteiro, secara a
figueira. Tão longe do povoado, nunca esmola de pão ou mel entrava o portal. E só ervas apanhadas nas
fendas das rochas, cozidas sem sal, nutriam aquelas criaturas de Deus na Terra Escolhida, onde até às aves
maléficas sobrava o sustento!
Um dia um mendigo entrou no casebre, repartiu o seu farnel com a mãe amargurada, e um momento
sentado na pedra da lareira, coçando as feridas das pernas, contou dessa grande esperança dos tristes, esse
Rabi que aparecera na Galileia, e de um pão no mesmo cesto fazia sete, e amava todas as criancinhas, e
enxugava todos os prantos, e prometia aos pobres um grande e luminoso Reino, de abundancia maior que a
Corte de Salomão. A mulher escutava, com olhos famintos. E esse doce Rabi, esperança dos tristes, onde se
encontrava? O mendigo suspirou. Ah, esse doce Rabi! quantos o desejavam, que se desperançavam! A sua
fama andava por sobre toda a Judeia, como o sol que até por qualquer velho muro se estende e se goza; mas
para enxergar a claridade do seu rosto, só aqueles ditosos que o seu desejo escolhia. Obed, tão rico, mandara
os seus servos por toda a Galileia para que procurassem Jesus, o chamassem com promessas a Enganim;
Sétimo, tão soberano, destacara os seus soldados até à costa do mar, para que buscassem Jesus, o
conduzissem, por seu mando, a Cesareia. Errando, esmolando por tantas estradas, ele topara os servos de
Obed, depois os legionários de Sétimo. E todos voltavam, como derrotados, com as sandálias rotas, sem ter
descoberto em que mata ou cidade, em que toca ou palácio, se escondia Jesus.
A tarde caía. O mendigo apanhou o seu bordão, desceu pelo duro trilho, entre a urze e a rocha. A mãe
retomou o seu canto, mais vergada, mais abandonada. E então o filhinho, num murmúrio mais débil que o
roças de uma asa, pediu à mãe que lhe trouxesse esse Rabi, que amava as criancinhas ainda as mais pobres,
sarava os males ainda os mais antigos. A mãe apertou a cabeça esguedelhada:
− Oh filho! e como queres que te deixe, e me meta aos caminhos, à procura do Rabi da Galileia? Obed
é rico, e tem servos, e debalde buscaram Jesus, por areais e colinas, desde Chorazim até ao país de Moab.
Sétimo é forte, e tem soldados, e debalde correram por Jesus, desde o Hebron até ao mar! Como queres que te
deixe? Jesus anda por muito longe e a nossa dor mora conosco, dentro destas paredes, e dentro delas nos
prende. E mesmo que o encontrasse, como convenceria eu o Rabi tão desejado, por quem ricos e fortes
suspiram, a que descesse através das cidades até este ermo, para sarar um entrevadinho tão pobre, sobre
enxerga tão rota?
A criança, com duas longas lagrimas na face magrinha, murmurou:
− Oh mãe! Jesus ama todos os pequeninos. E eu ainda tão pequeno, e com um mal tão pesado, e que
tanto queria sarar!
E a mãe, em soluços:
− Oh meu filho, como te posso deixar? Longas são as estradas da Galileia, e curta a piedade dos
homens. Tão rota, tão trôpega, tão triste, até os cães me ladrariam da porta dos casais. Ninguém atenderia o
meu recado, e me apontaria a morada do doce Rabi. Oh filho! talvez Jesus morresse... Nem mesmo os ricos e
os fortes o encontram. O Céu o trouxe, o Céu o levou. E com ele para sempre morreu a esperança dos tristes.
De entre os negros trapos, erguendo as suas pobres mãozinhas que tremiam, a criança murmurou:
− Mãe, eu queria ver Jesus...
E logo, abrindo devagar a porta e sorrindo, Jesus disse à criança:
− Aqui estou.
FIM