Direito de Família
Direito de Família
Direito de Família
DOI: 10.21902/
Organização Comitê Científico
Double Blind Review pelo SEER/OJS
Recebido em: 26/06/2015
Revista de Direito de Família e Sucessão Aprovado em: 08/09/2015
RESUMO
O presente artigo aborda a questão da reprodução humana assistida homóloga post mortem e
seus reflexos no direito sucessório. O estudo justifica-se diante dos constantes avanços
tecnológicos no campo da ciência médica reprodutiva. A evolução da ciência acarreta várias
nuances ao ordenamento jurídico e, ainda que lenta, é mais rápida que o trabalho legislativo. Na
cultura jurídica brasileira, não se tem o costume da tratar da morte. A confecção de testamento
fica a margem, sendo comumente utilizada apenas em caso de grandes somas de bens
patrimoniais. Porém, principalmente diante do avanço da ciência reprodutiva, dispor sobre
filiação, seja a nascida, seja a eventual, em testamento legalmente confeccionado, diminuiria
sobremaneira as disputas sucessórias. Tem-se, portanto, como objetivo geral desse estudo,
analisar o fenômeno da reprodução humana assistida post mortem com base na Constituição
Federal e no Código Civil Brasileiro. Como objetivo específico, o artigo busca sopesar a
sucessão de prole concebida post mortem tanto em relação à sucessão testamentária como em
relação à sucessão legítima, baseando as ponderações no princípio da segurança jurídica, que
deve nortear o sistema jurídico como um todo. Trata-se de uma pesquisa teórica e bibliográfica,
com método de abordagem dedutivo, realizada através da análise da legislação constitucional e
infraconstitucional, bem como de obras doutrinárias referentes ao tema.
ABSTRACT
1
Mestra em Direito pela Instituição Toledo de Ensino de Bauru - ITE, Bauru, SP (Brasil). Coordenadora do Núcleo
ESA da OAB/SP e advogada e Analista do Seguro Social, na Agência da Previdência Social de Ourinhos, São
Paulo., SP. (Brasil). E-mail.: krolschneider@hotmail.com
2
Mestranda em Direito Constitucional pelo Centro de Pós-Graduação da ITE, Bauru – SP; (Brasil). Especialista em
Direito Empresarial pela UEL; Advogada.E-mail.: ecsartori@uol.com.br
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hecho disminuirá en gran medida las disputas de sucesión. Se tiene, así, como objetivo general
del estudio, analizar el fenómeno de la reproducción humana asistida post mortem con base
en la Constitución Federal e en lo Código Civil Brasileño. Como objetivo específico, el
artículo busca sopesar la sucesión de prole concebida post mortem tanto en relación a la
sucesión testamentaria como en relación a la sucesión legítima, con ponderaciones
basadas en el principio de seguridad jurídica, que debe guiar el sistema jurídico en su
conjunto. Se trata de una pesquisa teórica y bibliográfica, con método de abordaje
deductivo, realizada a través de analice de la legislación constitucional e infra
constitucional, así como de obras doctrinarias sobre el tema.
INTRODUÇÃO
Embora a morte seja a única certeza que se tem na vida, dessa nos esquivamos de
tratar até que a única opção seja encará-la de frente. Seja pela cultura, por medo, ou mesmo
por desconhecimento, as consequências, inclusive jurídicas, da morte geralmente ficam ao bel
prazer do tempo e das regras impostas pelo ordenamento jurídico, não havendo, muitas vezes,
a preocupação com a situação familiar e patrimonial post mortem.
A morte, como fato jurídico stricto sensu, põe termo à pessoa física, gerando efeitos
jurídicos a seus sucessores, conforme preceitua os artigos 6º e 1.784 do Código Civil vigente,
porém, nem sempre foi assim.
No início dos tempos, não havia razão de ser do direito sucessório, pois aos pais
cabia apenas obrigação de alimentar seus filhos, mas não de fazê-los seus herdeiros. No
entanto, após a segunda metade do século XX e a consagração da propriedade privada, tudo
muda de figura e o direito sucessório, como corolário no patrimonialismo individual, ganha
espaço nos ordenamentos jurídicos.
Na Idade Média, surge o princípio da saisine (droit de saisine), segundo o qual a
consequência patrimonial da morte é a transferência imediata do acervo do falecido a seus
herdeiros. Os bens do de cujus em nenhum momento ficam a mercê da sorte, de imediato há a
modificação da titularidade, não havendo que se falar em coisa abandonada (res derelicta) ou
em coisas de ninguém (res nullius).
A Constituição Federal vigente (BRASIL, 1988) consagra a propriedade privada em
seu artigo 5º, inciso XXII, e como consequência protege a herança no mesmo artigo 5º, inciso
XXX, baseada no sistema da divisão necessária, no qual se admite a disponibilidade relativa
dos bens quando houver herdeiros necessários. No mesmo sentido, estabelece o artigo 1.846
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do Código Civil de 2002 que: “pertence aos herdeiros necessários, de pleno direito, a metade
dos bens da herança, constituindo a legítima” (BRASIL, 2002).
Contudo, o estudo da disciplina legal sucessória faz surgir várias indagações frente à
modernidade, abrolhando a obrigação de analisar o assunto de forma alinhada como as novas
formações familiares e as técnicas de concepção artificial assistida de futuros herdeiros.
Inúmeros avanços nos campos da medicina e da biotecnologia, assim, fizeram surgir
a necessidade de se repensar a disciplina jurídica relativa às sucessões. É notável a dificuldade
de o Direito legislado acompanhar as constantes mudanças das relações sociais, tornando
evidente a necessidade de estudos que se debrucem sobre essas novas questões referentes aos
avanços tecnológicos e a legislação civil.
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Com o evento morte está aberta a sucessão hereditária, nos termos do artigo 1.784,
do Código Civil, sendo os herdeiros chamados a suceder. Segundo Polleto (2013, p. 103), dá-
se a “transferência automática dos ativos e passivos que formam a massa entre a pessoa morta
e aqueles sobreviventes, qualificados por lei ou mediante ato voluntário, como sucessores e,
como tais, aptos a recebê-los”, é a concretização do droit de saisine.
Segundo o princípio da saisine, o próprio falecido transmite ao sucessor a
propriedade e a posse da herança.
Embora não se confundam a morte com a transmissão da herança, sendo aquela
pressuposto e causa desta, a lei, por uma ficção, torna-as coincidentes em termos
cronológicos, presumindo que o próprio de cujus investiu seus herdeiros no domínio
e na posse indireta de seu patrimônio, porque este não pode restar acéfalo.
Para que a transmissão tenha lugar é necessário, porém: a) que o herdeiro exista ao
tempo da delação; e b) que a esse tempo não seja incapaz de herdar (GONÇALVES,
2014b, p. 34).
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Embrião é o ser oriundo da junção de gametas humanos, sendo que há basicamente dois
métodos de reprodução artificial: a fertilização in vitro, na qual o óvulo e o espermatozoide
são unidos numa proveta, ocorrendo a fecundação fora do corpo da mulher, e a inseminação
artificial, consistente na introdução de gameta masculino, por meio artificial, no corpo da
mulher, esperando-se que a própria natureza faça a fecundação. O embrião é excedentário
quando é fecundado fora do corpo (in vitro) e não é introduzido prontamente na mulher,
sendo armazenado por técnicas especiais (SILVA, 2012, p. 1.767-1.768).
Alguns doutrinadores, acertadamente, preconizam que os conceitos de embrião e de
nascituro não se confundem (TARTUCE, SIMÃO, 2013, p. 32), isso porque o nascituro já se
encontra nidificado no ventre materno. Por outra via, as técnicas de reprodução assistida
podem gerar embriões, que, antes da implantação no útero materno, não são considerados
nascituros. Entretanto, a questão não é tão simples.
O problema não mais se refere aos nascituros que se encontravam implantados no
útero materno, senão aos embriões, congelados em laboratório. Assiste-lhes a
condição de nascituros? Ou, ao contrário, são considerados prole eventual, já que
não se sabe se serão efetivamente alojados em útero apto a gestá-los? A resposta que
se dê gerará diferentes soluções no que toca ao destino da pessoa que morta. Se
forem considerados nascituros, terão adquirido a propriedade da quota-parte que
lhes toque, o que pode causar inconvenientes gravíssimos se alguns forem embriões
congelados. Se, por outro lado, forem considerados prole eventual, afastados da
sucessão legítima, poderão restar excluídos da sucessão do pai ou da mãe que não
conheceram, mas a quem devem a paternidade biológica (CAHALI; HIRONAKA,
2003, p. 356).
Diante dessa situação de dúvida, há quem entenda que o nascituro, e apenas ele,
sucede legitimamente e não os embriões:
Considera-se nascituro (“o que está por nascer”) o fruto da concepção (óvulo
fertilizado) aninhado no ventre materno. Não basta a concepção externa, obtida em
laboratório (fecundação in vitro), mesmo porque passível de conservação por tempo
indeterminado (banco de embriões). Exige-se, ao invés, que ocorra a implantação no
útero materno (in anima nobile), onde ocorre a nidação, possibilitando seu regular
desenvolvimento até o nascimento com vida. (OLIVEIRA; AMORIM, 2013, p. 32).
Nesse sentido, preconizam Alves e Delgado (2005, p. 918) que o Código Civil:
[...] o se referir a pessoas ‘já concebidas’, está fazendo alusão ao nascituro, cujo
conceito pressupõe gravidez, excluindo, portanto, dentre os legitimados a suceder, o
embrião congelado in vitro, bem como os filhos havidos por inseminação artificial
ocorrida após a abertura da sucessão.
Ocorre que, de acordo com o artigo 1.597 do Código Civil, presumem-se concebidos
na constância do casamento os filhos havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que
falecido o marido. Quanto ao caso de inseminação artificial heteróloga, apenas com
autorização marital.
Por conta desse dispositivo, há doutrina que entende no sentido contrário, levando-se
em conta que se presumem concebidas na constância do casamento as pessoas nascidas, a
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mortem desde que haja autorização prévia específica do(a) falecido(a) para o uso do material
biológico criopreservado, de acordo com a legislação vigente”.
Deve ser analisada, então, a possibilidade desses descendentes concebidos
artificialmente terem direito a sucessão de seu pai pré-morto, fazendo-se a ponderação
necessária entre o direito fundamental à herança e a segurança jurídica. Andrighi (2011, p.
183) estabelece o parâmetro interpretativo dessa discussão preconizando que:
A hermenêutica jurídica tem, na sua essência, a missão de aclarar aquilo que está
obscuro ou “mal dito” na lei, com o fim único de favorecer o ser humano, jamais de
prejudicá-lo. Dessa forma, a defesa deste ou daquele posicionamento doutrinário ou
jurisprudencial deverá, sim ponderar a respeito das teses nesses contidas, contudo,
jamais em detrimento dos seres humanos cujas vidas estão dependendo da intrepidez
do espírito que doutrina ou julga.
A reprodução artificial citada pelo artigo 1.597 do Código Civil trata-se de uma
ficção jurídica, como sendo aquela situação que a lei estabelece como verdade, embora
sabendo que aquilo não é verdade, nunca será verdade, mas precisa ser (NOGUEIRA, 2002-
2003, p. 219). Isto porque, apesar de não haver qualquer possibilidade daquela criança ser
concebida de forma natural após o óbito de seu genitor, a lei afirma como nascida na
constância do casamento, mesmo sabendo que não o é.
A grande discussão em torno do direito sucessório desses filhos concebidos
artificialmente post mortem está na sucessão legítima, eis que a sucessão testamentária tem
autorização legislativa expressa no artigo 1.799 e 1.800 do Código Civil, no qual o testador
pode contemplar com parte de seu patrimônio os filhos concebidos por sua esposa havidos por
fecundação artificial homóloga mesmo após a sua morte.
A inseminação artificial homóloga post mortem é plenamente possível, como
referido, no entanto, na linha do aprovado na III Jornada de Direito Civil, deve a mulher estar
na condição de viúva e ter o marido deixado por escrito a possibilidade de utilização de seu
material para depois de sua morte (GONÇALVES, 2014a, p. 3017), disposição feita por
testamento, havendo, não obstante, dúvidas quanto à possibilidade dessa sucessão na forma
legal.
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De acordo com o artigo 1.800 do Código civilista vigente, com o fim do inventário,
na sucessão testamentária, os bens dessa “prole eventual” ficarão sobre a responsabilidade de
um curador nomeado pelo juiz, e com seu nascimento com vida “ser-lhe-á deferida a
sucessão, com os frutos e rendimentos relativos à deixa, a partir da morte do testador”
(BRASIL, 2002). Contudo, o §4° do mesmo dispositivo, com evidente fulcro na segurança
jurídica e na estabilidade das relações, determina que esses herdeiros esperados devem ser
concebidos no prazo decadencial de 02 anos da abertura da sucessão, salvo disposição em
contrário do testador, sob pena de os bens reservados serem dirigidos aos herdeiros legítimos.
Observa-se que a possibilidade de reconhecimento sucessório a eventual filho, de
acordo com autorização testamentária, evita a instabilidade das relações, atribuindo segurança
jurídica às transmissões porventura feitas. Nenhum dos sucessores é pego de surpresa com
uma gravidez que pode mudar o destino de todos, pois, com a previsão testamentária, tal
possibilidade é conhecida desde o momento de abertura da sucessão.
A pergunta crucial, segundo Nogueira (2002-2003, p. 207), e geradora de fortes
debates na doutrina, seria: “esse filho concebido após a morte do pai por inseminação
artificial homóloga tem direito à sucessão legítima? Porque, quanto à testamentária, é
possível, mas quanto à sucessão legítima podemos apresentar duas correntes”. A primeira
corrente sustenta que o filho não sucede:
[...] entendem que o filho concebido posteriormente ao óbito do autor da herança
não tem direito à sucessão legítima. Quais seriam os fundamentos? Inicialmente, a
interpretação do art. 1.798, que tem a seguinte redação: “Legitimam-se a suceder as
pessoas nascidas ou já concebidas no momento da abertura da sucessão”. Portanto,
para ser herdeiro, ele tem que, ao menos, existir, ter sido concebido até o momento
do óbito. Logo, se o potencial herdeiro ainda não foi concebido, ele ainda não existe,
por isso, não vai ter direito à sucessão legítima Outro fundamento a respaldar esta
posição é aplicabilidade do artigo 1.798, para a sucessão legítima e para a sucessão
testamentária (NOGUEIRA, 2002-2003, p. 207).
A pedra de toque, para essa corrente, seria a segurança jurídica, a estabilidade das
relações, pois como seria possível admitir que o concepturo, aquele que ainda não foi
concebido (e não se sabe quando será) terá direito a receber esses bens? Quanto tempo esse
patrimônio vai ficar reservado para uma concepção que pode nunca ocorrer? Em qual prazo,
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após aberta a sucessão, deverá ocorrer a concepção post mortem? O prazo para pleitear os
bens seria o mesmo da petição de herança para este que foi concebido após o óbito, nascendo
com vida? Deve ser feita a comunicação das tentativas de concepção futura aos herdeiros
existentes? Percebe-se, por conseguinte, a insegurança gerada aos demais herdeiros e
interessados na sucessão; mas há, ainda, outro problema sucessório, que seria a intenção da
viúva (NOGUEIRA, 2002-2003, p. 208).
Esta primeira corrente também argumenta suscitando o direito adquirido dos
herdeiros concebidos e já nascidos à sucessão legítima, por terem direito de saisine, porquanto
o artigo 1.784 do Código Civil prevê que aberta a sucessão, a herança transmite-se, desde
logo, aos herdeiros legítimos e testamentários. Com o falecimento, imediatamente o domínio
e a posse são transmitidos aos herdeiros existentes e a Constituição da República assegura o
direito adquirido e o direito à herança, ambos em seu artigo 5º, protegido como cláusula
pétrea. Portanto, para essa parte da doutrina, admitir que o concebido após o óbito suceda,
contraria estes preceitos fundamentais.
O problema, neste caso, está relacionado à ausência de comunicação e ciência, já que
os demais sucessores sequer precisam saber dessas tentativas de procriação artificial, podendo
ser pegos de surpresa a qualquer momento. Nesse sentido, quem não estiver concebido até a
data da morte do autor da herança não está legitimado a suceder. Na sucessão testamentária,
porém, como estudado, pode haver o chamamento do nondum conceptus (pessoa futura,
pessoa ainda não concebida). Para Venosa (2011, p. 1.895), “o ordenamento não prevê
qualquer modalidade de sucessão para os nascidos ou concebidos após a morte do autor da
herança se não houve previsão no ato de última vontade”.
Já a parte da doutrina que é a favor da sucessão legítima desse filho usa como
fundamento a igualdade entre os filhos estabelecidas no artigo 227, §6º, da Constituição
Federal de 1988. Consignam esses autores que não há fundamento para que filhos concebidos
antes sejam sucessores e filhos concebidos post mortem não sejam.
O segundo argumento utilizado por essa corrente é a dignidade da pessoa humana,
porquanto “não se pode sustentar um comportamento familiar, uma convivência digna numa
família de um filho com patrimônio deixado pelo falecido pai e um outro filho, sem
patrimônio, dependente, completamente, dos seus familiares” (NOGUEIRA, 2002-2003, p.
209).
A problemática se agrava com o Enunciado 267 da III Jornada de Direito Civil
(CONSELHO DA JUSTIÇA FEDERAL, 2005, p. 399-401), na qual foi aprovada a seguinte
redação:
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A regra do art. 1.798 do Código Civil deve ser estendida aos embriões formados
mediante o uso de técnicas de reprodução assistida, abrangendo, assim, a vocação
hereditária da pessoa humana a nascer cujos efeitos patrimoniais se submetem às
regras previstas para a petição da herança.
Tal Enunciado é fruto da proposição trazida pelo Juiz Federal Dr. Guilherme Calmon
Nogueira da Gama, que tratou do congelamento de embriões e da criopreservação de sêmen
ou óvulo para futura utilização, e consequente reconhecimento de direitos sucessórios
(CONSELHO DA JUSTIÇA FEDERAL, 2005, p. 399-401).
De acordo com a justificativa do Enunciado, partindo-se da premissa que a redação
do Código Civil se iniciou ainda na década de 60, o legislador não tinha condições de
imaginar tal evolução científica, resumindo sua atividade a adotar a regra do art. 1718 do
Código Civil de 1916 (“são absolutamente incapazes de adquirir por testamento os indivíduos
não concebidos até a morte do testador, salvo se a disposição deste se referir á prole eventual
de pessoas por ele designadas e existentes ao abrir-se a sucessão”) (BRASIL, 1916). Nesse
sentido, Gama defende a interpretação extensiva do art. 1.798, do atual Código Civil,
dispondo que:
[...] a melhor solução é considerar que o art. 1.798 do novo Código Civil disse
menos do que queria, devendo o intérprete proceder ao trabalho de estender o
preceito aos casos de embriões já formados e àqueles a se formar (abrangendo,
assim, as duas hipóteses indicadas) (CONSELHO DA JUSTIÇA FEDERAL, 2005,
p. 401).
Permitir a concepção artificial post mortem é muito mais do que considerar tal
concepção realizada na constância do casamento, é muito mais do que considerar essa criança
filha de alguém que morreu antes mesmo de sua implantação no ventre materno. Tratar dessa
concepção é tratar dos direitos sucessórios dessa criança e de sua mãe, que podem ser
modificados, a depender da existência ou inexistência de descendentes comuns, ou até mesmo
da inexistência prévia de descendentes, e com essa modificação podem atingir direitos de
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Código Civil, terá o direito de herança e o direito de propriedade e, sendo filho, deve ser
considerado como herdeiro, tendo direito de saisine.
Mas, não havendo qualquer autorização testamentária, ou se, embora havendo, a
concepção ocorrer já decorridos dois anos após a abertura da sucessão, sem que o testador
tenha deixado qualquer disposição em contrário, diversas questões surgem e causam
tormento.
Isto porque os outros filhos pré-concebidos, os outros herdeiros, também têm direito
de saisine, porquanto o domínio e a posse foram imediatamente transmitidos na hora do óbito.
Se for imediatamente transmitido no exato momento do falecimento, eles têm direito
adquirido a um determinado percentual daquela herança, têm o direito de propriedade e o
direito de herança garantidos pela Constituição aos bens que compõem o acervo hereditário.
O problema que se coloca, por conseguinte, nos casos acima descritos, é justamente
decorrente da insegurança jurídica que tal situação inevitavelmente traz aos herdeiros pré-
concebidos. “Na verdade, existe um conflito de normas fundamentais que deve ser dirimido
pela teoria da ponderação dos interesses. As duas linhas argumentativas trazem à cena a
inevitabilidade de colisão de direitos e princípios fundamentais” (NOGUEIRA, 2002-2003, p.
209).
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Com o fim da partilha, os bens são transmitidos a seus novos proprietários, que
passam a dar a destinação que lhes convêm a seu novo patrimônio, respeitando a função
social da respectiva propriedade.
Aproximadamente seis anos após a morte do marido, a esposa, em um momento de
profunda saudade, volta a realizar a reprodução artificial, ficando grávida do marido pré-
morto, nascendo tal criança com vida nove meses depois. Porém, nenhum dos demais
herdeiros conhecia tal possibilidade, sequer sabendo das tentativas anteriores de reprodução.
De acordo com o entendimento do Enunciado 267, já analisado, é possível que essa
mãe, representando seu filho, ajuíze uma ação de petição de herança, para obter uma nova
partilha, nos moldes permitidos pelos artigos 1.824 e seguintes do Código Civil.
É possível, assim, que esses herdeiros anteriores sejam prejudicados por ato alheio a
sua vontade, do qual sequer tinham conhecimento da possibilidade? E na hipótese de a
sucessão ter se dado entre o cônjuge e os ascendentes, nos moldes do art. 1.836 do Código
Civil, como ficaria agora com a existência de descendente, os ascendentes perderiam todo o
herdado?
Nota-se, de plano, que permitir a interpretação favorável à atribuição de direito
sucessório a tal filho, inclusive com a aplicação das regras atinentes à petição de herança,
afronta a segurança jurídica, a estabilidade das relações jurídicas findas. Segundo Rothenburg
(2014, p. 184), “não se trata apenas de assegurar juridicamente o que já foi obtido ou poderia
sê-lo, com vistas ao passado. Trata-se ainda de assegurar juridicamente, no presente, aquilo
que o direito oferece, de modo adequado e racional”.
A segurança jurídica é um dos princípios basilares do Estado Democrático de Direito
(SILVA, 2005, p. 122), e encontra amparo no ordenamento jurídico pátrio. Juntamente com
os demais princípios gerais do Direito, a segurança jurídica confere proteção e confiança à
ordem jurídica e social. Analisando esse princípio, Mello (2008, p. 124-125) afirma,
pontualmente, que “o Direito propõe-se a ensejar certa estabilidade, um mínimo de certeza na
regência da vida social”, sendo que “esta segurança jurídica coincide com uma das mais
profundas aspirações do homem: a da segurança em si mesma”.
Canotilho (1991, p. 384) diz que o princípio da segurança jurídica, que ele prefere
tratar como princípio da estabilidade das relações jurídicas, é uma das vigas mestras da ordem
jurídica, de suma importância na atualidade.
A segurança jurídica, desse modo, consiste no conjunto de condições que tornam
possível às pessoas o conhecimento prévio das consequências diretas de seus atos e
de seus fatos à luz da liberdade reconhecida. Uma importante condição da segurança
jurídica está na relativa certeza de que os indivíduos têm de que as relações
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realizadas sob o império de uma norma devem perdurar ainda quando tal norma seja
substituída (SILVA, 2005, p. 433).
Não há como negar, portanto, que o Estado Democrático de Direito esteja construído
sobre o conceito de lei, porquanto é da essência de seu conceito subordinar-se à Constituição
e fundar-se na legalidade democrática (SILVA, 2005, p. 420). “O princípio da legalidade
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permanece insubstituível como garantia dos direitos e como fundamento e limite a todo
funcionamento do Estado” (MENDES, VALE, 2013, p. 546).
A lei, aqui, deve entendida como expressão da vontade geral, ato legislativo emanado
dos órgãos de representação popular e confeccionada segundo o processo legislativo
estabelecido na Constituição. Porém, o princípio da legalidade vincula-se a uma reserva
genérica ao Poder Legislativo, que não exclui atuação secundária de outros poderes (SILVA,
2005, p. 421).
Correlatos à ideia de segurança jurídica também são os conceitos de prescrição e
decadência. Isto porque, desde a concepção do ser humano, o tempo influi nas relações
jurídicas de que o indivíduo participa. No campo jurídico, portanto, a interferência do
elemento tempo é substancial, pois existe interesse da sociedade em atribuir juridicidade
àquelas situações que se prolongaram no tempo (GONÇALVES, 2013, p. 478).
Tais institutos são necessários, por conseguinte, para que haja tranquilidade na ordem
jurídica, para a consolidação de todos os direitos. Sem eles, nada seria permanente, o
proprietário jamais estaria seguro de seus direitos, e o devedor livre de pagar duas vezes a
mesma dívida. Sobre a distinção entre os conceitos, ensina Gonçalves (2013, p. 478):
Para distinguir prescrição de decadência, o atual Código Civil optou por uma
fórmula que espanca qualquer dúvida. Prazos de prescrição são, apenas e
exclusivamente, os taxativamente discriminados na Parte Geral, nos arts. 205 (regra
geral) e 206 (regras especiais), sendo de decadência todos os demais, estabelecidos
como complemento de cada artigo que rege a matéria, tanto na Parte Geral como na
Especial. Para evitar a discussão sobre se ação prescreve, ou não, adotou-se a tese da
prescrição da pretensão, por ser considerada a mais condizente com o Direito
Processual contemporâneo.
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Das Consequências Sucessórias da Concepção Post Mortem: o Direito Fundamental à Herança e o
Princípio da Segurança Jurídica
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Não há dúvida, por conseguinte, de que o direito de herança desse filho gerado post
mortem deve ser ponderado com a segurança jurídica e a estabilidade das relações. Não há
razoabilidade de voltar a um status quo ante, de uma partilha que foi feita nos moldes da lei,
amparada na boa-fé de seus participantes, que em momento algum tiveram qualquer
conhecimento da possibilidade dessa concepção post mortem.
Trata-se de atitude desproporcional. O direito de herança modificado posteriormente,
por ato e decisão exclusiva da viúva, sem qualquer comunicação prévia aos demais herdeiros
no momento do inventário e da partilha, afronta veementemente a segurança jurídica, a
confiança que deve pautar as relações jurídicas, inclusive, podendo gerar embaraços e
desenlaces familiares. Trata-se de tumulto gerado por ato unilateral e exclusivo da viúva.
Dúvida há, obviamente, quanto à boa-fé da viúva que assim age, principalmente se sua
situação sucessória também mudar.
Tal conjuntura, portanto, não merece amparo pelo Direito, por violar instituições tão
importantes quanto o direito de herança, o direito de propriedade, a segurança jurídica e o
direito adquirido. Não há dúvidas que à prole concebida post mortem devem ser assegurados
os direitos de herança, de alimentação, de sobrevivência digna. Porém, não se pode deixar de
considerar também a dignidade dos herdeiros já existentes.
CONCLUSÃO
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