Descartes e o Discurso do Método - parte 2

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Descartes e o Discurso do Método – Danilo Marcondes – Iniciação à Filosofia.

(texto alterado e adaptado) –


parte 2 Como vimos, a Primeira Meditação termina com a dúvida mais radical. A Segunda Meditação retoma esta
dúvida como princípio metodológico, indicando que com base nisso só devemos aceitar como verdadeiro algo que
não esteja sujeito à “menor dúvida” –, sendo a tarefa do filósofo buscar tal certeza. A dúvida visa portanto à
certeza, sendo precisamente um critério para se testar a validade dessa certeza. Ora, retomando a meditação
anterior, não encontramos nada que possa ser considerado certo; a única afirmação que podemos fazer é que
“nada há no mundo de certo”. Eu mesmo, diz Descartes, meu próprio corpo, meus sentidos minhas faculdades
cognitivas foram postos em dúvida; e, sobre qualquer coisa que eu pense, há um deus enganador que pode fazer
com que me engane. Abre-se, assim, a partir desse raciocínio, o caminho para a primeira certeza. Pois até mesmo
para que um deus enganador possa me enganar sobre todas as coisas, é preciso que eu exista. E, por mais que me
engane, “jamais poderá fazer com que eu não seja nada, enquanto eu pensar ser alguma coisa”. Portanto, até
mesmo para duvidar é preciso que eu pense; logo, o pensamento é ele próprio imune à dúvida. “Enfim, é preciso
concluir […] que esta proposição 'Eu sou, eu existo', é necessariamente verdadeira todas as vezes que eu a
enuncie ou a conceba em meu espírito”. Chegamos à primeira certeza, à verdade necessária do cogito. Se até
mesmo para duvidar é necessário pensar, a existência do pensamento, do ser pensante, não está sujeita à dúvida: é
mais básica, mais originária do que esta, é um pressuposto dela.
Uma análise do argumento do cogito
O argumento do cogito é um dos mais famosos argumentos da tradição filosófica. Quem não terá ouvido a célebre
fórmula “Penso, logo existo”? Entretanto, apesar de toda a notoriedade e aparente simplicidade desta fórmula, é
também um dos argumentos mais discutidos e controversos, havendo inúmeras divergências sobre a sua
interpretação e validade. Trata-se realmente, como pretendia Descartes, de um ponto de partida radical, de uma
certeza sem pressupostos? Mas é isso que pretendia? O argumento depende centralmente da noção de pensamento
(cogitatio) ou pode ser formulado a partir de outras noções como sentir e perceber? Trata-se de uma inferência
lógica, de uma verdade demonstrada, ou de uma intuição psicológica? […].
Após estabelecer a evidência do cogito, Descartes dá um passo adiante, afirmando que posso ter certeza de que
existe uma coisa que pensa (res cogitans). Assim, afirma que é isso o que posso saber – a existência da substância
pensante. Não posso, entretanto, saber mais nada além disso, uma vez que tudo o mais permanece ainda sob a
dúvida. Sequer posso saber o que eu sou – um ser humano, dotado de um corpo, etc. -, já que para isso precisaria
ir além do puro pensamento, dependeria dos sentidos, de minha experiência, de conhecimentos adquiridos etc., o
que não me é permitido pela certeza do cogito. Esta é a raiz do célebre dualismo corpo-mente em Descartes. Não
podemos sequer afirmar a existência do corpo, porque, sendo material, é de fato um objeto no mundo externo,
sobre o qual não podemos ter certeza. O cogito, portanto, nos revela apenas isso: a existência do pensamento
puro, o que é possível pela evidência do próprio ato de pensar. No entanto, sempre que quisermos ir além desse
pensamento puro, desse pensamento que no máximo pode pensar a si mesmo, reflexivamente, encontramos a
dúvida. Qualquer que seja o conteúdo desse pensamento, este ainda pode ser posto em dúvida.
Eis o sentido do solipsismo cartesiano, o isolamento do eu em relação a tudo mais: ao mundo exterior e ao próprio
corpo, que também é um elemento externo. O solipsismo é resultado da evidência do cogito, uma certeza tão forte
que exige critérios tais que não são aplicáveis a nada mais. O objetivo de Descartes, contudo, é fundamentar a
possibilidade do conhecimento científico, construir as bases metodológicas para uma ciência mais sólida, mais
bem fundamentada que a tradicional. É necessário, portanto, encontrar um caminho de superação desse idealismo
tão radical, no qual a única realidade certa é a existência do puro pensamento. Está é a tarefa que Descartes
propõe.
Do idealismo ao realismo
Vimos acima que o solipsismo é uma consequência direta do próprio argumento do cogito. Descartes encontra
enfim uma certeza indubitável que lhe permite responder ao cético que não considerava possível nenhuma
certeza. Entretanto, é como se o cético tivesse encurralado Descartes em um canto da sala, de onde ele não pode
ser tirado, porém de onde tampouco pode sair. Ora, se o objetivo de Descartes é fundamentar a ciência, então é
necessário encontrar uma ponte entre o pensamento subjetivo e a realidade objetiva, entre o mundo interior e o
mundo exterior. Só poderá haver ciência quando pensamento puder formular leis e princípios que expliquem
como o real funciona. A concepção cartesiana de ciência é ainda a clássica, deriva em grande parte de Aristóteles
(Metafísica I, 1, Segundos analíticos). Trata-se de um corpo de verdades teórica, universais e necessárias, de
certezas definidas, que não admitem erro, correção ou refutação.
Esta concepção irá se alterar progressivamente ao longo do pensamento moderno – devido sobretudo às críticas
dos céticos e empiristas a este modelo e aos critérios de validade que adota – dando origem a uma redefinição da
própria noção de ciência contemporânea.
Na Terceira Meditação, Descartes empreende seu caminho rumo à garantia da possibilidade do conhecimento. Sua
estratégia é começar pela introspecção, pelo exame da única realidade até então de conhecer: o próprio
pensamento. Passa em seguida a examinar o que é essa substância pensante; como se constitui esse mundo
interior. Enquanto se mantiver nesse espaço interior, a certeza lhe será garantida, uma vez que não dependerá de
nenhum intermediário, de nenhum elemento do mundo externo sobre o qual a dúvida continua a pairar.
Descobre então que sua mente é composta de ideias, que ter uma ideia é pensar sobre algo, independentemente da
verdade ou falsidade do pensamento. Com efeito, é o juízo, como ensinava a doutrina tradicional, que é capaz de
ser verdadeiro ou
falso, na medida em que afirma ou nega alguma coisa de algo. É do juízo, composto de ideias, que podemos
afirmar a verdade ou a falsidade.
Descartes adota o critério da evidência do cogito no exame das ideias que encontra em sua mente. Uma ideia será
válida ou adequada na medida em que for evidente, isto é, clara e distinta. Porém, para que haja conhecimento é
preciso algo mais, é preciso que as ideias sejam representações, ou seja, correspondam a objetos dos quais são
ideias: uma ideia é sempre uma ideia de algo. “As ideias são em mim como quadros ou imagens”, diz Descartes
(Terceira Meditação).
O uso que Descartes faz do termo “ideia” é bastante impreciso, como ele próprio admite: “Este termo 'ideia' tem
um caráter equívoco, pois pode ser tomado materialmente como uma operação do meu entendimento […] ou pode
ser tomado objetivamente como aquilo que é representado por esta operação”. (Prefácio, Meditações). Ou seja, a
ideia pode ser tanto o próprio ato do pensamento como o conteúdo deste ato: a representação.
Descartes identifica três tipos de ideias: as ideias inatas, que não são derivadas da experiência mas se encontram
no indivíduo desde seu nascimento, dentre as quais se incluem as ideias de infinito e de perfeição; as ideias
adventícias (ou empíricas), que formamos a partir de nossa experiência e que dependem de nossa percepção
sensível estando portanto sujeitas à dúvida; e as ideias factícias (da imaginação), que formamos em nossa mente
a partir dos elementos de nossa experiência, como p. ex. a ideia de unicórnio, que resulta da junção de ideia de
chifre à ideia de cavalo.
Do ponto de vista dos critérios de clareza e distinção, é a estrutura interna da própria ideia que garante a sua
verdade. “As coisas que concebemos de maneira muito clara e distinta são todas elas verdadeiras” (Quarta
Meditação). A ideia é verdadeira em razão de sua adequação, e sua adequação é caracterizada por propriedades
intrínsecas à própria ideia, isto é, às ideias como modos da substância pensante. Contudo, para explicar a
possibilidade do conhecimento do real, é necessário, como dissemos, que as ideias tenham um conteúdo
representacional, que possam ser “como imagens das coisas”, e que a cada conteúdo representacional corresponda
um objeto. Para isso, é necessária uma análise das condições que tornam correta a representação, sendo a
falsidade material das ideias explicada pelo fato de que, neste caso, representam o que nada é como se fosse
alguma coisa. É preciso introduzir o princípio clássico da correspondência para garantir a correlação entre a
ideia na mente e a coisa a ser conhecida no mundo externo. Só assim o saber poderá vir a ser a representação
correta do real como mundo empírico ou como mundo possível.
Podemos identificar, portanto, no desenvolvimento da análise cartesiana da representação, uma tensão entre a
noção subjetiva de certeza e a concepção de verdade como correspondência com o real. Só a prova da existência
de Deus, que funciona como garantia do conhecimento do mundo, permitirá superar essa tensão.
O argumento cartesiano parte do reconhecimento da ideia de Deus como um ser perfeito em minha mente,
mostrando que esta ideia só pode ter como causa o Ser Perfeito, já que eu, não sendo perfeito, seria incapaz de
chegar por mim mesmo à ideia de perfeição. Trata-se, portanto, de uma ideia inata, colocada em mim por Deus, “a
marca do criador em sua obra”. É considerado assim um argumento cosmológico, por recorrer à noção de causa,
de Deus como a causa de minha ideia de perfeição, o que levará finalmente à argumentação de que Deus é o
criador do mundo externo, tendo o poder causal de conservar a substância existente (Quinta e Sexta Meditações).
No entanto, na medida em que parte da ideia de Deus para afirmar a sua existência, já pode ser considerado um
argumento ontológico.
O argumento ontológico propriamente dito, ao contrário, parte da essência de Deus, de sua definição como ser
perfeito, para provar que, se Deus é entendido como ser perfeito, devemos então reconhecer sua existência.
Parte-se assim da definição para afirmar a existência daquilo que é definido, e é a necessidade da afirmação dessa
existência que caracteriza o argumento ontológico. Se Deus não existisse, não poderia ser definido como ser
perfeito, porque lhe faltaria uma qualidade, a existência. Nesse sentido, não seria perfeito, a perfeição entendida
como a posse de todas as qualidades em maior grau possível. Seria, portanto, contraditório afirma o argumento,
supor a não existência do Ser Perfeito.
Como a ideia de Deus é uma ideia inata, possuindo clareza e distinção (Meditações, Primeiras Respostas),
Descartes pode chegar a ela a partir do próprio cogito, sem nada supor de externo. Contudo, ao passar da ideia de
Deus, pelo argumento ontológico, para a afirmação da existência de Deus – que não é mais então uma mera ideia,
existindo independentemente do cogito –, Descartes consegue finalmente romper com o solipsismo e construir
uma ponte para fora de si mesmo, podendo agora afirmar, com toda a certeza, a existência de algo além do cogito.
O argumento cosmológico, por sua vez, terá como consequência a possibilidade de afirmar que Deus é o criador
do mundo externo, servindo portanto de garantia à existência do mundo e à possibilidade de o homem conhecer o
mundo: “Parece-me então que agora posso ver diante de mim um caminho que me levará da contemplação do
verdadeiro Deus (no qual todos ostesouros da ciência e sabedoria estão ocultos) até o conhecimento das coisas”
(Quarta Meditação).
No início da Segunda Meditação, Descartes afirmava a necessidade de se encontrar um ponto arquimediano, uma
certeza tão forte que servisse de base para a construção de todo o sistema do saber. Vemos agora, entretanto, como
decorrência da prova da existência de Deus, que o verdadeiro ponto arquimediano não é cogito, como pretendia
Descartes na Segunda Meditação, mas Deus, o único verdadeiramente capaz de garantir o conhecimento sobre o
mundo. Passamos assim, de um idealismo – no qual a única realidade de fato capaz de ser conhecida é o
pensamento, o mundo interior, sendo que tudo o mais é conhecido através dele e a partir dele – para um realismo,
no qual a existência e a inteligibilidade do mundo externo são garantidas pela existência de Deus, sendo o
conhecimento a representação verdadeira, a correspondência entre a ideia e o objeto externo.

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