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ISSN 2236-7403

- Mito e Literatura N. 20, Vol. 10, 2020

MITODOLOGIA, MITOPOESIA E SUA CONTRIBUIÇÃO COM A


TEORIA LITERÁRIA

MYTHODOLOGY, MYTHOPOETRY AND ITS CONTRIBUTION TO


LITERARY THEORY

Ana Maria Leal CARDOSO1

RESUMO: Este trabalho demonstra a contribuição das teorias do mito para a teoria e crítica literárias.
Conscientes de que a literatura é uma criação mitopoética e que por isto o teórico e o crítico literário
necessitam também do substrato, do fundamento epistemológico da “mitodologia” no difícil processo
interpretativo do objeto literáriomitopoético, consideramos o modelo da jornada do herói mítico
proposto por Joseph Campbell como parâmetro da permanência dos mitos eternos em torno do
qual gravita a construção de inúmeros personagens modernos com o propósito de iluminar o papel
influenciador deste monomito na obra literária, para confirmar a ideia de que a Teoria da Literatura
não pode e nem deve prescindir das teorias do imaginário no seu repertório metodológico. Ele segue
baseado nas teorias de renomados críticos como Campbell, Mircea Eliade, E. Mielietinski, entre outros.

PALAVRAS-CHAVE: Mitopoesia. Mitocrítica. Teoria Literária. Herói mítico/literário.

ABSTRACT: This work demonstrates the contribution of myth theories to literary theory and criticism.
Conscious of the fact that literature is a mythopoetic creation and therefore the theoretician and literary
critic also need the substrate, the epistemological basis of “mythodology” in the difficult interpretative
process of the mythopoetic literary object, we consider the model of the journey of the mythical hero
proposed by Joseph Campbell as a parameter of the permanence of the eternal myths around which the
construction of countless modern characters gravitateswith the purpose of illuminating the influential role
of this monomyth in the literary work, to confirm the idea that the Theory of Literature cannot and must
not do without the theories of the imaginary in its methodological repertoire. It follows based on thetheories
of renowned critics such as Campbell, Mircea Eliade, Gilbert Durand, E. Mielietinski, amongst others.

KEYWORDS: Mythopoetry. Mythocritics. Literary Theory. Mythical/Literary Hero.

Mitopoesia, mitocrítica e teoria da literatura


Etnólogos, mitólogos, folcloristas, filósofos, dentre eles, Frazer, Arnold van Gen-
nep, Gaston Bachelard, Claude Lévi-Strauss, Lévy-Bruhl, Ernst Cassirer, MirceaElia-
de, Gilbert Durand, Northrop Frye, Joseph Campbell, deixaram uma significativa con-
tribuição para a Teoria da Literatura ao pensarem e discutirem sobre o imaginário
humano, seus mitos, arquétipos, símbolos, ritos e suas influências nas culturas, nas

1. Doutora em Letras, Profa. da Universidade Federal de Sergipe, São Cristóvão, SE, Brasil. E-mail: analealca@
yahoo.com.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3181-0551.
Recebido em 20/09/19
Aprovado em 21/12/19

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artes de forma geral e especificamente na literatura. Em “A poética do Mito”, Elizer-


Mielietinski (1987, p. 1) diz que certa metaforicidade específica, um modo concreto-
-sensorial de generalizações e o próprio sincretismo da arte foram herdados até certo
ponto da mitologia, além do que muitos artistas do século XX recorreram à mitologia
como instrumento de organização artística da matéria poética, de modelos nacionais
estáveis de cultura, graças ao “surgimento de uma específica escola mitológico-ritualis-
ta nos estudos da literatura, para a qual toda a poética é poética do mito”.
Apesar dos avanços tecnológicos, apesar das crises iconoclásticas e mitofágicas, é
perceptível o regresso dos mitos antigos ou a sua reintegração, cuja onipresença é sen-
tida em todos os setores da vida de modo que a modernidade começa com um pensar
sobre os mitos nos seus mais diversos gêneros, estilos, formas, imagens “reais”, virtuais,
arquetípicas, simbólicas, numa cadeia polifônica ininterrupta e cíclica.
Entende-se que a literatura alcança o plano mitopoético quando tem como base
estrutural o mito, estabelecendo diálogo com as questões culturais, abrindo-se a refle-
xões existenciais e transpessoais, conotando uma fisionomia dos fenômenos naturais
e dos comportamentos humanos pelos mitos em determinadas conjunturas psíquicas,
históricas e socioculturais.
Inúmeras vezes o caminho para se alcançar a grandeza, beleza e novidade (ele-
mentos imprescindíveis da poesia) e as dimensões do mito em qualquer figuração em
que ele se apresente, desde as narrativas literárias até as inquirições teórico-metodoló-
gicas a respeito do imaginário, é longo e diversificado, de modo que o mitólogo, assim
como o crítico literário, pode transitar por áreas do conhecimento às vezes bastante
incongruentes e para cujo fim se requisitam intrincadas formulações teóricas neces-
sárias para o embasamento de um enfoque interpretativo que só a metodologia pode
oferecer. Não raro as imagens míticas clássicas, religiosas, étnico-regionais e históricas
circulam tão imbricadas no texto literário que se tornam demasiadamente difíceis, às
vezes, inacessíveis as luzes de sua compreensão.
Destarte, para viabilizar a elaboração dos aspectos do mito, de suas influências,
de sua trajetória, de suas feições, faz-se necessário compreender não só a conceituação
plural do termo, mas, com o auxílio da mitodologia, especificamente da mitocrítica e
da mitanálise, é fundamental descobrir o mito original, a narrativa mítica fundante que
está submersa nas múltiplas camadas que constroem a linguagem artística atualizada
no texto. Como num palimpsesto, há um mito por baixo das estruturas narrativas, às
vezes encoberto pelas várias máscaras de novos mitos. Revelar essas novas faces dos
velhos mitos é, portanto, uma tarefa dos cultores e autores denominados por Raphael
Patai (1974) de mitopoetas.
O antropólogo francês Gilbert Durand (1982, p. 66) afirma que “um mito nos
olha de dentro do texto, tomando de empréstimo a ideia e expressão de Jean-Paul

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Sartre: “um texto olha-nos e é o que num texto nos olha que é o seu núcleo [...]”.Esse
núcleo pertence ao domínio do mítico”. Para Durand, a fonte de significação de um
poema, de romance, da obra completa de um romancista é o mito, que ele define
como um “fundamento que interessa”, (utilizando o termo usado por Cassirer), um “ser
pregnante” que está dentro de qualquer obra de arte, como reserva cultural, cruzando
o olhar com o leitor. Há uma coalescência entre a literatura profana (na aparência) e o
que “nos olha” na sua linguagem, “que se não é do domínio do sagrado, o é pelo menos
do mistério” (RIBEIRO, 2012, p. 65). Ainda de acordo com Ribeiro (2012, p. 65) “as
narrativas orais e escritas, no presente ou no passado, sempre tiveram um mito basilar.
Há uma narrativa fundante, imagens e enredo dos princípios” e “por trás” dos textos
literários, que são transmitidos através das gerações de poetas, dramaturgos, roman-
cistas, contadores de histórias.
Mircea Eliade foi o primeiro crítico mitopoeta a enunciar o princípio de cor-
respondência entre o texto literário e as estruturas míticas, interpretando a literatura
dita “profana” e esse “núcleo que nos olha e interroga pelo seu além-mítico”, seguido,
depois, por muitos mitólogos e estudiosos da religião que tiveram uma percepção da
consonância dos grandes esquemas míticos nas artes (DURAND, 1982, p. 67).
Por seu turno, a literatura cria uma fissura entre o “real” e o imaginário ao
transferir para o realismo fantástico ou para uma dimensão metafísica o incompreen-
sível, cujo vazio pode ser preenchido pelo mito, que possibilita viver o irrespondível
sem nenhuma explicação lógica visto que revela certas “verdades” da vida humana que
satisfazem à razão e à emoção. Segundo Jung (2000, p. 158), “Por isso, o intelecto cien-
tífico sempre sucumbe às tendências iluministas ao encastelar-se nos enigmas do mito
com a esperança de banir definitivamente o fantasma das explicações lógicas”, pois o
mito abre-se como uma janela a todos os ventos e presta-se a todas as interpretações.
Northrop Frye (1994, p. 136), “para quem o núcleo do princípio genético da
poesia é o mito”, admite que todo escritor literário é um mitopoeta quando afirma
que “a mitologia é e sempre foi um elemento integrante da literatura”. No entender
de Ribeiro (2012, p. 66), a crítica mitológico-ritualista dos estudos literários conside-
ra, nas últimas décadas, que a “lírica assimilou elementos míticos diretamente dos
rituais, das festas populares e dos mistérios religiosos”. Ribeiro (2008, p. 61) reitera
ainda que a literatura contemporânea, ao que parece, continuou bebendo na mesma
fonte cultural, “não obstante os mitos antigos terem sido parcialmente deslocados
para uma posição periférica, tornando-se obsoletos ou sendo transformados” por
outros modos de se viver e de criar.
Segundo Patai (1974, p. 88), estudiosos, escritores, críticos, sociólogos, antro-
pólogos, psicólogos, historiadores, arqueólogos, professores e poetas que evidenciam,
descobrem, estudam mitos podem ser chamados de mitopoetas porque se “convertem

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em fazedores de novos mitos”. Em seus campos específicos de atuação: na sociedade, na


psicologia, na cultura, na religião e na própria mitologia, estes estudiosos descobrem,
mapeiam, registram, interpretam, desconstroem, criam e recriam mitos, evidenciando
suas funções e influências, cotejando suas formas de representação, idealizando e con-
servando o imaginário coletivo e pessoal de forma própria.
Um mitopoeta está sempre preocupado em atribuir uma função transformado-
ra à mente e ao espírito humano. Ele se preocupa em desembaraçar as sociedades e as
culturas dos miasmas ideológicos que permeiam os mitos através da busca minuciosa
de suas origens, propagando uma espécie de obsessão (ou total rejeição) pelo mito
como linguagem relevante que conduz a compreensão de que o mito é parte integrante
do universo humano-existencial. Joseph Campbell declara, poeticamente, na sua co-
nhecida entrevista a Bill Moyers, publicada com o título de O poder do mito, que

[...] a mitologia é a música da imaginação, inspirada nas energias do corpo. [...]


Os mitos são metáforas da potencialidade espiritual do ser humano, e os mesmos
poderes que animam nossa vida animam a vida do mundo. [...] O mito é o sonho
público, e o sonho é o mito privado. Se o seu mito privado, seu sonho, coincide
com o da sociedade, você está em bom acordo com seu grupo. Se não, a aventura
o aguarda na densa floresta à sua frente. [...] Eu penso na mitologia como a pátria
das Musas, as inspiradoras da arte, as inspiradoras da poesia. Encarar a vida como
um poema, e a você mesmo como o participante de um poema, é o que o mito faz
por você. (CAMPBELL, 1990, p. 23).

A simples preocupação em descrevê-lo à luz de uma abordagem historiográfica


comprova que todas as leituras do mito têm, ao menos, um ponto em comum: o de nele
reconhecer uma visão de mundo sobre a qual é necessário refletir, ainda que essa re-
flexão tenha a intenção de dessacralizá-lo, de desconstruí-lo, o que parece impossível,
visto que nenhum indivíduo, povo ou sociedade é capaz de destruir um mito. Um mito
não morre, apenas é ocultado por um tempo, ressurgindo noutro tempo e lugar com
nova fisionomia e função. Nisto reside o seu poder. De qualquer forma, seja qual for
o caminho ou o propósito que justifique a busca do mito: a mitoclastia, a mitomania, a
mitogonia, a mitofobia, a mitografia, o mitologema, a pregnância simbólica, a mitocrítica, entre
outras, estaremos sempre lidando com mitopoesia e com mitopoetas.
Abarcado pela Teologia, Filosofia, Psicanálise, Psicologia, História, Estudos Li-
terários e pela Mitologia, dentre outros campos do conhecimento, o mito é a materia-
lidade do desconhecido que, tomado como objeto de estudo, ganha a aderência dos
pressupostos teóricos da vertente do conhecimento humano que o interpreta, mas não
perde sua própria essência, que, segundo Campbell (2000, p. 21) é a de levar “o espí-
rito humano a avançar, opondo-se àquelas outras fantasias humanas constantes que
tendem a levá-lo para trás”. Assim, desde o período clássico até o contemporâneo, a

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questão da formação do mito e de sua influência na evolução da experiência humano-


-existencial tem passado por apreensões teórico-críticas semelhantes, complementares
e mesmo dissonantes. E as imagens míticas, materialidade do mito, circulam na socie-
dade e a ela se integram a partir de diferentes processos de recepção e reprodução.
O termo “mitocrítica” nomeia uma atitude crítica, cuja proposta é reconhecer e
analisar a dimensão mítica presente em todas as formas de representação e simbolização
que circulam na sociedade por meio das obras de arte literária. Ela reflete sobre o modo
como a poesia, a narrativa e o drama, em cujas formas o plano maravilhoso é responsável
pela circulação de imagens arquetípicas de ordem diversa, contribui para que a identi-
dade cultural, cujas experiências, muitas vezes, estão cerceadas pelo controle ideológico,
seja assumida, cultuada e valorizada como herança sagrada da trajetória do homem so-
bre a terra em busca da “felicidade”, o objeto mágico que se busca na vida e na arte.
De outro lado, o recorte mitocrítico busca ressaltar o que nas imagens míticas
compõe um painel simbólico capaz de reintegrar à experiência da leitura a vivência da
dimensão metafórica plural do mito, ampliando a visão de mundo e a capacidade de
compreensão do mesmo por parte dos leitores. Nesse sentido, a visão historiográfica
dos estudos do mito e a crítica desses estudos fornecem elementos importantes para
a definição dos procedimentos a serem seguidos para que possam ser observadas as
injunções que atuam sobre a circulação de determinadas imagens míticas na cultura e
em especial, na arte literária.
Para o psicólogo suíço Carl Gustav Jung (1991, p. 110), “a arte literária é uma
atividade psicológica em sua manifestação e o ato criador ocorre de forma espontânea
através de imagens arquetípicas”. A experiência com o arquétipo é, de certa forma,
uma emoção inevitável e de caráter coativo, que está sempre ligada ao cânone sim-
bólico-cultural a que se refere. Sua natureza é inescrutável e sua origem obscura − o
inconsciente coletivo − ao qual jamais se terá acesso direto.
Entretanto, a linguagem dos arquétipos é o mito, este que dá materialidade e
visibilidade ao arquétipo porque, em sua essência, o arquétipo é numinoso. A indaga-
ção aos mitos favorece a imersão no mundo das imagens arquetípicas no texto literário.
O poeta vislumbra o arquétipo e se apropria do mito que lhe dá vida para expressar
as imagens que pressentiu, criando a nova roupagem da imagem arquetípica. Ribeiro
(2017, p. 55) destaca que as representações psicológicas dessas imagens e sistemas de
imagens são entendidas “como fantasia do espírito, uma realidade entre o intelecto e a
matéria”, que está sob o domínio do mito. É esta realidade que o psicólogo busca reve-
lar por isso ele também é considerado um mitopoeta.

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O mito do herói e sua representação na literatura


Joseph Campbell elaborou o clássico conceito de herói e descreveu o modelo de
sua jornada nos mitos, nos contos de fada, nas lendas, nas religiões, nas artes, nos rituais,
na literatura em especial. Há décadas este método morfológico tem servido de âncora
para críticos literários, fenomenólogos, mitólogos, psicólogos, culturalistas, enfim, para
quem deseja interpretar a ação deste personagem arquetípico que sempre despertou
nas pessoas uma profunda admiração e o desejo de imitar suas proezas. Isto porque o
herói, com seus dons especiais, é a figura redentora e criadora que empreende esforços
para solucionar grandes problemas sociais bem como para conseguir transformação
e renovação pessoal através da ampliação da consciência. Para tanto ele desconstrói
clichês anatômicos a fim de validar mudanças, corrigir falhas, reparar carências e
suprir as necessidades de uma pessoa, de uma comunidade, de uma época, enfim.
De acordo com Campbell, o herói nasce predestinado para a difícil missão de servir
à coletividade e para cujo fim se sacrifica, abandonando velhos padrões existenciais,
fundando algo potencialmente novo que revitaliza a tradição.

O herói é todo homem ou mulher que conseguiu vencer suas limitações his-
tóricas pessoais e locais e alcançou formas normalmente válidas, humanas.
As visões, ideias e inspirações dessas pessoas vêm diretamente das fontes
primárias da vida e do pensamento humano. Eis por que falam com elo-
quência, não da sociedade e da psique atuais, em estado de desintegra-
ção, mas da fonte inesgotável por intermédio da qual a sociedade renasce.
(CAMPBELL, 2000, p. 43).

Após realizar um exaustivo estudo sobre heróis de várias culturas e religiões do


Oriente e do Ocidente, uma ambiciosa proeza que resultou numa inestimável contri-
buição para a mitologia, até para a teoria literária, Campbell (2000, p. 41-42) conclui
que “o herói composto do monomito é uma personagem única”, um padrão humano
básico, “ridículo ou sublime, grego ou bárbaro, gentio ou judeu”, cuja vida se multiplica
em diferentes terras e povos; o herói representa todo ser humano que se esforça por
renovação pessoal, social, através do domínio criativo e da ampliação da consciência.
Arquétipo de homem que possui qualidades físicas, grandeza espiritual, princípios éti-
cos e valores morais, dons que o tornam capaz de enfrentar até os deuses na luta contra
adversidades e inimigos.
Com poucas variações no plano essencial, sua aventura é um paradigma univer-
sal: convocado pelo destino ou pelos deuses para reparar um mal que atinge lugares e
pessoas, muitas vezes representados por dragões, serpentes, monstros, ele parte do lu-
gar harmônico onde nasceu e cresceu, vai para um lugar distante, onde sofre ordálias,
mas se torna capaz de superar qualquer obstáculo, desde as proibições do mundo até

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os próprios limites, em benefício da causa social e/ou cultural. Campbell (2000, p. 121)
defende que ele abandona velhos padrões existenciais e funda, a partir de uma “ideia
semente-germinal”, algo potencialmente novo: uma era, uma religião, uma cidade,
uma modalidade de vida; por isso é considerado um inovador que revitaliza a tradição,
desconstruindo um amontoado de clichês anatômicos para validar as mudanças pelas
quais luta, esforçando-se para corrigir falhas e reparar carências que suprem as neces-
sidades de uma época.
Campbell esquematiza o monomito da jornada do herói mítico servindo-se do
percurso padrão de aventura humana mitológica apresentada nos rituais de passagem
de diferentes culturas e épocas, obediente à sequência: separação-iniciação-retorno.
Não obstante serem encontradas pequenas variações na morfologia da aventura, nos
papéis envolvidos, nas vitórias obtidas, o modelo da aventura resume-se na ação de
um homem excepcional, que vem de um mundo harmonioso, tranquilo, e se aventu-
ra em uma região de prodígios sobrenaturais, enfrentando fabulosas forças com que
trava grande luta. Assim, conforme estabelece Campbell (2000, p. 61), “o herói recebe
um chamado, ordem ou convite, anunciado pelo arauto”, uma figura ambígua, às vezes,
aterrorizadora, maléfica, sombria, podendo ser representado por animal, por um es-
tranho, por um ente etéreo ou divino, material ou sobrenatural, que o convoca para
realizar uma tarefa difícil. Aceitando o chamado, o herói parte para um lugar distan-
te, desconhecido e perigoso, onde executará façanhas sobre-humanas, sofrerá, lutará,
provará delícias inimagináveis, desvelará enigmas, morrerá e renascerá.
Para orientar o caminho difícil e ajudar enfrentar os obstáculos do limiar de pas-
sagem, o herói recebe um auxiliar sobrenatural, figura benigna que fornece amuletos
contra as forças titânicas que o perseguem. Às vezes, o auxiliar sobrenatural assume a
função de guia, mestre, barqueiro e condutor de almas. O herói enfrenta uma sucessão
de provas. Entretanto, ele estará sendo ajudado por um poder benigno, sobre-huma-
no, sortilégios oferecidos pelas forças poderosas que o auxiliam. Vencidas todas as
barreiras e ogros, acontece sempre casamento místico (hierósgamos), união sexual do
herói com a Rainha-Deusa do mundo. Eis seu grande triunfo.
A apoteose do herói, que pode ser a própria divinização, ocorre no nadir da jor-
nada, após sua suprema provação. A recompensa é o reconhecimento e bênção do Pai,
seu iniciador e mestre, e o encontro com a Deusa, que está encarnada em toda mulher.
Terminada a busca, tendo encontrado, recebido espontaneamente ou roubado o objeto
e abençoado pelos deuses, o herói deve retornar com o troféu transformador da vida:
a sabedoria, o velocino de ouro, a princesa adormecida, o elixir da cura, etc.
Campbell (2000, p. 28) enfatiza a necessidade de se conservar os mitos para
preservar o homem e atesta a impossibilidade de se negar o herói arquetípico, pois “o
herói morreu como homem; mas, como homem eterno − aperfeiçoado, não específico

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e universal − renasceu”. A grande massa de homens e mulheres, que ele chama de


“peregrinos do caminho”, vive de muitas maneiras essa jornada arquetípica, experi-
mentando, preferencialmente, aventuras rotineiras inconscientes e coletivas.

O herói literário moderno


Seria impossível listar o imenso acervo de obras, pelo menos na literatura clássica
ocidental, montadas em arquitextos míticos, com vistas a comprovar as asserções míti-
co-ritualistas que sustentam a tese de um núcleo estrutural temático mítico-arquetípico
no texto literário. Seria, no mínimo, enfadonho elencar heróis e heroínas enredados em
mitologemas fabulosos de lutas, quedas, despedaçamentos sacrificais e ascensões trans-
formadoras. Inúmeras narrativas, poemas, tragédias, dramas, tragicomédias, comédias,
autos, desfiam tramas que atribuem ações, pensamentos e vozes a personagens imagi-
nários; incontáveis estórias repetem a saga primordial de divindades celestes, e recons-
troem a comunhão primeva com a natureza e com o sagrado, revisitam lugares maravi-
lhosos em busca do paraíso perdido, remodelam uma ontologia humana, mimetizam o
mundo, imaginando enigmas, reinventando destinos, ritualizando a vida e a morte.
Viajando no tempo, percorrendo épocas memoráveis, vamos encontrar ninfas
apaixonadas, belas cativas, beldades em torres e rochedos, transpondo umbrais de
mortes legendárias, homens hercúleos cercados por uma horda de feiticeiros, ogros e
divindades auxiliares, em busca do objeto mágico e da amada. O imaginário coletivo
impregnou de tal forma a nossa vida que nem percebemos quando a ele recorremos,
comenta o poeta e crítico Leminski:

Literariamente, essa imensa máquina atravessou viva a Idade Média, rea-


cendeu no Renascimento italiano e sobreviveu, impávida, até o romantismo
europeu do século XIX [...]. De Homero a Goethe, passando por Dante e
Shakespeare, numa linha ininterrupta, durante mais de dois mil anos, o
imaginário grego sempre foi o primeiro alimento do poeta ocidental culto,
seu soft-ware de fantástico, referencial de imagens, delírio compartilhado.
(LEMINSKI, 1994, p. 60-66).

Encontramos o herói mítico renascido desde aA Divina Comédia, que, apesar de


transformado, continua visitando o inferno, principalmente, passeando sobre sua alma.
Ele também procura agarrar a história, mas é sempre superado por ela. A sua morte
simboliza o fim da alienação; a sua descoberta, mesmo trágica ou violenta, é sempre
um passo para diminuir suas limitações. Para Feijó (1995, p. 66)“o leitor identifica-se
com o herói de Dante, não pelos seus superpoderes, nem pela sua força ou coragem,
nem mesmo pela ajuda dos deuses, mas pela sua capacidade de tornar o visível invisível

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e o dizível inefável”, isto é, por atingir uma verdadeira aventura em busca do Si-mesmo,
onde o herói não é o homem superdotado, mas o indivíduo angustiado, ansioso para
descobrir e atingir a verdade que representa a própria humanidade. Tal imagem do
herói transita até a contemporaneidade.
Ainda que os deuses arcaicos tenham sucumbido ante a força e grandeza dos
deuses da tela do cinema e da televisão, cada pessoa, segundo Campbell (2000, p. 15),
“tem seu próprio panteão do sonho privado e da arte”, até porque, “os símbolos da mi-
tologia não são fabricados; não podem ser ordenados, inventados ou permanentemente
suprimidos porque são produções espontâneas da psique e cada um deles traz em si,
intacto, o poder criador de sua fonte”. O herói surge transfigurado, na literatura con-
temporânea e avança em direção à sua humanização na pele da personagem que atua
num cotidiano desmitologizante, tornando-se, muitas vezes, um anti-herói. O ciclo dos
anti-heróis teve início com o herói problemático Dom Quixote − o primeiro da litera-
tura moderna − restando à criação literária, depois dele, as alternativas de destituir
o herói divino, trazê-lo de volta para conviver com o mundo moderno ou manter um
limite entre o herói divino e o humano.
O herói moderno é um indivíduo que dessacraliza o semideus e age dentro das
limitações humanas, que deseja ser o que é. Na literatura moderna o destino do herói
é a sua iniciação, cuja ação tem como origem um erro porque o indivíduo é o grande
problema; se na tragédia clássica o que derrota o herói é a luta contra a moira, e na epo-
peia, os sentimentos de amor e ódio o tornam espiritualmente preparado para o bom
combate, na literatura contemporânea quem transforma o herói é a própria impotência
mediante o mal coletivo que aparece com muitas configurações.
O leitor não mais se deleita com os super poderes do herói divino, mas vibra
com sua capacidade de tornar dizível o indizível e conhecido o desconhecido. Além
disto, ele deixa de ser um herói coletivo para se tornar um herói de si mesmo, de sua
individuação, vivendo as agruras do espírito humano e dando sentido ao seu ser no
mundo. Os escritores modernos passaram a narrar façanhas de homens vencidos pelo
amor, de sonhadores que buscam soluções românticas para seus problemas, que agem
dentro dos limites humanos, desejando tão somente ser o que é, dessacralizando o
semideus clássico das narrativas mitológicas, das lendas e dos contos de fada. Na litera-
tura contemporânea, o destino do herói é a sua própria iniciação na árdua jornada de
viver. Todavia, ainda assim, o herói mítico ressurge transfigurado, avançando em dire-
ção à sua humanização na pele de personagens comuns, muitas vezes como anti-heróis
que escapam do cotidiano desafiador.

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Considerações finais
O processo de remitologização na literatura – fenômeno de retomada e transfor-
mação dos mitos que resultou da depressão pós-guerra, do imediatismo capitalista, da
fragmentação do sujeito, das descobertas intergalácticas, da empolgação dos estudos do
inconsciente, dentre outros fatos históricos, científicos e tecnológicos – ensejou a criação
de um novo herói, o super-homem, resgatando, assim, o paradigma do herói mítico,
desta vez, em busca da mãe, das origens paradisíacas, do amor, do “feliz para sempre”
no reino encantado das bem-aventuranças, do seu próprio Eu. Isto foi o que Campbell
comprovou com o seu “herói de mil faces”, por isto ele é considerado um mitopoeta.
São muitos os desafios globais que a humanidade enfrenta: guerras econômicas
e religiosas, epidemias, violência, corrupção, desastres naturais, fome. Tudo isto provo-
ca incuráveis psicopatologias. Pois, como sustentam Ribeiro e Cardoso (2018, p. 70), no
início do século XX, Jung percebeu que o indivíduo moderno estava “psicologicamente
doente, alienado, em desarmonia consigo e com o mundo. Uma das principais causas
dessa crise espiritual foi a crescente subordinação às organizações coletivas” configu-
radas, dentre várias formas, como o consumo capitalista e a submissão aos poderes
sociopolíticos constituídos. O drama continua.
A história e as artes têm mostrado que homens e mulheres precisam enfrentar
grandes males existenciais, necessitam travar uma batalha heroica para vencer as difi-
culdades vivenciadas em todas as instâncias da vida, ambos experimentam as mesmas
inquietações tanto no que concerne aos relacionamentos sociais quanto no que toca aos
sofrimentos psíquicos. O grande desafio é bem viver ou sobreviver num mundo tão
adverso e impiedoso. E o maior destes desafios ainda é superar as limitações da velhice
e o medo da morte.
Ainda que o mito do herói permaneça vivo nos contos de fadas, nas religiões
propiciatórias e de mistérios, nas narrativas contemporâneas, nos sonhos e nas artes,
até na realidade cotidiana, ele vem se transfigurando e revelando novas faces. O herói
psicológico é fruto do tempo e assume novas tarefas desafiadoras. Homens e mulhe-
res, que hoje experimentam as mesmas expectativas e temores, precisam chegar a um
acordo com as forças do inconsciente que atuam na psique pessoal e social para mudar
suas mentalidades e transformar o mundo.

Referências
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