Julioeditor,+TI n.20.p046.CARDOSO
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RESUMO: Este trabalho demonstra a contribuição das teorias do mito para a teoria e crítica literárias.
Conscientes de que a literatura é uma criação mitopoética e que por isto o teórico e o crítico literário
necessitam também do substrato, do fundamento epistemológico da “mitodologia” no difícil processo
interpretativo do objeto literáriomitopoético, consideramos o modelo da jornada do herói mítico
proposto por Joseph Campbell como parâmetro da permanência dos mitos eternos em torno do
qual gravita a construção de inúmeros personagens modernos com o propósito de iluminar o papel
influenciador deste monomito na obra literária, para confirmar a ideia de que a Teoria da Literatura
não pode e nem deve prescindir das teorias do imaginário no seu repertório metodológico. Ele segue
baseado nas teorias de renomados críticos como Campbell, Mircea Eliade, E. Mielietinski, entre outros.
ABSTRACT: This work demonstrates the contribution of myth theories to literary theory and criticism.
Conscious of the fact that literature is a mythopoetic creation and therefore the theoretician and literary
critic also need the substrate, the epistemological basis of “mythodology” in the difficult interpretative
process of the mythopoetic literary object, we consider the model of the journey of the mythical hero
proposed by Joseph Campbell as a parameter of the permanence of the eternal myths around which the
construction of countless modern characters gravitateswith the purpose of illuminating the influential role
of this monomyth in the literary work, to confirm the idea that the Theory of Literature cannot and must
not do without the theories of the imaginary in its methodological repertoire. It follows based on thetheories
of renowned critics such as Campbell, Mircea Eliade, Gilbert Durand, E. Mielietinski, amongst others.
1. Doutora em Letras, Profa. da Universidade Federal de Sergipe, São Cristóvão, SE, Brasil. E-mail: analealca@
yahoo.com.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3181-0551.
Recebido em 20/09/19
Aprovado em 21/12/19
Sartre: “um texto olha-nos e é o que num texto nos olha que é o seu núcleo [...]”.Esse
núcleo pertence ao domínio do mítico”. Para Durand, a fonte de significação de um
poema, de romance, da obra completa de um romancista é o mito, que ele define
como um “fundamento que interessa”, (utilizando o termo usado por Cassirer), um “ser
pregnante” que está dentro de qualquer obra de arte, como reserva cultural, cruzando
o olhar com o leitor. Há uma coalescência entre a literatura profana (na aparência) e o
que “nos olha” na sua linguagem, “que se não é do domínio do sagrado, o é pelo menos
do mistério” (RIBEIRO, 2012, p. 65). Ainda de acordo com Ribeiro (2012, p. 65) “as
narrativas orais e escritas, no presente ou no passado, sempre tiveram um mito basilar.
Há uma narrativa fundante, imagens e enredo dos princípios” e “por trás” dos textos
literários, que são transmitidos através das gerações de poetas, dramaturgos, roman-
cistas, contadores de histórias.
Mircea Eliade foi o primeiro crítico mitopoeta a enunciar o princípio de cor-
respondência entre o texto literário e as estruturas míticas, interpretando a literatura
dita “profana” e esse “núcleo que nos olha e interroga pelo seu além-mítico”, seguido,
depois, por muitos mitólogos e estudiosos da religião que tiveram uma percepção da
consonância dos grandes esquemas míticos nas artes (DURAND, 1982, p. 67).
Por seu turno, a literatura cria uma fissura entre o “real” e o imaginário ao
transferir para o realismo fantástico ou para uma dimensão metafísica o incompreen-
sível, cujo vazio pode ser preenchido pelo mito, que possibilita viver o irrespondível
sem nenhuma explicação lógica visto que revela certas “verdades” da vida humana que
satisfazem à razão e à emoção. Segundo Jung (2000, p. 158), “Por isso, o intelecto cien-
tífico sempre sucumbe às tendências iluministas ao encastelar-se nos enigmas do mito
com a esperança de banir definitivamente o fantasma das explicações lógicas”, pois o
mito abre-se como uma janela a todos os ventos e presta-se a todas as interpretações.
Northrop Frye (1994, p. 136), “para quem o núcleo do princípio genético da
poesia é o mito”, admite que todo escritor literário é um mitopoeta quando afirma
que “a mitologia é e sempre foi um elemento integrante da literatura”. No entender
de Ribeiro (2012, p. 66), a crítica mitológico-ritualista dos estudos literários conside-
ra, nas últimas décadas, que a “lírica assimilou elementos míticos diretamente dos
rituais, das festas populares e dos mistérios religiosos”. Ribeiro (2008, p. 61) reitera
ainda que a literatura contemporânea, ao que parece, continuou bebendo na mesma
fonte cultural, “não obstante os mitos antigos terem sido parcialmente deslocados
para uma posição periférica, tornando-se obsoletos ou sendo transformados” por
outros modos de se viver e de criar.
Segundo Patai (1974, p. 88), estudiosos, escritores, críticos, sociólogos, antro-
pólogos, psicólogos, historiadores, arqueólogos, professores e poetas que evidenciam,
descobrem, estudam mitos podem ser chamados de mitopoetas porque se “convertem
O herói é todo homem ou mulher que conseguiu vencer suas limitações his-
tóricas pessoais e locais e alcançou formas normalmente válidas, humanas.
As visões, ideias e inspirações dessas pessoas vêm diretamente das fontes
primárias da vida e do pensamento humano. Eis por que falam com elo-
quência, não da sociedade e da psique atuais, em estado de desintegra-
ção, mas da fonte inesgotável por intermédio da qual a sociedade renasce.
(CAMPBELL, 2000, p. 43).
os próprios limites, em benefício da causa social e/ou cultural. Campbell (2000, p. 121)
defende que ele abandona velhos padrões existenciais e funda, a partir de uma “ideia
semente-germinal”, algo potencialmente novo: uma era, uma religião, uma cidade,
uma modalidade de vida; por isso é considerado um inovador que revitaliza a tradição,
desconstruindo um amontoado de clichês anatômicos para validar as mudanças pelas
quais luta, esforçando-se para corrigir falhas e reparar carências que suprem as neces-
sidades de uma época.
Campbell esquematiza o monomito da jornada do herói mítico servindo-se do
percurso padrão de aventura humana mitológica apresentada nos rituais de passagem
de diferentes culturas e épocas, obediente à sequência: separação-iniciação-retorno.
Não obstante serem encontradas pequenas variações na morfologia da aventura, nos
papéis envolvidos, nas vitórias obtidas, o modelo da aventura resume-se na ação de
um homem excepcional, que vem de um mundo harmonioso, tranquilo, e se aventu-
ra em uma região de prodígios sobrenaturais, enfrentando fabulosas forças com que
trava grande luta. Assim, conforme estabelece Campbell (2000, p. 61), “o herói recebe
um chamado, ordem ou convite, anunciado pelo arauto”, uma figura ambígua, às vezes,
aterrorizadora, maléfica, sombria, podendo ser representado por animal, por um es-
tranho, por um ente etéreo ou divino, material ou sobrenatural, que o convoca para
realizar uma tarefa difícil. Aceitando o chamado, o herói parte para um lugar distan-
te, desconhecido e perigoso, onde executará façanhas sobre-humanas, sofrerá, lutará,
provará delícias inimagináveis, desvelará enigmas, morrerá e renascerá.
Para orientar o caminho difícil e ajudar enfrentar os obstáculos do limiar de pas-
sagem, o herói recebe um auxiliar sobrenatural, figura benigna que fornece amuletos
contra as forças titânicas que o perseguem. Às vezes, o auxiliar sobrenatural assume a
função de guia, mestre, barqueiro e condutor de almas. O herói enfrenta uma sucessão
de provas. Entretanto, ele estará sendo ajudado por um poder benigno, sobre-huma-
no, sortilégios oferecidos pelas forças poderosas que o auxiliam. Vencidas todas as
barreiras e ogros, acontece sempre casamento místico (hierósgamos), união sexual do
herói com a Rainha-Deusa do mundo. Eis seu grande triunfo.
A apoteose do herói, que pode ser a própria divinização, ocorre no nadir da jor-
nada, após sua suprema provação. A recompensa é o reconhecimento e bênção do Pai,
seu iniciador e mestre, e o encontro com a Deusa, que está encarnada em toda mulher.
Terminada a busca, tendo encontrado, recebido espontaneamente ou roubado o objeto
e abençoado pelos deuses, o herói deve retornar com o troféu transformador da vida:
a sabedoria, o velocino de ouro, a princesa adormecida, o elixir da cura, etc.
Campbell (2000, p. 28) enfatiza a necessidade de se conservar os mitos para
preservar o homem e atesta a impossibilidade de se negar o herói arquetípico, pois “o
herói morreu como homem; mas, como homem eterno − aperfeiçoado, não específico
e o dizível inefável”, isto é, por atingir uma verdadeira aventura em busca do Si-mesmo,
onde o herói não é o homem superdotado, mas o indivíduo angustiado, ansioso para
descobrir e atingir a verdade que representa a própria humanidade. Tal imagem do
herói transita até a contemporaneidade.
Ainda que os deuses arcaicos tenham sucumbido ante a força e grandeza dos
deuses da tela do cinema e da televisão, cada pessoa, segundo Campbell (2000, p. 15),
“tem seu próprio panteão do sonho privado e da arte”, até porque, “os símbolos da mi-
tologia não são fabricados; não podem ser ordenados, inventados ou permanentemente
suprimidos porque são produções espontâneas da psique e cada um deles traz em si,
intacto, o poder criador de sua fonte”. O herói surge transfigurado, na literatura con-
temporânea e avança em direção à sua humanização na pele da personagem que atua
num cotidiano desmitologizante, tornando-se, muitas vezes, um anti-herói. O ciclo dos
anti-heróis teve início com o herói problemático Dom Quixote − o primeiro da litera-
tura moderna − restando à criação literária, depois dele, as alternativas de destituir
o herói divino, trazê-lo de volta para conviver com o mundo moderno ou manter um
limite entre o herói divino e o humano.
O herói moderno é um indivíduo que dessacraliza o semideus e age dentro das
limitações humanas, que deseja ser o que é. Na literatura moderna o destino do herói
é a sua iniciação, cuja ação tem como origem um erro porque o indivíduo é o grande
problema; se na tragédia clássica o que derrota o herói é a luta contra a moira, e na epo-
peia, os sentimentos de amor e ódio o tornam espiritualmente preparado para o bom
combate, na literatura contemporânea quem transforma o herói é a própria impotência
mediante o mal coletivo que aparece com muitas configurações.
O leitor não mais se deleita com os super poderes do herói divino, mas vibra
com sua capacidade de tornar dizível o indizível e conhecido o desconhecido. Além
disto, ele deixa de ser um herói coletivo para se tornar um herói de si mesmo, de sua
individuação, vivendo as agruras do espírito humano e dando sentido ao seu ser no
mundo. Os escritores modernos passaram a narrar façanhas de homens vencidos pelo
amor, de sonhadores que buscam soluções românticas para seus problemas, que agem
dentro dos limites humanos, desejando tão somente ser o que é, dessacralizando o
semideus clássico das narrativas mitológicas, das lendas e dos contos de fada. Na litera-
tura contemporânea, o destino do herói é a sua própria iniciação na árdua jornada de
viver. Todavia, ainda assim, o herói mítico ressurge transfigurado, avançando em dire-
ção à sua humanização na pele de personagens comuns, muitas vezes como anti-heróis
que escapam do cotidiano desafiador.
Considerações finais
O processo de remitologização na literatura – fenômeno de retomada e transfor-
mação dos mitos que resultou da depressão pós-guerra, do imediatismo capitalista, da
fragmentação do sujeito, das descobertas intergalácticas, da empolgação dos estudos do
inconsciente, dentre outros fatos históricos, científicos e tecnológicos – ensejou a criação
de um novo herói, o super-homem, resgatando, assim, o paradigma do herói mítico,
desta vez, em busca da mãe, das origens paradisíacas, do amor, do “feliz para sempre”
no reino encantado das bem-aventuranças, do seu próprio Eu. Isto foi o que Campbell
comprovou com o seu “herói de mil faces”, por isto ele é considerado um mitopoeta.
São muitos os desafios globais que a humanidade enfrenta: guerras econômicas
e religiosas, epidemias, violência, corrupção, desastres naturais, fome. Tudo isto provo-
ca incuráveis psicopatologias. Pois, como sustentam Ribeiro e Cardoso (2018, p. 70), no
início do século XX, Jung percebeu que o indivíduo moderno estava “psicologicamente
doente, alienado, em desarmonia consigo e com o mundo. Uma das principais causas
dessa crise espiritual foi a crescente subordinação às organizações coletivas” configu-
radas, dentre várias formas, como o consumo capitalista e a submissão aos poderes
sociopolíticos constituídos. O drama continua.
A história e as artes têm mostrado que homens e mulheres precisam enfrentar
grandes males existenciais, necessitam travar uma batalha heroica para vencer as difi-
culdades vivenciadas em todas as instâncias da vida, ambos experimentam as mesmas
inquietações tanto no que concerne aos relacionamentos sociais quanto no que toca aos
sofrimentos psíquicos. O grande desafio é bem viver ou sobreviver num mundo tão
adverso e impiedoso. E o maior destes desafios ainda é superar as limitações da velhice
e o medo da morte.
Ainda que o mito do herói permaneça vivo nos contos de fadas, nas religiões
propiciatórias e de mistérios, nas narrativas contemporâneas, nos sonhos e nas artes,
até na realidade cotidiana, ele vem se transfigurando e revelando novas faces. O herói
psicológico é fruto do tempo e assume novas tarefas desafiadoras. Homens e mulhe-
res, que hoje experimentam as mesmas expectativas e temores, precisam chegar a um
acordo com as forças do inconsciente que atuam na psique pessoal e social para mudar
suas mentalidades e transformar o mundo.
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