67057-Texto Do Artigo-217916-1-10-20240606
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UMA ANÁLISE HISTÓRICO-LITERÁRIA SOB A
PERSPECTIVA ARISTOTÉLICA DA ÉTICA DAS
VIRTUDES
ABSTRATC: This article aims to analyze the myth of Prometheus, created by Hesiod
in the 7th century BC and present in works such as Theogony and Works and Days,
under the Aristotelian vision of virtue ethics, in order to answer the question:
1
Doutorado em História Comparada (UFRJ). Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. ORCID:
https://orcid.org/0000-0003-4013-5375. E-mail: dolores.puga@ufms.br
2
Mestranda em Letras (UFMS). Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. ORCID:
https://orcid.org/0000-0002-7893-0182. Email: marafariassilverio@gmail.com
CORDIS: Revista Eletrônica de História Social da Cidade, São Paulo, v. 1, n. 31, jan-jun 2024, e67057.
Prometheus was a daredevil or indeed courageous man? To this end, the work is
based on the reading of Aristotle's main work on ethics, namely Nicomachean Ethics,
and the aforementioned works of Hesiod, in which it is possible to perceive the
emblematic figure of the fire thief. Although the two authors are located in different
temporary spaces, the aim is to carry out an analysis comparing these nuances of
looking between distant historical periods, considering the thematic focus of ethics,
specifically; Thus, the work proposes to bring together the two writings. The article is
structured with an introduction, through which important concepts about literature and
its relevance for the formation of societies are recalled; and with three subsequent
sections, the first dealing with the concepts of vices and virtues for Aristotle; the second
deals with one of these virtues, courage, and seeks to expose the two vices linked to
it: cowardice and temerity; and the third section that finally sets out to answer the
primary question: Prometheus, reckless or courageous? It is hoped that this work will
be able to provoke reflections on the ethics of virtues and how they present themselves
in literature and in concrete life.
KEYWORDS: Virtue ethics; Aristotle; Hesiod; Prometheus; Historical-literary analysis.
10.23925/2176-4174.v1.2024e67057
Introdução
A literatura tem sido um dos mais eficazes instrumentos de transmissão de
conhecimento ao longo dos séculos, mas não somente isso: é, principalmente, um
mecanismo eficaz para perpetuar a cultura de um povo, estabelecer domínios
políticos, e um meio poderoso para guiar a sociedade (Venturini, 2005; Gonçalves,
2014).
Isso porque a literatura per si3 dá sentido à vida, especialmente porque trabalha
com elementos presentes nesta. Conforme Antônio Cândido (2006, p. 48-60), a literatura
muitas vezes tem um caráter didático, capaz de comunicar-se com várias gerações, e,
por isso mesmo, ensinar a todas elas. Cândido acreditava que a literatura, especialmente
a erudita, ou como mais conhecida atualmente, a clássica, é capaz de se ajustar a
contextos variados, principalmente em razão da diversificação das palavras utilizadas (o
que ele chama de plurivalência da palavra). Isso ocorre em razão da tal plurivalência, a
3
Locução latina que significa “por si mesmo” ou “independentemente de outros”.
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qual permite “ao texto uma elasticidade” (Cândido, 2006, p. 60), fazendo com que o leitor,
independentemente da época em que esteja situado, possa compreender a obra de
maneira satisfatória.
Dentro dessa mesma perspectiva, os mitos gregos, por exemplo, eram (são)
capazes de ensinar, instruir, emocionar, cativar e mesmo de orientar os ouvintes que
meditam sobre sua profunda sabedoria. Sobre isso, Mircea Eliade assevera que:
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Os Mitos são estórias que contêm representação quanto à vida
prática, fornecendo modelos de contuda e também apontando
aspectos gerais da condição humana, além de apontar a origem
da vida, dos seres humanos, dos seres animados e inanimados
produzindo, assim, um vasto arcabouço cultural para aqueles que
têm contato com eles (ELIADE, 2019, p. 15).
Desse modo, o indíviduo que tem acesso aos mitos, especialmente à Mitologia
Grega tem acesso, também, a modelos a ser seguidos, bem como sabem como agir
melhor em determinadas situações de sua vida. Todas essas questões auxiliam no
processo de construção de uma determinada visão de ética e de moral, a qual acaba por
penetrar o âmago do tecido social. Essa permeabilidade pode ser verificada, por
exemplo, nos escritos dos mais variados teóricos, desde historiadores até mesmo
filósofos e sociológos.
Nesse viés, a análise dessas visões, bem como a comparação entre perspectivas
sobre um mesmo assunto (neste caso em especial, o mito grego) por óticas histórico-
literárias diferentes torna-se extremamente profícua e útil para compreender a visão
vigente. Assim é que se corrobora a visão de Marcel Detienne, segundo a qual é
preciso“conhecer a totalidade das sociedades humanas, todas as civilidades possíveis
e imagináveis” (Detienne, 2004, p. 46). Além disso, é mister considerar “comparar o
incomparável”, isto é, entender que não se deve eliminar a opção de comparar
sociedades em épocas distantes umas das outras (Detienne, 2004, p. 47).
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um arcabouço teórico excepcional para que se possa fazer o exercício comparativo.
E ainda que “toda a vida da alma humana” seja “um movimento na penumbra”4, a
partir das leituras dos mitos é possível fazer com que essa penumbra seja suavizada,
colocando luz sobre as etapas da vida de cada um, das mais simples, como uma mera
escolha entre sair de casa ou ficar nela, às mais complexas, como os dilemas éticos e
morais que permeiam a vida do ser humano. Assim, o leitor, ao tomar contato com a
literatura grega, defronta-se com diversos mitos que o tiram da zona de conforto,
obrigando-o a repensar questões que, antes, poderiam passar despercebidas. Já na
Grécia Antiga, por exemplo, houve o entendimento de que nem toda lei era justa e,
portanto, nem toda lei deveria ser cumprida cegamente, sem questionamento e
inquirição (Borges, 2011; Ramos, 2013; Verdi, 2005). Obviamente, essa percepção foi
repassada de geração à geração por meio das artes e da literatura.
4
PESSOA, F. Livro do Desassossego. São Paulo: Penkhal. 2021, p.48.
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À exceção do mito do próprio Prometeu, o qual será abordado mais adiante, há o
mito de Antígona que bem ilustra essa visão. A princesa grega foi proibida de sepultar o
próprio irmão por questões políticas. Vale ressaltar que o sepultamento para os gregos
era algo de valor religioso (Verdi, 2005). Hoje, ainda funciona assim: se os seres
humanos não veem o sepultamento pelo olhar religioso, veem-no pelo viés sentimental,
psicológico.
Antígona desobedeceu a ordem do rei Creonte, que também era seu tio, e
sepultou seu irmão; como resultado, foi duramente punida e, ainda, ocasionou a morte
de mais duas pessoas (Verdi, 2005). Assim como Antígona, Prometeu desafiou ordens;
no entanto, a ordem desafiada não era de um rei, mas de um deus e, pior: o maior dos
deuses: Zeus. O que ambos os mitos ensejam de discussão é: as regras instituídas
podem ser desobedecidas? Existem direitos absolutos? Toda lei é ética apenas por ser
lei? etc. essas discussões são possíveis porque, conforme salienta Pesavento (1998, p.
21):
Sendo uma das principais fontes de narração, a Mitologia Grega apresenta-se como um
elemento essencial para compreender a condição humana, sua consciência, sua
formação moral e ética e não apenas como mero elemento intelectual, isto é, uma
instrução que não é encerrada na simples reprodução de mitos de uma forma sem
sentido. Pelo contrário, a análise da mitologia grega, acompanhada de um olhar
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histórico-filosófico tem potencial para clarear a penumbra da vida e fazer com que os
indivíduos sejam capazes de trilhar o melhor caminho da melhor maneira possível.
Além disso, neste trabalho se considera o período histórico em que Aristóteles está
situado (século IV a.C) e se busca compreender como essa visão mais moderna da ética
(se comparada à perspectiva do próprio Hesíodo, o qual está localizado no século VII a.
C) pode ser aplicada ao mito hesiódico de Prometeu. Ademais, é pelo exercício de
compreender diversas culturas (ainda que de um mesmo território, nação, povo), do
mesmo modo como elas próprias se compreenderam e “depois compreendê-las entre si;
reconhecer as diferenças construídas, fazendo-as funcionar umas em relação às outras,
é bom, é mesmo excelente para aprender a viver com os outros” (Detienne, 2004, p. 67).
Dentro dessa mesma perspectiva, vale ressaltar o apresentado por Torres (2020,
p. 98), quando esta relembra que o historiador comparativista não deve fazer uma análise
meramente geográfica ou econômica das literaturas, mas precisamente considerar o
homem, seus sentimentos, emoções, ideias, comportamentos, quadros morais, crenças
e costumes, e isso, obviamente, perpassa as questões meramente territoriais,
financeiras e demográficas.
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trabalha os já conhecidos conceitos de justiça, ética e moral presentes em Hesíodo,
reforçando seu discurso. Tenciona-se esboçar uma análise comparativista entre ambas
as literaturas, tanto a de Aristóteles quanto a de Hesíodo, a fim de verificar como a visão
aristotélica, teorizada em Ética a Nicômaco, entenderia o personagem Prometeu, quase
2 séculos depois. Não é demais lembrar, contudo, que esse é meramente um esboço,
não esgotando todas as possibilidades.
Vícios e Virtudes
Embora o conceito de felicidade nos dias atuais esteja mais ligado às
realizações pessoais, à saúde, bem-estar e vida financeira estável (Ferraz; Tavares;
Zilberman, 2007), nem sempre foi assim. Numa perspectiva histórica, a felicidade
estava ligada a outras questões, como a coletividade. Em meados do século IV a. C.,
Aristóteles, proeminente filósofo grego, afirmava que seria possível encontrar a
eudaimonía (conceito grego que se traduz por felicidade) era a finalidade última da
vida; mas não essa felicidade como hoje é concebida. Ao contrário, na visão de
Aristóteles, eudaimonía era uma atividade contínua e não simplesmente um estado
de espírito (Silva, 2015).
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somente um estado passivo de espírito. Esse agir sobre a realidade, estando o homem
passível de bem deliberar (equipado de todas as faculdades e instrumentos para
decidir voluntariamente) sobre os seus atos é o que dirá se o homem é um ser virtuoso
ou não virtuoso. Assim, de acordo com essa visão, é possível concordar com aquilo
asseverado por Silva (2015, p. 8) “são as nossas escolhas e as nossas ações que nos
constituem moralmente”.
Desse modo, a virtude não é algo intrínseco ao homem, pelo contrário, ela é
adquirida por meio do hábito, da prática cotidiana, da educação da vontade. Segundo
essa visão, aquilo que é natural ao homem não pode ser mudado, portanto, as virtudes
morais não poderiam ser essenciais do homem, não fazem parte da sua natureza
primeva. Destarte, para Aristóteles, os seres humanos não agem adequadamente por
já possuírem a virtude, mas desenvolvem a virtude ao agirem acertadamente; de igual
modo, ao tomarem decisões erroneamente, tornam-se viciosos (EN, III, 10, 1113b); os
indivíduos teriam, então, a potência (capacidade para realizar algo), podendo ou não
a colocar em prática, transformando-a em ação (EN, II, 25, 1103a). Conforme o próprio
pensador salienta:
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em situações particulares de sua vida. Desse modo, a ética aristotélica está
diretamente ligada ao saber prático. Para se alcançar a virtude é preciso,
indispensavelmente, agir.
Neste ponto é que entra a relação feita neste trabalho, tendo em vista o agir
virtuoso segundo o pensamento aristotélico e os potenciais símbolos contidos nos
mitos: o homem poderá mobilizar os diversos conhecimentos, inclusive aqueles
advindos da leitura literária dos mitos, a fim de nortear suas decisões. Caso o indivíduo
não possua esse arcabouço, como já mencionado, torna-se muito mais complicado
direcionar suas vontades, suas inclinações e tomar decisões mais adequadas em
cada um dos contextos diversos que se apresentarem em sua vida, pois lhe falta
padrões, modelos, representatividade; assim, é também por meio da aplicação de
diretrizes universais, constantes nesse arcabouço, que os homens podem guiar suas
vidas.
As virtudes, conforme visto, podem ser aniquiladas pelo seu excesso ou sua falta,
precisando para ser considerada virtude, estar localizada no meio termo de dois
extremos. Aristóteles elenca algumas virtudes e alguns vícios em sua obra. Dentre as
virtudes éticas (morais) encontram-se: coragem, temperança, liberalidade,
magnanimidade, calma, veracidade, espirituosidade, amabilidade, justa indignação,
dentre outras. Sendo que os extremos (excessos e faltas, respectivamente, portanto
vícios) da coragem são a temeridade e a covardia5; da temperança são a
intemperança e a insensibilidade6; da liberalidade são a prodigalidade e a avareza 7;
da magnanimidade (ou magnificência) são a falta de gosto e a mesquinharia 8; da
calma são a irascibilidade e indiferença9; da veracidade são a arrogância e
reticência10; da espirituosidade são a insolência e a rusticidade11; da amabilidade são
bajulação e mal-humor e desordem12. Para este artigo, contudo, pretende-se abordar
a coragem, como virtude ética/moral, e seu extremo que é um excesso, a temeridade.
5
EN II, 1107b.
6
EN II, 5, 1107b.
7
EN II, 10, 1107b.
8
EN II, 20, 1107b.
9
EN II, 5, 1108a.
10
EN II, 20, 1108a.
11
EN II, 25, 1108a.
12
EN II, 25,1108a.
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10
Em relação à prática daquilo que é virtuoso, Aristóteles faz uma interessante
observação. Ele considera que existem seis objetos passíveis de escolha: sendo três
de desejo e, igualmente, três de repulsa. Os de desejo seriam relativos às coisas
belas, úteis e agradáveis, enquanto seus opostos seriam as vis, as inúteis e as
dolorosas. Quando o ser humano pratica ações, é comum, segundo aponta
Aristóteles, que procure fugir do que é doloroso e perseguir o que é prazeroso. Por
isso, o filosófo concorda com seu par, Platão, acerca de ser imprescindível uma
educação da vontade, só assim o homem torna-se, de fato, virtuoso. 13
Para iniciar sua explanação detalhada acerca das virtudes, Aristóteles inicia definindo
o que é o medo, uma vez que um dos extremos da coragem, primeira das virtudes
explicadas, é, justamente, o medo; além disso, também aponta o argumento negativo:
define primeiro o que não é característica de um homem corajoso para, só então,
definir o que de fato é aquele que possui a virtude da coragem.
Segundo o autor, “o medo é definido como uma expectativa do mal” (EN, III, 5, 1115ª).
Desse modo, é compreensível que se tema alguns males, como o desprezo — o qual
advém de um sentimento digno —, de modo que não ter nenhuma espécie de medo
não implica dizer, necessariamente, que o homem é corajoso. Nessa mesma esteira,
também não seria corajoso o homem que, durante afrontas e açoites, mostra-se
arrogante. Aristóteles então, finalmente, expõe como a virtude da coragem se
apresenta em um indivíduo: em ocasiões mais nobres. De acordo com ele, “será
chamado corajoso aquele que permanece sem medo na presença da bela morte ou
de algum perigo iminente que pode levar à morte” 14, e conclui dando um exemplo: a
guerra. Assim, de forma sucinta, Aristóteles define o homem corajoso como:
13
EN, II, 10, 30, 1104b.
14
EN, II, 30, 1115a.
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A covardia, nesse sentido, seria então o excesso de medo inclusive em situações,
locais, contextos cujo medo sequer deveria ser cogitado. Aristóteles define o homem
covarde como um homem sem esperança, enquanto o homem corajoso seria aquele
que tem confiança e uma disposição de caráter voltada para a esperança. Em última
instância, por analogia, o homem covarde seria desesperançoso, pois se entrega a
todo e qualquer medo; enquanto o homem corajoso seria um homem confiante 15.
No meio do caminho, depara-se com uma pequena vila devastada e não encontra
moradores a quem questionar. Ao seguir adiante, vê uma bela moça a quem indaga
do que havia acontecido àquela região; tratava-se de uma princesa, filha do rei
daquela província. Ela conta que existe um dragão feroz, matando a tudo (plantação,
animais) e como último recurso estaria ela entregando a própria vida para salvar seu
povo. Dom Jorge, então, prontamente a responde: “— Acaso pensas que um cavaleiro
deixar-te-ia nessas condições?”18
É corajoso, pois, o homem que encara a necessidade de fazer algo cuja não
realização traria vergonha porque demonstraria fraqueza fugir da responsabilidade de
realizar coisas nobres para fugir da dor. Na visão aristotélica, fugir do que traz dor,
embora seja nobre é um dos atributos do covarde, na medida em que este não é capaz
de dominar sua vontade, e de lutar pelo que é justo, em vez de se resignar frente às
circunstâncias. Não pode ser corajoso, ainda, aquele que é obrigado a sê-lo. Tal como
15
EN, II, 1116a.
16
EN, II, 10, 1116ª.
17
ESEWEIN, J. B.; STOCKARD, M. São Jorge e o Dragão. In: BENNETT, W. J. (org.). O livro das
virtudes para crianças. RJ: Editora Nova Fronteira, 2021.
18
Ibid, p. 57.
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12
o exemplo de Dom Jorge, o homem realmente dotado de coragem é aquele que o é
por decisão própria, pela deliberação. É um ato da vontade, como salientado pelo
próprio Aristóteles.
Como visto, longe de ser uma virtude, a temeridade é o outro extremo da régua,
por isso é chamada de vício, tal qual a covardia. Assim como esta é prejudicial ao
indivíduo e à sociedade, o excesso de coragem também o é. Como Aristóteles
salientou, a falta aniquila a virtude; mas o seu excesso também.
Sabe-se, além disso, que ele viveu numa época bastante característica. A
sociedade ainda não era letrada; mal possuindo escrita, desconhecia a
organização das Cidades-Estados. No entanto, no século VII a.C essa sociedade
grega começou a passar por diversas e profundas mudanças. Embora a sociedade
continuasse analfabeta, começou a receber influência da escrita de nações
vizinhas; e a desenvolver um sistema monetário (Regino, 2010, p. 10).
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p.10), ele teria sido supostamente assassinado por familiares de uma mulher
seduzida por ele. Contudo, sua morte não foi capaz de encerrar sua grandiosa e
importante obra que até hoje ecoa não só pela Grécia, mas por todo o mundo.
Atlas foi punido por Zeus e condenado a sustentar os céus por tentar se
rebelar contra o senhorio deste. Epimeteu, alcunhado de estúpido, carrega consigo
o peso de ter trazido “males aos homens que se alimentam de pão”, e Menécio,
chamado de ilustre, mas também de orgulhoso, presunçoso e arrogante, foi jogado
do monte Érebo por Zeus, que o acertou com raios fumegantes 19.
19
HESÍODO. Teogonia. Trad.: Henry Bugalho. Curitiba, PR: Kotter Editorial, 2020.
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14
ciente das intenções de Prometeu:
Por isso, o deus, em seu íntimo, já previa os males que sobreviriam aos
seres humanos:
Prometeu, então, rebela-se mais uma vez contra Zeus, dessa vez em
benefício dos homens — provavelmente numa tentativa de tentar consertar o mal
que fizera e cuja consequência recaíra sobre quem nada tinha feito, no caso, os
homens. Segundo Hesíodo, o filho de Jápeto teria roubado a chama de fogo e a
escondido no oco de uma árvore; isso desencadeou um sentimento de revolta em
Zeus, pois era uma clara ofensa a autoridade deste. Por isso, “para compensar o
roubo do fogo, Zeus enviou um mal para os homens” (TRAB. DIAS., VII, 565-570).
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15
Pandora, a primeira mulher, criada a partir da junção de barro e água, teria
sido a punição à humanidade em decorrência do roubo do fogo. Mais uma vez, por
causa das más ações de Prometeu, os humanos, de modo geral, sofreram. A
mulher é descrita por Hesíodo como “agregadas a obras terríveis” (TEO., VII, 600-
605) ou, simplesmente como aquela que “se ocupa em obras malévolas” (TRAB.
DIAS., VII, 590-601). Não suficiente, o autor descreve o matrimônio como parte
dessa punição.
20
Héracles na mitologia grega; e Hércules na mitologia romana.
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16
perceber como o poeta detalha com bastante precisão o caráter de Prometeu,
colocando-o como “aquele que pensa antes”, enquanto descreve-o como astuto e
de mente tortuosa (TRAB. DIAS, VII, 47-52), bem como artificioso e, novamente,
de curvo pensar (TEO., VII, 510), além de hábil (TEO., VII, 507-513), e de
astuciosos recursos (TEO., VII, 521-534). Esses adjetivos enfatizam e procuram,
ao que parece, justificar a culpa que este carrega tendo total consciência de suas
atitudes e, portanto, sendo merecedor do castigo subsequente. Prometeu, nesse
sentido, seria apenas um homem rebelde, movido por sentimentos afrontosos que
nutria contra Zeus e pouco disposto a ceder à autoridade recém-conquistada deste.
Contudo, outro ponto que leva a uma nova reflexão, demonstrando que as
respostas à pergunta inicial não são tão simples, é quanto ao tipo de castigo
imposto ao personagem mitológico e como ele lida com isso. Segundo o proposto
por Aristóteles, como apresentado anteriormente, é medíocre e tolo aquele tipo de
homem que suporta sofrimentos sem nenhuma finalidade nobre, elevada. O
primeiro castigo imposto a Prometeu, nesse viés, não o trouxe qualquer tipo de
elevação e nem era intrinsecamente nobre, pois prejudica apenas a humanidade e
em relação ao próprio personagem foi, de fato, merecido, ao menos é o que se
pode concluir. Entretanto, como este amava os seres humanos, cometeu um outro
ato. Desta vez, não foi movido por desejo de engodo, mas de justiça. Queria
devolver aos homens o que lhes foi tirado sem ter esses culpa alguma.
É aqui que o mito muda de figura; agora o anti-herói (se assim puder ser
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nomeado) e rebelde converte-se numa figura com psicologia mais sofisticada e
caráter mais enobrecido. Prometeu, o mesmo temerário capaz de cometer atos de
rebeldia contra o deus dos deuses, agora transformara-se no padrão de herói
conhecido em todo o mundo: aquele que se sacrifica em prol de um bem maior;
neste caso, o bem maior seria o fogo, o qual proporcionava condição de
subsistência, isto é, a vida aos seres viventes na terra.
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cometidas involuntariamente; enquanto que no ato cometido de modo voluntário, a
pessoa está equipada dos instrumentos que lhe possibilitam uma escolha
consciente.
Assim, Prometeu demonstra ora virtude, ora vícios. Não é essa a realidade
dos seres humanos? Acaso há alguém virtuoso em sua totalidade, capaz de jamais
cometer erros e de agir por impulso? Acaso existem homens cujo controle e
domínio de suas vontades esteja totalmente completo? Assim, o mito possibilita a
reflexão quanto ao que o filosófo também já previa: a virtude se manifesta na
prática; e, sendo assim, é possível que nem sempre os indivíduos sejam virtuosos;
embora em boa parte das vezes possam ser.
Considerações finais
Ao contrário do que se vê na atualidade, para Aristóteles, a felicidade não é um
conceito que nasce das necessidades do indivíduo de ser suprido em todos os âmbitos
e esferas de sua vida; mas está diretamente ligado ao que este indivíduo entrega ao
mundo, à sociedade, à pólis. Daí que para que seja possível alcançar a felicidade, é
preciso, antes, alcançar virtudes, essas, sim, que poderão trazer alegria e plena
realização não só individualmente, como também coletivamente.
Contudo, os seres humanos atuam em suas esferas de vida prática de forma correta
não por possuírem virtudes intrínsecas a si próprios, e sim as desenvolve conforme
vão vivendo. Por isso, Aristóteles dizia que primeiro o ser humano age corretamente
e depois ele é, por isso, virtuoso; de modo que a virtude não tenha sido dada a ele,
mas tenha sido por ele conquistada, treinada, por meio da educação da vontade, da
sedimentação de bons hábitos.
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O homem, nesse sentido, é responsável por suas próprias ações, sendo capaz de
escolher tanto o caminho correto quanto o incorreto, pois se é capaz de perseguir o
que é belo, útil e agradável é igualmente capaz de perseguir o feio, o vil, o inútil,
cabendo a ele, portanto, a responsabilidade sobre suas próprias ações, o
protagonismo de sua vida.
Sendo isso possível ao homem, então, cabe salientar que ele pode escolher tanto agir
virtuosamente, sendo, portanto, virtuoso caso isso seja feito reiteradas vezes; como
pode optar por agir viciosamente, sendo, por conseguinte, vicioso caso isso seja feito
reiteradas vezes. A virtude seria o meio-termo entre dois extremos, um
correspondente à falta e outro correspondente ao excesso desse meio-termo. Assim,
neste artigo abordou-se com mais profundidade a virtude da coragem e seus dois
extremos, a covardia (falta) e a temeridade (excesso).
Como o objetivo inicial consistia em analisar a obra de Hesíodo tendo em vista o mito
de Prometeu, viu-se que o personagem estava mais adequadamente atrelado à
temeridade e à própria coragem, ao meio-termo. Dessa forma, assim como ocorre
com os seres humanos na vida real, concreta, o personagem demonstra sua
complexidade em ora se apresentar como um completo temerário, rebelde e insolente
e ora por se comportar como um verdadeiro homem corajoso, capaz de suportar os
piores sofrimentos para alcançar um fim nobre.
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