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PROMETEU CORAGEM OU TEMERIDADE?

:
UMA ANÁLISE HISTÓRICO-LITERÁRIA SOB A
PERSPECTIVA ARISTOTÉLICA DA ÉTICA DAS
VIRTUDES

PROMETHEUS, COURAGE OR TEMERITY?: A


HISTORICAL-LITERARY ANALYSIS FROM THE
ARISTOTELLIAN PERSPECTIVE OF VIRTUES ETHICS

Dolores Puga Alves de Sousa1


Mara Cléia Barbosa de Farias Silvério2

RESUMO: O presente artigo propõe-se a analisar o mito de Prometeu, criado por


Hesíodo no século VII a.C. e presente em obras como Teogonia e Trabalhos e Dias,
sob a visão aristotélica da ética das virtudes, a fim de responder à questão: Prometeu
era um homem temerário ou de fato corajoso? Para tanto, o trabalho calca-se na
leitura da principal obra de Aristóteles sobre a ética, a saber Ética a Nicômaco, e nas
obras supracitadas de Hesíodo, nas quais é possível perceber a figura emblemática
do ladrão de fogo. Embora os dois autores estejam situados em espaços temporários
diferentes, busca-se fazer uma análise comparando essas nuances de olhar entre
períodos históricos distantes, considerando o recorte temático da ética,
especificamente; assim, o trabalho se propõe a fazer uma aproximação entre os dois
escritos. O artigo estrutura-se com uma introdução, por meio da qual são relembrados
conceitos importantes acerca da literatura e de sua relevância para a formação das
sociedades; e com três seções subsequentes, a primeira tratando dos conceitos de
vícios e virtudes para Aristóteles; a segunda versando sobre uma dessas virtudes, a
coragem, e procura expor os dois vícios a ela atrelados: a covardia e a temeridade; e
a terceira seção que finalmente se propõe a responder à questão primordial:
Prometeu, temerário ou corajoso? Espera-se com este trabalho ser possível suscitar
reflexões sobre a ética das virtudes e como elas se apresentam na literatura e na vida
concreta.
PALAVRAS-CHAVE: Ética das virtudes; Aristóteles; Hesíodo; Prometeu; Análise
histórico-literária.

ABSTRATC: This article aims to analyze the myth of Prometheus, created by Hesiod
in the 7th century BC and present in works such as Theogony and Works and Days,
under the Aristotelian vision of virtue ethics, in order to answer the question:

1
Doutorado em História Comparada (UFRJ). Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. ORCID:
https://orcid.org/0000-0003-4013-5375. E-mail: dolores.puga@ufms.br
2
Mestranda em Letras (UFMS). Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. ORCID:
https://orcid.org/0000-0002-7893-0182. Email: marafariassilverio@gmail.com

CORDIS: Revista Eletrônica de História Social da Cidade, São Paulo, v. 1, n. 31, jan-jun 2024, e67057.
Prometheus was a daredevil or indeed courageous man? To this end, the work is
based on the reading of Aristotle's main work on ethics, namely Nicomachean Ethics,
and the aforementioned works of Hesiod, in which it is possible to perceive the
emblematic figure of the fire thief. Although the two authors are located in different
temporary spaces, the aim is to carry out an analysis comparing these nuances of
looking between distant historical periods, considering the thematic focus of ethics,
specifically; Thus, the work proposes to bring together the two writings. The article is
structured with an introduction, through which important concepts about literature and
its relevance for the formation of societies are recalled; and with three subsequent
sections, the first dealing with the concepts of vices and virtues for Aristotle; the second
deals with one of these virtues, courage, and seeks to expose the two vices linked to
it: cowardice and temerity; and the third section that finally sets out to answer the
primary question: Prometheus, reckless or courageous? It is hoped that this work will
be able to provoke reflections on the ethics of virtues and how they present themselves
in literature and in concrete life.
KEYWORDS: Virtue ethics; Aristotle; Hesiod; Prometheus; Historical-literary analysis.

10.23925/2176-4174.v1.2024e67057

Recebido em: 07/05/2024.


Aprovado em: 01/06/2024.
Publicado em: 06/06/2024.

Introdução
A literatura tem sido um dos mais eficazes instrumentos de transmissão de
conhecimento ao longo dos séculos, mas não somente isso: é, principalmente, um
mecanismo eficaz para perpetuar a cultura de um povo, estabelecer domínios
políticos, e um meio poderoso para guiar a sociedade (Venturini, 2005; Gonçalves,
2014).

Isso porque a literatura per si3 dá sentido à vida, especialmente porque trabalha
com elementos presentes nesta. Conforme Antônio Cândido (2006, p. 48-60), a literatura
muitas vezes tem um caráter didático, capaz de comunicar-se com várias gerações, e,
por isso mesmo, ensinar a todas elas. Cândido acreditava que a literatura, especialmente
a erudita, ou como mais conhecida atualmente, a clássica, é capaz de se ajustar a
contextos variados, principalmente em razão da diversificação das palavras utilizadas (o
que ele chama de plurivalência da palavra). Isso ocorre em razão da tal plurivalência, a

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Locução latina que significa “por si mesmo” ou “independentemente de outros”.

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qual permite “ao texto uma elasticidade” (Cândido, 2006, p. 60), fazendo com que o leitor,
independentemente da época em que esteja situado, possa compreender a obra de
maneira satisfatória.

No mesmo viés, Otto Maria Carpêaux , jornalista, ensaísta, crítico de arte e de


literatura, apresenta a literatura grega, personificada em Homero, de maneira mais
detalhada. Segundo Carpêaux em sua História da Literatura Ocidental, Homero era uma
espécie de “autor inquestionável”, que deveria ser lido como inerrável. Nas palavras de
crítico:

A Ilíada e a Odisséia eram usadas, nas escolas gregas, como livros


didáticos; não da maneira como nós outros fazemos ler aos
meninos algumas grandes obras de poesia para educar-lhes o
gosto literário; mas sim da maneira como se aprende de cor um
catecismo. Para os antigos, Homero não era uma obra literária,
leitura obrigatória dos estudantes e objeto de discussão crítica
entre os homens de letras. Na Antiguidade também, assim como
nos tempos modernos, Homero era indiscutido: mas não como
epopéia, e sim como Bíblia. Era um Código. Versos de Homero
serviam para apoiar opiniões literárias, teses filosóficas,
sentimentos religiosos, sentenças dos tribunais, moções políticas
(CARPÊAUX, 2021, p. 39-40, destaque nosso).

As informações trazidas por Capêaux corroboram a visão de Antônio Cândido


quando este afirma que a literatura, possuindo três funções principais, permeia a vida
em sociedade, a vida interior do indivíduo e sua visão política-histórica-religiosa. No
entanto, também traz luz sobre outra questão: o modo como o entendimento de alguns
livros e autores clássicos foi sendo alterado no decurso dos anos.

A crítica literária avançou e hodiernamente tais autores clássicos como Homero,


Virgílio, Luis de Camões e até mesmo filósofos da mais alta estirpe, como Aristóteles e
Platão não apenas são lidos, mas profundamente estudados. A visão de mundo desses
escritores penetrou todos os aspectos do tecido social contemporâneo, mesmo as
pessoas comuns não percebendo ou não se atentando a esse fato. Tudo isso só é
possível graças ao poder que a literatura possui, uma vez que trabalha com um material
caro à humanidade: a linguagem em suas diversas formas.

Dentro dessa mesma perspectiva, os mitos gregos, por exemplo, eram (são)
capazes de ensinar, instruir, emocionar, cativar e mesmo de orientar os ouvintes que
meditam sobre sua profunda sabedoria. Sobre isso, Mircea Eliade assevera que:

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Os Mitos são estórias que contêm representação quanto à vida
prática, fornecendo modelos de contuda e também apontando
aspectos gerais da condição humana, além de apontar a origem
da vida, dos seres humanos, dos seres animados e inanimados
produzindo, assim, um vasto arcabouço cultural para aqueles que
têm contato com eles (ELIADE, 2019, p. 15).

Desse modo, o indíviduo que tem acesso aos mitos, especialmente à Mitologia
Grega tem acesso, também, a modelos a ser seguidos, bem como sabem como agir
melhor em determinadas situações de sua vida. Todas essas questões auxiliam no
processo de construção de uma determinada visão de ética e de moral, a qual acaba por
penetrar o âmago do tecido social. Essa permeabilidade pode ser verificada, por
exemplo, nos escritos dos mais variados teóricos, desde historiadores até mesmo
filósofos e sociológos.

Nesse viés, a análise dessas visões, bem como a comparação entre perspectivas
sobre um mesmo assunto (neste caso em especial, o mito grego) por óticas histórico-
literárias diferentes torna-se extremamente profícua e útil para compreender a visão
vigente. Assim é que se corrobora a visão de Marcel Detienne, segundo a qual é
preciso“conhecer a totalidade das sociedades humanas, todas as civilidades possíveis
e imagináveis” (Detienne, 2004, p. 46). Além disso, é mister considerar “comparar o
incomparável”, isto é, entender que não se deve eliminar a opção de comparar
sociedades em épocas distantes umas das outras (Detienne, 2004, p. 47).

Ao se compreender o papel do comparativista, entende-se também o que o move.


Ainda na perspectiva de Detienne (2004, p. 56), o “comparativista tem o sentimento de
descobrir um conjunto de possíveis, cuja amoedação conceitual mostra elementos
singulares e constitutivos de arranjos diversamente configurados”; daí advém a
percepção de que é por meio da literatura comparada e do exercício comparativo que é
possível identificar difrenças e semelhanças características de uma mesma época ou de
épocas diferentes; bem como entre autores diferentes em diferentes épocas sobre um
mesmo assunto ou, ainda, perceber semelhanças e nuances entre pensadores
diferentes em épocas diferentes em sociedades diferentes. Conforme frisa o próprio
Dietienne (2004, p. 66), “ há um valor ético da atividade comparativa [...] é que ela
convida a pôr em perspectiva os valores e as escolhas da sociedade [...]” Por isso, é
importante considerar comparar o incomparável. E, nesse sentido, a mitologia grega é

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um arcabouço teórico excepcional para que se possa fazer o exercício comparativo.

Como exposto anteriormente, o ser humano precisa de padrões, ou seja, de


princípios ordenadores para solucionar seus problemas e os gregos compreenderam
isso muito rapidamente. Sem essa base, sente-se confuso e lhe falta sentido, uma vez
que não conta com um ponto de convergência para o qual olhar e que irá direcioná-lo
em busca da solução da qual precisa. Os mitos podem fornecer esse padrão, essa base,
esse alicerce. É válido ressaltar, ainda, que:

O Mito, quando estudado ao vivo, não é uma explicação destinada


a satisfazer uma curiosidade científica, mas uma narrativa que faz
reviver uma realidade primeva, que satisfaz a profundas
necessidades religiosas, aspirações morais, a pressões e a
imperativos de ordem social, e mesmo a exigências práticas
(ELIADE, 2019, p. 23).

Portanto, torna-se claro como as sociedades antigas, e neste caso específico a


grega, foi fundamentada por mitologias muito sólidas que perpassaram o crivo do tempo
e se tornaram clássicas, sendo estudadas até hoje. Se deixaram de ser encaradas como
uma base científica para apurar a origem do universo biologicamente, jamais deixaram
de ser empregadas para reflexão das relações entre os seres humanos e seus pares ou
entre os seres humanos e a própria Natureza.

E ainda que “toda a vida da alma humana” seja “um movimento na penumbra”4, a
partir das leituras dos mitos é possível fazer com que essa penumbra seja suavizada,
colocando luz sobre as etapas da vida de cada um, das mais simples, como uma mera
escolha entre sair de casa ou ficar nela, às mais complexas, como os dilemas éticos e
morais que permeiam a vida do ser humano. Assim, o leitor, ao tomar contato com a
literatura grega, defronta-se com diversos mitos que o tiram da zona de conforto,
obrigando-o a repensar questões que, antes, poderiam passar despercebidas. Já na
Grécia Antiga, por exemplo, houve o entendimento de que nem toda lei era justa e,
portanto, nem toda lei deveria ser cumprida cegamente, sem questionamento e
inquirição (Borges, 2011; Ramos, 2013; Verdi, 2005). Obviamente, essa percepção foi
repassada de geração à geração por meio das artes e da literatura.

4
PESSOA, F. Livro do Desassossego. São Paulo: Penkhal. 2021, p.48.

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À exceção do mito do próprio Prometeu, o qual será abordado mais adiante, há o
mito de Antígona que bem ilustra essa visão. A princesa grega foi proibida de sepultar o
próprio irmão por questões políticas. Vale ressaltar que o sepultamento para os gregos
era algo de valor religioso (Verdi, 2005). Hoje, ainda funciona assim: se os seres
humanos não veem o sepultamento pelo olhar religioso, veem-no pelo viés sentimental,
psicológico.

Antígona desobedeceu a ordem do rei Creonte, que também era seu tio, e
sepultou seu irmão; como resultado, foi duramente punida e, ainda, ocasionou a morte
de mais duas pessoas (Verdi, 2005). Assim como Antígona, Prometeu desafiou ordens;
no entanto, a ordem desafiada não era de um rei, mas de um deus e, pior: o maior dos
deuses: Zeus. O que ambos os mitos ensejam de discussão é: as regras instituídas
podem ser desobedecidas? Existem direitos absolutos? Toda lei é ética apenas por ser
lei? etc. essas discussões são possíveis porque, conforme salienta Pesavento (1998, p.
21):

[...] os acontecimentos relatados são fatos passados para a voz


narrativa, como se tivessem realmente ocorrido. Sem dúvida, a
narrativa literária não precisa "comprovar" nada ou se submeter à
testagem, mas guarda preocupações com uma certa refiguração
temporal, partilhada com a história. Dando voz ao passado,
história e literatura proporcionam a erupção do ontem no hoje.

Segundo a autora supracitada, as obras narrativas podem facilmente alcançar a


verossimilhança, uma espécie de lastro na realidade, fazendo com que o leitor consiga
enxergar aquilo que está sendo narrado como possível dentro daquele determinado
contexto. Isso, segundo ela, propicia ao leitor reflexões e ele também se torna capaz de
identificar-se com a obra, reconhecendo-se nela (Pesavento, 1998, p. 47). E essa
erupção suscita discussões acirradas atualmente, porque a sociedade hodierna também
vivencia dramas similares. Daí, novamente, reforça-se a importância de comparar o
incomparável.

Sendo uma das principais fontes de narração, a Mitologia Grega apresenta-se como um
elemento essencial para compreender a condição humana, sua consciência, sua
formação moral e ética e não apenas como mero elemento intelectual, isto é, uma
instrução que não é encerrada na simples reprodução de mitos de uma forma sem
sentido. Pelo contrário, a análise da mitologia grega, acompanhada de um olhar

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histórico-filosófico tem potencial para clarear a penumbra da vida e fazer com que os
indivíduos sejam capazes de trilhar o melhor caminho da melhor maneira possível.

Neste trabalho, portanto, pretende-se expor as ideias Aristotélicas sobre vícios e


virtudes, constantes em sua obra Ética a Nicômaco, endereçada a seu filho, e como
esses pensamentos podem ser aplicados à mitologia grega, mais especificamente ao
mito de Prometeu, lendário personagem conhecido popularmente como “ladrão do fogo
de Zeus”. Essa escolha foi feita com base na relevância de Aristóteles para a
contemporaneidade no tocante aos temas éticos, sendo um dos principais teóricos a
problematizar esse assunto já na antiguidade, de forma mais explícita e completa.

Para alcançar esse objetivo, é essencial valer-se do método de literatura


comparada, especialmente considerando a visão de Marcel Detienne (2004), que
considera viável compreender as diferenças e semelhanças presentes numa mesma
sociedade na passagem dos séculos, e não negligencia o fato de que autores diferentes
possam ser consultados para que a análise seja profícua.

Além disso, neste trabalho se considera o período histórico em que Aristóteles está
situado (século IV a.C) e se busca compreender como essa visão mais moderna da ética
(se comparada à perspectiva do próprio Hesíodo, o qual está localizado no século VII a.
C) pode ser aplicada ao mito hesiódico de Prometeu. Ademais, é pelo exercício de
compreender diversas culturas (ainda que de um mesmo território, nação, povo), do
mesmo modo como elas próprias se compreenderam e “depois compreendê-las entre si;
reconhecer as diferenças construídas, fazendo-as funcionar umas em relação às outras,
é bom, é mesmo excelente para aprender a viver com os outros” (Detienne, 2004, p. 67).

Dentro dessa mesma perspectiva, vale ressaltar o apresentado por Torres (2020,
p. 98), quando esta relembra que o historiador comparativista não deve fazer uma análise
meramente geográfica ou econômica das literaturas, mas precisamente considerar o
homem, seus sentimentos, emoções, ideias, comportamentos, quadros morais, crenças
e costumes, e isso, obviamente, perpassa as questões meramente territoriais,
financeiras e demográficas.

O mito aqui abordado é baseado nos escritos literários de Hesíodo, em suas


famigeradas Teogonia e Trabalhos e Dias. Essa escolha se deu por perceber-se nítido
o auxílio na compreensão acerca do pensamento dos gregos daquela época, além de
proporcionar outras discussões de cunho ético e moral. Não obstante, tal obra também

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trabalha os já conhecidos conceitos de justiça, ética e moral presentes em Hesíodo,
reforçando seu discurso. Tenciona-se esboçar uma análise comparativista entre ambas
as literaturas, tanto a de Aristóteles quanto a de Hesíodo, a fim de verificar como a visão
aristotélica, teorizada em Ética a Nicômaco, entenderia o personagem Prometeu, quase
2 séculos depois. Não é demais lembrar, contudo, que esse é meramente um esboço,
não esgotando todas as possibilidades.

Vícios e Virtudes
Embora o conceito de felicidade nos dias atuais esteja mais ligado às
realizações pessoais, à saúde, bem-estar e vida financeira estável (Ferraz; Tavares;
Zilberman, 2007), nem sempre foi assim. Numa perspectiva histórica, a felicidade
estava ligada a outras questões, como a coletividade. Em meados do século IV a. C.,
Aristóteles, proeminente filósofo grego, afirmava que seria possível encontrar a
eudaimonía (conceito grego que se traduz por felicidade) era a finalidade última da
vida; mas não essa felicidade como hoje é concebida. Ao contrário, na visão de
Aristóteles, eudaimonía era uma atividade contínua e não simplesmente um estado
de espírito (Silva, 2015).

Segundo o referido filósofo, para alcançar a eudaimonía, era preciso, antes de


tudo, uma vida vivida racionalmente. Para ele, viver racionalmente estava diretamente
ligado à necessidade de viver segundo a virtude, a qual denominava de aretê (EN
1,13,1102 b). Esta, por sua vez, poderia ser encontrada no “meio termo”, a mesótês.
Imagine uma régua de 30 cm, em um extremo (ponto 0) há a covardia (que é o excesso
de medo, a falta de coragem, portanto) e em outro extremo (ponto 30) há a
temeridade, que, conforme pressupõe Aristóteles, não é o excesso de medo, mas o
excesso de coragem. Qual seria o meio termo entre os dois? O ponto 15, a metade, o
correto equilíbrio entre as partes. A este meio termo, entre a covardia (excesso de
medo) e a temeridade (excesso de coragem) há a virtude, o meio termo, o equilíbrio,
a própria coragem. Viver racionalmente, segundo o filósofo implicava em, claro, viver
de modo racional, sendo capaz de dominar suas vontades, seus instintos. Isso, em
última instância, produziria a eudaimonía, a felicidade.

Como a vida é contínua, constante, (e se for preciso uma redundância), viva, a


felicidade seria, portanto, um conceito de ato contínuo, uma atividade humana, e não

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somente um estado passivo de espírito. Esse agir sobre a realidade, estando o homem
passível de bem deliberar (equipado de todas as faculdades e instrumentos para
decidir voluntariamente) sobre os seus atos é o que dirá se o homem é um ser virtuoso
ou não virtuoso. Assim, de acordo com essa visão, é possível concordar com aquilo
asseverado por Silva (2015, p. 8) “são as nossas escolhas e as nossas ações que nos
constituem moralmente”.

Desse modo, a virtude não é algo intrínseco ao homem, pelo contrário, ela é
adquirida por meio do hábito, da prática cotidiana, da educação da vontade. Segundo
essa visão, aquilo que é natural ao homem não pode ser mudado, portanto, as virtudes
morais não poderiam ser essenciais do homem, não fazem parte da sua natureza
primeva. Destarte, para Aristóteles, os seres humanos não agem adequadamente por
já possuírem a virtude, mas desenvolvem a virtude ao agirem acertadamente; de igual
modo, ao tomarem decisões erroneamente, tornam-se viciosos (EN, III, 10, 1113b); os
indivíduos teriam, então, a potência (capacidade para realizar algo), podendo ou não
a colocar em prática, transformando-a em ação (EN, II, 25, 1103a). Conforme o próprio
pensador salienta:

E é assim também em relação às virtudes, pois é pelas ações


que praticamos nas relações com os homens que nos tornamos
justos ou injustos; e é pelas ações que praticamos em situações
de perigo, e pelo hábito de temer ou ter coragem, que nos
tornamos, uns corajosos, outros, covardes (EN, I, 15, 1103b).

Em relação às virtudes, o referido filósofo grego as divide em duas, a saber as


virtudes éticas (ou seja, morais) e as virtudes dianoéticas (também conhecidas como
racionais). As primeiras refletem a posição central (média) entre dois extremos das
paixões/ações. As dianoéticas, por sua vez, são aquelas vinculadas à esfera mais
elevada da alma, a racional, e, dessa forma, foram chamadas de virtudes da razão ou
intelectuais (EN I,13,1103a). Nesse sentido, a phrónêsis ganha especial notoriedade,
uma vez que é a esfera calculativa da alma racional, é o que capacita o homem a
escolher como agir, isto é, a deliberar. É na phrónêsis que o homem coloca em prática
os conceitos teóricos que aprendeu ao longo de sua vida (isto é, os conceitos morais,
a ética) e torna-se capaz de relacionar as realidades, valendo-se dos meios
necessários para alcançar um fim bom, adequado (EN VI,5,1140b). É fazendo uso
disso que o homem se torna capaz de verificar o que fazer, como agir e como decidir

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em situações particulares de sua vida. Desse modo, a ética aristotélica está
diretamente ligada ao saber prático. Para se alcançar a virtude é preciso,
indispensavelmente, agir.

Neste ponto é que entra a relação feita neste trabalho, tendo em vista o agir
virtuoso segundo o pensamento aristotélico e os potenciais símbolos contidos nos
mitos: o homem poderá mobilizar os diversos conhecimentos, inclusive aqueles
advindos da leitura literária dos mitos, a fim de nortear suas decisões. Caso o indivíduo
não possua esse arcabouço, como já mencionado, torna-se muito mais complicado
direcionar suas vontades, suas inclinações e tomar decisões mais adequadas em
cada um dos contextos diversos que se apresentarem em sua vida, pois lhe falta
padrões, modelos, representatividade; assim, é também por meio da aplicação de
diretrizes universais, constantes nesse arcabouço, que os homens podem guiar suas
vidas.

Coragem como virtude e temeridade como vício

As virtudes, conforme visto, podem ser aniquiladas pelo seu excesso ou sua falta,
precisando para ser considerada virtude, estar localizada no meio termo de dois
extremos. Aristóteles elenca algumas virtudes e alguns vícios em sua obra. Dentre as
virtudes éticas (morais) encontram-se: coragem, temperança, liberalidade,
magnanimidade, calma, veracidade, espirituosidade, amabilidade, justa indignação,
dentre outras. Sendo que os extremos (excessos e faltas, respectivamente, portanto
vícios) da coragem são a temeridade e a covardia5; da temperança são a
intemperança e a insensibilidade6; da liberalidade são a prodigalidade e a avareza 7;
da magnanimidade (ou magnificência) são a falta de gosto e a mesquinharia 8; da
calma são a irascibilidade e indiferença9; da veracidade são a arrogância e
reticência10; da espirituosidade são a insolência e a rusticidade11; da amabilidade são
bajulação e mal-humor e desordem12. Para este artigo, contudo, pretende-se abordar
a coragem, como virtude ética/moral, e seu extremo que é um excesso, a temeridade.

5
EN II, 1107b.
6
EN II, 5, 1107b.
7
EN II, 10, 1107b.
8
EN II, 20, 1107b.
9
EN II, 5, 1108a.
10
EN II, 20, 1108a.
11
EN II, 25, 1108a.
12
EN II, 25,1108a.

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10
Em relação à prática daquilo que é virtuoso, Aristóteles faz uma interessante
observação. Ele considera que existem seis objetos passíveis de escolha: sendo três
de desejo e, igualmente, três de repulsa. Os de desejo seriam relativos às coisas
belas, úteis e agradáveis, enquanto seus opostos seriam as vis, as inúteis e as
dolorosas. Quando o ser humano pratica ações, é comum, segundo aponta
Aristóteles, que procure fugir do que é doloroso e perseguir o que é prazeroso. Por
isso, o filosófo concorda com seu par, Platão, acerca de ser imprescindível uma
educação da vontade, só assim o homem torna-se, de fato, virtuoso. 13

Para iniciar sua explanação detalhada acerca das virtudes, Aristóteles inicia definindo
o que é o medo, uma vez que um dos extremos da coragem, primeira das virtudes
explicadas, é, justamente, o medo; além disso, também aponta o argumento negativo:
define primeiro o que não é característica de um homem corajoso para, só então,
definir o que de fato é aquele que possui a virtude da coragem.

Segundo o autor, “o medo é definido como uma expectativa do mal” (EN, III, 5, 1115ª).
Desse modo, é compreensível que se tema alguns males, como o desprezo — o qual
advém de um sentimento digno —, de modo que não ter nenhuma espécie de medo
não implica dizer, necessariamente, que o homem é corajoso. Nessa mesma esteira,
também não seria corajoso o homem que, durante afrontas e açoites, mostra-se
arrogante. Aristóteles então, finalmente, expõe como a virtude da coragem se
apresenta em um indivíduo: em ocasiões mais nobres. De acordo com ele, “será
chamado corajoso aquele que permanece sem medo na presença da bela morte ou
de algum perigo iminente que pode levar à morte” 14, e conclui dando um exemplo: a
guerra. Assim, de forma sucinta, Aristóteles define o homem corajoso como:

Aquele que enfrenta e que teme as coisas que deve, e por um


motivo correto, da maneira que convém e no momento oportuno
ou que se mostra confiante nessas mesmas condições, esse é
um homem corajoso, pois o homem corajoso sente e age por um
objeto que valha a pena, e da maneira que exige a regra, e o fim
de toda atividade é aquele que é conforme as disposições de
caráter. E isso é igualmente verdade para o homem corajoso,
portanto sua coragem é uma coisa nobre (EN, III, 15, 20, 1115b).

13
EN, II, 10, 30, 1104b.
14
EN, II, 30, 1115a.

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11
A covardia, nesse sentido, seria então o excesso de medo inclusive em situações,
locais, contextos cujo medo sequer deveria ser cogitado. Aristóteles define o homem
covarde como um homem sem esperança, enquanto o homem corajoso seria aquele
que tem confiança e uma disposição de caráter voltada para a esperança. Em última
instância, por analogia, o homem covarde seria desesperançoso, pois se entrega a
todo e qualquer medo; enquanto o homem corajoso seria um homem confiante 15.

Finalmente, o filósofo conceitua a coragem como sendo o elemento intermediário


entre os objetos confiáveis e os objetos que inspiram temor; o homem corajoso seria
aquele capaz de escolher essas coisas ou suportá-las pelo simples fato de ser nobre
fazê-lo ou, pelo contrário, ser vergonhoso não o fazer16. Um bom exemplo é o conto
São Jorge e o Dragão (Esewein; Stockard, 2021, p.54). A estória narra a jornada de
Dom Jorge, um cavaleiro destemido que não vendo mais razão para continuar em seu
vilarejo, o qual apresenta terna harmonia, sai em busca de conhecer locais “onde
talvez haja complicações e medo” e onde “as criancinhas não possam brincar em paz,
onde alguma mulher tenha sido levada do seio de seu lar” e, ainda, onde “talvez haja
dragões por matar”17.

No meio do caminho, depara-se com uma pequena vila devastada e não encontra
moradores a quem questionar. Ao seguir adiante, vê uma bela moça a quem indaga
do que havia acontecido àquela região; tratava-se de uma princesa, filha do rei
daquela província. Ela conta que existe um dragão feroz, matando a tudo (plantação,
animais) e como último recurso estaria ela entregando a própria vida para salvar seu
povo. Dom Jorge, então, prontamente a responde: “— Acaso pensas que um cavaleiro
deixar-te-ia nessas condições?”18

É corajoso, pois, o homem que encara a necessidade de fazer algo cuja não
realização traria vergonha porque demonstraria fraqueza fugir da responsabilidade de
realizar coisas nobres para fugir da dor. Na visão aristotélica, fugir do que traz dor,
embora seja nobre é um dos atributos do covarde, na medida em que este não é capaz
de dominar sua vontade, e de lutar pelo que é justo, em vez de se resignar frente às
circunstâncias. Não pode ser corajoso, ainda, aquele que é obrigado a sê-lo. Tal como

15
EN, II, 1116a.
16
EN, II, 10, 1116ª.
17
ESEWEIN, J. B.; STOCKARD, M. São Jorge e o Dragão. In: BENNETT, W. J. (org.). O livro das
virtudes para crianças. RJ: Editora Nova Fronteira, 2021.
18
Ibid, p. 57.

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o exemplo de Dom Jorge, o homem realmente dotado de coragem é aquele que o é
por decisão própria, pela deliberação. É um ato da vontade, como salientado pelo
próprio Aristóteles.

A temeridade, ao contrário da covardia, é o excesso de confiança e se constitui


de um enfrentamento da dor que não deve ser enfrentada. Isto é, em sendo
recomendável evitar a dor é melhor fazê-lo, uma vez que agindo de modo contrário, o
homem demonstra não que é corajoso, mas apenas excessivamente confiante, um
temerário.

Como visto, longe de ser uma virtude, a temeridade é o outro extremo da régua,
por isso é chamada de vício, tal qual a covardia. Assim como esta é prejudicial ao
indivíduo e à sociedade, o excesso de coragem também o é. Como Aristóteles
salientou, a falta aniquila a virtude; mas o seu excesso também.

Prometeu hesiódico: temerário ou corajoso?

Hesíodo é um dos escritores cuja obra é vastamente conhecida, isso porque


foi o escritor a eternizar a origem dos deuses; falando, além disso, sobre suas
batalhas, seus modos de vida e de pensar. Apesar disso, sabemos muito pouco
sobre a vida pessoal desse poeta. De acordo com Sueli Maria de Regino (2010),
Hesíodo teria vivido no século VII a.C e era filho de um negociante de navegações
e comércios; tendo seu pai falido, voltaram para a terra de seus familiares e
começaram uma vida agropastoril. Quando seu pai faleceu, as terras que
pertenciam à família foi alvo de disputa entre Hesíodo e seu irmão, Perses. Essa
disputa, que alcançou o poder judiciário da época, é um dos temas centrais da
obra Trabalhos e Dias.

Sabe-se, além disso, que ele viveu numa época bastante característica. A
sociedade ainda não era letrada; mal possuindo escrita, desconhecia a
organização das Cidades-Estados. No entanto, no século VII a.C essa sociedade
grega começou a passar por diversas e profundas mudanças. Embora a sociedade
continuasse analfabeta, começou a receber influência da escrita de nações
vizinhas; e a desenvolver um sistema monetário (Regino, 2010, p. 10).

Apesar de enormes avanços no campo econômico e social, Hesíodo não


teve um final de vida muito agradável. Isso porque, de acordo com Regino (2010,

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13
p.10), ele teria sido supostamente assassinado por familiares de uma mulher
seduzida por ele. Contudo, sua morte não foi capaz de encerrar sua grandiosa e
importante obra que até hoje ecoa não só pela Grécia, mas por todo o mundo.

Um de seus legados, indiscutivelmente, foi o mito de Prometeu, constante


em seu Teogonia. O icônico personagem teria sido filho de um dos 12 titãs filho de
Urano, o Japeto. Ele tinha outros 3 irmãos: Atlas, Epimeteu e Menécio. Prometeu
é adjetivado por Hesíodo como artificioso e astuto. Seus demais irmãos também
não passam despercebidos pela mitologia grega.

Atlas foi punido por Zeus e condenado a sustentar os céus por tentar se
rebelar contra o senhorio deste. Epimeteu, alcunhado de estúpido, carrega consigo
o peso de ter trazido “males aos homens que se alimentam de pão”, e Menécio,
chamado de ilustre, mas também de orgulhoso, presunçoso e arrogante, foi jogado
do monte Érebo por Zeus, que o acertou com raios fumegantes 19.

Prometeu, portanto, teve uma família bastante controversa e seu destino


também não foi muito menos doloroso do que o de seus irmãos. Conta Hesíodo
em suas duas famosas obras, Teogonia e Trabalhos e Dias, que na época em que
os homens estavam em conflito em Mecona (outro nome para Peloponeso),
Prometeu agiu com astúcia e irreverência para com Zeus; nitidamente afrontando
a autoridade que este gozava.

Segundo Hesíodo, Prometeu teria oferecido um grande boi ao deus com a


intenção de enganá-lo. Toda a narrativa acerca do mito de Prometeu é mantida
em ambas as obras de Hesíodo. A respeito da oferenda do filho de Jápeto a Zeus,
o autor revela:

Quando deuses e homens mortais disputavam em Mecona,


Prometeu ofereceu um grande boi, que havia dividido com
muito cuidado tentando enganar o espírito de Zeus. De um
lado, sobre a pele, ele depôs as vísceras e as carnes gordas
cobertas com o ventre do boi. De outro, com pérfido artifício,
colocou os brancos ossos cobertos com a brilhante gordura
(TRAB. DIAS., VII, 535-544, destaque nosso).

Mas Zeus, segundo Hesíodo, conhecia os desígnios eternos e já estava

19
HESÍODO. Teogonia. Trad.: Henry Bugalho. Curitiba, PR: Kotter Editorial, 2020.

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ciente das intenções de Prometeu:

(...) ‘Filho de Jápeto, distinto dentre todos os demais, doce


amigo, foi injusta tua divisão das partes!’ Assim lhe disse
Zeus, com ironia, já que conhece os desígnios eternos.
Prometeu, de mente tortuosa, respondeu com um leve
sorriso, sem esquecer de seu pérfido ardil: ‘Zeus, o de maior
glória e poder entre os deuses imortais! Dessas partes,
escolhe aquela que, em tuas entranhas, anima o teu desejo’
( TRAB. DIAS., VII, 535-544).

Por isso, o deus, em seu íntimo, já previa os males que sobreviriam aos
seres humanos:

(...) Em seu íntimo, previa os males que haveriam de se


abater sobre os homens mortais. Com as duas mãos retirou
a branca gordura e a cólera o dominou. O rancor alcançou
suas entranhas quando viu escondidos por enganoso ardil,
os ossos alvos do boi. E por isso, desde então, as tribos dos
homens queimam ossos brancos para os imortais em
incensados altares, Então, colérico, disse-lhe Zeus, o
acumulador de nuvens: ‘Filho de Jápeto, hábil em
artimanhas, doce amigo, que ainda não esqueceu a arte dos
enganos!’ ( TRAB. DIAS., VII, 550-560).

Hesíodo parece enfatizar o caráter enganador de Prometeu, e reforça o


número de vezes em que este enganou o deus dos deuses (TRAB. DIAS., VII, 565-
570 ). Como punição para as atitudes de Prometeu, Zeus decide retirar dos
homens um dos instrumentos mais valiosos para estes: o fogo. Na história das
civilizações, é possível perceber quão essencial foi o papel desempenhado pelo
fogo — aquecer as pessoas no frio; protegê-las de animais ferozes; cozinhar os
alimentos; trazer claridade, etc. —, portanto, vê-se que a punição para a
humanidade foi realmente terrível.

Prometeu, então, rebela-se mais uma vez contra Zeus, dessa vez em
benefício dos homens — provavelmente numa tentativa de tentar consertar o mal
que fizera e cuja consequência recaíra sobre quem nada tinha feito, no caso, os
homens. Segundo Hesíodo, o filho de Jápeto teria roubado a chama de fogo e a
escondido no oco de uma árvore; isso desencadeou um sentimento de revolta em
Zeus, pois era uma clara ofensa a autoridade deste. Por isso, “para compensar o
roubo do fogo, Zeus enviou um mal para os homens” (TRAB. DIAS., VII, 565-570).

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Pandora, a primeira mulher, criada a partir da junção de barro e água, teria
sido a punição à humanidade em decorrência do roubo do fogo. Mais uma vez, por
causa das más ações de Prometeu, os humanos, de modo geral, sofreram. A
mulher é descrita por Hesíodo como “agregadas a obras terríveis” (TEO., VII, 600-
605) ou, simplesmente como aquela que “se ocupa em obras malévolas” (TRAB.
DIAS., VII, 590-601). Não suficiente, o autor descreve o matrimônio como parte
dessa punição.

O castigo recebido exclusivamente por Prometeu está detalhado tanto na


obra Trabalhos e Dias, quanto na obra Teogonia. O autor começa a sua narração
acerca da vida de Prometeu pelo seu final — contando que o titã foi acorrentado e
teve suas entranhas devoradas todos os dias por uma grande ave. Hesíodo afirma,
ainda, que Héracles20 teria sido o herói responsável por livrar Prometeu daquele
martírio (TRAB. DIAS., VII, 521-534).

Para Otto Maria Carpêaux, Hesíodo tem grande relevância no cenário


grego, pois evidencia a vida dos camponeses, o que é uma espécie de novidade,
já que o autor mais proeminente (possivelmente) situado em seu tempo, Homero,
falava de guerras e de reis. Hesíodo, portanto, inova trazendo a perspectiva da
vida camponesa. Segundo Carpêaux (2021, p. 45), na obra de Hesíodo “não se
trata de guerras, e sim de trabalhos, não de reis, e sim de camponeses;
camponeses que se queixam da miséria e da opressão, e cujo ideal é a
honestidade, cuja esperança é a justiça”.

Ademais, nesses escritos é possível perceber a inclinação mais próxima do


conceito aristótelico de virtudes, segundo o qual os homens são responsáveis por
deliberarem ser virtuosos ou viciosos, uma vez que, conforme já exposto, podem
escolher fazer tanto o que é certo quanto o que é errado. Nesse sentido, sabendo
que a escolha de Prometeu teria sido consciente, ele deve ser considerado,
segundo os padrões da ética de Aristóteles, um homem virtuoso, por
supostamente demonstrar coragem, ou um homem vicioso, ao supostamente
demonstrar temeridade?

Para responder a essa questão, é preciso retornar à obra de Hesíodo e

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Héracles na mitologia grega; e Hércules na mitologia romana.

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perceber como o poeta detalha com bastante precisão o caráter de Prometeu,
colocando-o como “aquele que pensa antes”, enquanto descreve-o como astuto e
de mente tortuosa (TRAB. DIAS, VII, 47-52), bem como artificioso e, novamente,
de curvo pensar (TEO., VII, 510), além de hábil (TEO., VII, 507-513), e de
astuciosos recursos (TEO., VII, 521-534). Esses adjetivos enfatizam e procuram,
ao que parece, justificar a culpa que este carrega tendo total consciência de suas
atitudes e, portanto, sendo merecedor do castigo subsequente. Prometeu, nesse
sentido, seria apenas um homem rebelde, movido por sentimentos afrontosos que
nutria contra Zeus e pouco disposto a ceder à autoridade recém-conquistada deste.

Dessa forma, fica nítida a intenção do autor ao apresentar o personagem


com tais atributos. Pelo que é apresentado, Prometeu aparenta se comportar como
o mais perfeito temerário, aquele que tem a aparência de corajoso, mas não o é.
Ao romper com a harmonia existente entre homens e deuses, Prometeu quebra um
padrão existente, causando uma disruptura que gera males não só para ele, mas
para toda a humanidade.

Nessa primeira parte, Prometeu, ao planejar seu intento (enganar a Zeus)


sem qualquer motivação aparente que não o prazer do engodo, distancia-se do
padrão aristotélico da virtude (coragem) e aproxima-se mais do padrão vicioso, seu
excesso, a temeridade. Em última análise, Prometeu age como o insolente que
nada teme (ou finge não temer).

Contudo, outro ponto que leva a uma nova reflexão, demonstrando que as
respostas à pergunta inicial não são tão simples, é quanto ao tipo de castigo
imposto ao personagem mitológico e como ele lida com isso. Segundo o proposto
por Aristóteles, como apresentado anteriormente, é medíocre e tolo aquele tipo de
homem que suporta sofrimentos sem nenhuma finalidade nobre, elevada. O
primeiro castigo imposto a Prometeu, nesse viés, não o trouxe qualquer tipo de
elevação e nem era intrinsecamente nobre, pois prejudica apenas a humanidade e
em relação ao próprio personagem foi, de fato, merecido, ao menos é o que se
pode concluir. Entretanto, como este amava os seres humanos, cometeu um outro
ato. Desta vez, não foi movido por desejo de engodo, mas de justiça. Queria
devolver aos homens o que lhes foi tirado sem ter esses culpa alguma.

É aqui que o mito muda de figura; agora o anti-herói (se assim puder ser

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nomeado) e rebelde converte-se numa figura com psicologia mais sofisticada e
caráter mais enobrecido. Prometeu, o mesmo temerário capaz de cometer atos de
rebeldia contra o deus dos deuses, agora transformara-se no padrão de herói
conhecido em todo o mundo: aquele que se sacrifica em prol de um bem maior;
neste caso, o bem maior seria o fogo, o qual proporcionava condição de
subsistência, isto é, a vida aos seres viventes na terra.

Ao roubar o fogo e receber um castigo (quase) eterno, Prometeu agora se


aproxima mais do padrão aristotélico virtuoso, na medida em que não teme fazer o
que é certo e cuja omissão lhe traria vergonha. Não solucionar o problema que ele
próprio causou, provocando indevidamente a ira de Zeus, seria condenar a
humanidade a um não futuro; à sua aniquilação. Portanto, não agir, neste caso,
seria vergonhoso.

Prometeu, então, devolve aos seres humanos a possibilidade de beligerar


por suas vidas, porém sofre ele próprio com torturas e sofrimentos que o
consomem, martirizam e transformam sua vida em algo pior do que a própria morte.
O seu sofrer, nesse último caso, tem uma finalidade nobre, portanto. E o homem
corajoso, como preconizou Aristóteles, é capaz de padecer tais martírios porque
vislumbra, mesmo na dor de perder sua vida, um bem maior, superior.

É nesse sentido que Prometeu apresenta-se como o nobre homem corajoso,


pois experimenta a perda da vida todos os dias, para depois recobrá-la e perder
novamente até que o próprio filho de Zeus surja, munido da liberação de seu pai, e
o liberte de sua cina. O homem de coragem, vale lembrar, não o faz
involuntariamente, mas racionalmente; o homem corajoso age por sua vontade
deliberada. De igual modo, não age por ignorância, mas medita no que faz.

De acordo com Aristóteles, o pré-requisito para a responsabilização de um


homem em relação aos seus atos é a voluntariedade ao cometê-los. Dessa forma,
elogiar ou censurar uma pessoa que foi guiada por uma vontade livre e espontânea
é adequado; enquanto produzir um julgamento sobre alguém que não pôde tomar
uma atitude nas mesmas condições é precipitado. É imprescindível, portanto,
distinguir o ato voluntário (hekúsiorí) e do ato realizado involuntariamente (akúsiori).

As ações que são realizadas sob forte coerção (obrigatoriedade, compulsão)


e as realizadas por ignorância (desconhecimento) são colocadas no rol das

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cometidas involuntariamente; enquanto que no ato cometido de modo voluntário, a
pessoa está equipada dos instrumentos que lhe possibilitam uma escolha
consciente.

Em ambas as situações, percebe-se Prometeu premeditando muito bem o


que faria, e os adjetivos dados pelo poeta-autor deixam isso bastante claro. No
entanto, a virtude é encontrada no meio termo, neste caso, a coragem. A
temeridade, seria uma mera aparência; o homem temerário, portanto, também
pensa deliberadamente antes de fazer. Aristóteles deixou claro que se o homem
escolhe fazer o que é virtuoso, também pode deliberar fazer aquilo que não é. Mais
uma vez, nesse sentido, Prometeu mostra-se um personagem bastante complexo.

Assim, Prometeu demonstra ora virtude, ora vícios. Não é essa a realidade
dos seres humanos? Acaso há alguém virtuoso em sua totalidade, capaz de jamais
cometer erros e de agir por impulso? Acaso existem homens cujo controle e
domínio de suas vontades esteja totalmente completo? Assim, o mito possibilita a
reflexão quanto ao que o filosófo também já previa: a virtude se manifesta na
prática; e, sendo assim, é possível que nem sempre os indivíduos sejam virtuosos;
embora em boa parte das vezes possam ser.

Considerações finais
Ao contrário do que se vê na atualidade, para Aristóteles, a felicidade não é um
conceito que nasce das necessidades do indivíduo de ser suprido em todos os âmbitos
e esferas de sua vida; mas está diretamente ligado ao que este indivíduo entrega ao
mundo, à sociedade, à pólis. Daí que para que seja possível alcançar a felicidade, é
preciso, antes, alcançar virtudes, essas, sim, que poderão trazer alegria e plena
realização não só individualmente, como também coletivamente.

Contudo, os seres humanos atuam em suas esferas de vida prática de forma correta
não por possuírem virtudes intrínsecas a si próprios, e sim as desenvolve conforme
vão vivendo. Por isso, Aristóteles dizia que primeiro o ser humano age corretamente
e depois ele é, por isso, virtuoso; de modo que a virtude não tenha sido dada a ele,
mas tenha sido por ele conquistada, treinada, por meio da educação da vontade, da
sedimentação de bons hábitos.

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O homem, nesse sentido, é responsável por suas próprias ações, sendo capaz de
escolher tanto o caminho correto quanto o incorreto, pois se é capaz de perseguir o
que é belo, útil e agradável é igualmente capaz de perseguir o feio, o vil, o inútil,
cabendo a ele, portanto, a responsabilidade sobre suas próprias ações, o
protagonismo de sua vida.

Sendo isso possível ao homem, então, cabe salientar que ele pode escolher tanto agir
virtuosamente, sendo, portanto, virtuoso caso isso seja feito reiteradas vezes; como
pode optar por agir viciosamente, sendo, por conseguinte, vicioso caso isso seja feito
reiteradas vezes. A virtude seria o meio-termo entre dois extremos, um
correspondente à falta e outro correspondente ao excesso desse meio-termo. Assim,
neste artigo abordou-se com mais profundidade a virtude da coragem e seus dois
extremos, a covardia (falta) e a temeridade (excesso).

Como o objetivo inicial consistia em analisar a obra de Hesíodo tendo em vista o mito
de Prometeu, viu-se que o personagem estava mais adequadamente atrelado à
temeridade e à própria coragem, ao meio-termo. Dessa forma, assim como ocorre
com os seres humanos na vida real, concreta, o personagem demonstra sua
complexidade em ora se apresentar como um completo temerário, rebelde e insolente
e ora por se comportar como um verdadeiro homem corajoso, capaz de suportar os
piores sofrimentos para alcançar um fim nobre.

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