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Rivalidade feminina na música pop: melodrama, especulação e performance

Article in Ação Midiática – Estudos em Comunicação Sociedade e Cultura · July 2024


DOI: 10.5380/am.v28i1.94083

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Eduardo Rodrigues
Federal University of Pernambuco
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AÇÃO MIDIÁTICA, n. 28, jul./dez. 2024 Curitiba. PPGCOM - UFPR, ISSN 2238-0701

Rivalidade feminina na música pop:


melodrama, especulação e performance

Rivalidad femenina en la música pop:


melodrama, especulación y performance

Female rivalry in pop music: melodrama,


speculation, and performance

EDUARDO RODRIGUES1

Resumo: O presente artigo busca ater-se à noção de rivalidade


feminina enxergada por meio das dinâmicas da música pop. Trata-se
de um capital especulativo (SOARES, 2022) que ressalta uma
dimensão performática (TAYLOR, 2013) e melodramática
(BRAGANÇA, 2009; HUPPES, 2000; SINGER, 2001) em torno das
supostas inimizades e desafetos entre divas pop. A canção “Do
What U Want”, colaboração entre as cantoras Lady Gaga e Christina
Aguilera, é enquadrada como objeto de estudo para verificar como a
competição entre mulheres é refabulada midiaticamente.

Palavra-chave: capital especulativo; melodrama; música pop;


rivalidade feminina

Resumen: Este artículo busca centrarse en la noción de rivalidad


femenina vista a través de la dinámica de la música pop. Se trata de
un capital especulativo (SOARES, 2022) que resalta una dimensión
performática (TAYLOR, 2013) y melodramática (BRAGANÇA, 2009;
HUPPES, 2000; SINGER, 2001) en torno a la supuesta enemistad y
desafección entre divas pop. La canción “Do What U Want”,
colaboración entre las cantantes Lady Gaga y Christina Aguilera, se
enmarca como objeto de estudio para comprobar cómo se rehace
mediáticamente la competencia entre mujeres.

Palabras clave: capital especulativo; melodrama; música pop;


rivalidad femenina

1
Doutorando em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Bolsista da
Fundação de Amparo a Ciência e Tecnologia de Pernambuco (FACEPE). Membro do Grupo de
Pesquisa em Comunicação, Música e Cultura Pop (GruPop/UFPE). E-mail: dudzardo@gmail.com

1
AÇÃO MIDIÁTICA, n. 28, jul./dez. 2024 Curitiba. PPGCOM - UFPR, ISSN 2238-0701

Abstract: This paper focuses on the notion of female rivalry as seen


through the dynamics of pop music. It is shown that the concept of
speculative capital (SOARES, 2022) highlights a performatic
(TAYLOR, 2013) and melodramatic (BRAGANÇA, 2009; HUPPES,
2000; SINGER, 2001) dimension surrounding the supposed feud and
disaffection between pop divas. The song “Do What U Want”, a
collaboration between Lady Gaga and Christina Aguilera, is used as
a case study to examine how competition between women is
represented in the media.

Keywords: speculative capital; melodrama; pop music; female rivalry

Introdução
Horas antes do episódio final da quinta temporada do reality competitivo
“The Voice”, a emissora NBC exibiu chamadas de uma série de performances
musicais que seriam promovidas durante o programa, incluindo uma
apresentação conjunta das artistas Lady Gaga e Christina Aguilera. A
colaboração é recebida de forma inesperada, principalmente por causa dos
recorrentes boatos sobre os desafetos entre ambas as cantoras nos
bastidores da música pop2.
Ao apresentarem juntas uma nova versão da música “Do What U Want”,
que inicialmente era interpretada por Lady Gaga e o cantor R. Kelly, o
encontro das artistas alude a uma reconfiguração da narrativa da sua suposta
rivalidade, acionando uma ficcionalização da aliança feminina através de
dores compartilhadas e, porventura, apagando rastros do dueto original e do
envolvimento de Gaga com R. Kelly, cuja má reputação aumentava devido às
crescentes acusações de crimes sexuais.
Neste trabalho, não nos interessa comprovar a veracidade da desavença
entre Gaga e Aguilera, e nem se ela foi eventualmente superada com a
parceria em questão, mas sim observar como a colaboração das cantoras
alimenta-se de uma narrativa anterior para prospectar outros sentidos no
midiático. Postula-se que, graças a uma ideia de capital especulativo
(SOARES, 2022), foi possível refabular a canção na ordem da teatralização
de uma sororidade (TIBURI, 2016), fortalecendo vínculos femininos de
empatia e apoio.

2
O questionamento “Rivais?” que aparece no título da matéria da revista Quem, por exemplo,
antecipa uma possível relação conturbada entre as artistas. Disponível em:
https://revistaquem.globo.com/Popquem/noticia/2013/12/rivais-christina-aguilera-fara-dueto-com-lady-
gaga-no-voice.html. Acesso em 13 de jan. de 2024.

2
AÇÃO MIDIÁTICA, n. 28, jul./dez. 2024 Curitiba. PPGCOM - UFPR, ISSN 2238-0701

Na primeira parte do artigo, discute-se a construção da rivalidade feminina


como um mito (WOLF, 2018), no qual mulheres seriam naturalmente
colocadas umas contra as outras nas tessituras sociais. Aponta-se o caráter
ficcional dessa construção que penetra o cotidiano e orienta os papéis e
percepções de gênero em uma sociedade patriarcal.
Em seguida, avançamos o debate para a seara da música pop, observando
como a competição entre cantoras femininas se constrói por intermédio de
uma cultura da especulação que potencializa a ficcionalização em torno de
suas vidas pessoais e artísticas. Dessa maneira, nosso argumento é de que o
exercício especulativo materializa-se na mídia através de uma dimensão
performática (TAYLOR, 2013) cujas nuances melodramáticas (BRAGANÇA,
2009; HUPPES, 2000; SINGER, 2001) expandem, reconfiguram e tensionam
alguns enredos sob a perspectiva do espetáculo. A rivalidade, graças à
embalagem da música pop, adquire camadas espetaculares que fomentam a
vilania feminina, ao passo que também podem subvertê-la, viabilizando
noções de aliança e apoio recíproco entre as mulheres.
Por fim, elencamos para a análise a canção “Do What U Want”, observando
vestígios da sua biografia midiática (SOARES, 2022): como ela nasce,
solidifica-se, morre e reaparece nas dinâmicas performáticas da música pop.
Entra em cena o encontro das materializações de rastros especulativos
(rumores, notícias de tabloides, vazamentos, teorias de fãs etc.) com os
conteúdos autorais (apresentações musicais, videoclipes, declarações etc.). É
na fricção dessas duas dimensões que uma ambiguidade toma forma,
revelando um entrelugar de produção de sentido no midiático.

O mito da rivalidade feminina


Ao se referir à rivalidade feminina, é preciso, sobretudo, localizar esse
fenômeno como uma prática patriarcal – e já cristalizada no interior da nossa
cultura – que visa promover a disputa entre mulheres como um
comportamento natural. Em outras palavras, as relações sociais femininas
seriam, por essência, fadadas à hostilidade e ao conflito.
Segundo Naomi Wolf (2018), esse antagonismo estaria no panteão dos
vários mitos acerca do feminino3 que são propagados por gerações e
funcionam como uma manipulação sistêmica dos corpos e mentes das
3
A autora também destaca uma série de outras construções socioculturais tais quais o mito da
beleza ideal, o mito da juventude eterna, o mito da objetificação e o mito da docilidade e
subserviência.

3
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mulheres. A forma de controle levantada pela autora faz parte de um longo


percurso dos estudos feministas sobre a agência das compulsoriedades
estruturais e sua influência na formação das subjetividades femininas. No
livro “Problemas de Gênero”, Judith Butler (2003) já apontava que é o
intercâmbio social, por meio de exaustivas reiterações performativas do
binarismo homem-mulher, que constituirá o que compreendemos por gênero
num aspecto amplo. Assim, seriam naturalizados diversos comportamentos
afetivos de ordem hierárquica entre os sujeitos, levando em conta seu papel
social construído.
Entendendo tradicionalmente o papel social feminino vinculado a uma ideia
de submissão, caberia às mulheres criarem relações de desconfiança e
suspeição entre si, solidificando relações inversamente proporcionais de
segurança e dependência com os homens, os únicos que seriam capazes de
ocupar um local de primazia na pirâmide social. A rivalidade funcionaria,
portanto, como um aparato de dominação masculina, sendo necessária para
a manutenção desse status quo.
Como é alertado por Adichie (2012), a disputa entre mulheres deveria ser
uma prática saudável, mas é nociva enquanto problema social por incentivar
a busca pela validação masculina, privando qualquer intenção emancipatória.
Não é à toa que a rivalidade feminina também opera como uma forma de
autopreservação para as mulheres em um mundo patriarcal, no qual a
competição garantiria acesso limitado a recursos, oportunidades e
reconhecimento social. Nesse contexto, ela seria uma estratégia de
sobrevivência frente à opressão masculina. Algumas mulheres, por exemplo,
podem acreditar que, ao se tornarem mais atraentes ou se destacarem nos
afazeres domésticos, conseguiriam obter alguma vantagem em uma
sociedade que valoriza a beleza e a estereotipia da mulher comportada e
servil (WOLF, 2018).
Na tentativa de se afastar de uma experiência feminina uniforme e, assim,
abarcar vivências plurais, bell hooks (2019) comenta que a rivalidade entre
mulheres pode ser agravada ou influenciada pelas distintas formas de
opressão que elas enfrentam com base em sua raça, classe social,
sexualidade, entre outros fatores identitários. A virada interseccional
defendida por teóricas do feminismo negro – corrente a qual bell hooks faz
parte – permite complexificar a interpolação das estruturas de poder e
entender que a interseção de distintas formas de coerção pode levar a
experiências únicas de discriminação, violência e marginalização.

4
AÇÃO MIDIÁTICA, n. 28, jul./dez. 2024 Curitiba. PPGCOM - UFPR, ISSN 2238-0701

No processo de construção da subjetividade, as mulheres podem se verem


presas a um sistema cujas normas culturais e sociais acabam forçando-as a
determinados padrões preestabelecidos, oprimindo suas identidades,
existências e histórias. Em “Relatar a Si Mesmo”, Butler (2015) classifica
como violência ética esse mecanismo de apagamento e questiona as normas
e estruturas sociais que perpetuam a opressão e a exclusão, chamando
atenção para as maneiras pelas quais as “narrativas de si mesmo” podem ser
uma forma de violência sutil, mas poderosa, que molda vivências de maneiras
complexas e muitas vezes invisíveis.

Música pop como arena de disputa e especulação


A rivalidade entre mulheres na indústria do entretenimento segue uma
longa cronologia de rixas em que o estereótipo de gênero feminino constrói-
se em torno de emoções nocivas como a inveja (SIQUEIRA, 2017): das divas
célebres da época de ouro do cinema, passando pelas atrizes da telenovela
em âmbito nacional, até chegar ao mercado da música massiva nos embates
entre cantoras do rádio. Vale observar, portanto, que esse não é um
fenômeno recente ou territorializado, mas uma estratégia para angariar
espaço na economia da atenção e nas próprias dinâmicas do consumo.
Na seara da música pop contemporânea muitos são os exemplos que
poderiam ser citados para ilustrar as disputas entre artistas que passam
habitar esse imaginário midiático, tais quais Mariah Carey x Jennifer Lopez,
Britney Spears x Christina Aguilera, Madonna x Lady Gaga, Taylor Swift x
Katy Perry. As altercações são frequentemente alimentadas nas
conversações online de fãs e acabam virando pauta do jornalismo cultural,
levantando justificativas diversas e difusas que vão desde a competição
profissional até as relações pessoais movidas pelos sentimentos de cobiça e
ciúmes.
Em uma matéria, a revista Harper’s Bazar 4 elenca vinte notáveis brigas no
mundo da música. Através de um arranjo que mistura declarações mais
diretas e indícios especulativos, é interessante perceber que a metade das
rixas é protagonizada apenas por mulheres, as quais, em sua maioria, são
filiadas à música pop. O restante oscila entre algumas poucas disputas de
homens e mulheres e outras exclusivamente masculinas, sendo essas

4
Disponível em: https://www.harpersbazaar.com/culture/art-books-music/g19180140/pop-music-
celebrity-feuds/. Acesso em 13 de jan. de 2024.

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AÇÃO MIDIÁTICA, n. 28, jul./dez. 2024 Curitiba. PPGCOM - UFPR, ISSN 2238-0701

últimas de vinculação majoritária ao rap e ao rock. É perceptível como o pop


se torna um terreno profícuo para os desenlaces da rivalidade entre
mulheres, afinal, é um gênero musical marcado pela presença do feminino
que se materializa na figura das divas e do artifício (FRITH, 1996), o que
permitiria a criação de zonas de fabulação que imbricam a vida e a obra das
artistas.
A rivalidade feminina na música pop nem sempre está ancorada em fatos,
muitas vezes, fundamentando-se com base em pequenos indícios. Sendo
assim, a especulação entraria como peça-chave nessa dinâmica,
possibilitando a operacionalização das emoções em torno dos objetos. Em
concordância com Thiago Soares, enxergamos a emergência de um capital
especulativo no poder agregador dos afetos do pop, isto é, “uma espécie de
ativo capaz de promover mobilização em rede a partir do caráter emocional
de alguns dramas sociais protagonizado por artistas musicais” (SOARES,
2022, p. 102). O ato de especular seria, então, uma prática incutida no amplo
consumo do gênero musical, colocando em evidência um regime de criação
de imagens, personagens e narrativas no mercado do entretenimento.
Se a rivalidade feminina seria um mito intrínseco às mulheres, percebe-se a
sua filiação com o fabulado se a tomarmos como prática social e, portanto, a
chance de ser potencializada pela especulação para se sustentar enquanto
ideologia. Ressalta-se, todavia, que não se pretende aqui romantizar essa
rivalidade e assim idealizar a figura da mulher, mas, ao invés disso, sublinhar
a forma tendenciosa em que se desenha a dimensão especulativa do
antagonismo feminino, possibilitando muitas vezes que as mulheres
experimentem apenas sentimentos negativos.
Em outro texto, por exemplo, Thiago Soares (2014) versa sobre a
recorrente comparação entre as cantoras Lady Gaga e Madonna. Relegadas
a uma ideia reducionista e generalista de que a primeira plagiava a segunda,
sendo uma tanto “sucessora” como “inimiga” da outra, o autor evidencia que
ambas possuem trajetórias e discursos midiáticos notadamente distanciados.
Soares utiliza o conceito de mito geracional de Umberto Eco e discorre a
respeito da sua importância enquanto artefato para compreensão de como os
discursos sobre figuras emblemáticas na mídia podem ser norteados por
escolhas e disposições mais articuladas a um senso comum. Fazemos um
adendo ao trabalho do autor para destacar como a noção de mito geracional
também reflete lógicas sociais de poder e dominação. Afinal, as narrativas de
carreira de Lady Gaga e Madonna estariam cifradas pela incessante

6
AÇÃO MIDIÁTICA, n. 28, jul./dez. 2024 Curitiba. PPGCOM - UFPR, ISSN 2238-0701

comparação que só reforça a naturalização da relação competitiva entre


mulheres, especialmente quando elas habitam os mesmos espaços
midiáticos.
Algo semelhante ressoa na dita rivalidade entre Lady Gaga e Christina
Aguilera que será abordada neste artigo. Antes de ser comparada a Gaga,
Aguilera havia sido frequentemente associada a outra cantora, Britney
Spears. Além de terem protagonizado por vários anos, quando crianças, um
programa infantil da emissora Disney Channel, ambas lançaram seus
primeiros álbuns em períodos temporais próximos, alcançando o estrelato no
fim da década de 1990. Questões em torno da branquitude e jovialidade das
cantoras eram constantemente equiparadas, fazendo seus corpos serem
vigiados por valores de virgindade e pureza, os quais são frequentemente
depositados na imagem de cantoras brancas adolescentes que estão se
lançando no mercado musical (ALMEIDA, 2020). Esse breve certame
comparativo já levanta alguns sinais de que figuras femininas na música pop
são constantemente colocadas em paridade e disputa, tendo que construir
suas trajetórias à sombra de outras, o que as tornam mais suscetíveis a
passar por episódios competitivos.
De maneira mais escorregadia que a analogia de “novatas” entre Britney
Spears e Christina Aguilera, que iniciaram a carreira musical juntas, ou de
“passada de tocha” entre Madonna e Lady Gaga, que representavam
gerações diferentes, em que uma iria tomar o lugar da outra, o embate entre
Aguilera e Gaga sugere perceber a competição entre artistas femininas como
um exercício fadado à inesgotável comparação.
Em uma retrospectiva levantada pelo Daily Mail 5, vários indícios são
levantados sobre como a rivalidade entre as cantoras se originou e, talvez,
um dos mais notáveis, envolva as matérias assinadas por Perez Hilton, um
blogueiro estadunidense muito popular no fim dos anos 2000 e começo dos
anos 2010, conhecido por cobrir notícias do mundo das celebridades.
Enquanto Christina Aguilera promovia seu quarto álbum de estúdio, intitulado
“Bionic”, em 2010, Perez Hilton dedicou várias matérias do seu blog para
acusá-la de plágio, comparando seus estilos indumentários, estéticos e
artísticos aos de Lady Gaga, que havia despontado no cenário musical dois
anos antes. Posteriormente, o blogueiro diz ter feito as declarações por
influência da sua amizade com Lady Gaga e como forma de redenção
5
Disponível em: https://www.dailymail.co.uk/tvshowbiz/article-12153867/Inside-Lady-Gaga-Christina-
Aguileras-historic-feud.html. Acesso em 13 de jan. de 2024.

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convida o público a engajar com a hashtag #JusticeForBionic6 (traduzida


livremente para “justiça para o Bionic”). A hashtag foi uma mobilização na
internet levantada pelos fãs de Aguilera perto da data de lançamento do
álbum “ARTPOP” de Lady Gaga em 2013, cuja intenção não era só
reacender a disputa entre as cantoras, mas também revistar a noção de
fracasso de “Bionic”, acometido pelo baixo desempenho em vendas
(RODRIGUES, 2022).
A especulação toma parte de um todo e opera através dos vestígios de uma
suposta “verdade”. Na prática especulativa não há necessariamente um
começo e um fim, mas uma intenção de montagem de um processo
inacabado. No percurso, as declarações de Perez Hilton funcionam como
pontos de interesse, especialmente devido à alta projeção que receberam na
época e os desdobramentos observados nas ambiências digitais. Não cabe
discernir sobre a veracidade, mas perceber quais os efeitos que contribuem
para que a atividade especulativa da rivalidade vá tomando forma.
Nesse sentido, o antagonismo entre as cantoras teria como fator motivador
uma suposta sensação de risco, em que a existência de uma se apresentaria
como ameaça para a carreira da outra. A fabulação em torno desse contexto
reacende práticas sociais sobre a fragilidade das relações femininas e
incentiva a incessante comparação entre mulheres, promovendo teorias
conspiratórias em que o papel da vilã está instável: ora recai sob Christina
Aguilera, acusada de plágio, ora recai sob Lady Gaga, acusada de boicote.
Ainda que as cantoras tenham se manifestado publicamente 7, negando
qualquer animosidade, observa-se como a especulação se tornou um fator
considerável para a narrativa midiática.

Metodologias para reimaginar uma canção: performance, roteiro e


melodrama
Em meio a rumores, mobilizações de fãs e pronunciamentos das artistas,
nota-se como o capital especulativo se corporifica no midiático por meio de
atos performáticos em rede, em que uma ação se conecta a outra,
constituindo uma trama contínua. Ao recuperar os postulados difundidos por
6
Disponível em: https://www.idolator.com/7479513/justice-for-bionic-christina-aguilera-lady-gaga?
chrome=1. Acesso em 13 de jan. de 2024.
7
Em 2010, Aguilera publicou uma nota em seu site e Lady Gaga, em 2013, concede uma entrevista
para um programa televisivo. Nas ocasiões, ambas negaram a existência de uma rivalidade.
Disponível em: https://www.capitalfm.com/artists/lady-gaga/news/christina-aguilera-feud/. Acesso em
20 de maio de 2024.

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Diana Taylor (2013) sobre os estudos de performance, em que ela é tanto


objeto como episteme, Thiago Soares (2022) os desloca em direção à música
pop, chamando atenção para dois pontos metodológicos no enquadramento
da especulação: 1) a esquematização de roteiros performáticos e as
clivagens em torno de como as narrativas se organizam nos produtos
midiáticos e 2) as abordagens dramatúrgicas que perpassam os formatos e
ações na mídia de artistas musicais. A proposta de análise é de grande valia
para este artigo, ao passo que tomamos uma canção pop e as inferências
que se ramificam a partir dela. Estamos diante da biografia de uma canção
(nascimento, permanência, morte e reaparecimento) “que incide sobre os
enlaces de quem a performatiza, promovendo fricções especulativas e
fabulações sobre a dimensão cênica da poética musical” (SOARES, 2022, p.
105).
Nesse sentido, o primeiro passo seria identificar os roteiros performáticos
vinculados à canção, montando um quadro de clivagens possíveis. Por
roteiro, compreendemos aquilo que Taylor (2013) chama de “configuração
paradigmática”, isto é, enredos estruturados (apesar de adaptáveis) que
compõem a narrativa encenada, e, consequentemente, seus personagens,
cenário enunciativo e contexto cultural. Longe de ser um protocolo estanque,
o roteiro funcionaria como um esboço flexível que permite reconhecer o
implícito e o explícito das encenações. Já as clivagens sugeririam a
esquematização e mapeamento das performances potenciais em torno do
roteiro, neste caso, os desdobramentos midiáticos que formam uma espécie
de mosaico interligado.
O segundo passo, por sua vez, seria observar os dramas que são
encenados, com mais ou menos teatralidade. Interessa-nos aqui o poder de
adesão, emoção e comoção provocado nas performances. Num campo de
alta visibilidade e projeção como o da música pop, apostamos que a
teatralidade assume um caráter melodramático, em que o exagero opera
como uma ferramenta inteligível e autorreferente (SINGER, 2001).
O melodrama, apesar de ter surgido no teatro romântico, é um gênero que
se espraiou para a indústria cultural, utilizando-se da “estética do comum”
para tomar forma. Estamos falando do uso de clichês, do espetáculo e da
opulência da cena, elementos que estão presentes, só para citar alguns
exemplos, em filmes blockbusters, novelas e videoclipes. A interpolação do
melodrama com a música pop proporciona que o artifício e,
consequentemente a fabulação, sejam vistos em profundidade. A

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espetacularização não se torna apenas um recurso de adesão do público pela


emoção, mas também evidencia um sistema ficcional de produção de sentido.
Concordamos com Ivete Huppes (2000) que a permanência do melodrama
se dá pela sua retórica no modo de narrar e, portanto, aqui, para além de
uma configuração fixa, ele é compreendido como categoria estilística para a
leitura das problemáticas da vida inseridas nas produções culturais, em que é
oferecido o nível necessário de artificialidade e desnaturalização “para se
encontrarem adesões em meio a novas circunstâncias sociais, num momento
em que a teatralidade e a noção de performance são emblemas de uma
espetacularização dos discursos” (BRAGANÇA, 2009, p. 42).
Dessa forma, encarar o peso do melodrama nos atos performáticos é uma
ferramenta de análise que permite, ao mesmo tempo, tensionar e dar ênfase
ao espetáculo. Embora exista um esgotamento de recursos artificiais, a
“verdade” encenada está impregnada de um sentido de realidade.

O gesto interpretativo de fazer esta leitura do mundo descrito pelos códigos do melodrama deve ser
pautado pelo esforço de perfurar a superfície e interrogar as aparências. A realidade é representada
tanto pela cena montada do drama quanto pela máscara que se projeta num outro drama que se
esconde misteriosamente, sob uma moral suspeita, a qual deve ser aludida e revelada (BRAGANÇA,
2009, p. 30).

Uma canção, duas histórias


A canção escolhida para investigação é “Do What U Want”, pertencente ao
quarto álbum de estúdio de Lady Gaga lançado em 2013, “ARTPOP”, e
originalmente um dueto com o cantor R. Kelly. Em tradução livre para
português como “faça o que quiser”, Lady Gaga canta metaforicamente sobre
dar consentimento à mídia para fazer o que bem entender com seu corpo,
embora reforce que sua mente não seria controlada. A faixa funciona como
uma espécie de resposta sobre a própria cultura da especulação em torno
das celebridades, tecendo comentários sobre a deturpação pública da vida
dos artistas. Em paralelo, a cantora também entrega seu corpo a R. Kelly, seu
interesse romântico na canção, garantindo uma construção de duplo sentido.
De acordo com a proposta metodológica de capital especulativo (SOARES,
2022), a etapa inicial de análise deve ir além da textualidade fornecida pela
própria música, atendo-se às clivagens que irão anunciar um roteiro
performático responsável por guiar as práticas em rede. Em seguida, são
sublinhados os dramas que tornam esse roteiro “vivo”, ou seja, demarcam-se
as teatralidades com alto poder de agregação, manutenção e transformação.

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AÇÃO MIDIÁTICA, n. 28, jul./dez. 2024 Curitiba. PPGCOM - UFPR, ISSN 2238-0701

Como é de praxe na lógica do mercado musical pop, as canções


costumam ser promovidas por meio de videoclipes, apresentações,
discussões digitais e uma intensa cobertura da imprensa. Assim, o videoclipe
de “Do What U Want” poderia ser um ponto de partida, funcionando como
uma materialização midiática da canção que se conecta a outras clivagens.
O fato de o vídeo ter sido adiado e, posteriormente, cancelado, é um
primeiro ponto que merece atenção, o que sugere que ele seja lido, a priori,
pelo viés da descartabilidade, preconizando abordagens especulativas em
torno do seu conteúdo. Embora Lady Gaga e sua equipe nunca tenham
fornecido muitos detalhes sobre a decisão, algumas cenas vazadas passaram
a circular na internet, fornecendo material suficiente para teorizações a
respeito de uma certa “ausência” deixada pelo videoclipe. Os trechos
divulgados pelo tabloide TMZ8, que teve acesso à obra não lançada,
mostram, entre outras cenas, R. Kelly interpretando um médico que interage
sexualmente com Lady Gaga, que está anestesiada em uma cama de
cirurgia. A cantora também aparece seminua em frente a grandes manchetes
de jornal que aludem a escândalos da sua carreira (imagem 1).

Imagem 1: Frames do videoclipe descartado de “Do What U Want”

Fonte: TMZ

A matéria do TMZ especula que o motivo para o engavetamento do


videoclipe foi a tentativa de redução de danos em prol da carreira de Lady
Gaga frente às acusações de assédio do fotógrafo Terry Richardson, diretor
do vídeo, e ao histórico recorrente de R. Kelly, denunciado por vários crimes
de importunação sexual desde a década de 1990. Com uma música
liricamente ambígua e um videoclipe cujas imagens vazadas insinuam alto

8
Disponível em: https://www.tmz.com/2014/06/19/lady-gaga-music-video-sexual-assault-do-what-u-
want/. Acesso em 11 de jan. de 2024.

11
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teor sexual, a vida privada e artística se sobrepõem, agenciando novas


percepções para produtos midiáticos pela chave da especulação e da
exacerbação performática. Os papéis de R. Kelly e Lady Gaga na canção são
borrados com sua vida pessoal, garantindo a adição de novas camadas
interpretativas.
Deste modo, o roteiro performático que parece estar em jogo é o da própria
fabricação da verdade e do controle narrativo que impera no mercado
musical. Se, por um lado, o videoclipe ironiza polêmicas em torno dos
artistas, na tentativa de se apropriar delas, por outro, o fato dele ter sido
descartado insinua uma incoerência que se fortalece no campo da
especulação. Em relação à teatralidade, é indispensável pensar não só no
cancelamento do videoclipe como parte da sua dinâmica performática, mas
no verniz sensacionalista em que ele se deu. Tomando o sensacionalismo
como uma característica melodramática latente (ENNE, 2007), a obra vazada
recebe um caráter de ineditismo que provoca questionamentos sobre o
motivo do seu lançamento ter sido interrompido.
Anos depois, em 2019, R. Kelly é sentenciado e preso por abuso sexual,
pornografia infantil e obstrução de justiça9. O caso em particular foi
impulsionado pelo documentário “Surviving R. Kelly” da emissora Lifetime,
que detalhou as acusações feitas contra ele por várias mulheres, resultando
em um amplo apoio na esfera pública. No mesmo ano, Lady Gaga chegou a
se desculpar por ter lançado a canção e, em uma carta aberta no Twitter, ela
decide removê-la das plataformas digitais 10. O depoimento da cantora
intensificou não só as teorias em torno dos bastidores da promoção da
música original, mas também abriu novos apontamentos para a versão
remixada.
Ainda em 2013, “Do What U Want” foi apresentada por Lady Gaga e
Christina Aguilera ao vivo na final do “The Voice”, programa no qual Aguilera
era jurada. Com letras alteradas, a nova versão substitui as metáforas
provocativas pela ideia do apoio mútuo entre duas mulheres em prol da
superação de adversidades. A canção desloca seu sentido em busca da
cumplicidade feminina, distanciando-se do enredo romântico e lascivo criado
anteriormente.

9
Após 2019, R. Kelly também foi condenado por mais atividades criminosas. Disponível em:
https://www.bbc.com/news/entertainment-arts-40635526. Acesso em 11 de jan. de 2024.
10
Disponível em: https://twitter.com/ladygaga/status/1083237788663697408?s=20. Acesso em 11 de
jan. de 2024.

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“Do What U Want” nasce da fabulação que envolve dois artistas, um


homem e uma mulher, marcados por polêmicas na carreira, e se constrói na
denúncia de uma cultura de produção de “inverdades” sobre celebridades. A
canção dá indícios de morte quando questões da “vida real” contestam a
ficcionalização que ela mesma narra. Em um momento posterior, há um
reaparecimento com outra roupagem, aludindo para a reorganização de
personagens e enredos.
Em um olhar mais detido para a apresentação televisionada de “Do What U
Want” no “The Voice”, a saber, a primeira vez que o remix se materializa de
fato, é possível perceber como a canção amplia o espectro poético. A
performance ao vivo da música, ainda que arquivada para posterioridade em
vídeo no Youtube11, cria espaços carregados de teatralidade “em que artistas
atuam e constroem lugares cênicos que conjugam narrativas de controle e
marketing do mercado musical com a agência de suas próprias vidas e os
enlaces sobre mundos ficcionais” (SOARES, 2022, p. 108).
A nova versão de “Do What U Want” se inicia com Lady Gaga vestindo um
traje de lamê reluzente, executando uma breve rotina coreográfica com
alguns dançarinos. Pouco depois, com um figurino semelhante, Christina
Aguilera surge atrás de uma concha cintilante e junta-se a Gaga no palco.
Substituindo os versos sensuais de R. Kelly, Aguilera canta sobre a entrega
do artista ao seu ofício (“meus ossos doem, por causa dos shows, mas eu
não sinto dor porque sou profissional”12). A dor e angústia de ambas as
artistas é compartilhada no palco em tom mais confessional. Para além da
denúncia do controle público de suas vidas, elas podem estar chamando a
atenção para a cobrança enfrentada por cantoras femininas na indústria da
música e a intensa vigilância de seus corpos e comportamentos.
As cantoras interagem entre si durante toda a música: dão as mãos, criando
um momento de clímax antes do segundo refrão, abraçam-se sentadas em
um divã (imagem 2) e finalizam a performance brindando com taças de
champanhe (imagem 3). O que parece ser relevante aqui é uma espécie de
reconciliação entre as artistas que buscam amparo uma na outra. A
comunhão de Gaga e Aguilera acena para uma reinvenção de narrativa por
meio da aliança.

11
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=kTUMnpy4A_c Acesso em 13 de jan. de 2024.
12
Traduzido livremente do original: my bones hurt from all the shows, but I don’t feel the pain ‘cause
I’m a pro.

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Imagens 2 e 3: Frames da performance ao vivo de “Do What U Want” no programa “The Voice”

Fonte: Youtube

O tom melodramático percorre toda a mise-en-scène: o cenário brilhante e


reluzente, a gestualidade afetada, a oscilação do semblante das cantoras
entre o melancólico e o confiante, as modulações vocais em partes-chave da
música e os visuais quase idênticos de Gaga e Aguilera, o que ocasiona certo
embaralhamento de suas identidades, como se elas representassem uma
única figura feminina cujas dores são partilhadas. Em toda a performance há
uma coexistência entre o melodrama do sofrimento e o da superação, na qual
as artistas dividem os mesmos pesares, mas encontram uma na outra o
caminho para vencê-los.
Ademais, esse embaralhamento de identidades proposital também evoca
um ideal de feminilidade pautado numa branquitude “glamourizada” em que
as cantoras usam da sofisticação para se projetarem. Ao vestirem roupas de
lamê, usarem os cabelos marcadamente loiros, estarem envoltas de um
cenário brilhante e selarem a vitória com champanhe, ambas negociam com
um ideal de pureza hiperfeminino que usa da elegância para se tornar
reconhecível. Paralelos podem ser traçados com a imagem da mulher na
cultura das mídias, em que divas do cinema hollywoodiano clássico
estabeleceram um padrão de beleza nas audiovisualidades. Afinal, não é
exagero dizer que os cabelos loiros e o vestido de lamê das artistas possuem
um quê da atriz Marilyn Monroe no filme “Os Homens Preferem as Loiras”
(1953).
Essa relação de aliança com traços de requinte e glamour muito se difere
da perspectiva erótica da canção original. Em performances anteriores de “Do
What U Want” com R. Kelly, existia uma relação tensiva de Gaga com a figura
masculina do cantor. No programa “Saturdary Night Live” (imagem 4), os
artistas trocaram carícias e insinuações sexuais. Já na premiação “American
Music Awards” (imagem 5), ambos personificam os rumores acerca do caso
amoroso entre o ex-presidente estadunidense Robert F. Kennedy e a atriz
Marilyn Monroe. Enquanto R. Kelly assume o papel do presidente, Gaga é

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sua secretária e amante, uma caricatura que visualmente remete a Monroe,


mas que diferente da performance com Aguilera, apresenta-se mais sensual.
Nas duas apresentações supracitadas com R. Kelly, Gaga deposita suas
frustrações com a mídia em uma fantasia erótica com o cantor que, ao
contrário dela, parece exercer uma certa dominação no corpo vulnerável da
cantora. Enquanto ela joga com a dualidade (“você não pode parar minha voz
porque você não é dono da minha vida, mas faça o que quiser com meu
corpo”13), ele apenas explicita seu desejo sexual (“sem convites, é uma festa
particular, faço o que quiser com seu corpo” 14). Nesses termos, elucida-se um
estereótipo racializado da virilidade sexual que robustece o papel masculino
de R. Kelly, um cantor negro que “faz o que bem entender” com o corpo de
Gaga, uma cantora branca que performa uma fragilização de si na música.
Na diegese da canção, ele é o homem a quem Lady Gaga recorre por não
conseguir lidar sozinha com as adversidades, embora sua moeda de troca
seja somente o prazer sexual. Cria-se, assim, uma dependência da figura
feminina que é amparada pelo homem viril.

Imagens 4 e 5: Frames das performances ao vivo de “Do What U Want” no “Saturday Night Life” e
“American Music Awards”

Fonte: Youtube

Distante dessa abordagem, a performance de Lady Gaga e Christina


Aguilera reforça uma noção de sororidade (COSTA, 2009), ou seja, a
solidariedade e o apoio mútuo entre mulheres que têm como base valores
tais quais a empatia, o respeito, a irmandade e a colaboração. Inclusive, a
maneira que a sororidade é corporificada pelas cantoras, em especial quando
elas dão as mãos e se abraçam, aponta para uma ordem melodramática
quase que literal do apoio mútuo entre mulheres. A presença masculina não é
exigida para construção de sentido nesse novo direcionamento, então a

13
Traduzido livremente do original: you can’t stop my voice ‘cause you don’t own my life, but do what you want
with my body.
14
Traduzido livremente do original: no invitations it’s a private party, do what I want with your body.

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remoção de R. Kelly é completamente substituída pelo protagonismo e


independência das duas artistas.
A parceria de Gaga e Aguilera sugere uma expansão do roteiro
performático de controle narrativo que a canção original suscitava, agora
adicionando imaginários mais detidos à mulheridade. Ainda que a dimensão
especulativa da rivalidade feminina não seja explícita, ela não deixa de ser
recapturada pela performance. É na espetacularização da solidariedade entre
as artistas que há um constante gesto reparador de uma possível inimizade.
Esse não-dito está à revelia daquilo que é excessivamente dito, ou seja,
teorizações sobre a disputa das cantoras seriam rasuradas pelo
desenvolvimento de uma aliança feminina hipermarcada e enfática. Na trama
criada pelas artistas não há espaço para que nada diferente da sororidade
permaneça.
Outras clivagens também endossam essa ficcionalização: no fim da
apresentação, ambas as cantoras tecem elogios entre si (sem mencionar a
aparente rivalidade) e, anos depois, mediante a declaração de Lady Gaga
sobre a remoção da versão original da música das plataformas digitais,
Christina Aguilera declara apoio à cantora no Twitter 15, parabenizando-a pela
decisão e resgatando imagens da performance das duas no “The Voice”.
Esse gesto reforça a temática construída pela canção remixada, que
continuou mantida nas plataformas digitais, garantindo-lhe uma sobrevida que
é balizada pela sororidade entre as artistas nos sites de redes sociais.

Considerações finais
O presente artigo buscou construir um debate acerca da rivalidade entre
mulheres na música pop, colocando em evidência uma mitologia social do
antagonismo feminino (WOLF, 2018). Apresentando-se como um fenômeno
um tanto sintomático na indústria do entretenimento, é possível perceber que
artistas femininas estão passíveis de serem enxergadas como inimigas, uma
vez que suas trajetórias de carreira estão sempre colocadas em constante
comparação.
Por meio das cantoras Lady Gaga e Christina Aguilera, percebeu-se como
a nova versão da canção “Do What U Want”, parceria musical entre ambas,
reativa um capital especulativo (SOARES, 2022) em torno da sua suposta
rivalidade. Os vestígios midiáticos da canção aludem aos rumores da esfera
15
Disponível em: https://twitter.com/xtina/status/1083775487728484353?s=20. Acesso em 13 de jan. de 2024.

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pública para fomentar novas interpretações e, por meio da sororidade


(COSTA, 2009), Gaga e Aguilera encenam um redesenho de suas carreiras,
sugerindo o apagamento de problemáticas anteriores.
Se o roteiro performático da canção original já apontava para a própria
cultura da especulação no mundo das celebridades, a nova versão se
preocupa em expandir esse horizonte, trazendo a rivalidade feminina para o
cerne do enredo, ainda que ela não seja anunciada e reconhecida
deliberadamente. É no uso marcado de cargas dramáticas de sororidade que
pontes especulativas se solidificam, permitindo que a suposta rixa entre as
artistas seja evocada como um recurso pré-narrativo.
A maneira melodramática que “Do What U Want” é performada no
midiático, desde seus rastros em sites de redes sociais até a materialização
de sua apresentação musical em programas televisivos, denota como a
espetacularização cria zonas de fabulação potentes. Essa exacerbação
performática é percebida para além da poética musical, redirecionando o
olhar para a maneira pela qual a própria canção é mediada. Em um dado
momento, uma coerência é constatada, como é o caso da troca de
mensagens entre Aguilera e Gaga no Twitter, endossando a ideia de apoio
mútuo que foi sugerida pela apresentação delas no The Voice, mas, em
contrapartida, instabilidades podem emergir no percurso, a exemplo do
videoclipe da canção original que nunca foi lançado oficialmente e cujo
vazamento já predispõe uma leitura tensiva sobre a obra.
Em conclusão, ressalta-se a música pop como um campo frutífero para
análises acerca das produções de sentido no midiático. É no exercício de
destrinchar o espetacular, particularidade tão cara às produções pop, que as
linhas entre o fictício e o real são borradas e uma terceira via interpretativa
emerge, contemplando um encontro entre a especulação e a verdade. Esse
entrelugar presume lidar com ambiguidades, incertezas e imprevistos,
orientando outros modos de examinar controvérsias que se impulsionam no
interior das culturas massivas.

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Recebido em: 16-01-2024

Aceito em: 30-05-2024

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