ECOS DO CONCRETISMO E DA INTERMIDIALIDADE

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Imagens da vida

Paulo Roberto Barreto Caetano

IMAGENS DA VIDA: ECOS DO CONCRETISMO E DA


INTERMIDIALIDADE EM PROSAS SEGUIDAS DE ODES MÍNIMAS, DE JOSÉ
PAULO PAES

IMAGENS OF LIFE: ECHOS OF CONCRESTIM AND


INTERMEDIALITY INTERMEDIALITY IN PROSAS SEGUIDAS DE ODES
MÍNIMAS, BY JOSÉ PAULO PAES

Paulo Roberto Barreto Caetano

Universidade Federal de Minas Gerais

RESUMO: A poesia de Paes, conhecida principalmente pela concisão, apresenta


elementos usados pelo concretismo: o uso do espaço em branco da página como
sugestão semântica pode representar uma sutil indicação de imagens. Assim sendo, a
obra do autor paulista pode possuir um caráter intermidial, no qual a escrita e a imagem
dialogam entre si na construção de sentido. Este artigo analisa algumas dessas
manifestações.

PALAVRAS-CHAVE: José Paulo Paes, Concretismo, intermidialidade

ABSTRACT: The poetry of Paes, best known for its brevity, uses elements from concrete
poetry: the use of the blank space on the page as a semantic suggestion could be a
representation of an invisible image. Therefore, his work can have an intermidial
character, because writing and image dialogue with each other in the building of
meaning. This article examines some of these poetic manifestations.

KEY WORDS: José Paulo Paes, concrete poetry, intermediality

Contigo adquiro a astúcia


de conter e de conter-me.
(José Paulo Paes, Ode à garrafa)

ESTUDOS LINGUÍSTICOS E LITERÁRIOS


Número 51 (1/2015) – ISSN: 2176-4794
http://www.estudos.ufba.br
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Introdução
Prática dialógica que parece ter existido desde muito, a Intermidialidade pode
ser percebida em textos de épocas e gêneros diversos (sendo a ópera, com o uso de
encenação, recitação, música, um exemplo dessa longa existência). Dessa maneira,
estudar o caráter intermidial de um texto não é uma investigação com um objeto
necessariamente contemporâneo, mas, é uma atividade essencial para que se entenda a
constituição de uma obra de arte, já que esta (assim como a mídia) sofre alterações de
acordo com práticas culturais e adventos tecnológicos, por exemplo.
A obra poética de José Paulo Paes, em alguns momentos, lança mão de recursos
visuais dessa natureza. No presente artigo, intenta-se discutir alguns dos significados
que a semantização do branco da página teria no livro Prosas seguidas de Odes
mínimas. Para tal, serão usados textos críticos que abordam esse recurso linguístico, seja
pelo viés da intermidialidade, seja pelo do Concretismo.
O estudo da teoria da Intermidialidade pretende ver, dentre outros aspectos, o
diálogo entre texto verbal e as imagens. Esse cruzamento de fronteiras entre mídias
pode apresentar um procedimento complexo já que a sugestão ou indicação de uma
imagem requer não apenas uma carga rica de sentido e de indução deste. O texto de
Irina Rajewsky (2009), Intermidialidade, intertextualidade e „remediação‟: uma
perspectiva literária sobre a intermidialidade, faz-se importante nesse âmbito, já que
trata da evocação de uma mídia em outra mídia. Esta, então, seria responsável pela
criação de imagens significativas, que perdurariam eficientemente. Dessa maneira, a
imagem passa a ter um lugar fundamental para a mídia, como um evento comunicativo
expressivo ao interlocutor.
No que tange ao Concretismo, este artigo terá também como referência a obra
Teoria da poesia concreta dos irmãos Campos e Décio Pignatari (2006). Outro texto
importante para o estudo da poesia concreta neste trabalho é o artigo O ver do poético: a
letra e o sentido, no qual Rogério Silva (2001) discorre acerca da contribuição de
Haroldo e Augusto de Campos, Décio Pignatari e sobre a noção de percepção da poesia
visual.
Finalmente, este texto se propõe a estudar as contribuições dessas poéticas para
uma linguagem criativa, imagética. Com isso, intenta-se um estudo das imagens e da

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suposta herança do Concretismo em Prosas seguidas de odes mínimas, de José Paulo


Paes.

1. Imagens concretas

Na segunda metade do século passado, viu-se em diversas partes do globo um


procedimento linguístico que estava para além do uso convencional do texto verbal e da
página em branco. A manipulação do espaço em branco como processo semantizador é
uma das principais características do movimento chamado Concretista.
Claus Clüver, em Arte transgênica1, citando Eduardo Kac, explica que no século
passado a poesia teve seu conceito dilatado por procedimentos visuais, sonoros.
Argumentando a partir de um experimento que envolve biologia e poesia, Clüver afirma
que a teorização e prática sobre esta
expandiram a convenção de se considerar como poesia todas as
formas de manipulação e experimentação da mídia verbal e suas
representações escritas, auditivas (...) rotuladas respectivamente de
poesia visual, concreta ou sonora
(CLAUS, sd, p. 01).

Com esse alargamento, o conceito do que seria poesia tornou-se mais fluido e
permitiu que amarras fossem libertadas: “A poesia midiática leva a linguagem além dos
limites da página impressa”. (CLAUS, sd, p. 07).

2. Imagens da vida

O livro Prosas seguidas de odes mínimas, de 1992, é dividido em duas partes,


como indica o título. A primeira traz o que o autor chamou de prosa – apesar da
evidente carga lírica e da estruturação em verso – por haver nela alguns poemas de
cunho narrativo como, por exemplo, A casa.
Contudo, as sugestões visuais dessa obra (por meio do espaço em branco)
situam-se na segunda parte. Nesta, o eu-lírico ocupa-se com uma poetização do trivial,
do ordinário, do (supostamente) anti-poético. As odes a elementos aparentemente banais

1
No prelo.

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como, por exemplo, a garrafa, a bengala e a tinta de escrever corroboram essa ideia de
que o livro lança luz sobre itens corriqueiros. Com isso, Paes, ironicamente, subverte o
conceito de ode. Esta, que no contexto helênico tinha a função de exaltar, por exemplo,
os feitos heróicos, passa no modernismo a valorizar objetos tidos como sem
importância, sob o signo da ruptura. A ode, por conseguinte, de forma paródica, atuaria
como um expediente de depreciação e/ou elogio irônico ao objeto tratado, em vários
poemas desse livro.
Usando de recursos que foram caros ao modernismo (uso de uma linguagem
simples, libertação de parnasianas amarras formais), o escritor paulista permite ao leitor
entrever o poder de expressão que perpassa sua obra. Essa força pode ser vista não só na
brevidade dos poemas, mas também nas imagens que a voz poética sugere (no caso,
essas seriam as tradicionais imagens mentais, construídas pelo leitor, diferentemente das
imagens visuais trabalhadas no branco da página, que serão analisadas à frente em Ode
à minha perna esquerda), como se vê, por exemplo, em Ode ao shopping Center: “Pelos
teus círculos / vagamos sem rumo / nós almas penadas / do mundo do consumo”.
(PAES, 1992, p. 73). Nesse poema, a alusão à Divina Comédia se desenha com a
comparação aos círculos do inferno percorridos pelos personagems Dante e Virgílio. O
centro de compras é concebido como um lugar terrível e sua arquitetura enclausura o
homem semiformado (que tenta se realizar no consumo, sua fonte de prazer). Dessa
maneira, além da sugestão de imagem (mental), o texto de José Paulo se faz com
corrosivas críticas ao indivíduo excessivamente consumidor.
Vale ressaltar ainda nesse poema a maneira como o tempo é sutilmente
construído. A metáfora do círculo como repetição remete à clássica concepção do tempo
circular. Assim, o “shopping Center”, lugar de monotonia, funciona como um castigo
atemporal cujo ápice se dá numa possível volta de Jesus Cristo à Terra numa oferta,
promoção: “nós que por teus círculos / vagamos sem perdão / à espera (até quando?) /
da Grande Liquidação.” (PAES, 1992, p. 73). O uso de letras maiúsculas no fim do
texto possibilita alçar a liquidação ordinária de uma loja ao posto de grande evento, o
qual é sutilmente comparado ao suposto retorno divino, devido à expectativa criada.
Nesse poema, portanto, há pelo menos duas faces do tempo que emergem: a busca
repetitiva e anódina nos corredores circulares e a lentidão na espera do evento. Tais

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ideias podem ser concebidas na alusão imagética ao círculo do inferno da Divina


Comédia.
A investigação detalhada acerca das imagens, das sugestões temporais, nos
poemas de Paes pode se configurar como um procedimento eficiente na leitura desse
autor. Alfredo Bosi, em texto de abertura do volume organizado por ele, Leitura de
poesia, coloca que o cerne da hermenêutica estaria nesse processo cuidadoso de
interpretação das diversas partes do poema: “(...) toda representação dispõe de leis
formais imanentes, motivo pelo qual não é um esforço arbitrário do intérprete rastrear as
relações que os momentos de um texto entretêm entre si ou com o todo”. (BOSI, 1996,
p. 15). Nesse texto, o crítico faz uma espécie de relato do início de sua vida acadêmica e
suas impressões sobre leitura de poesia a partir do contato que teve com as mais
diversas correntes teóricas.
Caminhando para além dessa perspectiva (de herança do modernismo e de
ressiginificação da ode), pode-se afirmar que é na segunda parte de Prosas seguidas de
odes mínimas que ocorrem possíveis diálogos intermidiais de modo mais evidente. O
autor paulista, nesses textos, faz uso de expedientes do Concretismo ao semantizar o
branco da página, ao construir imagens verbais – procedimentos linguísticos análogos
aos dos poemas de Haroldo de Campos e Décio Pignatari.
O poema Ode à perna esquerda é o exemplar nesse sentido, como se pode ver à
2
frente :

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As páginas escaneadas neste artigo referem-se à edição de 1992 (Paes, 1992, p. 55, 56, 58).

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A sugestão imagética acima fornece ao leitor a possibilidade de conceber o ato


de escalar uma cama, devido à manipulação do branco da página. Tal delineamento dos
degraus pode ajudar na apreensão do texto: o esforço do eu-lírico para vencer tais
obstáculos fica mais evidente com a sugestão imagética ali construída. Essa ode confnde
os limites entre poesia e vida, fazendo referência à fatalidade que acometeu o autor (no

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caso, a amputação da perna esquerda, relatada na autobiografia Quem, eu? Um poeta


como outro qualquer3.
Dessa maneira, o texto faria aquilo que se prega no Plano-piloto: uma imitação
do real. Em Plano-piloto para poesia concreta, dos irmãos Campos e de Décio Pignatari,
afirma-se que a poesia concreta toma consciência do espaço gráfico como agente
estrutural: “estrutura espaciotemporal, em vez de desenvolvimento meramente
temporístico-linear”. (CAMPOS, 2006, p. 215). Esse texto enumera uma série de
características da poesia concreta: apelo à comunicação não-verbal, “comunicação de
formas numa estrutura-conteúdo” sem abdicar das virtualidades da palavra, tentativa de
imitar o real por meio de imagens. O modo como estas são percebidas pelo leitor está
diretamente relacionado com a proposta desse projeto poético.
Rogério Silva, em O ver do poético: a letra e o sentido, discute o papel da
representação da poesia experimental e visual. O autor afirma que a poesia concreta
rompe com a dinastia da representação, pois conduz o leitor ao interior de si mesmo:

Ao colocar-se “fora de si mesma”, põe em evidência seu próprio ser, esta


claridade repentina revela uma distância mais do que um sinal, uma dispersão
mais do que um retorno dos signos sobre si mesmos. Ou seja, ela nos conduz
a esse exterior de onde desaparece o sujeito do qual se fala. (SILVA, 2001, p.
4).

A citação indica uma ideia de objetividade no texto. Enquanto o eu se


distanciaria do texto, a palavra, a letra como significante, emerge da página como signo
carregado de significado tautológico. Isto é, como se existisse à revelia da
representação, a poesia visual tenderia a ser o que ela mostra, por procurar
“isomorfismos entre linguagem e objeto”. (SILVA, 2001, p. 05). A objetividade poderia
ser vista também com a perspectiva de a poesia concreta se mostrar direta, abrindo mão
de estruturas sinuosamente silogísticas.
Silva ainda estabelece uma espécie de elogio à poesia que faz uso de recursos
gráfico-espacial e imagético. Esse autor argumenta que ela se mostra valiosa num
contexto em que a quantidade de informação contribui para um esvaziamento da

3
Nesse livro, Paes comenta sobre sua formação cultural e profissional, e também sobre episódios (como o
da perna esquerda) que teriam servido de base para alguns de seus poemas. Com tal consulta, o leitor
pode ver diferentes mediações discursivas (autobiográfica em Quem, eu?... e poética em Prosas
seguidas...) de um episódio.

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palavra. A palavra poética, como elemento ressignificante, age contra a mídia que limita
as formas de escrita: “[os] meios midiáticos saturam nossos sentidos perceptivos e
anulam o conteúdo comunicativo e informacional”. (SILVA, 2001, p. 05)
A poesia concreta, portanto, usa de meios que rompem com as tradicionais
amarras gráficas para, muitas vezes, sondar questões que não se limitam ao tempo em
que foram escritas. Isso poderia ser visto no drama vivido pela voz poética que conta
sobre o corpo mutilado. Por meio da evocação da imagem de degraus ou altas camas, é
sugerido ao leitor cenas cotidianas num hospital, através da estruturação do branco da
página. É com a disposição das palavras que a voz poética reforça a ideia de dificuldade
para subir no leito.
Contudo, é importante ressaltar que essa ode, diferentemente das manifestações
concretistas, é dotada de subjetividade, de um caráter pessoal do enunciador. O
Concretismo tinha como uma de suas características uma busca pela objetividade (que
está para além da noção de objetividade como concisão, evidente em Paes), e certo
subjetivismo, pessoalidade, e o próprio corpo como matéria poética (e, nesse autor, até
um autobiografismo) são traços da poesia paesiana que se distanciam da impessoalidade
concretista.
É importante ressaltar também que, em sua maior parte, os poemas de Paes são
escritos numa forma tradicional, em versos, sem maiores imagens visuais. Desse modo,
o poeta se distancia da tradição concretista por não ter como predominância em seus
textos poéticos a semantização do branco da página. As estratégias visuais em sua
poesia usam, com efeito, de expedientes do Concretismo, mas elas se mostram pontuais,
o que não faz dele, portanto, um concretista.
Em Intermidialidade, intertextualidade e remediação: uma perspectiva literária
sobre a intermidialidade, Irina Rajewsky (2009, p. 12), por sua vez, argumenta que
muito se pesquisa sobre o termo desde seu auge na década de 90, mas que ainda há o
que se resolver nesse âmbito linguístico. Segundo ela, a diversidade dos recursos
utilizados está refletida nos termos que surgem com a pesquisa nessa área (hibridização,
plurimidialidade etc.).
A autora afirma que muitas pesquisas se ocupam em reconhecer as mídias
presentes num texto, e outras, de verificar suas funções. No caso do poema de Paes,
intenta-se aqui examinar o diálogo entre texto escrito e imagem visual, bem como os

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possíveis significados que emergem dessa confluência. Esta advém de uma sugestão a
qual Rajewsky salienta como uma evocação, uma construção. A imagem de um poema
visual seria um recurso usado como se o escritor dispusesse, de fato, da imagem (como
ocorre, por exemplo, num filme):

Usando os meios específicos da sua mídia, o autor de um texto não pode, por
exemplo, “verdadeiramente” fazer um zoom, editar, dissolver imagens, ou
fazer uso de técnicas e regras do sistema cinematográfico; ele
necessariamente permanece dentro da sua própria mídia verbal, isto é, textual.
(...) ele pode apenas evocá-los [os recursos intermidiáticos de outro sistema
semiótico]. (RAJEWSKY, 2009, p. 13)

As imagens, portanto, sugeridas nos poemas de Paes (e dos, de fato,


concretistas) seriam evocações. Ou seja, o diálogo entre mídias no autor paulista
aconteceria por meio de uma mídia principal (a escrita verbal) e uma que se dá a
entender (as imagens visuais).
Essa ideia de poesia visual é cara aos poetas ditos concretistas. Estes
construíram uma consistente teoria que dialoga com uma agilidade supostamente
existente na contemporaneidade. Para Haroldo de Campos, no manifesto Olho por olho
a olho nu, a ideia era fazer:

uma arte – não q apresente – mas q presentifique (...)


Falidos os meios [tradicionais de ataque ao OBJETO
(língua de uso cotidiano ou de convenção literária)
um(a) novo(a) meio(língua)
(...) POESIA CONCRETA:
atualização “verbivocovisual
do OBJETO virtual.
(CAMPOS, 2006, p. 74)4.

É assim, manipulando essa ideia da palavra objeto-ideograma que o crítico fala


que a palavra possui dimensão gráfico-espacial, acústico-oral, conteudística (CAMPOS,
2006, p. 73). Dessa maneira, a poesia concreta poderia expor o que haveria de
imprevisível no objeto – lugar não alcançado nas amarras livrescas. Desse modo, tal
poesia seria dotada de uma agilidade e possibilidade de fruição que estaria em pleno
diálogo com a contemporaneidade.

4
Recomenda-se ler o manifesto para visualizar melhor a disposição textual feita por Campos.

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Esta, por sua vez, teria como atributo a dinamicidade. Poetas concretistas, por
exemplo, almejaram um texto poético marcado pela agilidade e precisão. Por isso,
marcas como a concisão na representação foram valorizadas. Em Aspectos da poesia
concreta, Haroldo de Campos discorre sobre a importância do ideograma chinês para o
Concretismo, já que caracteres linguísticos dessa língua seriam marcados pela
contenção e por uma comunicação direta. Citando Apollinaire, o autor afirma que era
preciso que a inteligência do homem se habituasse “a compreender sintético-
ideograficamente, em lugar de analítico-discursivamente”. (CAMPOS, 2006, p. 138).
Tal perspectiva aponta para uma preferência por textos de caráter sintético, com
aspectos visuais, como os mencionados ideogramas (em detrimento daqueles textos
longos que demandariam leituras e análises mais longas). Tal rapidez adviria não apenas
da brevidade, mas também do modo como o caráter visual é apresentado ao leitor.
A segunda imagem com a qual este artigo se ocupará (também recolhida do
poema Ode à minha perna esquerda5) poderia ser concebida não apenas como um
recurso da ordem visual, mas do sonoro também. A progressão representada na grafia
do não aponta para a postura não-passiva do enunciador; um indivíduo que não se rende
ao próprio drama, que encara a fatalidade. O uso gradativo da caixa alta sugere um
aumento do volume da voz: da fala ao grito. A imagem evocada nesses versos, então, é
sonora, mostrando um viés múltiplo, rico, da obra do escritor paulista.

5
(Paes, 1992, p. 56).

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Além do aumento do tamanho da fonte, a progressividade citada ainda se faz


presente por meio do aumento do espaçamento entre as letras no advérbio de negação.
O uso do ponto de exclamação, por sua vez, viria ratificar tal perspectiva de ênfase da
negação do sofrimento resignado, do não-conformismo.
O trecho citado ainda possui outras manifestações dotadas de herança do
Concretismo. A paina, espécie de fibra sedosa que reveste algumas sementes, tem seu
movimento de queda representado na grafia vertical da palavra, desenhando, assim, ao

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leitor, uma imagem mnemônica fantástica da voz poética: a paina, esse elemento leve e
primaveril é algo asfixiante para esse enunciador atormentado pela dor – fato que,
possivelmente, leva- o a conceber um céu denso de tal material.
Há de se mencionar também o recuo que recebem os versos “pé morto / pé
morto” aludindo, possivelmente, ao vazio, à solidão do pé que agora não tem o par;
sugerindo ainda, quiçá, o incômodo por meio da repetição.
A sugestão imagética, por sua vez, mostra um enunciador que não se deixa
sucumbir pela autopiedade. A fatalidade da perda do membro não é mote para apelo
sentimental. Isso porque se pode ver no poema um humor revestido de leve ironia. Em
certo momento, a voz poética se mostra comicamente irônica, não sucumbindo à
autopiedade, como se vê na pergunta “Pernas / para que vos quero?” ou na consideração
“Pernas? / Basta uma.” (PAES, 1992, p. 55).
É nessa toada que o sujeito poético usa do vazio da página para representar outro
vazio: a falta no corpo. A poetização da falta da perna esquerda configura-se como um
procedimento do modernismo brasileiro. Se no parnasianismo e no romantismo
privilegiavam-se temas grandiosos e um culto à regularidade da forma, a partir,
principalmente, da segunda década do século passado, ocorre uma ruptura com essas
escolas. Isso pode ser visto, por exemplo, no gosto pela paródia (como ocorre em Paes
no tratamento dado à ode) e na poetização do trivial e/ou do sujo, do escatológico.
Em O todo no mínimo, Luiz Carlos Junqueira Maciel discorre sobre
peculiaridades da escrita desse escritor paulista. A influência de Carlos Drummond de
Andrade, Oswald de Andrade e de outros modernistas faz-se presente em sua obra,
como se pode ver, por exemplo, no uso do trivial como tema. O pesquisador ainda
menciona o diálogo estabelecido com os concretistas:

A poesia de Paes aproxima-se, também, daquela elaborada pelos poetas


concretos (anos 50), principalmente pela condensação da linguagem, pela
remontagem vocabular, pelos jogos paronomásticos [uso de palavras que
soam semelhantes entre si], espacialização, incorporação do visual à estrutura
do poema. (MACIEL, 2002, p. 71).

Para além da estruturação do texto usando do branco da página, Maciel


vislumbra aproximações do autor de Prosas seguidas de odes mínimas com os

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concretistas. Assim, seja pelo estilo ou pelos recursos linguísticos usados, o poeta
paulista usa de alguns procedimentos caros à poesia dos irmãos Campos.
É importante ressaltar ainda que José Paulo além de poeta (e químico) foi um
profícuo ensaísta e tradutor, tendo publicado muitos textos teóricos sobre diversos
autores e traduzido poetas de diversas línguas (como se pode ver nas coletâneas de
poemas dinamarqueses que ele traduziu, ou ainda do poeta neo-helênico Konstantínos
Kaváfis). Essa vida intensamente dedicada à literatura permitiu-o trafegar bem pelo
espaço universitário, chegando a ministrar cursos na Unicamp e ter contatos com
críticos de renome da segunda metade do século passado. Tal repertório dialoga com a
sua poesia, que trabalha com aspectos que vão desde o apreço e a desconstrução da ode
até a semantização do branco da página.
Assim, a vida do poeta6, intensamente banhada pela literatura, é aparentemente
objeto de Ode à minha perna esquerda, na qual a voz poética usufrui da ironia para
tratar da perda desmedida, sem sucumbir às facilidades da autopiedade, como atesta o
fragmento à frente.

6
Como já mencionado, sugere-se ver um outro discurso de Paes, além do poético, sobre o suposto vivido,
em Quem, eu? Um poeta como outro qualquer.

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A penúltima parte dessa ode usa da já mencionada herança do Concretismo. A


semantização do espaço em branco nesse trecho sugere a falta do membro em questão.
Seja significando um caminhar (ponto de vista pouco provável já que as palavras
esquerda e direita estão lado a lado e, não, subsequentemente, como no andar humano),
seja significando apenas o paralelismo da morfologia desses membros, a
disposição/ausência das palavras nesse trecho aponta para a construção de uma imagem
diferente daquela que o enunciador tivera: dele, agora sem o membro.

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Com isso, parece razoável afirmar que as metáforas visuais em Paes indicam
movimento, mudança – do corpo, das coisas que rodeiam o corpo. A variação no tom da
voz, a flor que cai, as pernas que menos andam, configuram-se como elementos desse
tom de transição. As mudanças ali retratadas permitem ao leitor perceber traços que
estão presentes na obra do poeta paulista: a concisão (marca também do concretismo), o
humor sofisticado, a poetização do trivial7. Tais características desse poema, portanto,
colaboram para um entendimento da obra do autor que costuma apresentar esses
aspectos. A mudança, cria do tempo, então, permite perceber o que é constante, inerente
ao indivíduo: a sutileza sintética presente nos textos verbais, em imagens visuais e
mentais; a exposição não-sinuosa da mensagem; o humor corrosivo do epigrama; a
suposta fusão entre autor e sujeito poético.

Conclusão

A poesia de Paes usa de expedientes linguísticos do Concretismo. Contudo, ela


não é marcada principalmente por tal revisitação. As imagens evocadas nos trechos
citados indicam um caráter intermidial do texto e apontam para uma herança, para um
ponto tangente da escrita de Paes com os concretistas.
Seria possível afirmar que outra característica do Concretismo, a concisão,
também se faz presente. Todavia, é importante mencionar que a brevidade dos poemas
desse escritor pode advir do gosto pelo epigrama, forma recorrente na poética paesiana.
Há de se ressaltar ainda que a impessoalidade da poesia concreta não é marca da
poética de José Paulo Paes. Ao mencionar, por exemplo, o trágico episódio da perda do
membro inferior, o autor faz confundir os limites entre o autor e o eu-lírico, como
ocorre em Ode à minha perna esquerda. Esse poema é apenas um exemplo dessa
presença na sua escrita8.
Por fim, é possível dizer que, devido ao fato de a sematização do branco da
página não ser predominante (diante do verso tido como tradicional), Paes se distancia
do projeto concretista que visava a uma compreensão “sintético-ideográfica”. Isso pelo

7
Uma dessemelhança entre a poesia de Paes e a dos concretistas é o fato de o escritor paulista fazer uma
poesia do eu, característica diferente da objetividade concretista.
8
Seria possível pensar, para citar apenas mais um exemplo, caso em que a voz poética menciona Dora,
nome da esposa do poeta, tornando assim nebulosos os limites entre vida e poesia.

15
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fato de a obra desse poeta estar mais próxima de uma perspectiva “analítico-discursiva”
(cf. CAMPOS, 2006, p. 138), já que tem, majoritariamente, o verso tradicional, mesmo
que breve, como uma de suas marcas.

Referências bibliográficas

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