ECOS DO CONCRETISMO E DA INTERMIDIALIDADE
ECOS DO CONCRETISMO E DA INTERMIDIALIDADE
ECOS DO CONCRETISMO E DA INTERMIDIALIDADE
ABSTRACT: The poetry of Paes, best known for its brevity, uses elements from concrete
poetry: the use of the blank space on the page as a semantic suggestion could be a
representation of an invisible image. Therefore, his work can have an intermidial
character, because writing and image dialogue with each other in the building of
meaning. This article examines some of these poetic manifestations.
Introdução
Prática dialógica que parece ter existido desde muito, a Intermidialidade pode
ser percebida em textos de épocas e gêneros diversos (sendo a ópera, com o uso de
encenação, recitação, música, um exemplo dessa longa existência). Dessa maneira,
estudar o caráter intermidial de um texto não é uma investigação com um objeto
necessariamente contemporâneo, mas, é uma atividade essencial para que se entenda a
constituição de uma obra de arte, já que esta (assim como a mídia) sofre alterações de
acordo com práticas culturais e adventos tecnológicos, por exemplo.
A obra poética de José Paulo Paes, em alguns momentos, lança mão de recursos
visuais dessa natureza. No presente artigo, intenta-se discutir alguns dos significados
que a semantização do branco da página teria no livro Prosas seguidas de Odes
mínimas. Para tal, serão usados textos críticos que abordam esse recurso linguístico, seja
pelo viés da intermidialidade, seja pelo do Concretismo.
O estudo da teoria da Intermidialidade pretende ver, dentre outros aspectos, o
diálogo entre texto verbal e as imagens. Esse cruzamento de fronteiras entre mídias
pode apresentar um procedimento complexo já que a sugestão ou indicação de uma
imagem requer não apenas uma carga rica de sentido e de indução deste. O texto de
Irina Rajewsky (2009), Intermidialidade, intertextualidade e „remediação‟: uma
perspectiva literária sobre a intermidialidade, faz-se importante nesse âmbito, já que
trata da evocação de uma mídia em outra mídia. Esta, então, seria responsável pela
criação de imagens significativas, que perdurariam eficientemente. Dessa maneira, a
imagem passa a ter um lugar fundamental para a mídia, como um evento comunicativo
expressivo ao interlocutor.
No que tange ao Concretismo, este artigo terá também como referência a obra
Teoria da poesia concreta dos irmãos Campos e Décio Pignatari (2006). Outro texto
importante para o estudo da poesia concreta neste trabalho é o artigo O ver do poético: a
letra e o sentido, no qual Rogério Silva (2001) discorre acerca da contribuição de
Haroldo e Augusto de Campos, Décio Pignatari e sobre a noção de percepção da poesia
visual.
Finalmente, este texto se propõe a estudar as contribuições dessas poéticas para
uma linguagem criativa, imagética. Com isso, intenta-se um estudo das imagens e da
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1. Imagens concretas
Com esse alargamento, o conceito do que seria poesia tornou-se mais fluido e
permitiu que amarras fossem libertadas: “A poesia midiática leva a linguagem além dos
limites da página impressa”. (CLAUS, sd, p. 07).
2. Imagens da vida
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No prelo.
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como, por exemplo, a garrafa, a bengala e a tinta de escrever corroboram essa ideia de
que o livro lança luz sobre itens corriqueiros. Com isso, Paes, ironicamente, subverte o
conceito de ode. Esta, que no contexto helênico tinha a função de exaltar, por exemplo,
os feitos heróicos, passa no modernismo a valorizar objetos tidos como sem
importância, sob o signo da ruptura. A ode, por conseguinte, de forma paródica, atuaria
como um expediente de depreciação e/ou elogio irônico ao objeto tratado, em vários
poemas desse livro.
Usando de recursos que foram caros ao modernismo (uso de uma linguagem
simples, libertação de parnasianas amarras formais), o escritor paulista permite ao leitor
entrever o poder de expressão que perpassa sua obra. Essa força pode ser vista não só na
brevidade dos poemas, mas também nas imagens que a voz poética sugere (no caso,
essas seriam as tradicionais imagens mentais, construídas pelo leitor, diferentemente das
imagens visuais trabalhadas no branco da página, que serão analisadas à frente em Ode
à minha perna esquerda), como se vê, por exemplo, em Ode ao shopping Center: “Pelos
teus círculos / vagamos sem rumo / nós almas penadas / do mundo do consumo”.
(PAES, 1992, p. 73). Nesse poema, a alusão à Divina Comédia se desenha com a
comparação aos círculos do inferno percorridos pelos personagems Dante e Virgílio. O
centro de compras é concebido como um lugar terrível e sua arquitetura enclausura o
homem semiformado (que tenta se realizar no consumo, sua fonte de prazer). Dessa
maneira, além da sugestão de imagem (mental), o texto de José Paulo se faz com
corrosivas críticas ao indivíduo excessivamente consumidor.
Vale ressaltar ainda nesse poema a maneira como o tempo é sutilmente
construído. A metáfora do círculo como repetição remete à clássica concepção do tempo
circular. Assim, o “shopping Center”, lugar de monotonia, funciona como um castigo
atemporal cujo ápice se dá numa possível volta de Jesus Cristo à Terra numa oferta,
promoção: “nós que por teus círculos / vagamos sem perdão / à espera (até quando?) /
da Grande Liquidação.” (PAES, 1992, p. 73). O uso de letras maiúsculas no fim do
texto possibilita alçar a liquidação ordinária de uma loja ao posto de grande evento, o
qual é sutilmente comparado ao suposto retorno divino, devido à expectativa criada.
Nesse poema, portanto, há pelo menos duas faces do tempo que emergem: a busca
repetitiva e anódina nos corredores circulares e a lentidão na espera do evento. Tais
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As páginas escaneadas neste artigo referem-se à edição de 1992 (Paes, 1992, p. 55, 56, 58).
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Nesse livro, Paes comenta sobre sua formação cultural e profissional, e também sobre episódios (como o
da perna esquerda) que teriam servido de base para alguns de seus poemas. Com tal consulta, o leitor
pode ver diferentes mediações discursivas (autobiográfica em Quem, eu?... e poética em Prosas
seguidas...) de um episódio.
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palavra. A palavra poética, como elemento ressignificante, age contra a mídia que limita
as formas de escrita: “[os] meios midiáticos saturam nossos sentidos perceptivos e
anulam o conteúdo comunicativo e informacional”. (SILVA, 2001, p. 05)
A poesia concreta, portanto, usa de meios que rompem com as tradicionais
amarras gráficas para, muitas vezes, sondar questões que não se limitam ao tempo em
que foram escritas. Isso poderia ser visto no drama vivido pela voz poética que conta
sobre o corpo mutilado. Por meio da evocação da imagem de degraus ou altas camas, é
sugerido ao leitor cenas cotidianas num hospital, através da estruturação do branco da
página. É com a disposição das palavras que a voz poética reforça a ideia de dificuldade
para subir no leito.
Contudo, é importante ressaltar que essa ode, diferentemente das manifestações
concretistas, é dotada de subjetividade, de um caráter pessoal do enunciador. O
Concretismo tinha como uma de suas características uma busca pela objetividade (que
está para além da noção de objetividade como concisão, evidente em Paes), e certo
subjetivismo, pessoalidade, e o próprio corpo como matéria poética (e, nesse autor, até
um autobiografismo) são traços da poesia paesiana que se distanciam da impessoalidade
concretista.
É importante ressaltar também que, em sua maior parte, os poemas de Paes são
escritos numa forma tradicional, em versos, sem maiores imagens visuais. Desse modo,
o poeta se distancia da tradição concretista por não ter como predominância em seus
textos poéticos a semantização do branco da página. As estratégias visuais em sua
poesia usam, com efeito, de expedientes do Concretismo, mas elas se mostram pontuais,
o que não faz dele, portanto, um concretista.
Em Intermidialidade, intertextualidade e remediação: uma perspectiva literária
sobre a intermidialidade, Irina Rajewsky (2009, p. 12), por sua vez, argumenta que
muito se pesquisa sobre o termo desde seu auge na década de 90, mas que ainda há o
que se resolver nesse âmbito linguístico. Segundo ela, a diversidade dos recursos
utilizados está refletida nos termos que surgem com a pesquisa nessa área (hibridização,
plurimidialidade etc.).
A autora afirma que muitas pesquisas se ocupam em reconhecer as mídias
presentes num texto, e outras, de verificar suas funções. No caso do poema de Paes,
intenta-se aqui examinar o diálogo entre texto escrito e imagem visual, bem como os
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possíveis significados que emergem dessa confluência. Esta advém de uma sugestão a
qual Rajewsky salienta como uma evocação, uma construção. A imagem de um poema
visual seria um recurso usado como se o escritor dispusesse, de fato, da imagem (como
ocorre, por exemplo, num filme):
Usando os meios específicos da sua mídia, o autor de um texto não pode, por
exemplo, “verdadeiramente” fazer um zoom, editar, dissolver imagens, ou
fazer uso de técnicas e regras do sistema cinematográfico; ele
necessariamente permanece dentro da sua própria mídia verbal, isto é, textual.
(...) ele pode apenas evocá-los [os recursos intermidiáticos de outro sistema
semiótico]. (RAJEWSKY, 2009, p. 13)
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Recomenda-se ler o manifesto para visualizar melhor a disposição textual feita por Campos.
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Esta, por sua vez, teria como atributo a dinamicidade. Poetas concretistas, por
exemplo, almejaram um texto poético marcado pela agilidade e precisão. Por isso,
marcas como a concisão na representação foram valorizadas. Em Aspectos da poesia
concreta, Haroldo de Campos discorre sobre a importância do ideograma chinês para o
Concretismo, já que caracteres linguísticos dessa língua seriam marcados pela
contenção e por uma comunicação direta. Citando Apollinaire, o autor afirma que era
preciso que a inteligência do homem se habituasse “a compreender sintético-
ideograficamente, em lugar de analítico-discursivamente”. (CAMPOS, 2006, p. 138).
Tal perspectiva aponta para uma preferência por textos de caráter sintético, com
aspectos visuais, como os mencionados ideogramas (em detrimento daqueles textos
longos que demandariam leituras e análises mais longas). Tal rapidez adviria não apenas
da brevidade, mas também do modo como o caráter visual é apresentado ao leitor.
A segunda imagem com a qual este artigo se ocupará (também recolhida do
poema Ode à minha perna esquerda5) poderia ser concebida não apenas como um
recurso da ordem visual, mas do sonoro também. A progressão representada na grafia
do não aponta para a postura não-passiva do enunciador; um indivíduo que não se rende
ao próprio drama, que encara a fatalidade. O uso gradativo da caixa alta sugere um
aumento do volume da voz: da fala ao grito. A imagem evocada nesses versos, então, é
sonora, mostrando um viés múltiplo, rico, da obra do escritor paulista.
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(Paes, 1992, p. 56).
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leitor, uma imagem mnemônica fantástica da voz poética: a paina, esse elemento leve e
primaveril é algo asfixiante para esse enunciador atormentado pela dor – fato que,
possivelmente, leva- o a conceber um céu denso de tal material.
Há de se mencionar também o recuo que recebem os versos “pé morto / pé
morto” aludindo, possivelmente, ao vazio, à solidão do pé que agora não tem o par;
sugerindo ainda, quiçá, o incômodo por meio da repetição.
A sugestão imagética, por sua vez, mostra um enunciador que não se deixa
sucumbir pela autopiedade. A fatalidade da perda do membro não é mote para apelo
sentimental. Isso porque se pode ver no poema um humor revestido de leve ironia. Em
certo momento, a voz poética se mostra comicamente irônica, não sucumbindo à
autopiedade, como se vê na pergunta “Pernas / para que vos quero?” ou na consideração
“Pernas? / Basta uma.” (PAES, 1992, p. 55).
É nessa toada que o sujeito poético usa do vazio da página para representar outro
vazio: a falta no corpo. A poetização da falta da perna esquerda configura-se como um
procedimento do modernismo brasileiro. Se no parnasianismo e no romantismo
privilegiavam-se temas grandiosos e um culto à regularidade da forma, a partir,
principalmente, da segunda década do século passado, ocorre uma ruptura com essas
escolas. Isso pode ser visto, por exemplo, no gosto pela paródia (como ocorre em Paes
no tratamento dado à ode) e na poetização do trivial e/ou do sujo, do escatológico.
Em O todo no mínimo, Luiz Carlos Junqueira Maciel discorre sobre
peculiaridades da escrita desse escritor paulista. A influência de Carlos Drummond de
Andrade, Oswald de Andrade e de outros modernistas faz-se presente em sua obra,
como se pode ver, por exemplo, no uso do trivial como tema. O pesquisador ainda
menciona o diálogo estabelecido com os concretistas:
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concretistas. Assim, seja pelo estilo ou pelos recursos linguísticos usados, o poeta
paulista usa de alguns procedimentos caros à poesia dos irmãos Campos.
É importante ressaltar ainda que José Paulo além de poeta (e químico) foi um
profícuo ensaísta e tradutor, tendo publicado muitos textos teóricos sobre diversos
autores e traduzido poetas de diversas línguas (como se pode ver nas coletâneas de
poemas dinamarqueses que ele traduziu, ou ainda do poeta neo-helênico Konstantínos
Kaváfis). Essa vida intensamente dedicada à literatura permitiu-o trafegar bem pelo
espaço universitário, chegando a ministrar cursos na Unicamp e ter contatos com
críticos de renome da segunda metade do século passado. Tal repertório dialoga com a
sua poesia, que trabalha com aspectos que vão desde o apreço e a desconstrução da ode
até a semantização do branco da página.
Assim, a vida do poeta6, intensamente banhada pela literatura, é aparentemente
objeto de Ode à minha perna esquerda, na qual a voz poética usufrui da ironia para
tratar da perda desmedida, sem sucumbir às facilidades da autopiedade, como atesta o
fragmento à frente.
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Como já mencionado, sugere-se ver um outro discurso de Paes, além do poético, sobre o suposto vivido,
em Quem, eu? Um poeta como outro qualquer.
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Com isso, parece razoável afirmar que as metáforas visuais em Paes indicam
movimento, mudança – do corpo, das coisas que rodeiam o corpo. A variação no tom da
voz, a flor que cai, as pernas que menos andam, configuram-se como elementos desse
tom de transição. As mudanças ali retratadas permitem ao leitor perceber traços que
estão presentes na obra do poeta paulista: a concisão (marca também do concretismo), o
humor sofisticado, a poetização do trivial7. Tais características desse poema, portanto,
colaboram para um entendimento da obra do autor que costuma apresentar esses
aspectos. A mudança, cria do tempo, então, permite perceber o que é constante, inerente
ao indivíduo: a sutileza sintética presente nos textos verbais, em imagens visuais e
mentais; a exposição não-sinuosa da mensagem; o humor corrosivo do epigrama; a
suposta fusão entre autor e sujeito poético.
Conclusão
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Uma dessemelhança entre a poesia de Paes e a dos concretistas é o fato de o escritor paulista fazer uma
poesia do eu, característica diferente da objetividade concretista.
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Seria possível pensar, para citar apenas mais um exemplo, caso em que a voz poética menciona Dora,
nome da esposa do poeta, tornando assim nebulosos os limites entre vida e poesia.
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fato de a obra desse poeta estar mais próxima de uma perspectiva “analítico-discursiva”
(cf. CAMPOS, 2006, p. 138), já que tem, majoritariamente, o verso tradicional, mesmo
que breve, como uma de suas marcas.
Referências bibliográficas
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PAES, José Paulo. Quem, eu? Um poeta como outro qualquer. São Paulo: Atual, 1996.
PIGNATARI, Décio; CAMPOS, Augusto de; CAMPOS, Haroldo de. Teoria da poesia
concreta. São Paulo: Ateliê Editorial, 2006.
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