Ok Imprensa e Censura

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RBHM | ISSN 2238-5126

Imprensa e censura no contexto da ditadura: entre a memória


e o esquecimento
Marialva BARBOSA1
Ana Regina RÊGO2

Resumo:
Este artigo se propõe a trazer para o debate o contexto da ditadura civil-militar no Brasil considerado um período
de disputas e construções memoriais que se lançam na historiografia com narrativas que trazem versões distintas
sobre o tempo e o contexto narrados. As tensionalidades alcançam os campos midiático, político, histórico, cultural
e social e a mídia teve e tem papel de grande importância no jogo das versões de verdades que desejam alcançar a
historiografia, sobretudo, quando se viu sob o bastão da censura de um Estado ditatorial. O objetivo deste texto é
refletir de que maneira e com que propósito a censura atuou diretamente contra os meios de comunicação no
contexto da ditadura militar.

Palavras-chave: AI-5; ditadura civil-militar; imprensa; censura; memória.

Press and censorship in the context of the dictatorship (1968-


1978): between memory and oblivion
Abstract:
This article proposes to bring to the debate the context of the civil-military dictatorship in Brazil, considered a
period of disputes and memorial constructions that are launched in historiography with narratives that bring
different versions of the narrated time and context. The tensionalities reach the mediatic, political, historical,
cultural and social fields and the media had and still has a very important role in the game of versions of truths
that want to reach historiography, especially when it was under the censorship of a dictatorial state. The purpose
of this text is to reflect on how and for what purpose censorship acted directly against the media in the context of
the military dictatorship.

Keywords: AI-5; civil-military dictatorship; press; censorship; memory.

Prensa y censura en el contexto de la dictadura (1968-1978): entre


la memoria y el olvido
Resumen:
Este artículo se propone traer al debate el contexto de la dictadura cívico-militar en Brasil, considerado un período
de disputas y construcciones memoriales que se lanzan en la historiografía con narrativas que traen diferentes

1
Doutora em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Professora da Escola de Comunicação da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO-UFRJ). E-mail: marialva153@gmail.com
2
Doutora em Processos Comunicacionais pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP/UAB). Professora
do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal do Piauí (PPGCOM-UFPI). E-mail:
anareginarego@gmail.com

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versiones del tiempo y contexto narrado. Las tensionalidades alcanzan los campos mediático, político, histórico,
cultural y social y los medios de comunicación tuvieron y tienen un papel muy importante en el juego de versiones
de verdades que quieren llegar a la historiografía, sobre todo cuando se encontraba bajo la censura de un estado
dictatorial. El propósito de este texto es reflexionar sobre cómo y con qué finalidad la censura actuó directamente
contra los medios de comunicación en el contexto de la dictadura militar.

Palabras clave: AI-5; dictadura civil-militar; prensa; censura; memoria.

Introdução

A ditadura civil-militar no Brasil é um período de disputas e construções memoriais que


se lançam na historiografia com narrativas que trazem versões distintas sobre o tempo e o
contexto narrados. As tensionalidades alcançam os campos midiático, político, histórico,
cultural e social e a mídia teve e tem papel de grande importância no jogo das versões de
verdades que desejam alcançar a historiografia, sobretudo, quando se viu sob o bastão da
censura de um Estado ditatorial.
O objetivo deste texto é refletir de que maneira e com que propósito a censura atuou
diretamente contra os meios de comunicação no contexto da ditadura militar.
Apesar de toda a grande imprensa - com algumas exceções, como foi o caso do jornal
Ultima Hora, dirigido por Samuel Wainer - ter apoiado o Golpe de 1964, no momento seguinte
foram várias as investidas contra os meios de comunicação então existentes, o que levou alguns
a se colocarem paulatinamente contra o Governo, sofrendo então diretamente a ação censória.
Devemos considerar ainda que a censura política em momentos de autoritarismo age de
forma intermitente, não constante e de maneira diferenciada em relação aos veículos de
comunicação (Aquino, 2002) e que no período militar essa ação não foi diferente.
O argumento frequentemente apresentado para a instituição da censura em todas as
dimensões da vida cultural do país coloca em evidência o papel que se atribuía aos meios de
comunicação: além de informar, deveriam orientar a população, tutelados pelo Estado. Os
conteúdos que poderiam servir de estímulo à oposição dos militares deveriam ser alijados das
publicações. O argumento que se vivia um período de “guerra” (promovida pelos estudantes e
pelos “terroristas”) servia para justificar as ações de exceção (Barbosa, 2007, p. 189).
Inicialmente a censura ficava a cargo das Forças Armadas, mas num segundo momento
passava a ser de responsabilidade do Ministério da Justiça e, finalmente, da Polícia Federal.

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Diversos jornais do país foram ocupados por militares, outros foram alvos de atos de sabotagem,
outros tantos foram impedidos de circular. E a censura à imprensa e aos meios de comunicação
de maneira geral perdurou, com intensidade variada, de 1969 a 1978.
Em função da repressão, se, por um lado, inúmeros veículos de comunicação
enfrentaram dificuldades levando alguns a fecharem as portas, por outro há o aparecimento de
uma imprensa que queria construir brechas para continuar a divulgar informações daquele
mundo em crise. É a chamada imprensa alternativa 3.
Os famosos bilhetinhos encaminhados aos jornais com ordens expressas para que não
se publicasse determinadas notícias, os telefonemas recebidos e que se transformaram em
memorandos dos chefes de redação e de reportagem aos seus subordinados atestam, pela
documentação escrita, a dura realidade cotidiana da imprensa brasileira nos anos de chumbo.
Durante o regime militar, vários foram os órgãos da imprensa submetidos às teias da censura.
Mas havia ainda as ações de autocensura, como alerta Kucinski (2002).
Nesse momento pode-se distinguir dois tipos de censura: aquela que era praticada pelos
bilhetinhos e telefonemas, com o objetivo, na ótica dos militares, de proteger o regime e as
instituições, sendo comum a toda a imprensa; e aquela que atingia as publicações submetidas à
censura prévia. Nesse caso, os critérios eram outros e tinham relação direta com a desconfiança
do regime militar diante de tais veículos. “Houve lógica na censura prévia e ela foi sensível às
diferenças dos órgãos de divulgação que vetou, atacando com precisão o ponto em que cada um
deles seria considerado mais perigoso na ótica governamental” (Aquino, 2002, p. 531). As
consequências foram catastróficas para os veículos, causando prejuízos financeiros irreparáveis
(Maia, 2002),
Embora todos os periódicos em princípio pudessem ser submetidos à censura, o olhar
discriminatório recaía com mais intensidade sobre os jornais alternativos, já que nesse tipo de
publicação as críticas e os embates em relação ao regime militar eram mais frequentes. Na
década de 1970, foram poucas as publicações da chamada grande imprensa que sofreram
censura prévia. Além da Tribuna da Imprensa, que esteve sob censura por quase dez anos,
também os jornais O Estado de S. Paulo e o Jornal da Tarde ficaram sob censura entre 1972 e

3
Sobre a imprensa alternativa, cf. entre outros, Kucinksi (1991).

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1975; A Notícia, de Manaus, entre 1975 e 1978; e a revista Veja, que foi submetida à censura
prévia em 1972 e entre 1974 e 1976 (Maia, 2002).
O nome imprensa alternativa (também chamada de nanica) era utilizado para classificar
mais uma centena de publicações que surgiram entre 1964 e 1980. Opinião, Pasquim e
Movimento foram os mais importantes. Esse tipo de publicação, muitas vezes de periodicidade
incerta, englobava um jornalismo que “não está ligado a políticas dominantes; o de uma opção
entre duas coisas reciprocamente excludentes; o de única situação difícil e, finamente, o do
desejo das gerações dos anos 60 e 70 de protagonizar as transformações sociais que pregavam”
(Kucinski, 1991, p. XIII).
Paolo Marconi (1980) reproduz alguns depoimentos do que chamou “jornalistas
censurados”. Neles, os jornalistas, como porta-vozes desse momento, denunciam o caráter
empresarial da imprensa e que, dessa forma, não poderia, por questões econômicas, ser
contrária às ações do governo ditatorial. Cooptação parece ser a palavra com que esses porta-
vozes da memória de um grupo percebem a ação de toda a grande imprensa.

Um movimento de muitas faces


Caracterizar a experiência ditatorial brasileira de maneira única é produzir uma
interpretação equivocada do passado. A alternância entre momentos de repressão expressiva
com outros em que vigorava alguma liberdade decorria também do fato de ocupar o centro do
poder determinados grupos que disputavam o poder político nas Forças Armadas. A alternância
entre esses grupos (os que eram favoráveis ao extremo autoritarismo e aqueles que possuíam
pretensões democráticas) influenciou não apenas a força da censura frente aos movimentos de
expressão, como também produziu impacto na maneira como se deu a transição do período
ditatorial à redemocratização (Kinzo; Braga, 2007).
A censura não foi nem unilinear, nem aleatória, nem atingiu da mesma maneira todos
os meios de comunicação, como já enfatizamos. Há que se considerar ainda a idealização na
forma como se percebe a atuação da imprensa em períodos de exceção e como a própria
imprensa constrói posteriormente um discurso que prioriza a luta que empreenderam – de
maneira indiscriminada e genérica – contra a ação da censura.

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Vale destacar que o AI-5 não foi o instrumento instaurador da censura direta ao campo
da comunicação. Carlos Castello Branco, em sua coluna no Jornal do Brasil de 14 de dezembro
de 1968, esclarece que “ [...] a imprensa aparentemente foi poupada. Na realidade o tema deverá
ser tratado num ato complementar, tal como antecipavam ontem os deputados situacionistas”.
Todavia, mesmo sem a regulamentação específica, o governo já atuava diretamente intervindo
na produção e veiculação do que poderia vir a ser noticiado, respaldado pela Lei 5.250, de 09
de fevereiro de 1967.
Ao campo cultural foi imposto uma forte censura que atingiu o teatro, a música, o
cinema e a literatura. Os livros também foram alvo da censura por meio do Decreto 1.077, de
26 de janeiro de 1970, que detalhava, logo em seu caput, a necessidade de preservar, sobretudo,
“a moral e os costumes”:

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, usando da atribuição que lhe confere o


artigo 55, inciso I da Constituição e

CONSIDERANDO que a Constituição da República, no artigo 153, § 8º


dispõe que não serão toleradas as publicações e exteriorizações contrárias à
moral e aos costumes;

CONSIDERANDO que essa norma visa a proteger a instituição da família,


preserva-lhe os valores éticos e assegurar a formação sadia e digna da
mocidade;

CONSIDERANDO, todavia, que algumas revistas fazem publicações


obscenas e canais de televisão executam programas contrários à moral e aos
bons costumes;

CONSIDERANDO que se tem generalizado a divulgação de livros que


ofendem frontalmente à moral comum;

CONSIDERANDO que tais publicações e exteriorizações estimulam a


licença, insinuam o amor livre e ameaçam destruir os valores morais da
sociedade Brasileira;

CONSIDERANDO que o emprego desses meios de comunicação obedece a


um plano subversivo, que põe em risco a segurança nacional.

DECRETA:
Art. 1º Não serão toleradas as publicações e exteriorizações contrárias à moral
e aos bons costumes quaisquer que sejam os meios de comunicação [...].

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O decreto acima mencionado foi regulamentado pela Portaria 11-B, publicada em 06 de


fevereiro de 1970 e que censurava o conteúdo, a publicação e a circulação de livros.
Em 29 dezembro de 1970, o Ministério da Justiça publicou no Diário Oficial a Instrução
N. 2, sob o título “Verificação prévia”, e que se dedicava a ampliar a abrangência do Decreto
1.077 e da Portaria 11-B, passando a incluir livros e periódicos diretamente. A Coluna do
Castello publicada no Jornal do Brasil de 01 de janeiro de 1971, detalha os perigos que a
Instrução imposta pelo governo oferecia para a democracia.

“Verificação prévia”, expressão nova e inadequada, em realidade quer dizer


censura prévia. A instrução, que levou o n° 2, vem alterar o processo de
execução da Portaria 11-B, que por sua vez foi baixada para tornar aplicável
o Decreto-lei n° 1 077, que instituiu no país a censura prévia de livros e
periódicos, e até certo ponto para atender aos protestos surgidos em
consequência da edição daquele decreto-lei de constitucionalidade no mínimo
duvidosa.
A instrução não tem mais do que dois artigos. No primeiro diz que a
“verificação prévia” de periódicos será feita “em exemplar já impresso com
todas as características de publicação a ser exposta à venda pública”. O Artigo
2 diz que a censura de livros “poderá ser feita em original datilografado”, ou
seja, mais ou menos conforme o processo que vinha sendo usado também para
a “verificação” de periódicos, que admitia a prova gráfica. [...]. (Coluna do
Castello, Jornal do Brasil, 01 jan. 1971, p. 4).

No depoimento de um dos mais importantes jornalistas do período, Danton Jobim (1984,


p. 20) a crítica que alguns órgãos exerciam ao governo, aliado ao fato de não estarem
“informando e orientando a população que os órgãos controlados pelos militares estavam
empenhados em fazer frente à guerra revolucionária” fora determinante para a mudança de
rumo. O argumento frequentemente utilizado que o país vivia uma guerra revolucionária, das
quais as manifestações estudantis e os atentados atribuídos a terroristas eram as provas cabais
justificava, na visão do governo ditatorial, toda a exceção promovida pelo regime. Segundo a
crítica frequentemente repetida, a imprensa tratava de forma leviana temas explosivos que eram
expostos não de forma realista, mas “com exagero sensacionalista” (Jobim, 1984, p.20).
No contexto do final da década de 1960, com o descontentamento diante das ações
contra as liberdades democráticas, eclodiram diversos movimentos para expressar
publicamente a oposição aos militares. O ano de 1968 ficou marcado mais do que como
momento de contestação, como marco de expressões múltiplas contra a ditadura. Diversas
manifestações tomaram as ruas, sobretudo, nas duas maiores cidades do país: a Passeata dos

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Cem Mil, no Rio de Janeiro, e a Batalha da Maria Antonia, em São Paulo, são instantes de
visibilidade da contestação e que sofreriam dura repressão do governo, culminando com a
edição do Ato Institucional nº 5, que instituiu poderes discricionários de maneira generalizada
em todo território.
Qual foi o posicionamento dos periódicos mais importantes do país no momento
imediatamente posterior em que se anunciava o acirramento dos mecanismos ditatoriais? Que
estratégias narrativas foram construídas pelos jornais no momento pós-AI-5, quando já viviam
as consequências da censura, como realidade ou como ameaça que pairava permanentemente
no ar? Que estratégias narrativas foram adotadas para continuar, pelas brechas, noticiando um
momento de endurecimento das ações contra todos aqueles que eram contra a ditadura militar?
Como os jornais passaram a noticiar os eventos de natureza política?

Narrando o AI-5
Publicado em 13 de dezembro de 1968, o Ato Institucional de número 5, já previsto e
noticiado pela imprensa brasileira, em certa medida, procurava denunciar os atos que estariam
por vir, embora como dito, até a sua publicação, a maior parte dos veículos de comunicação e
muitos jornalistas estivessem favoráveis ao regime. Um desses casos foi Carlos Castello
Branco, que, favorável ao golpe, que denominava de “revolução”, coloca-se contra o regime
civil-militar tão logo este se mostra cada vez mais coercitivo e antidemocrático.
Conforme detalha Rêgo (2014), Carlos Castello Branco realiza minuciosa análise do
AI-5 em sua coluna publicada em 14 de dezembro de 1968, com as Primeiras impressões sobre
o ato. Para o jornalista, o AI-5 era completo e abrangia vários prismas da vida política,
econômica e social do país. Todavia, para além disso, se colocava como um instrumento de
evocação de um poder totalitário.
O Ato Institucional de número 5, que reinaria por dez anos, e a censura seriam
impositores de comportamentos e práticas para a imprensa brasileira, contudo, a criatividade
daria vazão a inúmeras estratégias narrativas e modos de fugir, denunciar e criar alternativas de
repassar situações complicadas ao público brasileiro. No presente texto, abordamos três
estratégias adotadas pelo Correio da Manhã nesse sentido, mas que eram replicadas pelos
jornais Brasil à fora.

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A primeira estratégia narrativa que identificamos foi a de transformar a normalidade em


evento extraordinário, produzindo uma ruptura nas práticas reconhecidas do jornalismo. No dia
seguinte à edição das manchetes que anunciaram a promulgação do ato discricionário e
repressor, o Correio da Manhã anunciava em sua primeira página: “Brasília é só calma em suas
férias”. Para o Rio de Janeiro, acrescentava: “Um domingo divino maravilhoso”, uma alusão à
letra da música de Caetano Veloso.

Brasília (da Sucursal). Esta cidade está em calma, vai muito bem o movimento
nas lojas e, salvo os que vão festejar com suas famílias o Natal, o grosso da
população não viajará. Parece que, no fim do ano e até janeiro, já estarão
rodando para esta capital as composições férreas da linha do Rio e São Paulo,
vindo para cá muita gente até aquela data (Correio da Manhã, 15 dez. 1968a,
p. 1).

Certamente, quem lia as manchetes da primeira página, um dia depois do anúncio do


AI-5, esperava os desdobramentos da atitude radical do Governo. Mas o jornal oferecia – numa
narrativa repleta de ironia e que é passível de ser identificada claramente – um cardápio de
acontecimentos singulares por informar uma normalidade que não era previsível naquele
momento.
A notícia tem a aparência de um mal-entendido. Incrédulos diante de uma normalidade
que não era possível, a ironia transforma-se na possibilidade narrativa, aparecendo como “um
mecanismo de defesa do cotidiano, um meio de contornar as normas, de brincar com as
instituições”, impondo uma realidade – de normalidade – difícil de ser acreditada como verídica
(Jeudy, 2011, p. 9).
Diante da impossibilidade de ação, restava zombar do mundo configurado como
narrativa. A normalidade era o sarcasmo público apresentado no cardápio narrativo da primeira
página do jornal.

Um domingo divino maravilhoso. Hoje o carioca vai ter mais um dia


ensolarado. Como o de ontem, que levou às praias pimpolhos e marmanjos,
que divertiram-se à larga nas areias escaldantes da mais bela praia do mundo.
E para a Igreja também vai ser um domingo de alegria. É o terceiro Domingo
do Advento, penúltimo antes do Natal. E hoje todas as missas começarão do
mesmo modo: ‘Alegrai-vos’. É o ‘Domingo da Alegria’, como é conhecido
nos meios clericais (Correio da Manhã, 15 dez. 1968b, p. 1).

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Na manchete de 17 de dezembro de 1968, o Correio da Manhã anuncia mais uma vez a


normalidade, agora das eleições na Guiana. E na sequência enfatiza que também em São Paulo
estava “tudo normal”.

Tudo é normal em São Paulo.


A situação em São Paulo não apresentou novidade nenhuma, a não ser a
grande movimentação nas ruas, que se apresentam cheias de gente “de fora”,
isto é, de milhares de pessoas que acorrem das cidades do interior do Estado,
nesta época de festas natalinas. O movimento comercial é enorme, vendo-se
cheios demais importantes magazines do centro, enquanto as ruas Augusta e
Teodoro Sampaio (bairro popular de Pinheiros) mostram um movimento
comercial impressionante. O sol estava causticante até à tarde (Correio da
Manhã, 17 dez. 1968, p. 1).

Essa inversão irônica do jogo narrativo servia também para mostrar explicitamente a
seu público que, no caso do Correio da Manhã, o jornal, assim como outros do país, estava
censurado. Desde 13 de dezembro toda a imprensa brasileira circulava mediante censura prévia.
O diretor superintendente do Correio, Osvaldo Peralva, foi preso, ficando detido até 28 de
dezembro de 1968, e onze censores se instalaram na redação do jornal desde o dia da
promulgação do AI-5. A edição de14 de dezembro já saíra sob censura (Andrade, 1991, p. 40).
Em ofício ao ministro da Justiça, o então presidente da Associação Brasileira de
Imprensa, Danton Jobim, denunciava os abusos cometidos contra “a livre circulação dos jornais
na cidade e em outras localidades do país” e protestava “contra os atos de censura prévia
praticados nas redações por policiais em flagrante desrespeito à Constituição da República”
(Correio Braziliense, 14 dez. 1968, p. 2).
A Polícia Federal passara a examinar as primeiras páginas dos principais jornais, como
Correio da Manhã e Última Hora, determinando que os jornais fossem “moderados com
relação ao noticiário político”.

As visitas dos censores foram iniciadas por volta de 1.30 horas, quando três
agentes estiveram na redação da Ultima Hora examinando as suas duas edições.
Em seguida, rumaram para a redação do Correio da Manhã, onde o Diretor
Superintendente, Sr. Osvaldo Peralva, alegando que ‘pela Constituição a
imprensa é livre’ não permitiu que seu jornal fosse censurado e impediu a
entrada dos agentes (Correio Braziliense, 14 dez. 1968, p. 2).

A segunda estratégia narrativa empregada pelo Correio da Manhã para noticiar aquilo
que fora censurado em suas páginas foi a de reproduzir informações já publicadas por outros

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jornais, em dias anteriores. Indo contra outro preceito fundamental do moderno jornalismo da
época, isto é, publicar informações inéditas, o que dava capital simbólico suplementar aos
periódicos (desde o início do século, o chamado “furo” de reportagem era signo de distinção
nos jornais diários), só noticiam, por exemplo, a censura imposta à imprensa no dia 18 de
dezembro, destacando na notícia a nota do Quartel General da I Região Militar publicada no
dia anterior pelo Jornal do Brasil e por O Globo.

A propósito da censura imposta aos meios de Imprensa, em sua edição de


ontem o Jornal do Brasil e O Globo publicaram a seguinte nota oficial,
distribuída pelo Quartel-General da I Região Militar.
“O dia de hoje foi de intensa movimentação no Ministério do Exército. Pela
manhã o ministro Lira Tavares esteve em visita ao general Syseno Sarmento,
comandante do I Exército, a fim de cumprimenta-lo pela presteza e serenidade
com que atuou nos recentes acontecimentos, evitando, com a sua ação, a
perturbação da ordem e da tranquilidade públicas. Durante a tarde o
comandante do I Exército reuniu em seu gabinete os comandantes de Grandes
Unidades e Chefes de Órgãos de Segurança compreendidos em sua área, a fim
de ser procedida uma análise das medidas de segurança já postas em prática e
coordenar a execução das que se fizeram necessárias para a prevenção da
ordem interna. [...]
Caracterizou ainda que o objetivo da censura é simplesmente o de proibir a
divulgação de matéria subversiva de incitação à desordem ou que vise a
desmoralizar o Governo ou as Forças Armadas e possa perturbar o clima de
completa calma que reina em todo o território nacional. [...] Determinou que
as passeatas, reuniões e manifestações em vias públicas não deverão ser
permitidas. Deverão ser evitadas e dispersadas, devendo a repressão ser
empregada como último recurso’ (Correio da Manhã, 18 dez. 1968, p. 1).

O mesmo se deu na edição do dia seguinte, 19 de dezembro de 1968, quando republicam


informação já divulgada por O Paiz, Diário de Notícias, Ultima Hora, O Jornal, A Notícia e
Jornal do Comércio, sobre a prisão de Darcy Ribeiro.

Os jornais cariocas O Paiz, Diário de Notícias, Ultima Hora, O Jornal, A


Notícia e Jornal do Comercio publicaram ontem a seguinte notícia colhida no
Superior Tribunal Militar: ‘O Conselho Permanente de Justiça da 1a auditoria
da Marinha, contra o voto do juiz auditor Arnaldo Carnasciali, decretou a
prisão preventiva por 30 dias, do professor Darci Ribeiro, que foi o chefe do
gabinete civil da Presidência da República, durante o Governo do sr. João
Goulart. O sr. Darci Ribeiro está indiciado no IPM instaurado na Divisão
Blindada para apurar atividades subversivas, sendo a prisão solicitada pelo
promotor José Manes Leitão, com base no artigo no. 50 da Lei de Segurança
Nacional’ (Correio da Manhã, 19 dez. 1968, p. 1).

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Mas a trégua forçada durou pouco. Ao colocar em cena a terceira estratégia narrativa –
a impessoalidade da informação, num pretenso jogo de objetividade – o Correio da Manhã, se
atendo às declarações da cúpula ditatorial, pelas brechas, informa ao leitor que o momento era
não apenas de suspensão de direitos políticos, cassações de mandatos e demissões. Era também
de prisões, de maus tratos e de mortes impostas aos opositores do regime.

A Agência Nacional, órgão da Casa Civil da Presidência da República,


distribuiu, ontem, a seguinte nota, sob o título Descabidas as notícias sobre
mortes e maus tratos:
“A tranquilidade reinante em todo o País, vem sendo perturbada por uma
ampla e insidiosa divulgação de boatos. Notícias espalhadas sobre mortes e
maus tratos são descabidas e atingem os sentimentos cristãos de nossa gente.
As autoridades estão vigilantes e zelam pela manutenção da ordem e da
tranquilidade do povo brasileiro em todos os recantos do território nacional”
(Correio da Manhã, 20 dez. 1968, p. 1).

Dessa maneira, o jornal vai lentamente recuperando a sua voz. Ainda que na polifonia
discursiva o destaque fosse sempre dado ao interlocutor privilegiado que divulgava o que era
de interesse do regime. Mas, mesmo assim, pelas brechas, ficava evidente o clima de
perseguição e as prisões arbitrárias, de violação contundente dos direitos humanos, com torturas
e mortes nos porões da ditadura.
Era preciso controlar a imprensa que a todo momento narra as ações da censura que
impediam a livre circulação discursiva. Por isso, segundo o “General”, era preciso impedir a
chamada “imprensa de sensação”. Na notícia abaixo identificamos mais uma vez o uso da
impessoalidade para desqualificar o interlocutor privilegiado da fala. Quem não queria a
imprensa de sensação era um General, não importava qual. Ser General era, assim, ser dono da
vontade política discursiva, ser dono das ações de repressão, ser, enfim, o porta-voz de um
governo discricionário e ditatorial.

General não quer imprensa de sensação


São Paulo (Sucursal) – O general Silvio Correia de Andrade, chefe da Polícia
Federal de São Paulo, baixou ordem a todas as estações de rádio, televisão e
jornais, proibindo a divulgação de notícias que possam inquietar a população
paulista. Tal decisão – segundo o general – tem a intenção de impedir o caráter
sensacionalista da imprensa, que muitas vezes cria situações prejudiciais à
coletividade.
Frisou que assunto para a imprensa não falta. A exploração deve ser feita no
bom sentido. Por exemplo, falar sobre o sucesso do Apolo 8 é algo de
transcendental importância para todos. Foi uma conquista que deveria ser

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cantada e decantada por todos aqueles que detém o poder de transmitir notícias
(Correio da Manhã, 31 dez. 1968a, p. 3, grifos nossos).

A reprodução da fala do general, que num tom professoral explicava aos próprios
jornalistas o que era notícia ou não e ainda qualificava a importância da divulgação das
conquistas espaciais como sendo de ordem transcendental, mais uma vez apela ao binômio
ironia/zombaria, com a aparência de informação neutra. Aliás, destacar os feitos da Apolo 8 foi
a estratégia utilizada à exaustão pelo próprio Correio da Manhã durante todo o mês de
dezembro (Cf. edições de 22, 24 e 25 de dezembro). Como que explicando ao leitor as razões
de tamanho destaque, na notícia deixou também entrever nas entrelinhas que tinha “cantado e
decantado” os feitos espaciais, na semana anterior, não por decisão própria, mas seguindo
orientação da censura.
O último dia do ano de 1968 deixava evidente os duros tempos que viriam pela frente.
A manchete dos principais jornais informava que o Governo cassara 11 deputados e suspendera
os direitos políticos do ex-governador do Rio de Janeiro, Carlos Lacerda, por 10 anos. Na
ocasião, informava o Correio, fazendo da narração pretensamente objetiva o único meio de que
dispunha para deixar registrado como documento de memória as ações discricionárias do
governo ditatorial.

O chefe do Governo fará, hoje, dois pronunciamentos ao País – às 19h, através


da Voz do Brasil e às 23h30min, por uma cadeia de televisão -, com a
finalidade de esclarecer as razões que levaram a edição do Ato Institucional n.
5, analisando, também, seu desdobramento na atual conjuntura política
nacional [...]. O marechal Costa e Silva segue, hoje, para Petrópolis,
antecipando assim, o início do período de veraneio (Correio da Manhã, 31
dez. 1968b, p. 3).

Os ditadores não mediriam esforços para afastar as críticas e informações contrárias,


classificadas sempre como boatos. Essas informações tinham a intenção de “desgastar a
autoridade do presidente da República”, segundo nota da Agência Nacional e publicada na
íntegra pelos periódicos.

O excessivo volume desses boatos, atingindo, inclusive os ministros de


Estado, tem impressionado sobretudo os técnicos de informações, não só pela
virulência e calúnia com que visam às pessoas dos atingidos, como também
pela intenção, facilmente comprovada, de desgastar a autoridade do presidente
da República.

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[...] O chefe do poder revolucionário não admitiria, sob qualquer hipótese, a


presença no seu Governo de um ministro desprovido de condições morais
indispensáveis ao mesmo, que apresentasse na sua conduta indícios de
corrupção. Firmado na lei e nos poderes que emanam do Ato Institucional n.
5, o Governo reprimirá os boateiros e eliminará por certo a central de boatos
com suas torpes finalidades. Assim esteja confiante o povo brasileiro no
Governo, pois sua obra revolucionária marcará uma etapa de moralização e
austeridade sem precedentes na história do Brasil” (Correio da Manhã, 31 dez.
1968c, p. 3).

Combate à corrupção, preservação dos preceitos morais e austeridade eram pilares de


uma ditadura que deixou marcas e sequelas inomináveis, mas que cinquenta anos depois parece
ter se refugiado nas profundezas do esquecimento.

Considerações finais
Podemos afirmar que do ponto de vista da ação dos meios de comunicação, o
movimento generalizado de autocensura na grande imprensa, da qual participam não apenas os
proprietários dos jornais, mas também os jornalistas, mostra que houve altíssimo grau de adesão
dos meios de comunicação durante todo o período ditatorial. A imprensa, de maneira geral, foi
complacente ou ignorou a sistemática ação repressora, que resultou na morte de centenas de
pessoas nas dependências militares do regime 4. Construiu também em uníssono um discurso
que destacava os “milagres” econômicos do período e negava o empobrecimento da maioria.
Amplificou ainda as glórias esportivas nacionais como se fossem de toda a população (Barbosa,
2007, p. 196).
Há que se ter em mente também que um regime político ditatorial duraria vinte e um
anos com o envolvimento e a participação de múltiplas forças militares e civis, nas quais a
imprensa teve papel relevante. Não há possibilidade de um regime de exceção perdurar por
tanto tempo sem o respaldo social, que se consegue não apenas pela força, mas também pela
criação do consenso (Ridenti, 2010).

4
Os dados coletados pelo Projeto Brasil: Nunca Mais mostram cabalmente a violência da ditadura. Levando-se
em conta o total de processados pela Justiça Militar por envolvimento com organizações de esquerda, estes teriam
sido de cerca de 800 pessoas. Já a soma dos mortos e desaparecidos por diversas atividades de oposição à ditadura
chegaria a 396 seres humanos, sendo a maioria jovens. Desse total, contabilizam-se 237 mortos e 159
desaparecidos políticos, perfazendo 396 pessoas. Há ainda referência a mais 30 mortes no exílio e outras 10, pouco
antes do golpe de 1964, chegando a um total de 436 casos (Ridenti, 2010).

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Estarrecidos, vemos, desde o final da primeira década do século XXI, eclodir


interpretações equivocadas que queriam fazer crer que a ditadura militar (ou civil-militar, como
preferem alguns) não teria sido tão repressiva. Emblemático nesse sentido foi o editorial
polêmico da Folha de S. Paulo, de 17 de fevereiro de 2009, que a chamou de “ditabranda”,
numa alusão a não intensidade das ações repressoras. Essa interpretação não encontra
justificativa: de fato houve muitos atos desumanos, promovendo o extermínio sem tréguas dos
opositores, como uma política deliberada de Estado.
Esse movimento foi ainda mais acirrado durante o governo do ex-presidente Jair
Bolsonaro, de extrema direita, que repetidamente negou a ditadura, afirmando
peremptoriamente que não houve golpe em 1964, negando, também, em consequência, a
tomada de poder à força e a destituição de um presidente legitimamente eleito. O que os
militares teriam feito seria apenas uma “correção de rumo” da política nacional que estaria
implantando no país um regime comunista.
Esses eram também argumentos das forças conservadoras que perpetraram e apoiaram
o golpe em 1964. Esses já tinham sido os argumentos daqueles que se mostraram como
opositores ao segundo governo Vargas e que resultou na crise de 1954 e com o desfecho trágico
do suicídio do presidente.
Analisando as estratégias narrativas dos periódicos no período de exceção exacerbado
no pós AI-5 e toda a atmosfera que precedeu aquele evento monstro, depois da tomada do poder
por um governo de extrema-direita e que nos lançou num período de incertezas e de
recrudescimento dos valores extremistas do conservadorismo, deve-se pensar também como
pode ser possível que, cinquenta anos depois, uma grande parcela da população teime em
reafirmar a positividade do período ditatorial e em esquecer deliberadamente os discursos
proferidos e as ações de ódio empreendidas naquele momento. Prisões arbitrárias, torturas as
mais violentas, mortes de jovens que lutavam por um ideal, impossibilidade de expressar
opiniões contrárias não constroem um cenário de paz e tranquilidade. Muito pelo contrário.
Por que então cinquenta anos depois há ainda aqueles que, com nostalgia, querem de
volta o domínio dos militares, afirmando o idílio de um passado – onde, para eles, não havia
desmandos, corrupção e muito menos ações de arbítrio e uma total falta de liberdade?

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Por que acionamos, por variados motivos, os mecanismos de um esquecimento coletivo,


produzindo uma memória manipulada na qual se observa camadas profundas do esquecimento,
transformando os abusos da memória em abusos do esquecimento? Mais do que narrar o
período ditatorial de outro modo, “suprimindo, deslocando as ênfases, refigurando diretamente
os protagonistas da ação assim como os contornos dela” (Ricoeur, 2007, p. 455), produz-se o
esquecimento, como fuga ou produção de má-fé, expresso na vontade de não informar sobre o
passado e também por um querer não saber.
Em relação aos governos ditatoriais inaugurados em 1964 e que implantaram um
período de desmandos e de trevas sem fim, há que, num duplo movimento, esquivar-se, fugir
desse passado, mas também tratá-lo de maneira ambígua, qualificando-o de uma forma que, na
realidade, nunca possuiu. Ativo, esse esquecimento deliberado leva a construção do idílio de
um passado que nunca existiu.
É exatamente contra esse esquecimento comandado que devemos construir um dever de
memória, fazendo que a história desse momento monstruoso seja contada de forma completa e
complexa, revelando a dimensão da barbárie dos que viveram aqueles anos sangrentos e cruéis
e que não devem ser esquecidos jamais. Como testemunhas desse passado temos um dever de
memória: retirar do esquecimento para a lembrança, revelando camadas de esquecimento que
devem se transformar em memórias duradouras.
Portanto, nem a análise do período ditatorial, nem a interpretação da relação da imprensa
com os atores que assumiram a cena política são tarefas fáceis. Não houve só resistência e nem
só cooptação. A rigor, houve as duas coisas. A imprensa lutou e recuou. Os jornalistas se
curvaram às ordens de silêncio, enquanto outros empreenderam lutas solitárias. Não há um
único movimento, nem uma única tomada de posição.
Ao mostrar como os jornais brasileiros construíram o acontecimento político Ato
Institucional n. 5, dando início ao período de maior recrudescimento da ditadura no Brasil na
década de 1960, enfatizamos a utilização de diversos mecanismos para produzir esse
esquecimento deliberado.
A primeira ação se fez mesmo no momento de produção daquele fato histórico. Os
jornais, valendo-se de suas artimanhas narrativas, produziram um breve hiato nas suas
estratégias editoriais, fazendo emergir os temas políticos envoltos nas prerrogativas discursivas

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das tramas das notícias policiais, para, no momento imediatamente posterior, apagar qualquer
resquício daquele tema, mesmo não tendo sido submetido à ação censória. Nesse caso, o
esquecimento deliberado é uma atitude que procura fazer crer que o periódico está seguindo
apenas a sua política editorial e das expectativas do seu público leitor.
O segundo artifício é quando, por força das determinações da censura, são instados a
produzir um esquecimento deliberado do acontecimento nos dias imediatamente subsequentes
para garantir a circulação do periódico. Assim, no caso da notícia da promulgação do AI-5 e da
instauração de amplas medidas discricionárias no país, era preciso negar com profundidade a
sua existência. Era necessário apagar da memória o acontecimento monstro para seguir a rotina
de relatar o mundo para o leitor. Algumas vezes, entretanto, no futuro, os jornalistas que
participaram desse momento destacariam a utilização das artimanhas do texto e da edição para
criar brechas no sentido de tentar burlar a censura. Entretanto, esse é muito mais um discurso
construído para o futuro, não tendo naquele presente histórico a relevância que procuram
investir suas ações quando narram o passado no futuro. O acontecimento continua vítima do
esquecimento, mas, pelas brechas, os jornalistas sinalizariam, na memória futura, que não se
tratava de uma escolha, mas de uma imposição ao esquecimento.
Mas é preciso ter em mente, sempre, que o esquecimento pode ser fatal para um país
que, vez por outra, faz da política do esquecimento uma tática para produzir uma história
reinventada a partir de interesses particulares. E a história definitivamente não pode ser
reinventada.

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Submetido em: 02.12.2022


Aprovado em: 25.06.2023

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