Ekphrasis - Alvaro Gomes

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UMA MIMESE DA CULTURA

(UM ESTUDO DA FIGURA RETÓRICA DA EKPHRASIS)

Álvaro Cardoso GOMES*

▪▪ RESUMO: Este artigo1, num primeiro momento, procura estudar o conceito


de ekphrasis, para depois aplicá-lo em poemas ecfrásticos de Homero, Teócrito,
Keats, Alberto de Oliveira, Verlaine, Wallace Stevens e Murilo Mendes. Nosso
intento é o de demonstrar que a figura retórica da ekphrasis, mais do que simples
descrição, pretende ser uma mimese da cultura.

▪▪ PALAVRAS-CHAVE: ekphrasis. Poesia. Descrição. Mimese cultura. Artes


gráficas.

A ekphrasis – sua origem e seu conceito


Etimologicamente, a palavra ekphrasis (do grego ek, “até o fim” e phrazô, “fazer
compreender, mostrar, explicar”) pode ser definida como “a ação de ir até o fim”.
Mais adiante, aproximadamente no século III d. C., passa a ter o sentido genérico de
“descrição” (CASSIN, 1955, p.680), que, de acordo com Françoise Desbordes (1996,
p.135, grifo do autor), apresenta as seguintes características:

[...] faz ver pessoas, acontecimentos, momentos, lugares, animais, plantas, de


acordo com regras específicas sobre as questões a serem abordadas e a ordem
nas quais as examina. O estilo será adaptado ao assunto, e, sobretudo, se
aplicará a colocar sob os olhos do auditório aquilo de que se fala – os retóricos
chamam esta qualidade de enargeia (evidentia em latim).

A descrição há, pois, que possuir algumas qualidades essenciais, se o fim que se deseja
é o de causar um efeito expressivo no destinatário. Ao ver do sofista alexandrino

* USP – Universidade de São Paulo. FFLCH. Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas. São Paulo, SP-
Brasil – 05508-900; Coordenador do Mestrado Interdisciplinar da UNISA – Universidade de Santo Amaro.
Departamento de Pós-Graduação e Pesquisa. São Paulo, SP-Brasil – 04743-030. acgomes@unisa.br
1
Devido às exigências de extensão dos artigos, deixamos de registrar aqui os fragmentos de poemas de Homero
e Teócrito, bem como os poemas de Keats, Alberto de Oliveira e Verlaine, que acreditamos serem de fácil acesso.
Apenas transcrevemos os de Wallace Stevens e Murilo Mendes pelo fato de não serem tão acessíveis assim. Em
todo caso, indicamos na bibliografia as fontes onde os textos podem ser acessados.
Artigo recebido em 30/10/2014 e aprovado em 20/11/2014.

Rev. Let., São Paulo, v.54, n.2, p.123-144, jul./dez. 2014. 123
Aelius Théon (apud DESBORDES, 1996, p.135), ela necessita ter “[...] a claridade,
sobretudo, a visibilidade que faz quase ver o que se expõe”. Em outras palavras, por
meio da comunicação verbal, presta-se a tornar aquilo que está distante e, portanto,
inacessível, próximo do leitor, de preferência, dirigindo-se-lhe aos “olhos”: “[...] uma
descrição que realça o que vem ilustrado vivamente antes na percepção de alguém”
(BARTSCH apud HEFFERNAN, 1991, p.297).
Contudo, se identificarmos a ekphrasis com a descrição pura e simples,
verificaremos que tal identificação, de certo modo, ainda que correta, tirará dessa
figura retórica sua especificidade, como se ela correspondesse tão-só a qualquer
tipo de enumeração de “[...] pessoas, acontecimentos, momentos, lugares, animais,
plantas”, a que se refere Desbordes (1996, p.135). É preciso dizer, pois, que, com o
tempo, esse sentido primeiro é acrescido de outro mais específico, para determinar o
verdadeiro quid da ekphrasis. Ao invés de ela somente se referir à simples descrição,
apresentando-se, por conseguinte, como contrafação do mundo natural, com a
consequente enumeração de seres e objetos, começa a ter um sentido mais restritivo,
porém, mais significativo: como aquele tipo de descrição em que a expressão verbal
procura equivaler à expressão não-verbal, ao se utilizar de expedientes retóricos que
possam mimetizar os expedientes técnicos utilizados pelos pintores na composição
de suas telas.
No sentido mais amplo das descrições, o poeta “copia” os objetos e seres
do mundo real por meio das palavras, de maneira a colocá-los diante de nossos
olhos; no sentido mais restrito, o poeta, por meio da expressão verbal, visa a imitar
procedimentos pictóricos, como vem a observar Massaud Moisés (2004, p.135-136):

Com a Segunda Sofística (séc. IIII-IV a.C.), e mais adiante graças a


Aelius Théon e Hermógenes, alargou-se o sentido, de modo a confundir-
se com a descriptio latina e a cruzar com o ut pictura poesis. No primeiro
caso, referia-se a todas as formas de representar verbalmente os objetos do
mundo material: o mundo converte-se em palavras. No segundo, buscava-se
linguagem equivalente à descrição pictórica: desejava-se uma representação
verbal simétrica da representação plástica. Ali, teríamos uma descrição
de primeiro grau, ou simples descrição; aqui, de segundo grau, ou dupla
descrição.

A concepção de literatura como similar à pintura, cumprindo o preceito do


ut pictura poesis de Horácio, repousa no princípio clássico de que a poesia deve ser uma
arte mimética por excelência, ou seja, é conveniente que o poeta reproduza o mundo
natural, por meio das palavras, mas procurando se utilizar de expedientes próprios
dos pintores, como a enumeração de seres e objetos, a objetividade, a visualização, o
cromatismo. Todavia, há que se observar que esta “reprodução do mundo natural”
levará em conta não a natureza bruta em si, mas a natureza melhorada, vista em seus

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aspectos mais aprazíveis, para não só causar prazer no auditório, mas também para
educá-lo com a visão do que é belo:

Os defensores da arte, clássicos e neoclássicos por igual, resolveram o problema


alegando que a poesia imita não o real, mas conteúdos, qualidades, tendências
ou formas seletos que estão dentro ou por detrás do real, elementos verídicos
da constituição do universo, que são de valor mais alto que a realidade mesma,
grosseira e indiscriminada. Ao refleti-la, o espelho posto frente à natureza
reflete o que, por oposição à “natureza”, os críticos ingleses amiúde chamam
de “natureza melhorada”, ou “realçada”, ou “refinada”, ou com a expressão
francesa la belle nature. Esta, dizia Bateux, não é “o verdadeiro real, mas o
verdadeiro possível, o verdadeiro ideal, que está representado como se existisse
realmente e com todas as perfeições que pudesse receber”(ABRAMS, 1962,
p.57, grifo do autor).

Entende-se que os poetas devem promover uma seleção de aspectos do real, para
captar tão-só a sua essência, porquanto a realidade aparente é “grosseira” e não
apresenta o necessário equilíbrio entre os seus elementos. Isso acontece devido ao
fato de que a verdadeira mimesis poética

[...] nunca foi uma cópia fiel do objecto “imitado”, mas, apenas, essa
“aproximação” de que já fala Platão. Para este filósofo, “o conceito flutua”,
acabando por admitir, no Filebo, que “a boa mimesis” levaria o artista a
aproximar-se da estrutura essencial da realidade, a qual permite fixar o que é
universal e permanente (REYNAUD, 2001, p.41, grifo do autor).

Esse tipo de descrição ecfrástica que imita a pintura, por meio dos recursos
pictóricos, adaptados à expressão verbal, e, ao mesmo tempo, procura reproduzir os
aspectos mais positivos e aprazíveis da Natureza, pode ser vista em grande parte da
poesia pastoril do Arcadismo e da poesia bucólica do Romantismo.

A ekphrasis como mimesis da cultura


Com o tempo, a ekphrasis passou a designar não só a simples descrição de
seres e objetos do mundo real, mas também e, sobretudo, a descrição de seres e
objetos contemplados pelas artes gráficas. Observa-se um deslocamento: deixando
em segundo plano o mundo real em si, esta figura retórica foca sua atenção no
mundo representado dentro dos limites de uma tela, de uma escultura, de uma
fotografia. Ao se constituir numa “representação verbal de representações gráficas”
(HEFFERNAN, 1991, p.299-300), isso teria como resultado que, segundo Barbara
Cassin, a ekphrasis se tornasse “[...] mais uma mimesis da cultura do que a mimesis

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da natureza” (CASSIN, 1955, p.115). Em outras palavras, a ekphrasis usa um meio de
representação para representar outro, que mimetiza os seres e objetos do mundo real:

Não se trata mais de imitar a pintura na medida em que ela procura mostrar
o objeto sob os olhos – apreender o objeto –, mas de imitar a pintura
enquanto arte mimética – apreender a pintura. Imitar a imitação, produzir
um conhecimento não do objeto mais da ficção do objeto, da objetivação.
(HEFFERNAN, 1991, p.501).

É preciso esclarecer, porém, que não se trata de fazer que o poema seja a mera
reprodução passiva de um quadro ou de uma escultura, ou apenas um “clássico poema
pictórico”, um poema sobre uma pintura ou escultura que imita a auto-suficiência do
objeto. Conforme Massaud Moisés (2002, p.216),

A ecfrasis não é, não pode restringir-se a ser, mera descrição. Quando se limita
a isso, incide na linearidade fotográfica, que significa ausência de sentimento
poético, uma vez que este implica a metamorfose do objeto pictórico, pela
filtragem e desenvolvimento dos componentes plásticos que acionam as
engrenagens do olhar. A ecfrasis poética é uma recriação, tanto quanto a
expressão o efeito de uma paisagem natural sobre a sensibilidade do poeta: é
uma realidade paralela, não a sua imagem num espelho plano.

A ekphrasis, na realidade, ativa implícitos que o quadro ou a escultura, devido


à sua natureza, não podem explorar. Ainda conforme Heffernan (1991, p.301),
“A literatura ecfrástica tipicamente origina-se do fértil momento embriônico do
impulso narrativo da arte gráfica, e assim torna explícita a história que a arte gráfica
conta somente por sugestão”. É isso que levou o teórico americano a concluir que
a ekphrasis, para além de representar somente a fixidez de objetos de um quadro,
por exemplo, impõe um ritmo, ao mesmo tempo, narrativo e prosopopéico à arte
gráfica que, devido aos limites do signo não-verbal, costuma reprimir, na medida
em que “o significante pictórico é vazio, pois não guarda sentido algum”. E esse
sentido só é atingido quando acontece uma “[...] transfiguração, uma metamorfose,
em que o significante vazio da pintura é substituído pelo significante pleno da poesia”
(MOISÉS, 2002, p.218). Em consequência disso, a descrição ecfrástica faz que as
figuras silenciosas de uma tela ou de uma escultura possam falar. A ekphrasis acaba por
contar uma história desconhecida para o leitor e/ou ouvinte, ao trazer para seus olhos
e/ou ouvidos algo que está distante, ou mesmo, traz uma história conhecida, como
aquelas presentes em telas clássicas, mas revelando algo que o quadro apenas sugere,
deixa implícito. Mas é preciso acrescentar que esta figura retórica introduz o objeto
da arte gráfica, essencialmente espacial, no mundo temporal, ao lhe dar movimento
e, por conseguinte, o status de narrativa. Conforme Heffernan (1991, p.307), “[...] a
ekphrasis tipicamente representa o suspenso momento da arte gráfica, não por recriar

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sua fixidez em palavras, mas preferencialmente por libertar seu embriônico impulso
narrativo”. Contudo, uma ressalva cabe aqui: quando o texto ecfrástico é de caráter
poético, não se deve entender a palavra “narrativa” de uma perspectiva prosaica.
“Narrativo”, nesse caso, dignifica apenas que a ekphrasis dá movimento a figuras
estáticas (como se observará no texto homérico e em outros poemas analisados neste
artigo), fazendo-as mover e, porventura, falar.

A ekphrasis de artes gráficas na Antiguidade


Chamamos a atenção aqui para dois textos tradicionais da era clássica – o de
Homero e o de Teócrito –, em que se destaca o uso da ekphrasis, com a consequente
descrição de um objeto artístico.

O escudo de Aquiles, de Homero


Uma das mais antigas e conhecidas peças poéticas ecfrásticas de que se tem
notícia é descrição do “escudo de Aquiles” que comparece no canto XVIII, da Ilíada
de Homero. Esse texto poderia perfeitamente ser considerado “como a ‘origem’
canônica da ecphrasis clássica”, de acordo com W. J. T. Mitchell (2009, p.158, grifo
do autor). Inspirado talvez num escudo real ou em legendas, o fragmento descreve
com minúcia esse artefato de guerra que é, devido a seus lavores, ao mesmo tempo,
uma obra de arte.
O fragmento inicia-se com a descrição do fabrico do artefato: há a referência
direta ao trabalho do artesão, “Nela o ferreiro engenhoso insculpiu”, à “orla tríplice
e clara/de imenso brilho”, ao “bálteo vistoso” (HOMERO, 2011, p.425), às cinco
camadas de metal e, por fim, às imagens que serão esculpidas na última delas. O
trabalho do ferreiro é complementado pelo trabalho do artista, ambos representados
pelo mesmo deus Vulcano, como se não houvesse diferença alguma entre ambos os
lavores. De fato, um completa o outro – o ferreiro molda os metais não preciosos e
preciosos com sua força e habilidade, enquanto o artista acrescenta o engenho, por
meio da intervenção imaginosa, que fará que o instrumento de defesa na guerra
transforme-se também num objeto de arte, digno de ser contemplado e admirado.
Esse processo de fabricação do escudo estende-se, por assim dizer, por todo o texto,
pois Homero

[...] não pinta o escudo acabado, mas em processo de criação. Aqui, utilizou
de novo da afortunada estratégia de substituir a progressão pela coexistência, e
desse modo converteu a exaustiva descrição de um objeto, na imagem gráfica
de uma ação. Não vemos o escudo, mas o mestre-artesão divino que se atarefou
em fazê-lo. (LESSING apud MITCHELL, 2009, p.159).

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As imagens que comparecerão na peça organizam-se de acordo com um princípio
cosmogônico, na medida em que o poeta começa sua descrição, falando dos reinos
superiores – da terra, do mar, do céu, com o sol, a lua e as estrelas as constelações,
para depois se concentrar no reino inferior dos homens. Mas já aí, o aspecto narrativo,
ainda que incipiente, se impõe, quando ele discorre sobre a movimentação dos astros:
“[...] a Ursa que gira num ponto somente, a Orião sempre espiando,/e que entre todas
é a única que não se banha no oceano” (HOMERO, 2011, p.425).
A partir da descrição sumária dos elementos essenciais que compõem o
Universo – a terra, a água, o ar –, como já se disse, as peças escultóricas do escudo
passam a contemplar o mundo humano. Duas “cidades belíssimas” são referidas,
mas, em vez de o narrador se concentrar apenas em sua descrição sumária, envereda
pela narração de fatos variados que nelas acontecem. Numa, há um prosaico
casamento, com suas consequentes festividades, e uma contenda entre mercadores,
com a intervenção dos anciãos, para decidir juridicamente a querela. Na outra,
sitiada por dois exércitos, os cidadãos organizam-se para a defesa. Dá-se início a
uma batalha, e esta cena belicosa termina com a intervenção de figuras nefastas, a
personificação da Discórdia, do Tumulto e das Parcas, que acutilam os guerreiros
vivos e arrastam consigo os mortos. Na sequência, criando um contraste com a
violência das mortes, o olhar do narrador se dirige para um vasto campo, onde se
dão as lides agrárias: a preparação da terra para o plantio, do almoço dos campônios,
da colheita das uvas. Nesse meio termo, há a narração dos bois saindo do aprisco e
indo para a pastagem e, no caminho, sendo atacado por leões. Por fim, narram-se
as festividades no campo, com os jovens dançando e cantando. Nesse ponto, os
efeitos visuais recrudescem, para que se dê especial destaque aos sonoros, como se
o texto se dirigisse mais aos ouvidos dos interlocutores do que à visão, que se torna,
assim, secundária:

Com uma lira sonora, no meio do grupo, um mancebo


o hino de Lino entoava com voz delicada, à cadência
suave da música, e todos, batendo com os pés, compassados,
em coro, alegres, o canto acompanham, dançando com ritmo
(HOMERO, 2011, p.427-428).

Na longa descrição das cidades, há um contraste entre os motivos mais nobres,


mais sublimes, como os que se referem ao mundo celeste, aos guerreiros envolvidos
em contenda, e os motivos mais simples, relativos ao cotidiano, ao dia-a-dia dos
homens. Com isto, reforça-se ainda mais a ideia de que o escudo é uma súmula de
tudo que existe no mundo antigo da Grécia, desde os simples atos do cotidiano mais
banal até os grandes feitos heróicos. Após essa sumarização cosmogônica, o aedo
fecha o fragmento ao falar da “poderosa corrente”, presente na “orla extrema do

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escudo”, que é, a um só tempo, ornamento e uma referência a um princípio geográfico
primitivo em que se acreditava que a porção de terra do planeta era toda circundada
pelas águas: “a poderosa corrente do oceano, que a terra circunda”.
Vale ressaltar que os enxertos narrativos servem para criar a ilusão de que estes
têm vida própria e como que se destacam do escudo inanimado, pela força da voz
do aedo, o que serve para acentuar aí o poder sugestivo da ekphrasis. Fica-se com a
impressão de que o artefato de guerra projeta, nessas incisões escultóricas, aspectos
diferenciados do real e como que se constitui assim numa súmula do Universo, uma
espécie de máquina do mundo, daí advindo sua grandeza mítica. Obra de um Deus,
Vulcano, premiará um semideus, o maior de todos os guerreiros gregos, o famoso
Aquiles. A cosmogonia esculpida no artefato, acumulando seres e objetos e resumindo
narrativas de povos belicosos e festivos, ficará então de posse do guerreiro que, usando
o escudo nas batalhas, como que possuíra o mundo. Contudo, a ilusão nem sempre
se mantém, porquanto Homero, de modo proposital, de vez em quando, a quebra,
para lembrar ao leitor ou ao ouvinte que toda essa movimentação, luta e labuta não
constituem mais que representação de algo que é, na verdade, estático e que ele
insuflou de vida. Isso acontece quando o poeta, em alguns instantes, revela de que
materiais são feitos alguns dos elementos que descreve: a terra (“Preta era a terra que
atrás lhes ficava, apesar de ser ‘de ouro’”), a vinha (“de ‘ouro brilhante’ era a cepa e de
viva cor negra os racimos,/que sustentados se achavam por muitas estacas ‘de prata’”) e
os bois (“Uns animais eram de ‘ouro’; outros feitos de ‘estanho luzente’” (HOMERO,
2011, p.427-428, grifo nosso). É o que Heffernan (1991, p. 301) nos recorda em seu
ensaio: “[...] ele nos lembra mais uma vez a diferença entre o que é representado (o
gado) e seu específico meio de representação (ouro e estanho)”.
Esse fragmento do escudo de Aquiles, inserido na Ilíada, torna-se, assim, devido
à sua especificidade e riqueza de detalhes, um modelo de peça ecfrástica. Nele, os
elementos descritivos são, como se viu, animados de vida, de maneira que a descrição,
pura e simples, corre paralela à narração ou mesmo cede lugar a ela. Isso acontece
porque o poeta não deseja apenas enumerar o que havia no mundo antigo, mas trazer
à vida um tempo imemorial de grande beleza.

A taça do “Idílio I”, de Teócrito


Entre os “Idílios” de Teócrito, o de número I chama a atenção por conter
uma típica peça de feição ecfrástica. Nela, um cabreiro dialoga com o pastor Tírsis e
oferece-lhe uma taça, em troca de seu canto. Na ocasião, ele descreve com minúcia o
objeto, louvando-lhe os lavores e fazendo referência a três grandes cenas insculpidas
na madeira:

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Dar-te-ei também um vaso
de madeira, fundo, ungido
de cera perfumada, um vaso
de duas abas, acabado
de talhar e cheirando
ainda ao cinzel.
(TEÓCRITO, 2002, p.21-22).

O cabreiro refere-se à taça, descrevendo desde sua forma perfeita até as imagens
esculpidas, mas, como se trata de um poema ecfrástico, não se retringe apenas em
arrolar os elementos descritivos. O que ele faz, além de falar do formato, é apontar três
cenas distintas, as quais dá a animação e a vida que as ilustrações do vaso, por razões
óbvias, não contêm. As cenas, não ligadas entre si e bem díspares, são as seguintes: a)
a bela moça, requestada por dois jovens; b) o velho pescador que arrasta uma pesada
rede; c) uma vinha, que deveria ser vigiada por um rapaz, contra o assédio de raposas.
Nas três ilustrações, o que se observa é que os elementos decorativos comparecem
sob a forma de narrativas. Na cena de contorno amoroso, a rapariga leva os jovens
a se confrontarem (“rivalizam com palavras”), porque ela, toda coquete, ora sorri
para um, ora, para outro, provocando assim a discórdia. Na cena de trabalho, um
velho, ao se entregar a uma tarefa mais digna de um jovem – arrastar a pesadíssima
rede sobre um solo pedregoso –, acaba por sofrer muito com ela. Na última das
cenas, um rapaz incumbido de vigiar uma vinha, em vez de se entregar a seu devido
trabalho, entretém-se construindo uma rede para apanhar gafanhotos, e o resultado
é o ataque dos animais aos frutos e ao lanche de seu embornal, devido a seu excessivo
encantamento com o objeto que constrói: “Esquecido/do alforge e das cepas, retira/
do seu trabalho maior prazer”.
Teócrito, ao mostrar o sofrimento no Amor e no trabalho bruto, vê como
única solução para o homem a entrega ao trabalho manual, em tudo similar à tarefa
artística, que, no caso, leva o jovem a se esquecer da realidade mesquinha. É o que
Érico Nogueira observa em sua tese de doutorado, a respeito da poética de Teócrito:

Fica, pois, evidente, nas cenas, o contraste entre a inutilidade do cuidado


amoroso e o sofrimento do trabalho braçal, de um lado, e, do outro, o prazer
de uma atividade, como trançar uma gaiola de grilo, tão francamente alusiva
à poesia (NOGUEIRA, 2012, p.56).

A ekphrasis em Teócrito está a serviço, num primeiro plano, da descrição de um objeto


das artes gráficas, da animação de suas figuras inertes, imprimindo-lhes, pois, um
princípio narrativo e, num segundo plano, da valorização do trabalho artístico em si.
Daí que o vaso seja oferecido a Tírsis, se ele souber cantar tão bem quanto Crômis,
o líbio, ou seja, o artefato, que servirá de presente, equivalerá à canção. Em termos

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artísticos, o vaso feito de madeira, com suas belas inscrições, tem o mesmo valor que
uma peça musical, graças não só a seus ornamentos, mas pelo fato de eles fazerem
que o espectador possa se tornar testemunha de velhas histórias, que ganham cor,
forma e movimento.

A ekphrasis em textos do século XIX


Nos século XIX, gostaríamos de chamar a atenção para os textos ecfrásticos
perpetrados por um poeta romântico, por um parnasiano e por um simbolista.

A urna grega de Keats


O poema “Ode on a Grecian Urn” de Keats foi escrito em maio de 1819 e
publicado no ano seguinte. Constitui uma das “Grandes Odes de 1819” do poeta
britânico, entre as quais se incluem “Ode on Indolence”, “Ode on Melancholy”, “Ode to
a Nightingale”, e “ bv”.
Composto de cinco estâncias e configurando-se como uma autêntica peça
ecfrástica, o poema tem uma voz que impõe um impulso narrativo a imagens fixas
num objeto escultórico, a urna grega. Mas não só isso: ao fazer também que figuras
inanimadas retornem à vida, como que o poeta retoma um tempo imemorial e
paradisíaco – aquele do mundo clássico pagão. Antes de tudo, porém, uma questão
primeira se impõe. A urna a que se refere o poeta é apenas imaginada, como um
produto da idealização dele, ou é uma urna real, de fato contemplada em algum
museu, de maneira que os signos não-verbais fossem traduzidos em signos verbais,
para a expansão de seus significados implícitos? Embora esta questão de realidade
ou não pouco importe, optamos pela segunda hipótese, baseando-nos num desenho
perpetrado por Keats da “Urna de Sosibios”. É uma cratera de devoção neo-ática de
mármore, assinada por Sosibios, peça escultórica do museu do Louvre, que o poeta
encontrou na obra de Henry Moses (2013), A Collection of Antique Vases, Altars,
Paterae, Tripods, Candelabra, Sarcophagi, &c.
Keats, descrevendo a urna grega, segue uma tradição poética que remonta, de
modo mais provável, ao Teócrito do “Idílio I”, cuja criação ecfrástica no miolo de seu
poema, pode ou não ter servido de modelo ao poeta inglês. O que diferencia ambos
os textos é o tom sereno e algo irônico de Teócrito, em oposição ao tom inflamado,
emotivo do poeta romântico inglês, que apostrofa a urna e as figuras, estabelecendo
um diálogo que visa a encontrar respostas para suas inquietações transcendentais sobre
a vida, a morte, o efêmero e o eterno.

Rev. Let., São Paulo, v.54, n.2, p.123-144, jul./dez. 2014. 131
Quanto à estrutura, o poema tem cinco estâncias, com dez versos cada,
e as rimas obedecem ao seguinte esquema: um quarteto (ABAB) e um sexteto
(CDECED). Há um intróito, em que o sujeito da enunciação procura despertar
a urna de seu sono ancestral, e um epílogo, no qual, a urna afinal se manifesta,
respondendo às questões retóricas do preâmbulo. A ode oferece dois extremos: os
quartetos clássicos e os sextetos da poesia romântica, como se o poeta quisesse afirmar
ao mesmo tempo o resgate do Classicismo, que serve de modelo a seu texto, e a
fidelidade ao Romantismo, movimento literário em que pontificou. Percebe-se assim
um equilíbrio entre a clareza ática, a serenidade, a recuperação de entidades pagãs e
os arroubos emotivos, como se o objeto estético servisse não só de ponte entre duas
grandes estéticas, para unir o passado ao presente, mas também para fazer com que
o presente fosse animado pelo sopro do passado, implicando que o poeta não só
resgatasse a tradição, mas se inserisse nela, como um autêntico filho do seu tempo.
Mas, para tanto, Keats (1993) necessita animar de vida o artefato, o que
acontece no Intróito do poema, por meio do recurso da apóstrofe:

Thou still unravish’d bride of quietness,


Thou foster-child of silence and slow time,
Sylvan historian, who canst thus express
A flowery tale more sweetly than our rhyme.2
(KEATS, 1993, p.28).

A urna é a “foster-child of silence”, por dois motivos principais: é feita de mármore,


o que explica sua quietude e silêncio, e criada por um artista que soube se expressar
por signos não-verbais, deixando inscritos no artefato algumas histórias ainda por
contar, que só serão desenvolvidas em toda sua extensão, quando animadas pelo
sopro do poeta. Ao ver de Heffernan (1991, p.306), Keats “[...] não representa
simplesmente os amantes como figuras dispostas no espaço. Ao contrário chama-
as para a vida como seus ouvintes, e fala a linguagem da temporalidade a esse
imaginário auditório”.
A partir do quinto verso da primeira estância, o poeta, ainda invocando o
artefato, faz uma série de perguntas retóricas referentes às imagens gravadas na urna,
como se quisesse interpretá-las por meio das interrogações, que serão respondidas
no desenvolvimento do poema. Assim, se refere às legendas, às divindades, aos
mortais, perdidos no tempo e nos vales da Arcádia, à louca perseguição, à música de
“pipes and timbrels”, ao “wild ecstasy”. Na segunda estância, o sujeito poético muda
de interlocutor, pois se dirige às flautas, implorando que soem, não aos ouvidos

2
“Tu, noiva da quietude, ainda intacta,/Tu, filha adotada do tempo vagaroso e do silêncio,/A silvestre
historiadora, quem assim narrar poderá/Um conto de modo mais doce que nossa rima:” (KEATS apud GOMES,
2015a, p.50).

132 Rev. Let., São Paulo, v.54, n.2, p.123-144, jul./dez. 2014.
sensoriais, mas àqueles do espírito, “Not to the sensual ear, but, more endear’d,/Pipe to
the spirit ditties of no tone”3 (KEATS, 1993, p.28), como se constituíssem um absoluto
platônico. A partir dessa invocação opera-se um movimento sinestésico, já que o apelo
sensorial provoca o surgimento de uma sensação de outra ordem, a visual, porquanto,
logo a seguir, a apóstrofe é dirigida ao “fair youth” que canta. Nesse instante, Keats
como que suspende o tempo, congelando as imagens, pois a canção não cessa, as
árvores não perdem suas folhas, o amante nunca beijará a amada, embora isso tudo
não o leve à perda do ímpeto do desejo. Eis por que os amantes se amarão por todo
o sempre, apesar de, ou por causa de o deleite não ter se cumprido: “She cannot fade,
though thou hast not thy bliss,/ For ever wilt thou love, and she be fair!” 4 (KEATS, 1993,
p.30). As figuras vivem, assim, sob o signo da eternidade, suspensas num tempo sem
tempo, o que faz com que seus atos perdurem, bem como as melodias permaneçam
sempre novas e cheias de frescor. Vem daí que a expressão “for ever” aparece repetida
cinco vezes em oposição a “nor ever”, mas criando uma falsa oposição, já que o “para
sempre”, representando o que permanecerá para a eternidade – a juventude plena, o
calor, a paixão –, tem como complemento o “nunca”, referente às folhas das árvores
que jamais dirão adeus para a eterna primavera.
Na quarta estância, o eu-poético volta a apostrofar a urna, dirigindo-lhe
interrogações sobre o sacrifício de uma bezerra por um misterioso sacerdote, desse
modo, abandonando um dos motivos desenhados no artefato, para se concentrar
em outro, que logo também deixará para trás. De fato, do sacrifício representado,
o olhar agora se detém numa pequena cidade, silenciosa e desolada, à beira de uma
praia ou de um rio, ou ainda cercada de muralhas. Neste ponto do poema, o poeta
apenas lança algumas suposições, incapaz de descrever objetivamente a cidade
(há dúvidas quanto à localização e quanto a sua estrutura) e incapaz também
de entender por que ela está deserta. Quem poderia romper o silêncio e contar
esta história em toda sua completude jamais voltará no instante suspenso, o que
impedirá o esclarecimento das dúvidas do poeta. É de crer que, com isso, Keats
permanece com suas interrogações no limiar entre as figuras reais, eternizadas no
espaço dos signos não-verbais da urna, e suas ações imaginadas, sugeridas pela
palavra poética. Experimenta-se assim um contraponto entre o passado congelado e
o presente ativo. O poema apoia-se num paradoxo: se, de um lado, a urna preserva
para sempre a juventude dos amantes (“for ever young”), por ser feita de mármore;
de outro, os torna inanimados e sem vida, também por ser feita de mármore. Viver
implica ser escravo do tempo, o que levaria os seres a completar o ato amoroso,

3
“Não para o ouvido dos sentidos, mas, e mais querido,/Tocai às cantigas do espírito, desprovidas de som”
(KEATS apud GOMES, 2015a, p.50).
4
“Ela não pode se desvanecer, e mesmo que não tenhas tua felicidade/Para sempre amarás, e ela sempre será
bela.” (KEATS apud GOMES, 2015a, p.50).

Rev. Let., São Paulo, v.54, n.2, p.123-144, jul./dez. 2014. 133
a canção a findar, as folhas das árvores a cair e, por fim, a morte a estabelecer o
seu império.
A urna é um artefato capaz de sugerir uma história que perdura além do tempo
de sua criação – não por acaso, o poeta chama-a de “sylvan historian”; afinal ela
conta e, ao mesmo tempo, congela uma legenda por meio da beleza de suas imagens.
Contudo, voltamos ao ponto inicial: a urna e/ou seus desenhos é silente, não fala ou
só falará por meio das palavras do poeta. Como não fala, suas figuras não se movem,
permanecem presas ao espaço da quietude, sem a manifestação do tempo que poderia
despertá-las para a vida e, em consequência, para a morte: “When old age shall this
generation waste”5 (KEATS, 1993, p.32). A eternidade só será conquistada no espaço
congelado do mármore, em que as figuras esboçam, insinuam gestos de paixão e ação,
mas não os findam: “Thou shalt remain, in midst of other woe”. Nos últimos versos,
quem finalmente se manifestará será a urna com o axioma clássico “Beauty is truth,
truth beauty”, que resume tudo o que há de essencial na vida. A conquista da Beleza
leva à conquista da Verdade, ou seja, o homem só poderá ter acesso ao que é eterno e
perfeito, por meio da arte, única forma de conhecimento que leva ao Absoluto. Como
resultado, ao fechar o poema, Keats dirige-se não mais à urna, mas a um “ye” que é
toda a humanidade: “Ye know on earth, and all ye need to know6 (KEATS, 1993, p.32).
Mas outro aspecto deve ser considerado, se pensarmos que a urna servirá para
despertar no poeta um mundo de sensações desconhecidas que, por sua vez, serão
dirigidas ao interlocutor. Em realidade, ela é utilizada como um “correlativo objetivo”,
expressão criada por T. S. Eliot no seu estudo acerca de Hamlet. Segundo o poeta e
ensaísta inglês,

[...] o único modo de expressar emoções em forma de arte é attravés de um


“correlativo objetivo”, em outras palavras, um conjunto de objetos, uma
situação, uma cadeia de acontecimentos, que serão a fórmula dessa emoção
particular. Assim quando os fatos exteriores, que precisam convergir para
a experiência sensorial, são fornecidos, a emoção é imediatamente evocada
(ELIOT, 1972, p.145, grifo do autor).

Keats, ao querer expressar sentimentos sobre a paixão, a vida, a morte, sobre a


sensação da passagem do tempo, não o faz de modo direto. Pelo contrário, escolhe
como ponto de partida uma urna grega; por meio de suas imagens esculpidas, ela
despertará no poeta uma cadeia de sentimentos que culminarão com a conquista de
um absoluto. A figura da ekphrasis, utilizada aqui com grande maestria, é que servirá
para que se estabeleça uma ponte entre o passado e o presente. Keats, ao contemplar
o artefato que é, ao mesmo tempo, uma escultura e uma pintura, faz que as imagens

“Quando a velhice afinal terminar com esta geração” (KEATS apud GOMES, 2015a, p.51).
5

“Vós cá da Terra sabeis, e apenas isto precisais saber.” (KEATS apud GOMES, 2015a, p.51).
6

134 Rev. Let., São Paulo, v.54, n.2, p.123-144, jul./dez. 2014.
inanimadas ganhem vida, mas não só isso, pois ele ativa implícitos, que o objeto de
arte gráfica, por si só, jamais poderia expressar. A urna é silente em suas imagens
congeladas, mas, por isso mesmo, devido à sua beleza e sugestão de eternidade, tem
o condão de ativar a imaginação exaltada do poeta, que dará vida às figuras e às
representações de movimentos não terminados e também libertará uma sensação
nova, ainda incubada em seu imaginário, e só desperta pela contemplação do vaso
grego, um “correlativo-objetivo”. Algo similar acontece com o interlocutor: depois de
contemplar esta representação de outra representação, verá despertar em si sensações
novas que o conduzirão ao reino do Absoluto.

Os dois vasos de Alberto de Oliveira


Alberto de Oliveira compôs duas peças ecfrásticas bastante conhecidas, uma
intitulada “Vaso Chinês”, outra, “Vaso Grego”, seguindo os preceitos da chamada
escola parnasiana. Como tal, os aspectos descritivo e objetivo são fundamentais nos
sonetos.
O poeta, de modo presumível, deve ter contemplado tanto um vaso grego
quanto um chinês, ou mesmo estampas, em livros, reproduzindo-os, ou ainda, deve
ter lido textos ecfrásticos de outros autores para poder escrever os sonetos. Mas são
suposições, já que não temos elementos para determinar de onde lhe veio a inspiração.
Vamos, pois, partir do pressuposto de que os sonetos tratariam de vasos fictícios,
criados pela imaginação do poeta.
Um e outro poema cumprem os ditames do Parnasianismo: objetividade,
descritivismo, antipassionalismo, transparência dos signos e culto do exotismo oriental
e clássico. Em “Vaso Chinês”, a primeira estrofe apenas descreve objetos colocados sob
o olhar casual do sujeito: o mármore “luzidio” de um contador (um armário antigo
cheio de gavetas), o leque, o bordado e a taça. Mais adiante, nas estrofes seguintes,
fala-se da figura de um mandarim a decorar o vaso. De início, há apenas um detalhe
sensorial diverso do visual: o oloroso de “perfumado”, mas que aparece isolado de
outras sensações, sem adquirir, portanto, caráter sinestésico. Já na segunda estrofe,
a objetividade começa a conviver mais com a subjetividade (presente na primeira
estrofe no uso em primeira pessoa do verbo ver), graças ao “coração doentio”, que
se supõe ter animado o artista “enamorado”, a ponto de a cor rubra, com que ele
pintou as flores, possuir a qualidade sinestésica de ardência e calor. A figura do “velho
mandarim” que comparece na terceira estrofe, conforme o próprio poeta o revela,
servirá de contraste ao trabalho do pintor, que, cheio de amor, destila a paixão nas
cores. Mas que contraste seria esse? Alberto de Oliveira (apud MOISÉS, 1983, p.216)
não o diz, apenas insinua “Sentia um não sei quê”. Mas talvez fosse possível deslindá-
lo: há um evidente confronto entre o comportamento do jovem homem, enamorado,

Rev. Let., São Paulo, v.54, n.2, p.123-144, jul./dez. 2014. 135
e o do velho homem sem paixões. O primeiro contamina a arte com um profundo
sentimento, o segundo teria um comportamento similar ao do artista parnasiano,
porquanto adotaria, presumivelmente por sua velhice, uma postura calma, serena
frente ao mundo.
A criação ecfrástica de Alberto de Oliveira padece de uma limitação, na
medida em que, ao predominar a descrição e a pobreza das metáforas, o poema
seja dominado por uma espécie de prosaísmo. Os implícitos, fundamentais nas
representações poéticas ou prosaicas empreendidas pelas ekphrasis, resumem-se ao
sugestivo e misterioso olhar do mandarim insinuado no final. Algo similar acontece
com “Vaso Grego”, provido de elementos decorativos – “áureos relevos”, “brilhante
copa”, “de roxas pétalas colmada” (OLIVEIRA apud MOISÉS, 1983, p.215-216) –
e uma pequena ação de caráter narrativo, na referência ao movimento do poeta,
erguendo e fazendo tinir a taça, seguido pelo de um contemplador anônimo do vaso,
que o admira e o toca, também o fazendo soar. Esse objeto escultórico não passa de
uma metáfora do próprio poema. Assim como a taça, se tocada, libera determinada
sonoridade – a música da lira e a voz do poeta grego –, o soneto, se lido, desperta,
visual e sonoramente, imagens de um autêntico vaso grego e as imagens do mundo
pagão, com seus deuses e poetas. E isso, conforme o autor, só poderia acontecer por
meio da arte. Ambos os sonetos ecfrásticos de Alberto de Oliveira têm um caráter
metalinguístico, na medida em que os signos, apesar de mimetizar objetos do mundo
real, se voltam para eles próprios, para a compreensão do mundo e da poesia em si.

O prolongamento das emoções em Verlaine


Outra obra de caráter ecfrástico que também ilustra o princípio do “correlativo
objetivo”, cunhado por Elliot, é o poema “Clair de Lune” de Verlaine. Nele, a
paisagem noturna e enluarada, recriada pelo poeta, não vale apenas como uma
pintura da Natureza ou de uma representação da Natureza. Pelo contrário, servirá
para despertar no leitor uma série de sensações, ou melhor, ainda, servirá, em seu
desenvolvimento poético, para prolongar ao máximo as emoções, cumprindo assim
uma das premissas fundamentais do movimento simbolista.
Verlaine teve como referência a tela de Watteau, “Amor no Teatro Italiano”,
datada de 1714. Há em comum entre o quadro e o poema, de modo mais direto,
a referência aos mascarados, à dança, à música do alaúde, às árvores, e ao luar.
Poucos detalhes, na verdade, mas o que de fato prova que o poeta francês inspirou-
se em Watteau é lembrarmos que, na versão original do poema, o primeiro verso da
terceira estrofe estava grafado “Au calme clair de lune de Watteau”, em vez do original
“Au calme clair de lune triste et beau”7, conforme as “Notes et Variantes” de Y.-G. le

“Ao calmo luar triste e belo” (VERLAINE, 1965, p.1087, tradução nossa).
7

136 Rev. Let., São Paulo, v.54, n.2, p.123-144, jul./dez. 2014.
Dantec para as obras completas de Verlaine (1965, p.1087). A ekphrasis recria a cena
bucólica e plácida do objeto pictórico, dando destaque a seus elementos essenciais,
que nos traz à vista, mas acrescentando algo a mais, ou seja, aquilo que estava apenas
implícito na tela. O que o quadro de Watteau sugere e não leva adiante, devido à sua
impossibilidade pictórica, que privilegia o espaço, sãos os movimentos dos foliões e
das águas dos chafarizes, o gorjeio dos pássaros, as influências da luz do luar e, acima
de tudo, a sensação de dolência e tristeza agridoce. O poema, por sua vez, insere o
espaço no tempo – as figuras ganham vida, os chafarizes soluçam, os pássaros cantam,
e uma atmosfera de sonho, nostalgia preenche tanto o coração do homem quanto
da natureza, a ponto de acontecer uma correspondência entre ambos, como se vê no
símile: “votre âme est un paysage choisi”8 (VERLAINE, 1965, p.1087). A alma é uma
paisagem, ou ainda, o sentimento que anima a alma do sujeito é o mesmo que anima
a da Natureza. É isto que serve para caracterizar o símbolo, tal qual era concebido
pelos simbolistas: uma forma de prolongar ao máximo uma emoção, por meio de
imagens significativas, por meio das correspondências entre a alma do sujeito e a da
Natureza. Segundo o crítico Saint Antoine (apud GOMES, 2001, p.85),

[...] a emoção prolongada pode nascer – o gênio do poeta auxiliando – da


expressão simples. O mais comum é ela resultar da imagem; desse modo, a
sensação que se desperta será prolongada e reforçada por uma impressão de
ordem diferente; por exemplo, uma emoção íntima refletida e universalizada
na natureza ambiente, ou reciprocamente, um cenário exterior animado
repentinamente pela paixão do poeta.

A leitura dos implícitos feita pelo poeta – a sensação agridoce, um misto


de tristeza e alegria – não é expressa de maneira direta, mas apenas sugerida pela
paisagem noturna e enluarada e que contamina todo o cenário, a ponto de fazer
“rêver les oiseaux dans les arbres/Et sangloter d’extase les jets d’eau”9 (VERLAINE,
1965, p.1087). Por meio da prosopopeia, até as coisas inanimadas ganham vida, ao
expressarem sentimentos que são comuns àqueles experimentados pelos mascarados,
pelo eu-poético e, depois disso, pelo leitor. Nesse poema, o sujeito, para expressar
uma determinada sensação, que não pode ser expressa às claras, pois deixaria de ser
uma sensação, para se transformar em outra coisa, opta por escolher uma paisagem
que venha a representar simbolicamente o que ele sente.
Contudo, no caso aqui da ekphrasis, esta paisagem, em vez de proceder da
natureza viva, procede da natureza representada num quadro. O poeta, assim, parte
de uma representação gráfica, de um objeto da cultura, para criar uma representação

8
“Vossa alma é uma paisagem escolhida” (VERLAINE, 1965, p.1087, tradução nossa).
9
“sonhar os pássaros nas árvores/E soluçar de êxtase os chafarizes” (VERLAINE, 1965, p.1087, tradução
nossa).

Rev. Let., São Paulo, v.54, n.2, p.123-144, jul./dez. 2014. 137
verbal, que ativará os implícitos presentes na tela, que lhe serviu de ponto de partida
ou mesmo de inspiração.

A ekphrasis na modernidade
Na modernidade, via de regra, as peças ecfrásticas mais notórias caracterizam-
se pelo víeis irônico e/ou paródico como se poderá verificar em poemas de Wallace
Stevens e Murilo Mendes.

Wallace Stevens e a jarra desnuda

Anedocte of the Jar

I placed a jar in Tennessee,


And round it was, upon a hill.
It made the slovenly wilderness
Surround that hill.

The wilderness rose up to it,


And sprawled around no longer wild.
The jar was round upon the ground
And tall and of a port in air.

It took dominion everywhere.


The jar was gray and bare.
It did not give birth of bird or bush
Like nothing else in Tennessee.10
(STEVENS apud MITCHELL, 2009, p.149).

O que chama a atenção no texto de Stevens, mais do que a jarra em si,


desprovida de elementos decorativos (ela é apenas “gray and bare”), é o fato de o
poeta compor uma ekphrasis que se opera sobre o nada, sobre o vazio, tendo como
resultado um poema irônico e parafrástico. Este texto sobre a jarra “proporciona
uma alegoria e crítica de sua própria identidade genérica e quase se podia entender

10
“História de uma jarra/Dispus uma jarra em Tennessee,/Redonda ficava, no topo de uma colina./Ela fez
com que a selva desleixada/Circundasse aquela colina.//A selva levantou-se até ela,/E se esparramou ao redor,
deixando de ser selvagem./A jarra era redonda sobre o solo/E alta, um porto no ar.//Assumiu o domínio por
toda parte./A jarra era cinza e nua./Não criou pássaro nem moita/Como nada mais em Tennessee.” (STEVENS
apud GOMES, 2015b, p.66).

138 Rev. Let., São Paulo, v.54, n.2, p.123-144, jul./dez. 2014.
como uma paródia do objeto ecfrástico clássico”, ao ver de Mitchell (2009, p.149).
A jarra não possui elaborados desenhos, ou figuras esculpidas, que permitam o
desenvolvimento de histórias pastoris e guerreiras, como acontece em Homero e
Teócrito, ou possibilitem o despertar de sentimentos elevados, como em Keats. Pelo
contrário, ela parece ser apenas um objeto fabricado em série para uso cotidiano e,
portanto, desprovido de individualidade, o que poderia provocar o desinteresse do
olhar artístico de um espectador. À parte seu mínimo ou quase nulo papel decorativo,
a jarra deve ter sido feita para uma função utilitária qualquer.
Mas, no poema, o fato de ela ter sido colocada num outro ambiente altera
esse utilitarismo, pois o poeta dá a entender que a jarra “took dominion everywhere”.
O procedimento do “eu-poético” lembra o do dadaísta, porquanto, ao eliminar a
utilidade da jarra, colocando-a num lugar em que ela será “inútil”, cria, mal ou bem,
um objeto de arte, à semelhança do mictório de Duchamp. Em consequência disso,
ela toma posse da colina, civilizando-a, e esse aspecto civilizatório pode ser visto,
inclusive, no modo como age sobre a “slovenly wilderness” que, imitando o formato
redondo do objeto, cerca, também, com sua circularidade, a colina. Por outro lado,
a palavra “dominion”, além de seu claro sentido de “domínio”, costumava designar
uma marca conhecida de jarras, ou potes para conservas, de modo que aqui se cruza
a imagem da jarra genérica como símbolo de uma atividade civilizada, com a da
alusão a um objeto doméstico específico, ambos fora de lugar na “wilderness”. A jarra
acaba influindo no ambiente, ajudando a criar a dicotomia entre o incivilizado e o
civilizado, ou ainda, imprimindo um lado artístico ao que é selvagem. Em outras
palavras, a jarra “compõe” a paisagem, oferece-lhe certo ordenamento interior, pois,
onde antes havia natureza agreste, agora há um “jardim”. E quem lhe dá uma função
artística é o sujeito do poema que, individualizando-a, ao colocá-la no alto de uma
colina, faz que ela reine sobre a paisagem e, inclusive, modifique a própria natureza
selvagem, impondo-lhe a forma redonda e civilizada. Devido à intervenção do poeta,
a jarra comporta-se como um objeto único e diferenciado, e, por consequência, servirá
de meio para o comentário irônico do poema que vai da jarra ao espaço circundante.
Afinal, o vazio do artefato, que “did not give of bird or bush”, estende-se para o estado
do Tennessee, do ponto de vista Wallace Stevens, um local pobre e sem interesse,
talvez como a própria jarra cinza.
O poeta, por meio da ironia, está a contestar a tradição e/ou o esgotamento
de um gênero, escrevendo a sua anti-ekphrasis. O elemento descritivo, essencial
nessa figura retórica, é mínimo, isso porque a jarra é marcada por uma absoluta
trivialidade, trivialidade essa presente em sua tradicional e comum forma circular, em
sua falta de elementos decorativos e em sua monótona cor cinzenta. A contemplação
desse objeto, que só é artístico (ou pseudo-artístico), quando deslocado da função
utilitária e colocada em outro ambiente, que não o familiar, o doméstico, provoca,
em consequência, uma reflexão diferenciada do eu-poético, ainda que a partir

Rev. Let., São Paulo, v.54, n.2, p.123-144, jul./dez. 2014. 139
dos elementos nada artísticos. Conclui-se que o texto pode ser considerado uma
paródia ou o reverso do poema ecfrástico clássico por quatro motivos principais:
a) não contempla um objeto artístico em si, que atraia o olhar devido a seu aspecto
único, diferenciado e belo; b) o objeto só se torna artístico, devido à intervenção do
poeta que lhe retira o aspecto utilitário, ao afastá-lo do ambiente doméstico; c) em
consequência desse fato, o poeta, ao construir a ekphrasis, potencializa os implícitos,
sugeridos pela neutralidade da jarra, mas não para cantar o sublime, o transcendental,
mas, sim, para trazer à luz um elemento crítico; d) esse elemento crítico ramifica-
se, contemplando o mundo das representações, a jarra e sua descrição ecfrástica e o
mundo real, no caso, o estado do Tennessee.

Murilo Mendes e “O Casal Arnolfini”

O Quadro

É verdade que Giovanni Arnolfini


Não olha a mulher – grávida talvez –
Olha antes o espectador
Também ele protagonista/testemunha.
(MENDES, 1993, p.81).

Murilo Mendes em seu poema, é muito sucinto, no sentido de que se resume


a desenvolver apenas a questão do olhar na tela de Van Eyck, a partir da figura de
Giovanni Arnolfini, que, de mãos dadas com a esposa, não a contempla e, sim, o
espectador da tela. A ekphrasis, no caso, está a serviço da discussão de uma questão
metalinguística, ou seja, o poeta quer tratar da teoria da recepção, suscitada por um
detalhe significativo da tela: o espelho convexo postado às costas das figuras e que
projeta, em miniatura, o que se esconde à frente delas, no caso, na interpretação do
sujeito, o espectador/testemunha.
Esse espectador duplica-se – segundo muitos estudiosos da tela, seriam um
sacerdote e o próprio pintor. Quanto a este último, não bastasse figurar na tela,
numa projeção especular, ainda por cima, deixa uma inscrição no quadro, um
pouco acima do espelho: “Johannes van Eyck fuit hic 1434” (“Jan van Eyck esteve
aqui em 1434”). Mas é possível ir um pouco mais longe, se nos desligarmos da
ilusão e pensarmos que, no lugar do espectador/pintor refletido no espelho, poderia
se postar outro tipo de espectador, aquele que contemplou e vem contemplando
o quadro há séculos. Pois então, é também para ele que Giovanni Arnolfini lança
o olhar, de maneira a apresentar seu próprio mundo, formado, num primeiro
plano, pela bela esposa (talvez grávida) e, num segundo plano, por suas posses: um

140 Rev. Let., São Paulo, v.54, n.2, p.123-144, jul./dez. 2014.
aposento recheado com tudo o que um rico burguês, trabalhando como mercador,
poderia ostentar no seu tempo.
Como costumava acontecer nas telas do período, mormente as produzidas
no Flandres, aparecem no quadro muitos detalhes que, no caso, parecem ter sido
colocados ali sem justificativa aparente. Todavia, a um olhar mais atento, percebe-se
que os objetos servem para atestar a riqueza do casal. Assim, os móveis, as roupagens
e mesmo as frutas colocadas no parapeito da janela, foram ali dispostos, de acordo
com um cálculo, que tanto pode ter sido do pintor quanto do mercador ou mesmo
de ambos. Nessa estudada arrumação, oferecem-se aí objetos de muitos países, como
a Rússia, Turquia, Itália, Inglaterra, França. Aproveitando-se de sua condição de
mercador, Arnolfini deve ter trazido desses lugares tudo o que o dinheiro poderia
comprar e que propiciasse a ele e à esposa o maior conforto. Quanto aos móveis,
chamamos a atenção para o amplo leito de dossel, provido de ricos cortinados, o
tapete, talvez procedente da Turquia, de modo muito provável, um objeto caríssimo
na época, assim como o requintado espelho, que exibe em seu entorno 10 das
14 estações da Via Sacra. Mas há ainda o lustre dourado e, sobretudo as laranjas,
importadas do sul da Europa, que eram uma raridade no norte do continente. E há
que lembrar, como não poderia deixar de ser, as roupas das personagens. O homem
veste o tabardo, um manto com mangas e capuz, com remates de pele de marta,
enquanto a mulher usa um belo vestido, de cores vivas e alegres, com punhos de
arminho, um colar, anéis e um cinto todo de ouro. A exibição de tantos bens de alto
valor serve como ostentação – um modo de o casal exibir a ascensão numa sociedade
altamente estratificada, apesar de serem burgueses e mercadores.
O espectador, chamado pelo olhar de Giovanni Arnolfini, é convidado a
entrar nesse mundo, para, em primeiro lugar, também servir de testemunha legal do
casamento que ora se realiza, em segundo lugar, da riqueza deles e, em terceiro lugar,
da ascensão de uma classe, a burguesa, que passa a ter os mesmo privilégios de uma
classe superior – que começa a substituir – a nobreza. Com efeito, a tela, entre outras
coisas, é fundamental como o registro histórico de uma profunda mudança social,
principalmente nos países do Flandres e na Itália, em que o poder do dinheiro, de
certo modo, começa a suplantar o do sangue. Isso, a ponto de um simples mercador
merecer posição de destaque, ao ser representado num quadro, não pelo fato de
pertencer à nobreza, mas por suas posses. A verticalidade social começa a ser substuída
pela horizontalidade, com a valorização dos bens terrenos, o materialismo, ou, se se
quiser, o antropocentrismo. E para celebrar esse novo e luminoso mundo que nasce,
com todo seu esplendor e beleza, em tudo oposto ao mundo da transcendência,
representada, por exemplo, nos quadros medievais de Giotto e Fra Angelico, ainda
Van Eyck nos oferta a gravidez da mulher, como símbolo fértil da vinda de um
renascimento.

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A ekphrasis, neste caso, bastante sucinta, não tem como interesse a descrição
minuciosa de um quadro já de si minucioso, mas, sim, se concentrar em discutir a
questão da ilusão, da representação ou, se se quiser, da teoria da recepção. A tela,
afinal, foi concebida para os olhos de espectadores, desde o seu tempo até nossos dias.
Ver implica deslindar implícitos que o pintor deixou sugerido na tela, por meio de
gestos e atitudes das personagens, não desenvolvidas no seu todo. Do ponto de vista
de Maria João Reynaud (2001, p.42),

[...] a correspondência da poesia com a obra pictórica ou escultórica é


encontrada, não raro, num movimento gradual de aproximação, até ao ponto
em que a perspectiva se anula e dá lugar a uma reversibilidade do olhar que é
da ordem do enigma.

O enigma está num olhar que se dirige a outro e não identificado olhar: afinal,
o comerciante Arnolfini não quer apenas ser visto, junto com sua bela mulher e
seus caros objetos de decoração, mas quer mostrar quem é e o que possui, como se
constituísse um símbolo vivo de não só uma pessoa, mas também de uma classe em
plena ascensão social.

Ao cabo, a representação ecfrástica, resultante ou motivada por várias


representações, faz que os signos não-verbais se transmudem em signos verbais. A
ekphrasis, nesses últimos casos, porém, deve ser vista apenas como revisitação paródica
de um gênero, no sentido de que os autores escrevem poema altamente irônicos.
A finalidade destas peças ecfrásticas, ao contrário da ekphrasis clássica, não é o de
que a literatura ecfrástica possa tornar “[...] explícita a história que a arte gráfica
conta somente por sugestão” (HEFFERNAN, 1991, p.301). Pelo contrário, ela só faz
obscurecer, confundir, provocando nos leitores um distanciamento crítico.

GOMES, A. C. A Mimesis of culture: a study of the rhetoric figure of ekphrasis.


Revista de Letras, São Paulo, v.54, n.2, p.123-144, jul./dez. 2014.

▪▪ ABSTRACT: This article, at first, intends to study the concept of ekphrasis, and then
apply it in poems of Homer, Theocritus, Keats, Alberto de Oliveira, Verlaine, Wallace
Stevens and Murilo Mendes. Our intent is to demonstrate that the rhetorical figure of
ekphrasis, more than simple description, meant to be a mimesis of culture.

▪▪ KEYWORDS: ekphrasis. Poetry. Description. Mimesis. Culture. Graphic arts.

142 Rev. Let., São Paulo, v.54, n.2, p.123-144, jul./dez. 2014.
Referências
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CASSIN, B. L’effet sophistique. Paris: Gallimard, 1955.

DESBORDES, F. La réthorique antique. Paris: Hachette, 1996.

ELIOT, T. S. Selected essays. London: Faber & Faber, 1972.

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