Perfect Days
Perfect Days
Perfect Days
Hirayama é o protagonista deste filme realizado por Wim Wenders: Acorda todos
os dias bem cedo, à mesma hora, com o som de uma vassoura, de uma senhora a
limpar a rua. Ao sair de casa olha sempre para o alto, para as copas das árvores,
sempre com um sorriso. Tem uma rotina simples que lhe traz contentamento e
serenidade diante da azafama da cidade e da vida dos homens. Pela manhã desloca-
se diariamente para o trabalho, na sua carrinha. Nas viagens de ida e volta, entre a
casa e o trabalho, a emblemática torre Tóquio Skytree é olhada sempre com renovada
admiração, como se fosse a primeira vez; as casas, o céu, as pessoas, tudo é olhado
com uma simplicidade amorosa pelo real. “É verdade para o nosso coração, para a
nossa existência, aquilo que em cada manhã, aos despertarmos, imediatamente se
apresenta aos nossos olhos, à nossa mente, à nossa vontade como verdadeira. Se é
verdade em cada manhã é porque é novo: é verdadeiro o que é novo. E o que é novo,
verdadeiramente novo, e, portanto, pode desafiar o tempo, é verdadeiro1.” Wenders
cria um filme que nos revela a humanidade de uma vida simples trazendo à luz
verdades universais.
Ele limpa e cuida com perfeição os quartos de banho públicos da cidade de Tóquio.
Com o mesmo cuidado de um artista diante do seu quadro. Hirayama é capaz de
transformar o seu trabalho em arte, sempre atento às pequenas coisas, atento aos
encantos efémeros do dia a dia, que deixam de o ser e não voltam a ser mais perdidos,
porque há uma esperança que não morre, porque parte do que existe e por isso está
cheio de esperança para o futuro. Num diálogo entre o Hirayama e o rapaz com quem
trabalha este pergunta-lhe: “-Tu gostas mesmo deste trabalho? Como podes trabalhar
tanto num serviço como este? Não é que espere uma resposta, mas tenho estado a
pensar…”
1
Toda a terra deseja o teu rosto, Luigi Giussani, Pág. 127, Paulus.
1
À hora do lanche vai sempre à mesma praça e aproveita para fotografar a mesma
árvore, bem como os komorebi2, ou seja, os feixes de luz do sol que passam por entre
as folhas das árvores, que apenas existem uma vez, nesse preciso momento!
Wenders diz: “Imaginei um homem que tivera um passado privilegiado e rico que
resvalara profundamente. E que então, um dia, quando a sua vida estava no ponto
mais baixo, tivera uma revelação, ao observar o reflexo das folhas criado pelo sol que
brilhava milagrosamente no buraco do inferno em que ele estava a acordar”.
Num diálogo com a sua sobrinha junto ao rio esta pergunta-lhe: “-Este rio vai dar
ao mar? -Sim, desagua no oceano. – Quer ir lá? -Numa próxima vez. – E quando será?
– A próxima vez, será na próxima vez e agora é agora.”
Hirayama olha para tudo à sua volta com um olhar cheio de silêncio e atenção aos
mínimos detalhes, no meio da rotina há sempre vislumbres de alegria e de beleza. “O
silêncio envolve as coisas: o silêncio não é passividade, se envolve as coisas, se delas
emerge enchendo-as (…) Acordas de manhã cedo, a primeira emoção é o silêncio; há
um silêncio que por um instante envolve todas as coisas: é o significado das coisas, é
aquilo que não se pode dizer, por isso o silêncio é sinónimo de mistério.3”
2 Komorebi: palavra japonesa para designar o momento do abrilhantar de luz e sombras que é
criado pelas folhas a esvoaçar ao vento; apenas existe uma vez, nesse preciso momento.
3
Ibidem, pág. 47
2
Numa das cenas finais do filme há um diálogo, onde um homem, recém conhecido,
conta a Hirayama o seu drama: “-Tenho cancro, está espalhado, o meu corpo está
inchado pela quimioterapia. (…) As sombras será que ficam mais escuras quando
sobrepostas? -Talvez. – Existem ainda imensas coisas que desconheço, a vida acaba e
nós sem saber nada. Como sou ignorante. -Vamos descobrir!”
Na cena final, creio que das mais significativas de todo o filme, vê-se Hirayama a
conduzir a sua carrinha no percurso para o seu trabalho, pela manhã, ao som de
Feeling Good, cantada por Nina Simone. “Pássaros voando alto, você sabe como me
sinto, sol no céu, você sabe como me sinto, a brisa passando, você sabe como eu me
sinto, é um novo amanhecer, é um novo dia, é uma nova vida para mim, sim é um
novo amanhecer, é um novo dia, é uma nova vida para mim, ooh, e eu estou-me a
sentir bem, peixes no mar, você sabe como eu me sinto, rio a correr livremente, você
sabe como eu me sinto, florescer na árvore, você sabe eu como me sinto, é um novo
amanhecer, é um novo dia, é uma nova vida para mim, e eu estou-me a sentir bem,
libélula ao sol, você sabe o que quero dizer, não sabe? Borboletas divertindo-se, você
sabe o que eu quero dizer, durma em paz quando o dia acabar, é o que eu quero dizer,
e esse velho mundo, é um mundo novo e um mundo ousado para mim, sim, sim, vejo-
te brilhar como estrelas, você sabe como eu me sinto, cheiro do pinheiro, você sabe
como eu me sinto, oh, a liberdade é minha, e eu sei como me sinto, é um novo
amanhecer, é um novo dia, é uma nova vida para mim, eu estou a sentir-me bem.”
Hirayama está totalmente sintonizado com esta música: a sua humanidade, o seu
desejo de felicidade, a sua dor pelo seu passado, transparecem no seu olhar comovido.
“Quando a alegria vibra de pranto e quando o pranto vibra de alegria, então é mesmo
um homem”. – Kierkegaard.