6_Cooperativismo_e_Inclusao_Social
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RESUMO
Foi no interior do Rio Grande do Sul que surgiram as primeiras cooperativas do Brasil. Não
obstante, é também nesse estado que se assiste à emergência das cooperativas empresariais,
organizações econômicas que se agigantaram, durante as décadas de 1960 e 1980, graças aos
generosos subsídios do Estado autoritário (1964-1985). A crise econômica desencadeada
durante e depois dos anos 1980 – a década perdida – abalou os fundamentos do cooperativismo
empresarial e os princípios desta doutrina econômica e social. O presente artigo se debruça
sobre uma realidade completamente distinta, qual seja, a de pequenas cooperativas de
agricultura familiar situadas no extremo meridional do Brasil cujo surgimento está
inextricavelmente ligado à implantação das políticas de segurança alimentar, mormente pelas
compras institucionais capitaneadas por entes públicos, a exemplo do Restaurante-Escola da
Universidade Federal de Pelotas. Tal sistema se mostra eficiente tanto do ponto de vista de
assegurar o atendimento da demanda como no sentido de promover a inclusão social das
famílias rurais que integram o quadro social das cooperativas. Todavia, tal processo é
interrompido por força das imposições burocráticas dos órgãos federais de controle, fato que
gera incertezas e desalento para os atores implicados nesse processo. Entrementes, resta o
reconhecimento sobre as virtudes do cooperativismo como caminho para conciliar
desenvolvimento econômico com justiça social e de incentivar a inovação, a aprendizagem e a
convergência em torno a interesses e objetivos comuns. O objetivo do artigo é fazer uma
reflexão sobre essa experiência à luz da realidade concreta. Tal aproximação se deu a partir de
metodologia qualitativa cuja ênfase foram entrevistas com roteiro semiestruturado aplicadas
junto a diversos atores sociais, especialmente de lideranças e produtores que atuam nas
cooperativas ligadas aos mercados institucionais.
1
Agrônoma, Mestre em Agronomia pela Universidade Federal de Pelotas (2020). ORCID: https://orcid.org/0000-
0003-0781-7091. E-mail: danisilveiraf@gmail.com
2
Agrônomo, Doutor em Sociologia pela Universidade de Córdoba, Espanha (2000), Professor Titular da
Universidade Federal de Pelotas, no Departamento de Ciências Sociais Agrárias da Faculdade de Agronomia
Eliseu Maciel. Pelotas. Rio Grande do Sul. Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0582-7627. E-mail:
saccodosanjos@gmail.com.
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Cooperativismo e inclusão social: o caso dos mercados institucionais no Sul do Brasil
ABSTRACT
It was in the interior of Rio Grande do Sul that Brazil's first cooperatives emerged. However, it
was also in this state that the emergence of business cooperatives, economic organizations that
grew during the 1960s and 1980s, thanks to the generous subsidies of the authoritarian state
(1964-1985), is witnessing. The economic crisis unleashed during and after the 1980s - the lost
decade - shook the foundations of business cooperativism and the principles of this economic
and social doctrine. This article focuses on a completely different reality, namely, that of small
family farming cooperatives located in the southern tip of Brazil whose emergence is
inextricably linked to the implementation of food security policies, especially through
institutional purchases led by public entities, example of the School-Restaurant of the Federal
University of Pelotas. Such a system proves to be efficient both from the point of view of
ensuring that demand is met and of promoting the social inclusion of rural families that are part
of the cooperatives' membership. However, this process is interrupted due to the bureaucratic
impositions of the federal control bodies, a fact that generates uncertainty and discouragement
for the actors involved in this process. Meanwhile, there remains recognition of the virtues of
cooperativism as a way to reconcile economic development with social justice and to encourage
innovation, learning and convergence around common interests and goals. The aim of the article
is to reflect on this experience in the light of concrete reality. This approach was based on a
qualitative methodology whose emphasis was in depth interviews with a semi-structured script
applied to various social actors, especially leaders and producers who work in cooperatives
linked to institutional markets.
RESUMEN
Fue en el interior de Rio Grande do Sul que surgieron las primeras cooperativas de Brasil. Sin
embargo, es también en este estado brasileño que se asiste a la emergencia de las cooperativas
empresariales, unas estructuras económicas que se agigantaron durante las décadas de 1960 y
1980 a raíz de las generosas subvenciones del Estado autoritario (1964-1985). La crisis
económica acaecida durante y después de los años 1980- la llamada década perdida – afectó los
fundamentos del cooperativismo empresarial y los pilares elementares de esta doctrina
económica y social. El presente artículo aborda una realidad completamente distinta, cual sea,
la de pequeñas cooperativas de agricultura familiar ubicadas en el extremo meridional cuya
aparición está ligada a la implantación de políticas de seguridad alimentaria, sobre todo a través
de las compras institucionales capitaneadas por entes públicos, sobre todo de los comedores de
la Universidade Federal de Pelotas. Tal sistema se mostró eficiente tanto del punto de vista de
atender la demanda como de promover la inclusión social de las familias que integran el cuadro
social de las cooperativas. Sin embargo, tal ciclo se interrumpe a causa de las imposiciones
burocráticas de los órganos de control, hecho que causa incertidumbre y desaliento para los
actores implicados en este proceso. Todavia, resta la convicción sobre las virtudes del
cooperativismo como camino para conciliar desarrollo económico y justicia social, así como
para generar innovación, aprendizaje y convergencia en torno a intereses y objetivos comunes.
El objetivo del artículo ha sido reflexionar sobre dicha experiencia bajo la perspectiva de la
realidad concreta. Tal aproximación se dio a partir de metodología cualitativa, cuya énfasis
recae sobre entrevistas en profundidad y guión semiestructurado aplicadas junto a diversos
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actores sociales, especialmente junto a dirigentes y productores que actuan en las cooperativas
ligadas a los mercados institucionales.
Como citar este artigo: SILVEIRA, Danielle Farias da; ANJOS, Flávio Sacco dos.
Cooperativismo e inclusão social: o caso dos mercados institucionais no Sul do Brasil. DRd -
Desenvolvimento Regional em debate, v. 12, p. 91-109, 31 mar. 2022. DOI:
https://doi.org/10.24302/drd.v12.3547
1 INTRODUÇÃO
A cooperativa dos tecelões de Rochdale tinha por objetivo reduzir o custo de aquisição
de artigos de primeira necessidade e repassá-los aos seus associados no período que coincide
com a revolução industrial, quando a precariedade das condições de existência do proletariado
inglês era mais que evidente. Era, portanto, uma cooperativa de consumo. Passados mais de
170 anos tem-se notícia da emergência de instituições do gênero que cumprem os mais diversos
tipos de propósitos: cooperativas de produção, crédito, eletrificação, habitação, de profissionais
liberais, de prestação de serviços, etc.
A pesquisa que ensejou a realização deste artigo foi realizada no extremo sul do Brasil,
mais precisamente em municípios da chamada Serra dos Tapes, onde estabelecimentos de
agricultura familiar se dedicam à geração de produtos destinados aos chamados mercados
institucionais, incluindo o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e o Programa
de Aquisição de alimentos (PAA)
A hipótese de que partimos, ao realizar a investigação, foi de que a criação dos mercados
institucionais acabou por criar um ambiente favorável para processos de cooperação no
contexto da agricultura familiar, tanto no sentido de promover o surgimento de pequenas
cooperativas como de fortalecer a atuação das que, à época, já existiam nessa região do país.
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Os dados que serão apresentados e debatidos fazem parte de uma pesquisa mais ampla
desenvolvida entre os anos 2018 e 2020 através da realização de um trabalho de campo que
envolveu o levantamento de dados primários junto a órgãos oficiais, bem como a realização de
entrevistas (18) em profundidade com roteiro semiestruturado junto a diversos atores sociais,
incluindo agricultores e agricultoras familiares, representantes de cooperativas, da agência
oficial de extensão rural, de empresas públicas e de organizações não-governamentais.
Este artigo está organizado, além desta introdução, em quatro seções. A primeira delas
apresenta um quadro geral sobre a questão do cooperativismo agrícola no Rio Grande do Sul.
A segunda seção reúne alguns dados sobre a situação da agricultura familiar em municípios da
Serra dos Tapes, bem como do cooperativismo dessa região gaúcha. É na terceira seção que
abordaremos o tema dos mercados institucionais e suas interfaces com a questão do
cooperativismo. A quarta e última seção traz algumas conclusões e as considerações finais deste
estudo.
Amstad dedicou-se à criação do que à época se conhecia como caixas rurais tipo
“Raiffeisen”, que nada mais eram que cooperativas de crédito destinadas a conceder
empréstimos para famílias de colonos católicos alemães através do sistema de crédito rotativo.
Em 1940 havia cerca de 40 unidades do gênero no Rio Grande do Sul, as quais permitiram com
que seus sócios pudessem adquirir mais terras, máquinas, construir engenhos, atafonas, etc.,
numa quadra da história em que as famílias enfrentavam grandes desafios e adversidades.
3
Existe certa controvérsia sobre o surgimento do cooperativismo no Brasil, havendo trabalhos (PINHO, 2004;
SOUZA, 2009) que consideram que, de fato, a primeira experiência cooperativista brasileira, nos moldes
rochaleanos, teria sido a Sociedade Cooperativa Econômica dos Funcionários Públicos de Ouro Preto (MG).
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O balanço que faz Tambará a respeito dessa primeira fase do cooperativismo no Rio
Grande do Sul é apresentado nos seguintes termos:
Assim, de 1914 a 1929 observa-se no estado um grande silêncio no que diz respeito
às atividades associativas de cunho cooperativista. Raras são as comunidades rurais
que se arrojavam a investir neste tipo de empreendimento. Este período parecia estar
destinado a curar as feridas provocadas pelo desastre dos movimentos cooperativistas
fracassados (TAMBARÁ, 1983, p.55)
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condição graças aos generosos incentivos (fiscais e creditícios) concedidos pelo Estado durante
os anos da ditadura militar (1964-1985).
A Centralsul foi criada em 1980 como braço econômico das Federações das
Cooperativas do Trigo do Rio Grande do Sul (Fecotrigo), uma estrutura de segundo grau do
cooperativismo gaúcho erguida em 1958. Como bem descreve Benetti em sua obra:
Os anos 1980 entraram para a história nacional como a chamada “década perdida”
(EINLOFT, 1990). O país entra em recessão e enfrenta dificuldades no que tange ao pagamento
dos juros da dívida externa. Some-se a isso o grande déficit fiscal e a crise inflacionária. A
questão da dívida externa é o resultado da elevação das taxas imposta pelos grandes impérios
do setor liderados pelo Fundo Monetário Internacional. Além disso, o período de
redemocratização nacional se inicia na segunda metade dos anos 1980 em meio a um quadro
em que as finanças públicas se apresentavam em situação dramática após 21 anos de ditadura
militar.
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No período compreendido entre os anos 1980 e 1994 o Brasil vive as agruras do que se
veio a chamar “estagflação” (CURADO & CRUZ, 2012, p.281), qual seja, a nefasta associação
entre estagnação econômica e hiperinflação. As medidas adotadas pelo governo federal incluem
cortes radicais no volume de crédito rural e uma progressiva retirada das generosas subvenções
concedidas ao setor agrícola no período correspondente às duas décadas precedentes
(FURSTENAU, 1990, p.213).
Mas a face atual do cooperativismo gaúcho se mostra algo desigual dentro da geografia
desta unidade federativa. Como mostra a Figura 1, os municípios do entorno de Pelotas, que
correspondem ao recorte da pesquisa, se situam no estrato mais baixo em termos de percentual
de produtores associados a instituições cooperativas (inferior a 30%). Destoa, portanto, das
zonas setentrionais do estado onde o mesmo índice é igual ou superior a 70%. Há também que
mencionar a situação da principal cooperativa da região (Cooperativa Sul de Laticínios), a qual
atravessa, nas atuais circunstâncias, uma grave crise de insolvência que afeta a milhares de
famílias rurais a ela associadas.
4
Esse é o caso da Cooperativa Tritícola Ijuí (Cotrijuí) e da Cooperativa Tritícola Santo Ângelo (Cotrisa)
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Tabela 1 – Distribuição dos estabelecimentos agrícolas dos municípios de Arroio do Padre, Canguçu, Morro
Redondo, Pelotas, São Lourenço do Sul e Turuçu – RS, de acordo com o tamanho e a natureza (familiar e não-
Familiar).
Número de estabelecimentos
Municípios Total
Familiares Não-familiares
Arroio do Padre 400 27 427
Canguçu 6.691 1.384 8.075
Morro Redondo 369 116 485
Pelotas 2.444 253 2.697
São Lourenço do Sul 3.334 516 3.850
Turuçu 333 39 372
Total 12.869 2.180 15.049
Fonte: Elaboração dos autores a partir dos dados do Censo Agropecuário (IBGE, 2017)
Todavia, durante os anos 1980 e 1990 há claros sinais de decadência desse padrão de
desenvolvimento econômico com o fechamento de diversas indústrias de médio e grande porte.
Muitas famílias abandonam a produção hortifrutícola para se dedicar à produção de tabaco sob
o regime de integração vertical com as grandes empresas multinacionais deste setor.
A Tabela 2 reúne dados das cinco cooperativas ofertantes de produtos para a UFPel.
Duas delas operam no âmbito da produção orgânica (Sul Ecológica e União) e três no âmbito
da produção convencional (CafSul, Coopamb, Coopap). Todavia, todas elas atendem aos
mercados institucionais (MI), incluindo, além da UFPel, a merenda escolar no âmbito municipal
e estadual, bem como refeitórios de unidades da Marinha e Exército no extremo sul gaúcho.
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Tabela 2 – Perfil produtivo das cooperativas fornecedoras de produtos alimentares para o RE-UFPel.
Ano de Nº Cooperados
Cooperativa Sede Mercados institucional (MI) ou Privado (MP)
criação 2016 2020
Produtores MI: PNAE Municipal e Estadual;
Agrícolas do Monte 2008 Pelotas 63 77 MP: Atacado e supermercado
Bonito (Coopamb) Elaboração de minimamente processados;
Produção convencional (não-orgânica)
Apicultores e MI: PNAE Municipal e Estadual, UFPel,
Fruticultores da 2009 Pelotas 372 550 Marinha, Exército
Zona Sul (CafSul) Industrializam o pêssego (compota)
Produção convencional (não-orgânica)
Agropecuária de Arroio MI: PNAE Municipal e Estadual, PAA,
Arroio do Padre 2011 do 70 82 UFPel, Marinha, Exército.
(Coopap) Padre Produção convencional (não-orgânica)
MI: PNAE Municipal e Estadual, PAA,
UFPel, Marinha, Exército;
MP: Supermercado
Sul Ecológica 2001 Pelotas 227 110 Venda direta: Loja da Cooperativa, Cestas por
assinatura e feiras
Possui agroindústria de conservas vegetais
Produção orgânica e certificada
União dos MI: PNAE Municipal e Estadual, PAA, PAA
Agricultores CONAB, UFPel, Marinha, Exército;
2009 Canguçu 112 250 Venda direta: sede da Cooperativa e Feira
Familiares de
Canguçu (União) Agroindústria de beneficiamento de Grãos;
Produção orgânica e certificada
Fonte: Elaboração dos autores a partir de diversas fontes, incluindo a UCP Emater (2020).
Todavia, para os efeitos que persegue esse artigo científico, vale indagar: como se
encontram atualmente posicionadas as cooperativas que operam no âmbito dos MI? Qual a
avaliação que fazem os produtores e produtoras desde que passaram a operar tais programas?
Quais as expectativas das cooperativas em relação ao futuro? Como tais organizações se
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Esse processo, no âmbito da UFPel, se inicia em 2006, mas foi a partir de 2013 que tal
iniciativa ganhou um forte impulso, não somente em virtude do percentual alcançado, quando
chegou a aproximadamente 80% de participação da agricultura familiar em 2017, mas pelo
número de refeições servidas (aproximadamente 1,2 milhão ao ano) e do volume de recursos
aplicados na região de influência da UFPel.
Esta amplitude reflete não somente a busca de uma oferta qualificada por parte da
organização dos refeitórios comandada, até então, pela FAU, mas também de uma estratégia
que possibilitava a que as cooperativas eventualmente pudessem substituir produtos que
estivessem em falta ou que realizassem ajustes quando a oferta fosse insuficiente.
5
A legislação que instituiu os mercados institucionais apresenta alguns marcos que são fundamentais, entre os
quais, a lei 10.696 que cria, no começo do primeiro mandato do presidente Lula da Silva (2003), o Programa de
Aquisição de Alimentos (PAA). Em 2009 surge a lei nº 11.947, através da qual, surge o Programa Nacional de
Alimentação Escolar (PNAE) que obriga a que os gestores dos estados e municípios destinem ao menos 30% dos
recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) para a compra de produtos da agricultura
familiar em nível local ou regional. Além disso, é preciso mencionar o Decreto nº 8.473/15, de 22 de junho de
2015, que torna obrigatória a aquisição de alimentos de agricultores familiares e de suas organizações, de
empreendedores familiares rurais e demais beneficiários, no percentual mínimo de 30% do total dos recursos
recebidos para aquisição de gêneros alimentícios.
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[...] a universidade eu acho que é crucial, né? Como que vou dizer pra ti? Por ela
conseguir colocar esse processo de maneira mais científica, né, e menos, é.... não só
política né? Científica é isso, gera renda, tinha a cooperativa vinte sócios, com esse
mercado hoje ela tem cento e cinquenta sócios, então incluiu mais tantas pessoas, ela
tinha o faturamento de trinta mil reais por ano, ela tem o faturamento hoje de um
milhão por ano.
[...] aí depois surgiu essa parte da indústria dispensar os produtores, e aí começou esse
programa de PAA e PNAE, que foi que deu um grande avanço da cooperativa. E aí
quando esses produtores não tiveram onde colocar o pêssego, a cooperativa conseguia
colocar nesses programas institucionais do governo... foi que deu esse avanço, porque
isso aqui mesmo não existia nada, nos primeiros tempos a gente se reunia ali na
paróquia, aí depois que surgiu a possibilidade da gente trabalhar e adquiriu essa parte
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com 2 ha de terra, aí a gente doou pra prefeitura de Pelotas e a prefeitura colocou esse
prédio que a gente tá aqui.
Uma cooperativa que dispõe de excedentes de um dado produto agrícola cede-o para
uma outra cooperativa para que não haja solução de continuidade no atendimento do que foi
acordado no processo de contratação. Tal estratégia foi crucial para satisfazer a demanda da
UFPel, cuja magnitude dos volumes adquiridos, crescia a cada nova Chamada Pública. Esse
tipo de situação subverte a máxima de que sob o capitalismo os atores econômicos agem
estritamente pela lógica da competição e dos interesses imediatos. Os dois depoimentos que
evocamos aqui são bastante eloquentes para ilustrar esse fato. A primeira fala é do representante
da cooperativa União, a segunda, de dirigente da Cooperativa Sul Ecológica:
[...] hoje só estamos na universidade e escolas estaduais pra prefeitura, também tem
um acerto dentro das cooperativas da região da gente não entrar em Pelotas, que daí
entra a Sul Ecológica, a CAFSul e a COOPAMB. [...]. Não, pra Sul [Ecológica] hoje
a gente faz algum, a gente tem uma parceria de beneficiamento de produtos pra eles e
já realizamos também a vender, de acontecer de falta algum produto pra eles e ali a
gente fazer essa parceria, ou faltar pra nós e a gente adquire deles, então tem essa
relação comercial, mais se faltar algum produto...
[...] nós tínhamos essa mediação, nós enquanto cooperativa nós não nos víamos como
concorrentes, e sim tentávamos complementar pra que a UFPel comprasse maior
número de produtos e o maior percentual de produtos da agricultura familiar, e até
mesmo porque a gente é bem realista no sentido de que uma cooperativa não consegue
atender a universidade, e no momento que a gente fazia esse consenso do que cada
um teria pra entregar, e quais os períodos, era mais, era maior a chance de não dar
problema. Ah, hoje a Cooperativa Sul Ecológica não tem alface essa semana, mas a
Cafsul tem, Coopamb tem, a Coopap tem. Então fazia todo esse trabalho e lá no final
da ponta a universidade recebia produto, e nós conseguíamos comercializar.
qualquer outro trator ia tá compactando a terra, e ia ser um gasto bem maior de 15-20
mil reais, foi o implemento que a gente comprou. Por enquanto, todo meu suor e do
meu companheiro, vai na construção da casa, então, com certeza essa renda que entrou
foi pra comprar algum material pra dentro da casa, a gente tá construindo a casa
[...] aí eu conheci a cooperativa Sul Ecológica e me associei nela pra comércio do mel.
Aí me apaixonei por essa cooperativa que veio me fazer adquirir essa terra pelo crédito
fundiário, vendo que era possível produzir e uma cooperativa comercializar, só que
terminei me envolvendo cada vez com mais intensidade na cooperativa, e isso
prejudicou um pouco, digamos em termo, a minha própria família por me envolver
demais na cooperativa Sul Ecológica... Mas a origem dessa propriedade foi devido à
cooperativa Sul Ecológica.
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Não obstante, o ciclo virtuoso foi interrompido em 2018, momento em que a UFPel
decide terceirizar a gestão dos quatro refeitórios articulados em torno ao projeto Restaurante-
Escola6. A pressão exercida pelo Tribunal de Contas da União fez com que a reitoria da UFPel
renunciasse ao compromisso de manter a Fundação de Apoio Universitário como gestora do
processo, assim como de seguir comprando os produtos das cooperativas da agricultura
familiar.
Tabela 3 – Volume de recursos de Chamadas Públicas do RE-UFPel entre os anos 2014 e 2017.
Chamada Pública Montante (R$)
001/2014 661.266,68
001/2015 342.010,18
001/2016 890.747,92
002/2016 748.439,08
001/2017 610.060,22
Total 3.252.524,08
Fonte: Sacco dos Anjos & Caldas (2020, p.119-120).
Algumas iniciativas foram tomadas no sentido de construir um novo edital que obrigasse
as duas empresas de catering vencedoras do processo licitatório a manterem um nível mínimo
de aquisições. Não obstante, tais medidas se mostraram praticamente inócuas. Alguns
depoimentos traduziram, de forma enfática, o desalento de nossos entrevistados sobre essa
mudança. O presidente da Cooperativa União se manifestou nos seguintes termos:
[...] foi uma grande perda pra nós enquanto região, pra nós enquanto cooperativas,
essa questão de terceirização do RE-UFPel, no nosso entendimento já tinha
comentado ali contigo, que a universidade deveria de ter adotado uma outra
metodologia, talvez mantendo as compras junto da universidade e terceirizando o
serviço final, a prestação do serviço em si, que eu acho que a gente deve de ainda
continuar no diálogo, num futuro pra que isso aconteça, mas também a gente vê riscos,
teve perdas, tanto não só com a universidade, se tinha a CONAB que era uma grande
parceira, que comprava muito do PAA aqui no RS, que hoje está restrito a 4 -5 projetos
no estado com um valor muito reduzidos
A queda na qualidade das refeições servidas foi sentida pela comunidade universitária.
Como bem frisaram nossos entrevistados, a lógica das empresas de catering não é gerar
empregos, promover a inclusão social ou comprar a produção do município ou da região, mas
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O projeto Restaurante-Escola não era apenas um dispositivo para fornecer refeições à comunidade universitária,
mas sobretudo um espaço de aprendizagem e formação para alunos de diferentes cursos e campos do
conhecimento.
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Cooperativismo e inclusão social: o caso dos mercados institucionais no Sul do Brasil
sim, gerar lucro. O resultado econômico almejado pelas empresas se dá via compra de insumos
de onde quer que sejam, desde que tenham o preço mais baixo possível. Essa, infelizmente, é
regra básica de órgãos de controle como o TCU, que não consegue ir além da esquizofrênica
armadilha do critério do preço mínimo, uma lógica que invariavelmente sacrifica a qualidade
do que se adquire em nome do preço mais acessível.
Entrementes, cabe registrar que no começo da última década, quando esse processo de
compras institucionais começava a se ampliar, reinava um mito no sentido de considerar que as
explorações familiares existentes na área de influência da UFPel não teriam capacidade de
prover os diversos refeitórios, considerando tratar-se de uma população diária estimada em 6
mil comensais.
Esse mito foi rompido, assim como qualquer suspeição sobre a capacidade das famílias
rurais de produzir com qualidade e de dar uma resposta efetiva aos requisitos constantes nas
Chamadas Públicas. O dirigente da Cafsul resumiu o sentimento de lideranças das cooperativas
acerca das virtudes dos mercados institucionais, bem como das preocupações sobre o futuro da
produção agroalimentar em nosso país:
Eu acho que isso é um programa que foi muito bem pensado, pra manter o agricultor
no campo, porque se nós não manter o agricultor no campo, existe um ditado ‘se a
colônia não planta a cidade não janta’ e é bem por aí, porque se não tivesse esse
programa pra ter uma segurança pro produtor vender, daí uns 10 anos nós vamos ter
grande dificuldade de comida pro povo porque não vai ter quem produza, porque se o
produtor não tiver um mercado certo, o produtor sabe produzir, mas ele não sai da
porteira pra fora pra vender.
A criação dos mercados institucionais foi responsável por sentar as bases para um
processo de organização das famílias rurais materializado na criação de pequenas cooperativas
que asseguravam um fornecimento regular de frutas, legumes, grãos e conservas utilizados na
elaboração de um número significativo de refeições pela Fundação da UFPel, então responsável
pela gestão dos refeitórios. Todavia, se o futuro é incerto em relação às compras institucionais,
o mesmo há que ser dito em relação às cooperativas que, nas atuais circunstâncias, veem-se
diante do esforço de encontrar alternativas para escoar a própria produção e garantir a
subsistência das famílias rurais cooperadas.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nos seus primórdios (séc. XVIII) o cooperativismo era pensado como alternativa
econômica às vicissitudes impostas pelo capitalismo industrial. O marco da primeira instituição
do gênero (1844) foi uma cooperativa de consumo criada por 28 tecelões ingleses (27 homens
e uma mulher) que, por seu intermédio, lograram assegurar a sobrevivência das próprias
famílias através de compras coletivas de gêneros de primeira necessidade.
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A crise econômica dos anos 1980 levou ao colapso muitas das cooperativas cuja
expansão estava totalmente atrelada aos generosos subsídios fiscais e creditícios concedidos
pelo Estado. O caso da Centralsul mostra como uma instituição do gênero foi responsável por
assumir a produção de adubos químicos e inclusive de agrotóxicos empregados pelos
produtores que operavam no contexto do chamado binômio trigo-soja.
Destarte, o contexto sobre o qual nos debruçamos nesse artigo dista frontalmente dessa
realidade. Nosso olhar se voltou para o caso de pequenas cooperativas cujo surgimento está
totalmente atrelado à criação dos mercados institucionais. É através destes mercados que
operam as compras realizadas por instituições (prefeituras, Exército, Marinha, universidades,
etc.) que regularmente fornecem refeições aos seus públicos.
O êxito alcançado ao longo da década não foi capaz de fazer frente aos entraves
burocráticos, às armadilhas impostas pelos órgãos de controle e à falta de compromisso da
UFPel no sentido de preservar o que havia sido conquistado. A pressão exercida pelo Tribunal
de Contas da União implodiu um modelo eficiente de aquisição de alimentos e interrompeu um
virtuoso ciclo de inclusão social, até então visto como marco de referência e fonte inspiradora
para o surgimento de experiências similares em outros pontos do país. A terceirização dos
refeitórios atende aos rigores da lei, mas nem de longe pode ser vista como próxima da
qualidade alcançada pelo regime que lhe antecedeu.
REFERÊNCIAS
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de alta inflação. Economia e Sociedade, Campinas, v. 21, n. 2, p. 275-300, 2012.
EINLOFT, C. Produção animal: os (des) caminhos de uma década. In: A economia gaúcha
nos anos 80. In: ALMEIDA, P. F. C. (Org). A economia gaúcha e os anos 80: uma trajetória
regional no contexto da crise brasileira. Porto Alegre: FEE, 1990, p.241-310.
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DRd – Desenvolvimento Regional em debate (ISSNe 2237-9029)
v. 12, p. 91-109, 2022.
Danielle Farias da Silveira; Flávio Sacco dos Anjos
TAMBARÁ, E. RS: Modernização & crise na agricultura. Porto Alegre, Mercado Aberto,
1983.
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