estilhaços da cidade
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ESTILHAÇOS DA CIDADE:
UMA LEITURA DE ELES ERAM MUITOS CAVALOS, DE LUIZ
RUFFATO
FEIRA DE SANTANA
2017
1
ESTILHAÇOS DA CIDADE:
UMA LEITURA DE ELES ERAM MUITOS CAVALOS, DE LUIZ
RUFFATO
Feira de Santana
2017
2
CDU: 869.0(81)-31.09
3
ESTILHAÇOS DA CIDADE:
UMA LEITURA DE ELES ERAM MUITOS CAVALOS, DE LUIZ
RUFFATO
_____________________________________________________
Professor Dr. Aleilton Santana da Fonseca
Orientador – UEFS
_____________________________________________________
Professor Dr. Claudio Cledson Novaes
UEFS
_____________________________________________________
Professora Dra. Sayonara Amaral de Oliveira
UNEB
4
AGRADECIMENTOS
Agradeço a Deus pela saúde que me concedeu para chegar até aqui.
Aos meus pais, D. Helenita e Sr. Moisés, por terem me dado suporte durante
toda a minha vida para que eu sempre pudesse estudar e aos meus irmãos Isadora
e Matheus, pois torcemos muito uns pelos outros.
RESUMO
Eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato, obra publicada pela primeira vez no ano
de 2001 pela editora Boitempo, é considerada uma das narrativas mais instigantes
da literatura brasileira contemporânea. A partir dessa obra, o seu autor recebeu
diversos prêmios e emergiu como um dos grandes nomes da ficção urbana, sendo
um dos mais referidos, traduzidos e estudados na última década. Fragmentário e
estilhaçado, o romance é composto por inúmeras possibilidades de linguagem,
tornando-se uma obra híbrida e que instiga curiosidade e análise. O presente estudo
tem o objetivo de formular questões e respostas que expliquem de que forma a
complexidade urbana da modernidade é representada no referido romance. Para
isso, faz-se uma abordagem que se divide em partes, separando os núcleos
representativos nas formas dos personagens e enredos que aparecem nos 69
capítulos curtos, dispostos como estilhaços de um mosaico de situações.
Inicialmente, se fazem considerações acerca da literatura contemporânea e sobre o
escritor Luiz Ruffato. Em seguida, serão tecidas reflexões a respeito das situações e
impasses vividos pela população urbana, com suas perspectivas e seus
desdobramentos dramáticos. Adiante, a parcela minoritária entra para o centro das
discussões, dando-se enfoque para as personagens femininas e, a seguir, para as
figuras do negro e do indígena. Por fim, comentam-se várias situações que são
utilizadas pelo autor como artifícios para compor a obra e, além disso, discute-se a
ideia defendida pelo próprio Luiz Ruffato como sendo seu livro uma instalação
literária. Para o desenvolvimento do estudo, utilizam-se as contribuições de teóricos
como Karl Erik Schollhammer, Antonio Candido, Mikhail Bakhtin, Renato Cordeiro
Gomes, Néstor García Canclini, Zygmunt Bauman, Antoine Compagnon, Alfredo
Bosi, Étienne Souriau, pressupostos que são fundamentais para o estudo do
romance.
ABSTRACT
There were many horses, by Luiz Ruffato, a work published for the first time in 2001
by the publisher Boitempo, is considered one of the most instigating narratives of
contemporary brazilian literature. From this work, its author has received several
awards and emerged as one of the great names of urban fiction, being one of the
most referenced, translated and studied in the last decade. Fragmentary and
shattered, the novel is composed of innumerable possibilities of language, becoming
a hybrid work and that instigates curiosity and analysis. The present study objective
formulate questions and answers that explain how the urban complexity of modernity
is represented in the novel. For this, an approach is divided into parts, separating the
representative nucleus into the shapes of the characters and plots that appear in the
short 69 chapters, arranged as shards of a mosaic of situations. Initially
considerations are made about contemporary literature and about the writer Luiz
Ruffato. Then, reflections will be woven on the situations and impasses experienced
by the urban population, with their perspectives and their dramatic unfolding. Later,
the minority share enters the center of the discussions, focusing on the female
characters and then on the black and indigenous figures. Finally, several situations
are mentioned that are used by the author as artifices to compose the work and, in
addition, the idea defended by Luiz Ruffato himself as his book a literary installation.
For this the contributions of theorists Karl Erik Schollhammer, Antônio Cândido,
Mikhail Bakhtin, Renato Cordeiro Gomes, Néstor García Canclini, Zygmunt Bauman,
Antoine Compagnon, Alfredo Bosi, Étienne Souriau will be fundamental for the
development of this research.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 8
2 A CIDADE É UM LABIRINTO................................................................................. 36
REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 92
8
INTRODUÇÃO
Este capítulo discorre sobre Eles eram muitos cavalos e apresenta o perfil
literário de Luiz Ruffato. O autor e a obra enquadram-se na vertente recente da
ficção brasileira, apresentando as linhas gerais do que configura a literatura
contemporânea. Logo após, discute o processo de criação do autor. Em seguida,
aborda a relação formato/conteúdo, uma das características de destaque do livro,
ressaltando que tal criação não possui uma estrutura convencional e levando em
consideração o compromisso social que o escritor afirma possuir como projeto
literário. Ruffato se utiliza de vários recursos de linguagem para conferir ao trabalho
um formato diferencial que consiga captar a cena da cidade contemporânea
permeada de várias realidades distintas e até contrastantes.
A criação que dispõe de um formato estilhaçado narra a cidade que embora
seja apenas uma, não tem como característica a unidade, pelo contrário, o próprio
progresso da cidade a repartiu provocando vários problemas sociais que atingem
uma parcela significativa da população e para os quais não se encontra solução. É
sobre essa complexidade instaurada na vida urbana que o autor se compromete a
exprimir e este capítulo discorre como foi feita a preparação para que Eles eram
muitos cavalos fosse elaborado. Para que isso seja possível, serão utilizados os
teóricos mencionados a seguir: Agambem, Bakhtin, Carvalho, Candido, Ferrara,
Resende, Schollhammer.
das ruas, cumprem sua jornada de vida, assumindo ou buscando seu lugar na
imensa engrenagem.
A cidade torna bastante visível as contradições de sua estrutura, na qual, como
se sabe, avulta a disparidade existente entre as várias realidades econômicas da
população, situação histórica construída ao longo de seu surgimento e formação. É
interessante notar a teia de circunstâncias que se entrelaçaram nas últimas décadas
e formaram novas configurações responsáveis por transformações na paisagem da
cidade, nos hábitos, nos desejos, nos objetivos dos indivíduos, nas ações que
envolvem a ética e o senso de alteridade, nas diferentes camadas socioeconômicas
da população. Hábitos consumistas, imigrações, ofertas e demandas de inumeráveis
serviços, os quais foram gerados por múltiplos estilos de vida que, por sua vez,
recebem influências de diversas regiões do planeta e passam a compor um novo
cenário cujos personagens tentam se adaptar rapidamente construindo novas
identidades a cada geração.
Nesse contexto da metrópole brasileira, a partir da época pós-ditadura,
surgiram novas manifestações de interesse pelos estudos urbanos ocupando áreas
diversas como a antropologia, a sociologia, o urbanismo e também a literatura que,
naquilo que lhe diz respeito, ocupa-se em representar a cidade labiríntica e
complexa da contemporaneidade. Muitos escritores contemporâneos localizam
nessas cidades os cenários de suas narrativas. Entre eles destacamos Luiz Ruffato,
Férrez, Paulo Lins, Antônio Torres, Marcelino Freire, Carlos Ribeiro, Aleilton
Fonseca, dentre outros.
De fato, a representação da vida urbana moderna na literatura vem sendo
produzida desde a época em que as cidades despontaram como grandes
aglomerados humanos em meados do século XIX, quando surgiram as
consequências negativas de seu desenvolvimento. Assim, é inevitável mencionar o
poeta francês Charles Baudelaire (1821-1867), que expõe o seu estado de
inadequação na cidade moderna e compôs, entre outros títulos, Le spleen de Paris
(Pequenos poemas em prosa). Seus poemas sobre as ruas de Paris expressam sua
visão sensível e crítica, ao testemunhar e descrever o processo de urbanização e
modernização da cidade luz. Na mesma época, o americano Edgar Allan Poe (1809-
1849) percebeu nas ruas de Londres o surgimento do novo personagem da cidade,
“o homem na multidão”, ser social anônimo que se esgueira pelas ruas, sem controle
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Histórias de remorsos e rancores e após dois anos (os sobreviventes) (2000), este
último sendo premiado pelo Prêmio Casa de Las Américas.
Além da produção literária ainda trabalha como jornalista no El País Brasil,
sendo colunista semanal, onde declara suas opiniões e seu posicionamento político-
social. Ademais, mantém o blogue Lendo os clássicos onde desenvolve resenhas de
livros consagrados da literatura universal.
Ter conhecimento sobre a origem do autor abre um ponto de discussão que se
volta para o seu posicionamento social em relação ao seu trabalho, assim como a
função de sua obra na sociedade. Em suma, a origem do autor, em vários casos,
determina o perfil de sua trajetória. Vale lembrar que Ruffato é um dos muitos
brasileiros que também seguiu o caminho do interior do Brasil, no caso dele Minas
Gerais mais precisamente em Cataguases, para uma cidade maior (Juiz de Fora) e
após isso, para a grande metrópole, São Paulo. É interessante ressaltar que ele é
descendente de italianos, grupo de imigrantes que chegou para se ocupar em
trabalhos braçais nas terras brasileiras. E essa trajetória encontramos no livro que
iremos estudar, assim como em toda a obra dele. Migrantes que entram e que saem
de São Paulo, vindo principalmente das cidades do interior ou do exterior do país.
Com base no que se sabe sobre o escritor mineiro é possível afirmar que o fato
de ele ter se tornado um escritor, além do talento, foi algo muito bem planejado.
Ruffato, como já foi mencionado, sempre foi um leitor voraz, estudioso de tudo
aquilo que pudesse o formar como cidadão. Houve um projeto traçado por ele para
que sua carreira fosse alavancada, para tanto, o próprio já declarou que estudou
muito sobre literatura, teoria literária e afins. Assim, ele próprio declara na entrevista
concedida a Heloísa Buarque de Hollanda (2006):
Dessa forma, inferimos que ele traçou o “plano/projeto Ruffato” como intitulou
Carmen Villarino Pardo (2007, p. 164) em seu ensaio sobre o processo de
profissionalização de Luiz Ruffato, no qual ela diz que as escolhas de “temas,
estilos, gêneros, tipografia...” são feitas visando a tentativa da profissionalização e
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Foi justamente isso que Ruffato fez. Encarou a literatura como profissão e
adotou estratégias que o ajudaram a alavancar, não abrindo mão de parcerias junto
a escritores de caminhada mais longa e já com prestígio no mercado e/ou entre os
leitores. Sua opção foi se empenhar na construção de uma literatura de inserção
social, problematização e questionamento das estruturas urbanas, contribuindo para
a confirmação de uma vertente das mais contundentes da ficção contemporânea.
A ficção literária contemporânea brasileira possui uma gama de temas,
abordagens e especificidades, modos de produção e apresentação diferenciada ao
público leitor e crítica literária. De maneira didática, pode-se dizer que teve seu início
no final da década de 1960, quando o Brasil ainda estava imerso nas efervescências
sociopolíticas provocadas pelas movimentações ocorridas a partir do golpe de 1964.
Os temas das produções que vinham sendo criadas nos anos subsequentes e
década seguinte se voltaram para questões de claro posicionamento político.
Portanto, essa geração do final dos anos de 1960 e toda a década de 1970 tem
como principal linha o engajamento político, enfrentando toda a sorte de
cerceamento e censura do estado de exceção.
A partir da abertura política, nos anos 80, com a sociedade voltando a poder
usufruir da liberdade e certa democracia que aos poucos voltava a fazer parte do
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Agamben, eles não estão presos apenas ao seu próprio tempo e por esse motivo
conseguem compreendê-lo melhor. Considerando essa lógica, Ruffato se enquadra
no que compreendemos como contemporâneo, uma vez que assimilou a escuridão
do seu tempo, ou seja, a escuridão notada por quem tem a sensibilidade de
apreendê-la apesar de toda a clareza e luminosidade do presente no qual ele está
inserido (entenda-se essa metáfora como aquilo que não precisa ser tão explicado
para o entendimento do tempo presente, aquilo que está assumido e que todos
veem).
Oposto a isso está a escuridão que se demonstra precisamente naquilo que
não está exposto, nem explícito mas que os sensíveis poetas conseguem ver. Uma
vez que, como ratifica Agambem (2009, p. 64): “contemporâneo é aquele que recebe
em pleno rosto o facho de trevas que provém do seu tempo”. E é justamente toda
essa escuridão que notamos no livro em estudo nesta pesquisa, uma obra que, à
primeira vista, pode ser considerada como pessimista porque expõe de forma muito
pontual a escuridão da situação urbana contemporânea e toma isso como uma
questão de compromisso assumido pelo autor.
Levando em consideração esse último ponto sobre o compromisso do
romancista perante o seu tempo, Ruffato afirma o seguinte, ainda na mesma
entrevista concedida a Heloísa Buarque de Hollanda (2006):
Não quero esquecer que nasci num país chamado Brasil, que
escrevo português e que vivo numa sociedade extremamente
injusta. Tenho um compromisso com a minha época [...]. Isso
pode parecer um discurso ultrapassado, piegas, mas não tenho
como não assumir isso. Evidentemente sei que estou andando
contra a corrente.
Com isso, Ruffato deixa claro o seu posicionamento como escritor que vive
num país cuja necessidade de se fazer ouvido é urgente e ele como intelectual
trabalha na intenção de que sua escrita suscite reflexões sobre do presente corredio,
angustiante e permeado de dramáticas contradições.
Logo, essa literatura tem o intuito de deixar de lado os padrões consumados
para tentar experimentar por meio de outras linguagens e outras formas de se
fazerem entendidos o tempo presente, as novas relações interpessoais, os novos
interesses, os tempos que hoje são líquidos, conforme o termo que Zygmunt
Bauman utiliza, os dramas vividos, as vozes que, se antes eram silenciadas, hoje se
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projetam para construir seus próprios protagonistas. Luiz Ruffato reflete estes
aspectos que explanamos acima com particularidades que auxiliam a compreensão
acerca do processo de criação de Eles eram muitos cavalos. Ruffato que teve seu
primeiro livro de destaque na virada do milênio engloba em si a presentificação, o
compromisso social na escrita, a literatura urbana, a fragmentação, a escrita veloz, a
narrativa curta. De fato, estas características textuais e o seu projeto de escrita
social o definem como destacado representante da literatura contemporânea.
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Voltemos nossa atenção para o processo de criação do livro. Notamos que não
se trata de um estilo consagrado de narrativa estruturada num só enredo onde
personagens se desenvolvem no decorrer da trama, numa história dividida entre
início, clímax e resolução. Como narrar a Pauliceia numa história arranjada à
maneira tradicional utilizando-se de apenas de um enredo, um cenário, uma
verdade, um tempo, um perfil, um ponto de vista? A criatividade da arte literária de
alguma forma poderia tornar isso possível, mas o autor preferiu dispor seu romance
em cenas ou, como diz Canclini (1999, p. 156), referindo-se à cidade
contemporânea, em uma “montagem efervescente de imagens descontínuas”,
deixando evidente a dinâmica dessa metrópole que possui a configuração plural,
movido por um contínuo processo de fragmentação espacial e social. Se o autor
compusesse seu texto como uma ficção habitual, poderia talvez representar alguns
perfis da cidade e certamente traria à tona a discussão da sua diversidade. Com
certeza o impacto seria menor.
Contudo, Ruffato argumenta que seu desejo não era escrever um romance nos
moldes costumeiros e que gostaria de narrar o tempo fugaz, descentrado, sem foco,
sem um delineamento preciso que vivemos hoje, dispondo a linguagem ao seu uso
prático, elaborando com isso um estilo próprio de escrita. Dessa forma o próprio
autor justifica o modo de elaboração de seu trabalho. Ruffato (2005) destaca que:
qualquer outra o autor conta, desenha, afigura, imprime o seu ponto de vista
individual não tendo compromisso em retratar a realidade externa, mas a utilizando
como inspiração.
Em se tratando da vida real e da escrita literária, ao ligá-los Ruffato comenta
sobre a dificuldade de exercer o ato narrativo que o poeta enfrenta nos dias atuais. A
opinião do autor é que não se pode narrar a cidade, o tempo presente ou qualquer
que seja o tema da narrativa de igual forma como se narrava em outros tempos,
afinal o tempo de hoje não se assemelha ao tempo de um século atrás. O número
de indivíduos na cidade aumentou, a tecnologia avançou, a globalização integrou, a
diversidade vem sendo incorporada e exposta na sociedade, ademais os desejos
humanos também foram se transformando concomitantemente.
Num discurso proferido na França em 2010, durante um evento sobre o
romance, Ruffato explana seus pontos de vista acerca de Eles eram muitos cavalos
e comenta o seguinte: “continuar pensando o romance como uma ação transcorrida
dentro de um espaço e num determinado tempo e que pretende ser o relato
autêntico de experiências individuais verdadeiras, passa a ser, no mínimo,
anacrônico”.
Isto posto, Luiz Ruffato se compreende como um escritor harmonizado com o
que conhecemos enquanto Novo Realismo, tendência literária que, de acordo com
Schollhammer (2008, p. 58) afirma que a realidade “não se apoia na verossimilhança
da descrição representativa, mas no efeito estético da leitura, que visa a envolver”.
Ou seja, o autor mergulha na realidade e quer contá-la, mas opta por uma
orientação de escrita que não se pretende presa ao real, o que é diferente da escola
literária Realismo que descreve com minúcia, a ponto de podermos visualizar a cena
narrada, como um quadro. Em Eles eram muitos cavalos, apesar de nos
identificarmos com o que ali está sendo contado e termos conhecimento de que
aqueles fatos são suscetíveis de ocorrer, o autor não desnuda a totalidade da cena.
Há muita suposição, uso de metáforas, drama exacerbado, supressões,
intensificação da representação das personagens. Há uma performance que dá
forma às personagens e histórias e que permite ser uma espécie de realidade
plenamente ficcional.
Dessa forma, o texto de Ruffato representa as muitas possibilidades de vida as
quais se apresentam em tempos, espaços e enredos absolutamente diferentes entre
si. O tempo para quem sobrevoa a cidade num helicóptero não é o mesmo para
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quem depende do metrô e ônibus lotados todos os dias para chegar ao trabalho, em
casa, na escola, na universidade. O espaço de quem mora nas comunidades
construídas em lugares pouco planos, insalubres, em casas erguidas com materiais
frágeis e inflamáveis não é o mesmo de quem mora num bairro nobre em
condomínios luxuosos cercados por grades, câmeras, seguranças ou mesmo em
bairros mais modestos e populares. Os enredos de quem chega à capital, mas volta
para a sua terra natal sem ter logrado êxito ou de quem não volta, mas passa a ser
morador de rua vivendo de forma sub-humana e fazendo parte da estatística de todo
tipo de violência e até mesmo integrando a estatística dos mortos pelo frio paulista
nos meses de inverno; ou ainda os que também não voltam e vivem modestamente
a sua vida de trabalho diário, honesto entretanto com pouca rentabilidade, são
enredos diferentes dos que chegam à cidade e ascendem economicamente, mesmo
que se utilizem de meios ilícitos para isso.
Os personagens foram construídos pelo autor de forma a representar uma
população comum, são vidas traçadas de maneira a surtir uma identificação com o
leitor. Por isso, alguns personagens de Eles eram muitos cavalos não possuem
nome, outros o têm, mas de nenhum personagem é feita uma análise profunda a
ponto de levar o leitor a conhecê-lo profundamente, ou fazer uma análise de seu
modo de ser e intenções. São, em geral, figuras anônimas, trabalhadoras, simples,
humanamente defeituosas, sonhadoras, corruptas, saudosas, sofredoras,
magoadas, esperançosas, ambiciosas, que foram escolhidas para representar uma
verdade muito parecida com a de muitas pessoas que vivem de forma semelhante
na metrópole. São os anônimos que Ruffato trouxe à tona assim como os cavalos de
Cecília Meirelles. A forte presença do anonimato é expressa de modo que muitos
deles nem sequer são apresentados pelos seus nomes, mas são identificados por
características físicas ou de personalidade ou ainda caracterizados pelas ações que
praticam, comportamentos, situações. Vidas que se cruzam entre histórias sofridas,
pesadas, dramáticas, algumas poucas felizes, satisfeitas, outras lutando para não
terem suas expectativas vencidas, mas todas as circunstâncias envolvem os
personagens sendo eles donos ou reféns de seus caminhos, apesar de que muitos
gostariam que um direcionamento diferente transformasse o rumo de suas vidas.
A partir disso, vejamos a afirmação da estudiosa Dalcastagnè (2005, p. 14)
quando assevera que “reconhecer-se em uma representação artística, ou
reconhecer o outro dentro dela, faz parte de um processo de legitimação de
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podemos afirmar que esses textos de composição do livro e a sua estrutura são
construções que lançam uma nova luz sobre questões de sintaxe e de estilística.
Finalmente, a partir de como vemos ser a estrutura do livro, concordamos com
Gomes (1994, p. 29), quando ele poeticamente expressa: "Ler/escrever a cidade é
tentar captá-la nessas dobras; é inventar a metáfora que se inscreve, é construir a
sua possível leitura. Cidade: linguagem dobrada, em busca de ordenação”.
Ao vislumbrar a cidade narrada à maneira de Luiz Ruffato é como se
estivéssemos assistindo a uma ação encenada num palco de teatro ou pela
televisão, num filme ou novela, na qual as imagens são interrompidas e passadas
para outras situações. Tudo que há em Eles eram muitos cavalos acontece
simultaneamente, em apenas um único dia, informação já mencionada aqui e em
diferentes pontos da cidade, com personagens que não se cruzam e que
aparentemente não possuem relação entre si. É possível enxergar essas cenas
como as de um vídeo, onde nele, pessoas comuns de uma cidade grande, agentes e
vítimas de um contexto social, são expostos, servindo como uma vitrine de algo
maior e de amostra para o que há de problemático na cidade.
Levando em conta as qualidades do texto, fica patente a necessidade de se
estudar sua escrita de forma mais ampla. Até aqui, a cada momento demos
enfoques diferentes para o romance. No entanto, queremos vincular as partes, de
maneira que fique explícita a pretensão bastante precisa por parte do autor que, no
processo da escrita, mesclou vários estilos, gêneros, expressões e recursos de
linguagem a fim de funcionarem como elementos capazes de transcender o sentido
direto que as palavras e os recursos gráficos próprios da linguagem escrita
possuem.
Aliás, falar de arte literária tendo seus dois membros primazes, conteúdo e
estilo, desintegrados é algo que já está ultrapassado. Até porque, há no conteúdo
uma gama de outros itens que não devem ser pensados como se fossem uma única
matéria. Segundo Antonio Candido (2010), antigamente, críticos literários prezavam
ora pelo estilo de escrita, forma, estrutura, vocabulário, rebuscamento linguístico, ora
pelo que continha o texto, sua temática, etc., e apreciavam ambos somente pela
perspectiva literária. Apesar disso, sabe-se que atualmente que para que haja um
entendimento integral há de se ter a sensibilidade de perceber o elo, a dependência
mútua entre as diversas partes que compõem o trabalho literário. Os sentidos são
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2 A CIDADE É UM LABIRINTO
Assim sendo, como comenta Ferrara (1988, p. 4), “a interação entre contexto e
uso urbanos transforma a cidade no palco de um espetáculo que se renova
continuamente”. Ainda que um espetáculo desagradável diante de tantas
ocorrências ruins as quais nos deparamos de maneira recorrente. Dessa forma, é
justificável o quanto a cidade serviu como temática para incontáveis produções
literárias desde a década de 1970.
Logo, pensando em todo o complexo estado atual do nosso tempo, sobretudo
na conjuntura urbana, Ruffato tenta ajuntar os estilhaços de uma cidade que
explodiu em seu próprio progresso. Assim como liricamente comunga Gomes (1994,
p. 64): "as asas do desejo de glória que, na falta de medida, conduziu a cidade à
catástrofe". Nesse sentido, o escritor nos coloca no centro da urbe e descreve,
explorando bastante os mecanismos da linguagem literária, suas percepções
relativas ao cotidiano urbano.
Há outro pensamento nesse sentido, tecido dessa vez por Gomes, o qual
explica essas afirmações acima. Ele diz que: “como defesa contra as complexidades
da vida urbana, os homens tentam reagir de modo racionalizado [...]” (1994, p. 69).
As pessoas agem de maneira programada mesmo sendo de forma inconsciente,
comportando-se como estranhos e não se relacionando entre si. Gomes continua
dizendo: “a metrópole é examinada como lugar de coletividades indefinidas, que
pode gerar total indiferença de cada indivíduo para com o outro, na vida cotidiana,
como traço de autopreservação” [grifo do autor] (p. 70).
Ou seja, o que parece é que há uma opção pelo isolamento, pela distância,
pela indiferença com o outro, provavelmente o raciocínio que existe é que, no
contexto da vida moderna, é melhor se prevenir em relação a quem não se conhece.
A distância entre a multidão urbana é sentida também pelos que se isolam em
seus ambientes de trabalho e enxergam no decorrer do cotidiano apenas uma
pequena fração do que é São Paulo. O nosso flâneur contemporâneo adentra o
escritório e observa o rapaz tamborilar seus dedos magros no teclado. Vemos em
ele), no capítulo vinte e um, um nordestino do Piauí – cuja sigla ele considera como
um borrão no RG –, que trabalha com tabelas e gráficos e não ganha muito, pelo
contrário, almoça sanduíche e, enquanto come, lembra-se dos compromissos que
possui como o curso de inglês e o aparelho dos dentes, além dos presentinhos
prometidos à mãe e à irmã. São responsabilidades que não o permite realizar o
desejo de demitir-se desse trabalho que nem ao menos possibilita que ele veja o
que acontece em São Paulo, na São Paulo de lá de fora, longe desse ambiente frio
e exato dos computadores.
No texto dessa cena estão dispostas perguntas soltas que parecem passar
pelos pensamentos do rapaz ou podem estar sendo interpretadas por alguém que
conhece essa realidade e sabe que a pessoa não nota nem ao menos se o dia está
feio ou bonito, ou se isso é uma questão que já não tem mais importância diante do
estilo de vida que ele leva: “¿um motoboy se esparramou na faixa-de-pedestres?”,
“¿um executivo espancou um menino-de-rua com laptop?”, “¿um cobrador impediu
um assalto?”, “¿o mundo, o mundo acabou?” (RUFFATO, 2013, p.43). Ele trabalha
metodicamente, ganha mal e não pode se demitir do emprego numa cidade onde é
tão difícil arrumar um. Vive exatamente igual a milhares de outros. Não sabemos se
tem formação, mas supomos que almeje algo melhor, já que faz curso de inglês.
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Após observar essa cena que causa tanto desconforto, o flâneur a abandona
para adentrar em outra, dessa vez no estádio Pacaembu entre a multidão que ocupa
a arquibancada no jogo de futebol entre Corinthians e Rosário Central pela
Libertadores da América, disputa que realmente ocorreu nessa data e que Ruffato
trouxe para as páginas do romance. O autor intitulou esse fragmento como 56. Slow
motion. Vamos observar que, apesar de no fragmento anterior a vida de ambas as
partes esteve e está em jogo, esse vem para corroborar sobre o recorrente ciclo de
violência que foi comentado antes, ciclo que possui configurações diferentes e níveis
de violências dos mais variados graus.
Ruffato escreve a cena para ser lida a partir de duas perspectivas, duas visões
diferentes, as quais imaginamos em slow motion (câmera lenta) possibilitando um
entendimento mais amplo às mesmas: No primeiro trecho da cena, um narrador que
está apenas observando, descreve o arremesso de uma lata semivazia que voa
acima de incontáveis cabeças e atinge a de Marlon, o dono de uma borracharia que
havia sido assaltada dias antes. No segundo trecho, o narrador onisciente vê que
Pecê acompanha o arremesso da lata, a qual sobrevoa próximo a ele e cai na
cabeça de um sujeito (Marlon) que, por sua vez, vira a cabeça imediatamente para
ver quem foi o culpado, mirando justamente em Pecê que não foi o autor da ação.
Como Pecê percebe o olhar de Marlon, se retrai automaticamente, mas ao vê-lo,
Marlon reconhece nele o autor do assalto à sua borracharia e se junta com seus
companheiros para, ao final do jogo, torturá-lo em algum lugar mais distante.
Mas o que nos interessa mesmo nessa história é ver que ciclo destrutivo está
girando mais uma vez, o que nos faz pensar que se tornou algo recorrente entre
muitas pessoas não terem uma atitude diferente diante de algum mal que lhe
fizeram. Sentem-se no direito de que o mal continue, fazendo com que as relações
entre as pessoas de uma sociedade tornem-se perigosas, afinal, num ciclo que
nunca deixa de girar qualquer pessoa pode ser atingida. A parcela da população que
nasce e cresce num ambiente hostil, onde o crime se mostra como única alternativa,
já se sente injustiçada por estar à margem da sociedade que possui condições de
ter uma vida diferente da realidade precária a que ela está habituada. Muitos fazem
uso da violência afirmando não possuírem as mesmas oportunidades que as outras
camadas da sociedades, que por sua vez, também se sentem injustiçados pelo mal
que os primeiros fazem e optam por fazer justiça quando encontram oportunidade.
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espalhados por toda a cidade absorvem em suas paredes a solidão das ruas, a
solidão que aparentemente faz parte apenas da vida de pessoas que não têm afetos
nem família ou que moram nas calçadas, mas que na verdade está muito presente
nas casas, no seio familiar, onde supõe-se que há proteção contra o gelo, a
indiferença, a falta de empatia, frequente nos relacionamentos interpessoais da
contemporaneidade. É preciso todos os dias refletir quanto a prática individual
daqueles sentimentos e ações que estão faltando no cotidiano da cidade como um
todo.
Abandonada também está Aquela mulher, do capítulo trinta e quatro que “se
arrasta espantalha por ruavenidas do morumbi” (RUFFATO, 2013, p. 62) após sua
filha ter desaparecido sem explicação. Um drama muito bem representado o qual
mostra uma mulher que passa a estar sozinha no mundo, se arrastando pelas ruas
entregue a um desespero que beira a loucura, atrapalhada, em pânico constante,
“febril irritada chorosa perguntas variantes insensas” [sic] (RUFFATO, 2013 p. 62).
Quantas vezes por dia isso acontece principalmente nas metrópoles? Sobretudo
crianças e jovens que desaparecem, muitas vezes sendo vítimas de estupro seguido
de morte ou qualquer outro tipo violência brutal em que não se chega a nenhuma
conclusão. Assistimos nos telejornais diariamente crimes cometidos inclusive por
policiais que ceifam vidas, sobretudo, quando se trata da população pobre. Tira-se
assim o sentido da vida dos familiares que ficam sem entender o que ocorreu
gerando uma angústia eterna devido ao suspense causado. Por se tratar de pessoas
da classe baixa como no caso da personagem aqui representada, cuja moradia é um
barraco, é comum que a polícia não empregue esforços para investigar por falta de
interesse e até mesmo por se tratarem de crimes recorrentes. Tanto que o narrador
nos conta que ela se humilhou em delegacias não alcançando retorno por seus
esforços para encontrar a filha.
Diante dessas histórias comentadas acima o flâneur aproveita o silêncio da
madrugada representada pelas páginas 127 e 128, duas páginas em preto, e
caminha exausto refletindo a respeito de tudo o que viveu durante o dia. Quando
pensa que nada mais irá ocorrer, ouve gemidos, contudo, não consegue identificar
de onde vêm nem do que se trata. Para entender, cheguemos à última página do
livro e leiamos o último fragmento, não mais numerado, o qual nos mostra o diálogo
entre um casal. Esse diálogo torna-se um reflexão dentro do contexto que estamos
comentando aqui. Um casal cujo paz noturna é interrompida ao escutarem gemidos
53
de alguém que parece estar próximo à porta de casa, talvez precisando de ajuda,
talvez ferido, talvez procurando refúgio ou se escondendo de algum malfeitor. Mas
qual a atitude deles? Vamos acompanhar um trecho do diálogo, Ruffato (2013):
“[...]
– Parou...
– O quê?
– Parece que parou...
– O quê?
– A gemeção...
(Pausa)
– É... Parou mesmo... Vamos lá agora?
– Não!
– Por quê?
– Porque... porque ainda pode ter alguém lá... E aí... Melhor
dormir... Vai... vira pro canto... vira pro canto e dorme...
Amanhã... amanhã a gente vê... Amanhã a gente fica
sabendo... Dorme... vai...}” (p. 129-130).
É claro que numa cidade permeada por estranhos, abrir sua casa durante a
madrugada para ver quem está à porta e o que pode estar acontecendo é um risco
que se assume. Quais seriam os devidos cuidados a serem tomados antes de abrir
a porta para que não fosse mais uma das ciladas da cidade grande? Nesse caso,
cada situação demandaria um tipo de atitude por parte do morador. Virar as costas e
dormir para “amanhã ficar sabendo”, como a opção escolhida pelo casal, ou abrir a
porta e correr o risco de sofrer mais um atentado desses que ocorrem nesse ciclo
destrutivo que vimos no decorrer do livro e vemos todos os dias pelas ruas das
nossas cidades e noticiários da televisão? Ou então assumir o risco e conseguir
ajudar um sujeito que talvez poderia estar esperando ser salvo por alguém e esse
alguém era você.
Enfim, nesse complexo mundo urbano, cada situação pede uma solução, uma
ação diferente dependendo de cada contexto. Não é muito fácil definir o que cada
um deve fazer, mesmo que na teoria seja assim que funcione. O importante é ter em
mente que deve haver ao menos um desprendimento por parte de cada pessoa para
que, em momento oportuno, atitudes simples façam diferença.
Apesar de todas essas circunstâncias relativas que utilizamos para as
interpretações cabíveis a esse trecho, esse capítulo deveria mesmo estar na última
página. Ruffato situou esse diálogo por último de modo que um efeito reflexivo
pudesse surgir acerca da ação de cada pessoa diante de todas as micro-histórias
54
sair do caos da capital e ir para uma cidade menor e optar pelo estilo de vida que
elegeu para si. É interessante observarmos que muitas mulheres em outros
fragmentos nem sequer têm suas vidas explicadas, afinal, são vidas tão comuns,
com trabalhos desvalorizados, exaustivos e com remuneração baixa, realidade da
maioria da população trabalhadora feminina dos grandes centros, que torna-se algo
comum demais para ser especificado como foi a personagem naturalista descrita
acima. Como ela é um caso à parte, alguém que é filha de um empresário bem
sucedido, é artista e sua vida não se iguala à vida da massa que enche a cidade, a
personagem tornou-se conhecida pelos leitores ainda que a sua presença não tenha
trazido mudanças no desenrolar da pequena narrativa.
No capítulo que tem como título 6. Mãe acompanhamos junto à protagonista
uma viagem que foi feita por milhares de brasileiros durante décadas – mote que
Ruffato traz à tona em vários momentos ao longo do livro –, mas dessa vez é
apenas uma visita de uma mãe ao filho que saiu do povoado Brejo Velho, localizado
no município de Paranatama, interior de Pernambuco. Hoje ele já está estabilizado
em São Paulo, casado e com filhos, tendo voltado à sua terra natal desde que saiu
de lá, apenas duas vezes.
Somente uma mãe para viver o sacrifício de viajar de ônibus na linha
Garanhuns – São Paulo, sem dormir por 48 horas espremida no mal estar da
viagem, no incômodo da poltrona, sentindo dores de barriga, sentindo o odor azedo
do ônibus, o mau cheiro do banheiro no fim do corredor, assustada pela velocidade
com que o motorista procede a viagem, observando a paisagem mudar à medida
que o destino se aproxima. A mãe viaja dois mil quatrocentos e setenta quilômetros
para ler nos olhos do filho “saber se é feliz no trabalho, no casamento, se, mas Ai, a
bexiga, a barriga, as costas, Ai!, as escadeiras, Ui!, as pernas, Ai!, Ui!, sem posição”
(RUFFATO, 2013, 19). É o Dia das Mães e essa mulher poderia receber seu filho em
sua casa como o melhor presente, mas como isso talvez não fosse possível ter de
um filho que possivelmente já se encontra desenraizado, para ela a única forma de
poder olhar nos olhos dele e exercer o seu papel de mãe é fazendo essa tão pouco
confortável viagem.
O mesmo sentimento materno contemplamos ao lermos a carta da
personagem Glorinha direcionada ao seu filho a quem não vê há três anos. Ela mora
em Guidoval, interior de Minas Gerais e não fez a viagem até São Paulo para vê-lo
como fez a personagem da história anterior, mesmo morando muito mais próximo do
60
que ela. Não sabemos as motivações de nenhuma delas. Enfim, aparentemente tão
saudosa quanto à mãe da história anterior, Glorinha escreve ao filho uma carta e
expõe o desejo de reencontrá-lo, assim como menciona o desejo de poder ver os
netos e a nora. Essas são mais duas histórias, entre outras inúmeras, de famílias
que foram separadas pela migração entre as regiões do interior do país e São Paulo.
Um movimento para a metrópole que levou à perda do convívio entre as famílias,
segregando-as, forçando-as a uma reconfiguração, tanto para aqueles que ficaram –
no que diz respeito à organização familiar que muitas vezes é adaptada em função
da ausência de um dos membros –, quanto para os que se foram e perderam as
suas raízes se moldando a um novo ambiente de vida.
Outra mulher que se desdobra para se sentir mãe, se enxergar exercendo essa
função e, num contexto bastante diferente das outras mães anteriores, suprir as
necessidades que o filho adolescente ainda demanda é a que aparece no capítulo
que se chama 8. Era um garoto. Sim, ele era um garoto, não um jesuscristinho como
a mãe enxergava durante toda sua infância e adolescência antes de acontecer a
tragédia repentina. Ela fazia de tudo por ele, era uma jornalista freelancer que
empregava todo o seu tempo para obter a renda que a possibilitava dar ao filho
oportunidades de frequentar os melhores ambientes, já que o pai do garoto era
totalmente ausente, já casado com outra mulher, morador de uma mansão,
envolvido em negócios ilícitos, enquanto ela se esforçava para conseguir pagar as
prestações do pequeno apartamento em que moravam no bairro Jabaquara. A mãe
desse garoto representa milhares de outras mulheres que são arrimo de família e se
esforçam para criar seus filhos e manter a casa sem ter ajuda de figura masculina. E
além disso, ainda tentam administrar a vida dos filhos para que se mantenham
saudáveis física e psicologicamente. Mas quando algo sai do seu controle, amarga a
dor do desespero por não ter conseguido administrar e sofre: “meu deus por quê ele
foi fazer isso meu deus por quê” (RUFFATO, 2013, p. 21).
No caso dessa cena, não sabemos a quem ela se refere quando diz “ele”. O
narrador não deixa claro o que aconteceu surpreendendo a todos com o final
inesperado. Os leitores passam a se questionar sobre o motivo de tão fatal
acontecimento. A mãe, obviamente, sabe mais do que os leitores, mas ainda assim
indaga o motivo de “ele” ter feito isso. Suposições por parte de quem lê surgem, pois
sabendo de toda a preocupação que a mãe possuía em relação à ausência do pai e
os possíveis problemas que tal fator poderia acarretar no desenvolvimento do filho,
61
acabamos por fazer conjecturas, teria sido um suicídio? Quem é esse “ele” que a
mãe indaga sofrendo? O homicida? Independente de como tenha sido a morte do
rapaz, foi algo que saiu do domínio desta mulher que sozinha criava o filho e não
imaginava passar por situação tão dolorosa de perdê-lo. Muitas mulheres acabam
padecendo e se culpam por terem que trabalhar demais, atrapalhando o
acompanhamento, crescimento e o atendimento das necessidades de sua família.
Sem explicação também fica a mãe ao final de 17. A espera quando seu filho
não chega à noite depois de ter saído cedo para procurar emprego. Um rapaz que
aparentemente não tem ânimo para a vida real e vive em meio à fumaça dos
cigarros de maconha e L&M. Ele lê o recado que ela deixa colado por um ímã na
geladeira, amassa e joga na lata do lixo. No bilhete estava expressa a torcida
materna, o desejo de boa sorte e um bom dia na procura pelo emprego que, talvez,
fosse uma vontade apenas dela. A cozinha parece estar desarrumada,
aparentemente por alguém que preparou seu café mais cedo, esse alguém é a mãe
que provavelmente sai muito cedo para o serviço. Não há indícios de uma outra
pessoa morando na casa, além dela e do filho. Ao final da história, após o rapaz ter
perambulado pelas ruas paulistanas antes do horário da entrevista, já no início da
noite, a história é interrompida com a mãe preocupada pela demora do filho “será
que aconteceu alguma coisa, meu deus?” (RUFFATO, 2013, p. 37).
Se aconteceu algo ou não, nunca saberemos, pois o fragmento termina. A
angústia de não sabermos qual o fim desta história é a mesma angústia sentida por
várias famílias sendo muitas delas constituídas apenas por mães, as quais perderam
seus filhos sem nunca saberem notícias do que realmente aconteceu. Da mesma
forma, o presente capítulo não nos trouxe um desfecho. Talvez ele tenha voltado e
apenas estava demorando a voltar para casa. Estamos acostumados a esperar que
o escritor termine, conclua, dê um desenlace claro para o enredo, mas se pararmos
para refletir sabemos que essa passagem já aconteceu em milhares de lares
brasileiros e possui diversos finais. Como é uma obra verossímil, permite que
façamos mergulhos nas nossas próprias experiências a partir da leitura, a fim de
interpretarmos aquilo que estamos lendo e sejamos capazes de dar nossos próprios
finais.
Além desses dois capítulos cujas personagens mães sofrem pelos seus filhos,
em 34. Aquela mulher, uma das cenas mais dramáticas da obra, o narrador
consegue alcançar e transmitir aos leitores o sofrimento de outra mãe que perdeu
62
sua filha e nunca recebeu explicação alguma das prováveis soluções que possam
lhe dar algum consolo. Algo comum nas grandes cidades, gerador de angústia e
desespero, o desaparecimento é uma situação irresoluta. A mulher da história se
entregou à própria sorte e agora se arrasta pelas ruas e avenidas do Morumbi
depois de ter procurado pela menina de onze anos como pôde, ter refeito diversas
vezes o caminho da escola para casa, ter notificado à polícia, ter suportado dia após
dia a tortura de esperar por um telefonema, alguma notícia da filha. O sentido da
vida dessa mãe se perdeu após o sumiço sem solução da menina que nunca mais
voltou do colégio. Ruffato (2013):
da casa, ora com a ajuda do marido ou com a ajuda do pai, ora na atuação sozinhas
na mantença dos lares, sustentando maridos desinteressados em trabalho e, em
alguns casos, morando todos juntos, pais, filhos e avós. Elas são tão ocupadas nos
seus serviços que nem sequer aparecem na história, são apenas citadas,
mencionadas, lembradas, estão em qualquer lugar de São Paulo ganhando a vida
para a casa. Vemos pelo contexto da vida das famílias apresentadas nas cenas
narradas que esses personagens representam uma camada simples de cidadãos,
algumas vivendo em casas com cômodos improvisados para caberem todos, outras
famílias vivendo em apartamento comprado com muito esforço sendo pago a
prestações.
Às vezes as casas ficam vazias, sem suas donas. Em 32. Uma copa, temos um
exemplo disso. Na descrição da cozinha de uma casa qualquer, o narrador observa
todos os detalhes de uma cozinha que parece não ser muito frequentada e nota que
a dona da casa sai quando ainda é madrugada e nunca pôde ver “os minúsculos
cristais de poeira voejando suspensos no facho de raios vespertinos que rompem o
vidro fosco trincado no basculhante” (RUFFATO, 2013, p. 58). Essa descrição deixa
subtendido o quanto as mulheres não estão mais se dedicando tanto ao lar, não que
não queiram, mas já não possuem tanto tempo disponível, seus modelos de vida já
não comportam estarem presas apenas às suas cozinhas, seja por opção de se
profissionalizarem ou por necessidade de manter uma casa, além do desejo de
independência.
Sabemos que essa não é uma tendência da urbanização do século XX e
primeira década do século XXI. Desde o século XVIII as crianças e principalmente
as mulheres preenchiam a maior parte das vagas nas grandes indústrias. Muitas
delas não eram casadas, mas tinham filhos e enfrentavam uma árdua jornada de
trabalho para os criarem sozinhas. Na modernidade a luta diária delas continua, a
maioria sem especialização e assumindo o trabalho que encontra a troco de pouca
remuneração. Notemos que na obra muitos trabalhos realizados pelas mulheres são
trabalhos e não profissões. Ou seja, muitas são domésticas ou diaristas, outra dirige
um transporte escolar clandestino com o veículo que o pai tem em casa, há também
a dona da lojinha de roupas em São Miguel Paulista, zona leste de São Paulo, a
mocinha vendedora de balas na rua, a vendedora dos salgadinhos feitos pela mãe, a
“consertadeira” de roupa – como rotula o taxista se referindo à sua mulher, na
64
como é enfatizado na história. Não se sabe como ela foi parar em São Paulo mas,
provavelmente, foi em busca de emprego e de oportunidades como a maioria das
pessoas que para lá vão. Entretanto, sabemos que ela não está feliz, se indaga
onde foi perder a felicidade que antes fazia parte dos seus dias na sua terra natal?
Ela é mais alguém que está em São Paulo e se perde ao mergulhar nas lembranças
que traz de volta a paz e a alegria que sentia em outros tempos, tempos em que
seus pés pisavam a terra em que nasceu e onde a maior parte da sua família está.
Essa jovem agora está em São Paulo ouvindo um som ensurdecedor, deitada no
chão do seu apartamento, bêbada e triste: “como deixara escapar aquela felicidade
em que momento da vida ela tinha se esfarelado em suas mãos em que lugar fora
esquecida quando meu deus quando” [sic] (RUFFATO, 2013, p. 90). Esses dois
quadros podem ser interpretados como comprovações de que as metrópoles não
absorvem a todos que lá chegam ou que nem todos que passam a viver na capital
adaptam-se à nova vida. Muitas pessoas voltam ao seus lugares de origem, muitas
se destroem engolidos pela nova dinâmica. O sonho de triunfo que São Paulo
desperta, atrai muito e já atraiu mais em outras épocas, principalmente para aquelas
pessoas que têm suas raízes fixadas em cidades pequenas, como pudemos
constatar observando a vida dessas duas moças comentadas acima. As duas
perdem-se nas lembranças das vidas pacatas e bucólicas que tinham nas suas
cidades natais, sentem alegria e conforto ao terem essa recordação o que gera a
percepção de que atualmente vivem frustradas, com sensação de fracasso frente à
realidade que não corresponde ao sonho inicial.
O passeio pelas páginas do livro continua e não por acaso, nos defrontamos
com mais mulheres na obra que merecem serem comentadas. Essas simbolizam
sintomas de uma cidade com sérios problemas, um meio urbano carente de
organização. Em 9. Ratos apesar de várias mulheres estarem presentes na cena, a
uma criança de onze anos é incumbida a função de cuidar. Cuidar dos irmãos
menores, levá-los para tomar banho na igreja e para tomar a sopa que é distribuída
diariamente. A filha mais velha vive pelas ruas à própria sorte, aparece de vez em
quando, no momento em que o frio aumenta, está sujeita a violências acometidas às
mulheres todos os dias. Anos atrás, uma das filhas, na época com treze anos, foi
abusada sexualmente pelo companheiro da mãe o qual havia oferecido ajuda para a
família sair da paupérrima condição em que se encontravam. Desse abuso, mais
uma gravidez na família. Além disso, no mesmo barraco onde de um lado os filhos
66
ouvem histórias fabulosas que a irmãzinha de onze anos conta, a mãe “geme
baixinho num canto, o branco-dos-olhos arreganhado sob o vaivém de um corpo
magro e tatuado, mais um nunca antes visto” (RUFFATO, 2013, p. 23). Vemos nesta
cena uma família, um grupo de mulheres de faixas etárias variadas, mães e filhas,
bebês, crianças, adolescentes e mulheres, entregues à vulnerabilidade da rua, da
pobreza, das doenças, sem terem solução, vivendo sem perspectiva alguma, sendo
comparadas aos ratos que circulam livremente pelo barraco onde moram.
Existem outros contextos de desmantelo humano e moral que acontecem
corriqueiramente, tanto pelos centros, quanto por locais ermos da cidade. Já
trouxemos aqui o caso da prostituta que, na cena narrada em primeira pessoa, ela
está sendo obrigada a prestar serviço a três homens ao mesmo tempo e nesse tipo
de ocasião, quando ela se sente anulada como um ser humano, recorre a uma
lembrança boa que a ajuda a fugir desse sentimento tão degradante que invade seu
ser. Em três outras passagens do livro também nos defrontamos com a prostituição
envolvendo além de mulheres, meninas, “nem peito ainda” como o próprio narrador
enfatiza na página 56.
No capítulo 51. Política um encarregado de organizar as festinhas particulares
para o deputado conta como tudo acontece. Não menciona nomes nem valores, mas
conta o que ocorre nesses momentos: dinheiro, bebidas, cocaína, mulheres “das
melhores, só universitária”, as quais se envolvem nesses sistemas afirmando que
precisam do dinheiro para pagar a faculdade. Na passagem chamada 47. O “Crânio”
o irmão do protagonista que se chama Crânio narra o quanto o admira por ele ser
inteligente e se diferir dos outros rapazes do bairro, gosta de ler e até revela
escrever poesias. No aniversário de 15 anos de Crânio, seu irmão escolhe a dedo a
surpresa que pretende fazer ao irmão e junta dinheiro com os amigos para realizar.
Trata-se de duas mulheres que foram pagas e escolhidas por um profissional para
estarem na cama do aniversariante assim que ele chegasse da comemoração do
seu aniversário. Mas a índole de Crânio não permitiu que ele aproveitasse as
mulheres que tinham sido oferecidas a ele e as dispensou. Na cena 29. O paraíso,
um menino vive em cárcere privado à disposição de bandidos que possivelmente
são envolvidos com drogas, prostituição e produção de pornografia caseira. O
responsável pelo esquema e o menino se revezam com as mulheres e meninas nos
atos impudicos, enquanto os gringos filmam as cenas. Mais uma vez observamos
um contexto no qual as mulheres se submetem como objetos sexuais indispensáveis
67
ganhos, afinal, talvez não tenham possibilidades para que seus sonhos e aspirações
possam um dia se concretizar caso não assumam essa responsabilidade diária.
A vida dificultada atinge também relacionamentos afetivos pois, em outras
cenas, em quaisquer outros lugares de São Paulo, dois casamentos sentem o peso
das frágeis relações que se formam e se desmancham facilmente nos tempos
modernos, algumas vezes, por motivos que não estão diretamente ligados à vida a
dois, mas às perspectivas e expectativas que muitos fatores contribuem para serem
frustradas.
As mulheres de 10. O que quer uma mulher e 62. Da última vez vivem em
estágios diferentes. A primeira ainda está casada, a segunda passou por uma
separação há dez anos, mas o desenrolar da história não deixa claro se eles
voltaram para a vida de casados. A primeira olha para o marido e sente uma
sensação de arrependimento por ter se casado com alguém que considera
acomodado e se revela bastante insatisfeita com o modelo de vida que está tendo
ao lado desse homem que ela não mais reconhece. Preocupa-se com fatores como
segurança, finanças e anseia por uma possibilidade de sair da mediocridade diária
em que se sente inserida. Sonha com uma casa mais confortável e espaçosa para
que toda a família possa se sentir melhor, sonha em não estarem com o dinheiro tão
curto, sonha com a possibilidade de seus filhos estarem cercados por boas
influências, frequentando bons lugares. Decerto, também sonhe com uma mudança
do marido. O título do capítulo “O que quer uma mulher” sugere que apenas as
conquistas materiais não seriam suficientes para gerar admiração a ele. Ela quer
admirar aquele homem que está ao seu lado, mas para isso, precisa enxergar nele
alguém ambicioso, no sentido de não se contentar com o mínimo que dispõe,
revelando qualidades como proatividade e inovação. Mas seu marido tinha
características contrárias a essas o que a tornava infeliz e a fazia se perguntar
desconhecer o homem com quem se casou: “quem é esse homem quem” [sic]
(RUFFATO, 2013, p. 27).
Na segunda história eles parecem estar conversando, apesar de na cena
mostrada no livro ela não se pronunciar. Ele lembra que há dez anos saiu de casa
com o kit de necessidades básicas que já deixava preparado para o caso de ele
precisar ir embora de repente. E foi o que aconteceu. Já podia prever a partir das
discussões que mantinha com a mulher, de forma recorrente, que em algum
momento eles iam acabar se separando. As queixas entre os dois eram
70
Após o “Oi, aqui é Luciana. Deixe seu recado após o sinal.” (RUFFATO, 2013, p. 47)
a mulher desabafa, agride Luciana com diversos xingamentos, fala mal do próprio
marido, revela as piores manias que ele possui, algumas até mesmo bastante
íntimas, no intuito de desmotivar Luciana na intenção desesperadora de fazer com
que ela desista de manter esse relacionamento com esse homem com quem um dia
se casou.
Sem pedir licença o autor entra na intimidade da vida dessas mulheres, as
anônimas mulheres que povoam as ruas da cidade de São Paulo com seus dramas
reais e vivências comuns a muitas outras espalhadas por todo o lugar. Como
caracteriza Lima (2007, p. 141) ao se referir à condição humana exposta por Ruffato:
“as criaturas mostram-se em suas angústias e em suas buscas ditadas pelas
esperança e limitadas pela desilusão ou pelo medo. Retratos de corpo e alma, na
paisagem da cidade grande”. Foram retratos como esses que pudemos testemunhar
pelas personagens femininas as quais são protagonistas de suas histórias, sejam
elas felizes ou tristes. Enfrentam as suas dores e as dores de seus filhos sozinhas
ou não, assumem responsabilidades, aguentam firme o fato de, às vezes, disporem
apenas de opções desfavoráveis para viver, são abusadas de diversas maneiras,
dormem nos ônibus, convivem com tragédias, possuem anseios de viver num
ambiente menos hostil, por fim, mergulham no cotidiano do que realmente é ser uma
mulher urbana.
Em face das cenas dos acontecimentos que foram mostrados acima, os quais
representam as vivências de parte da população feminina da cidade de São Paulo,
chegamos à conclusão de que Ruffato em Eles eram muitos cavalos foi capaz de
levantar não só o tema da cidade de São Paulo como uma cidade mista, grande
caótica e estilhaçada. A diversidade de temas abordados pelo autor na obra, nos
leva a ir para diversos outros caminhos e assuntos que abrem discussões para
vários outras considerações que podem ser tratadas isoladamente. A
heterogeneidade no livro é vasta e, apesar disso, abarca apenas uma fração da real
conjuntura da cidade.
72
Além desses motivos, a própria expansão dos núcleos urbanos invadiu muitas
terras indígenas, criando uma situação que obrigou os indígenas a incorporarem-se
a esse modelo de vida caótico. Ademais, a própria influência do modo de vida
urbano inevitavelmente atinge e adentra as aldeias, o que força que os limites
culturais sejam rompidos e os indígenas não se abstenham de desejarem viver e se
interessarem pelo que é oferecido na zona urbana. Muitos acabam optando pela
vida na cidade no intuito de cursarem faculdade e trabalhar ou apenas na intenção
de abandonar a aldeia, já que a permanência nesse lugar não mais oferece tantas
vantagens e, mesmo alheios ao sistema urbano, afinal muitos deles nem mesmo
falam o português, optam pela migração a fim de encontrar melhores recursos para
viver.
Dados recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2010)
mostram números pouco conhecidos capazes de revelar a verdadeira situação dos
primeiros habitantes do Brasil nos dias atuais. Mais da metade dos indígenas
brasileiros vivem em zona urbana, sendo São Paulo a cidade com maior número de
indígenas. Segundo dados do censo apenas na capital paulista soma-se o número
de 11.918 indígenas.
A partir disso, outro problema passa a existir: atordoados num ambiente
absolutamente distinto do seu, muitos não conseguem se adaptar e entregam-se
aos vícios como drogas e bebidas. São crescentes os casos de indígenas que
encontram-se viciados em algum tipo de entorpecente, perdidos por viverem em
condição de miséria ao chegarem na cidade e serem excluídos já que na maioria
das vezes eles não possuem instrução alguma para ocupar as vagas de emprego e,
desnorteados, passam a viver sem rumo.
Foi o que aconteceu ao indígena protagonista da cena 14. Um índio a quem o
narrador, provável frequentador do bar de seu Aprígio ou morador do bairro onde
esse bar fica localizado, se refere como bugre, selvagem, bicho, peri, enquanto
conta toda a história da passagem do indígena naquele lugar. Ele conta que o
indígena surgiu no bairro de repente, mas que a cada intervalo de tempo
desaparecia e retornava. Chegou a ser preso por atentado ao pudor num episódio
em que se animou no meio da rua, bêbado, tirando toda a roupa. Tempos depois,
após a soltura, passou a ficar no bar do seu Aprígio, onde se alimentava, à
contragosto do dono. Mas seu Aprígio sem achar outra saída, começou a exigir que
ele lavasse o chão e o banheiro do seu estabelecimento em troca de algum
74
já que estava cumprindo ordens do chefe Souza e não gostaria de correr o risco de
perder seu emprego, que por sinal, é um emprego com baixa remuneração e
ocupado, na maioria das vezes, por negros.
Dessa forma, em meio a tantas adversidades vividas pelos moradores dessa
cidade estilhaçada, muitos se agarram a vários tipos de fé para conseguirem
encontrar um fio de esperança e continuarem vivendo sem resignação. Exemplo
disso, é um homem pardo trajado com um terno azul-celeste, em pé no meio da
praça da Sé, que tenta compartilhar o seu testemunho de vida com os transeuntes,
revelando a todos como era o seu modo de vida em meio ao crime, roubando,
assaltando, usando drogas, mas que hoje diz estar liberto e está ali para tocar na
vida de alguém por meio de suas palavras inspiradas por Deus. Assim, ele faz uma
oração que parece atingir uma grande quantidade de pessoas. Ruffato (2013):
Parece ele ser alguém que conhece bem o interior e o estado das milhares de
pessoas que transitam, cruzam, vagueiam pelas calçadas e ruas históricas da
cidade de São Paulo, a pé ou motorizadas em seus carros e motos, ou ainda
aquelas que vivem trancados nos milhares de apartamentos ou em cima de uma
cama, doentes ou na janela de seu barraco em alguma comunidade distante,
avistando a amplitude vasta de modos de vida, paisagens e estado do interior dos
habitantes da labiríntica São Paulo.
78
Este capítulo pretende discorrer a respeito da declaração feita por Luiz Ruffato
quando questionado sobre a classificação do seu livro. Ele o definiu como uma
instalação literária. Podemos constatar a partir dessa designação que há muitas
aproximações entre Eles eram muitos cavalos e outras artes. Além disso, Ruffato
traz para a sua obra a incorporação de outros artistas, citando-os desde o título,
portanto, teceremos discussões acerca do conceito de instalação e as citações
necessárias para a construção da obra.
visuais que o autor consegue trazer para as páginas do livro. Tudo isso e outros
elementos formando uma unidade difícil de ser entendida facilmente, como algo
coerente à primeira vista.
O leitor pode escolher ler um ou alguns capítulos de forma isolada como
unidades independentes que podem ser retiradas do livro sem ter perda significativa
no seu sentido, uma vez que não deixa de ser uma cena ocorrida no contexto
urbano. O autor teria a opção ainda de escolher inserir outras cenas e
representações urbanas para compor o livro, deixá-lo mais extenso, dispondo de um
número maior de imagens da cidade para o leitor testemunhar. Talvez o livro tenha o
perfil de algo inacabado. As histórias podem ter seus finais continuados ou
expandidos por parte de quem lê, inclusive isso já foi mencionado neste trabalho,
quando discorremos sobre a possibilidade de o leitor utilizar a sua própria
experiência para interpretar ou até mesmo, no caso aqui proposto, dar uma
continuidade às histórias apresentadas.
Isso dá margem para fazermos referência à coleção de cinco livros chamada
Inferno Provisório cujo lançamento do primeiro volume foi lançado no ano de 2005 e
o último em 2011. Ruffato afirma sobre esse projeto literário ter sido uma expansão
do livro que estamos estudando e, se formos analisar todos eles, notaremos que
realmente se trata de uma espécie de ampliação do mesmo estilo de escrita, tema e
proposta. Os mesmos esquecidos, invisíveis e anônimos fazem parte da obra
Inferno Provisório, delineando a face de uma estrutura social onde seres humanos
são vítimas do próprio meio de precariedade.
Essas observações estão sendo tecidas na intenção de tentarmos visualizar o
texto de Ruffato como uma espécie de instalação artística. No intuito de
entendermos melhor sobre a analogia feita por Ruffato e a ponte que ele fez entre a
sua obra literária e as outras artes, vamos discorrer a respeito das instalações, um
tipo de arte contemporânea que promove divergentes opiniões conceituais, de
acordo com o que explica Peccinini (2013) ao dizer que “como boa parte da
produção artística contemporânea a instalação não permite rotulação única, por seu
princípio experimental”. É experimental assim como algumas obras literárias,
incluindo Eles eram muitos cavalos, conceituada dessa forma pelo próprio autor.
Apesar dessa dificuldade de caracterização, a seguir está uma elucidação
bastante didática que facilita o entendimento geral do que se trata uma instalação
artística. Itaú Cultural (2015):
80
Por esse motivo Ruffato sentiu-se tão confortável para fazer esta
correspondência entre o seu livro e uma instalação artística em concordância com
outra fala de Souriau (p. 14): “quantos agradáveis efeitos do estilo, quantas
metáforas graciosas, ao se usar numa arte o vocabulário de outra!”. É possível
contemplar esta condensação entre as artes diversas vezes em Eles eram muitos
cavalos, como veremos mais adiante. A partir dessas constatações, trazemos para o
centro dessa discussão uma explicação de Alfredo Bosi em Reflexões sobre a arte
(1991) quando o mesmo remete à etimologia da palavra arte: “A palavra latina ars,
matriz do português arte, está na raiz do verbo articular, que denota a ação de fazer
junturas entre as partes de um todo” (p. 13). Nada mais harmônico para
correlacionar à obra de Ruffato, pois mais uma vez trazemos à tona a estética
mosaica conferida na obra a qual estamos estudando.
Como um artista, Ruffato buscou inspirações em tudo aquilo que estava ao seu
redor, qualquer fala, qualquer objeto e artes diversas contribuíram para a construção
do seu trabalho. Segundo ele, essa pesquisa de vivências foi feita ao decorrer de
anos e de maneira bastante sensitiva, entendendo, conhecendo, lendo, fazendo
conexões entre várias inspirações afim de se chegar a um produto. Já chegou a
afirmar que no seu processo criativo permite que as histórias se inscrevam em seu
interior para, ainda que nada seja inscrito, em algum momento o escritor possa se
manifestar.
Aproximando-se do tema da instalação artística e das vivências do autor, esse
declarou em entrevista que, ao visitar a Bienal de Artes de São Paulo no ano de
1996, pôde observar logo na porta de entrada uma porção de sapatos. Tratava-se
de uma instalação cujo autor e nome da obra ele não se recorda. Mas na criação
haviam sapatos femininos, masculinos e infantis, sapatos de vários modelos, de
pessoas que poderiam tê-los perdido ou poderiam ter sido descartados ou até ter
sido de alguém que tenha sofrido acidente e os deixou no meio do caminho. O autor
confessa ter estranhado no primeiro momento em que viu a produção e chegou a
questionar sobre o que seria arte hoje em dia, mas logo recompôs seu pensamento
e viu que não tinha o direito de manifestar esse tipo de opinião, afinal havia ali um
curador e um significado, mas isso ressalta o quanto comum é este tipo de reação
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para as mais variadas criações contemporâneas que são criadas. Ao refletir sobre a
obra a qual estava à sua frente chegou à conclusão de que “o artista quis
representar a cidade de São Paulo através daqueles calçados [...]” (RUFFATO,
2013). Aqueles sapatos poderiam ser de qualquer tipo de pessoa, com histórias
impregnadas em cada um daqueles calçados sujos de pó, novos, velhos, antigos,
modernos.
Mal sabia Ruffato que o autor da obra nem sequer de São Paulo era. O
amazonense Roberto Evangelista foi convidado por Agnaldo Farias para fazer parte
da Bienal de Arte de São Paulo nesse ano de 1996 e, quando o convite surgiu,
chegou a se espantar: “Demorei um mês e meio para encontrá-lo. Quando o
convidei para a Bienal, ele perguntou: 'Bienal? Você acha que é o caso?', diz
Farias”, na entrevista que tem como título Brasil chega com ferro, sal, cinza e luz
(1996).
Conforme o pesquisador José Leonardo Tonus (2013), a obra Ritos de
Passagem se explica da seguinte forma:
Esta imagem criada por Evangelista pode ser evocada para a história da
construção do Brasil, cujos braços responsáveis pela sua construção são de homens
e mulheres os quais foram aculturados, desenraizados e são representadas nas
milhares figuras anônimas oriundas de inúmeros interiores de todo o território
nacional, porém foram de fundamental importância para a construção da história, a
construção das cidades, a construção do país, apesar de não terem recebido todo o
reconhecimento que mereciam. Eles podem ser relacionados aos cavalos que
Cecília Meirelles imprimiu em seus versos e que Luiz Ruffato se apropriou para
ilustrar o seu livro dando o título tão cheio de personalidade como conhecemos.
84
Vale ressaltar que na primeira edição do livro, lançada pela Boitempo Editorial,
a capa é um par de tênis sujos, empoeirados, capa que poderíamos sugerir ter sido
uma alusão a essa experiência a qual acabamos de relatar acerca dos calçados na
Bienal de São Paulo. Porém em pesquisas realizadas, constatamos que numa
conversa via e-mails entre uma pesquisadora de Eles eram muitos cavalos e Luiz
Ruffato, o autor afirma não ter sido uma escolha feita por ele, pois na época não
possuía um nome estabelecido a ponto de dar sugestões para a produção Ferreira
(2009):
Oi, Teresinha
não, a capa primeira dos cavalos foi da editora... naquela
época eu não tinha cacife pra interferir na edição...
Abraço grande do
luiz ruffato
(p. 113)
Ruffato parece não ter esquecido as práticas infantis onde o papel, a tesoura e
a cola se faziam presentes entre as brincadeiras de criança, parafraseando aqui as
palavras de Compagnon em O trabalho da citação (1996) quando esse compara as
brincadeiras de recorte e colagem que lhe proporcionavam tanto prazer na sua
infância com as citações, cujo deleite acaba sendo semelhante, já que no ato da
escrita, o recorte e a colagem também são atividades usuais.
Nos concentrando pontualmente no título do livro a partir de agora, ele nos
direciona para o poema escrito por Cecília Meireles designado como Romance
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ao um personagem do livro, o prefeito do capítulo 46. O prefeito não gosta que lhe
olhem nos olhos, no intuito de representar numa figura clara e bastante
representativa de quem possui o poder em mãos e a responsabilidade de
administrar e melhorar as condições de trabalho, saúde, moradia e educação de
todas as camadas sociais da cidade. Mas logo no título da narrativa que nos
apresenta tal gestor, vemos que não é possível esperar dele ações positivas. É a
partir daí que podemos entender um dos vieses responsáveis pelo ciclo inacabável
onde as causas e consequências se misturam de tal forma a provocar vários males
ao meio urbano, gerando os ciclos destrutivos dos quais já falamos aqui.
O exercício da colagem parece ter feito parte de uma das etapas do trabalho
de Ruffato. Encontramos no livro textos que podem ser vistos facilmente inscritos em
panfletos distribuídos pelas ruas, em sites de internet, ouvidos nas rádios
enunciados por locutores ou ainda colados em qualquer parede das cidades. O livro
confere uma aproximação tênue com a realidade como já sabemos. Numa pesquisa
pela internet, constatamos que são reais os muitos dados que no livro estão
contidos. Os capítulos iniciais, por exemplo, não foram criados pelo autor. São
dados reais e, portanto, outra pessoa o criou tendo como base os dados concretos.
O cabeçalho, nos fornece informação do local ao leitor, situando-o na cidade onde
se passa os enredos, a data em que acontece e o dia da semana. Seguido a essas
informações, a previsão do tempo. Poderíamos ter aberto o jornal, lido em algum site
ou assistido no rádio ou na televisão. Não foram dados elaborados pelo autor.
Durante todo o livro podemos constatar a veracidade de muitos fatos que ocorreram
no dia 09 de maio de 2000. O tempo mas Exemplo disso está Ao longo do livro,
vemos que o autor parece ter juntado diversos recortes de panfletos. Voltando um
pouco para a seção anterior que se pretende explanar acerca das instalações,
vemos na citação a seguir que alguns processos de coleta e escolha dos panfletos
que fariam parte do livro. Tonus (2013) explica que:
CONSIDERAÇÕES FINAIS
pretendeu compreender de que forma Eles eram muitos cavalos representa a cidade
contemporânea.
O olhar para o social e uma literatura com o papel de provocar reflexões acerca
do mundo complexo e indefinido que rodeia a todos, parece ser uma bandeira
levantada pelo autor. Por isso, para chegarmos às conclusões da pesquisa, fez-se
necessário transitar por muitos temas. Passamos por vários capítulos e neles
encontramos situações de miséria financeira, prostituição, um indígena perdido sob
efeito do álcool, hibridismo cultural sendo apresentado por um simples cardápio, a
solidão, o desemprego, a desigualdade social, e até mesmo a saída de São Paulo
na busca de algo melhor, tema abordado no livro, mas não discutido nesse trabalho.
É um romance polifônico, pois são vários sujeitos sociais que, cada um no seu
espaço, se adequam a um sistema que na maioria das vezes mais oprime do que
liberta o trabalhador.
A variedade de assuntos que esse livro traz à tona, causa uma certa
dificuldade em conseguir juntar os cacos de algo que explodiu e quebrou. Ao
juntarmos e tentarmos colar os estilhaços para formar a unidade novamente,
saberemos que não ficará perfeito como outrora foi. As fissuras estarão sempre à
vista, causando separações entre as partes e, além disso, há a ameaça de as
mesmas se desprenderem mais uma vez. A unidade, uma vez segregada, não torna
ao seu estado inicial.
Ademais, esses temas trazidos pelo autor permitem que haja uma tamanha
desintegração entre eles a ponto de existir a possibilidade de desenvolvimento de
outras pesquisas, outras dissertações, apenas expandindo os temas de cada
capítulo trazido aqui e partindo de outros assuntos os quais não foram contemplados
nesse estudo. Mais uma vez fica explícita a complexidade, variedade de temas e
infinitude de eventos, pessoas, estilos, ocorrências, problemas, que acontecem no
grande palco urbano.
Chegamos à conclusão de que os grupos minoritários, representados nesse
trabalho pela mulher, pelo negro e pelo indígena ainda estão caminhando, ainda
dispõem de menores vantagens e ainda tentam superar diariamente as
adversidades impostas socialmente. Os que mais precisam continuam sofrendo sem
assistência, muitos governantes continuam não querendo serem olhados nos olhos
e as pessoas comuns continuam se isentando da culpa de ajudar aquele que bate à
sua porta.
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REFERÊNCIAS
Arquivo Público do Estado de São Paulo: Imigração em São Paulo. 2009. Disponível
em: <http://www.arquivoestado.sp.gov.br/imigracao/estatisticas.php>. Acesso em 15
mar. 2016.
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. 6 ed. São Paulo: Editora WMF, Martins
Fontes, 2011.
______. Móbiles urbanos: eles eram muitos... In: HARRISON, Marguerite Itamar
(org.). Uma cidade em camadas: ensaios sobre o romance Eles eram muitos
cavalos, de Luiz Ruffato. Vinhedo: Horizonte, 2007.
RUFFATO, L. Eles eram muitos cavalos. São Paulo: Companhia das letras, 2013.
______. Luiz Ruffato com Vivian H. Schlesinger na Hebraica - parte 1/4. [2013].
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=wiWx0s2lGqw>. Acesso em 20
set. 2016.
______. Para Ruffato, "busca pela felicidade apodrece tudo": entrevista. [2005].
Entrevista concedida a Folha de São Paulo. São Paulo: Folha de São Paulo.
Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1903200507.htm>.
Acesso em 15 fev. 2017.
SALMOS 82. In: A Bíblia Sagrada: Velho testamento e novo testamento. Rio de
Janeiro: JUERP, 1974.