estilhaços da cidade

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE FEIRA DE SANTANA


DEPARTAMENTO DE LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS LITERÁRIOS

AMANDA TRINDADE MARTINS DA SILVA

ESTILHAÇOS DA CIDADE:
UMA LEITURA DE ELES ERAM MUITOS CAVALOS, DE LUIZ
RUFFATO

FEIRA DE SANTANA
2017
1

AMANDA TRINDADE MARTINS DA SILVA

ESTILHAÇOS DA CIDADE:
UMA LEITURA DE ELES ERAM MUITOS CAVALOS, DE LUIZ
RUFFATO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Estudos Literários, da Universidade
Estadual de Feira de Santana – UEFS, como requisito
parcial para obtenção do título de Mestra em Estudos
Literários.

Orientador: Prof. Dr. Aleilton Santana da Fonseca

Feira de Santana
2017
2

Ficha Catalográfica — Biblioteca Central Julieta Carteado

S578e Silva, Amanda Trindade Martins da


Estilhaços da cidade: uma leitura de Eles eram muitos cavalos, de Luiz
Ruffato / Amanda Trindade Martins da Silva. —, 2017.
96 f.

Orientador: Aleilton Santana da Fonseca


Dissertação (Mestrado) — Universidade Estadual de Feira de
Santana, Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários, 2017.

1. Literatura brasileira — Estudo e crítica. 2. Literatura urbana. 3.


Ruffato, Luiz — Crítica e interpretação. I. Fonseca, Aleilton, orient. II.
Universidade Estadual de Feira de Santana. III. Título.

CDU: 869.0(81)-31.09
3

AMANDA TRINDADE MARTINS DA SILVA

ESTILHAÇOS DA CIDADE:
UMA LEITURA DE ELES ERAM MUITOS CAVALOS, DE LUIZ
RUFFATO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Estudos Literários – PROGEL, da
Universidade Estadual de Feira de Santana – UEFS,
como requisito para obtenção do título de Mestra em
Estudos Literários.

Aprovada em 31 de maio de 2017.

_____________________________________________________
Professor Dr. Aleilton Santana da Fonseca
Orientador – UEFS

_____________________________________________________
Professor Dr. Claudio Cledson Novaes
UEFS

_____________________________________________________
Professora Dra. Sayonara Amaral de Oliveira
UNEB
4

AGRADECIMENTOS

Agradeço a Deus pela saúde que me concedeu para chegar até aqui.

Aos meus pais, D. Helenita e Sr. Moisés, por terem me dado suporte durante
toda a minha vida para que eu sempre pudesse estudar e aos meus irmãos Isadora
e Matheus, pois torcemos muito uns pelos outros.

Ao orientador Aleilton Santana da Fonseca, pela sensibilidade que o


acompanha nos momentos em que se propõe abordar os temas propostos,
qualidade que estimula no exercício de observação daquilo que está além da
superfície.

Ao corpo docente do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da


Universidade Estadual de Feira de Santana, pelas importantes contribuições
concedidas durante as etapas do curso.

Aos amigos e colegas por compartilharem comigo as alegrias, dificuldades e


conquistas.
5

RESUMO

Eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato, obra publicada pela primeira vez no ano
de 2001 pela editora Boitempo, é considerada uma das narrativas mais instigantes
da literatura brasileira contemporânea. A partir dessa obra, o seu autor recebeu
diversos prêmios e emergiu como um dos grandes nomes da ficção urbana, sendo
um dos mais referidos, traduzidos e estudados na última década. Fragmentário e
estilhaçado, o romance é composto por inúmeras possibilidades de linguagem,
tornando-se uma obra híbrida e que instiga curiosidade e análise. O presente estudo
tem o objetivo de formular questões e respostas que expliquem de que forma a
complexidade urbana da modernidade é representada no referido romance. Para
isso, faz-se uma abordagem que se divide em partes, separando os núcleos
representativos nas formas dos personagens e enredos que aparecem nos 69
capítulos curtos, dispostos como estilhaços de um mosaico de situações.
Inicialmente, se fazem considerações acerca da literatura contemporânea e sobre o
escritor Luiz Ruffato. Em seguida, serão tecidas reflexões a respeito das situações e
impasses vividos pela população urbana, com suas perspectivas e seus
desdobramentos dramáticos. Adiante, a parcela minoritária entra para o centro das
discussões, dando-se enfoque para as personagens femininas e, a seguir, para as
figuras do negro e do indígena. Por fim, comentam-se várias situações que são
utilizadas pelo autor como artifícios para compor a obra e, além disso, discute-se a
ideia defendida pelo próprio Luiz Ruffato como sendo seu livro uma instalação
literária. Para o desenvolvimento do estudo, utilizam-se as contribuições de teóricos
como Karl Erik Schollhammer, Antonio Candido, Mikhail Bakhtin, Renato Cordeiro
Gomes, Néstor García Canclini, Zygmunt Bauman, Antoine Compagnon, Alfredo
Bosi, Étienne Souriau, pressupostos que são fundamentais para o estudo do
romance.

Palavras-chave: Literatura contemporânea. Cidade. Luiz Ruffato. Sociedade.


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ABSTRACT

There were many horses, by Luiz Ruffato, a work published for the first time in 2001
by the publisher Boitempo, is considered one of the most instigating narratives of
contemporary brazilian literature. From this work, its author has received several
awards and emerged as one of the great names of urban fiction, being one of the
most referenced, translated and studied in the last decade. Fragmentary and
shattered, the novel is composed of innumerable possibilities of language, becoming
a hybrid work and that instigates curiosity and analysis. The present study objective
formulate questions and answers that explain how the urban complexity of modernity
is represented in the novel. For this, an approach is divided into parts, separating the
representative nucleus into the shapes of the characters and plots that appear in the
short 69 chapters, arranged as shards of a mosaic of situations. Initially
considerations are made about contemporary literature and about the writer Luiz
Ruffato. Then, reflections will be woven on the situations and impasses experienced
by the urban population, with their perspectives and their dramatic unfolding. Later,
the minority share enters the center of the discussions, focusing on the female
characters and then on the black and indigenous figures. Finally, several situations
are mentioned that are used by the author as artifices to compose the work and, in
addition, the idea defended by Luiz Ruffato himself as his book a literary installation.
For this the contributions of theorists Karl Erik Schollhammer, Antônio Cândido,
Mikhail Bakhtin, Renato Cordeiro Gomes, Néstor García Canclini, Zygmunt Bauman,
Antoine Compagnon, Alfredo Bosi, Étienne Souriau will be fundamental for the
development of this research.

Keywords: Contemporary literature. City. Luiz Ruffato. Society.


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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 8

1 FRAGMENTOS URBANOS: A NARRATIVA DESVAIRADA DE ELES ERAM


MUITOS CAVALOS .................................................................................................. 11

1.1 A NARRATIVA DESVAIRADA DE ELES ERAM MUITOS CAVALOS ................ 11


1.2 LUIZ RUFFATO: VIDA E OBRA DE UM ESCRITOR CONTEMPORÂNEO........ 17
1.3 O TEXTO INDISCIPLINADO ............................................................................... 26

2 A CIDADE É UM LABIRINTO................................................................................. 36

2.1 METRÓPOLE PARADOXAL: O PALCO DA ATRAÇÃO, FUSÃO E REPULSA .. 36


2.2 CICLOS DESTRUTIVOS NA CIDADE ................................................................ 40

3 OS INVISÍVEIS DE SÃO PAULO ........................................................................... 56

3.1 AS ANÔNIMAS MULHERES DE SÃO PAULO ................................................... 56


3.2 OUTRAS REPRESENTAÇÕES MINORITÁRIAS: O NEGRO E O INDÍGENA ... 72

4 A “INSTALAÇÃO LITERÁRIA” DE LUIZ RUFFATO: COMPOSIÇÃO E


CONTEXTOS ............................................................................................................ 78

4.1 ARTE FUGAZ: AS INSTALAÇÕES ..................................................................... 78


4.2 RECORTE E COLAGEM: AS CITAÇÕES........................................................... 84

CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................... 90

REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 92
8

INTRODUÇÃO

Eles eram muitos cavalos é uma narrativa composta de fragmentos e detalhes


que mostram diversos aspectos da condição humana no turbilhão da metrópole de
São Paulo, a partir de vários vieses. São setenta flashes ou recortes que mais
parecem cenas de um filme ou um conjunto de fotos, nas quais os flagrantes foram
captados e descritos, com ênfase no instante e no agora. Ao leitor é revelado
apenas o átimo pontual de quando os fatos ocorrem, em 69 momentos do dia 9 de
maio do ano 2000.
Além das narrativas que passamos a conhecer em alguns capítulos do livro,
encontramos outras modalidades textuais compondo a fatura geral da obra. Nem
todos os capítulos consistem em histórias curtas nas quais as personagens
compõem uma única cena. Ao longo da leitura do livro nos deparamos com folhetos,
semelhantes aos que encontramos nas ruas sendo entregues por trabalhadores ou
expostos nas paredes de determinados estabelecimentos. Veremos também listas
anunciando vagas de empregos, semelhantes às que encontramos na seção de
classificados dos jornais, e, ainda, informações numerológicas, astrológicas,
anúncios de serviços sexuais, cardápios. Um cardápio, em particular, evidencia a
cultura híbrida da cidade, ao dispor de ingredientes e pratos com origens distintas
entre si e que, combinados, funcionam naturalmente e ainda conferem uma
harmonia só vista em cidades como São Paulo.
A metrópole termina constituindo-se como uma personagem a mais, a grande
personagem que enlaça todos as outras que compõem a teia narrativa do romance.
A cidade consegue englobar características opostas que, juntas, constroem um perfil
específico que a torna singular diante de muitas outras capitais. Seus atributos
invadem o imaginário dos indivíduos, suscitando aos seus moradores e,
principalmente, aos não nativos, um grande desejo de ascensão social, financeira e
profissional que a metrópole parece poder proporcionar a todos.
Publicado no primeiro ano do século XXI, Eles eram muitos cavalos atende às
tendências comunicativas da época, utilizando-se de uma engrenagem narrativa que
provoca discussões quanto à temática aqui tratada – a problemática do
desenvolvimento urbano descontrolado e a consequente derrocada humana –,
quanto sobre a montagem do livro, mesclando diversos estilos de texto, criando o
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que o autor chamou de instalação literária; além da presença de uma linguagem


veloz e objetiva.
Esses são apenas alguns exemplos de toda a riqueza de métodos e
experimentações de que o autor faz uso na intenção de narrar as cenas da cidade
contemporânea, composta por várias realidades distintas, contrastantes e, à
semelhança do próprio texto, estilhaçada. Além disso, é importante enfatizar a
aproximação entre o tema, a adoção da linguagem híbrida e a disposição dos
capítulos em cenas. São elementos que se encontram imbricados e correlacionados,
um a serviço do outro, a fim de reforçar a própria temática, ao expor a complexidade
urbana e a dificuldade de abordá-la através do modelo clássico e único de narração.
A partir desses aspectos, elencamos algumas temáticas presentes no livro, a
fim de explicar o modo como a cidade contemporânea está representada em Eles
eram muitos cavalos. Entre as várias facetas que o livro oferece para análise,
especificamos algumas que julgamos interessantes trazer ao centro das discussões.
Assim, o trabalho está dividido em quatro seções, apresentadas a seguir.
No primeiro capítulo fazemos uma explanação mais ampla, situando a obra
estudada na produção contemporânea brasileira. Sabemos que por volta da década
de 1970, alguns escritores produziram obras que abordam o contexto urbano,
reconhecendo a cidade como um ambiente rico em histórias vividas por
personagens comuns, onde incontáveis desdobramentos ocorrem simultaneamente,
revelando sintomas de uma cidade problemática, bem como o homem urbano e as
aflições vividas por ele nesse contexto.
Em Eles eram muitos cavalos conhecemos personagens que representam as
pessoas comuns, os trabalhadores, os estudantes, os moradores de rua, a mãe que
trabalha o dia todo e que sozinha sustenta sua casa, o empilhador de caixas de uma
grande rede de supermercados, o pai de família que, sem qualquer poder aquisitivo,
se dirige ao mercado na tentativa de fazer com que alguém o ajude a comprar leite e
fraldas para o filho recém-nascido.
De fato, perfazemos esse caminho nos adentrando na literatura
contemporânea e seus interesses, tecendo considerações acerca do escritor Luiz
Ruffato, para formular um entendimento panorâmico da obra, já que o autor expõe
todo um projeto político para a elaboração de seus trabalhos.
Na segunda seção do estudo, discorremos a respeito dos ciclos destrutivos
capazes de contaminar as pessoas que vivenciam a conjuntura urbana. Procuramos
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identificar alguns agentes sociais responsáveis pela propulsão do sistema


instaurado, como uma ordem que provoca a enorme desigualdade social, na qual
muitos mal conseguem se sustentar ou o conseguem a muito custo e esforço,
enquanto outros observam a cidade de onde vieram dispondo de um helicóptero
para transitar por ela. Esse sistema acaba sendo uma das causas que geram muitos
problemas sociais que encontramos na narrativa e que são discutidos neste
trabalho. A sensação de que todos estão sendo vítimas de algo, faz com que esse
ciclo permaneça em movimento.
Na terceira parte do estudo, temos a oportunidade de lançar um olhar sobre as
figuras femininas da obra. Procuramos determinar quem são elas, as anônimas
mulheres que trabalham, estudam, enfrentam mais de uma jornada de trabalho
diariamente, cuidam de seus filhos, sonham com um futuro mais confortável e
seguro, sofrem abandono, se prostituem, entregam-se à própria sorte. As mulheres
e as suas relações com o trabalho constituem o foco do terceiro capítulo, ensejo que
aproveitamos para continuar discorrendo sobre outras parcelas minoritárias da
cidade, simbolizadas pelas figuras do negro e do indígena.
Após essas reflexões, temos um último capítulo cujo embasamento se encontra
na declaração feita por Luiz Ruffato, quando afirmou ser seu livro uma instalação
literária. Essa afirmação suscita muitas indagações e pesquisas. Vários elementos
formam uma instalação artística, o que nos permite tratar da questão da hibridização
textual presente na obra. Dessa forma, cria-se uma correlação íntima entre os dois
conceitos. Ademais, a partir desse conceito, consideramos que o híbrido é oriundo
de várias partes e ambientes distintos. Essa ideia abre espaço para nos
certificarmos de que as obras de vários outros artistas estão impressas, ainda que
de forma indireta, nas composições artísticas. Logo, esse ponto nos leva para as
citações, as quais encontramos no texto de Ruffato, desde o título. O autor aciona
em seu romance outras vozes que conferem uma significação nova e particular, por
estar num contexto diferente em relação ao texto de origem.
A partir das explanações acima, procuramos esclarecer os objetivos do
trabalho. Buscamos em cada divisão feita acima um entendimento do perfil urbano
discutido no livro, a partir das histórias que nele são expostas e nos recursos que o
escritor lança mão para a produção da sua obra polêmica e tão discutida.
11

1 FRAGMENTOS URBANOS: A NARRATIVA DESVAIRADA DE ELES ERAM


MUITOS CAVALOS

Este capítulo discorre sobre Eles eram muitos cavalos e apresenta o perfil
literário de Luiz Ruffato. O autor e a obra enquadram-se na vertente recente da
ficção brasileira, apresentando as linhas gerais do que configura a literatura
contemporânea. Logo após, discute o processo de criação do autor. Em seguida,
aborda a relação formato/conteúdo, uma das características de destaque do livro,
ressaltando que tal criação não possui uma estrutura convencional e levando em
consideração o compromisso social que o escritor afirma possuir como projeto
literário. Ruffato se utiliza de vários recursos de linguagem para conferir ao trabalho
um formato diferencial que consiga captar a cena da cidade contemporânea
permeada de várias realidades distintas e até contrastantes.
A criação que dispõe de um formato estilhaçado narra a cidade que embora
seja apenas uma, não tem como característica a unidade, pelo contrário, o próprio
progresso da cidade a repartiu provocando vários problemas sociais que atingem
uma parcela significativa da população e para os quais não se encontra solução. É
sobre essa complexidade instaurada na vida urbana que o autor se compromete a
exprimir e este capítulo discorre como foi feita a preparação para que Eles eram
muitos cavalos fosse elaborado. Para que isso seja possível, serão utilizados os
teóricos mencionados a seguir: Agambem, Bakhtin, Carvalho, Candido, Ferrara,
Resende, Schollhammer.

1.1 A NARRATIVA DESVAIRADA DE ELES ERAM MUITOS CAVALOS

A metrópole brasileira do século XXI apresenta uma configuração espacial e


humana complexa no que concerne à sua organização, seus perfis urbanos e os
diversos usos pelos habitantes que nela vivem e circulam diuturnamente. Trata-se
de uma sociedade fragmentada e flutuante na qual os indivíduos interagem numa
rede de relações predominantemente utilitárias, problemáticas, impessoais,
mergulhados num turbilhão dinâmico de imagens, valores, atitudes e sensações,
numa massa informe de consumidores seduzida pelos apelos publicitários e
midiáticos. Assim, os habitantes da metrópole, em meio ao arrojo ultramoderno da
arquitetura e dos serviços, ora isolado em suas residências, ora exposto ao perigo
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das ruas, cumprem sua jornada de vida, assumindo ou buscando seu lugar na
imensa engrenagem.
A cidade torna bastante visível as contradições de sua estrutura, na qual, como
se sabe, avulta a disparidade existente entre as várias realidades econômicas da
população, situação histórica construída ao longo de seu surgimento e formação. É
interessante notar a teia de circunstâncias que se entrelaçaram nas últimas décadas
e formaram novas configurações responsáveis por transformações na paisagem da
cidade, nos hábitos, nos desejos, nos objetivos dos indivíduos, nas ações que
envolvem a ética e o senso de alteridade, nas diferentes camadas socioeconômicas
da população. Hábitos consumistas, imigrações, ofertas e demandas de inumeráveis
serviços, os quais foram gerados por múltiplos estilos de vida que, por sua vez,
recebem influências de diversas regiões do planeta e passam a compor um novo
cenário cujos personagens tentam se adaptar rapidamente construindo novas
identidades a cada geração.
Nesse contexto da metrópole brasileira, a partir da época pós-ditadura,
surgiram novas manifestações de interesse pelos estudos urbanos ocupando áreas
diversas como a antropologia, a sociologia, o urbanismo e também a literatura que,
naquilo que lhe diz respeito, ocupa-se em representar a cidade labiríntica e
complexa da contemporaneidade. Muitos escritores contemporâneos localizam
nessas cidades os cenários de suas narrativas. Entre eles destacamos Luiz Ruffato,
Férrez, Paulo Lins, Antônio Torres, Marcelino Freire, Carlos Ribeiro, Aleilton
Fonseca, dentre outros.
De fato, a representação da vida urbana moderna na literatura vem sendo
produzida desde a época em que as cidades despontaram como grandes
aglomerados humanos em meados do século XIX, quando surgiram as
consequências negativas de seu desenvolvimento. Assim, é inevitável mencionar o
poeta francês Charles Baudelaire (1821-1867), que expõe o seu estado de
inadequação na cidade moderna e compôs, entre outros títulos, Le spleen de Paris
(Pequenos poemas em prosa). Seus poemas sobre as ruas de Paris expressam sua
visão sensível e crítica, ao testemunhar e descrever o processo de urbanização e
modernização da cidade luz. Na mesma época, o americano Edgar Allan Poe (1809-
1849) percebeu nas ruas de Londres o surgimento do novo personagem da cidade,
“o homem na multidão”, ser social anônimo que se esgueira pelas ruas, sem controle
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direto, como protagonista da miséria, do crime e da solidão. Como afirma Massagli


(2008):
O narrador de Poe pode ser considerado uma versão londrina
do flanêur parisiense de Baudelaire. Londres e Paris eram duas
grandes capitais, mas Londres, já por volta de 1844, quando o
conto é escrito, encontra-se mais marcada pela industrialização
e por todas as consequências da revolução taylorista nas
formas de produção do capital (p. 59).

Essas relações são ainda mais difusas e complexas nas narrativas


contemporâneas. Os seus autores costumam utilizar a dinâmica urbana para
estruturar em suas obras as cenas prosaicas e cotidianas que muitas vezes passam
despercebidas de quem está habituado a transitar pelas ruas com seus planos
diários automatizados. A ficção põe em foco personagens antes preteridos para
fazerem parte dos enredos urbanos e, por extensão, os inscreve no panorama da
literatura brasileira contemporânea. Muitos escritores trazem para o centro ficcional
estes personagens. Alguns deles, como indivíduos, são oriundos de camadas
sociais minoritárias e se utilizam da literatura para rediscutir este espaço e trazer à
tona reflexões a partir de sua própria fala e lugar. Assim, essa literatura se presta
para fazerem os leitores refletirem sobre as suas próprias vivências, sobre o seu
meio e, a fim de que, iluminados por novos pensamentos, possam ao menos pensar
em transformá-lo.
Esta discussão faz recordar o fato ocorrido na Feira de Livros em Frankfurt no
ano de 2013, na qual o Brasil foi o país homenageado. Luiz Ruffato foi convidado
para fazer o discurso de abertura como escritor representante do Brasil. Para
surpresa geral, Ruffato proferiu um discurso polêmico, revelando fatos graves do
país, valendo-se de dados estatísticos e verdades brutais, referindo-se à realidade
da origem miscigenada do país, fruto de estupros praticados por homens europeus
contra mulheres africanas e indígenas, e as diversas causas das desigualdades e
injustiças no país. Destacou a contradição de um país que, como sétima potência
econômica mundial, permanece em terceiro pior lugar no mundo em desigualdade.
O escritor mineiro se referiu também à hipocrisia, covardia, machismo e racismo
velados que sempre regeu a sociedade brasileira, expressando os motivos para
essas qualificações tão negativas.
O ousado discurso acarretou um desconforto geral para os muitos brasileiros
que escutavam aquela fala, num momento em que se esperava a afirmação de uma
14

imagem positiva do país na Alemanha. O discurso crítico provocou grande


repercussão inclusive, e, segundo o próprio Ruffato, lhe trouxe consequências
desfavoráveis, pois seu nome passou a ser vetado em muitas feiras no Brasil e nos
países onde o país foi homenageado. O autor foi criticado por ter usado aquela
ocasião para expor os problemas da nação, quando muitos esperavam um discurso
positivo sobre o país. Já o autor se defende afirmando que o lugar e o momento
eram propícios para que ele pudesse ser crítico e reflexivo num assunto, já que se
tratava de uma feira literária, local de reunião de intelectuais, que dizem pensar o
mundo de forma crítica.
Imerso numa conjuntura cujas raízes remontam aos tempos da colonização do
país, que vem evoluindo e se transformando, o escritor Luiz Ruffato escreveu Eles
eram muitos cavalos, romance que mostra diversas situações da multifacetada
realidade urbana, cenas distintas entre si e que, justamente por isso, pode ser
estudado através de muitas abordagens, experimentando-se as alternativas de que
a linguagem literária dispõe.
Uma prova da diversidade presente no livro é a quantidade de trabalhos que
foram escritos desde a sua publicação, no ano de 2001. Entre artigos acadêmicos,
ensaios, críticas em blogs, adaptação para o teatro com a peça Mire Veja (2003) e
dissertações de mestrado o romance foi e ainda hoje é muito comentado e
estudado.
Fazendo uma revisão de literatura no intuito de ter uma visão geral do que já foi
discutido nesses trabalhos, tivemos conhecimento de que, na dissertação de
mestrado que tem como título Que romance é este? Uma análise estético-
sociológica de Eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato, escrito por Paulo Henrique
da Cruz Sandrini (UFPR), o foco do pesquisador é voltado para questões que
envolvem a identidade híbrida do sujeito contemporâneo, aquele que cruza
fronteiras espaciais, culturais e sociais, sendo essas três vertentes pontos que
englobam muitos outros assuntos. Além disso, o pesquisador discute questões
étnicas, especificando as etnias do negro e do indígena representadas por
personagens do livro. O estudioso pesquisa ainda questões que dizem respeito aos
elementos estéticos de composição do livro. Para tais análises, ele faz uso de
teóricos como Mikhail Bakhtin, Nestor Garcia Canclini e Peter Burke. Assim, Sandrini
(2007) afirma:
15

Vemos que a cidade, aqui, torna-se um palco de oportunidades


para uma hibridação cultural globalizada. No contexto da
grande cidade, [...], a rigidez fronteiriça antes estabelecida
pelas nações torna-se porosa e nos permite a asserção de que
são raras as culturas que podem receber o título de estáveis. A
ideia de unidade a traçar limites precisos com base em um
território delimitado perde força. (p. 65)

Observamos nesse trecho uma afirmação comum aos estudos de ordem


sociológica desenvolvidos por autores como Stuart Hall, um dos teóricos utilizados
pelo pesquisador da referida dissertação, e que cabem perfeitamente, sendo
indispensáveis para estudos contemporâneos que se voltam para a problemática
social das grandes cidades.
A dissertação escrita por Roberta Trajano, Sujeitos em trânsito: espaços
urbanos em eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato (UFMG), se concentra em
assuntos que estão em primeiro plano na obra: o tema da violência; como o espaço
da cidade é refletido na obra; a escrita performática; e a temática das pessoas, ou
seja, dos anônimos que atuam nas tramas narradas. Assim, unindo esses aspectos
mencionados sobre o seu trabalho, Trajano (2014) assevera o seguinte:

Ao fazer uso da linguagem literária como uma “arma” para unir


ficção e crítica social e propor rupturas na ordem da linguagem,
o autor torna visível alguns aspectos da realidade que o cerca,
buscando uma comunhão de olhar com o seu público-leitor (p.
24).

Notamos com essa afirmação que a pesquisadora procura revelar como


estratégia a união feita por Ruffato entre a ficção e o tema desenvolvido no livro, a
fim de gerar o efeito de crítica social e ruptura do tradicionalismo da linguagem.
Em O sensível cinemático: des-montagens em “eles eram muitos cavalos”, de
Luiz Ruffato, o autor João Guilherme Dayrell de Magalhães Santos se concentra em
pesquisar técnicas oriundas da arte cinematográfica que, segundo ele, são usadas
na escrita do livro como estratégias de linguagem. Para isso, o pesquisador faz
algumas analogias entre a arte cinematográfica e a narrativa, utilizando Deleuze e
Agambem entre os teóricos que trazem noções pertinentes ao tema. Para
exemplificar de forma resumida, o pesquisador discorre sobre o capítulo de número
cinquenta e seis, o qual se chama Slow motion. Santos (2011) analisa:
16

[...] O segundo parágrafo é a mesma cena, vista pelo ladrão.


Em ambos os relatos, o foco narrativo flutua em um discurso
indireto livre, alterando a narrativa de um narrador situado fora
da ação para os pensamentos e falas da personagem. O fluxo
verbal é contínuo e nos remete ao plano-sequência
cinematográfico em câmera lenta, como diz o nome do
episódio (p. 171).

Há também um livro que reúne ensaios, intitulado Uma cidade em camadas,


ensaios sobre o romance Eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato, organizado por
Marguerite Itamar Harrison e que contém ensaios de Renato Cordeiro Gomes, autor
de Todas as cidades, a cidade, Karl Erik Schollhammer, entre outros estudiosos.
Esses trabalhos exemplificam a fortuna crítica que a obra mereceu, o que demonstra
o quão desdobrável ela é, em sua composição e temática.
Eles eram muitos cavalos é dividido em sessenta e nove curtos capítulos nos
quais são narrados episódios em que personagens da vida cotidiana vivem uma
terça-feira do dia 9 de maio de 2000. O livro é composto por várias tipologias
textuais. Nele encontramos o estilo carta, o estilo narrativo, poético, injuntivo,
descritivo em forma de listas, cardápios, folhetos religiosos e orações, além de
telefonemas, relatos... São diversos tipos de textos sendo que estes, como qualquer
outra categoria textual, não se apresentam de forma pura, mas em cada capítulo
temos a oportunidade de nos deparar com múltiplas maneiras de expressão. Há,
inclusive, a utilização de fontes de letras diversas para conferir uma melhor
exposição do gênero.
Dessa forma, a importância desta pesquisa está na ampliação dos estudos
literários atuais no que dizem respeito à narrativa contemporânea e a representação
da cidade, a partir dos escritos de Ruffato. O intuito da pesquisa é fazer um estudo
sobre a cidade do século XXI e seus entrelaçamentos, que se tornou parte
significativa da ficção atual, na qual diversos elementos da vida cotidiana são
mostrados em cenas que reconfiguram uma visão da cidade, como um painel de
estilhaços e vivências. Dessa forma, a partir do tema aqui apresentado, procuramos
discorrer sobre a forma como a complexidade urbana da contemporaneidade é
representada no romance, refletida nos atos das personagens, nas suas ações
degradadas e deformadas pelo próprio tempo.
17

1.2 LUIZ RUFFATO: VIDA E OBRA DE UM ESCRITOR CONTEMPORÂNEO

O escritor e jornalista Luiz Ruffato (1961) de 55 anos, natural de Cataguases,


cidade situada no estado de Minas Gerais, está em plena atividade. Em diversas
entrevistas temos a oportunidade de conhecer sua predileção pelos livros e como
ela se manifestou. Ele conta que foi ainda na infância quando foi oferecido a ele,
pela bibliotecária da escola na qual ele estudava, um livro cuja história se passava
num local muito distante e de realidade díspar daquela que àquela altura, ele,
menino do interior de Minas, conhecia. A leitura daquele livro significou para Ruffato,
algo que hoje parece algo banal proferir, mas significou a abertura do seu olhar, a
amplificação das suas fronteiras até então tão restritas.
O livro mencionado é Babi Yar do escritor ucraniano Anatoly Kuznetsov, que se
ambienta no contexto da Segunda Guerra Mundial e discorre sobre a dizimação de
duzentos mil judeus em apenas dois dias pelos alemães. Para um garoto que até
aquele instante não havia realizado leitura alguma esse parece ser um livro bastante
áspero, sobretudo, pelo caráter testemunhal que ele confere. Após essa leitura o
desejo de experimentar essa sensação transformadora novamente, se tornou uma
prática recorrente durante toda sua história de vida a partir daquele ponto tão crucial.
Esse ritual de leitura se manteve durante toda a infância e adolescência até que, aos
dezoito anos, no ano de 1979, quando já morava em Juiz de Fora, o seu desejo de
ser escritor já existia e, à vista disso, publicou seu primeiro livro O homem que tece,
numa época em que a editoração de livros era bastante dificultada. Tratava-se de
um livro de poesias e foi lançado juntamente com a geração que ficou conhecida
durante toda a década de 1970 como a Geração Mimeógrafo, a qual produzia seus
próprios livros e fazia-os circular a preços baixos contando com um acabamento
precário e tendo todo o processo realizado pelos próprios poetas e companheiros.
Todavia, apesar de seu fascínio pela escrita e da publicação deste livro, a
realidade financeira do aspirante a escritor não favorecia seu desenvolvimento. Sua
realidade não permitia que ele se dedicasse à literatura como gostaria. Em
entrevistas ele declara que já se sabia escritor, todavia, aquele ainda não era o
momento propício para que tal plano se concretizasse pelo menos naquela fase de
sua vida, afinal, não era o tipo de trabalho que lhe daria retorno financeiro a ponto de
viver apenas como escritor. Por isso, formou-se em tornearia mecânica para ser
operário das fábricas de sua cidade mas só a partir da sua entrada na Universidade
18

Federal de Juiz de Fora, no curso de Comunicação, ele pôde se aproximar das


letras enquanto se formava e executava seu papel de jornalista. Apesar do caminho
percorrido pelo autor já poder ser considerado longo ele ainda é desconhecido em
muitos meios, assim como muitos escritores dessa geração, por isso, se fez
necessária esta apresentação.
Conhecida em linhas gerais a trajetória de Luiz Ruffato, podemos agora
conduzir nosso interesse para quando ele começou a alcançar notoriedade como
escritor; quando ele pôde se dedicar mais e, pouco tempo depois, apenas à
literatura após anos trabalhando como jornalista.
Foi no primeiro ano do século XXI que Luiz Ruffato publicou o livro que lhe
daria destaque no cenário da literatura contemporânea brasileira suscitando
discussões relativas à configuração de uma metrópole peculiar: São Paulo. Trata-se
de Eles eram muitos cavalos. Esta marcante produção foi muito bem recebida pela
crítica e rendeu a Ruffato prêmios importantes como o Prêmio Machado de Assis da
Biblioteca Nacional e APCA – Associação Paulista de Críticos de Arte e no ano de
2016 o prêmio Hermann Hesse, na Alemanha. Além disso, foi considerado um dos
romances mais importantes da literatura brasileira produzida nos últimos quinze
anos, segundo Harrisson (2007, p. 9), ficando em quarto lugar numa lista de 125
romances.
Além do prestígio que Eles eram muitos cavalos obteve em solo nacional entre
os consumidores de literatura, o livro alcançou interesse de vários países sendo
lançado em Portugal e traduzido para os seguintes países: Alemanha, Finlândia,
Argentina, França e Itália.
Desde então, Ruffato passou a ser considerado um consagrado escritor da
literatura brasileira, sendo bastante comentado e convidado em várias feiras
literárias por todo o Brasil participando de ciclos de palestras, entrevistas,
organização de livros, participação em antologias e vem produzindo muito nos
últimos anos. Depois da composição que o alavancou, publicou um livro de poesia
em 2002, As máscaras singulares, uma série de cinco volumes intitulada Inferno
provisório a qual compreende Mamma, son tanto Felice (2005), O mundo inimigo
(2005), Vista parcial da noite (2006), O livro das impossibilidades (2008), Domingos
sem Deus (2011). Entre os demais trabalhos estão De mim já nem se lembra (2007),
Estive em Lisboa e lembrei de você (2009), Flores artificiais (2014), o infantil A
história verdadeira do Sapo Luiz (2014), entre outros. Antes disso, em 1998 publicou
19

Histórias de remorsos e rancores e após dois anos (os sobreviventes) (2000), este
último sendo premiado pelo Prêmio Casa de Las Américas.
Além da produção literária ainda trabalha como jornalista no El País Brasil,
sendo colunista semanal, onde declara suas opiniões e seu posicionamento político-
social. Ademais, mantém o blogue Lendo os clássicos onde desenvolve resenhas de
livros consagrados da literatura universal.
Ter conhecimento sobre a origem do autor abre um ponto de discussão que se
volta para o seu posicionamento social em relação ao seu trabalho, assim como a
função de sua obra na sociedade. Em suma, a origem do autor, em vários casos,
determina o perfil de sua trajetória. Vale lembrar que Ruffato é um dos muitos
brasileiros que também seguiu o caminho do interior do Brasil, no caso dele Minas
Gerais mais precisamente em Cataguases, para uma cidade maior (Juiz de Fora) e
após isso, para a grande metrópole, São Paulo. É interessante ressaltar que ele é
descendente de italianos, grupo de imigrantes que chegou para se ocupar em
trabalhos braçais nas terras brasileiras. E essa trajetória encontramos no livro que
iremos estudar, assim como em toda a obra dele. Migrantes que entram e que saem
de São Paulo, vindo principalmente das cidades do interior ou do exterior do país.
Com base no que se sabe sobre o escritor mineiro é possível afirmar que o fato
de ele ter se tornado um escritor, além do talento, foi algo muito bem planejado.
Ruffato, como já foi mencionado, sempre foi um leitor voraz, estudioso de tudo
aquilo que pudesse o formar como cidadão. Houve um projeto traçado por ele para
que sua carreira fosse alavancada, para tanto, o próprio já declarou que estudou
muito sobre literatura, teoria literária e afins. Assim, ele próprio declara na entrevista
concedida a Heloísa Buarque de Hollanda (2006):

Desde Juiz de Fora, eu me coloquei uma meta: “Daqui a quinze


anos quero ser um escritor profissional”. E fui programático.
Como sentia muitas falhas na minha formação, comecei a
tentar sanar essas falhas. Por minha conta, comecei a ler um
pouco de filosofia, ler teoria da literatura, os autores que eu não
conhecia, obedecendo mesmo a um programa e sem escrever
absolutamente nada.

Dessa forma, inferimos que ele traçou o “plano/projeto Ruffato” como intitulou
Carmen Villarino Pardo (2007, p. 164) em seu ensaio sobre o processo de
profissionalização de Luiz Ruffato, no qual ela diz que as escolhas de “temas,
estilos, gêneros, tipografia...” são feitas visando a tentativa da profissionalização e
20

“de conseguir uma certa singularização no momento atual do sistema literário”. E


assim ocorreu, tanto que Pardo destaca sobre as antologias literárias organizadas
por Ruffato (25 mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira, lançada pela
editora Record (2014); Questão de pele (2009); Entre as quatro linhas: contos sobre
futebol (2014), e muitas outras, essas aqui citadas, são as mais conhecidas e
comentadas) o que confirma o prestígio que ele conquistou durante o seu percurso
no campo das letras, fruto de seu esforço pessoal. Ruffato (2005 apud Pardo, 2007)
completa articulando que:
Acho que estamos vivendo um período extremamente
importante na literatura brasileira. Devido a uma feliz
conjugação de fatores, temos público, editora e autores. E
estamos produzindo. O que vai surgir daí, ainda não sei. Sei
apenas que essa nova geração conseguiu escancarar as
portas dos suplementos literários, das universidades, das
livrarias. E isso não é pouco. E agora aos poucos estamos
conquistando mercado no exterior. Essa é uma verdade
inquestionável. O que mudou, na minha opinião, foi a postura
do autor brasileiro, que não tem medo mais de encarar a
literatura como profissão e vai à luta (p. 166)

Foi justamente isso que Ruffato fez. Encarou a literatura como profissão e
adotou estratégias que o ajudaram a alavancar, não abrindo mão de parcerias junto
a escritores de caminhada mais longa e já com prestígio no mercado e/ou entre os
leitores. Sua opção foi se empenhar na construção de uma literatura de inserção
social, problematização e questionamento das estruturas urbanas, contribuindo para
a confirmação de uma vertente das mais contundentes da ficção contemporânea.
A ficção literária contemporânea brasileira possui uma gama de temas,
abordagens e especificidades, modos de produção e apresentação diferenciada ao
público leitor e crítica literária. De maneira didática, pode-se dizer que teve seu início
no final da década de 1960, quando o Brasil ainda estava imerso nas efervescências
sociopolíticas provocadas pelas movimentações ocorridas a partir do golpe de 1964.
Os temas das produções que vinham sendo criadas nos anos subsequentes e
década seguinte se voltaram para questões de claro posicionamento político.
Portanto, essa geração do final dos anos de 1960 e toda a década de 1970 tem
como principal linha o engajamento político, enfrentando toda a sorte de
cerceamento e censura do estado de exceção.
A partir da abertura política, nos anos 80, com a sociedade voltando a poder
usufruir da liberdade e certa democracia que aos poucos voltava a fazer parte do
21

cotidiano do cidadão brasileiro, os escritores se concentravam em elaborar seus


trabalhos voltando-se para pontos de cunho social e a partir dessa nova tendência,
surgia um viés temático que revelava um caráter marcadamente urbano. Conforme a
explanação de Karl Erik Schollhammer (2011) em Ficção brasileira contemporânea,
parecia haver nos escritores um grande interesse em exercer o direito que foi
vedado nos anos anteriores, no sentido de expressar as ideias e pôr em prática a
liberdade que outrora foi cerceada. Em relação ao estilo e forma dos textos,
comentando Silviano Santiago, Schollhammer (2011, p. 31) informa que já era
possível constatar o uso de novidades estilísticas entre as produções.
Entretanto, o que se queria era criar uma narrativa que pudesse exprimir o
paradoxo existente na sociedade da época que, apesar de buscar o
desenvolvimento, parecia ser ainda “incapaz de criar soluções para seus graves
problemas sociais” (Schollhammer, 2011, p. 25). Por esse motivo, o mote da
temática urbana continuou em voga para as narrativas produzidas nos decênios
seguintes, até porque o índice populacional permanecia em crescimento, já que
parte dos habitantes que antes viviam em áreas rurais mudaram-se para as grandes
cidades, inflando a zona urbana. Apesar disso, a cidade não dispunha de estrutura
adequada que fosse capaz de absorver tamanho contingente, gerando, com isso,
diversos problemas de ordem humana e socioeconômica. Dessa forma, Beatriz
Resende (2008) afirma em Contemporâneos, que:

a cidade – real ou imaginária – torna-se, então, o locus de


conflitos absolutamente privados, mas que são também os
conflitos públicos que invadem a vida e o comportamento
individuais, ameaçam o presente e afastam o futuro, que passa
a ser impossível (p. 33).

Essa afirmação é muito próxima do contexto das vidas dos personagens


apresentados em Eles eram muitos cavalos e das circunstâncias experienciadas por
cada um deles o que configura na maioria dos casos, um sintoma de vários
problemas que encontramos na cidade, com relação a isso, veremos mais adiante.
Assim, as produções literárias dessa fase estavam em sintonia com o estágio
em que o país vivia e com os assuntos pautados na sociedade. Sobretudo os temas
relacionados à pobreza e à violência urbana começaram a serem expostos de forma
bastante objetiva, revelando os problemas de forma crua e constituindo uma espécie
de romance-reportagem [grifo do autor], nas palavras de Schollhammer (2011, p.
22

25). Figuras marginalizadas como os bêbados, mendigos, prostitutas, meninos de


rua, presidiários, traficantes, afloraram como protagonistas de diversas narrativas já
que eram personagens evidentes no enredo da vida real. Além do mais, em razão
da própria abertura democrática e exercício da mesma, esses personagens
passaram a não mais serem objetos da escrita de outrem mas, começaram a
desempenhar esta função que de fato era deles, eliminando “mediadores na
construção de narrativas e fazendo-se donos de suas próprias vozes”, como
apontou Resende (2008, p. 30).
Com o decorrer dos anos, os escritores deram início à busca por efeitos
estéticos mais elaborados no intuito de forjar textos que fossem capazes de exprimir
com maior diferenciação e usufruto as possibilidades de linguagem. Dessa forma,
textos híbridos contendo poesia e prosa, formas literárias e não literárias e outras
expressões, começaram a surgir de forma recorrente entre os autores e são
atributos que conferimos de forma abundante em Eles eram muitos cavalos.
Outro ponto que deve ser ressaltado como um viés da literatura produzida nas
últimas décadas e, agora, dando destaque aos novos escritores que se
manifestaram na primeira década do século XXI, diz respeito ao que Resende
(2008) chamou de presentificação. A pesquisadora destaca a urgência dos
escritores em se fazerem ouvidos, a ânsia de que suas mensagens ecoem e surtam
efeitos. Os produtores da arte literária parecem não conseguir “imaginar o futuro ou
reavaliar o passado antes de darem conta, minimamente, da compreensão deste
presente que surge impositivo, carregado ao mesmo tempo de seduções e
ameaças, todas imediatas” (Resende, p. 28). Não é à toa que hoje encontramos
livros de contos curtos, histórias sem término, livros inteiros com mensagens que
utilizam pouco até mesmo as palavras ou narrativas para serem consumidas em
breves minutos. Como exemplo, fazemos referência a escritores como Marcelino
Freire, podendo destacar um de seus livros Balé Ralé (2003), no qual cada capítulo
é chamado de “improviso” pelo autor, sendo o livro constituído por “18 improvisos”.
Também o escritor Sérgio Sant’Anna é conhecido por suas experimentações
literárias, além do escritor Bernardo Carvalho.
Além disso, tem se multiplicado o uso de suportes digitais como os blogues,
que eliminam a edição feita por terceiros e dão uma visibilidade considerável ao
autor e mais rapidez na veiculação dos textos, o que não diminui o valor final do
trabalho. Afinal, a qualidade dos escritores contemporâneos é mais do que
23

comprovada independentemente de onde seus escritos são produzidos, expostos,


editados (muitas vezes por eles mesmos) ou veiculados, como afirmou Resende
(2008, p. 30) ao tecer comentários que dizem respeito à alta qualidade das
produções contemporâneas. Portanto, é válido ressaltar que toda essa urgência não
se trata de um alvoroço vazio. A intenção deles é serem certeiros na mensagem que
se pretendem transmitir, pois há nessa geração um compromisso com a sua própria
realidade. Assim, Resende (2008) ratifica que:

Há, na maioria dos textos, a manifestação de uma urgência, de


uma presentificação radical, preocupação obsessiva com o
presente que contrasta com um momento anterior, de
valorização da história e do passado, quer pela força com que
vigeu o romance histórico, quer por manifestações de ufanismo
em relação a momentos de construção da identidade nacional.
(p. 27)

É justamente por essa necessidade de entender o hoje, captá-lo, traduzi-lo, e


narrá-lo que esses escritores são chamados de contemporâneos. Eles têm a
capacidade de enxergar o tempo presente de uma forma mais intensificada e
sensível se comparados com as pessoas ao seu redor. Sentem-se “inadequados” ao
seu próprio tempo, afinal, conseguem produzir obras atemporais. Como exemplo
bastante cabível está Luiz Ruffato que traz à tona em Eles eram muitos cavalos
questões também atemporais, tanto na abordagem dos assuntos externos e visíveis
em cada esquina da cidade como a violência (apresentada de várias formas), a
corrupção e as condições sub-humanas de vida; quanto nos temas que permeiam as
mentes e o comportamento das pessoas do século XXI, como a depressão ou o
isolamento e tantos outros efeitos psicológicos negativos causados pelas
circunstâncias da vida urbana. A escrita destes temas, expressas especialmente no
objeto de estudo deste trabalho tem a capacidade de motivar reflexões não só para
o presente mas promoverá discussões independente da época em que foi escrito.
Citando o filósofo Giorgio Agambem (2009, p. 59) em seu ensaio O que é o
contemporâneo?, entendemos que “aqueles que coincidem muito plenamente com a
época, que em todos os aspectos a esta aderem perfeitamente, não são
contemporâneos porque, exatamente por isso, não conseguem vê-la, não podem
manter fixo o olhar sobre ela”. Essa fala ajuda a explicar melhor o sentido de
atemporalidade nas criações dos escritores. De acordo com o raciocínio criado por
24

Agamben, eles não estão presos apenas ao seu próprio tempo e por esse motivo
conseguem compreendê-lo melhor. Considerando essa lógica, Ruffato se enquadra
no que compreendemos como contemporâneo, uma vez que assimilou a escuridão
do seu tempo, ou seja, a escuridão notada por quem tem a sensibilidade de
apreendê-la apesar de toda a clareza e luminosidade do presente no qual ele está
inserido (entenda-se essa metáfora como aquilo que não precisa ser tão explicado
para o entendimento do tempo presente, aquilo que está assumido e que todos
veem).
Oposto a isso está a escuridão que se demonstra precisamente naquilo que
não está exposto, nem explícito mas que os sensíveis poetas conseguem ver. Uma
vez que, como ratifica Agambem (2009, p. 64): “contemporâneo é aquele que recebe
em pleno rosto o facho de trevas que provém do seu tempo”. E é justamente toda
essa escuridão que notamos no livro em estudo nesta pesquisa, uma obra que, à
primeira vista, pode ser considerada como pessimista porque expõe de forma muito
pontual a escuridão da situação urbana contemporânea e toma isso como uma
questão de compromisso assumido pelo autor.
Levando em consideração esse último ponto sobre o compromisso do
romancista perante o seu tempo, Ruffato afirma o seguinte, ainda na mesma
entrevista concedida a Heloísa Buarque de Hollanda (2006):

Não quero esquecer que nasci num país chamado Brasil, que
escrevo português e que vivo numa sociedade extremamente
injusta. Tenho um compromisso com a minha época [...]. Isso
pode parecer um discurso ultrapassado, piegas, mas não tenho
como não assumir isso. Evidentemente sei que estou andando
contra a corrente.

Com isso, Ruffato deixa claro o seu posicionamento como escritor que vive
num país cuja necessidade de se fazer ouvido é urgente e ele como intelectual
trabalha na intenção de que sua escrita suscite reflexões sobre do presente corredio,
angustiante e permeado de dramáticas contradições.
Logo, essa literatura tem o intuito de deixar de lado os padrões consumados
para tentar experimentar por meio de outras linguagens e outras formas de se
fazerem entendidos o tempo presente, as novas relações interpessoais, os novos
interesses, os tempos que hoje são líquidos, conforme o termo que Zygmunt
Bauman utiliza, os dramas vividos, as vozes que, se antes eram silenciadas, hoje se
25

projetam para construir seus próprios protagonistas. Luiz Ruffato reflete estes
aspectos que explanamos acima com particularidades que auxiliam a compreensão
acerca do processo de criação de Eles eram muitos cavalos. Ruffato que teve seu
primeiro livro de destaque na virada do milênio engloba em si a presentificação, o
compromisso social na escrita, a literatura urbana, a fragmentação, a escrita veloz, a
narrativa curta. De fato, estas características textuais e o seu projeto de escrita
social o definem como destacado representante da literatura contemporânea.
26

1.3 O TEXTO INDISCIPLINADO

Voltemos nossa atenção para o processo de criação do livro. Notamos que não
se trata de um estilo consagrado de narrativa estruturada num só enredo onde
personagens se desenvolvem no decorrer da trama, numa história dividida entre
início, clímax e resolução. Como narrar a Pauliceia numa história arranjada à
maneira tradicional utilizando-se de apenas de um enredo, um cenário, uma
verdade, um tempo, um perfil, um ponto de vista? A criatividade da arte literária de
alguma forma poderia tornar isso possível, mas o autor preferiu dispor seu romance
em cenas ou, como diz Canclini (1999, p. 156), referindo-se à cidade
contemporânea, em uma “montagem efervescente de imagens descontínuas”,
deixando evidente a dinâmica dessa metrópole que possui a configuração plural,
movido por um contínuo processo de fragmentação espacial e social. Se o autor
compusesse seu texto como uma ficção habitual, poderia talvez representar alguns
perfis da cidade e certamente traria à tona a discussão da sua diversidade. Com
certeza o impacto seria menor.
Contudo, Ruffato argumenta que seu desejo não era escrever um romance nos
moldes costumeiros e que gostaria de narrar o tempo fugaz, descentrado, sem foco,
sem um delineamento preciso que vivemos hoje, dispondo a linguagem ao seu uso
prático, elaborando com isso um estilo próprio de escrita. Dessa forma o próprio
autor justifica o modo de elaboração de seu trabalho. Ruffato (2005) destaca que:

Minha opção pelo fragmentário foi uma provocação mesmo.


Quando eu publiquei o Eles eram muitos cavalos, muitos
críticos torceram o nariz e disseram “mas isto não é um
romance”. Também acho que não é. Mas o que é? Não é um
livro de contos. Quero colocar em xeque essas estruturas. Não
quero fazer uma reflexão só sobre a realidade política, mas
também questionar por meio do conteúdo a forma.

Assim, o escritor explicita o quanto a relação entre as duas partes envolvidas


na construção do texto está atrelada e seus efeitos e funções se confundem entre si.
Candido (2010, p. 21). diz que para entender esta relação é necessário “ter
consciência da relação arbitrária e deformante que o trabalho artístico estabelece
com a realidade, mesmo quando pretende observá-la e transpô-la rigorosamente,
pois a mimese é sempre uma forma de poiese”. Com essa afirmação é importante
que se reitere que o corpus desta pesquisa é uma produção literária e como
27

qualquer outra o autor conta, desenha, afigura, imprime o seu ponto de vista
individual não tendo compromisso em retratar a realidade externa, mas a utilizando
como inspiração.
Em se tratando da vida real e da escrita literária, ao ligá-los Ruffato comenta
sobre a dificuldade de exercer o ato narrativo que o poeta enfrenta nos dias atuais. A
opinião do autor é que não se pode narrar a cidade, o tempo presente ou qualquer
que seja o tema da narrativa de igual forma como se narrava em outros tempos,
afinal o tempo de hoje não se assemelha ao tempo de um século atrás. O número
de indivíduos na cidade aumentou, a tecnologia avançou, a globalização integrou, a
diversidade vem sendo incorporada e exposta na sociedade, ademais os desejos
humanos também foram se transformando concomitantemente.
Num discurso proferido na França em 2010, durante um evento sobre o
romance, Ruffato explana seus pontos de vista acerca de Eles eram muitos cavalos
e comenta o seguinte: “continuar pensando o romance como uma ação transcorrida
dentro de um espaço e num determinado tempo e que pretende ser o relato
autêntico de experiências individuais verdadeiras, passa a ser, no mínimo,
anacrônico”.
Isto posto, Luiz Ruffato se compreende como um escritor harmonizado com o
que conhecemos enquanto Novo Realismo, tendência literária que, de acordo com
Schollhammer (2008, p. 58) afirma que a realidade “não se apoia na verossimilhança
da descrição representativa, mas no efeito estético da leitura, que visa a envolver”.
Ou seja, o autor mergulha na realidade e quer contá-la, mas opta por uma
orientação de escrita que não se pretende presa ao real, o que é diferente da escola
literária Realismo que descreve com minúcia, a ponto de podermos visualizar a cena
narrada, como um quadro. Em Eles eram muitos cavalos, apesar de nos
identificarmos com o que ali está sendo contado e termos conhecimento de que
aqueles fatos são suscetíveis de ocorrer, o autor não desnuda a totalidade da cena.
Há muita suposição, uso de metáforas, drama exacerbado, supressões,
intensificação da representação das personagens. Há uma performance que dá
forma às personagens e histórias e que permite ser uma espécie de realidade
plenamente ficcional.
Dessa forma, o texto de Ruffato representa as muitas possibilidades de vida as
quais se apresentam em tempos, espaços e enredos absolutamente diferentes entre
si. O tempo para quem sobrevoa a cidade num helicóptero não é o mesmo para
28

quem depende do metrô e ônibus lotados todos os dias para chegar ao trabalho, em
casa, na escola, na universidade. O espaço de quem mora nas comunidades
construídas em lugares pouco planos, insalubres, em casas erguidas com materiais
frágeis e inflamáveis não é o mesmo de quem mora num bairro nobre em
condomínios luxuosos cercados por grades, câmeras, seguranças ou mesmo em
bairros mais modestos e populares. Os enredos de quem chega à capital, mas volta
para a sua terra natal sem ter logrado êxito ou de quem não volta, mas passa a ser
morador de rua vivendo de forma sub-humana e fazendo parte da estatística de todo
tipo de violência e até mesmo integrando a estatística dos mortos pelo frio paulista
nos meses de inverno; ou ainda os que também não voltam e vivem modestamente
a sua vida de trabalho diário, honesto entretanto com pouca rentabilidade, são
enredos diferentes dos que chegam à cidade e ascendem economicamente, mesmo
que se utilizem de meios ilícitos para isso.
Os personagens foram construídos pelo autor de forma a representar uma
população comum, são vidas traçadas de maneira a surtir uma identificação com o
leitor. Por isso, alguns personagens de Eles eram muitos cavalos não possuem
nome, outros o têm, mas de nenhum personagem é feita uma análise profunda a
ponto de levar o leitor a conhecê-lo profundamente, ou fazer uma análise de seu
modo de ser e intenções. São, em geral, figuras anônimas, trabalhadoras, simples,
humanamente defeituosas, sonhadoras, corruptas, saudosas, sofredoras,
magoadas, esperançosas, ambiciosas, que foram escolhidas para representar uma
verdade muito parecida com a de muitas pessoas que vivem de forma semelhante
na metrópole. São os anônimos que Ruffato trouxe à tona assim como os cavalos de
Cecília Meirelles. A forte presença do anonimato é expressa de modo que muitos
deles nem sequer são apresentados pelos seus nomes, mas são identificados por
características físicas ou de personalidade ou ainda caracterizados pelas ações que
praticam, comportamentos, situações. Vidas que se cruzam entre histórias sofridas,
pesadas, dramáticas, algumas poucas felizes, satisfeitas, outras lutando para não
terem suas expectativas vencidas, mas todas as circunstâncias envolvem os
personagens sendo eles donos ou reféns de seus caminhos, apesar de que muitos
gostariam que um direcionamento diferente transformasse o rumo de suas vidas.
A partir disso, vejamos a afirmação da estudiosa Dalcastagnè (2005, p. 14)
quando assevera que “reconhecer-se em uma representação artística, ou
reconhecer o outro dentro dela, faz parte de um processo de legitimação de
29

identidades, ainda que elas sejam múltiplas”. Percebemos, ao fazer associação


entre essa afirmativa e Eles eram muitos cavalos, que apesar de o cenário da
narrativa ser especificamente São Paulo, conseguimos nos identificar com as
histórias narradas no decorrer das páginas do livro e além disso somos capazes de
reconhecer vários grupos que são representados nos enredos de cada capítulo.
Desse modo, como alguém que sobrevoa a cidade e a vê compartimentada em
ambientes e situações diferentes, Ruffato monta o livro valendo-se de frações de
vida. Muitas dessas frações expressam dramaticidades desconcertantes, cenas com
as quais a existência humana se depara cotidianamente em certos contextos,
tendendo a se tornar frágil, mas sem dispor de outra opção além de encarar. Assim,
essa compartimentação que caracteriza a obra pode ser explicada na fala de Gomes
(1994, p. 33) ao afirmar que "os flashes sucedem-se velozes, quebrando a
linearidade lógica e a possibilidade de totalização da cidade. Privilegiam-se as
partes metonimicamente destacadas do todo [...]".
Dessa forma, em 130 páginas (na edição utilizada para este trabalho), Ruffato
narra a Pauliceia dividindo a obra em setenta capítulos, exposições de episódios,
onde personagens da vida comum se apresentam.
Tais características marcam o estilo e significação da obra e pode pôr em
dúvida a filiação do livro a um gênero literário específico, se formos levar conta os
moldes a que estamos habituados (ao se tratar de um romance). Mas assim é a
literatura contemporânea. Há a mistura de gêneros, e além disso os capítulos são
independentes podendo ser lidos aleatoriamente. A linguagem em muitos trechos
não está numa ordem direta. Contudo é importante ressaltar que o livro possui todos
os elementos que fazem dele um romance. Portanto, a discussão acerca do gênero
literário no qual o livro se enquadra torna-se dispensável. Deve-se sim, interpretá-lo
como uma das muitas vertentes da literatura contemporânea.
O romance tem uma estrutura que chama atenção desde as primeiras linhas, o
que causa um estranhamento ao leitor que não está habituado a este tipo de leitura.
À medida que a apreciação é feita e o leitor imerge no contexto, na proposta do
autor e nos recursos que ele utilizou, o entendimento é facilitado. A partir daí a
leitura torna-se fluida, ainda que os retalhos que compõem o livro muitas vezes não
permitam que seja uma fluidez completa, uma vez que em muitos instantes os
dramas ali narrados forçam uma releitura, outras vezes uma pausa ou reflexão.
30

Devido às estratégias de escrita, Eles eram muitos cavalos se insere na lista de


narrativas conhecidas como experimentais e se define como uma forma autêntica e
ousada que o escritor pode optar para a sua produção. Não é uma tendência
somente da literatura produzida desde os últimos quarenta ou cinquenta anos. De
acordo com Santos (2013), Machado de Assis e James Joyce são considerados
experimentais, por escreverem de forma bastante particular, surpreendendo o leitor.
Para exemplificar, mencionaremos Memórias Póstumas de Brás Cubas, publicado
em 1881 – já publicado em folhetins desde o ano anterior –, e Ulisses, em 1922.
No primeiro livro nos deparamos com um “defunto autor” assim como o
inusitado narrador Brás Cubas se rotulava, à medida em que contava a própria
história. Esse clássico possui uma organização não linear, a narrativa desenvolve os
acontecimentos da sua vida conforme sua lembrança; cada lembrança refere-se a
um capítulo, sendo eles interdependentes. A história do segundo livro se passa num
único dia (16 de junho de 1904) bem como Eles eram muitos cavalos, no qual todas
as histórias transcorrem em 9 de maio de 2000, e de acordo com Quirino (2007, p.
12), pesquisadora da obra, Ulisses é um dos romances mais inovadores do século
XX apesar de pertencer “à categoria dos clássicos menos lidos desde a sua
publicação”. Pressupomos a partir dessas informações que ambos os escritores
tenham sido lidos por Ruffato.
Decerto que a originalidade do livro vem do conhecimento amplo que seu autor
demonstra ter ao reunir tantos recursos e ser capaz de manifestar tantos
conhecimentos tanto da língua portuguesa quanto literários. Adiante, vamos
comentar alguns desses processos de escrita utilizados pelo romancista.
A cidade de São Paulo não é narrada somente sob um ponto de vista,
delineando somente uma representação da cidade. O romance compõe-se por
muitos focos narrativos. Cada capítulo se volta e é oriundo de um foco diferente. É
como se tudo estivesse imerso na escuridão e um facho de luz se acendesse a cada
capítulo apresentado. Vários tipos de narradores contam cada história e, em 1ª e 3ª
pessoas, se dividem em narradores personagens, observadores e oniscientes.
Ademais, observamos que não se trata apenas de como é feita a narração, mas por
quem ela é feita, quesito que faz toda a diferença, pois cada narrador está imerso
num contexto diferente.
Os espaços narrados são muito bem demarcados pelas menções que são
feitas aos bairros, ruas, nome de shopping, praças, como o Brás, Shopping Light,
31

praça da República, estrada de Itapecerica, loja Extra Mappin da praça Ramos de


Azevedo, interior do Rio de Janeiro, Paraíso, Jardim Irene, Avenida Francisco
Morato, Rio Pequeno, ponto final da linha 6086 (Jardim Varginha-Santo Amaro),
além das menções que ele faz aos espaços de onde alguns personagens vieram
como Garanhuns, Ponte Nova, Ubá, Nossa Senhora das Dores, como explica o
taxista, estradão Rio-Bahia BR-101, interior de Sergipe; demarcações espaciais que
conferem um tom mais realístico à vida dos personagens e acabam servindo como
aproximação entre eles e o leitor.
O autor se aproveita muito das incontáveis possibilidades de linguagem e
elabora a ficção marcando um estilo próprio que chamou a atenção de todos que
tiveram acesso ao romance. São fragmentos textuais forjados de forma híbrida e
que ainda são permeados de recursos de linguagem que enriqueceram o produto
final, marcando o diferencial da composição.
Em várias cenas, o autor faz uso de tipografias que diferem do restante do
texto, no intuito de conferir uma melhor exposição do gênero e, consequentemente,
da mensagem que se pretende transmitir. Logo, Ruffato está em conformidade com
Bakhtin (2014, p. 124) quando este afirma: “uma das formas mais importantes e
substanciais de introdução e organização do plurilinguismo no romance: os gêneros
intercalados”. Essas diversas maneiras de expressão dinamizam a leitura e Ruffato
ainda incrementa fazendo uso de fluxos de consciência, descontinuação de falas
dos personagens sendo essas interrompidas pelo próprio narrador ou por um
pensamento ou fala do protagonista ou de outro personagem, a não linearidade no
desenvolvimento de algumas narrativas, a não conclusão da fala do personagem ao
fim da história e ela própria inconclusa permanecendo sem resolução de forma
análoga à vida real.
Além disso, seu formato, favorece que o leitor escolha como a leitura pode ser
feita. Não há uma continuidade entre os setenta “flashes” – como Giovanni Ricciardi
chamou os capítulos do livro, em seu ensaio Pedras para um mosaico –, um
caminho que direcione para uma leitura a partir do início, seguindo para o ápice da
trama e, nas últimas páginas, o desfecho. Aliás, nem mesmo um desfecho existe.
Provavelmente o autor tenha deixado em aberto para que suscite nos leitores suas
próprias conclusões ou até mesmo seja uma maneira indireta de dizer que não
existem conclusões, respostas concretas para as perguntas que fazemos e para o
tempo no qual vivemos. Dessa forma, parafraseando Bakhtin (2014, p.124),
32

podemos afirmar que esses textos de composição do livro e a sua estrutura são
construções que lançam uma nova luz sobre questões de sintaxe e de estilística.
Finalmente, a partir de como vemos ser a estrutura do livro, concordamos com
Gomes (1994, p. 29), quando ele poeticamente expressa: "Ler/escrever a cidade é
tentar captá-la nessas dobras; é inventar a metáfora que se inscreve, é construir a
sua possível leitura. Cidade: linguagem dobrada, em busca de ordenação”.
Ao vislumbrar a cidade narrada à maneira de Luiz Ruffato é como se
estivéssemos assistindo a uma ação encenada num palco de teatro ou pela
televisão, num filme ou novela, na qual as imagens são interrompidas e passadas
para outras situações. Tudo que há em Eles eram muitos cavalos acontece
simultaneamente, em apenas um único dia, informação já mencionada aqui e em
diferentes pontos da cidade, com personagens que não se cruzam e que
aparentemente não possuem relação entre si. É possível enxergar essas cenas
como as de um vídeo, onde nele, pessoas comuns de uma cidade grande, agentes e
vítimas de um contexto social, são expostos, servindo como uma vitrine de algo
maior e de amostra para o que há de problemático na cidade.
Levando em conta as qualidades do texto, fica patente a necessidade de se
estudar sua escrita de forma mais ampla. Até aqui, a cada momento demos
enfoques diferentes para o romance. No entanto, queremos vincular as partes, de
maneira que fique explícita a pretensão bastante precisa por parte do autor que, no
processo da escrita, mesclou vários estilos, gêneros, expressões e recursos de
linguagem a fim de funcionarem como elementos capazes de transcender o sentido
direto que as palavras e os recursos gráficos próprios da linguagem escrita
possuem.
Aliás, falar de arte literária tendo seus dois membros primazes, conteúdo e
estilo, desintegrados é algo que já está ultrapassado. Até porque, há no conteúdo
uma gama de outros itens que não devem ser pensados como se fossem uma única
matéria. Segundo Antonio Candido (2010), antigamente, críticos literários prezavam
ora pelo estilo de escrita, forma, estrutura, vocabulário, rebuscamento linguístico, ora
pelo que continha o texto, sua temática, etc., e apreciavam ambos somente pela
perspectiva literária. Apesar disso, sabe-se que atualmente que para que haja um
entendimento integral há de se ter a sensibilidade de perceber o elo, a dependência
mútua entre as diversas partes que compõem o trabalho literário. Os sentidos são
33

intensificados, a escuridão revelada, a ironia desvelada, a partir da apreciação das


várias partes que constituem a produção.
Candido em Literatura e sociedade, ratifica a observação feita acima. Após
muitos pontos de vista e análises literárias realizadas isoladamente, notou-se que a
“organicidade” da obra deve ser levada em conta para que haja uma completa
compreensão no processo de leitura e estudo da mesma. Afinal, um livro não é
composto de apenas uma ou duas partes. Assim como o corpo humano depende de
vários órgãos para que tenha seu funcionamento perfeito, um trabalho literário é
composto de diversos componentes que o tornam coerentes e passíveis de
elucidação por parte de quem o lê. Assim, Candido (2010, p. 15) corrobora
afirmando que “tudo é tecido num conjunto, cada coisa vive e atua sobre a outra”.
Vimos anteriormente o quanto os escritores possuíam o desejo de simular a
conjunção na qual estavam imersos através da escrita. Por este motivo é comum ao
examinar uma criação literária, o pesquisador buscar informações do que acontecia
na ocasião em que foi escrita ou da época da narrativa, como explicou Candido
(2010, p. 16). Porém, existem muitos fatores, não somente os históricos ou
sociológicos, que vão se constituir como elementos capazes de formar pleno
significado na oportunidade de se estudar um romance.
É importante que, tomando como tema de estudo algum aspecto social, deva-
se perseguir o sentido simbólico desse tal ponto de vista, não o isolando, mas
abarcando outros possíveis sentidos, como o histórico ou psicológico. Claro que o
pesquisador sempre irá tender para um lado específico por pura preferência ou
aptidão, mas todos esses quesitos são parcelas estéticas de acordo com o que
Candido (2010, p. 25) informou. Existem muitas questões que são englobadas e que
envolvem a perspectiva sociológica como o fator psicológico, religioso, cultural,
econômico, histórico, linguístico e outras mais, as quais ajudam a formar o estético
que diversas vezes é explorado como se fosse algo isolado dos demais. Assim
sendo, Bakhtin faz essa correlação entre o componente artístico, estético e os outros
membros de qualquer composição de arte, no caso aqui, literário. Segundo Bakhtin
(2011):

O estilo artístico não trabalha com palavras, mas com


elementos do mundo e da vida; esse estilo pode ser definido
como um conjunto de procedimentos de informação e
acabamento do homem do seu mundo, e determina a relação
34

também com o material, a palavra, cuja natureza,


evidentemente, deve-se conhecer para compreender tal
relação. (p. 180)

Dessa forma, concluímos que os elementos de estruturação de uma obra estão


imbricados em relações interdependentes, as quais, em se tratando de literatura as
partes estão intimamente ligadas.
Em Eles eram muitos cavalos, encontramos diversas disciplinas que permeiam
o tema central e que tem como base a problemática do desenvolvimento urbano
descontrolado, tema que pode ser ilustrado pela frase de Hossne (2007, p. 19),
“império da urbe, derrocada da polis”, que explica bem o que se quer dizer com isso.
Um crescimento que não ocorreu para toda a população e é causa determinante
para os problemas existentes em tal contexto.
Para elucidar melhor essa informação, vamos nos concentrar no cerne deste
livro que é a questão da cidade e as pessoas que a constroem e que a destroem;
como consequência acabam se autodestruindo como seres humanos, destruindo as
próprias relações humanas e como elas se configuram. Esses problemas se
apresentam de diferentes formas, problemas sociais, problemas de identidade,
busca por equilíbrio representada por diversas formas de fé. A pobreza, o
desemprego, as várias violências, a sensação de deslocamento de muitos que nela
não se adequam, as expectativas frustradas de outros que para lá foram em busca
de um sonho de crescimento econômico; as vítimas da marginalização social; novas
tendências de relacionamento; as irregularidades políticas; questões psicológicas
que são consequências de todo esse imbróglio; a religiosidade representada a partir
de configurações diferentes, na qual muitos se apegam na esperança de alcançar
equilíbrio; entre muitas outras questões que envolvem a sociedade diariamente sob
a justificativa de um suposto desenvolvimento.
Assim, o romance de Luiz Ruffato é uma franca crítica social a uma cidade que
ultrapassou a fase fantasiosa e agora assiste a flagelada realidade na qual está
mergulhada. Falamos em cidade como personagem que se configura como um
palco, um imenso palco com muitos cenários bastante diferentes entre si, no qual
migalhas de humanidade, sonhos dissipados, frieza expressa nas escolhas e
atitudes contrárias a atitudes eticamente esperadas, vítimas de modelos sociais que
se pautam na injustiça, enfim, sobreviventes promovem um dramático espetáculo. É
um “mundo desencantado”, como nomeou Gomes (2007, p. 138).
35

Nos próximos capítulos, buscamos percorrer o caminho desses personagens,


procurando estudar suas ações e contextos de forma que consigamos entendê-los e
encontrar o elo existente entre eles.
36

2 A CIDADE É UM LABIRINTO

Este capítulo será iniciado expressando duas das perspectivas apresentadas


por São Paulo. O labirinto que rotula a cidade aqui é definido como algo confuso.
Uma cidade confusa a qual possui muitas maneiras de ser interpretada. Ora, uma
cidade que atrai, ora uma cidade que expulsa. Após isso, discorreremos sobre o fato
de que em Eles eram muitos cavalos as pessoas da cidade se encontram numa
condição onde o próprio sentido de humanidade está desgastado. Procuraremos
apresentar como essas situações são expressas no livro, desenvolvendo
argumentos sobre prováveis sentidos dessas problemáticas e buscando
interpretações das cenas que Ruffato expõe em sua obra, a fim de tecer análises
sobre essas atitudes controversas das pessoas em relação ao que seria esperado
por elas se a situação urbana não fosse tão caótica, já que essa realidade tem se
tornado uma justificativa para os ciclos de atitudes nocivas.

2.1 METRÓPOLE PARADOXAL: O PALCO DA ATRAÇÃO, FUSÃO E REPULSA

Concentrando-se no tema para o qual esta pesquisa se propõe, nos


indagamos: Por que Eles eram muitos cavalos chamou tanta atenção do público e
da crítica? A resposta está na originalidade do livro. É claro que Luiz Ruffato não foi
o primeiro a escrever um romance experimental. Todavia, o fato de o livro se passar
numa cidade como São Paulo, numa cidade que poderia se igualar a qualquer outra
metrópole, mas possui a característica singular de agregar pessoas de diferentes
lugares, não somente do Brasil, uma cidade que tem em sua identidade a marca do
trabalho, do desenvolvimento, do crescimento e do desmembramento em várias
faces, ideologias, tendências variadas, estilos de vida distintos e também possui o
lado sombrio, triste, desagregador, pobre, perdido e o autor não descrever toda essa
gama de possibilidade temática da forma convencional, mas optar por mostrar, de
maneira visível pelas páginas do livro, essa quebra e estilhaços urbanos, marca a
diferenciação do livro.
São Paulo, no imaginário brasileiro, significa – e em outras épocas já significou
bem mais – a cidade das oportunidades, a cidade onde há o sonho do
desenvolvimento pessoal, financeiro e profissional. É sabido que muitas cidades
agregam perfis diversos, mas em São Paulo essa característica é mais acentuada.
37

Imigrantes de diversas nacionalidades chegaram a São Paulo durante o século XIX


até meados do XX para servirem como mão de obra na produção cafeeira e
posteriormente nas indústrias. Foram italianos, portugueses, espanhóis, japoneses,
austríacos, alemães, romenos, lituanos, sírios, iugoslavos, polacos, somando por
volta de mais três milhões de imigrantes durante o período referido, a partir dos
dados expostos no Arquivo Público do Estado de São Paulo: Imigração em São
Paulo (2009).
Por conta disso, hoje há uma diversidade muito grande entre a multidão
paulistana, reunindo os descendentes desses trabalhadores oriundos dos referidos
países e também de brasileiros vindos de outros estados, principalmente de Minas
Gerais e de estados do Nordeste, reunindo com isso, hábitos, crenças, estilos dos
mais distintos possíveis, diversas culinárias, pluralidade nas artes, enfim, uma
miscelânea cultural.
Basta fazer um passeio de um dia na capital paulista que teremos a
oportunidade de observar rostos e traços peculiares de outros lugares do mundo,
entre os mais fáceis de identificar estão os orientais e as pessoas com cores de pele
de tons não tão comuns em outras regiões do país entre os brasileiros nativos,
sinalizando a presença maciça do imigrantes e seus descendentes (incluindo aqui,
imigrantes chegados ao Brasil na presente década); além de histórias de vida de
pessoas que não nasceram ali, mas que sozinhas foram para São Paulo, deixando
pais e filhos na tentativa de ascender financeiramente e, entre esses, alguns voltam
para a sua terra natal após anos, sem sucesso. Ou ainda pessoas que fazem parte
da primeira ou segunda geração de sua família nascida em solo paulistano/brasileiro
e que já não se identificam com as suas raízes. Em meio a todas essas
circunstâncias há a necessidade de se reinventar e se adaptar ao estilo do que é ser
paulistano, identidade indefinida, construída por todos que chegam ali para viver.
Ao decorrer das narrativas e dos capítulos do livro, encontramos a presença
das culturas regionais do Brasil e as culturas de outros países sendo expressas em
grandes e pequenos detalhes diários, integrados ao dia a dia da população de forma
plenamente incorporada aos seus costumes e comportamentos. São os efeitos da
globalização que se fazem presentes ao vermos, por exemplo, referências de
marcas de produtos que são consumidos pelos vários personagens, pertencentes à
todas as estratificações sociais.
38

A fim de exemplificar de maneira simples e clara, nos voltemos para o livro,


mais precisamente para o capítulo 68. Cardápio, no qual está apresentado o que
será servido no coquetel, na entrada, no prato principal e na sobremesa. Ao lermos
os itens do cardápio com calma, seremos capazes de notar o reflexo da hibridização
cultural contida na cidade de São Paulo. Esta é apenas uma simples representação
entre tantas outras bem mais complexas.
Com uma diversidade ampla de ingredientes que fazem parte das refeições
que serão servidas, várias nacionalidades e regiões do país são contempladas. A
começar pelo miniquiche, pelo damasco, nozes, originária de vários lugares do
mundo, queijo gruyère de origem suíça, pastelzinho chinês, torta de shitake e
alcaparras, originados do leste da Ásia e região mediterrânica, salmão, sopa de
alho-poró oriundo da França e ainda as endívias, trazidas de países da Europa, e
marzipã, de origem árabe. Encontramos ainda no cardápio as tropicais frutas coco,
de origem asiática, mas introduzida no Brasil desde a época da colonização
portuguesa e o maracujá, originário de toda a região tropical das Américas.
Além desse exemplo voltado para os alimentos, podemos encontrar outros
como veremos agora. No capítulo 4. A caminho, o ambicioso rapaz vindo do interior
de Minas, parafraseando o narrador, arranhava suas incertezas e certezas no
Citibank ao chegar a São Paulo e já ganhava dinheiro para o patrão na corretora.
Com sua ascensão, passou a ter um padrão de vida que o permitia fazer aquisições
de objetos de marcas importadas como o suíço relógio Rolex de ouro que ele põe
sob o tapete do carro, o perfume norte-americano Polo, a camisa da marca italiana
Giorgio Armani, os sapatos italianos, o anel comprado na Portobello Road, em
Londres. Já a moça que trabalha na loja do Brás, toma Coca-Cola Light, na sua hora
de folga em 39. Regime; e o McDonald’s da rua Henrique Schaumann, vende o Big
Mac preferido do desocupado personagem Brabeza, nome que dá título ao capítulo
que, à espreita pelas ruas, escolhe quem irá financiar seu lanche. Em 28. Negócio, o
pai de Nakamura teme em dizer ao filho como ganha o dinheiro que mantém seu
alto padrão de vida, sua Mercedes blindada e a escola do menino, a Graduate
School. Sente receio ao pensar na possibilidade de que seu filho descubra que esse
estilo de vida se baseia em contrabando de armas oriundas de diversos lugares do
mundo. Ruffato (2013, p. 55-56) destaca: “Pistolas Glock austríaca e Jericó
israelense, FM argentina, fuzis russos AK 47, austríacos Rugger 223, suíços Sig
Sauer rifles AR-15, M-16”.
39

Em se tratando da globalização pelo viés consumista, o romance está repleto


de outros exemplos que demonstram o modelo social no qual as cidades se
transformaram ao incorporarem várias nacionalidades nos seus costumes e
escolhas diárias, dando propulsão a uma cultura mista. Estão todos imersos nesse
modelo capitalista no qual comprar aquilo que lhes é apresentado como bom e útil,
confere status social e satisfação pessoal; e todas as classes econômicas querem
fazer parte desse sistema.
Com a perspectiva de uma capital próspera e a sua representação no
pensamento geral como a cidade múltipla onde qualquer um que chegue será bem
acolhido e terá chances para crescer, muitas consequências negativas foram
acarretadas, disparidades entre a população, gente perdida (nos vários sentidos da
palavra), diferenças gritantes nos estilos de vida e na organização dos espaços.
Para discorrer sobre isso, é inevitável que voltemos nossa atenção para todo o
regresso que faz parte da cidade, consequência do seu esforço pela prosperidade.
Temos conhecimento dos problemas que a maior cidade da América Latina
enfrenta desde o final do século XIX e vem aumentando a passos largos. Poluição
nos rios que permeiam os centros, transformados em esgotos a céu aberto; poluição
do ar por alta emissão de gás carbônico provocado por indústrias e grande
quantidade de veículos que trafegam e congestionam o trânsito; moradores de rua
entregues à própria sorte; bairros que cresceram sem planejamento; moradias
construídas em locais de risco as quais se arriscam ainda mais à medida em que a
família cresce e outros pavimentos vão sendo construídos acima; pessoas que não
tiveram acesso aos estudos e crescem tendo como sua realidade o ócio e o crime,
provocando a violência urbana que vitima dezenas de pessoas por dia; uso e
comercialização de drogas, a epidemia do crack, gerando um problema de saúde e
violência públicas; pessoas que chegaram a São Paulo com o intuito de crescer,
mas, tendo a sorte frustrada, se somam às estatísticas de desemprego.
Além de todos esses pontos acima relatados, há ainda os casos das enchentes
que assolam uma porção de cidadãos nos períodos de chuva, geralmente os que
constituem as camadas sociais mais baixas economicamente falando. São
adversidades as quais muita gente enfrenta todos os dias e que gera a sensação
contraditória frente ao projeto inicial de cidade próspera, ilusão que, ainda que não
para todos, direcionou muitos até lá.
40

Assim sendo, como comenta Ferrara (1988, p. 4), “a interação entre contexto e
uso urbanos transforma a cidade no palco de um espetáculo que se renova
continuamente”. Ainda que um espetáculo desagradável diante de tantas
ocorrências ruins as quais nos deparamos de maneira recorrente. Dessa forma, é
justificável o quanto a cidade serviu como temática para incontáveis produções
literárias desde a década de 1970.
Logo, pensando em todo o complexo estado atual do nosso tempo, sobretudo
na conjuntura urbana, Ruffato tenta ajuntar os estilhaços de uma cidade que
explodiu em seu próprio progresso. Assim como liricamente comunga Gomes (1994,
p. 64): "as asas do desejo de glória que, na falta de medida, conduziu a cidade à
catástrofe". Nesse sentido, o escritor nos coloca no centro da urbe e descreve,
explorando bastante os mecanismos da linguagem literária, suas percepções
relativas ao cotidiano urbano.

2.2 CICLOS DESTRUTIVOS NA CIDADE

Esta seção irá discorrer sobre situações de degradação humana e isolamento


pelos quais o romance se ocupa em narrar em muitos capítulos.
Essas atitudes se apresentam nas mais variadas configurações: de indiferença
frente ao outro ou em relação ao seu país, no caso, estamos falando de Brasil; a
condição de coisificação do indivíduo; a opção pela indiferença em momentos
cruciais quando o outro já lhe causou algum mal, fazendo com que o círculo
destrutivo nunca deixe de girar; o abandono; a solidão; a pobreza e exclusão social;
o desespero. São circunstâncias que expressam o desmoronamento ou relativização
da ética e dos valores da sociedade, além do descaso para com o outro, de
indivíduo para indivíduo e de políticas públicas para com a população em geral.
Ciclos destrutivos que transformam as relações interpessoais e individuais,
tornando-as transitórias, fluidas, passageiras; potenciais humanos embotados, não
desenvolvidos; a nova identidade do solitário na grande cidade. A consequência
desses comportamentos geram efeitos negativos que refletem na sociedade,
gerando uma condição de normalidade diante de tantos comportamentos danosos
individuais e coletivos. Como o próprio Ruffato (2013) disse, “a história do Brasil vem
sendo alicerçada quase que exclusivamente na negação explícita do outro por meio
da violência e da indiferença”. Iremos percorrer as páginas do romance, observando
41

as muitas cenas que representam o comentado acima, desenvolvendo tais assuntos


a partir de como está sendo exposto no romance.
Suponhamos que uma espécie de flâneur contemporâneo passeia pela cidade
representada por Ruffato e que seus olhos sejam os nossos olhos isto é,
observaremos junto a ele à medida que ele transita pelas ruas, esquinas, casas,
apartamentos de São Paulo. Ele percorre de maneira atenciosa várias regiões da
grande metrópole como as ruas movimentadas onde o comércio faz o centro ferver,
condomínios de classe média, lugares de extrema pobreza, quartos isolados com
enfermos morrendo lentamente, centro cirúrgicos... Nosso flâneur entra na
intimidade das casas das famílias e observa seus dramas diários, escuta as
conversas no interior do helicóptero que sobrevoa a cidade, passeia junto aos
personagens em seus carros os quais percorrem o trânsito desordenado da capital,
para nos contar o que ocorre nesses lugares.
Começaremos observando o abrigo onde vive uma família revelada a nós no
capítulo 9. Ratos. Essa cena nos sugere interpretação dúbia, já que todos ali
naquele espaço vivem de maneira parecida, em condições sub-humanas. Ratos e
baratas transitam nervosos por todo o barraco montado com placas de outdoor. O
estado daquelas pessoas é degradante a tal ponto que, enquanto dormem, são
roídos pelos bichos nocivos que transitam pela moradia. Se defrontar com essa
descrição narrada por alguém que observa de longe e conhece a vida daqueles
corpos ali deitados na umidade sombria e fétida, enquanto escuta o chiado das
respirações das crianças que dormem, os zunidos dos ratos, os choramingos de
fome, faz refletir o quão doente está o corpo da cidade, uma doença capaz de
corroer os membros desse corpo numa velocidade e profundidade suficientes para
atingi-lo por inteiro. Essa cena e as histórias atreladas a ela, relatadas à medida em
que a cena é desvelada, apenas conseguem representar a parcela da população
que vive as consequências da falta de planejamento de uma cidade que se
desenvolve velozmente, sob a ação do desejo selvagem pelo dinheiro, poder,
ascensão individual, empresarial, urbana. Crescimento vertical que, claramente não
atinge a todos, pelo contrário, milhões são atingidos pela fome, pela imundície, pela
total falta de perspectiva, pela inexistência de qualquer tipo de assistência e
esperança por uma vida menos indigna.
Situações como essa de abandono humano, acarretam outros problemas
sociais configurando uma verdadeira moléstia pública. Nessa rápida cena, pudemos
42

nos deparar com dois outros acontecimentos que geralmente em contextos


desestruturados são mais passíveis de ocorrer: o estupro e a prostituição infantil.
São situações de vulnerabilidade que geram outras fazendo com que o ciclo nunca
pare de girar.
Acima dessa penosa realidade, num helicóptero, acompanhamos uma outra
cena, a qual se nomeia com o título 16. assim: Pessoas de classe alta, sobrevoam a
cidade de São Paulo no conforto e privilégio de um helicóptero e vão observando-a à
medida que analisam e tecem críticas a respeito da capital. O texto não deixa claro
se o diálogo acontece entre um casal e mais uma pessoa, mas supomos que a
conversa seja entre três pessoas. O casal possui grande empresa tendo sócios em
Nova Iorque e provavelmente sede em São Paulo. Mas, aparentemente, não
residem em São Paulo ou no Brasil. Seus filhos – o do meio e o mais velho –,
envolvidos na administração, possuem a responsabilidade de direção na seção de
compras da empresa e assessoria aos sócios nova-iorquinos, enquanto a filha
caçula faz doutorado em arquitetura em Paris. Durante o passeio no transporte
aéreo, um deles recorda a galeria Vittorio Emmanuele, local onde estão reunidas as
lojas das mais caras grifes mundiais, localizada em Milão na Espanha, onde
visitaram. Nesse momento, fica evidente o saudosismo que experimentam ao
lembrar de um lugar que eles julgam superior àquele que sobrevoam naquele
momento, enquanto comentam frases como Ruffato (2013, p. 34): “(podre, o ar);
(podre, as águas); (podre, a cidade); (podre, esse país)”.
Durante a conversa, comparam São Paulo a Johannesburgo, maior núcleo
urbano da África do Sul, cidade com altos índices de violência. Aparentemente a
conhecem também. A conversa continua ao darem ênfase ao quanto a cidade está
mudada, Ruffato (2013, p. 34), “irreconhecível o centro da cidade hordas de camelôs
batedores de carteira homens-sanduíche cheiro de urina cheiro de óleo saturado
cheiro de” [sic], um caos urbano que ferve o centro paulistano.
A partir dessa visão vem à memória do personagem masculino, a lembrança de
ele ainda criança e de sua mãe usando salto alto, luvas e chapéu para passear pelo
Viaduto do Chá, construção histórica da cidade arquitetada no século XIX por onde
indivíduos da elite paulistana frequentavam, tendo acesso às lojas e aos programas
artísticos e culturais de São Paulo. Hoje todos circulam, pois muitos trabalham na
região, uma vez que há décadas passou a ser um lugar comum para transeuntes em
geral.
43

Percebemos, a partir dessa passagem, que os personagens desse fragmento


são pessoas que sempre fizeram parte da classe seleta dos paulistanos que
integram a alta sociedade. E também fazem parte daqueles que fazem crítica ao
país, à cidade e ao governo, demonstrando uma aversão ao seu país de origem e
até mesmo às pessoas que construíram a metrópole durante o século passado,
quando se referem aos imigrantes nordestinos e mineiros como “gente desenraizada
sem amor à cidade” (RUFFATO, 2013, p. 34), procurando manter distância da
mesma, afinal, até mesmo para percorrê-la optam por andar em helicóptero.
Analisando essas duas cenas, não precisamos de esforço algum para enxergar
a grande discrepância entre os dois núcleos representados em cada história
contada. Por um lado, pessoas que se multiplicam e vivem como animais nocivos
dentro de um barraco sujo, não sabem para que vieram ao mundo e não sabem para
onde irão. Sem perspectiva, apenas se somam à parcela dos esquecidos, invisíveis
das metrópoles. Aqueles que são atingidos por todas as mazelas que uma cidade
grande pode provocar e que, na ausência de outra possibilidade, alguns acabam por
fazerem escolhas que podem complicar ainda mais as suas vidas. São vítimas da
indiferença do governo e da sociedade.
Por outro lado, pessoas privilegiadas desde a tenra idade, aquelas cujas
recordações de infância são pautadas em experiências as quais pouquíssimas
pessoas têm possibilidade de viver e ainda hoje destinam-se a uma classe seleta,
desenvolvem suas vidas e pensamentos pautadas no distanciamento da realidade
do Brasil, sentem-se fora desse modelo brasileiro, não se identificam com os
conterrâneos, nem com a cultura do país, julgam-se muitas vezes superiores ao
considerar que suas rendas favorecem uma vida mais confortável no exterior e o
estilo de vida dos países da América do Norte e Europa, mais harmônico com seus
gostos e interesses. Observamos que esses não apenas fazem parte da elite, como
desprezam tudo e todos que não fazem parte desse círculo. Reproduzem um
comportamento elitista, prática muito comum entre os brasileiros das classes sociais
mais abastadas.
Há um sistema instituído que propulsiona esse modelo de organização social,
onde a distribuição de renda entre a população é feita de forma desuniforme,
visando os interesses políticos, financeiros e comerciais daqueles que detêm o
poder. Por isso afirmamos que no visível caos instaurado na cidade existe uma
ordem estabelecida há séculos e que se perpetua continuamente dividindo a
44

sociedade em categorias, que permanecem sendo preenchidas pelos mesmo tipo de


pessoas, profissionais e vítimas da falta de assistência, ao menos que os próprios
esforços pessoais possibilitem a ascensão social ou quando algum governante
passe a promover políticas públicas de amparo a essa significativa parcela da
população.
A seguir, vamos analisar alguns exemplos que ilustram outras faces de
indiferença frente ao outro, dessa vez especificando para a coisificação do ser
humano.
Na cena que tem como título 23. Chegasse o cliente observamos dois
trabalhadores “um vindo da ponte rasa ônibus-metrô-ônibus outro de osasco dois-
ônibus-trem-metrô” [sic] (RUFFATO, 2013, p. 45) para mais um dia de serviço como
limpadores de janelas de altos prédios, satisfeitos e orgulhosos por possuírem um
trabalho que os permite contemplar a vista lá do alto. Fazendo referência a Buster
Keaton, ator cômico que tem em sua história um caso de infância quando caiu de
uma escada sem fraturar absolutamente nada, o narrador observa-os brincarem de
imitarem um ao outro limpar o vidro, divertidamente, “busterkeatonianamente”
apoiados por cordas finas amarradas à madeira podre. E foi nessa disposição toda
em trabalhar que os dois sofreram um acidente e caíram “o rosto de um
esborrachado contra a guia a perna sobre as costas um malabarismo agora inútil”
(RUFFATO, 2013, p. 45).
Mas o que chama atenção dessa cena é justamente a inversão de valores. O
texto nos é apresentado com o título “chegasse o cliente”, que logo nos induz a
indagar: O que aconteceria se chegasse o cliente? A explicação vem logo em
seguida quando a história é narrada de trás para frente tentando fazer uma espécie
de cronologia de acordo com o momento do ocorrido e os acontecimentos
posteriores, sendo um deles, por exemplo, a chegada dos clientes ao restaurante.
Imagine se os clientes chegassem e encontrassem esses dois corpos caídos no
chão? A narrativa se inicia nos mostrando os faxineiros lavando a calçada onde os
trabalhadores caíram, tirando o vermelho do sangue que se espalhou em frente ao
restaurante, afinal, imagine se chegasse o cliente e se deparasse com aquela
sujeira?
Identificamos nesse episódio um caráter de coisificação do ser humano. O
discurso emitido por aqueles que manifestavam preocupação com a chegada dos
clientes transmite que o valor do ser humano está muito aquém em relação a
45

importância do rendimento de sua empresa, que não pode sofrer interferência


alguma, não consentindo o menor índice de prejuízo. Essa coisificação deve ser
levada em conta, pois é bastante relativa a relevância que se dá aos mesmos
acontecimentos ocorridos a pessoas diferentes. Não é raro vermos nos noticiários as
abordagens dadas a grupos distintos entre si, quando ambos foram vítimas de
violência. Empregam-se valores desiguais de acordo com o status que a pessoa
possui, o cargo que ela ocupa, o significado que ela tem na sociedade, e até mesmo
a aparência.
O contexto desse capítulo faz lembrar de uma conhecida canção composta por
Chico Buarque no ano de 1971, que se chama Construção. Luiz Ruffato se
posiciona de forma definida em seu projeto como escritor quando tece críticas e faz
denúncia social em suas obras, ele que conhece bem a realidade da classe operária
do Brasil. Chico Buarque, por sua vez, ainda mais famoso por suas letras repletas
de criticidade, revela nessa canção um trabalhador comum que cumpre seu
cotidiano banal e no momento em que sofre um acidente e vem a óbito, a frase que
enuncia o ocorrido é “morreu na contramão atrapalhando o público” e se repete três
vezes sendo o final da frase substituída por “atrapalhando o tráfego” e “atrapalhando
o sábado” (BUARQUE, 1971). O mesmo sentido de coisificação presente no capítulo
que estamos analisando, sofridos pela mesma classe operária brasileira. Notamos
que há uma preterição em relação ao ser humano, visando outros valores, outros
interesses. A seguir, iremos ver um outro viés da negação ao ser humano. Dessa
vez apresentado de uma forma diferente, no ato de hesitar em aproximar-se do
outro, hesitação em se aproximar de quem é desconhecido, como se devesse haver
uma necessária distância entre as pessoas. Esse parece ser o pensamento geral
que paira no pensamento e atitudes das pessoas atualmente.
Como sabemos, a indiferença frente ao outro se apresenta de maneiras
diferentes no decorrer das páginas do livro, assim como iremos visualizar agora no
capítulo intitulado 20. Nós poderíamos ter sido grandes amigos. Narrado em primeira
pessoa, essa pequena história trata de planos que jamais poderão ser
concretizados. Um morador de um condomínio imagina e cria em sua mente
histórias, devaneia fazendo planejamentos de uma ativa amizade entre ele, o vizinho
e suas respectivas famílias. Trocariam confidências, viajariam juntos, cozinhariam
juntos, eles dois, as suas esposas, os seus filhos, entrosados, felizes,
companheiros. Notemos que todo o texto está escrito no tempo verbal futuro do
46

pretérito designando, portanto, uma condição. A condição é que poderiam mesmo


ter sido grandes amigos caso o seu vizinho não tivesse sido vítima de um assalto
relâmpago e recebido um tiro na nuca que o levou a óbito. Tarde demais para uma
amizade.
O vizinho que imaginou tantas cenas, parece ter se arrependido de não ter
tentado uma amizade com ele. Afinal, moravam no mesmo prédio e o narrador já
havia cruzado algumas vezes com seu vizinho no elevador e na piscina, mas não
proporcionaram-se possibilidades de diálogo que dessem propulsão a uma possível
amizade surgir a partir dali. Era algo natural não se falarem, não se aproximarem.
A opção pela distância faz parte do comportamento humano entre as pessoas,
principalmente nas cidades maiores, assim como enunciou Richard Sennett (citado
por Zygmunt Bauman em Modernidade Líquida), no momento em que declarou que
a cidade é o local onde os estranhos têm a possibilidade de se encontrar. Bauman
corrobora essa afirmação e a explica dizendo que, sim, os estranhos encontram-se
na rua, possuem essa oportunidade, contudo, o que ocorre na verdade é que se
encontram e se comportam como estranhos. Ele diz o seguinte: “O encontro de
estranhos é um evento sem passado. Frequentemente também é um encontro sem
futuro (o esperado é que não tenha futuro), uma história para não ser continuada”
(BAUMAN, 2001, p. 111).
Estamos acostumados a ouvir pessoas mais velhas que residem em pequenas
cidades, afirmarem o quanto as pessoas ali se conhecem e vivem como se fosse
uma comunidade, na qual todos se cumprimentam, se entreolham, se reconhecem.
Segundo observações de Giddens em As consequências da modernidade, na era
pré-moderna o sentido de estranho se definia na figura de estrangeiros quando
esses passavam a residir naquela comunidade onde todos se conheciam e
mantinham confiança mútua. Ainda que passassem anos, aquele estrangeiro
continuaria sendo tratado como um estranho, pois a sensação que a comunidade
sentia é de não ter conhecimento sobre qual intenção de ele estar vivendo ali. Hoje
essa concepção se transformou e passou a se configurar como todas aquelas
pessoas com as quais não se possui vínculo algum nos espaços frequentados por
eles. E como a realidade na cidade grande é completamente diferente desses
pequenos núcleos, sobretudo na contemporaneidade, sabemos que cada sujeito
pode ser de um lugar diferente do mundo.
47

Há outro pensamento nesse sentido, tecido dessa vez por Gomes, o qual
explica essas afirmações acima. Ele diz que: “como defesa contra as complexidades
da vida urbana, os homens tentam reagir de modo racionalizado [...]” (1994, p. 69).
As pessoas agem de maneira programada mesmo sendo de forma inconsciente,
comportando-se como estranhos e não se relacionando entre si. Gomes continua
dizendo: “a metrópole é examinada como lugar de coletividades indefinidas, que
pode gerar total indiferença de cada indivíduo para com o outro, na vida cotidiana,
como traço de autopreservação” [grifo do autor] (p. 70).
Ou seja, o que parece é que há uma opção pelo isolamento, pela distância,
pela indiferença com o outro, provavelmente o raciocínio que existe é que, no
contexto da vida moderna, é melhor se prevenir em relação a quem não se conhece.
A distância entre a multidão urbana é sentida também pelos que se isolam em
seus ambientes de trabalho e enxergam no decorrer do cotidiano apenas uma
pequena fração do que é São Paulo. O nosso flâneur contemporâneo adentra o
escritório e observa o rapaz tamborilar seus dedos magros no teclado. Vemos em
ele), no capítulo vinte e um, um nordestino do Piauí – cuja sigla ele considera como
um borrão no RG –, que trabalha com tabelas e gráficos e não ganha muito, pelo
contrário, almoça sanduíche e, enquanto come, lembra-se dos compromissos que
possui como o curso de inglês e o aparelho dos dentes, além dos presentinhos
prometidos à mãe e à irmã. São responsabilidades que não o permite realizar o
desejo de demitir-se desse trabalho que nem ao menos possibilita que ele veja o
que acontece em São Paulo, na São Paulo de lá de fora, longe desse ambiente frio
e exato dos computadores.
No texto dessa cena estão dispostas perguntas soltas que parecem passar
pelos pensamentos do rapaz ou podem estar sendo interpretadas por alguém que
conhece essa realidade e sabe que a pessoa não nota nem ao menos se o dia está
feio ou bonito, ou se isso é uma questão que já não tem mais importância diante do
estilo de vida que ele leva: “¿um motoboy se esparramou na faixa-de-pedestres?”,
“¿um executivo espancou um menino-de-rua com laptop?”, “¿um cobrador impediu
um assalto?”, “¿o mundo, o mundo acabou?” (RUFFATO, 2013, p.43). Ele trabalha
metodicamente, ganha mal e não pode se demitir do emprego numa cidade onde é
tão difícil arrumar um. Vive exatamente igual a milhares de outros. Não sabemos se
tem formação, mas supomos que almeje algo melhor, já que faz curso de inglês.
48

Nessa vida onde há muitos vivendo de forma semelhante ou até mesmo de


forma mais acelerada, empenhados, interessados quanto aos seus possíveis
ganhos futuros, Luciano, que entra em cena no capítulo 35.Tudo acaba, parece
estar mergulhado em pensamentos confusos que questionam o sentido de tantos
anseios já que tudo nessa vida um dia acaba.
Luciano vive momentos de reflexão num quarto que em breve precisará de
revitalização, ajustes, consertos e é a partir daí que vem a sua mente a percepção
de que tudo definha aos poucos até não sobrar nada, ao menos que haja uma
intervenção externa para que isso não ocorra. Luciano sente e pensa sobre a
fragilidade da vida que pode se acabar num instante, num átimo, numa reação
impensada diante de um assalto, num atropelo, num susto, num tiro. E depois?
Quem se importará? Que importância terá aquela vida que se foi, a vida continuará,
mas se destruirá lentamente e sempre e tudo se acabará.
Em se tratando da fragilidade e medo diante de instantes cruciais que podem
acometer a todos nós, nos é apresentado Fernando, um médico que está de
plantão, se encontra descansando em um quarto precário de um hospital público,
quando rapidamente é avisado para uma emergência. Esse é o capítulo 52. De
branco, título que já procura dar destaque para a profissão do protagonista da
história narrada. O caso gira em torno da escolha do médico Fernando que, ao
receber a notícia de uma emergência, se prepara para os procedimentos: “labirintou-
se por entre pacientes e acompanhantes que congestionavam os corredores. [...]
vestiu a máscara e gorro, desinfetou as mãos, abraçou o avental, calçou luvas
cirúrgicas [...]” (RUFFATO, 2013, p. 95), mas de repente, após alguns instantes e
diálogos com o residente anestesista e a instrumentadora, ao olhar para o paciente,
se depara com o fato de que ele, a vítima que esperava sua intervenção cirúrgica,
era justamente um dos assaltantes que provocou momentos de terror em sua casa
tempos atrás, colocando uma arma na cabeça de sua filha. Nesse momento,
Fernando diz ao anestesista:

Tarcísio, pode suspender a anestesia... Não vale a pena... [...]


E eu não vou salvar ele não, cara, não vou mesmo! Não vou
mexer uma palha pra salvar ele... Ele quase fodeu a minha
vida, cara, quase fodeu... Eu não vou operar ele não, estão me
ouvindo? Não vou operar ele não! Se vocês quiserem, chamem
outro, me denunciem pro CRM, façam o que vocês quiserem,
49

não estou nem aí, eu não estou nem aí, estão me


entendendo?, nem aí! (p. 95).

O ocorrido nessa história fere os preceitos estabelecidos pela constituição,


afinal qualquer paciente que precise de socorro imediato, tem direitos civis que lhe
dão plenas garantias de que será atendido, independente de quem seja. Nesse
caso, o médico parece ter deixado de lado o juramento proferido no momento de sua
escolha e formação profissional, abrindo mão do comprometimento pela ética que
lhe é exigida. Todavia, trata-se de uma questão difícil de ser julgada, afinal, aquela
mesma pessoa já havia causado mal a ele e à sua família, ocorrência que poderia
ter terminado em algo mais grave, como algum membro de sua casa morto, o que
não ocorreu. Mas o médico poderia optar por exercer sua função, escolhendo salvar
a vida do homem, e denunciá-lo por ter sido sua vítima tempos atrás, exigindo a sua
prisão, por exemplo.
Enfim, o que chama nossa atenção para o que está ocorrendo, são as
situações como essa, responsáveis por fazerem com que o mal nunca tenha um fim.
Milhares de pessoas espalhadas pelos grandes centros urbanos se sentem
vitimizadas por esse sistema e, por isso, causam mal a outras pessoas a fim de se
sentirem compensadas. Por circunstâncias como essa existirem, o médico e sua
família sofreram o mal que um desses injustiçados causou e Fernando, por sua vez,
fez esse ciclo destrutivo girar novamente, negando intervenção médica àquele
meliante. É um caso que poderia se concluir em apenas um argumento, pois o bom
senso e a ética diria que o médico, independente de quem seja o paciente, policial,
traficante, assassino ou algum cidadão qualquer, deve intervir para salvar sua vida,
em contrapartida, não é o que acontece. O médico tem consciência de que não agiu
como deveria, não obstante, outra pessoa agiria de forma diferente? Ficamos sem
uma resposta para esse caso, talvez não estejamos tentando encontrar uma.
Possivelmente, podemos dizer que cada pessoa agiria de uma forma diferente,
tendo equilíbrio ou não em relação às suas atitudes. Jamais alguém diria que a
atitude do médico foi correta, além de sabermos que o mundo urge por atitudes
diferentes, no entanto, qualquer pessoa que tenha sido vítima de uma violência
dentro se sua casa, com a sua família em risco, sentiria o desejo de que o malfeitor
não permanecesse sem sofrer consequência alguma. Apesar disso, lembremos que
o ciclo destrutivo não se inicia no assalto à casa do médico, podemos considerar
todos os envolvidos como vítimas de algum sistema que não funciona como deveria.
50

Após observar essa cena que causa tanto desconforto, o flâneur a abandona
para adentrar em outra, dessa vez no estádio Pacaembu entre a multidão que ocupa
a arquibancada no jogo de futebol entre Corinthians e Rosário Central pela
Libertadores da América, disputa que realmente ocorreu nessa data e que Ruffato
trouxe para as páginas do romance. O autor intitulou esse fragmento como 56. Slow
motion. Vamos observar que, apesar de no fragmento anterior a vida de ambas as
partes esteve e está em jogo, esse vem para corroborar sobre o recorrente ciclo de
violência que foi comentado antes, ciclo que possui configurações diferentes e níveis
de violências dos mais variados graus.
Ruffato escreve a cena para ser lida a partir de duas perspectivas, duas visões
diferentes, as quais imaginamos em slow motion (câmera lenta) possibilitando um
entendimento mais amplo às mesmas: No primeiro trecho da cena, um narrador que
está apenas observando, descreve o arremesso de uma lata semivazia que voa
acima de incontáveis cabeças e atinge a de Marlon, o dono de uma borracharia que
havia sido assaltada dias antes. No segundo trecho, o narrador onisciente vê que
Pecê acompanha o arremesso da lata, a qual sobrevoa próximo a ele e cai na
cabeça de um sujeito (Marlon) que, por sua vez, vira a cabeça imediatamente para
ver quem foi o culpado, mirando justamente em Pecê que não foi o autor da ação.
Como Pecê percebe o olhar de Marlon, se retrai automaticamente, mas ao vê-lo,
Marlon reconhece nele o autor do assalto à sua borracharia e se junta com seus
companheiros para, ao final do jogo, torturá-lo em algum lugar mais distante.
Mas o que nos interessa mesmo nessa história é ver que ciclo destrutivo está
girando mais uma vez, o que nos faz pensar que se tornou algo recorrente entre
muitas pessoas não terem uma atitude diferente diante de algum mal que lhe
fizeram. Sentem-se no direito de que o mal continue, fazendo com que as relações
entre as pessoas de uma sociedade tornem-se perigosas, afinal, num ciclo que
nunca deixa de girar qualquer pessoa pode ser atingida. A parcela da população que
nasce e cresce num ambiente hostil, onde o crime se mostra como única alternativa,
já se sente injustiçada por estar à margem da sociedade que possui condições de
ter uma vida diferente da realidade precária a que ela está habituada. Muitos fazem
uso da violência afirmando não possuírem as mesmas oportunidades que as outras
camadas da sociedades, que por sua vez, também se sentem injustiçados pelo mal
que os primeiros fazem e optam por fazer justiça quando encontram oportunidade.
51

Num ambiente silencioso, onde não há médico negando ajuda ao paciente,


nem fazendo tortura a alguém que lhe assaltou dias antes, o mal que fazem à amiga
de Idalina se mostra de forma também silenciosa. Não há quem aja com
solidariedade à amiga de Idalina, um destino infeliz de alguém que, na sua infância,
sonhava em ser médica “para ajudar os semelhantes” (RUFFATO, 2013, p. 68). Que
irônico destino.
No capítulo 37. Festa, a protagonista não tem nome e representa o rosto do
abandono de muitos espalhados pela enorme São Paulo. A amiga de infância de
Idalina não teve sorte na vida. Seus semelhantes não se preocupavam em ajudá-la,
ao contrário, Idalina os procurou sem obter êxito e todos optaram dar as costas para
aquela infeliz mulher que definhava na cama, imersa pela atmosfera doentia. Idalina
era o único afeto que lhe restava.
A amiga de Idalina afigura a existência de muitos desamparados que se
escondem nos incontáveis cômodos cheirando a doença, como qualificou o narrador
de Festa, como o ocupado pela amiga de Idalina. Quartos cujos ares estão
impregnados com solidão e tristeza.
Essa questão de que o indivíduo está doente e longe da família, vivendo
sozinho num quarto, sem amparo, acomete também entre pessoas que vivem junto
aos seus familiares, na mesma casa. Há um capítulo que revela ares de
insensibilidade e desprezo, uma situação onde os membros de uma família parecem
agir como se dissessem “tanto faz”.
Na cena 33. A vida antes da morte, o idoso isola-se na solidão da velhice. Por
vezes apanha do filho caçula, usuário de entorpecentes. A vizinha ao lado, observa
o movimento da casa e nos conta como ele passa seus dias, sem ter com o que se
ocupar, sentindo-se muitas vezes como um estorvo, sentimento que é aliviado
quando repassa para a filha o salário mínimo que recebe da previdência social. Não
parece haver diálogos entre eles.
Numa cidade onde todos questionam a ausência do amor, sentimento que
parece não fazer parte do cotidiano das pessoas, aliás, parece estranho falar desse
sentimento num contexto como esse, soa como algo paradoxal, soa como um
discurso proferido à toa, ou como uma grande bobagem, afinal, ninguém tem tempo
para falar sobre amor numa cidade onde todos parecem estar correndo contra o
tempo, preocupados com assuntos seríssimos como suas novas aquisições
materiais, projetos pessoais e ascensão financeira. Quantos apartamentos
52

espalhados por toda a cidade absorvem em suas paredes a solidão das ruas, a
solidão que aparentemente faz parte apenas da vida de pessoas que não têm afetos
nem família ou que moram nas calçadas, mas que na verdade está muito presente
nas casas, no seio familiar, onde supõe-se que há proteção contra o gelo, a
indiferença, a falta de empatia, frequente nos relacionamentos interpessoais da
contemporaneidade. É preciso todos os dias refletir quanto a prática individual
daqueles sentimentos e ações que estão faltando no cotidiano da cidade como um
todo.
Abandonada também está Aquela mulher, do capítulo trinta e quatro que “se
arrasta espantalha por ruavenidas do morumbi” (RUFFATO, 2013, p. 62) após sua
filha ter desaparecido sem explicação. Um drama muito bem representado o qual
mostra uma mulher que passa a estar sozinha no mundo, se arrastando pelas ruas
entregue a um desespero que beira a loucura, atrapalhada, em pânico constante,
“febril irritada chorosa perguntas variantes insensas” [sic] (RUFFATO, 2013 p. 62).
Quantas vezes por dia isso acontece principalmente nas metrópoles? Sobretudo
crianças e jovens que desaparecem, muitas vezes sendo vítimas de estupro seguido
de morte ou qualquer outro tipo violência brutal em que não se chega a nenhuma
conclusão. Assistimos nos telejornais diariamente crimes cometidos inclusive por
policiais que ceifam vidas, sobretudo, quando se trata da população pobre. Tira-se
assim o sentido da vida dos familiares que ficam sem entender o que ocorreu
gerando uma angústia eterna devido ao suspense causado. Por se tratar de pessoas
da classe baixa como no caso da personagem aqui representada, cuja moradia é um
barraco, é comum que a polícia não empregue esforços para investigar por falta de
interesse e até mesmo por se tratarem de crimes recorrentes. Tanto que o narrador
nos conta que ela se humilhou em delegacias não alcançando retorno por seus
esforços para encontrar a filha.
Diante dessas histórias comentadas acima o flâneur aproveita o silêncio da
madrugada representada pelas páginas 127 e 128, duas páginas em preto, e
caminha exausto refletindo a respeito de tudo o que viveu durante o dia. Quando
pensa que nada mais irá ocorrer, ouve gemidos, contudo, não consegue identificar
de onde vêm nem do que se trata. Para entender, cheguemos à última página do
livro e leiamos o último fragmento, não mais numerado, o qual nos mostra o diálogo
entre um casal. Esse diálogo torna-se um reflexão dentro do contexto que estamos
comentando aqui. Um casal cujo paz noturna é interrompida ao escutarem gemidos
53

de alguém que parece estar próximo à porta de casa, talvez precisando de ajuda,
talvez ferido, talvez procurando refúgio ou se escondendo de algum malfeitor. Mas
qual a atitude deles? Vamos acompanhar um trecho do diálogo, Ruffato (2013):

“[...]
– Parou...
– O quê?
– Parece que parou...
– O quê?
– A gemeção...
(Pausa)
– É... Parou mesmo... Vamos lá agora?
– Não!
– Por quê?
– Porque... porque ainda pode ter alguém lá... E aí... Melhor
dormir... Vai... vira pro canto... vira pro canto e dorme...
Amanhã... amanhã a gente vê... Amanhã a gente fica
sabendo... Dorme... vai...}” (p. 129-130).

É claro que numa cidade permeada por estranhos, abrir sua casa durante a
madrugada para ver quem está à porta e o que pode estar acontecendo é um risco
que se assume. Quais seriam os devidos cuidados a serem tomados antes de abrir
a porta para que não fosse mais uma das ciladas da cidade grande? Nesse caso,
cada situação demandaria um tipo de atitude por parte do morador. Virar as costas e
dormir para “amanhã ficar sabendo”, como a opção escolhida pelo casal, ou abrir a
porta e correr o risco de sofrer mais um atentado desses que ocorrem nesse ciclo
destrutivo que vimos no decorrer do livro e vemos todos os dias pelas ruas das
nossas cidades e noticiários da televisão? Ou então assumir o risco e conseguir
ajudar um sujeito que talvez poderia estar esperando ser salvo por alguém e esse
alguém era você.
Enfim, nesse complexo mundo urbano, cada situação pede uma solução, uma
ação diferente dependendo de cada contexto. Não é muito fácil definir o que cada
um deve fazer, mesmo que na teoria seja assim que funcione. O importante é ter em
mente que deve haver ao menos um desprendimento por parte de cada pessoa para
que, em momento oportuno, atitudes simples façam diferença.
Apesar de todas essas circunstâncias relativas que utilizamos para as
interpretações cabíveis a esse trecho, esse capítulo deveria mesmo estar na última
página. Ruffato situou esse diálogo por último de modo que um efeito reflexivo
pudesse surgir acerca da ação de cada pessoa diante de todas as micro-histórias
54

narradas anteriormente. Todas as cenas que expuseram a deterioração, o


isolamento, a negação ao outro, o distanciamento, a coisificação, enfim, todos esses
fragmentos foram arrematados pelo último. O leitor que leu cada página, se
surpreendeu com cada cena e sentiu toda a lástima existente na cidade, terminou
sua leitura sendo flagrado pelo diálogo em que o casal, no aconchego da sua cama,
prefere dormir ao procurar saber o que ocorre com uma pessoa que aparentemente
está precisando de ajuda. É o mal da humanidade sendo exercido pela e contra a
humanidade.
Diante das cenas expostas e comentadas acima, fica evidenciado o teor do
romance Eles eram muitos cavalos, bastante voltado para a sociedade e para os
problemas decorrentes da falta de organização urbana, pela falta de interesse dos
governantes, pela falta de empatia ao próximo, pela opção em não intervir na vida
do outro. O narrador convida o leitor a acompanhar as cenas de um dia comum em
São Paulo mas, durante a leitura é interessante notarmos que se trata de um olhar
que se restringe apenas ao comprometimento de mostrar as situações, não há um
posicionamento por parte do narrador e nem são histórias em que contêm
interpretações contra ou a favor de grupos, situações ou postura dos personagens,
sejam eles vítimas ou culpados. A forma escolhida para conhecermos essas
histórias as deixam inacabadas e suas interpretações relativizadas, abertas ao leitor,
para que ele decida de acordo com a sua própria visão e experiência o sentido de
cada estilhaço em forma de capítulo. O narrador não se apropria dessa função. Ao
modo do narrador benjaminiano, ele “retira da experiência o que conta: sua própria
experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas à experiência
dos seus ouvintes” (BENJAMIN, 1987, p. 201).
Em contrapartida, apesar de o narrador apenas mostrar os fatos, não se revelar
como um cúmplice do que está contando e nem deixar suas impressões e análises à
mostra, conseguimos alcançar o significado da mensagem pretendida pelo autor,
pois ao lermos todos os capítulos e olharmos como um conjunto que está imerso
num mesmo contexto, o efeito provocado em nós são as reflexões, o olhar para o
social, para o espaço urbano, sua organização e suas mazelas e, além disso, para a
situação do indivíduo contemporâneo, suas ações, comportamentos, maneiras de se
relacionar e de dinamizar a metrópole. O texto de Ruffato extrapola as
interpretações dos mini textos ali apresentados naqueles sessenta e nove
fragmentos. Sem início e sem fim, vários recortes de várias vidas que não se
55

definem e não são profundamente expostas. Cabem ali continuações, explicações e


ilimitados desfechos.
Ainda se voltando para o texto de Walter Benjamin, ele explica que há muito
tempo as experiências têm deixado de ser comunicáveis, pois o valor delas vem
decrescendo, ou seja, as experiências têm se tornado pobres para que sejam
compartilhadas. Ele atribui esse fato às guerras visto que é um dos maiores
exemplos onde as estratégias pertinentes a esses ambientes hostis não são motivos
de orgulho nem são ricas experiências, dessas que os narradores tinham prazer em
contar para as outras pessoas. À essa perda de valor ele chamou de pobreza de
experiência. E em se tratando do declínio da narrativa, ele atribuiu à evolução da
informação e ao advento do romance. Todos esses fatores desencadearam a queda
da permuta de experiências e saberes.
Os narradores antigamente teciam suas narrativas de maneira funcional
expondo nos escritos ensinamentos, conselhos e informações diversas sobre
assuntos variados e, como explica o próprio Benjamin, essas narrativas podiam
estar repletas tanto com instruções práticas quanto com princípios morais e
assuntos afins. Na modernidade não mais encontramos isso. O texto de Ruffato nos
comprova tal realidade. O narrador que nos conta aquelas histórias, o faz
apresentando muitos anti-heróis como vimos nos trechos que analisamos
anteriormente. Anti-heróis como o Brabeza que, em vigilância, atrás de muretas no
comércio, observa os transeuntes e estuda a melhor vítima para custear o presente
de Dia das Mães da sua mãe, ou o médico, pai de família, que se nega a dar auxílio
ao bandido que chega na emergência, ou o outro pai de família que, não tem
coragem de dizer para o seu filho que ganha seu dinheiro contrabandeando armas.
Pessoas comuns que transgridem a ética mas, perante a complexidade do tema
aqui abordado, não conseguimos definir que é capaz de julgá-los. Se olharmos bem,
veremos que não há nada de surpreendente nas vidas dos personagens de Eles
eram muitos cavalos. Nada que já não seja conhecido por todas as pessoas que
vivem no meio urbano e que estejam habituados ao dia-a-dia, à insegurança e
solidão das grandes cidades.
56

3 OS INVISÍVEIS DE SÃO PAULO

O presente capítulo tem a pretensão de fazer análises acerca da vida dos


grupos minoritários que se fazem presentes na esfera urbana, sobretudo em
grandes cidades onde a diversidade se faz algo declarado aos olhos. Em Eles eram
muitos cavalos temos a oportunidade de nos encontrar com mulheres, negros, pardo
e indígena. Vivem como uma parcela desassistida e parecem invisíveis. Dessa
forma, iremos percorrer os capítulos que nos apresentam essas representações, no
intuito de compreendermos a dinâmica urbana envolvendo as figuras mencionadas.

3.1 AS ANÔNIMAS MULHERES DE SÃO PAULO

Introduziremos a partir de agora um olhar voltado para as mulheres da obra.


Fazendo uma leitura atenta aos vários personagens femininos notamos que existe
uma variedade em termos de situação social, faixa etária, perspectiva de vida,
profissão, fatores que as difere entre si se formos analisá-los por um viés prático.
Um fato que chama atenção é a posição que a maioria das mulheres se
encontra no decorrer das páginas do livro visto que, se refletirmos bem, há muito em
comum entre elas. Prevalece as personagens femininas que estão numa situação de
caminhada, um caminho que ainda está sendo trilhado, percorrido, vencendo as
adversidades dia após dia, dando ao leitor a impressão de que há muito esforço
individual disposto por essas mulheres no contexto urbano moderno. Também há
aquelas que se encontram em situação de vulnerabilidade e que não dispõem de
perspectivas para emergir em meio a tantos fatores contrários e ausência total de
oportunidades, além da falta de conhecimento que as mantêm sem defesa contra a
própria vida.
A situação de vida da maioria dessas personagens não são situações de
privilégio. É difícil encontrar entre as histórias apresentadas, alguma mulher que
alcançou plenitude financeira ou ocupa algum alto cargo e se encontra no presente
momento da sua vida plenamente satisfeita. Em comparação aos personagens
masculinos, alguns deles são empresários estabelecidos, fazem negócios, são
médicos, taxistas realizados, políticos. Enquanto as mulheres não ocupam esses
postos, mas ocupam os de donas de casa, outras saem de suas casas antes do
amanhecer sem nunca dar-nos a oportunidade de ter conhecimento de quais são as
57

suas ocupações diárias. Porém, há várias profissões como: jornalista freelancer,


professora de escola de comunidade violenta, diarista, prostitutas, atriz
desempregada, vendedora, moradora de rua, lavadeira, manicure, “tomadora de
conta de criança”, esposas de empresários, esposa do prefeito.
A intenção aqui não é a de classificar ou estabelecer valores às profissões.
Mas de dar ênfase ao contexto em que as mulheres vivem, cada uma escrevendo a
sua história, mas a maioria não se sentindo tão realizada como alguns dos homens
que conhecemos nos vários capítulos aos quais nos referimos. É fácil perceber que
não vivem em tranquilidade e que lutam diariamente para conquistar seus objetivos
e ainda conduzir as outras atribuições que lhe são incumbidas socialmente. Isso
quando nos referimos às que possuem profissões normatizadas, aceitas, pois
sabemos que existe uma parcela considerável que se encontra à margem e vive
suas vidas se valendo de trabalhos que não possuem legalização, sofrendo
discriminação e violência advindas de várias direções.
Como exemplo citaremos o caso da prostituta do capítulo 58. Malabares que
vive em condição muito mais árdua e danosa a si mesma e que passa seus dias de
sofrimento sendo desrespeitada pelos clientes, mas se apega às lembranças como
um lugar seguro, como uma forma de resistência que ela encontrou para viver. Em
qualquer momento difícil na lida diária da sua profissão, ela recorda uma noite
específica que gera conforto à sua mente na medida em que entrega seu corpo. A
lembrança é de uma noite quando, ainda adolescente, foi acompanhante de um
senhor em jantar chique e, na ocasião, ela se sentia e era tratada como dama e não
como um objeto sem valor, se admirando até mesmo pelo fato de o senhor não ter
querido passar a noite com ela. Nesse dia ela tomou banho com sabonete e xampu
importados, vestiu um belo vestido e sapatos que ela mesma pôde escolher nas
lojas do shopping. É uma doce e importante lembrança que ela possui e utiliza como
um artifício, como uma tentativa de compensar o duro e desolador dia a dia.
Sabemos que essa profissão é exercida por homens e mulheres, no entanto a
grande maioria desses espaços são ocupados por mulheres, as quais possuem
perfis socioeconômicos parecidos. São meninas e mulheres que possuem baixa
escolaridade, advindas de situações de precariedade em suas casas onde sofreram
violências e não possuem estabilidade familiar alguma para se inserirem
socialmente em busca de outra solução que lhes conceda dignidade. Ruffato traz
58

para a superfície esta cena e mostra o psicológico abalado de uma profissional do


sexo que reside em uma cidade povoada por outros invisíveis como ela.
Regressando para o início do livro a fim de estabelecer uma ordem,
observamos que a primeira mulher com quem temos contato aparece logo na
primeira folha entre os três capítulos que iniciam e organizam a leitura, situando o
leitor para o que há por vir. Ela é apresentada a nós no capítulo três e se trata da
Santa Catarina de Bolonha, santa italiana a qual “dedicou sua vida à assistência aos
necessitados” (RUFFATO, 2013, p. 13). Inclusive, essa santa de origem italiana,
provavelmente estabelecia em terras brasileiras um importante vínculo entre os
católicos e migrantes italianos que, se sentido desenraizados, tentavam manter a
sua identidade viva. Segundo informações do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística, a vinda de imigrantes italianos para o Brasil significou quase 50% em
relação à soma das outras nacionalidades, sobretudo na primeira metade do século
XX.
Às vésperas do Dia das Mães essa santa vem para afigurar o símbolo da mãe,
aquela que se doa em benefício dos que precisam do seu cuidado, representando a
maioria das mulheres já que a função de cuidar foi atribuída à elas desde muito
tempo e até os dias de hoje, na modernidade. Comprovaremos essa afirmação a
seguir, pois veremos que apesar da vida atribulada ainda permanece nas mãos das
mulheres a missão de zelar pela vida e bem-estar da família, administrar a casa,
estando ela sozinha ou acompanhada por um homem. Mas nem sempre teremos a
sorte de encontrar essas mulheres em casa em razão de muitas delas saírem antes
de amanhecer para o labor diário.
Ao folhear as páginas do livro encontramos algumas protagonistas; outras de
importância secundária que mesmo estando em segundo plano na história, deixam
registradas a sua necessária presença para o entendimento da pequena trama;
outras são apenas figurantes, mas que também conseguem ser representativas no
delineamento da diversidade feminina contida na obra. Como exemplo dessa última
classificação, apresentamos a filha do empresário rico do capítulo 3. A caminho.
Uma mulher adepta ao esoterismo, que optou pela alimentação macrobiótica, veste
batas indianas, pinta quadros, usa ervas, exala incensos. É uma artista que mora em
Embu das Artes, cidade situada na região metropolitana de São Paulo conhecida por
ser um atrativo para a classe. Essa personagem representa uma das poucas
pessoas que, querendo retirar-se da metrópole, possui esse privilégio de escolher
59

sair do caos da capital e ir para uma cidade menor e optar pelo estilo de vida que
elegeu para si. É interessante observarmos que muitas mulheres em outros
fragmentos nem sequer têm suas vidas explicadas, afinal, são vidas tão comuns,
com trabalhos desvalorizados, exaustivos e com remuneração baixa, realidade da
maioria da população trabalhadora feminina dos grandes centros, que torna-se algo
comum demais para ser especificado como foi a personagem naturalista descrita
acima. Como ela é um caso à parte, alguém que é filha de um empresário bem
sucedido, é artista e sua vida não se iguala à vida da massa que enche a cidade, a
personagem tornou-se conhecida pelos leitores ainda que a sua presença não tenha
trazido mudanças no desenrolar da pequena narrativa.
No capítulo que tem como título 6. Mãe acompanhamos junto à protagonista
uma viagem que foi feita por milhares de brasileiros durante décadas – mote que
Ruffato traz à tona em vários momentos ao longo do livro –, mas dessa vez é
apenas uma visita de uma mãe ao filho que saiu do povoado Brejo Velho, localizado
no município de Paranatama, interior de Pernambuco. Hoje ele já está estabilizado
em São Paulo, casado e com filhos, tendo voltado à sua terra natal desde que saiu
de lá, apenas duas vezes.
Somente uma mãe para viver o sacrifício de viajar de ônibus na linha
Garanhuns – São Paulo, sem dormir por 48 horas espremida no mal estar da
viagem, no incômodo da poltrona, sentindo dores de barriga, sentindo o odor azedo
do ônibus, o mau cheiro do banheiro no fim do corredor, assustada pela velocidade
com que o motorista procede a viagem, observando a paisagem mudar à medida
que o destino se aproxima. A mãe viaja dois mil quatrocentos e setenta quilômetros
para ler nos olhos do filho “saber se é feliz no trabalho, no casamento, se, mas Ai, a
bexiga, a barriga, as costas, Ai!, as escadeiras, Ui!, as pernas, Ai!, Ui!, sem posição”
(RUFFATO, 2013, 19). É o Dia das Mães e essa mulher poderia receber seu filho em
sua casa como o melhor presente, mas como isso talvez não fosse possível ter de
um filho que possivelmente já se encontra desenraizado, para ela a única forma de
poder olhar nos olhos dele e exercer o seu papel de mãe é fazendo essa tão pouco
confortável viagem.
O mesmo sentimento materno contemplamos ao lermos a carta da
personagem Glorinha direcionada ao seu filho a quem não vê há três anos. Ela mora
em Guidoval, interior de Minas Gerais e não fez a viagem até São Paulo para vê-lo
como fez a personagem da história anterior, mesmo morando muito mais próximo do
60

que ela. Não sabemos as motivações de nenhuma delas. Enfim, aparentemente tão
saudosa quanto à mãe da história anterior, Glorinha escreve ao filho uma carta e
expõe o desejo de reencontrá-lo, assim como menciona o desejo de poder ver os
netos e a nora. Essas são mais duas histórias, entre outras inúmeras, de famílias
que foram separadas pela migração entre as regiões do interior do país e São Paulo.
Um movimento para a metrópole que levou à perda do convívio entre as famílias,
segregando-as, forçando-as a uma reconfiguração, tanto para aqueles que ficaram –
no que diz respeito à organização familiar que muitas vezes é adaptada em função
da ausência de um dos membros –, quanto para os que se foram e perderam as
suas raízes se moldando a um novo ambiente de vida.
Outra mulher que se desdobra para se sentir mãe, se enxergar exercendo essa
função e, num contexto bastante diferente das outras mães anteriores, suprir as
necessidades que o filho adolescente ainda demanda é a que aparece no capítulo
que se chama 8. Era um garoto. Sim, ele era um garoto, não um jesuscristinho como
a mãe enxergava durante toda sua infância e adolescência antes de acontecer a
tragédia repentina. Ela fazia de tudo por ele, era uma jornalista freelancer que
empregava todo o seu tempo para obter a renda que a possibilitava dar ao filho
oportunidades de frequentar os melhores ambientes, já que o pai do garoto era
totalmente ausente, já casado com outra mulher, morador de uma mansão,
envolvido em negócios ilícitos, enquanto ela se esforçava para conseguir pagar as
prestações do pequeno apartamento em que moravam no bairro Jabaquara. A mãe
desse garoto representa milhares de outras mulheres que são arrimo de família e se
esforçam para criar seus filhos e manter a casa sem ter ajuda de figura masculina. E
além disso, ainda tentam administrar a vida dos filhos para que se mantenham
saudáveis física e psicologicamente. Mas quando algo sai do seu controle, amarga a
dor do desespero por não ter conseguido administrar e sofre: “meu deus por quê ele
foi fazer isso meu deus por quê” (RUFFATO, 2013, p. 21).
No caso dessa cena, não sabemos a quem ela se refere quando diz “ele”. O
narrador não deixa claro o que aconteceu surpreendendo a todos com o final
inesperado. Os leitores passam a se questionar sobre o motivo de tão fatal
acontecimento. A mãe, obviamente, sabe mais do que os leitores, mas ainda assim
indaga o motivo de “ele” ter feito isso. Suposições por parte de quem lê surgem, pois
sabendo de toda a preocupação que a mãe possuía em relação à ausência do pai e
os possíveis problemas que tal fator poderia acarretar no desenvolvimento do filho,
61

acabamos por fazer conjecturas, teria sido um suicídio? Quem é esse “ele” que a
mãe indaga sofrendo? O homicida? Independente de como tenha sido a morte do
rapaz, foi algo que saiu do domínio desta mulher que sozinha criava o filho e não
imaginava passar por situação tão dolorosa de perdê-lo. Muitas mulheres acabam
padecendo e se culpam por terem que trabalhar demais, atrapalhando o
acompanhamento, crescimento e o atendimento das necessidades de sua família.
Sem explicação também fica a mãe ao final de 17. A espera quando seu filho
não chega à noite depois de ter saído cedo para procurar emprego. Um rapaz que
aparentemente não tem ânimo para a vida real e vive em meio à fumaça dos
cigarros de maconha e L&M. Ele lê o recado que ela deixa colado por um ímã na
geladeira, amassa e joga na lata do lixo. No bilhete estava expressa a torcida
materna, o desejo de boa sorte e um bom dia na procura pelo emprego que, talvez,
fosse uma vontade apenas dela. A cozinha parece estar desarrumada,
aparentemente por alguém que preparou seu café mais cedo, esse alguém é a mãe
que provavelmente sai muito cedo para o serviço. Não há indícios de uma outra
pessoa morando na casa, além dela e do filho. Ao final da história, após o rapaz ter
perambulado pelas ruas paulistanas antes do horário da entrevista, já no início da
noite, a história é interrompida com a mãe preocupada pela demora do filho “será
que aconteceu alguma coisa, meu deus?” (RUFFATO, 2013, p. 37).
Se aconteceu algo ou não, nunca saberemos, pois o fragmento termina. A
angústia de não sabermos qual o fim desta história é a mesma angústia sentida por
várias famílias sendo muitas delas constituídas apenas por mães, as quais perderam
seus filhos sem nunca saberem notícias do que realmente aconteceu. Da mesma
forma, o presente capítulo não nos trouxe um desfecho. Talvez ele tenha voltado e
apenas estava demorando a voltar para casa. Estamos acostumados a esperar que
o escritor termine, conclua, dê um desenlace claro para o enredo, mas se pararmos
para refletir sabemos que essa passagem já aconteceu em milhares de lares
brasileiros e possui diversos finais. Como é uma obra verossímil, permite que
façamos mergulhos nas nossas próprias experiências a partir da leitura, a fim de
interpretarmos aquilo que estamos lendo e sejamos capazes de dar nossos próprios
finais.
Além desses dois capítulos cujas personagens mães sofrem pelos seus filhos,
em 34. Aquela mulher, uma das cenas mais dramáticas da obra, o narrador
consegue alcançar e transmitir aos leitores o sofrimento de outra mãe que perdeu
62

sua filha e nunca recebeu explicação alguma das prováveis soluções que possam
lhe dar algum consolo. Algo comum nas grandes cidades, gerador de angústia e
desespero, o desaparecimento é uma situação irresoluta. A mulher da história se
entregou à própria sorte e agora se arrasta pelas ruas e avenidas do Morumbi
depois de ter procurado pela menina de onze anos como pôde, ter refeito diversas
vezes o caminho da escola para casa, ter notificado à polícia, ter suportado dia após
dia a tortura de esperar por um telefonema, alguma notícia da filha. O sentido da
vida dessa mãe se perdeu após o sumiço sem solução da menina que nunca mais
voltou do colégio. Ruffato (2013):

aquela mulher que se arrasta espantalha por ruavenidas do


morumbi ignorando ao relento se ratos ou baratas ignorando se
chuva ou sol escorrem pela guia ignorando sapatos tênis
havaianas polícia aquela mulher que se arrasta espantalha por
ruavenidas do morumbi não era assim [sic] (p. 62)

Não são raros os casos de desaparecimento envolvendo crianças e


adolescentes no estado de São Paulo, segundo Pagnan (2016). Pesquisas
realizadas pelo Programa de Localização de Identificação de Desaparecidos – PLID,
são quatro crianças/adolescentes entre dez pessoas desaparecidas. Entre os fatores
dos desaparecimentos estão conflitos familiares, envolvimento com drogas, quando
se tratam do sumiço de adolescentes, enquanto sequestros para exploração sexual
e tráfico de pessoas são casos mais recorrentes entre as crianças desaparecidas.
Lembrando que esses casos de desaparecimento são mais frequentes em regiões
de alta criminalidade e periculosidade urbana, como é o caso da personagem da
história que morava num barraco no bairro de Paraisópolis, conhecido por ser uma
das maiores comunidades de baixa renda da cidade de São Paulo. Lá, nem ela nem
a filha nunca mais foram vistas.
Mudando um pouco o foco voltado para as mães encontradas no livro, vamos
canalizar a leitura dos capítulos dando atenção para a relação com o trabalho e as
mulheres na cidade. Nos capítulos 32. Uma copa, 33. A vida antes da morte, 38. A
menina e 44. Trabalho, as mulheres que aparecem nas tramas não possuem muita
relevância no enredo da história. O foco das histórias não são elas. A importância
delas não está necessariamente na história contada no livro, mas está na
representação de quem elas são. Entre diarista, motorista de perua-escolar e outros
trabalhos não mencionados, são elas que participam mais ativamente do sustento
63

da casa, ora com a ajuda do marido ou com a ajuda do pai, ora na atuação sozinhas
na mantença dos lares, sustentando maridos desinteressados em trabalho e, em
alguns casos, morando todos juntos, pais, filhos e avós. Elas são tão ocupadas nos
seus serviços que nem sequer aparecem na história, são apenas citadas,
mencionadas, lembradas, estão em qualquer lugar de São Paulo ganhando a vida
para a casa. Vemos pelo contexto da vida das famílias apresentadas nas cenas
narradas que esses personagens representam uma camada simples de cidadãos,
algumas vivendo em casas com cômodos improvisados para caberem todos, outras
famílias vivendo em apartamento comprado com muito esforço sendo pago a
prestações.
Às vezes as casas ficam vazias, sem suas donas. Em 32. Uma copa, temos um
exemplo disso. Na descrição da cozinha de uma casa qualquer, o narrador observa
todos os detalhes de uma cozinha que parece não ser muito frequentada e nota que
a dona da casa sai quando ainda é madrugada e nunca pôde ver “os minúsculos
cristais de poeira voejando suspensos no facho de raios vespertinos que rompem o
vidro fosco trincado no basculhante” (RUFFATO, 2013, p. 58). Essa descrição deixa
subtendido o quanto as mulheres não estão mais se dedicando tanto ao lar, não que
não queiram, mas já não possuem tanto tempo disponível, seus modelos de vida já
não comportam estarem presas apenas às suas cozinhas, seja por opção de se
profissionalizarem ou por necessidade de manter uma casa, além do desejo de
independência.
Sabemos que essa não é uma tendência da urbanização do século XX e
primeira década do século XXI. Desde o século XVIII as crianças e principalmente
as mulheres preenchiam a maior parte das vagas nas grandes indústrias. Muitas
delas não eram casadas, mas tinham filhos e enfrentavam uma árdua jornada de
trabalho para os criarem sozinhas. Na modernidade a luta diária delas continua, a
maioria sem especialização e assumindo o trabalho que encontra a troco de pouca
remuneração. Notemos que na obra muitos trabalhos realizados pelas mulheres são
trabalhos e não profissões. Ou seja, muitas são domésticas ou diaristas, outra dirige
um transporte escolar clandestino com o veículo que o pai tem em casa, há também
a dona da lojinha de roupas em São Miguel Paulista, zona leste de São Paulo, a
mocinha vendedora de balas na rua, a vendedora dos salgadinhos feitos pela mãe, a
“consertadeira” de roupa – como rotula o taxista se referindo à sua mulher, na
64

página 75 – e as outras mulheres que madrugam para ir ao trabalho e não tivemos


conhecimento em que se ocupam diariamente.
Portanto, o caráter da mulher que independe de outras pessoas para se
sustentar e que trabalha em vários postos diuturnamente a fim de dar suporte à sua
família, apenas se manteve ao longo dos séculos e não é um perfil iniciado na
atualidade. Entretanto, a diferença entre as mulheres das duas épocas é que apesar
de os serviços que sempre foram executados por mulheres terem sido mantidos,
muitas passaram a ter a oportunidade de se especializarem em alguma área, o que
possibilitou o exercício de profissões específicas como a jornalista do capítulo 8. Era
um garoto; a cabeleireira da rede Soho, amiga de Idalina, do 37. Festa; a irmã da
vítima do assalto à mão armada de 39. Regime, que cursa publicidade; a professora
aturdida pelo vandalismo da qual a escola onde ensina foi vítima em 13. Natureza-
morta.
Ao lermos o capítulo 15. Fran, temos a oportunidade de adentrar num
apartamento da Vila Juçara onde vive Frannçoise, uma moça do interior do Rio de
Janeiro cuja motivação para trabalhar está pautada na sua beleza, atributo do qual
se orgulha e faz com que ela viva em função disso. Frannçoise vive momentos
angustiosos de ansiedade, esperando uma ligação que nunca acontece. Por
diversas vezes verifica se o telefone está ligado e se está num volume
suficientemente alto para que ela o escute tocar e, comprova que sim, está tudo nos
conformes, mas nunca recebe a tão desejada ligação. Quer ser atriz, talvez modelo,
ser fotografada para revistas, quer utilizar sua beleza para conseguir trabalhos em
que consiga dinheiro e fama. Mas lamenta nunca ter sido “sorteada nas graças do
diretor certo, do ator certo, do produtor certo, do empresário certo” (RUFFATO,
2013, p. 33), todavia, se acalma logo em seguida internalizando que deve manter a
“paciência, nada de apelação” [sic]. As lembranças de sua terra natal lhe vêm à
memória em meio à impaciência que a assola durante o dia e a transporta para o
interior do Rio de Janeiro fazendo-a enxergar os pés de perfumadas mangas do
quintal de onde morava e avistar os animais da fazenda andarem calmamente nas
tardes suaves as quais preenchia seus dias tempos atrás. Mas, seu estado de
ansiedade e expectativa logo a conduz novamente para o centro de sua sala e a
agonia da ligação não recebida volta a consumir o seu dia.
No capítulo 48. Minuano conhecemos uma mulher que nos faz lembrar de
Frannçoise. Mas dessa vez é uma gaúcha de cabelos negros e olhos azulíssimos,
65

como é enfatizado na história. Não se sabe como ela foi parar em São Paulo mas,
provavelmente, foi em busca de emprego e de oportunidades como a maioria das
pessoas que para lá vão. Entretanto, sabemos que ela não está feliz, se indaga
onde foi perder a felicidade que antes fazia parte dos seus dias na sua terra natal?
Ela é mais alguém que está em São Paulo e se perde ao mergulhar nas lembranças
que traz de volta a paz e a alegria que sentia em outros tempos, tempos em que
seus pés pisavam a terra em que nasceu e onde a maior parte da sua família está.
Essa jovem agora está em São Paulo ouvindo um som ensurdecedor, deitada no
chão do seu apartamento, bêbada e triste: “como deixara escapar aquela felicidade
em que momento da vida ela tinha se esfarelado em suas mãos em que lugar fora
esquecida quando meu deus quando” [sic] (RUFFATO, 2013, p. 90). Esses dois
quadros podem ser interpretados como comprovações de que as metrópoles não
absorvem a todos que lá chegam ou que nem todos que passam a viver na capital
adaptam-se à nova vida. Muitas pessoas voltam ao seus lugares de origem, muitas
se destroem engolidos pela nova dinâmica. O sonho de triunfo que São Paulo
desperta, atrai muito e já atraiu mais em outras épocas, principalmente para aquelas
pessoas que têm suas raízes fixadas em cidades pequenas, como pudemos
constatar observando a vida dessas duas moças comentadas acima. As duas
perdem-se nas lembranças das vidas pacatas e bucólicas que tinham nas suas
cidades natais, sentem alegria e conforto ao terem essa recordação o que gera a
percepção de que atualmente vivem frustradas, com sensação de fracasso frente à
realidade que não corresponde ao sonho inicial.
O passeio pelas páginas do livro continua e não por acaso, nos defrontamos
com mais mulheres na obra que merecem serem comentadas. Essas simbolizam
sintomas de uma cidade com sérios problemas, um meio urbano carente de
organização. Em 9. Ratos apesar de várias mulheres estarem presentes na cena, a
uma criança de onze anos é incumbida a função de cuidar. Cuidar dos irmãos
menores, levá-los para tomar banho na igreja e para tomar a sopa que é distribuída
diariamente. A filha mais velha vive pelas ruas à própria sorte, aparece de vez em
quando, no momento em que o frio aumenta, está sujeita a violências acometidas às
mulheres todos os dias. Anos atrás, uma das filhas, na época com treze anos, foi
abusada sexualmente pelo companheiro da mãe o qual havia oferecido ajuda para a
família sair da paupérrima condição em que se encontravam. Desse abuso, mais
uma gravidez na família. Além disso, no mesmo barraco onde de um lado os filhos
66

ouvem histórias fabulosas que a irmãzinha de onze anos conta, a mãe “geme
baixinho num canto, o branco-dos-olhos arreganhado sob o vaivém de um corpo
magro e tatuado, mais um nunca antes visto” (RUFFATO, 2013, p. 23). Vemos nesta
cena uma família, um grupo de mulheres de faixas etárias variadas, mães e filhas,
bebês, crianças, adolescentes e mulheres, entregues à vulnerabilidade da rua, da
pobreza, das doenças, sem terem solução, vivendo sem perspectiva alguma, sendo
comparadas aos ratos que circulam livremente pelo barraco onde moram.
Existem outros contextos de desmantelo humano e moral que acontecem
corriqueiramente, tanto pelos centros, quanto por locais ermos da cidade. Já
trouxemos aqui o caso da prostituta que, na cena narrada em primeira pessoa, ela
está sendo obrigada a prestar serviço a três homens ao mesmo tempo e nesse tipo
de ocasião, quando ela se sente anulada como um ser humano, recorre a uma
lembrança boa que a ajuda a fugir desse sentimento tão degradante que invade seu
ser. Em três outras passagens do livro também nos defrontamos com a prostituição
envolvendo além de mulheres, meninas, “nem peito ainda” como o próprio narrador
enfatiza na página 56.
No capítulo 51. Política um encarregado de organizar as festinhas particulares
para o deputado conta como tudo acontece. Não menciona nomes nem valores, mas
conta o que ocorre nesses momentos: dinheiro, bebidas, cocaína, mulheres “das
melhores, só universitária”, as quais se envolvem nesses sistemas afirmando que
precisam do dinheiro para pagar a faculdade. Na passagem chamada 47. O “Crânio”
o irmão do protagonista que se chama Crânio narra o quanto o admira por ele ser
inteligente e se diferir dos outros rapazes do bairro, gosta de ler e até revela
escrever poesias. No aniversário de 15 anos de Crânio, seu irmão escolhe a dedo a
surpresa que pretende fazer ao irmão e junta dinheiro com os amigos para realizar.
Trata-se de duas mulheres que foram pagas e escolhidas por um profissional para
estarem na cama do aniversariante assim que ele chegasse da comemoração do
seu aniversário. Mas a índole de Crânio não permitiu que ele aproveitasse as
mulheres que tinham sido oferecidas a ele e as dispensou. Na cena 29. O paraíso,
um menino vive em cárcere privado à disposição de bandidos que possivelmente
são envolvidos com drogas, prostituição e produção de pornografia caseira. O
responsável pelo esquema e o menino se revezam com as mulheres e meninas nos
atos impudicos, enquanto os gringos filmam as cenas. Mais uma vez observamos
um contexto no qual as mulheres se submetem como objetos sexuais indispensáveis
67

para promover diversão, produção e circulação de capital por meios ilícitos. Na


ocasião todos eles usam drogas e bebem.
É importante que o autor tenha trazido para o livro temas tão variados e perfis
distintos de trabalhos do mesmo tipo. No contexto da prostituição feminina, há várias
situações que fazem com que existam mais de uma realidade. Há muitas mulheres
que não se encontram em situação de pobreza e nem fazem parte de uma família
desestruturada, entram nessa profissão por opção e finalidades específicas, como
as que afirmaram exercer a fim de angariarem recursos que lhes deem possibilidade
de arcar com os custos da universidade, realidade que diverge totalmente da maioria
de outras mulheres que enfrentam desde a infância um histórico de precariedade em
todos os campos da vida e que sofrem por estarem entregues a essa atividade a
qual, muitas vezes, atinge níveis tão baixos de humanidade que permite ser
confundida como uma espécie de exploração sexual; a partir dessas narrativas
também pudemos constatar que a maioria já é apresentada desde cedo à profissão.
Outro ponto a que essas histórias nos fazem atentar é a hierarquia existente
também nesse meio, quando o assessor do deputado diz que escolhe somente as
melhores, as universitárias, para servirem ao político.
O livro nos apresenta a respeito de uma sociedade paralela àquela em que as
pessoas trabalham em ocupações convencionais. Se concentrando aqui ainda na
questão da prostituição, existe um mundo no qual as mulheres e crianças estão
imersas e desconhecem outra realidade ou a veem como algo muito distante das
suas vidas, algo inalcançável, o que faz com que muitas permaneçam e perpetuem
a atividade. Ilustrando ainda mais esse tema, o fragmento 65. Na ponta dos dedos
(3) nos revela uma lista que nos apresenta serviços sexuais onde encontramos
homens e mulheres. Entre treze anúncios, onze são mulheres e um deixa a dúvida,
ao se apresentar “DANY: Ele? Ela?” (RUFFATO, 2013, p. 117). Entre as mulheres a
faixa etária é ampla, encontramos pessoas com 19 anos de idade até as que se
intitulam como “coroas”.
Afastando-se desse ponto de discussão o qual não significa menos do que
sintomas de uma cidade abalada, testemunhamos andando pelas ruas e na viagem
pelos ônibus, três meninas, adolescentes, nos flashes 22. (ela [sic], 61. Noite e 45.
Vista parcial da cidade.
Em 22. (ela vemos uma adolescente de dezesseis anos no horário de almoço
andando pelas ruas do centro de São Paulo entre as barracas e camelôs
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espalhados nas praças da Sé e do Patriarca. Enquanto anda, é abordada pelos


vários vendedores que se misturam na convulsão da rua: “faço um desconto!”, “ah,
não vai levar?”, “ficou lindo no seu dedo, leva” “princesa... quer fazer um book?”. Ao
caminhar, sonha, faz planos de como sair da vida que leva, longe de pessoas e
lugares “barra-pesada”, como ela se refere. Sonha em encontrar alguém crente,
casar, ter filhos, poder parar de andar no metrô, onde homens encostam no seu
corpo. Para almoçar, pouco dinheiro. Escolhe comer o churrasco-grego no pão e
beber o “quissuco” que vem grátis. Se mantém atenta ao horário para voltar à rua
Direita, provavelmente seu local de seu trabalho.
Logo mais à noite outra adolescente deixa nítido no ônibus o quanto está
cansada de mais um longo dia. Sua mãe pergunta se tanto esforço é válido. Mas se
ela não se esforçar numa cidade como São Paulo, quem fará por ela? Trabalha meio
expediente e segue para o cursinho pré-vestibular, volta para casa dormindo no
ônibus enquanto as “migalhas dos seus sonhos esparramam-se sobre os ombros da
velha” (RUFFATO, 2013, p. 83) que viaja ao seu lado no transporte público. Essa
cena é apenas uma Vista parcial da cidade.
E em 61. Noite uma garota é observada pelo narrador o qual aposta que ela
não tenha nem mesmo quinze anos. Talvez ela chame a sua atenção por estar na
rua vendendo balas tão arrumadinha, asseada, como ele observa, vestidinho
branco, cabelo arrumado num caprichado rabo de cavalo. Organizadinha na
aparência para vender balas e igualmente vulnerável aos perigos que ela oferece
principalmente para meninas e mulheres. O narrador a ajuda oferecendo-lhe lanches
e ela aceita, devorando todos. Mas quando ela some na multidão, a sensação de
inutilidade que parece já ter feito parte dos seus pensamentos em outro momento, o
invade. Talvez a sensação que toma conta de sua mente naquele momento é de
que suas ações não são tão significantes para surtir um efeito mais eficaz e que
represente um diferencial na vida da criança vendedora de balas.
O que há em comum entre as três adolescentes é a falta de opção que faz
parte dos seus cotidianos, em não poderem escolher viverem suas jovens fases
para poderem estudar, dedicando-se apenas para essa atividade. Possuem a
responsabilidade do trabalho ainda que provavelmente nem todas elas sejam as
principais responsáveis pelo sustento das casas de seus pais ou de seus próprios
sustentos, já que não sabemos a vida que nenhuma delas possui. Não obstante,
desde cedo precisam abrir mão de muitas coisas para disporem de seus próprios
69

ganhos, afinal, talvez não tenham possibilidades para que seus sonhos e aspirações
possam um dia se concretizar caso não assumam essa responsabilidade diária.
A vida dificultada atinge também relacionamentos afetivos pois, em outras
cenas, em quaisquer outros lugares de São Paulo, dois casamentos sentem o peso
das frágeis relações que se formam e se desmancham facilmente nos tempos
modernos, algumas vezes, por motivos que não estão diretamente ligados à vida a
dois, mas às perspectivas e expectativas que muitos fatores contribuem para serem
frustradas.
As mulheres de 10. O que quer uma mulher e 62. Da última vez vivem em
estágios diferentes. A primeira ainda está casada, a segunda passou por uma
separação há dez anos, mas o desenrolar da história não deixa claro se eles
voltaram para a vida de casados. A primeira olha para o marido e sente uma
sensação de arrependimento por ter se casado com alguém que considera
acomodado e se revela bastante insatisfeita com o modelo de vida que está tendo
ao lado desse homem que ela não mais reconhece. Preocupa-se com fatores como
segurança, finanças e anseia por uma possibilidade de sair da mediocridade diária
em que se sente inserida. Sonha com uma casa mais confortável e espaçosa para
que toda a família possa se sentir melhor, sonha em não estarem com o dinheiro tão
curto, sonha com a possibilidade de seus filhos estarem cercados por boas
influências, frequentando bons lugares. Decerto, também sonhe com uma mudança
do marido. O título do capítulo “O que quer uma mulher” sugere que apenas as
conquistas materiais não seriam suficientes para gerar admiração a ele. Ela quer
admirar aquele homem que está ao seu lado, mas para isso, precisa enxergar nele
alguém ambicioso, no sentido de não se contentar com o mínimo que dispõe,
revelando qualidades como proatividade e inovação. Mas seu marido tinha
características contrárias a essas o que a tornava infeliz e a fazia se perguntar
desconhecer o homem com quem se casou: “quem é esse homem quem” [sic]
(RUFFATO, 2013, p. 27).
Na segunda história eles parecem estar conversando, apesar de na cena
mostrada no livro ela não se pronunciar. Ele lembra que há dez anos saiu de casa
com o kit de necessidades básicas que já deixava preparado para o caso de ele
precisar ir embora de repente. E foi o que aconteceu. Já podia prever a partir das
discussões que mantinha com a mulher, de forma recorrente, que em algum
momento eles iam acabar se separando. As queixas entre os dois eram
70

semelhantes às queixas da cena anterior “o apartamento ridiculamente pequeno [...]


o sol explodindo na tela da televisão ligada”, “a vida estressante que se leva em São
Paulo”, porém ela não era a única que reclamava, ele também admitia a dificuldade
pelas quais passavam “me matava de trabalhar lá na firma, mas sempre no
vermelho” (RUFFATO, 2013, p. 109). Um filme passa pela cabeça daquele homem
que há dez anos desistiu de ter que conviver com a mulher e passar por outras
discussões por motivos irrisórios: “o filme do Woody Allen que você não queria ver”,
“o filme com o Harrison Ford que eu não queria ver” (RUFFATO, 2013, p. 110).
As pouco satisfeitas mulheres representadas nas narrativas fazem parte da era
na qual até mesmo as relações acompanham a tendência da fluidez e liquidez,
adotando as metáforas empregadas por Bauman, cujos efeitos causados pelas
tensões sofridas nessas relações podem ser equiparadas à fluidez dos líquidos, os
quais não suportam pressões externas e possuem em sua natureza a tendência de
deformação.
Essas questões trazidas à tona por esses casais, indicam o nível da qualidade
de vida que as pessoas possuem em São Paulo. Com uma renda que varia de baixa
a média, a dificuldade de morar em lugares melhores localizados torna-se real e,
além dessa problemática, as casas e apartamentos estão com os espaços cada vez
menores, fornecendo menor bem-estar para a família. Ademais, as localidades
encontradas para morar nem sempre oferecem segurança necessária para que
todos tenham tranquilidade no seu dia-a-dia. A distância entre as residências e os
locais de trabalho é outro fator que contribui para o aumento dos níveis de cansaço
e estresse das pessoas, visto que muitas vezes os indivíduos dependem de
transporte público os quais não atendem ao contingente, gerando transtornos à
população, acusando mais um sistema mal planejado na cidade. Embora esses
fatores pareçam distantes do tema inicial (o casal em crise), todos essas questões
unidas diminuem a qualidade de vida, consomem o tempo diário do trabalhador e
podem geram problemas psicológicos voltados para o esgotamento físico e mental,
além de uma consequente perda na qualidade das relações interpessoais. É muito
provável que razões como essa aliadas à complexidade e configuração da vida
moderna onde as relações se esvaem facilmente cooperaram para que a tensão
conjugal fosse estabelecida.
E o que falar do capítulo 25. Pelo telefone, uma quase “conversa” entre uma
esposa transtornada e a secretária eletrônica de Luciana, a amante do seu marido.
71

Após o “Oi, aqui é Luciana. Deixe seu recado após o sinal.” (RUFFATO, 2013, p. 47)
a mulher desabafa, agride Luciana com diversos xingamentos, fala mal do próprio
marido, revela as piores manias que ele possui, algumas até mesmo bastante
íntimas, no intuito de desmotivar Luciana na intenção desesperadora de fazer com
que ela desista de manter esse relacionamento com esse homem com quem um dia
se casou.
Sem pedir licença o autor entra na intimidade da vida dessas mulheres, as
anônimas mulheres que povoam as ruas da cidade de São Paulo com seus dramas
reais e vivências comuns a muitas outras espalhadas por todo o lugar. Como
caracteriza Lima (2007, p. 141) ao se referir à condição humana exposta por Ruffato:
“as criaturas mostram-se em suas angústias e em suas buscas ditadas pelas
esperança e limitadas pela desilusão ou pelo medo. Retratos de corpo e alma, na
paisagem da cidade grande”. Foram retratos como esses que pudemos testemunhar
pelas personagens femininas as quais são protagonistas de suas histórias, sejam
elas felizes ou tristes. Enfrentam as suas dores e as dores de seus filhos sozinhas
ou não, assumem responsabilidades, aguentam firme o fato de, às vezes, disporem
apenas de opções desfavoráveis para viver, são abusadas de diversas maneiras,
dormem nos ônibus, convivem com tragédias, possuem anseios de viver num
ambiente menos hostil, por fim, mergulham no cotidiano do que realmente é ser uma
mulher urbana.
Em face das cenas dos acontecimentos que foram mostrados acima, os quais
representam as vivências de parte da população feminina da cidade de São Paulo,
chegamos à conclusão de que Ruffato em Eles eram muitos cavalos foi capaz de
levantar não só o tema da cidade de São Paulo como uma cidade mista, grande
caótica e estilhaçada. A diversidade de temas abordados pelo autor na obra, nos
leva a ir para diversos outros caminhos e assuntos que abrem discussões para
vários outras considerações que podem ser tratadas isoladamente. A
heterogeneidade no livro é vasta e, apesar disso, abarca apenas uma fração da real
conjuntura da cidade.
72

3.2 OUTRAS REPRESENTAÇÕES MINORITÁRIAS: O NEGRO E O INDÍGENA

Deixando de lado a análise do tema que se refere ao mundo feminil, vamos


comentar outros dois capítulos que permitem trazer à baila assuntos que dizem
respeito a outros grupos sociais. Durante a leitura do livro, não há evidenciação da
cor da pele dos personagens, mostra que não é algo que importa na descrição e
ação dos mesmos. Porém, vemos que quando se trata do negro e do indígena há
esse destaque à sua etnia, de forma que permite supor que todos os outros
personagens do livro sejam de etnia branca. E além desse fator, sugere o
atrelamento entre a sua condição de vida e a cor da sua pele, pois que tal
informação foi dada à narrativa. O indígena e o negro também fazem parte da
cidade e das páginas do livro, à vista disso, valendo-se do grupo analisado
anteriormente o qual é também minoritário, iremos discorrer utilizando-se de dois
capítulos e, para isso, seguiremos a ordem sequencial do livro.
O primeiro fragmento estudado será 14. Um índio.
A dramática cena que iremos analisar a partir daqui lança uma reflexão
importante que diz respeito ao sentimento de deslocamento que acompanha
diariamente milhares de pessoas na capital São Paulo. Quantos habitantes se
sentem inadequados na conjuntura paulistana, tão dissemelhante da sua origem?
Lembrando que não queremos tratar aqui apenas daquelas pessoas oriundas de
outras regiões do país, mas também de uma parcela de população que está
incorporada à multidão citadina, entretanto se encontra tão ou mais alheia se
comparados a muitos migrantes que para lá se mudam.
Há muitos indígenas inseridos no contexto urbano que saíram de suas aldeias,
visto que a vida no seu local de origem se encontra muito difícil. São inúmeros os
fatores que promovem essa migração o que não torna tão simples a questão
indígena. Os poucos recursos naturais que fazem parte do seu dia-a-dia são alguns
dos fatores que propulsionam a saída dos indígenas dos seus lugares de origem,
uma vez que dificultam a manutenção de seus costumes tornando a vida entre eles
precária em questões alimentares, por exemplo, além da falta de apoio à saúde e de
escassas possibilidades educativas. Além disso, o povo indígena tem seus direitos
violados continuamente; suas terras ocupadas os deixam vulneráveis e sem outra
opção além de abandonar seus ambientes nativos.
73

Além desses motivos, a própria expansão dos núcleos urbanos invadiu muitas
terras indígenas, criando uma situação que obrigou os indígenas a incorporarem-se
a esse modelo de vida caótico. Ademais, a própria influência do modo de vida
urbano inevitavelmente atinge e adentra as aldeias, o que força que os limites
culturais sejam rompidos e os indígenas não se abstenham de desejarem viver e se
interessarem pelo que é oferecido na zona urbana. Muitos acabam optando pela
vida na cidade no intuito de cursarem faculdade e trabalhar ou apenas na intenção
de abandonar a aldeia, já que a permanência nesse lugar não mais oferece tantas
vantagens e, mesmo alheios ao sistema urbano, afinal muitos deles nem mesmo
falam o português, optam pela migração a fim de encontrar melhores recursos para
viver.
Dados recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2010)
mostram números pouco conhecidos capazes de revelar a verdadeira situação dos
primeiros habitantes do Brasil nos dias atuais. Mais da metade dos indígenas
brasileiros vivem em zona urbana, sendo São Paulo a cidade com maior número de
indígenas. Segundo dados do censo apenas na capital paulista soma-se o número
de 11.918 indígenas.
A partir disso, outro problema passa a existir: atordoados num ambiente
absolutamente distinto do seu, muitos não conseguem se adaptar e entregam-se
aos vícios como drogas e bebidas. São crescentes os casos de indígenas que
encontram-se viciados em algum tipo de entorpecente, perdidos por viverem em
condição de miséria ao chegarem na cidade e serem excluídos já que na maioria
das vezes eles não possuem instrução alguma para ocupar as vagas de emprego e,
desnorteados, passam a viver sem rumo.
Foi o que aconteceu ao indígena protagonista da cena 14. Um índio a quem o
narrador, provável frequentador do bar de seu Aprígio ou morador do bairro onde
esse bar fica localizado, se refere como bugre, selvagem, bicho, peri, enquanto
conta toda a história da passagem do indígena naquele lugar. Ele conta que o
indígena surgiu no bairro de repente, mas que a cada intervalo de tempo
desaparecia e retornava. Chegou a ser preso por atentado ao pudor num episódio
em que se animou no meio da rua, bêbado, tirando toda a roupa. Tempos depois,
após a soltura, passou a ficar no bar do seu Aprígio, onde se alimentava, à
contragosto do dono. Mas seu Aprígio sem achar outra saída, começou a exigir que
ele lavasse o chão e o banheiro do seu estabelecimento em troca de algum
74

alimento. Dormia na calçada da rua, em frente ao bar. O indígena acabou ficando


conhecido por toda a vizinhança e, claro, aproveitavam para pedir favores. O
indígena então “capinava quintal, pajeava criança, dava recado, carregava compra,
batia laje, zoava dele a molecada” (RUFFATO, 2013, p. 31).
Esse é mais um indígena que teve um final ruim. Não sabemos a origem dele e
os motivos que o levaram para a cidade, mas o fato de não saber português e
parecer ser muito enraizado nas suas origens o deixou absolutamente deslocado.
No fragmento narrado encontramos quem risse dele, quem se enchesse de
preconceito contra, quem lhe pedisse favores, o provocasse e o tratasse mal. Faltou
uma postura empática por parte dos moradores que viam aquele pobre indivíduo
agindo como um inocente perdido e se destruindo pouco a pouco, sem ter o que
comer, dormindo nas ruas e se afogando no álcool. A narrativa termina expressando
um quadro terrível de abandono e desesperança para mais uma pessoa na maior
capital do país: “só a manhã surpreendeu o indígena esticado sob a marquise de
uma loja de material de construção [...] abraçado a um casco branco vazio, a tudo
alheio, a tudo” (RUFFATO, 2013, p. 32).
No fragmento 26. Fraldas há também um quadro que é capaz de expressar o
preconceito que mais parece ser inerente ao indivíduo, tamanha é a frequência com
que casos como esse acontecem, cotidianamente. A descrição repetitiva de dois
homens negros em condições distintas e o caso que os envolve é o que cria sentido
à narrativa. O primeiro homem a nos ser apresentado é “o segurança, negro
agigantado, espadaúdo, impecável dentro do terno preto [...]”; o segundo
personagem é apresentado, opostamente, como “negro franzino, ossudo, camisa de
malha branca surrada calça jeans imundo tênis de solado gasto” [sic] (RUFFATO,
2013, p. 49). Durante toda a história essas duas descrições são repetidas em
qualquer momento em que um dos dois pratica uma ação na história ou quando o
narrador faz referência a eles. É como se o nome dos dois estivesse sendo
substituído por essas duas descrições. A identidade de nenhum dos dois é
mencionada, seguindo uma característica recorrente do livro, uma vez que nos
deparamos com muitos anônimos, o nome deles, portanto, é posto à parte. O único
nome mencionado é o de Souza. Não fica muito claro quem é Souza, mas supomos
ser o chefe de segurança do hipermercado.
A história gira em torno da desconfiança que o negro franzino desperta no
chefe de segurança que o observava há meia hora por meio das câmeras
75

espalhadas pelo estabelecimento. O destaque para a roupa e porte do rapaz


consegue dar ênfase à importância concedida à aparência do outro e o peso que
isso tem na sociedade, fator que mostra ser capaz de incluir ou excluir pessoas. O
segurança impecável observava o negro franzino e viu quando ele acariciou o kit de
“mamadeira+chuca+chupeta” e notou o quanto ele estava “tomado por ideias”,
tentando decidir o que levar para casa, onde sua esposa e seu filho recém-nascido o
esperavam. Havia nele a esperança de que alguém ali no supermercado o visse e o
ajudasse a comprar.
Em meio a indecisão de quais itens mais valiam a pena serem comprados,
fazia muitas adições e subtrações. O segurança o observava e sabia que era um
equívoco desconfiar do negro franzino, mas não era assim que pensava o chefe de
segurança. Ao final da narrativa, o segurança leva o negro franzino até o chefe, que
o acusa afirmando já conhecer como se portam esse tipo de bandido, sempre agem
como inocentes e inofensivos quando são pegos em flagrante. A pequena trama em
forma de conto, encerra-se num clima de tensão.
Vemos uma grande injustiça acontecer sofrido por alguém que possui
baixíssimo poder aquisitivo e está mal vestido. O segurança negro impecável não
interveio ao seu favor, será que na ocasião cabia sua intercessão em favor do negro
franzino? Esse tipo de preconceito é muito frequente principalmente contra a
população desfavorecida economicamente, sobretudo, se forem negros. Nessa
cena, duas mazelas da cidade puderam estar à vista, concomitantemente: O
preconceito contra o negro, pobre e o desemprego que assola atualmente 17% da
população da região metropolitana de São Paulo, segundo dados da Departamento
Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (Dieese).
Conhecemos o histórico do negro no Brasil desde a colonização do país, para
onde o homem africano foi trazido afim de desempenhar trabalhos braçais a nível de
escravidão. Tanto os homens quanto as mulheres negras viviam para servir os
brancos europeus e seus descendentes e, apesar de a escravidão colonial ter
terminado há séculos, as consequências dessa época se perpetuam até os
presentes dias e podem ser vistos em qualquer ambiente. Além da forte expressão
racista da sociedade, manifestada tanto em ações explícitas quanto não admitidas,
ainda observamos a situação desfavorável em que o negro brasileiro passou a estar
por conta dos resquícios da época da escravidão.
76

Logo após o fim do sistema escravocrata, passaram a serem homens e


mulheres livres, mas sem nenhuma condição de terem uma vida digna. O que regia
era a falta de assistência e regulamentação de leis que apoiassem a vida trabalhista
do homem e mulher negros, agora livres, no intuito de que eles pudessem se inserir
na sociedade e terem a oportunidade de se sustentarem e viverem com a mesma
honra que qualquer outra pessoa. Para provar essa conjuntura na qual eles estavam
imersos, basta olharmos para a realidade atual que conhecemos tanto, nos quais a
maioria da população negra preenche a camada mais baixa entre as classes sociais,
estão mais envolvidos em crimes como roubos, assaltos e homicídios, povoam as
penitenciárias, são as maiores vítimas de homicídio por parte de policiais e até
mesmo são vítimas de assassinato pelos mesmos, por engano. Além disso, estão
em menor número entre as carreiras profissionais mais promissoras.
As condições precárias em que viviam, as moradias e os locais para onde eles
foram se fixar, exibiam a absoluta falta de assistência, assim como afirmou o
pesquisador Maringoni (2011) quando afirmou que após a famigerada abolição da
escravatura “os negros libertos foram buscar moradia em regiões precárias e
afastadas dos bairros centrais das cidades”, formando o que conhecemos como
favelas mais referidas hoje como comunidades.
Até mesmo as teorias disseminadas que se referiam à superioridade branca, as
quais eram pregadas em todo o mundo e os preconceitos em relação às culturas
africanas, foram fatores que contribuíram de forma significativa para que existisse
uma desvalorização de tudo o que se referisse à população negra.
Em vista disso, o racismo foi sendo disseminado quase como uma cultura nas
mentes das pessoas, proporcionando discriminação diária contra as pessoas de pele
escura e, ademais, esses prosseguiram tendo ocupações subalternas em relação às
pessoas de pele branca.
Toda essa condição explica o capítulo 26. Fraldas no qual há dois negros e
apesar da descrição contrária entre os dois, enquanto um está impecável dentro de
um terno e o outro está vestindo uma roupa velha, tênis imundo e muito magro,
talvez passando fome, ambos se encontram abaixo da posição de Souza, embora
não saibamos se Souza é branco ou negro. O negro franzino sofreu acusações por
estar com uma aparência muito ruim e não efetivar compra alguma, se atrapalhando
entre as gôndolas do estabelecimento. O segurança via que se tratava de um
engano do chefe, mas nada fez em favor do rapaz afinal, também é um subalterno,
77

já que estava cumprindo ordens do chefe Souza e não gostaria de correr o risco de
perder seu emprego, que por sinal, é um emprego com baixa remuneração e
ocupado, na maioria das vezes, por negros.
Dessa forma, em meio a tantas adversidades vividas pelos moradores dessa
cidade estilhaçada, muitos se agarram a vários tipos de fé para conseguirem
encontrar um fio de esperança e continuarem vivendo sem resignação. Exemplo
disso, é um homem pardo trajado com um terno azul-celeste, em pé no meio da
praça da Sé, que tenta compartilhar o seu testemunho de vida com os transeuntes,
revelando a todos como era o seu modo de vida em meio ao crime, roubando,
assaltando, usando drogas, mas que hoje diz estar liberto e está ali para tocar na
vida de alguém por meio de suas palavras inspiradas por Deus. Assim, ele faz uma
oração que parece atingir uma grande quantidade de pessoas. Ruffato (2013):

por aqueles que desesperados sobem ao último andar dos


edifícios... por aqueles que sem esperança se refugiam na
solidão... por aqueles que sem forças sucumbem... à
tentação... por aqueles que perderam tudo... por aqueles que
nunca tiveram nada... por aqueles invisíveis porque anônimos
(p. 53)

Parece ele ser alguém que conhece bem o interior e o estado das milhares de
pessoas que transitam, cruzam, vagueiam pelas calçadas e ruas históricas da
cidade de São Paulo, a pé ou motorizadas em seus carros e motos, ou ainda
aquelas que vivem trancados nos milhares de apartamentos ou em cima de uma
cama, doentes ou na janela de seu barraco em alguma comunidade distante,
avistando a amplitude vasta de modos de vida, paisagens e estado do interior dos
habitantes da labiríntica São Paulo.
78

4 A “INSTALAÇÃO LITERÁRIA” DE LUIZ RUFFATO: COMPOSIÇÃO E


CONTEXTOS

Este capítulo pretende discorrer a respeito da declaração feita por Luiz Ruffato
quando questionado sobre a classificação do seu livro. Ele o definiu como uma
instalação literária. Podemos constatar a partir dessa designação que há muitas
aproximações entre Eles eram muitos cavalos e outras artes. Além disso, Ruffato
traz para a sua obra a incorporação de outros artistas, citando-os desde o título,
portanto, teceremos discussões acerca do conceito de instalação e as citações
necessárias para a construção da obra.

4.1 ARTE FUGAZ: AS INSTALAÇÕES

Como sabemos, Ruffato é um escritor bastante crítico e provocador. É um


intelectual, pois constantemente expõe suas opiniões em entrevistas e nos discursos
nos quais tem oportunidade de proferir, sempre se posicionando e provocando
discussões e reflexões sobre a realidade do seu tempo e espaço.
Na época da publicação de Eles eram muitos cavalos um certo questionamento
era regularmente feito ao escritor, o qual dizia respeito à classificação da obra. Esse
é um fator que parece ser muito importante, pois está sempre em pauta, mas acaba
não fazendo diferença, afinal não importa se o livro é um romance, um livro de
contos ou tenha qualquer outra categorização. Ainda assim, ao se depararem com a
estrutura e a estética responsáveis pela individualidade de Eles eram muitos
cavalos, todos queriam saber sobre o posicionamento do próprio autor para que ele
expusesse a tão ansiada especificação literária da obra.
Porém, como Ruffato está acostumado a sempre desafiar nas suas
exposições, sua resposta não foi tão simples e provavelmente deixou muitos sem o
retorno satisfatório que gostariam. Sua resposta provocou no mínimo a ação da
pesquisa para ser possível entender a analogia que ele propôs ao referir seu livro
como uma instalação. Uma instalação literária. Foi dessa forma que ele rotulou. De
início podemos observar a forma de Eles eram muitos cavalos e constatar que trata-
se de uma miscelânea como comprovamos até aqui, tanto em termos de assuntos
dos quais ele se dedica a escrever, quanto se pensarmos no seu formato, nos tipos
textuais, nas referências que encontramos ao decorrer da leitura e até nos recursos
79

visuais que o autor consegue trazer para as páginas do livro. Tudo isso e outros
elementos formando uma unidade difícil de ser entendida facilmente, como algo
coerente à primeira vista.
O leitor pode escolher ler um ou alguns capítulos de forma isolada como
unidades independentes que podem ser retiradas do livro sem ter perda significativa
no seu sentido, uma vez que não deixa de ser uma cena ocorrida no contexto
urbano. O autor teria a opção ainda de escolher inserir outras cenas e
representações urbanas para compor o livro, deixá-lo mais extenso, dispondo de um
número maior de imagens da cidade para o leitor testemunhar. Talvez o livro tenha o
perfil de algo inacabado. As histórias podem ter seus finais continuados ou
expandidos por parte de quem lê, inclusive isso já foi mencionado neste trabalho,
quando discorremos sobre a possibilidade de o leitor utilizar a sua própria
experiência para interpretar ou até mesmo, no caso aqui proposto, dar uma
continuidade às histórias apresentadas.
Isso dá margem para fazermos referência à coleção de cinco livros chamada
Inferno Provisório cujo lançamento do primeiro volume foi lançado no ano de 2005 e
o último em 2011. Ruffato afirma sobre esse projeto literário ter sido uma expansão
do livro que estamos estudando e, se formos analisar todos eles, notaremos que
realmente se trata de uma espécie de ampliação do mesmo estilo de escrita, tema e
proposta. Os mesmos esquecidos, invisíveis e anônimos fazem parte da obra
Inferno Provisório, delineando a face de uma estrutura social onde seres humanos
são vítimas do próprio meio de precariedade.
Essas observações estão sendo tecidas na intenção de tentarmos visualizar o
texto de Ruffato como uma espécie de instalação artística. No intuito de
entendermos melhor sobre a analogia feita por Ruffato e a ponte que ele fez entre a
sua obra literária e as outras artes, vamos discorrer a respeito das instalações, um
tipo de arte contemporânea que promove divergentes opiniões conceituais, de
acordo com o que explica Peccinini (2013) ao dizer que “como boa parte da
produção artística contemporânea a instalação não permite rotulação única, por seu
princípio experimental”. É experimental assim como algumas obras literárias,
incluindo Eles eram muitos cavalos, conceituada dessa forma pelo próprio autor.
Apesar dessa dificuldade de caracterização, a seguir está uma elucidação
bastante didática que facilita o entendimento geral do que se trata uma instalação
artística. Itaú Cultural (2015):
80

modalidade de produção artística que lança a obra no espaço,


com o auxílio de materiais muito variados, na tentativa de
construir um certo ambiente ou cena, cujo movimento é dado
pela relação entre objetos, construções, o ponto de vista e o
corpo do observador.

A instalação pode ser desmontada e montada em lugares e ocasiões


diferentes, seu caráter lhe confere essa facilidade, visto que muitas vezes esse tipo
de arte é construída utilizando-se objetos diversos ou várias unidades de um mesmo
objeto. Ademais, a obra pronta, como uma unidade, possui o significado
intencionado pelo artista a partir da junção desses objetos integrantes e a mesma
possui o caráter de facilidade frente a uma possível desintegração, adição ou
retirada de objetos, lembrando que cada unidade de objeto possui um significado
próprio.
Aproximando esses devaneios feitos acima para aproximar-nos da instalação
literária de Ruffato, trouxemos um relato feito por ele e citado pelo pesquisador
Tonus (2013), no qual Ruffato afirma ter se dedicado durante um tempo, colhendo
materiais que seriam utilizados na construção de sua obra:

Ruffato percorre as ruas da capital paulista em busca de


objetos suscetíveis de evocar o estado de desagregação do
universo urbano. A pé, de carro, de táxi, de metrô, de trem ou
de ônibus, ele visita favelas, hospitais, estações de trem,
supermercados e cemitérios. Ele participa de cultos
evangélicos, assiste a missas, frequenta academias de boxe e
estádios de futebol. Ele afirma, igualmente, ter visitado amigos
e, em suas casas, anotado as listas de seus pertences ou os
títulos dos livros das prateleiras de suas bibliotecas.
Finalmente, em 9 maio de 2000, Ruffato compra todos os
jornais e revistas publicados naquele dia em São Paulo e
coleta todos os objetos encontrados no caminho para a banca
de jornal: fragmentos de preces, menus de restaurantes,
folhetos publicitários. Em suma, ele inscreve seu projeto na
estratégia do colecionador-arquivista e dos mecanismos
paisagísticos, como se, por estes, a voz autoral pudesse
apreender de maneira falsamente aleatória a natureza em sua
totalidade tornando-se, deste modo, o depositário de uma
alteridade esquecida ou ocultada (p. 51).

A partir dessa constatação, inferimos o caráter realístico que a obra possui,


tendo o autor feito todo um trabalho manual de montagem do livro, assemelhando-se
de fato a uma exposição artística. Além disso, foram vários os objetos que ele juntou
a fim de selecionar, relacionar, raciocinar e finalmente escolher quais deles deveriam
fazer parte de seu livro e serem colados no texto e quais deveriam ser descartados.
81

Com uma contínua tentativa de sempre estar associando as definições que


geralmente são dadas para as instalações artísticas e tentando equiparar à obra de
Ruffato, observemos que a definição dada por Peccinini (2013) destaca a
combinação de objetos variados tentando construir algo único, “ambiente ou cena”,
ainda que tais objetos não tenham nada em comum entre si. Da mesma forma fez
Ruffato quando num romance uniu cartas, panfletos, cardápios, descrições de
cozinha, lista de livros numa estante, diálogos, repetidas mensagens entre uma
mulher e uma secretária eletrônica, narrativas que nos fazem sentir estar lendo a um
romance convencional propriamente literário, já em outros capítulos as feições do
conto estão mais explícitas e ainda podemos encontrar textos que nos remetem à
poesia. A sensação refletida em cada um que observa esta produção artística é
diferente, afinal cada um tem seu ponto de vista e suas particularidades.
Alguém pode ler este livro e ver nele algo muito pessimista, outro pode
enxergar um alerta da realidade atual de uma cidade que pede socorro e conseguir
perceber nas últimas páginas o recado que o autor deixou para reflexão. Ainda há
quem veja apenas como uma obra de arte criativa sem pretensão que exceda aquilo
que ali está sendo exposto. Mas alguns leitores, pelo menos à primeira vista, podem
fazer a leitura e pensar: Qual será a ambição desse autor ao nos apresentar
capítulos sem conexão alguma entre si? É um pensamento comum embora haja
apenas a suposta falta de conexão. Enfim, as reações são variadas e podem se
assemelhar às reações quando muitas instalações artísticas são expostas. Porém, é
bom termos em mente que na arte sempre há uma aspiração a ser alcançada, ainda
que seja apenas a intenção de subverter a ordem ou ir de encontro ao que esperava
um público mais reacionário.
Em continuidade às considerações acerca da afirmação chave do autor, a qual
deu propulsão para o desenvolvimento do presente capítulo, nota-se que surge uma
ampliação sobre a visão que temos de Eles eram muitos cavalos no que diz respeito
à aproximação entre várias outras artes, a partir disso, inferimos o quanto Ruffato
fez uso de outras artes para compor o livro. Conforme com o que afirmou Étienne
Souriau (1983) em A correspondência das artes:

O vento são todos os ventos... A arte são todas as artes... O


que tem em comum entre essas diferentes atividades
criadoras, que esculpem suas obras uma no mármore, outras
na projeção de luzes contra uma tela, outras ainda no ar posto
82

em vibração, e assim por diante... Percebe-se a dificuldade que


existe em ser rigoroso num campo que pode parecer aéreo e
sutil... (p. 3)

Por esse motivo Ruffato sentiu-se tão confortável para fazer esta
correspondência entre o seu livro e uma instalação artística em concordância com
outra fala de Souriau (p. 14): “quantos agradáveis efeitos do estilo, quantas
metáforas graciosas, ao se usar numa arte o vocabulário de outra!”. É possível
contemplar esta condensação entre as artes diversas vezes em Eles eram muitos
cavalos, como veremos mais adiante. A partir dessas constatações, trazemos para o
centro dessa discussão uma explicação de Alfredo Bosi em Reflexões sobre a arte
(1991) quando o mesmo remete à etimologia da palavra arte: “A palavra latina ars,
matriz do português arte, está na raiz do verbo articular, que denota a ação de fazer
junturas entre as partes de um todo” (p. 13). Nada mais harmônico para
correlacionar à obra de Ruffato, pois mais uma vez trazemos à tona a estética
mosaica conferida na obra a qual estamos estudando.
Como um artista, Ruffato buscou inspirações em tudo aquilo que estava ao seu
redor, qualquer fala, qualquer objeto e artes diversas contribuíram para a construção
do seu trabalho. Segundo ele, essa pesquisa de vivências foi feita ao decorrer de
anos e de maneira bastante sensitiva, entendendo, conhecendo, lendo, fazendo
conexões entre várias inspirações afim de se chegar a um produto. Já chegou a
afirmar que no seu processo criativo permite que as histórias se inscrevam em seu
interior para, ainda que nada seja inscrito, em algum momento o escritor possa se
manifestar.
Aproximando-se do tema da instalação artística e das vivências do autor, esse
declarou em entrevista que, ao visitar a Bienal de Artes de São Paulo no ano de
1996, pôde observar logo na porta de entrada uma porção de sapatos. Tratava-se
de uma instalação cujo autor e nome da obra ele não se recorda. Mas na criação
haviam sapatos femininos, masculinos e infantis, sapatos de vários modelos, de
pessoas que poderiam tê-los perdido ou poderiam ter sido descartados ou até ter
sido de alguém que tenha sofrido acidente e os deixou no meio do caminho. O autor
confessa ter estranhado no primeiro momento em que viu a produção e chegou a
questionar sobre o que seria arte hoje em dia, mas logo recompôs seu pensamento
e viu que não tinha o direito de manifestar esse tipo de opinião, afinal havia ali um
curador e um significado, mas isso ressalta o quanto comum é este tipo de reação
83

para as mais variadas criações contemporâneas que são criadas. Ao refletir sobre a
obra a qual estava à sua frente chegou à conclusão de que “o artista quis
representar a cidade de São Paulo através daqueles calçados [...]” (RUFFATO,
2013). Aqueles sapatos poderiam ser de qualquer tipo de pessoa, com histórias
impregnadas em cada um daqueles calçados sujos de pó, novos, velhos, antigos,
modernos.
Mal sabia Ruffato que o autor da obra nem sequer de São Paulo era. O
amazonense Roberto Evangelista foi convidado por Agnaldo Farias para fazer parte
da Bienal de Arte de São Paulo nesse ano de 1996 e, quando o convite surgiu,
chegou a se espantar: “Demorei um mês e meio para encontrá-lo. Quando o
convidei para a Bienal, ele perguntou: 'Bienal? Você acha que é o caso?', diz
Farias”, na entrevista que tem como título Brasil chega com ferro, sal, cinza e luz
(1996).
Conforme o pesquisador José Leonardo Tonus (2013), a obra Ritos de
Passagem se explica da seguinte forma:

A instalação de Roberto Evangelista compunha-se de mais de


dois mil pares de sapatos usados, de milhares de caixas de
sapato vazias e de pedras portuguesas oriundas das calçadas
de Manaus. Os sapatos usados teriam por objetivo evocar os
vestígios da sociedade brasileira contemporânea. As pedras
portuguesas situariam o olhar do espectador no passado
histórico do Brasil levando-o a se interrogar sobre os processos
de aculturação e transplantação cultural que o país teria
vivenciado. Quanto às caixas de sapato vazias, elas aludiriam,
pela ausência de seu conteúdo e dos bens de troca (os
sapatos), o desgaste da sociedade capitalista e consumista (p.
50)

Esta imagem criada por Evangelista pode ser evocada para a história da
construção do Brasil, cujos braços responsáveis pela sua construção são de homens
e mulheres os quais foram aculturados, desenraizados e são representadas nas
milhares figuras anônimas oriundas de inúmeros interiores de todo o território
nacional, porém foram de fundamental importância para a construção da história, a
construção das cidades, a construção do país, apesar de não terem recebido todo o
reconhecimento que mereciam. Eles podem ser relacionados aos cavalos que
Cecília Meirelles imprimiu em seus versos e que Luiz Ruffato se apropriou para
ilustrar o seu livro dando o título tão cheio de personalidade como conhecemos.
84

Vale ressaltar que na primeira edição do livro, lançada pela Boitempo Editorial,
a capa é um par de tênis sujos, empoeirados, capa que poderíamos sugerir ter sido
uma alusão a essa experiência a qual acabamos de relatar acerca dos calçados na
Bienal de São Paulo. Porém em pesquisas realizadas, constatamos que numa
conversa via e-mails entre uma pesquisadora de Eles eram muitos cavalos e Luiz
Ruffato, o autor afirma não ter sido uma escolha feita por ele, pois na época não
possuía um nome estabelecido a ponto de dar sugestões para a produção Ferreira
(2009):

De: Luiz Ruffato


Para: teresinhaperinii
Data: 07/10/07
Assunto: Re:cavalos

Oi, Teresinha
não, a capa primeira dos cavalos foi da editora... naquela
época eu não tinha cacife pra interferir na edição...
Abraço grande do
luiz ruffato

(p. 113)

De toda forma, essas inspirações e citações de autores e artistas de várias


outras obras incorporadas ao livro, foram indispensáveis para dar forma e sentido
especiais ao mesmo. Além disso, o autor alcançou êxito na sua proposta de
representar a grande parcela que não aparece na literatura brasileira os quais
concernem aos trabalhadores que vivem em situação precária no país. Os par de
sapatos sujos da capa da primeira edição do livro os simbolizaram muito bem.

4.2 RECORTE E COLAGEM: AS CITAÇÕES

Ruffato parece não ter esquecido as práticas infantis onde o papel, a tesoura e
a cola se faziam presentes entre as brincadeiras de criança, parafraseando aqui as
palavras de Compagnon em O trabalho da citação (1996) quando esse compara as
brincadeiras de recorte e colagem que lhe proporcionavam tanto prazer na sua
infância com as citações, cujo deleite acaba sendo semelhante, já que no ato da
escrita, o recorte e a colagem também são atividades usuais.
Nos concentrando pontualmente no título do livro a partir de agora, ele nos
direciona para o poema escrito por Cecília Meireles designado como Romance
85

LXXXIV ou Dos Cavalos da Inconfidência, que faz parte do volume Romanceiro da


Inconfidência (1953), composição de traço histórico, o qual narra em forma de
versos épicos e líricos o tema da Inconfidência Mineira. No decorrer da leitura dos
versos desse poema nos são apresentados os robustos e vigorosos cavalos e em
nossa mente cria-se a imagem destes animais correndo pelas margens dos rios do
estado de Minas, “transportando no seu galope coronéis, magistrados, poetas,
furriéis, alferes, sacerdotes” (MEIRELLES, 1953), nos dando conta do quanto
indispensáveis eram esses animais para as tramas vividas por esses homens que
fizeram história. O poema continua: “Eles eram muitos cavalos, - rijos, destemidos,
velozes (...). Eles eram muitos cavalos. E morreram por esses montes, esses
campos, esses abismos, tendo servido a tantos homens. Eles eram muitos cavalos,
mas ninguém mais sabe os seus nomes sua pelagem, sua origem... (...)”
(MEIRELLES, 1953). Esse último verso compõe uma das epígrafes do livro que
estamos estudando. Ruffato se inspirou nesses versos para dar título ao seu
trabalho. Dessa forma, Compagnon (1983) diz:

Quando cito, extraio, mutilo, desenraizo. Há um objeto primeiro,


colocado diante de mim, um texto que li, que leio: e o curso de
minha leitura se interrompe numa frase. Volto atrás: re-leio. A
frase relida torna-se fórmula autônoma dentro do texto. A
releitura a desliga do que lhe é anterior [...] (p. 9)

A partir disso, é possível fazer a correspondência entre a mensagem dos


versos de Meirelles e a história urbana traçando um paralelo entre as duas criações.
Meirelles menciona os desconhecidos cavalos, “rijos, destemidos e velozes”,
os quais serviram de maneira indispensável aos seus donos nas lutas pela
Inconfidência Mineira, da mesma forma que os desconhecidos braços dos brasileiros
de vários lugares diferentes que, convergindo para a capital paulista, construíram
com seu suor e sua força, anonimamente, a São Paulo que conhecemos hoje. De
igual forma, se assemelham à multidão emaranhada que cruza a cidade formando
uma numerosa multidão de anônimos que buscam suas urgências, ambições e
necessidades, carregando consigo seus anseios, histórias e realidades dentro
daquela capital. Porém, inferimos que a ninguém mais interessa suas origens,
histórias, seus percursos em meio à “selva de concreto”, pois, apesar de rijos e
destemidos, “ninguém mais sabe os seus nomes, sua pelagem, sua origem”
(MEIRELLES, 1953).
86

É a camada da população trabalhadora brasileira que Ruffato quis trazer como


compromisso para o seu trabalho e que acompanha a sua obra. A partir dessas
histórias acima comentadas, comprovamos duas artes distintas da sua e que foram
importantes para o autor, o qual se aproveitou para se inspirar e compor o seu livro:
uma manifestação artística em forma de instalação e os versos poéticos de
Meirelles. Souriau (p. 14) contribui afirmando que “[...] nada mais evidente do que a
existência de um tipo de parentesco entre as artes. Pintores, escultores, músicos,
poetas, são levitas do mesmo templo [...]”.
A segunda epígrafe que compõe o livro foi extraída do livro Salmos mais
precisamente o versículo 2 do capítulo 82, o qual diz o seguinte: “Até quando
julgareis injustamente, sustentando a causa dos ímpios?”. Fazendo a leitura de todo
o texto é possível notar a sua atualidade, pois o salmista mostra-se indignado com
as injustiças que acontecem diante dos seus olhos. O texto é iniciado afirmando ser
Deus o juiz, ou seja, alguém de maior influência capaz de um dia avaliar as ações de
todos: “Deus está na congregação dos poderosos; julga no meio dos deuses.”
(BÍBLIA, Salmos 82:1). O salmista expressa sua ira e evoca a justiça divina para
desafiar aqueles que agem contra os menos favorecidos, negligenciando as suas
funções. A conclusão desse texto promete que a vingança existirá para aqueles que
não cumprem o seu papel: “Todavia morrereis como homens, e caireis como
qualquer dos príncipes.” (BÍBLIA, Salmos 82:7). Dessa forma, é visível a quem o
salmista se dirige, aos governantes que possuem em suas mãos a responsabilidade
de conceder assistência à toda a população, mas preferem imergir na corrupção
abrindo mão das leis que regem a sociedade igualmente como fazem os
governantes do século XXI, os quais retêm todo o poder e todos os recursos
possíveis, a fim de fazer apenas o que lhes é interessante, não direcionando para o
destino correto. A fim de dar força aos seus argumentos, o salmista ainda continua
exigindo dos governantes que façam aquilo que lhes é de sua alçada: “Fazei justiça
ao pobre e ao órfão; justificai o aflito e o necessitado.” (BÍBLIA, Salmos 82:3).
Luiz Ruffato não poderia ter colocado uma epígrafe que melhor ilustrasse o seu
texto, pois na sucessão das cenas do livro vemos diversas circunstâncias nas quais
é possível observar a falta de amparo sofrida por mulheres, homens, crianças,
jovens, profissionais, indígenas, migrantes. A precariedade das pessoas da cidade
grita aos olhos de todos que transitam pelas ruas e avenidas, mas ainda assim são
essas as mais invisibilizadas. Esse verso também poderia ser destinado diretamente
87

ao um personagem do livro, o prefeito do capítulo 46. O prefeito não gosta que lhe
olhem nos olhos, no intuito de representar numa figura clara e bastante
representativa de quem possui o poder em mãos e a responsabilidade de
administrar e melhorar as condições de trabalho, saúde, moradia e educação de
todas as camadas sociais da cidade. Mas logo no título da narrativa que nos
apresenta tal gestor, vemos que não é possível esperar dele ações positivas. É a
partir daí que podemos entender um dos vieses responsáveis pelo ciclo inacabável
onde as causas e consequências se misturam de tal forma a provocar vários males
ao meio urbano, gerando os ciclos destrutivos dos quais já falamos aqui.
O exercício da colagem parece ter feito parte de uma das etapas do trabalho
de Ruffato. Encontramos no livro textos que podem ser vistos facilmente inscritos em
panfletos distribuídos pelas ruas, em sites de internet, ouvidos nas rádios
enunciados por locutores ou ainda colados em qualquer parede das cidades. O livro
confere uma aproximação tênue com a realidade como já sabemos. Numa pesquisa
pela internet, constatamos que são reais os muitos dados que no livro estão
contidos. Os capítulos iniciais, por exemplo, não foram criados pelo autor. São
dados reais e, portanto, outra pessoa o criou tendo como base os dados concretos.
O cabeçalho, nos fornece informação do local ao leitor, situando-o na cidade onde
se passa os enredos, a data em que acontece e o dia da semana. Seguido a essas
informações, a previsão do tempo. Poderíamos ter aberto o jornal, lido em algum site
ou assistido no rádio ou na televisão. Não foram dados elaborados pelo autor.
Durante todo o livro podemos constatar a veracidade de muitos fatos que ocorreram
no dia 09 de maio de 2000. O tempo mas Exemplo disso está Ao longo do livro,
vemos que o autor parece ter juntado diversos recortes de panfletos. Voltando um
pouco para a seção anterior que se pretende explanar acerca das instalações,
vemos na citação a seguir que alguns processos de coleta e escolha dos panfletos
que fariam parte do livro. Tonus (2013) explica que:

"Ritos de passagem" se apresenta como uma instalação


paisagística que obedece aos critérios básicos de seleção,
extração e ressemantização de objetos provenientes de um
espaço "natural". Na instalação, esses "objetos" tornam-se o
emblema do estado de precariedade, de fragmentação e
desagregação em que se encontra o sujeito oriundo do
universo urbano. (p. 50)
88

A hagiologia da santa encontrada no capítulo 3. Hagiologia, também pode ser


considerada como um exemplo de colagem, afinal, não poderia ter sido algo criado
pelo autor. O autor se apropriou das informações concretas a respeito da santa e os
dados contidos nesse capítulo podem ser encontrados pela internet ou livros
dedicados à tratados sobre os santos da igreja católica. As comemorações em nome
da Santa Catarina de Bolonha são de fato no dia especificado, marcando um caráter
informativo fazendo ao livro.
No capítulo 12. Touro, temos um exemplo de previsão dos signos. Em muitas
revistas comumente encontramos esse tipo de texto, Ruffato (2013) pode ter feito
um recorte e colagem e trazido para o livro, como:

A lua nova, no signo de Câncer, pede recolhimento, reflexão.


Depois da agitação dos últimos dias, é hora do ritmo lento e
contínuo. Aqueles que se deixarem levar pelas emoções
podem se arrepender. Estão condenadas todas as atitudes
radicais. O agrupamento dos planetas em Touro, signo da terra
e da posse, tende a levar a exageros, mas a energia lunar
acalma os ânimos. (p. 28)

Em 31. Fé há um exemplo ainda mais evidente, pois consiste na “ORAÇÃO A


SANTO EXPEDITO” (p. 57). Ao fim da oração há a seguinte inscrição:
Impresso na LFRS – Produções
Telefones: 3368-6096 e 3204-1744 – R$ 38,00 o milheiro
Entrega grátis em sua casa em todo o Brasil
(Ruffato, p. 58)
49. ritual para a terça-feira, lua em câncer 90.
Esse detalhe aproxima muito o texto à realidade, a ponto de podermos concluir
que este foi um folheto coletado na rua pelo autor e guardado, como mais um objeto
a ser colado no seu texto.
Em outros capítulos, como no 18. Na ponta do dedo (1), 42. Na ponta do dedo
(2) e 65. Na ponta do dedo (3) o movimento de procura do dedo indicador no papel é
sugerido pelos títulos. Na primeira lista pessoas procuram um emprego que pode ser
escolhido dentre as opções de galvanizador, governanta, gerente, instalador,
jardineiro, maçariqueiro e outras. Por sua vez, a segunda lista destina-se a pessoas
que procuram alguém para se relacionar. Deixam registradas, suas qualidades e
preferências na intenção de que alguém se interesse. Já na terceira, são oferecidos
serviços sexuais. As três listas são amostras conhecidas de qualquer pessoa que já
89

folheou revistas, jornais, ou andaram prestando atenção em cartazes colados nas


paredes e postes das ruas.
Há em 54. Diploma e 68. Cardápio, respectivos diploma e cardápio que
também são exemplos para uma possível colagem feita pelo autor de Eles eram
muitos cavalos.
90

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É possível enxergar nos mais variados espaços sociais a evolução provocada


pelo advento da sociedade contemporânea. O favorecimento para que rupturas e
descontinuações de ideias tradicionais aconteçam se faz necessário, visto que, a
evolução de pensamentos é indispensável para a mudança positiva de uma
sociedade que se pretende democrática.
Dessa forma, foi possível constatar em Eles eram muitos cavalos essa
tendência de desconstrução já experimentada por outros escritores anteriormente,
que se difere do modelo tradicional de literatura. Luiz Ruffato procurou utilizar o
poder da linguagem e a união entre os muitos recursos que a nossa língua
possibilita, para delinear a cidade. A rapidez urbana nas curtas histórias não
concluídas, a fluidez das relações expressas pelos espaços em brancos deixados
pelo escritor em meio aos diálogos, a deterioração das condições humanas expostas
por meio das metáforas, o tempo de uma corrida de táxi na metrópole sendo
representado por um capítulo mais longo. A complexidade urbana sendo adequada
à linguagem.
Constatamos ao fim da leitura desse livro o quanto as relações sociais
encontram-se num estado crítico de declínio. Há um mal-estar impregnado nas
pessoas e no modo como elas lidam umas com as outras, optando muitas vezes
pela individualidade, pelo egoísmo e pela distância. Essa constatação pode ser
certificada a partir da observação da série de acontecimentos negativos que ocorrem
continuamente, atingem a todos e apresentam-se de muitas formas. A violência, a
falta de ética, a mudança de valores, as relações fluidas, frágeis, onde nem mesmo
as amizades e as relações afetivas conseguem escapar. Há a escolha pelo
afastamento, pelo não comprometimento com o outro e as pessoas estão optando
por essa alternativa. Vemos isso acontecer de maneira recorrente; a ideia de
transitoriedade abre caminho para a fugacidade das relações interpessoais se
manifestar.
Dessa forma, durante toda a pesquisa procuramos manter a ponte entre a
literatura escrita por Ruffato, a forma como ele optou fazê-la, o conteúdo do livro e
como o significado de todos esses elementos em conjunto contribuem para a
compreensão fundamental e o atingimento do objetivo da pesquisa a qual se
91

pretendeu compreender de que forma Eles eram muitos cavalos representa a cidade
contemporânea.
O olhar para o social e uma literatura com o papel de provocar reflexões acerca
do mundo complexo e indefinido que rodeia a todos, parece ser uma bandeira
levantada pelo autor. Por isso, para chegarmos às conclusões da pesquisa, fez-se
necessário transitar por muitos temas. Passamos por vários capítulos e neles
encontramos situações de miséria financeira, prostituição, um indígena perdido sob
efeito do álcool, hibridismo cultural sendo apresentado por um simples cardápio, a
solidão, o desemprego, a desigualdade social, e até mesmo a saída de São Paulo
na busca de algo melhor, tema abordado no livro, mas não discutido nesse trabalho.
É um romance polifônico, pois são vários sujeitos sociais que, cada um no seu
espaço, se adequam a um sistema que na maioria das vezes mais oprime do que
liberta o trabalhador.
A variedade de assuntos que esse livro traz à tona, causa uma certa
dificuldade em conseguir juntar os cacos de algo que explodiu e quebrou. Ao
juntarmos e tentarmos colar os estilhaços para formar a unidade novamente,
saberemos que não ficará perfeito como outrora foi. As fissuras estarão sempre à
vista, causando separações entre as partes e, além disso, há a ameaça de as
mesmas se desprenderem mais uma vez. A unidade, uma vez segregada, não torna
ao seu estado inicial.
Ademais, esses temas trazidos pelo autor permitem que haja uma tamanha
desintegração entre eles a ponto de existir a possibilidade de desenvolvimento de
outras pesquisas, outras dissertações, apenas expandindo os temas de cada
capítulo trazido aqui e partindo de outros assuntos os quais não foram contemplados
nesse estudo. Mais uma vez fica explícita a complexidade, variedade de temas e
infinitude de eventos, pessoas, estilos, ocorrências, problemas, que acontecem no
grande palco urbano.
Chegamos à conclusão de que os grupos minoritários, representados nesse
trabalho pela mulher, pelo negro e pelo indígena ainda estão caminhando, ainda
dispõem de menores vantagens e ainda tentam superar diariamente as
adversidades impostas socialmente. Os que mais precisam continuam sofrendo sem
assistência, muitos governantes continuam não querendo serem olhados nos olhos
e as pessoas comuns continuam se isentando da culpa de ajudar aquele que bate à
sua porta.
92

Desse modo, o caos, a insegurança, o fugidio, a frustração, são exemplos de


palavras-chave que vêm à nossa mente para representar a cidade de Eles eram
muitos cavalos e após termos tecido as observações trazidas nesse trabalho.
93

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