RELIGIÃO COMO FUNçÃO Psíquica
RELIGIÃO COMO FUNçÃO Psíquica
RELIGIÃO COMO FUNçÃO Psíquica
Fenômeno universal,
a religião é encontrada desde os tempos mais remotos em cada tribo, em cada povo. Dir-se-ia mesmo
que a religião é um instinto.
A divergência entre Jung e Freud, nesse assunto, é absoluta. Para Jung a real religião apresenta-se
comum fenômeno genuíno; para Freud é um derivado do complexo paterno e uma das sublimações
possíveis do instinto sexual.
Jung toma atitude positiva em relação às religiões. Todas são válidas na medida em que recolhem e
conservam as imagens simbólicas oriunda das profundezas do inconsciente e as elaboram em seus
dogmas, promovendo assim conexões com as estruturas básicas da vida psíquica. Essas conexões são de
tanta importância que Jung, fundamentado no seu trabalho de psicoterapeuta, chegou à seguinte
conclusão: diversos pacientes que estavam doentes e haviam perdido a fé, nenhum curou-se sem
recobrá-la, independente da adesão a um credo ou igreja em particular.
Jung usa a palavra religião no sentido de revisitar o que foi abandonado. Reviver no consciente com
certos fatores poderosos do inconsciente com fortíssimas cargas energéticas em intenso dinamismo.
Aqueles que os defrontam fala de uma emoção impossível de ser descrita, de um sentimento de mistério
que faz estremecer, aquilo que Rudolf Otto designou de numinoso, do encontro com tais cargas, através
de sonhos, visões, êxtases, qual se origina as religiões e apresentam-se sob diversos aspectos, tais como
deuses, demônios, espíritos, desde que tenham atuação na psique do homem.
Não importa que “todas essas afirmações religiosas sejam impossibilidades físicas”. O psicólogo que
estuda os fenômenos religiosos terá preliminarmente, de desembaraçar-se “do estranho preconceito que
somente considera verdadeiro aquilo que se representa ou se apresentou na forma de um dado físico (…)
o critério de uma verdade não é apenas seu caráter físico: há também verdades psíquicas que, do ponto
de vista físico, não podem ser explicadas ou demonstradas, nem tão pouco recusadas”.
Como toda função, a religiosidade é suscetível de ser desenvolvida, cultivada e aprofundada, e poderá
também ser negligenciada, deturpada ou reprimida. Toda função busca sempre maneiras de expressão,
encontra a todo preço canais para dar escoamento a sua carga energética. Assim é que, em lugar das
imagens divinas antigas, outros objetos passaram a ser reverenciados. O século XX conhece grandes
ídolos: raça, sexo, Estado, partido, dinheiro, máquina... Os veículos são cultuados como deuses. O
mesmo se aplica a estrelas de cinema, jogadores de futebol, bandas famosas, políticos, o culto aos
mortos, que levam multidões às ruas para homenagens, como verdadeiras procissões religiosas. Fãs
fervorosas declaram o amor a seus ídolos, ou até mesmo o consumo de LSD, utilizado para alcançar
novas dimensões da realidade numa experiência próxima a de místicos.
A simbologia religiosa tem importância na linguagem das religiões, símbolos com profundo apelo na
vida dos homens, que despertou a atenção do psicólogo Jung, que buscou estudar religiões ocidentais e
orientais, com especial interesse nos símbolos cristãos, em que se vive mergulhado há 20 séculos.
Amostra desse interesse, é o estudo sobre a Trindade, onde defende o exame psicológico dos símbolos,
que excluídos da reflexão, seriam ininteligíveis, do que deduz que a Trindade detém sem si significação
psicológica viva, a prova disso é perdurar até o dia de hoje. Essa concepção não é exclusiva ao
cristianismo, já ocorrendo em povos na Babilônia, no Egito, na Grécia. Jung defende o conceito que o
Deus Uno e Trino equivale a três etapas evolutivas da psique. O Pai, a unidade original, é estado infantil
ou original do homem. O Filho, o salvador, é a redenção do mal. E a revelação do Espírito Santo aos
homens, aproxima Deus dos homens e restaura o Um e a Trindade, que é um conceito maior de Deus e
corresponde a um nível de reflexão superior da consciência do homem.
Entretanto a exploração em profundeza do inconsciente ensina que os símbolos ternários são símbolos
incompletos. A totalidade exprime-se em símbolos quaternários.
O que falta para completar a Trindade?
As Três Pessoas Divinas são perfeitas. O mal está excluído do conceito cristão de Deus, que é, por
definição, o summum bonum; também está excluído desse conceito o princípio feminino, pois a
Trindade tem caráter exclusivamente masculino. (Jung desenvolve longas considerações sobre esse tema
não só no estudo referente à Trindade mas também no livro Aion e em Resposta a Jó).
O inconsciente não permanece estático. Aspiração crescente no seio da Igreja católica, em 1950, foi
promulgado o dogma da Assunção de Maria. Segundo Jung, esse acontecimento significa satisfação a
exigências do arquétipo da quaternidade, muito embora o dogma não implique que a Virgem haja
atingido o status de deusa.
Observe-se que, enquanto as Três Pessoas Divinas são espíritos, são seres imponderáveis, a Virgem é
frequentemente associada à terra, ao corporal. Santo Agostinho toma a terra como símbolo da Virgem
(“A verdade surgiu da terra porque Deus nasceu da Virgem”). E nas ladainhas ‘Ela’ é invocada com as
qualificações de hortus conclusus e de jardim fechado. Note-se ao mesmo tempo que, no cristianismo, a
ideia do mal acha-se estreitamente correlacionada à matéria (terra) e à mulher. Na matéria-prima dos
filósofos da natureza medievais está presente [fl. 159] uma qualidade venenosa que representa o
princípio do mal.
No nível consciente o cristianismo venera na Virgem a imaculada, a luz puríssima. Ela não tem sombra.
Entretanto, quem examinar a iconografia mariana ficará surpreendido de encontrar tantas Virgens negras
e tão devotamente honradas. A padroeira do Brasil, N. S. Aparecida, é uma Virgem negra. Poder-se-á
argumentar que no Brasil é muito grande a representação da raça negra. Mas o mesmo não se poderá
dizer da Suíça, onde a bela basílica barroca de Einsiedeln é dedicada a uma Nossa Senhora negra. A
Polônia tem sua virgem negra. Nossa Senhora de Smolensk (Rússia) é negra. Na cripta da catedral de
Chartres, distante poucos quilômetros de Paris, é venerada Notre-Dame du Pilier, negra. E o mesmo
acontece em muitas cidades da França: Marselha (abadia de Saint-Victor), Le Puy (catedral de Notre-
Dame), Clermont-Ferrand (igreja Notre-Dame du Pont), Vichy (igreja de Saint-Blaise), Moulins
(catedral, tríptico), Mauriac (igreja de Notre-Dame des Miracles), Rocamadour (capela da Virgem). É
como se o inconsciente projetasse sobre essas imagens cor-de-terra o aspecto telúrico da Virgem, ou
seja, a sombra do princípio feminino.
Cabe aqui sugerir ao leitor que reflita um momento sobre a crescente devoção a Iemanjá no Brasil,
sobretudo no Rio de Janeiro, primeiro centro cultural do país. Iemanjá é uma divindade de origem
africana; deusa-mãe boa, generosa, mas também capaz de violentas paixões, terrivelmente ciumenta [fl.
160] e às vezes até cruel. Seus devotos identificam-na com N. S. da Conceição. De fato, porém, seus
atributos coincidem menos com os de Maria que com as características da sombra da mulher ausentes na
Virgem. Poder-se-ia propor uma hipótese para estudo: o culto brasileiro de Iemanjá não seria um mero
fenômeno de regressão como se afigura à primeira vista. Talvez exprima o anseio de força do
inconsciente para integrar na Imaculada atributos da divindade iorubá, plasmando uma imagem
feminina mais completa.
Não será decerto por acaso que a obra do pensador católico Teilhard de Chardin, portador de ideias
referentes à matéria absolutamente novas para o cristianismo, só tenha podido ser publicada a partir de
1955: "A Matéria puramente inerte, a Matéria totalmente bruta não existe". Deslumbrado, discerne na
intimidade da matéria uma consciência elementar em atividade. Usa sempre do M maiúsculo para
nomear a matéria e canta-lhe hinos: "Louvada sejas, áspera Matéria, ... perigosa Matéria... poderosa
Matéria" etc. "Eu te saúdo, Meio divino, carregado de Poderes Criadores, Oceano agitado pelo Espírito,
Argila plasmada e animada pelo Verbo encarnado."
Se conseguirmos perceber, mesmo obscuramente, os movimentos das forças inconscientes em nosso
tempo, poderemos vislumbrar que suas correntes ascendentes trazem para o alto a matéria e a mulher,
pressionando o consciente que durante tantos séculos depreciou-as e rejeitou-as. [fl. 161]
Vimos (Cap. VI) que o self é definido como o arquétipo da totalidade e fonte de energia. A energia que
emana do self é tão forte que o encontro com esse arquétipo constitui a experiência mais intensa e mais
profunda que o homem pode vivenciar. A essa experiência, carregada de qualidades a um tempo terríveis
e fascinantes, o homem chamou Deus. Os sentimentos que a acompanham variam desde o terror às
alegrias da bem-aventurança, segundo o depoimento daqueles que a viveram.
Quando Deus se manifestou sobre o Sinai, "o aspecto da glória de Jeová era, aos olhos dos filhos de
Israel, como um fogo devorador no alto da montanha" (Êxodo XXIV, 17). E o apóstolo de Cristo, São
Paulo, escreve na epístola aos hebreus: “É terrível cair nas mãos do Deus vivo" (X, 31). E mais adiante,
"pois nosso Deus é também um fogo devorador" (XII, 29). O memorial da noite de êxtase de Pascal (23
de novembro de 1654) tem o título: Fogo. O escritor não utiliza seus dons de expressão. O documento
consta de curtas frases concentradas e de palavras repetidas como para ganharem reforço: "Certeza.
Certeza"... "Alegria, alegria, alegria, lágrimas de alegria".
Depois de conviver longamente com Vishnu, sob o aspecto humano de mestre e amigo, Arjuna diz: “Eu
desejaria ver tua forma e teu corpo divino. Se pensas que o posso ver, ó Senhor, ó Mestre do Ioga, então
mostra-me teu Ser imperecível". Vishnu atendeu a Arjuna, apresentou-se na sua forma divina. "É tal a
luz desse corpo de Deus que parece que milhões de sóis levantaram se ao mesmo tempo [fl. 162]
no céu... Arjuna O vê, Deus magnífico e belo e terrível... e, de deslumbramento e de alegria e de medo,
ele se prosterna e adora, mãos juntas, com palavras de terror sagrado, a visão formidável" (Bhagavad
Ghita, Cap XI).
A mitologia grega narra que a princesa Semele, amada por Zeus, faz que ele prometa satisfazer-lhe um
desejo. Semele pede ao divino amante para revelar-se no seu aspecto olímpico. Mas, quando Zeus se
manifesta, a imprudente Semele é fulminada pelo fulgor do deus. Mesmo presenças que apenas
prenunciam o divino produzem efeitos de alta intensidade. Assim é que o poeta Rilke exclama: “Quem,
se eu gritasse, me ouviria na hierarquia dos anjos? E, supondo que um deles de súbito me tomasse de
encontro ao coração, eu sucumbiria, morto por sua existência mais forte".
A experiência imediata do arquétipo da divindade representa um impacto tão violento que o ego corre o
perigo de desintegrar-se. Como meios de defesa face a esses poderes, a essas existências mais fortes, o
homem criou os rituais. Poucos são aqueles capazes de aguentar impunemente a experiência do
numinoso. As cerimônias religiosas coletivas originam-se de necessidades de proteção, funcionam como
anteparos entre o divino e o humano, isto é, entre o arquétipo da imagem de Deus, presente no
inconsciente coletivo, e o ego.
A psicologia junguiana põe em relevo a presença, no âmago da psique, do arquétipo de Deus
(“indistinguível do arquétipo do self”), sem pretender [fl.163] jamais afirmar nem negar a existência de
Deus como ser em si mesmo. Foi o arquétipo da divindade que respondeu à mensagem do Cristo: "O
Rabi Jesus concreto rapidamente foi assimilado pelo arquétipo constelado". Com efeito Cristo, no
Ocidente, pela sua superioridade espiritual e grandeza heroica, é a analogia mais próxima das
significações do self, embora Jung frise insistentemente que lhe falta para ser completo o lado sombrio,
isto é, "a metade escura da totalidade humana". Na nossa cultura é Cristo quem exemplifica o arquétipo
do self, do mesmo modo que é o Buda quem o exemplifica para os budistas.
Quando Jung fala de religião, não está nunca se referindo a qualquer credo ou a qualquer Igreja em
particular. O que o interessa é a atitude religiosa como função psíquica natural, é a experiência religiosa
na qualidade de processo psíquico. No seu trabalho de analista, verificou as múltiplas manifestações do
fenômeno religioso e sua importância dentro do funcionamento da psique.
Somente depois da publicação póstuma das Memórias é que ficamos conhecendo a posição religiosa
pessoal de Jung. Na sua obra científica, como vimos, ele se refere ao arquétipo de Deus na psique, à
imagem de Deus, mas nunca faz afirmações ou negações concernentes à existência de Deus. Mas,
através das páginas das Memórias, Jung revela-se como um homem para quem Deus era "uma
experiência imediata das mais certas". [fl. 164]
No capítulo "Anos de colégio", lemos: "Como cheguei à minha certeza sobre Deus? Apesar de todas as
coisas que me haviam dito referentes ao assunto, no fundo eu não podia crer em nada. Nada me havia
convencido. Não era portanto daí que vinha minha convicção. E aliás não se tratava de uma ideia, de
algo que fosse fruto de minhas reflexões, nada que fosse imaginado. Não era como se a pessoa
imaginasse e representasse um objeto para depois crer. Por exemplo, a história do Senhor Jesus sempre
me pareceu suspeita e nunca acreditei seriamente nela. Entretanto me fora sugerida com muito mais
insistência do que Deus, que somente era evocado num plano distante. Por que Deus era para mim uma
evidência? Por que certos filósofos pretendiam que Deus fosse uma ideia, uma espécie de suposição
arbitrária que pudesse ser 'inventada' ou não, quando é perfeitamente evidente que Ele existe, tão
diferente quanto um tijolo que caia sobre a cabeça de uma pessoa? De súbito tornou-se claro que, pelo
menos para mim, Deus era uma experiência imediata das mais certas."
Numa entrevista famosa, Jung declarou: "Não necessito crer em Deus: eu sei", depois preciso esclarecer
que “sei com segurança que me confronto com um fator desconhecido em si, ao qual chamo Deus". Isso
pode explicar as palavras gravadas na sua casa: Invocado ou não invocado, Deus estará presente.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
SILVEIRA, Nise. Jung: vida e obra. 15ₐ Edição. São Paulo: Paz e Terra, 2001.