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Perspectivas - Vol. II - Filosofia, psicanálise e antropologia

2020, Instituto Quero Saber

Amaury Meller Filho Daniela Valentini Junior Cunha (Organizadores) Filosofia, Psicanálise e Antropologia Vol. II Primeira Edição E-book TOLEDO-PR 2020 Copyright 2020 by Gerente Editorial Revisão Editores Assistentes Corpo Científico Capa e Diagramação Organizadores Ana Karine Braggio Amanda C. Schallenberger Schaurich Mônica Chiodi José Luiz G. Mariani Medéia Lais Reis Valdenir Prandi Dr. José Aparecido Pereira - PUCPR Dr. Lorivaldo do Nascimento – UFFS Dr.ª Lurdes de Vargas Silveira Schio - UNIOESTE Dr. Tiago Soares dos Santos - IFPR Junior Cunha Instituto Quero Saber CNPJ: 35.670.640./0001-93 www.institutoquerosaber.org editora@institutoquerosaber.org Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP) P466 PERSPECTIVAS: filosofia, psicanálise e antropologia – vol. II. / organizadores, Amaury Meller Filho, Daniela Valentini, Junior Cunha. 1. ed. e-book - Toledo, Pr: Instituto Quero Saber, 2020. 118 p. Modo de Acesso: World Wide Web: <https://www.institutoquerosaber.org/editora> ISBN: 978-65-87843-13-1 1. Filosofia. 2. Psicanálise. 3. Antropologia. I. Título. CDD 22. ed. 100 Rosimarizy Linaris Montanhano Astolphi – Bibliotecária CRB/9-1610 Todos os direitos reservados aos Organizadores O conteúdo dos textos aqui publicados é de exclusiva responsabilidade dos seus respectivos autores SUMÁRIO Apresentação .........................................................................................7 “EMPODERAMENTO DIGITAL”? SUAS IMPLICAÇÕES NO ETHOS E NA ATIVIDADE POLÍTICA ATUAL Rodrigo Lopes Figueiredo Marta Rios Alves Nunes da Costa ............................................................11 ELEMENTOS INTRODUTÓRIOS À METAFÍSICA DE ARISTÓTELES Igor de Matos Ramos ..............................................................................45 EPISTEMOLOGIA GENÉTICA E A PSICANÁLISE: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL Fernando Alves Grumicker ......................................................................61 COMENTÁRIOS SOBRE O EXISTENCIALISMO SARTREANO E A PEÇA ENTRE QUATRO PAREDES Cristiele Rhoden Junior Cunha .........................................................................................81 REAÇÕES PESSOAIS FRENTE ÀS NOVAS CONFIGURAÇÕES DE CIDADE: (SOBRE)VIVER NA PANDEMIA Marina Garcia Lara Aloir Pacini ...........................................................................................93 Sumário 6 APRESENTAÇÃO A coleção Perspectivas projeta-se sobre o horizonte como um farol a guiar aqueles que se propuserem e ousarem navegar os vastos oceanos do conhecimento. Os textos que integram este segundo volume representam com profundidade questões argutas e proeminentes da humanidade. Questões que causam incomodo e levam a reflexão. Em suma, questões que suscitam novas perspectivas sobre a vida e o mundo que nos cerca. Uma questão arguta e promitente é aquela que perpassa o senso comum e astuciosamente nos provoca. Nos desestabiliza. Nos leva a (re)considerar as bases que dão sustentação ao que conhecemos. Descartes, na filosofia; Newton, na ciência; Kafka, na literatura – entre outros – são exemplos de pensadores que se sentiram incomodados. Nas páginas seguintes, autores(as) que também se sentiram incomodados(as) se colocaram a refletir sobre questões que tangenciam a filosofia, a psicanálise e a antropologia. Rodrigo Figueiredo e Marta Nunes da Costa abrem o volume com o texto “Empoderamento digital”? suas implicações no ethos e na atividade política atual. Os autores refletem sobre “a capacidade de influência e controle do homem quando está em posse de equipamentos, artefatos e sistemas de informação eficientes na produção de dados sobre a natureza e sobre o próprio homem”. A partir da obra Questão da Técnica, de Heidegger, escrevem que “estamos diante da possibilidade de nos perdermos no horizonte da tecnologia, no sentido em que alicerçamos a nossa existência na premissa do controle calculado dos recursos naturais e dos ‘recursos humanos’, produzindo um horizonte em que nos tornamos estranhos não só uns aos outros, mas a nós mesmos, tornando-nos incapazes de reconhecer a dignidade e humanidade em nossos semelhantes”. 7 Perspectivas Concluindo que “o grande desafio é questionar os limites e condições de possibilidade deste ‘empoderamento digital’, fenômeno que inicialmente parece inverter a ordem das prioridades, tornando o homem subserviente das suas próprias invenções tecnológicas”. Na sequência, Igor Ramos disserta sobre Elementos introdutórios à Metafísica de Aristóteles. Considerando a importância em “desenvolver um trabalho de introdução aos seus conceitos mais elementares, como ente, ser, substância, ato e potência”, o autor realiza uma análise da Metafísica de Aristóteles e da Metafísica antiga e medieval de Rosset e Frangiotti, procurando “elencar e elucidar os elementos introdutórios da Filosofia Primeira”. No terceiro capítulo, Epistemologia genética e a psicanálise: uma relação possível, Fernando Grumicker apresenta “uma conceitualização da epistemologia genética e da teoria psicanalítica, buscando refletir questões filosóficas acerca do desenvolvimento humano, tanto no sentido orgânico como no sentido mental”. O autor direciona o artigo à “uma assimilação entre ambas as abordagens do desenvolvimento humano”. Mais adiante, Cristiele Rhoden e Junior Cunha tecem Comentários sobre o existencialismo Sartreano e a peça Entre Quatro Paredes. De forma ensaística, os autores levantam “a questão sobre a liberdade dos seres humanos em comporem sua essência e a angústia proveniente da constante necessidade de fazer escolhas” e trazem “a lume o questionamento se, de fato, o inferno são os outros?”, com base na peça Entre Quatro Paredes. Marina Lara e Aloir Pacini encerram o volume refletindo sobre Reações pessoais frente às novas configurações de cidade: (sobre)viver na pandemia. Os autores analisam “as novas configurações de cidade e a reação das pessoas frente às decisões de retomada da mobilidade, depois de períodos mais intensos de reclusão em casa”. A partir de pesquisas bibliográficas e relatos de jovens estudantes, os autores evidenciam que “a chamada consciência coletiva (Durkheim, 1995), 8 Apresentação trouxe novos elementos de compreensão da realidade para superar os individualismos passados em vista de compromissos sociais com uma vida de mais equilíbrio com todos os outros seres que habitam o planeta terra, e que fazem de todos os envolvidos, cidadãos cada vez mais plenos porque se apresentam com noções mais claras do que é o bem comum”. Boa leitura! Os organizadores 9 Perspectivas 10 “EMPODERAMENTO DIGITAL”? SUAS IMPLICAÇÕES NO ETHOS E NA ATIVIDADE POLÍTICA ATUAL Rodrigo Lopes Figueiredo* Marta Rios Alves Nunes da Costa** Resumo: O presente artigo pretende refletir sobre a capacidade de influência e controle do homem quando está em posse de equipamentos, artefatos e sistemas de informação eficientes na produção de dados sobre a natureza e sobre o próprio homem; neste sentido aborda a Questão da Técnica (1932) pensada por Martin Heidegger enquanto fenômeno desafiador da liberdade humana no sentido mais essencial. Segundo o pensador estamos diante da possibilidade de nos perdermos no horizonte da tecnologia, no sentido em que alicerçamos a nossa existência na premissa do controle calculado dos recursos naturais e dos “recursos humanos”, produzindo um horizonte em que nos tornamos estranhos não só uns aos outros, mas a nós mesmos, tornando-nos incapazes de reconhecer a dignidade e humanidade em nossos semelhantes. Os reflexos da instrumentalidade técnica presente ao nosso redor, associado ao desejo pragmático em querer buscar tudo aquilo que garante bem estar pessoal e satisfação imediata, termina por nos disponibilizar a objetualização, isto é, conduzindo à perda de valor em nós mesmos “ontificando-nos”. No processo de compreensão deste perigo trazemos a contribuição de Immanuel Kant em suas obras Antropologia de um ponto de vista pragmático (1798), Ideia de uma História universal do ponto de vista cosmopolita (1784) e Fundamentação da metafísica dos costumes (1785) e de Pierre Levy em sua obra O que é o virtual? * Mestre em Filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná. E-mail: digo_filo@yahoo.com.br. ** Doutora em Filosofia pela New School for Social Research. Professora adjunta da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. E-mail: nunesdacosta77@gmail.com. Perspectivas Na primeira obra kantiana tratamos sobre as paixões de civilização as quais (unidas a virtualização) configuram o “empoderamento digital”, na segunda vimos a possibilidade do aperfeiçoamento humano, possível sobretudo a nível de espécie e que revela a conquista histórica do homem ao transitar da animalidade em direção a civilidade, destacando-se nesta condição a presente virtualização de todas as instâncias, constituindo uma cultura multimídia. Por fim, buscamos chegar a um melhor entendimento acerca da possibilidade de um progresso na humanidade a partir de Pierre Levy, que enfatiza os méritos de uma sociedade interligada em rede, cujo propósito é tornar possível a produção e o acesso compartilhado (virtualmente) dos conhecimentos construídos coletiva e globalmente. O entusiasmo de Levy com o desenvolvimento das novas tecnologias e com o novo modo de interação humana, realizado virtualmente numa sociedade em rede, nos permite imaginar a concretização da expectativa de progresso “profetizada” por Immanuel Kant em sua obra Ideia de uma História universal do ponto de vista cosmopolita (1784). Aqui, a espécie humana atingiria o estágio de desenvolvimento mais avançado no que se refere ao cumprimento dos fins antropológicos necessários – o estágio da moralidade, ou seja, a condição histórica onde se manifesta a consideração valorativa de cada sujeito racional enquanto fim em si mesmo, havendo o respeito e a responsabilidade recíproca. Neste sentido o grande desafio é questionar os limites e condições de possibilidade deste “empoderamento digital”, fenômeno que inicialmente parece inverter a ordem das prioridades, tornando o homem subserviente das suas próprias invenções tecnológicas. Palavras-chave: Natureza humana. Empoderamento digital. Tecnologia. Virtualização. Ética. Abstract: This article intends to reflect on the capacity of influence and control of man when he is in possession of equipment, artifacts and efficient information systems in the production of data about nature and about man himself; in this sense it addresses the Questão da Técnica (1932) thought by Martin Heidegger as a phenomenon that defies human freedom in the most essential sense. According to the thinker, we are facing the possibility of losing ourselves in the horizon of technology, in the sense that we base our existence on the premise of calculated control of natural resources and “human resources”, producing a horizon in which we become strangers not 12 “Empoderamento Digital”?... only to each other. others, but ourselves, making us unable to recognize the dignity and humanity of our fellow men. The reflexes of the technical instrumentality present around us, associated with the pragmatic desire to want to seek everything that guarantees personal well-being and immediate satisfaction, ends up making objectification available to us, that is, leading to the loss of value in ourselves “ontifying us ”. In the process of understanding this danger, we bring the contribution of Immanuel Kant in his works Antropologia de um ponto de vista pragmático (1798), Ideia de uma História universal do ponto de vista cosmopolita (1784) and Fundamentação da metafísica dos costumes (1785) and Pierre Levy in his work O que é o virtual? In the first Kantian work we deal with the passions of civilization which (together with virtualization) configure “digital empowerment”, in the second we saw the possibility of human improvement, possible above all at the level of species and which reveals the historical conquest of man as he transitions from animality towards civility, highlighting in this condition the present virtualization of all instances, constituting a multimedia culture. Finally, we seek to reach a better understanding of the possibility of progress in humanity based on Pierre Levy, who emphasizes the merits of a networked society, whose purpose is to make possible the production and shared access (virtually) of knowledge built collectively and globally. Levy's enthusiasm for the development of new technologies and the new way of human interaction, carried out virtually in a networked society, allows us to imagine the fulfillment of the expectation of progress “prophesied” by Immanuel Kant in his work Ideia de uma História universal do ponto de vista cosmopolita (1784). Here, the human species would reach the most advanced stage of development with regard to the fulfillment of the necessary anthropological ends - the stage of morality, that is, the historical condition in which the evaluative consideration of each rational subject is manifested as an end in itself, with respect and mutual responsibility. In this sense, the great challenge is to question the limits and conditions of possibility of this “digital empowerment”, a phenomenon that initially seems to invert the order of priorities, making man subservient to his own technological inventions. Keywords: Human Virtualization. Ethic. nature. Digital 13 empowerment. Technology. Perspectivas 1.1 INTRODUÇÃO Um dos ensinamentos que podemos extrair da experiência do isolamento social proveniente da pandemia da COVID-19, é o fato de que não temos o controle sobre os acontecimentos sejam eles naturais ou históricos, tampouco conseguirmos prever todas as consequências da ação humana. A ameaça representada pelo Novo Coronavírus redefiniu a realidade social, desencadeando um deslocamento das atividades da dimensão física para a dimensão virtual: empresas passaram a priorizar o atendimento on line; a Educação a Distância adquiriu proporções inimagináveis; as operações bancárias e pagamentos on line multiplicaram-se devido a exigência da utilização de cartões magnéticos e de aplicativos bancários. Diante dessa nova realidade, as pessoas têm sido progressivamente condicionadas a migrar da realização presencial para a realidade virtual, buscando serviços e resolução de problemas através da internet. Aqueles que ainda não estavam inseridos nos ambientes virtuais, se confrontaram com grandes desafios no que diz respeito às decisões profissionais, comerciais e até mesmo à manutenção da subsistência. Muitos diriam que este aumento da virtualização das operações facilita a vida de todos garantindo a solução das questões práticas e obrigando a uma simplificação da burocracia em nome da eficiência, flexibilizando o rigorismo das regras e oportunizando uma acessibilidade sem precedentes, em que as distâncias entre as pessoas são delimitadas por cliques na tela. Porém, estes mesmos mecanismos que visam facilitar a vida, têm implicações mais profundas, por um lado, a nível do processo de constituição da subjetividade, por outro lado, a nível do processo da constituição e manutenção do corpo social e político. Ainda as interações virtualizadas unidas à necessidade 14 “Empoderamento Digital”?... do distanciamento social têm um impacto direto no estado de saúde físico e mental dos indivíduos e também da coletividade. Desse modo, o objetivo deste capítulo é compreender de que forma este “empoderamento digital” compromete, limita e/ou redefine o nosso ethos1 e a nossa forma de pensar, de fazer e de viver a política. 1.2 PRECURSORES DO “EMPODERAMENTO DIGITAL” Pode-se dizer, em linhas gerais, que existem dois precursores do processo de concentração do poder digital na sociedade: 1º) A Revolução técnocientífica ocorrida no século XX, a qual teve início com o surgimento da Imprensa de Gutemberg (século XV), com a filosofia de Francis Bacon (1561-1626) considerado o precursor da Ciência moderna, com a distinção entre fato e valor, distinção configurada por Galileu Galilei (1564-1642) que redirecionou a nossa forma de pensar e fazer ciência2 e com René Descartes (1596-1650) 1 O termo ethos significa costume, comportamento e espaço de realização humana; ele aparece na obra Paidéia: a formação do homem grego, escrita por Werner Jaeger ao se referir a Odisséia, de Homero: “Em vez das grandiosas paixões das figuras sobrehumanas e dos trágicos destinos da Ilíada, deparamos no novo poema com grande número de figuras de estatura mais humana. Todos têm algo de humano e amável; nos seus discursos e experiências domina o que a retórica posterior apelidou de ethos” (WERNER, 1995, p.30-31). O estudioso analisa o termo remetendo a convivência humana cujas decisões são pautadas numa formação elevada, num decoro, numa continência proveniente do caráter e da educação. Para melhor compreensão do termo ethos indicamos o artigo de Pedro Costa Rego, Hábito e liberdade: algumas considerações sobre a natureza do ethos, publicado na Revista Síntese Nova Fase (v. 22, n. 69, 1995). 2 Embora esta distinção tenha-se tornado manifesta já com a polémica causada por Copérnico, é Galileu que contribui diretamente com a defesa da autonomia da ciência face à autoridade da Igreja católica. Diz Mariconda e Lacey (2001, p.52) que "o argumento de Galileu — refinado, generalizado e suplementado — permanece no centro de todas as defesas da autonomia da ciência. Para ele, podemos dizer, a 15 Perspectivas que instituiu a posição do sujeito do conhecimento diante do objeto visado na obra Meditações metafísicas (1641), estabelecendo os passos do método científico em suas obras Discurso do Método (1637) e Regras para direção do espírito (1684) e, por fim, nos permitiu ter acesso à visão mecanicista acerca da natureza ao comparar o funcionamento dos corpos ao das máquinas, citando particularmente o relógio em suas Meditações metafísicas (cf. a comparação entre o corpo e o relógio no § 31). A Revolução técnocientífica, teve sua gestação durante a Modernidade, onde se viu o surgimento de várias ciências, originadas a partir do desenvolvimento e da aplicação do método científico – procedimento técnico validador dos conhecimentos elaborados e comprovados cientificamente segundo a compreensão moderna de Ciência, cuja evolução transitou para a denominada tecnociência3 , possibilitando a união entre a informática e a internet na contemporaneidade. 2º) O segundo elemento precursor é a expansão da virtualização, possível devido ao aperfeiçoamento dos instrumentos de comunicação e informática, os quais contribuíram para o processo de globalização econômica, política e social. Vejamos o que nos diz um estudioso da tecnologia: Uma coisa é certa: os instrumentos modernos da comunicação e da informática simplificam o processo de globalização, já que as informações – além da telefonia – que podem ser processadas eletronicamente, como plantas de construção, comandos de autonomia é necessária porque as práticas científicas contribuem para produzir conhecimento do mundo, representado por teorias que manifestam sempre no mais alto grau a imparcialidade e a neutralidade”. 3 A expressão tecnociência é adotada pelo filósofo psicanalista Umberto Galimberti em seu texto Man in the age of technology, publicado no Journal of Analytical Psychology (v. 54, n. 1, 2009). 16 “Empoderamento Digital”?... máquinas, programas de software, etc., tornam-se sem qualquer problema transferíveis, permitindo uma descentralização sensata dos processos empresariais além das fronteiras nacionais (MARON, 2001, p. 182-183). Como vemos, a internacionalização das relações econômicas, concretizadas nas operações de importação e exportação entre as nações e nos denominados blocos econômicos, tais como a União Europeia e o Mercosul – Mercado comum do Sul; a internacionalização das decisões políticas, facilitadas pelos acordos e os protocolos de intenções assinados durante os Fóruns e demais eventos de cunho internacional em busca de soluções para os problemas globais e a internacionalização cultural transmitida e propagada através dos meios de comunicação, permitindo o acesso aos mais distintos elementos culturais é possível devido à crescente expansão do acesso à internet. Para entender como o globo virou uma “Aldeia global” interligada virtualmente precisamos voltar a reflexão sobre a filosofia cartesiana e baconiana, as quais deram o suporte metodológico para o desenvolvimento da Ciência na modernidade. O projeto moderno do sujeito cognoscente (cf. DESCARTES, 2004, §4) , que dirige o olhar para a natureza a partir da visão mecanicista (vide DESCARTES, 2004, §6) e matemática (CF. DESCARTES, 1999, regra IV) presente na filosofia de René Descartes e que entende o conhecimento como fonte de intervenção prática na natureza advinda do princípio baconiano do “saber é poder” (cf. BACON, Novum Organum, aforisma III) fez o homem crer que a partir da ciência e da tecnologia, ele conseguiria assumir o controle de sua existência, projetando-se enquanto, senhor e dono da natureza. Nesse sentido, Heidegger em seu texto “Die Frage nach der Technik” - A 17 Perspectivas Questão da Técnica (1938), alertou instrumentalidade técnica; vejamos: sobre os perigos da Entretanto, justamente este homem ameaçado se arroga como a figura do dominador da terra. Desse modo, amplia-se a ilusão de que tudo o que vem ao encontro subsiste somente na medida em que é algo feito pelo homem. Esta ilusão torna madura uma última aparência enganadora. Segundo esta aparência, parece que o homem em todos os lugares somente encontra mais a si mesmo. Heisenberg apontou com toda razão para o fato de que, para o homem de hoje, a realidade deve se apresentar desse modo mesmo (op. cit.p.60 s.). Entretanto, o homem de hoje, na verdade, justamente não encontra mais a si mesmo, isto é, não encontra mais sua essência. O homem está tão decididamente preso à comitiva do desafiar da armação, que não a assume como uma responsabilidade, não mais dá conta de ser ele mesmo alguém solicitado e, assim também, não atende de modo algum ao fato de que, a partir de sua essência, ele ek-siste no âmbito de um apelo e que, por isso, nunca pode ir somente ao encontro de si mesmo (HEIDEGGER, 1997, p.79). O que Heidegger quer dizer quando afirma que o “o homem de hoje não encontra mais a sua essência”? Significa admitir que o homem não é capaz de pensar por si mesmo, de ser criativo e usar da própria inteligência para se reinventar e pensar para além do modo instrumental, para além das relações de troca e compensação, para além dos objetos, dos ambientes e dos sistemas programados. Enfim, significa desistir de si mesmo e da humanidade, embora devamos compreender o sentido destes conceitos, a saber, sujeito e humanidade, assim como um outro conceito ético fundamental – a responsabilidade – e mais precisamente, a responsabilidade humana perante a técnica. Na primeira parte deste capítulo reconstruíram-se os argumentos centrais de Heidegger em A questão da Técnica. Na 18 “Empoderamento Digital”?... segunda parte buscamos refletir sobre a essência da técnica, a tecnologia e o seu destino desafiador em relação ao homem e a possibilidade de reencontro do homem consigo mesmo a partir das questões fundamentais evocadas pela ética e a política. 1.3 ESSÊNCIA E TECNOLOGIA EM HEIDEGGER Em A Questão da Técnica, texto escrito em 1954, Heidegger questiona o lugar e o papel da tecnologia no processo do aparente declínio da civilização ocidental. O autor introduz aquilo que viria a ser um leitmotiv na filosofia da tecnologia até Hans Jonas nas décadas de 1970 e 1980, a ideia que os seres humanos e a natureza enquanto tal são percebidos e/ou compreendidos através de uma lente tecnológica4. Contudo, Heidegger tenta identificar os modos através dos quais o sujeito pode transformar a sua relação com a tecnologia a fim de estabelecer uma relação verdadeira, i.e., no sentido de que os homens não vivam condenados ao controle do poder tecnológico. A resposta de Heidegger a este desafio pode nos ajudar a pensar os desafios sociais que confrontamos hoje e que, em contexto de pandemia e isolamento social, se tornam mais evidentes. Uma das semelhanças entre o nosso tempo e o momento em que Heidegger escreveu, consiste no modo como a nossa percepção do tempo e do espaço tem mudado. Aparentemente, e em um cenário onde tudo está à distância de um clique e de uma conexão de internet, o tempo e o espaço parecem ter substanciado a distância que nos separa uns dos outros, mas é esse efetivamente o caso? Pensar a 4 Em última análise, isto pode nos permitir estabelecer uma ponte entre a crítica da tecnologia e a crítica do capitalismo, na medida em que os seres humanos são meros meios no processo de produção e por isso, substituíveis. 19 Perspectivas questão do tempo e do espaço é, de alguma forma, pensar acerca das condições de possibilidade da (nossa) experiência (no mundo), tal como Kant formulou na Crítica da Razão Pura (1781). Em vista disso, como nos percebemos a nós mesmos em um mundo onde tudo parece ter sido reduzido a simples meios de produção, de consumo e de prazer instantâneo? Como definimos a técnica ou a tecnologia? Como meio para um fim? Que fim? Heidegger evidencia que embora a tecnologia tenha uma dimensão instrumental, a sua essência não é tecnológica, logo, a tecnologia não pode ser reduzida a mero meio, uma vez que, a tecnologia é o espaço, o evento, é onde as coisas e fenômenos aparecem para nós e para os outros. É precisamente este evento de aparecer, de tornar presente, de afirmar a realidade de algo, que deve ser objeto da nossa atenção. O acontecimento da aparência é um evento, isto é, um ato de revelação que, tal como o entendimento grego da palavra aletheia se dá de um modo que exige existência e interpretação, ou seja, a experiência de ser no mundo e a capacidade de decifrar através da linguagem (logos)5. Ao colocar o problema nestes termos, Heidegger desloca a atenção para nós mesmos enquanto seres que estabelecem determinadas relações com a tecnologia, consigo mesmo e com outros através da tecnologia. Embora Heidegger não fale nestes termos, estamos convencidos de que, a exemplo de Sócrates, que nos convocou ao retorno reflexivo diante de nossa existência, Heidegger faz o mesmo: ele provoca a nossa compreensão acerca de nós mesmos, conduzindo-nos a pensar e talvez responder: 5 No texto Que é isto, a Filosofia?, Heidegger esclarece a importância do logos não só como linguagem ou razão, mas como diálogo, como algo que supõe a publicidade e o outro. É exatamente esta relação que será explorada por Arendt na sua concepção de política: a relação entre ocasionar, dar início (natalidade, imprevisibilidade) aparecer, tornar-se presença e a própria relação entre verdade e opinião. 20 “Empoderamento Digital”?... quem somos nós? Como nos constituímos enquanto sujeitos? Como nos relacionamos interpessoalmente e pessoalmente? Esses questionamentos se tornam relevantes ao refletir sobre o primeiro tópico desenvolvido no presente texto, o qual aborda a relação entre as ciências naturais e a tecnologia. Pode-se dizer que as ciências naturais se consolidaram porque o horizonte tecnológico já estava pré-determinado, isto é, primeiro precisamos pensar em termos tecnológicos (movidos pelo impulso e compulsão de ordenar as coisas) e depois olhamos para a natureza como aquilo que deve ser ordenado. Da mesma forma, o tipo de relações que estabelecemos hoje é prédeterminado por este horizonte tecnológico que, reflete sobre nós a aparente necessidade de viver de determinados modos, como se fossemos meros meios, fontes humanas substituíveis entre outros “objetos” numa realidade fluída6. Porém, e aqui reside a genialidade de Heidegger, através de um compromisso primário e primordial com a linguagem entendida como revelação7, o que aparece, aparece como algo que suporta algo mais essencial. Retornando à linguagem e aos seus significados etimológicos, Heidegger explora as camadas de sentidos entre o Grego e o Alemão e nesse sentido, aquilo que aparece dá início a algo8. Um trazer para a frente, como a poiesis grega 9 . O evento torna presente e ao fazê-lo assistimos a um movimento simultâneo, quase de espelhamento, de velamento e desvelamento, de re-velação no sentido de das Entbergen em alemão, aletheia em grego e veritas em latim. Ao levantar a questão 6 Sobre a realidade fluída, com objetivo de complementar a análise heideggeriana, sugerimos a leitura da obra Amor Líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos, de Zygmunt Bauman (2004). 7 Ver A Caminho da Linguagem, de Heidegger (2003). 8 Hypokeisthai - presença de alguma coisa que se apresenta. Trazer algo a aparência. an-wesen. 9 Heidegger diz que physis é a poiesis no mais alto sentido. 21 Perspectivas da revelação, Heidegger nos conduz à questão da tecnologia e fica claro que para o autor é impossível reduzir a tecnologia a uma questão de instrumentalidade. Nas palavras heideggerianas “Technology is therefore no mere means. Technology is a way of revealing. If we give heed to this, then another whole real, for the essence of technology will open itself up to us. It is the realm of revealing, i.e., of truth” (HEIDEGGER, 1977, p.12). Isto significa que o fim da tecnologia não se esgota no seu uso instrumental; pelo contrário, ao conceber a tecnologia como domínio onde a revelação da verdade se dá, Heidegger mostra que ao colocar a questão da tecnologia somos obrigados a colocar a questão acerca de nós mesmos, enquanto sujeitos para quem a tecnologia se apresenta como domínio (de aparência) e como problema, em última análise, ontológico. A tecnologia moderna, embora também seja revelação10 não o é em sentido de poiesis; em vez disso, “The revealing that rules in modern technology is a challenging, which puts to nature the unreasonable demand that it supply energy that can be extracted and stored as such” (HEIDEGGER,1977, p. 14). A revelação desafia o modo como a relação entre seres humanos e natureza é concebida e projetada. Embora Heidegger esteja pensando na tecnologia moderna enquanto desafio dos limites da natureza, pensamos que este raciocínio pode ser estendido de modo a abarcar desafios contemporâneos, em especial aqueles que dizem respeito à nossa própria natureza ou condição humana, isto é, aos modos pelos quais nos revemos na definição de humano e nos seus desdobramentos éticos e políticos. Heidegger (1977, p.16) afirma: 10 Se techne é um trazer para a frente, poiesis, também está desde Platão conectada a episteme. A tecnologia é um modo de revelar “technology comes to presence in the realm where revealing and unconcealment take place, where aletheia, truth, happens” (HEIDEGGER, 1977, p. 13). 22 “Empoderamento Digital”?... […] unlocking, transforming, storing, distributing, and switching about are ways of revealing. But the revealing never simply comes to an end. Neither does it run off into the indeterminate. The revealing reveals to itself its own manifoldly interlocking paths, through regulating their course. This regulating itself is, for its part, everywhere secured. Regulating and securing even become the chief characteristics of the challenging revealing. A revelação é um desafio para nós, seres humanos, na medida em que embora não controlemos o processo de revelação ou o processo de desvelamento, estamos no processo de revelação e por isso, somos convidados a confrontar esses eventos, esse desafio de estar perante si próprio e definir-se como ser no mundo, na natureza e assim, impor-lhe ordem11: Enframing means the gathering together of that setting-upon which sets upon man, i.e., challenges him forth, to reveal the real, in the mode of ordering, as standing-reserve. Enframing means that way of revealing which holds sway in the essence of modern technology and which is itself nothing technological (HEIDEGGER, 1977, p.20). A armação (denominada a essência da técnica) não é a tecnologia, mas sim o modo através do qual o real se revela. Poderíamos fazer uma comparação entre o conceito heideggeriano de “armação" e o conceito de Deleuze e Guattari (1994) de "plano de imanência”, já que ambos podem ser compreendidos como fornecendo as condições de possibilidade de ser, de aparecer enquanto ser, de revelar o ser enquanto existência; e, a partir de uma 11 “Man indeed conceive, fashion, and carry through this or that in one way or another. But man does not have control over unconcealment itself, in which at any given time the real show itself or withdraws. The fact that the real has been showing itself in the light of Ideas ever since the time of Plato, Plato did not bring about. The thinker only responded to what address itself to him” (HEIDEGGER, 1977, p.18). 23 Perspectivas perspectiva filosófica, como a atividade de criar conceitos12. Sob este prisma, é possível afirmar que os atos tecnológicos, as escolhas e as invenções, não acontecem no vazio, mas ao contrário, refletem uma atividade humana e um horizonte mais amplo no qual podem efetivamente emergir e se destacar. O problema para Heidegger é que, dado que a tecnologia substituiu progressivamente as conexões familiares entre partes do todo e o próprio todo enquanto sistema no qual os seres humanos se tornam completamente substituíveis, a tecnologia aparece como se tivesse um poder ilimitado e incontrolável, afetando tudo: natureza, humanos e até deus. 12 “Enframing is the gathering together that belongs to that setting-upon which sets upon man and puts him in position to reveal the real, in the mode or ordering, as standing-reserve. As the one who is challenged forth in this way, man stands within the essential realm of Enframing” (Heidegger, 1977, p.24). Se tomarmos em consideração a conceituação de “plano de imanência” de Deleuze e Guattari (1994, p. 37-38, grifo nosso) veremos a conexão entre os dois conceitos, os autores dizem: “Movement of the infinite does not refer to spatiotemporal coordinates that define the successive positions of a moving object and the fixed reference points in relation to which these positions vary. ‘To orientate oneself in thought’ implies neither objective reference point nor moving object that experiences itself as a subject and that, as such, strives for or needs the infinite. Movement takes in everything, and there is no place for a subject and an object that can only be concepts. It is the horizon itself that is in movement: the relative horizon recedes when the subject advances, but on the plane of immanence we are always and already on the absolute horizon. Infinite movement is defined by a coming and going, because it does not advance toward a destination without already turning back on itself, the needle also being the pole. If ‘turning toward’ is the movement of thought toward truth, how could truth not also turn toward thought? And how could truth itself not turn away from thought when thought turns away from it? However, this is not a fusion but a reversibility, an immediate, perpetual, instantaneous exchange-a lightning Hash. Infinite movement is double, and there is only a fold from one to the other. It is in this sense that thinking and being are said to be one and the same. Or rather, movement is not the image of thought without being also the substance of being”. Tal como a filosofia começa com a criação de conceitos e o plano de imanência é o horizonte pré-filosófico, também a armação é o horizonte pré-tecnológico onde a tecnologia emerge e aparece na sua conexão com os humanos, com a natureza e com a verdade. 24 “Empoderamento Digital”?... O desafio de revelar e projetar ordem, está diretamente associada com a essência da liberdade. Para Heidegger (1977, p.25) “the essence of freedom is originally not connected with the will or even with the causality of human willing". A compreensão heideggeriana de liberdade é radicalmente distinta da forma como geralmente concebemos liberdade na história da filosofia, no sentido de relacionar a liberdade com a vontade humana. Em Heidegger, a liberdade torna-se o horizonte, a abertura para aquilo que se revela. A liberdade permite o des-velamento, a re-velação, a ex-periência entendida enquanto ex-ternalização da verdade. Assim, somos conduzidos a constatar que existe uma relação necessária entre verdade e liberdade. Nessa acepção, a essência da tecnologia moderna é este ato de revelar, no entanto, isto não deve ser interpretado de modo fatalista; pelo contrário, a essência da tecnologia moderna revela a natureza de seres humanos que constantemente testam os seus próprios limites, o que representa por si só um perigo. O perigo reside no fato de que, embora este impulso seja característico em nós e nos constitua enquanto seres do e no mundo, nem sempre conseguimos interpretarnos, nem às tecnologias que são nossa invenção. Deste modo, para Heidegger, o desafio diante da tecnologia tem a ver com a capacidade, ou incapacidade, de experimentar uma verdade primordial e de confrontar a questão eterna: quem somos nós e quem estamos dispostos a nos tornar. Como interpretar este olhar heideggeriano quando confrontados com os avanços tecnológicos? Pode-se dizer que o perigo não reside no desenvolvimento da inteligência artificial, no desenvolvimento dos algoritmos que mapeiam os nossos movimentos na internet e que orientam nossas condutas sem que nos 25 Perspectivas apercebamos, nem nos modos como incorporamos CRISPR 13 de forma a ajustar, corrigir ou substituir o genoma humano, o perigo reside no fato de que possamos identificar erroneamente o que está realmente em causa. Dito por outras palavras, não se contesta o progresso tecnológico em si, mas antes quem somos enquanto seres humanos e quem desejamos nos tornar. A tecnologia nos abre esse horizonte e nos projeta em um cenário radicalmente novo, visto ser possível imaginar que podemos tornar-nos algo diferente (do que somos), num curto espaço de tempo; além disso, a tecnologia revelanos a nós mesmos e obriga-nos a levantar a questão acerca do que não somos: vê-se o orgânico diante do mecânico, o livre racional diante do técnico e não-racional, o afetivo diante do programado e isto tudo ora nos fascina ora nos desconcerta, exigindo a necessidade de reconhecer que precisamos estabelecer limites para as nossas ações. Esta necessidade não é física, mas é uma necessidade ética fundada na compreensão metafísica de quem somos enquanto seres e quão ligados estamos com a experiência do Ser, da Liberdade e da Verdade. Nesse desafio ético, a linguagem assume um papel fundamental, já que é apenas através da linguagem que conseguimos visualizar, estabelecer e projetar limites éticos, sustentados por discursos racionais. A linguagem é para Heidegger, a dimensão primordial na qual os seres humanos podem sentir e ser. Citando Hölderin, Heidegger (1977, p.28) afirma: “Where danger is, grows the Saving Power also”. O reconhecimento do perigo trazido pela tecnologia proporciona um deslocamento no modo como nos relacionamentos conosco enquanto sujeitos éticos, com os outros, com a vida e com o próprio perigo tecnológico. É o perigo da “ontificação”, de tornarmonos predadores uns dos outros, mediados pelos meios tecnológicos; 13 Ver CRISPR: a new principle of genome engineering linked to conceptual shifts in evolutionary biology, de Koonin (2019). 26 “Empoderamento Digital”?... incorremos assim em uma acepção de “empoderamento digital” que se define enquanto condição de subserviência diante da tecnologia, fato caracterizado na terminologia kantiana como heteronomia da vontade, isto é, incapacidade de servir-se das próprias faculdades humanas para refrear o que nos prejudica; a tomada de consciência de que existe um perigo essencial sinaliza para a libertação, isto revela, ao mesmo tempo, que o inimigo mais robusto e perigoso não está na realidade externa, mas é invisível e está em nós e entre nós. Se captarmos esta revelação de que estamos em perigo, talvez consigamos reconhecer o “poder salvador” da tecnologia; poderemos redirecionar a nossa essência, entendida não como algo imutável ou constante mas sim pensada a partir da recuperação do sentido grego de poiesis - de trazer para a frente, de aparecer, de tornar presente, de tornar-se presença. Assegura Heidegger (1977, p.32): “that we ponder this arising and that, recollecting, we watch over it. How can this happen? above all through our catching sight of what comes to presence in technology, instead of merely starting at the technological”. Talvez esta seja a nossa tarefa hoje: compreender o que a tecnologia torna possível, fazendo-o presente, sem por isso ser capturado pelo seu aspecto ou aparato tecnológico. Como Heidegger pode nos ajudar a compreender a condição presente do homem? Busquemos auxílio na reflexão antropológica de Immanuel Kant, escoltada pela contribuição de alguns pensadores acerca das consequências prejudiciais e os aspectos relevantes trazidos pela tecnologia na atualidade. 27 Perspectivas 1.4 O ETHOS, A TÉCNICA E O LUGAR DO REENCONTRO HUMANO Como estão as relações humanas mediadas através dos meios tecnológicos durante esta situação da pandemia da COVID-19? Como ficaram as conexões entre aqueles que usufruem da alta tecnologia e os desprovidos do acesso a realidade virtual, seja devido à deficiência de condições econômicas, a posse de equipamentos obsoletos e até mesmo ao “analfabetismo digital”? Como e com que qualidade percorremos diariamente as infovias que compõem a rede mundial de computadores? Como se experimenta a sensação de estar em posse de recursos tecnológicos tão potentes no alcance e na abrangência, mesmo sabendo que há tantos desprovidos de tais meios tecnológicos? O que há em nossa natureza que impulsione o poder de influenciar a muitos? Por que temos sede de controle? O desejo de poder impulsionado pelo conhecimento que se tem dos equipamentos, dispositivos e sistemas de informação na atualidade oportuniza a manifestação das paixões humanas de civilização, assim denominadas pelo filósofo Immanuel Kant em sua obra Antropologia de um ponto de vista pragmático (1798).Segundo Kant, tais paixões são adquiridas através da convivência com os nossos semelhantes, onde prevalecem relações de competição em detrimento da cooperação social; quando isto ocorre há uma vivência desviante do exercício pleno da liberdade, ocorrendo uma situação de instrumentalização do outro, isto é, quando o sujeito se move para satisfazer interesses pessoais guiados pela racionalidade privada, sendo esta dirigida pelos imperativos hipotéticos, ou seja, pelos ditames racionais, onde nos colocamos numa posição técnica (visando fins previamente determinados) ou pragmática (visando o bem estar 28 “Empoderamento Digital”?... pessoal) de escolha dos meios adequados em vista dos fins a que se destina o nosso querer. Quais seriam estas paixões de civilização? E como ocorre o fluxo de influência destas sobre a nossa vontade? De acordo com Kant, as paixões de segundo gênero, assim denominadas devido a sua proveniência nas condições culturais e civis em que estamos inseridos, são “a ambição, desejo de poder e cobiça, que não estão ligadas à impetuosidade de uma afecção, mas à persistência de uma máxima dirigida a certos fins” (KANT, 2006, §81, p.165). Essas paixões se encontram unidas à razão e geralmente seguem um curso de meios em vista de fins, isso significa dizer que, quando os fins são exclusivamente particulares e privados da ordem pública, os bens públicos de um modo geral, deixam de ser prioridade. Nesse seguimento, os objetos técnicos e a acessibilidade virtual atendem as necessidades de modo eficiente e personalizado, fator esse que pode reforçar a configuração de subjetividades narcisistas, por um lado, ou impulsionar o modismo de estilos, por outro. Deste modo o que se vê atualmente é uma crescente preocupação em priorizar a realidade estética14, em se portar no parecer e através da imagem e não da ética, onde se assume a escolha de modo responsável e necessário15. Alguns autores têm alertado nos seus escritos com relação à condição humana e sua relação negativa com o contexto tecnológico, dentre esses autores se destaca Guy Debord, que em 1967 publicou A Sociedade do Espectáculo, denunciando o novo modelo de vida o hegemônico em que o espectáculo se torna ideologia; Jean 14 Nossa afirmação tem respaldo argumentativo nas colocações de Gilles Lipovetsky presentes na obra A sociedade pós-moralista: o crepúsculo do dever e a ética indolor dos novos tempos democráticos (1992). 15 No sentido do reconhecimento da lei moral apresentada a nós como imperativo categórico kantiano, presente na obra Fundamentação da metafísica dos costumes (1785). 29 Perspectivas Baudrillard, que publica A Sociedade de Consumo (1970), ou Simulacros ou Simulação (1981), obra na qual o autor questiona a própria relação com o real, não apenas porque tudo se resume à lógica do consumo desenfreado, mas também porque pouco a pouco os seres humanos perdem o vínculo com o real e são absorvidos por uma outra dimensão não real. Como podemos entender a relação entre a influência das paixões de civilização, provenientes da combinação entre a nossa constituição antropológica natural (dotada de propensões inclinadas ao interesse de autoconservar-se egoisticamente) e os elementos sócioculturais, tais como as normas sociais, as leis positivas e as instituições civis, associados ao impacto da virtualização em escala global? Na Antropologia de um ponto de vista pragmático, especificamente no parágrafo 80 Kant manifesta a sua preocupação com o barreira que as paixões representam quanto ao exercício pleno da liberdade, manifestada enquanto possibilidade de aperfeiçoamento: “a paixão é um encantamento que excluí também o aperfeiçoamento” (KANT, 2006, p.163). Sob a influência das paixões a pessoa se torna cega quanto a compreensão das consequências decorrentes de suas escolhas, realizando um querer inclinado a satisfação do impulso e do cálculo interesseiro; quando a pessoa se encontra sob a influência das paixões, em especial o desejo de dominação e a ambição, ela se encontra disposta a competir para conseguir o que deseja e age para manter o que lhe pertence a qualquer custo. Quando esta mesma pessoa se encontra nos ambientes virtuais em contato com os demais ‘internautas’ tende a projetar-se como alguém persuasivo e manipulador, alimentando a imagem de estar sob o anonimato digital, deste modo deseja controlar e não ser controlado, ofender e não ser ofendido, influenciar sem ser descoberto, isto é visivelmente uma ilusão. 30 “Empoderamento Digital”?... A configuração passional presente em nossa constituição antropológica tornaria o homem predisposto a entregar-se aos destinos da técnica, de modo a não mais ser capaz de conceber o perigo a que está exposto na atualidade, tornando-se não responsável. Em outras palavras, além das paixões que, por si só, constituem um obstáculo ao exercício da racionalidade crítica 16 e aceitando a caracterização antropológica kantiana, reconhecemos a predisposição humana a se deixar esmagar pelo espetáculo e simulacros, convidativos ao cultivo de personalidades narcisistas, daí a dificuldade em pronunciar algum juízo em relação às tecnologias e técnicas incorporadas como modo de vida individual e coletivo. Embora em contextos históricos diferentes, Immanuel Kant no século XVIII e Martin Heidegger no século XX, é válido ressaltar a preocupação de ambos em torno da responsabilidade humana 17 . Como pensar a responsabilidade num contexto de hiper-realidade, de virtualidade maciça, em que a tecnologia permeia e se torna condição de possibilidade das relações humanas? Somos condicionados a admitir que não há mais o que fazer senão mergulharmos na perspectiva tecnológica correndo em direção 16 Visto impulsionarem a percepção e a mente para os objetos externos e realidades exteriores ao sujeito, sendo tais realidades construções e sistemas programados para funcionar tecnicamente segundo um destino artificial e não mais natural no que se refere à ordem da physis grega, cuja constituição in natura manifesta uma ordem auto regulada em ciclos integrativos nos ecossistemas. Conferir onde Kant afirma: “Percebe-se facilmente que as paixões são altamente prejudiciais à liberdade” (KANT, 2006, §80, p.163). 17 Hannah Arendt é um bom exemplo de pensadora contemporânea que, de forma única e distinguível, articula as duas influências: a influência de Heidegger traduzida no modo como propõe uma fenomenologia política, assim como no modo como constrói e desenvolve os conceitos de ação (na sua relação com ocasião/evento), mundo, política, compreensão e responsabilidade; e a influência de Kant, traduzida no modo como desenvolve as condições de possibilidade do juízo (político) a partir da leitura política da Crítica da Faculdade de Julgar. 31 Perspectivas ao artificialismo instalado em processo, onde o instalado, o projetado, enfim, o artificial é preferível em detrimento do natural, isto nos distancia da concepção da physis (in natura) da natureza entendida entre os gregos. Vejamos como Heidegger nos apresenta a natureza desafiada pela técnica: O campo é agora uma indústria de alimentação motorizada. O ar é posto para o fornecimento de nitrogênio, o solo para o fornecimento de minérios, o minério, por exemplo, para o fornecimento de urânio, este para a produção de energia atômica, que pode ser associada ao emprego pacífico ou à destruição (HEIDEGGER, 1997, p.57). O responsável por essas transformações naturais apontadas por Heidegger é o próprio homem e se o propósito e a finalidade desses processos não for a vida humana, de nada valem. Se no âmbito das escolhas do ethos – entendido como espaço de realização humana, no qual se manifesta a vontade que decide integrar-se ou desagregar-se socialmente, o ‘humano’ não for a referência de maior valor, então estamos fadados ao fracasso existencial. O mesmo vale nas instâncias políticas, nas quais as decisões de alguns poucos representantes são projetadas sobre grandes populações; se na tomada das decisões públicas o povo e as instituições públicas não forem o referencial na tomada de decisões, de nada vale o processo de mecanização dos recursos naturais, ocorrendo assim uma espécie de predatismo18 em relação à natureza. Trata-se, portanto, de pronunciar juízo frente a realidade tecnológica e técnica e ser capaz de determinar o que constitui um bom uso da tecnologia e da técnica. Sabemos que é possível escolher 18 Sobre a compreensão do homem enquanto predador dos recursos naturais sugerimos a leitura da obra O mal limpo: poluir para se apropriar?, do filósofo Michel Seres (2008). 32 “Empoderamento Digital”?... utilizar bem a tecnologia, empregando os meios disponíveis para o bem da humanidade, isto é, orientar a técnica de acordo com uma finalidade que supõe uma concepção prévia, ou postulado, da natureza humana e do bem ou, na linguagem que remonta aos gregos, a “boa vida”. Segundo o filósofo Pierre Levy, um grande entusiasta das novas tecnologias da informação, vivemos em uma sociedade em rede, na qual todos estão interligados virtualmente e o conhecimento é construído coletiva e globalmente; toda vez que acessamos uma tela virtual, interagindo com os nossos semelhantes conectados, possibilitamos a rede mundial de conexão realizar um mecanismo digital que nos permite um processo de auto ajuste constante das condições de ensino – aprendizagem, isto ocorre em todas as instâncias do saber humano, possibilitando uma visão colaborativa e compartilhável dos conhecimentos produzidos por todos os envolvidos no processo de acesso às informações. Nesse sentido, o poder de decisão proveniente desse modelo colaborativo de saber possibilita novos horizontes no que se refere à vivência dos valores éticos. Vejamos o que afirma Levy: “o ciberespaço manifesta propriedades novas, que fazem dele um precioso instrumento de coordenação não hierárquica, de sinergização rápida das inteligências, de troca de conhecimentos, de navegação nos saberes e de autocriação deliberada de coletivos inteligentes” (LEVY, 2011, p.117). As “propriedades novas” relativas ao ciberespaço, isto é, aos ambientes virtuais tais como sites, blogs, plataformas, redes sociais, etc. são a interatividade, a publicidade das informações, a simultaneidade e a universalidade de acesso aos dados e conteúdos disponíveis na rede mundial de computadores; todas estas “propriedades” nivelam os usuários conectados numa grande plataforma de colaboração coletiva, deste modo a ordem hierárquica (ora ensinada pela tradição) que delimitava bem os papéis de quem sabe e ensina e daquele que não 33 Perspectivas sabe e deve aprender, é abalada e gradativamente substituída por uma nova configuração cujo propósito é tornar o homem um ser autodidata colaborativo, entendendo-se “autodidata” enquanto aquele que desenvolve a capacidade de aprender por si só, o que não significa tornar-se autosuficiente diante dos outros. Sabemos que há o risco dos saberes permanecerem concentrados em pequenos grupos privilegiados, seja devido as suas condições econômicas, seja devido ao melhor preparo no que diz respeito à formação intelectual, contudo, baseados no pensamento de Levy, estamos diante da possibilidade de construção e acesso de uma cultura digital, cujos elementos são coletivos e não mais individuais e elitizados como queria a cultura burguesa19. Esta nova configuração dos saberes presentes no ciberespaço e, por princípio, acessível a todos, promete garantir uma equidade de condições, redefinindo-se os papéis no que diz respeito ao exercício 20 da autoridade e da responsabilidade de todos; embora ainda haja muitos que utilizam os ambientes virtuais com propósito desviante e de modo indiscriminado, vê-se o crescimento da vigilância coletiva devido ao acesso a informações e conteúdos mais seguros, fato que predispõe a construção de uma cultura de transparência e sinceridade; a interatividade virtual permite a produção, o acesso e o compartilhamento de conteúdos significativos de modo nunca visto antes, isto é possível devido a oportunidade de acesso à condições tecnológicas semelhantes numa cultura digital. 19 Sugerimos ao leitor ver o que nos diz Levy sobre o “mundo da cultura” construído sob os moldes da burguesia em O que é o virtual? (2011, p. 120). 20 Quando nos referimos ao “exercício da autoridade e da responsabilidade” queremos comparar o novo modelo interativo, acessível e público com a perspectiva hierárquica e ordenada segundo os graus de concentração de conhecimento ou vivência histórica herdados da tradição ocidental. 34 “Empoderamento Digital”?... Como estudioso da tecnologia, Pierre Levy reconhece os desafios globais postos diante de todos, estando ele ciente das condições precárias dos equipamentos utilizados em muitos países, sobretudo nos países onde a vida econômica é baseada em atividades agropecuárias, neste sentido vê-se também a necessidade da inclusão digital, fator que gera condições de desigualdade social em nível global; vê-se também a produção e disseminação de conteúdos supérfluos no que diz respeito à edificação da coletividade, sendo necessária à seleção de conteúdos virtuais, pertinentes conforme a atuação do sujeito e a sua capacidade de discernimento tecnológico para com os conteúdos digitais oportunos ao desenvolvimento dos aspectos humanos mais nobres. Vejamos o que Pierre Levy, enuncia acerca dos impactos da virtualização: Graças aos produtos da atividade econômica e científica, e apoiando-se nos meios do ciberespaço, as relações de predação, de apropriação e de poder ganham novo impulso, numa escala ainda maior. De todo o reino animal, é o homem que pratica em mais alto grau o imperialismo territorial, a caça impiedosa e a implacável dominação. Mas é também no homem que esses tipos de relacionamento são momentaneamente suspensos graças à relação com o objeto. Certamente a tecnociência, o dinheiro e o ciberespaço fazem do homem um caçador, um proprietário, um dominador mais aterrorizante que nunca. Mas os grandes objetos contemporâneos só lhe conferem esses poderes forçando-o à submeter-se à experiência propriamente humana da renúncia à presa, da deserção do poder e do abandono da propriedade. A experiência da virtualização (LEVY, 2011, p.130). 35 Perspectivas Como notamos na citação, o pensador da tecnologia reconhece os perigos do emprego desviante que o homem faz de sua liberdade nos ambientes virtuais, se expondo ao risco do domínio do homem pelo homem, contudo, mesmo diante dos riscos e desafios frente ao virtual, o homem não vive em uma ilha visto que, todos estão interligados virtualmente, e por isso a experiência não é apenas subjetiva, mas essencialmente coletiva21. Nessa perspectiva, segundo Levy, o fenômeno da virtualização permite que a responsabilidade se torne coletiva, de modo que todos cuidem de todos, seja nas condições artificializadas do ciberespaço, seja nas condições empíricas em que ocorrem os relacionamentos humanos e os contatos com os demais seres e objetos da realidade atual. O fenômeno da virtualização nos faz pensar uma questão central à filosofia, tal como exposta pelos gregos e pela leitura foucaultiana das diferentes escolas (estoicismo, cinismo, epicurismo), além do próprio Sócrates, a saber, a questão do cuidado de si 22 . A pandemia trazida pela COVID-19 coloca a questão do cuidado no centro do ethos e da polis. 1.5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao se entregar de modo não reflexivo as constantes exigências da tecnologia, o homem corre o risco de perder a sua capacidade de identificação com os semelhantes, sendo capaz de os considerar obstáculos frente ao seu agir eficiente e efetivo, deste modo desvia-se 21 Esse exercício de poder escapa a qualquer tipo de controle, o que significa que a internet se torna o espaço de um outro tipo de experiência de dominação, absolutamente transnacional, sem qualquer tipo de instrumentos de fiscalização, controle ou até percepção. 22 Para leitura e interpretação de Foucault, sobre o cuidado de si e cuidado dos outros e suas implicações éticas e políticas ver A Hermenêutica do Sujeito e A Coragem da Verdade. 36 “Empoderamento Digital”?... da possibilidade de tornar-se melhor e humanamente mais aperfeiçoado. Segundo Kant em sua obra Ideia de uma História universal do ponto de vista cosmopolita (1784), a vivência plena da liberdade é possível na espécie humana 23 devido a nossa capacidade de perfectibilidade, ou seja, ao aperfeiçoamento resultante de um processo histórico, quando somos capazes de, fazendo uso prático da razão, conseguirmos ultrapassar a nossa constituição natural (onde prevalecem os elementos instintivos, em especial as paixões), não permanecendo apegados aos aspectos socioculturais, sobretudo aqueles onde reina a instrumentalidade técnica (governada pelo estabelecimento de meios em vista de fins) e pragmática (onde prevalece o interesse do bem estar e da satisfação pessoal), para atingir a dimensão ética, fundada no respeito e na virtude moral cujo propósito é o bem da humanidade. Aqui contextualizamos este bem quando evidenciamos a possibilidade do bom uso da tecnologia, onde o humano ocupa o lugar de referência em detrimento do mecânico e do artificial. Ainda de acordo com o pensamento kantiano, a possibilidade do aperfeiçoamento é desenvolvida de modo mais completo na espécie humana e não no indivíduo, e isso pode ser constatado ao olharmos para a história da humanidade, na qual em tempos mais remotos prevaleciam os aspectos instintivos, sendo os homens guerreiros e com sede de poder e vingança voltada a aniquilação dos inimigos (cf. KANT, 1992, p.39); posteriormente com o desenvolvimento da filosofia, da ciência e da cultura em geral, a humanidade chegar ao estágio da civilidade, cuja culminância vimos chegar a questão da técnica e da tecnologia, com suas implicações no ethos e na política. 23 Ver KANT, 1999, p.11. 37 Perspectivas Heidegger, por sua vez, reforça a relação intrínseca entre liberdade e verdade na experiência que temos enquanto seres do e no mundo, diante e através da tecnologia. A questão da técnica força a confrontar a questão eterna de quem somos nós, e sobretudo, o tipo de seres humanos em quem nos queremos tornar de acordo com o desvelamento e/ou re-velação da verdade. A leitura de Heidegger oferece uma perspectiva enriquecedora através do qual as diversas tecnologias podem ser avaliadas. Notamos que o filósofo Pierre Levy também aborda a dimensão antropológica quando fala do homem dotado do instinto de territorialidade, do poder e da dominação que, pode ser impulsionada através dos instrumentos tecnológicos. Corroborando com essa ideia lembramos de a reflexão heideggeriana sobre o perigo do homem tornar-se tecnificado, e consequentemente deixar de valorizar o que é propriamente humano em nome de um suposto progresso do qual não tem dimensão dos resultados a longo prazo. Contudo, para Levy, o fenômeno da virtualização nos permite adentrar na cultura digital, na qual todos vivemos na sociedade em rede, sendo capazes de cuidar e responder por nossas escolhas de modo mais transparente e visível aos outros. Deste modo, há à possibilidade de conexão entre o posicionamento filosófico de Heidegger, Kant e Levy, cujos propósitos são alertar, prevenir e possibilitar a nossa escolha consciente diante dos desafios que se nos apresentam. Em vista disso, a combinação entre os elementos presentes na natureza humana e os artifícios culturais provenientes da nossa capacidade inventiva, os quais são destinados segundo propósitos instrumentais vigentes no atual paradigma, um paradigma permeado 38 “Empoderamento Digital”?... por uma cultura multimídia 24 convocam-nos a um retorno responsável diante dos recursos naturais - os quais dão suporte enquanto matéria prima aos artefatos fabricados e aos demais sistemas criados pelo homem e diante de nós mesmos. Conforme Kant, só há um verdadeiro sentido de progresso humano e este progresso ocorre quando somos capazes de ultrapassar o puro interesse voltado aos objetos do nosso agrado, reconhecendo o que é realmente necessário em nossas escolhas. O entusiasmo de Levy com o desenvolvimento das novas tecnologias e com o novo modo de interação humana, realizado virtualmente numa sociedade em rede, nos permite imaginar a concretização da expectativa de progresso “profetizada” por Immanuel Kant em sua obra Ideia de uma História universal do ponto de vista cosmopolita (1784) onde a espécie humana atingiria o estágio de desenvolvimento mais avançado no que se refere ao cumprimento dos fins antropológicos necessários – o estágio da moralidade, ou seja, a condição histórica onde se manifesta a consideração valorativa de cada sujeito racional enquanto fim em si mesmo, havendo o respeito e a responsabilidade recíproca. Neste sentido o grande desafio é definir os limites e condições de possibilidade do “empoderamento digital” presente nas relações de convivência restritas (ethos) e nas interações sociais mais abrangentes, as quais constituem a ordem política, para que este não se reduza a um fenômeno que promove a inversão das prioridades, tornando o homem subserviente das suas invenções tecnológicas. 24 Sugerimos a leitura do artigo Ética da informação: o problema sob a ótica da ciência da informação de Wolf Rauch (2001). 39 Perspectivas REFERÊNCIAS BACON, Francis. Novum Organum ou Verdadeiras Indicações acerca da Interpretação da Natureza. 3. ed. Trad. Aluysio Reis de Andrade. São Paulo: Abril Cultural, 1984. BAUDRILLARD, Jean. A Sociedade de Consumo. Lisboa:Edições 70, 2009. BAUMAN, Zygmunt. Amor Líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2004. DEBORD, Guy. A Sociedade do Espectáculo, Rio de Janeiro: Contraponto, 2007. 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Embora estruturado por um encadeamento lógico primoroso, o texto em si, bem como suas traduções, podem causar confusões em leitores desatentos. Por ser uma obra essencial no cenário filosófico, em geral, é apresentada aos estudantes de filosofia no início de suas vidas acadêmicas. Pareceu-me importante, portanto, desenvolver um trabalho de introdução aos seus conceitos mais elementares, como ente, ser, substância, ato e potência. Assim, o objetivo desse trabalho é desenvolver, por meio de uma análise à Metafísica de Aristóteles e a Metafísica antiga e medieval de Rosset e Frangiotti, elencar e elucidar os elementos introdutórios da Filosofia Primeira. Destacar-se-á ainda, o motivo pelo qual Aristóteles denomina essa ciência como Filosofia Primeira, e, por conseguinte, relacionarei, se possível, a significação desse termo com a teleologia aristotélica. Palavras-chave: Metafísica de Aristóteles. Filosofia Primeira. Teleologia Aristotélica. Abstract: Aristotle's Metaphysics is a dense and difficult to understand book. Although structured by an exquisite logical chain, the text itself, as well as its translations, can cause confusion for inattentive readers. Because * Graduando em Filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná. E-mail: igordematos.academico@outlook.com. Perspectivas it is an essential work in the philosophical scene, in general, it is presented to philosophy students at the beginning of their academic lives. It seemed important, therefore, to develop a work of introduction to its most elementary concepts, such as being, being, substance, act and potency. Thus, the objective of this work is to develop, through an analysis of Aristotle's Metafísica and Rosset and Frangiotti's Metafísica antiga e medieval, to list and elucidate the introductory elements of First Philosophy. It will also be highlighted the reason why Aristotle calls this science First Philosophy, and, therefore, I will relate, if possible, the meaning of this term with Aristotelian teleology. Keywords: Aristotle's metaphysics. First Philosophy. Aristotelian Teleology 2.1 INTRODUÇÃO Antes de mergulhar nas trincheiras do pensamento aristotélico, é importante ter uma breve noção do que é metafísica. Impermeada de conceitos complexos e termos intraduzíveis1. A obra Metafísica carrega logo em seu título um significado importante, que já nos instiga a buscar compreender do que se trata, o que é, e porque é filosofia primeira. Aristóteles (384 a 322 a.C.) jamais utilizou o termo metafísica, que tem uma origem bem peculiar. A historiografia nos mostra que o termo surge com o bibliotecário Andrônico de Rhodes (50 a.C.), que, ao catalogar a biblioteca pessoal de Aristóteles, se deparou com uma série de livros que não tinham título. Sem se preocupar em entender sobre o que se tratavam, colocou-os ao lado dos livros dedicados à 1 Alguns termos em grego não encontram até hoje termos equivalentes em diversas línguas, razão disso é o fato de carregarem significados complexos de uma língua arcaica. 46 Elementos introdutórios à Metafísica de Aristóteles física, e nomeou esse conjunto desconhecido como “metà tá physikà”. Metafísica, portanto, significaria, ao pé da tradução, além, ou ao lado da física. Embora não seja um termo criado para a definição que carrega, o seu significado se encaixa no conteúdo abordado pelos textos, pois esses tratam de coisas suprassensíveis, ou seja, que estão para além das coisas sensíveis, ou físicas. Diferentemente das ciências, como afirmam Rosset e Frangiotti (2012, p.7), não é possível determinar uma cronologia ou uma história da metafísica. Trata-se de uma área do conhecimento que trabalha principalmente no campo das teorias e da investigação de mistérios, ou problemas, que nem sempre estão ligados a objetos. Nesse sentido, justifica-se a premissa, dos autores citados acima, de que a metafísica não tem passado, visto que os mesmos problemas, colocados por filósofos de outras épocas, ainda se mantêm vivos. Portanto, não se pode afirmar que uma nova teoria torne a outra obsoleta ou ultrapassada. O homem, por possuir uma inquietude nata, não se basta com a realidade dada, ou seja, não se limita a aceitar a realidade que lhe é apresentada pelos sentidos. Sendo assim, sua racionalidade e inquietude lhes levam a buscar o “fundamento constitutivo do real”. Surge dessa imersão racional do homem na busca pelo princípio primeiro das coisas, a pergunta pelo ser2. A questão do ser é, além do princípio da investigação metafísica, o seu verdadeiro alicerce. Grosso modo, o ser é o objeto do estudo metafísico, o que significa que, ao abandonar a busca pelo ser, o filósofo também abandona a própria metafísica. Ao buscar o “princípio da natureza/cosmos” (archē da physis), os primeiros filósofos iniciam uma deliberação metafísica. No entanto, o ser se torna o objeto principal desta “investigação” a partir 2 Cf. ROSSET; FRANGIOTTI, 2012, p.8. 47 Perspectivas de Parmênides. Segundo sugerem Rosset e Frangiotti (2012, p.8): “Parmênides, ao indicar o ser como fundamento único, idêntico, eterno e imutável da realidade, fez surgir a investigação metafísica”. Essa se desenvolveu, com maior notoriedade, graças às contribuições de Platão e Aristóteles, o que fez com que ambos norteassem os estudos posteriores do ser, e da filosofia, uma vez que a metafísica foi o objeto supremo de estudos da filosofia até a modernidade. O próprio Aristóteles apresenta a sua “filosofia primeira” como a ciência menos necessária, ou seja, do ponto de vista utilitarista, a menos útil de todas. No entanto, ele salienta que nenhuma ciência é melhor que a dita metafísica3. Ainda afirma o filósofo que a filosofia é a mais primordial por se tratar de uma ciência que não tem utilidade ou finalidade outra, se não nela mesma. Ora, como dizem Rosset e Frangiotti (2012, p.9): “trata-se do testemunho de que ela não está subordinada a nenhuma finalidade exterior, mas, antes, contém em si a razão do seu próprio existir”. Por não ser possível traçar uma linha cronológico histórica da metafísica, outra crítica se faz a ela: por ser inatual, ou seja, estar fora do seu tempo, visto, inclusive, que essa já é tratada como uma ciência obsoleta, pelos adeptos da teoria do conhecimento. Porém, vale salientar, que a pergunta pela existência jamais deixou de perturbar o intelecto daqueles que buscam conhecer o suprassensível: a questão do que é o “ser” permanece viva. A metafísica é apresentada, outrossim, como uma ontologia, ou seja, o estudo do ente enquanto ente. Do ponto de vista teológico, a partir da compreensão do ente pelo ente o ser se mostra como fonte originária. Transcendente. Deste modo, o logos nos é apresentado como inteligibilidade, e a nossa busca pela inteligibilidade última é a 3 Aristóteles não usa o termo metafísica, pois esse termo só surge séculos depois dele. 48 Elementos introdutórios à Metafísica de Aristóteles responsável por transformar o homem em um ser pensante autônomo. A metafísica é ainda caracterizada como ciência, mas tendo como condição necessária para tal a afirmação do transcendente, no ato da busca pelo conhecimento das coisas (entes), e da razão4. Outro ponto, abordado também por Rosset e Frangiotti (2012, p. 10), é a relação entre a metafísica e a ontologia. A palavra ontologia, grosso modo, quer dizer estudo do ser, de tal modo que possibilita tratá-la como sinônimo de metafísica, o que é até natural para uma parte dos filósofos posteriores a criação deste termo. Mas afinal, qual dos dois termos seria mais adequado para tal definição? Para alguns, de acordo com a etimologia de ontologia, essa seria mais adequada para nomear o estudo da filosofia primeira, que se trata do estudo do ser. Igualmente, não se pode negar o peso da tradição dentro da filosofia, o que levou a maioria dos filósofos a repudiarem a substituição do termo. Afinal, Aristóteles atribuiu também a sua filosofia primeira, a busca pelas causas e princípios constitutivos do real. 2.2 FILOSOFIA PRIMEIRA Na primeira frase do livro Alfa da Metafísica, Aristóteles já dá indícios de uma das características principais de toda a sua filosofia, a teleologia5. Ao afirmar que todos os homens propendem ao saber, ele eleva o saber ao patamar de bem/fim em si mesmo. A teleologia não 4 Cf. ROSSET; FRANGIOTTI, 2012, p.11. 5 O termo teleologia deriva do grego télos (τέλος), que em português significa propender/finalidade. É usado para se referir a filosofia aristotélica, justamente por essa se tratar de um pensamento onde tudo tem uma finalidade última, que remete sempre a um bem em si mesmo. 49 Perspectivas é um elemento presente apenas na filosofia primeira de Aristóteles, mas perpassa todas as suas obras: na obra “A política”, por exemplo, o fim em si mesmo, para aonde todos os homens, por natureza, se voltam, é a pólis. Partindo da premissa de que existe uma realidade em si, e de que é possível chegar ao conhecimento verdadeiro estudando-a racionalmente, assenta-se a metafísica. Contudo, sabe-se que não é este o termo utilizado por Aristóteles. Filosofia primeira, como ele a denominava, trata-se da ciência que tem precedência em importância sobre todas as outras ciências, pois estuda o ser, de forma universal. O constitutivo de tudo o que é. A ciência que estuda toda e qualquer forma dos entes, e mais que isso, estuda a substância universal presente em todos eles, sendo assim, ela é, portanto, precedente sobre as demais ciências, justificando a sua nomenclatura. Para Aristóteles, a substância que não está sujeita ao movimento, não é material e é divina, trata-se do primeiro motor imóvel, que deu início a todo o movimento do universo6. A partir da hipótese da existência de uma substância que independe da natureza, deve haver também uma ciência que a estude: essa ciência é a filosofia primeira. A estima pelas sensações, segundo Aristóteles, é o que nos direciona a sapiência, e entre as sensações, ele diz ser a visão a mais estimada, o que é uma doutrina propriamente platônica: entre todas as sensações, nós preferimos ver, pois a visão é a que mais nos aproxima do conhecimento. Ao passo em que conhecemos o mundo e suas diferenças através das sensações, somos dotados de memória, o que nos possibilita sentir e armazenar lembranças, não sendo necessário que passemos novamente por determinadas situações, uma vez que, já 6 Cf. ROSSET; FRANGIOTTI, 2012, p.14. 50 Elementos introdutórios à Metafísica de Aristóteles tendo vivenciado determinada sensação, a guardamos na memória. Da memória que guardamos de tais sensações, obtemos o aprendizado, que, por sua vez, é ilimitado e particular: somos capazes de, ao longo da vida, acumular o aprendizado sobre inúmeras situações, de maneira que jamais sobrecarregamos nossa capacidade de aprender; na medida em que o homem aprende sobre situações particulares, e tem acesso a várias recordações de um mesmo fato, surge diante7 dele a experiência. A experiência nos faz capaz de conceber a técnica: essa é produto de uma deliberação acerca daquela; sendo a experiência sempre ligada ao particular, quando nos encontramos repletos de experiência, se faz possível a determinação de uma noção universal daquilo que é semelhante.8 O conjunto destes aspectos que levam ao saber estão, ou devem estar sempre relacionados. Um não é possível de ser executado em sua máxima perfeição sem os que o precedem. Na ocasião do agir, a experiência e a técnica, segundo o próprio Aristóteles (2008, p.10), não são tão diferentes, sendo ainda possível determinar que a experiência é menos suscetível ao fracasso do que a técnica desvinculada da experiência, e a razão disso é que a técnica é sempre universal e a experiência é, assim como o agir, sempre associada ao particular: o médico jamais cura os homens, mas cura Saulo, Gabriela, Lucas, ou qualquer um que de outra forma seja chamado. É possível, através da técnica, criar e entender o que levou todos a febre e desenvolver um método para evitá-la, eu entender que remédio funciona para todos, no entanto, ao tentar curá-los, a técnica, desligada da experiência, não permite ao médico compreender as particularidades dos organismos de cada um, ou que remédio 7 A experiência e o aprendizado não cessam, nem se esgotam; sempre há algo para aprender e sempre há capacidade no intelecto para tal empreendimento. 8 Cf. ARISTÓTELES, 2008, p.9. 51 Perspectivas funcionaria para Saulo, que é alérgico, ou, para Gabriela, que está grávida. É importante salientar, que, embora seja assim no agir, ao considerar a sapiência e o conhecimento, a técnica está mais próxima do que a experiência: os que possuem somente experiência conhecem aquilo que fazem, no entanto, os que possuem a técnica conhecem tanto o que, quanto o porquê de fazer aquilo. Ora, saber ensinar é característica daqueles que tem o conhecimento, e os que tem técnica, sabem ensinar melhor que os que tem apenas a experiência. Aristóteles (2008, p. 11) acreditava que os primeiros a inventar técnicas provavelmente foram chamados de sábios, não por criar algo útil, mas por serem mais sábios e diferentes dos demais, e com o tempo outros foram criando técnicas, e estes eram vistos como mais sábios que aqueles, pois suas técnicas eram voltadas ao lazer. E quando todas as técnicas assim já tinham sido criadas, surgem as ciências. E a primeira a surgir é a matemática no Egito, porque lá os sacerdotes tiveram ócio e lazer. O mais sábio é, portanto, aquele que possui o conhecimento das coisas universais, e conhece das coisas as quais o homem comum não tem conhecimento. Associamos, então, a sabedoria, as ciências que são mais exatas, sendo estas as primeiras: as ciências que precedem as outras tem menos princípios e acréscimos que aquelas que as sucedem; por isso determina-se que as ciências que podem mais facilmente associar-se a sapiência são as ciências universais e primeiras (causas). 52 Elementos introdutórios à Metafísica de Aristóteles 2.3 O ENTE Há uma ciência que estuda o ente enquanto ente, mas não um ente em particular, e sim o ente propriamente dito. Diferente das demais ciências, que estudam entes particulares e suas especificidades, a filosofia primeira estuda o ente por si mesmo, de forma universal; visto que procuramos as causas e princípios primeiros, devemos observar as realidades que são em si mesmas9. A metafísica utiliza-se de objetos para chegar ao ser, esses objetos são separados entre formal e material; o objeto material com o qual a metafísica trabalha é o ente, mais precisamente, todos os entes, ou seja, todas as coisas materiais que compõem o mundo; já o objeto formal é o ser enquanto ser10. Mesmo que o objeto formal seja o ser, aquele que o estuda não encontra o ser diretamente, mas pode conhece-lo unicamente através do ente. Justifica-se, então, afirmar que o ente é condição necessária para se conhecer o ser, porém, não se pode pensar o ente sem que ele tenha em si o ser. O ente possui ser, mas não é ser; o ser dá a característica constitutiva de o ente ser o que é. Por exemplo, uma garrafa de água pode ser descrita como sendo de plástico ou vidro, oca por dentro, um receptáculo de água, mas só pode ser dita deste modo porque é garrafa. Antes de se definir a garrafa ela deve ter forma de garrafa. O ente pode ser dito como: o que é; o que existe; o que é real. E são três os tipos de entes: o ente atual é que existe e é real, independente da consciência; o ente de razão refere-se aos conceitos ou realidades criadas na nossa consciência pela racionalidade, mas não deixam de serem reais e existirem, na nossa inteligibilidade, não 9 Cf ARISTÓTELES, 2005, p.131. [1003a2] 10 Cf. ROSSET; FRANGIOTTI, 2012, p.20. 53 Perspectivas podendo se tornar ato; e o ente possível é aquele que está na razão, mas pode se tornar ato, através da criação humana11. O ente ainda pode ser de quatro modos: Concomitante ou acidente (symbébekos); o ente enquanto dynamis e energueia (potência e ato); enquanto verdadeiro e falso e como categorial. 2.4 ASPECTOS DA FILOSOFIA PRIMEIRA Aristóteles afirma a filosofia primeira como sendo, das ciências teóricas, a primordial, e denomina também como objeto de estudo da teologia. O filósofo diz que os entes – existências que encontramos corriqueiramente no cotidiano – são existências contingentes, o que, dito de outro modo, significa que estas existências não são necessárias, poderíamos (a totalidade dos entes) tanto existir quanto não existir. Havendo existências não necessárias, e tendo essas se fundado em outras, deve haver então uma existência autofundada, que não é contingente e que é eterna e imóvel - pois o movimento é fundamento do contingente – esta existência é Deus, e sua existência é tão certa quanto às demais existências. Aristóteles marca a ‘metafísica’ como ciência de caráter universal, pois estuda o ser em todos os seus aspectos, e em todas as coisas que, por lhes conferir o ser, são. Além do mais, a metafísica busca também, além do sensível, o suprassensível, aquilo que está além da matéria, portanto, o que dizemos divino. A metafísica é, efetivamente, a ciência divina, portanto, tem mais autoridade que quaisquer outras ciências. 11 Cf. ROSSET; FRANGIOTTI, 2012, p.21. 54 Elementos introdutórios à Metafísica de Aristóteles 4.1 Ousía ou Substância Antes de analisar a tradução do termo grego ousía, tratarei do esclarecimento deste termo. A tradição filosófica optou por traduzir ousía como substância e utilizar-se do termo essência para se referir ao termo grego tó tì en einai – que na tradução literal seria “aquilo que era ser” – por isso utilizarei o termo substância para lidar com o equivalente grego ousía. A substância para Aristóteles refere-se a categoria fundamental do ente, ou seja, o “o que é” do ente. Uma garrafa pode ser azul ou branca, de vidro ou barro, grande ou pequena, ou conter quaisquer outros predicados destes que pertencem a categorias efêmeras do ente. Porém, o “ser receptáculo vedado” é substancial da garrafa: não se pode ser garrafa se não for receptáculo vedado. São categorias separáveis substanciais do ente aquelas sem as quais o ente não pode ser o que é, como o exemplo acima da garrafa. E são categorias efêmeras aquelas que são acidentais, ou seja, não interferem no ser do ente: sendo estas qualidades, quantidades, tempo e relação. A substância (ousía) pode ser dita, assim como o ente, de quatro modos: to tí en einai (aquilo que era ser); khatolou (universal); genos (gênero); e hypokeimenon (subjacente). 4.2 O ser Saindo do ente, passando pela substância e chegando no ser, tem-se uma linha aproximando cada um destes conceitos para facilitar o entendimento. Inicia-se aqui o trabalho com termo “ser”. Ser na metafísica é entendido como elemento principal do ente, ou seja, aquilo que torna o ente o que ele é. Sem o ser o ente nada seria, e, por conseguinte, não existiria. O ser não se trata de uma realidade meramente física ou material, por isso é metafísico. O ente seria então a manifestação da substância do ser. O ser possui três usos: o predicativo, predicando sempre um sujeito, ou seja, o que se diz do 55 Perspectivas sujeito; o uso existencial, ou o ser como existência do ente; e o participativo, o ser como ato, entendido com aquilo que possui ser.12 O ser é, portanto, um ato universal, pois tudo é, e tudo é contido pelo ser, o ser está, concomitantemente, em tudo. Embora ser e existir não sejam sinônimos, existir é condição suficiente para ser, e, o ser, é condição necessária para o existir: O ser não é o mesmo que existir, ambos não são sinônimos. O ser é o fundamento do ente e consequentemente, de sua existência. Quando falamos que uma coisa existe, queremos enfatizar que está efetivamente aí, que não é o não ser, o nada. O ser é propriedade mais íntima das coisas, aquilo que faz as coisas existirem. Portanto, a existência não é o ser, mas o resultado do simples fato de os entes possuírem o ser (ROSSET; FRANGIOTTI, 2012, p. 24). Diferentemente de Platão, Aristóteles acredita que o ser não está separado do ente ou inacessível através dele, mas afirma que o ser se encontra ao analisar as suas manifestações nos entes. Ao dizer que o ser se diz de várias maneiras, Aristóteles quer elucidar que o ser se apresenta, ou se manifesta, nos entes de diversas formas, ou seja, não é algo imutável. Se a forma correta de interpretação do ser é através da substância (ousía), então encontramos uma diversidade infinita de suas manifestações, pois a substância é algo individual, de cada ente, embora possa ser universal como característica de ser algo, como no exemplo da garrafa: a substância de garrafa é universal, mas a substância de uma determinada garrafa é individual. Rosset e Frangiotti (2012, p. 64) dizem ser substância o termo que se utiliza para designar um sujeito; e, o predicado do sujeito, ou seja, o que se diz do sujeito, é o que podemos chamar de essência. Portanto, sujeito é a substância e o predicado a essência. A essência pode ser dividida em dois grupos: a essência propriamente dita, ou 12 Cf. ROSSET; FRANGIOTTI, 2012, p.23. 56 Elementos introdutórios à Metafísica de Aristóteles seja, os predicados sem os quais o sujeito não pode ser o que é. (por exemplo, o homem é um animal racional. Ora, sem a racionalidade, então, o homem não pode ser homem): o outro grupo é chamado de acidente, esse refere-se aos predicados que não interferem no ser substancial do sujeito (o homem é um animal racional, ser gordo ou magro, pardo ou branco, crespo ou de cabelo liso, não interfere no ‘ser homem’ do sujeito). 4.3 Ato e potência A doutrina do ato e potência nos é apresentada por Luciano Rosset e Roque Frangiotti, no texto Metafísica antiga e medieval, de forma sutil. Num primeiro passo a percepção dos pré-socráticos sobre a existência de uma substância que era igual em todos os corpos; para uns era a água, o fogo, o ar, ou os três somados ainda a terra, para outro o ilimitado (ápeiron). Parmênides considerava a mudança impossível, o ser é, e não pode provir do não-ser pois esse não existe, e nem pode provir do ser, pois ele já é13. Platão afirma a mudança como reservada somente ao âmbito sensível, já que as formas são o ser, que para ele são imutáveis. Aristóteles tenta resolver este problema com a seguinte doutrina: o ser é o que é, o que se apresenta, sendo deste modo o ‘ser em ato’, em outras palavras, ‘o ser sendo’. Porém, o filósofo apresenta uma noção não presente nos seus predecessores: o ser em potência; o ser em potência é aquilo que pode vir a se tornar ato. A semente é, potencialmente, uma árvore, nesse caso, ela se atualiza ao germinar e virar árvore. A madeira bruta é flecha em potência, mas só é em ato quando vira efetivamente uma flecha. Deste modo, o que é eterno e invariável é o que está sempre atualizado, ou seja, o primeiro motor imóvel, ou Deus, se assim for preferível chamar. 13 Cf. ROSSET; FRANGIOTTI, 2012, p. 66. 57 Perspectivas Para melhor compreender a substância, analisando-a, é possível distinguir no ente a forma e a matéria. Matéria (hylé), para Aristóteles, trata-se daquilo que o ente é ou está feito. É o constituinte da realidade sensível, e o substrato da forma. Forma seria a figura ou imagem dos corpos, aquilo que faz com que a coisa seja o que é. Neste sentido, a forma é a essência do ente14. Para Rosset e Frangiotti (2012, p.74), o que preocupava realmente os antigos era o fato de a realidade estar ameaçada pela mudança o tempo todo. A instabilidade do real. O movimento que, ao passar o ser para outro estado, o torna algo que ele não era. Inimaginável para Parmênides, por exemplo. O movimento (kínesis) é o trânsito do ser; a passagem de um modo do ser ao outro, o que clarifica o ato e a potência de Aristóteles. 2.5 CONSIDERAÇÕES FINAIS A questão que guia o pensamento de Aristóteles na filosofia primeira é a substância e, consequentemente, tudo o que a envolve. Ao longo do primeiro livro da metafísica de Aristóteles, encontramos um sistema lógico complexo e bem formulado. Partindo das sensações, o autor elenca, passo a passo, a forma como avançamos rumo ao saber; na medida em que memorizamos as sensações, aprendemos e ganhamos experiência, somos capazes de desenvolver uma técnica e de ensiná-la; depois que as primeiras técnicas – que não são voltadas a utilidade, mas ao lazer - foram inventadas, começam a surgir as ciências, que não voltadas nem ao lazer nem a utilidade; nesse ponto, Aristóteles inicia o trato com as ciências, e mais tarde, determina que são as ciências teoréticas que precedem as demais, e 14 Cf. ROSSET; FRANGIOTTI. 2012, p.70. 58 Elementos introdutórios à Metafísica de Aristóteles entre elas a teologia precede as outras e é a ideal para estudar a substância. Quando elenca a técnica a mais próxima da sapiência, ele o faz por considerar que as coisas mais universais estão mais próximas da sabedoria. Nesse aspecto, ele já está se preparando para falar da substância desde o primeiro capítulo do livro alfa. Para finalizar o livro alfa, o autor ainda nos traz alguns dos ditos filósofos pré-socráticos, e disserta sobre eles, que, como é sabido, buscaram compreender, de certo modo, a substância separada, mesmo que de um ponto de vista material. A substância é aquilo de mais íntimo e fundamental presente no ente, e é separável, no sentido de que o ente, sem ela, não é o que é. As especificidades da substância já foram tratadas acima, mas é ainda necessário afirmar que ela tem caráter universal: aquilo que todo cavalo tem em comum, que, sem isso, não possa ser chamado de cavalo, isto é, uma característica universal que permite que os cavalos sejam cavalos. Deste modo, analisando todo o sistema lógico de Aristóteles, e a forma como ele elenca as precedências, fica claro que a substância é justamente o objeto de estudo guia da filosofia primeira. Todo o pensamento aristotélico segue uma mesma linha racional que remete sempre a um fim em si mesmo. Ao longo de toda a filosofia primeira ele analisa e elenca as causas e os princípios primeiros, mas não deixa de direcionar suas reflexões a uma finalidade última também: assim como na obra “A Política” a finalidade, ou o bem em si, é a polis, na filosofia é a sabedoria. Ora, se a Filosofia Primeira precede todas as demais ciências em importância e é, portanto, suprema, é evidente que o fim em si mesmo que ela apresenta seja também o bem maior entre as finalidades, ou seja, a inteligência é, para Aristóteles, a finalidade mais divina e perfeita entre todas. 59 Perspectivas REFERÊNCIAS ANGIONI, Lucas. Aristóteles, Metafísica: Livro VII. Campinas: IFCH/UNICAMP, 2002. ANGIONI, Lucas. Aristóteles, Metafísica: Livro I, II e III. Campinas: IFCH/UNICAMP, 2008. REALE, Giovanni. Metafísica de Aristóteles II. Trad. Marcelo Perine. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2005. ROSSET, Luciano; FRANGIOTTI, Roque. Metafísica antiga e medieval. São Paulo: Paulus, 2012. 60 EPISTEMOLOGIA GENÉTICA E A PSICANÁLISE: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL Fernando Alves Grumicker* Resumo: O presente escrito refere-se a uma conceitualização da epistemologia genética e da teoria psicanalítica, buscando refletir questões filosóficas acerca do desenvolvimento humano, tanto no sentido orgânico como no sentido mental. De um lado, ambas as abordagens pressupõem como finalidade a ultrapassagem dos desequilíbrios e das necessidades, para então alcançarem o equilíbrio interno das faculdades mentais (ou psíquicas) do sujeito, por outro lado, as teorias tratam da moralidade e seus estágios conforme o desenvolvimento do sujeito. O objetivo deste artigo se direciona para uma assimilação entre ambas as abordagens do desenvolvimento humano, assim como também para uma abordagem construtiva dos conceitos em geral que estão sendo empregados. A metodologia usada será a heurística para o cumprimento dos objetivos que este escrito se propõe. Palavras-chave: Epistemologia. Desenvolvimento. Organismo. Psicanálise. Teoria. Abstract: The present writing refers to a conceptualization on genetic epistemology and the psychoanalytic theory, searching to reflect on philosophical questions about the human development, in the organic sense, as well as in the mental sense. On one hand, both approaches assume * Graduando em Filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná. E-mail: grumickerfernando@gmail.com. Perspectivas as their end goal to surpass the imbalances and necessities, to then, reach internal balance on the mental (or psychological) subject's faculties, on the other hand, both theories treat on morality and its stages according to the subject development. The objective of this article aims to an assimilation between both approaches on human development, as well as an constructivist approach on the appointed general concepts. The used methodology is heuristic, to meet the requirements of the writing. Keywords: Epistemology. Organism. Psychoanalysis. Theory. Development. 3.1 INTRODUÇÃO Procuremos descrever o posicionamento de Jean Piaget (18961980), que foi um psicólogo, epistemólogo, biólogo e construtivista suíço, com base na sua teoria de epistemologia genética e o seu enfoque no desenvolvimento será descrita a partir de estágios, estes por sua vez constituem uma forma de organização do estado mental, assim, a teoria de Piaget do desenvolvimento se baseia e tem fundamento no jogo ativo e dinâmico da assimilação entre a equilibração partindo dos estágios do desenvolvimento, onde o sujeito pode ser comparado com o crescimento orgânico, deste modo, os estágios descritos por Piaget do desenvolvimento são guiados pela continua busca pela equilibração mental, assim como do modo orgânico em geral ocorre a equilibração nos estágios finais do desenvolvimento. O estágio da moralidade apenas surge pelo processo do desenvolvimento que, em certa medida, está direcionada para a equilibração, estas passagens são primeiramente pela autonomia, a heteronomia e, por fim, a autonomia, esta última estão em relação as representações do sujeito onde podem ultrapassar os estágios de mero consenso com as leis morais para o surgimento da consciência das leis morais instituídas e seus critérios para que, deste modo, seja possível 62 Epistemologia genética e a psicanálise: uma relação possível a sociabilidade do sujeito. Do mesmo modo, a teoria descrita por Sigmund Freud (1856-1939), que foi médico, neurologista, e fundador da psicanálise e um dos maiores expoentes da teorização da consciência humana do final do século XIX, a teoria psicanalítica de Freud diz respeito ao aparelho psíquico e reflete os estágios de desenvolvimento do homem a partir do sistema interno do sujeito, isto é, uma vez que uma criança apenas detêm do Id como caracterizadora das pulsões, ainda não é possível as reflexões entorno da moralidade; o consciente ( que mais tarde será chamado de ego) reflete os estados de conteúdos manifestos dos desejos e, apenas em elação com o superego poderá assim interiorizar ações morais para a sua ação prática, pois este pode ser entendido como arquétipo regulador das pulsões do id, isto é, dos desejos e conteúdos de satisfações de prazeres. Assim, o que será destacado coloca em questão a descrição referente à epistemologia genética de Piaget em relação direta com a segunda tópica do aparelho psíquico descrita por Freud, aponto de, em uma possível caracterização, demostrar como o desenvolvimento ocorre nessas teorias e ainda, de modo objetivo, de como o desenvolvimento moral é possibilitado segundo essas teorias, assim como também no que concerne a ação moral. Portanto, a partir da reflexão teórica do desenvolvimento que de modo geral, possibilita a consciência moral para as ações com outros sujeitos, procuramos estacar o modo pelo qual o desenvolvimento é decisivo e detêm um peso no sentido da equilibração mental dos sujeitos em geral. Negativamente, o passo em que Freud elabora a sua segunda tópica do aparelho psíquico ressalta a diferença de uma estruturação diversa do aparelho psíquico quando comparado a outros sistemas orgânicos, neste cenário, o ponto de partida será a estrutura do aparelho psíquico como determinante das 63 Perspectivas ações morais dos sujeitos em geral a partir do desenvolvimento que conduz ao equilíbrio. 3.2 O APARELHO PSÍQUICO E O DESENVOLVIMENTO NA CONCEPÇÃO PSICANALÍTICA Na elaboração teórica do aparelho psíquico Freud detêm de duas tópicas que refletem a estruturação mental dos sujeitos, daremos ênfase à segunda delas já que os termos da primeira serviram de síntese para a configuração da segunda, isto é, como casos onde se encontra uma aparente limitação da primeira tópica de 1900 para a o modo de funcionamento do aparelho psíquico. Na primeira tópica Freud destaca que a psicanálise se dirige para o estudo do inconsciente e neste se encontram os desejos, os impulsos, e os “instintos”, deste modo, serão estes anseios que devem ser analisadas já que estes impulsos e desejos são reprimidos, seja pela sociedade ou pelo próprio sujeito. Assim, Freud como método emprega a interpretação dos sonhos para averiguar estes impulsos reprimidos que são entendidas como manifestações do inconsciente, do mesmo modo como entende por “ato falho” as manifestações da linguagem verbal do sujeito através das associações livres. A primeira tópica é retratada em termos de préconsciente, consciente e inconsciente. Respectivamente, o préconsciente pode ser entendido como um conteúdo que permanecem ocultos mas que no entanto podem ser acessados pelo sujeito, isto é, as suas repressões estão como que guardadas e que, no entanto, podem ser acessados pelo consciente, o consciente retrata a estrutura mental do sujeito pela qual os seus pensamentos e ações são totalmente percebidos, assim como suas memórias, e frustrações, já o inconsciente é propriamente o foco da psicanálise já que ai onde se 64 Epistemologia genética e a psicanálise: uma relação possível encontram as pulsões agressivas, os recalques, e sentimentos que são totalmente retidos, seja pela moralidade ou pelo próprio sujeito, assim, os conteúdos inconscientes são afogados, uma vez que são reprimidos. As pulsões (auto conservação e pulsões sexuais), e desejos reprimidos podem levar ao adoecimento psíquico, estas ao mesmo tempo são analisadas pela psicanálise para o diagnóstico, no entanto, as repressões sociais que analogamente com a configuração do sujeito colocam os desejos e pulsões de maneira que evidentemente retira do sujeito a sua autonomia, pois estas causam ações que não são de modo algum percebidas pelo sujeito, assim, a moralidade social pode levar a repressão de desejos que permanecem ocultos ao sujeito. Freud afirma: Aprendemos que os impulsos instintuais da libido sofrem o destino da repressão patogênica, quando entram em conflito com as ideias morais e culturais do indivíduo. Com isso não entendemos jamais que a pessoa tenha um simples conhecimento intelectual da existência de tais ideias, mas que as reconheça como determinantes para si, que se submeta às exigências que delas partem (FREUD, 2010, p. 27) Dessa maneira, os desejos inconscientes (que na segunda tópica serão denominados de Id) podem gerar frustrações no sujeito e anomalias comportamentais como casos de neurose e melancolia1. No entanto, para entender o aparelho psíquico, Freud recorre à predominância desses tipos de comportamentos para a descrição da consciência moral e da análise dos conteúdos não manifestos da consciência, isto é, o inconsciente que se dá pelas repressões sociais e 1 Com isso, Freud quebrou paradigmas, uma vez que descreve tipos de doenças dado à uma sociedade repressora (a histeria é uma dessas entre várias outras). 65 Perspectivas permanece desequilibrado, isto concernem desenvolvimento para a equilibração. Partindo da primeira tópica, que é uma divisão do aparelho psíquico, na segunda tópica (que se dá a partir de 1923), ocorre uma mudança, isto é, uma reestruturação do aparelho psíquico, do ponto de vista freudiano, seria preciso uma investigação a respeito do que engloba o consciente , que apesar disso detêm uma parte inconsciente e que precisa, necessariamente, de uma descrição mais detalhada. Assim, essa nova divisão do aparelho psíquico está descrita mais explicitamente na obra “O Ego e o id” (1923-1925), deste modo, a explanação freudiana diz respeito ao modo pelo qual o homem se configura mentalmente, nesse sentido as nomenclaturas colocadas por Freud se baseiam nos seguintes termos: Id, ego e superego. Assim, o Id estaria descrito em termos de pulsões2 que por sua vez, o conteúdo do Id estaria relacionado não apenas às pulsões, como também representaria os desejos. A partir da configuração do desenvolvimento, Freud indica que uma criança apenas possui o Id como caracterizadora dos seus desejos internos, para a saciar as causas de suas necessidades imediatas. Assim, as necessidades são a chave para descrever o comportamento mental, no sentido da configuração do aparelho psíquico, ou seja, à personalidade do indivíduo enquanto é uma criança apenas detêm do id, em primeira instância, como caracterizadora do seu estado mental propriamente dito. Assim, a teoria da pulsão freudiana destaca que na criança a negação da alimentação resulta em carência como um fator orgânico (considerando que se trata como exemplo a necessidade e/ou desejo de alimentação, isto é, refere-se à ingestão oral), uma vez saciado o 2 Aqui, no entanto, Freud reestruturando o aparelho psíquico coloca a pulsão de erros e a pulsão de morte como os que subjazem ao id. 66 Epistemologia genética e a psicanálise: uma relação possível desejo se inscreve na memória da criança a satisfação dada pelo objeto (seja ela o seio da mãe ou um objeto pelo qual a saciação se tornou possível. Por esse registro n memória pela saciação a criança pode criar alucinações de desejos pela alimentação já que esta é o seu objeto de desejo. Do ponto de vista fisiológico, a memória do prazer proporcionado pela alimentação não se sobressaí sobre a fome, no entanto, ocorre uma substituição da necessidade orgânica pelo desejo psíquico. De acordo à Freud, a criança se constitui por desejo seja ele sexual ou não, isto é dizer, para além dos tabus, a teoria das pulsões freudiana representa uma estrutura objetiva de um estado do desenvolvimento. Nos diz Freud: Com a teoria dos instintos a psicanálise ofendeu o indivíduo enquanto membro da comunidade social; outra parte de sua teoria foi capaz de feri-lo no ponto mais sensível de seu próprio desenvolvimento psíquico. A psicanálise pôs termo à fábula da assexualidade da infância, provou que desde o começo da vida há interesses e atividades sexuais nas crianças pequenas (FREUD, 2010, p. 236) É neste sentido em que a teoria do desenvolvimento psicanalítico reflete a necessidade guiada pela pulsão, mais ainda, onde a estrutura do aparelho psíquico regulada pelo desejo transposto no Id caracteriza, em uma só vez, o aparato pelo qual se torna decisivo às análises psicanalíticas a noção da necessidade psíquica para além da necessidade orgânica. Retratando assim um dos primeiros estados do desenvolvimento da psicanálise, isto é, o Id e sua configuração do desejo transposto para a necessidade psíquica, ainda restam outros estados não menos pertinentes para o desenvolvimento. Em um sentido ainda de crescimento fisiológico, a criança através da sua socialização é regulada, assim como os seus desejos de 67 Perspectivas acordo com a consciência que possui sobre suas ações, assim, o desenvolvimento do Superego já em um estado mais apurado do desenvolvimento psíquico, tem efetividade em como um regulador das pulsões pelos critérios de moralidade. Na medida em que ocorre o desenvolvimento humano, da criança para a fase adulta, a moralidade é traçada, e isto ainda tem problemas na vida quotidiana, no sentido de que, as pulsões não podem ser detidas, mas são renegadas, ou seja, para o adulto já desenvolvido, ainda permanece nele as pulsões na medida em que elas são reprimidas, daí o mal-estar que se caracteriza pela negatividade dos impulsos do Id frete aos fatores sociais e morais. Daí, nas palavras de Freud (2011, p. 13) “(...) reprimido é, para nós, o protótipo do que é inconsciente” já que está contido no Id as pulsões pelas quais, no sentido externo ao indivíduo, precisa ser contido seja pelo Superego, já que possibilita a organização psíquica do sujeito, seja nas suas ações conscientes, como também pela própria sociedade no sentido geral. 3.3 O DESENVOLVIMENTO NA CONSTRUTIVISMO DE PIAGET CONCEPÇÃO DO A teoria do desenvolvimento ou a epistemologia genética de Piaget, segundo o construtivismo, pressupõe a gênese do conhecimento em relação constante entre o sujeito o os objetos da experiência, assim, o dado das suas representações são entendidas como pertencentes ao sujeito mas que também precisa da experiência para reter dados, assim, estes dados retidos precisam, por assim dizer, se adaptarem na estrutura mental do sujeito na medida em que se desenvolve. A estrutura mental dos sujeitos depende das suas representações empíricas, do mesmo modo que para a organização da 68 Epistemologia genética e a psicanálise: uma relação possível experiência e do próprio conhecimento, seja necessário a aplicabilidade da estrutura mental do sujeito. No entanto, como se dá o desenvolvimento segundo a epistemologia genética? Em um sentido bastante determinado, Piaget pressupõe que os estágios do desenvolvimento mental se dão através de estágios, tais estágios, são formas teóricas da organização mental dos sujeitos. Tais estágios subsumem as representações empíricas e ações, do mesmo modo que relacionam a experiência. Piaget reflete que o desenvolvimento mental pode ser comparado com o crescimento de uma planta, portanto, trata-se de uma busca pelo equilibro 3 , nota-se que uma planta se estabiliza conforme o crescimento, do mesmo modo é o homem, ou seja, seu desenvolvimento mental é progressivo no sentido de que na medida em que uma criança cresce sua estrutura mental tende ao equilíbrio na fase adulta. Piaget demostra que há uma continuidade entre os processos orgânicos no sentido biológico e os processos cognitivos (mentais), daí a importância de descrever um processo pelo qual seja garantida a passagem de certos estágios de desenvolvimento a outros, dado que o desenvolvimento pressupõe uma mudança tanto fisiológica quanto mental. Deste modo, as funções desempenhadas por uma criança são diferentes das do adulto, as suas capacidades são, tanto do ponto de vista fisiológico quando do ponto de vista mental, diferentes, uma vez que além de desempenharem funções diferente detêm modos de proceder em relação com o que é externo como também seus processos de aprendizado, capacidade cognitivas se demonstram, na 3 Esta comparação metafórica tem relação com a ideia de que o desenvolvimento tende ao equilíbrio, já que as ocorre o desequilíbrio dado à necessidade, seja ela de manipulação de objetos, seja de querer “mudar o mundo” na adolescência. 69 Perspectivas própria ação distintas. Assim, desde a infância até a adolescência os processos podem ser vistos como distintos e é preciso que sejam, ao mesmo tempo descritas em formas progressivas. De maneira estruturalista, o desenvolvimento conduz ao equilíbrio, Piaget pressupõe três modelos estruturais para o desenvolvimento, partindo da concepção de estrutura mental do sujeito e da psicogênese, isto coincide com uma ideia de progressão positiva da para o desenvolvimento. A assimilação, de onde ocorrem os processos de retirada dos dados do ambiente, enquanto um organismo, o ser humano necessariamente faz uso de seus sentidos. Assim, os dados retidos da experiência incorporam com a estrutura já existente no sujeito4 em relação dinâmica com a estrutura e com as informações. Acomodação, onde o sujeito, para reter novas informações inéditas modifica o seu organismo para reter novas informações sobre o ambiente. Assim, a estrutura do sujeito influencia diretamente as informações retidas demonstrando ser sugestivas que não se trata de uma recepção passiva. Adaptação, o homem age sobre o mundo e o mundo sobre o homem, assim, evidentemente a assimilação e a acomodação, apesar se distintas, não podem ser separadas para a configuração dos processos mentais e intelectuais, desta maneira, se entende por 4 A assimilação pode ser entendida como: generalizadora, enquanto as estruturas do sujeito se modificam para reter novas informações a respeito dos objetos em geral da experiencia onde essas informações se incorporam na estrutura do sujeito. Também como reconhecedora, enquanto a criança pode identificar objetos já experienciados, ou seja, onde acaba retendo as informações do objeto e consegue a diferenciar de outros. E, por fim, a assimilação recíproca, onde é possível as identificações de sucessão, isto é, organização de objetos desorganizados em uma totalidade. 70 Epistemologia genética e a psicanálise: uma relação possível acomodação a maneira pela qual há reciprocidade entre sujeito e objeto. Deste modo, Piaget sugere quatro estádios do desenvolvimento, já que esta parte da relação da ação da criança enquanto um organismo sobre o seu meio. Assim, a evolução é cognitiva e biológica. Os estágios, nas palavras de Piaget: Cada estágio é caracterizado pela aparição de estruturas originais, cuja construção o distingue dos estágios anteriores. [...] Mas a cada estágio correspondem também características momentâneas e secundárias, que são modificadas pelo desenvolvimento ulterior, em função da necessidade de melhor organização. Cada estágio constitui então, pelas estruturas que o definem, uma forma particular de equilíbrio, efetuando-se a evolução mental no sentido de uma equilibração sempre mais completa (PIAGET, 1999, p. 15) Desta maneira, o desenvolvimento pode ser visto como uma um dado que, conforme ocorrem as aparições de capacidades nos indivíduos, vemos que, com isso se afirma o potencial de humanos em geral, as crianças, se desenvolverem de uma maneira objetiva, assim, as capacidades mentais e biológicas que constituem, segundo o autor, o jogo entre a assimilação e a acomodação. Constitui assim a evolução objetiva dos indivíduos. Tais estágios descritos por Piaget, são lineares e ocorrem conforme surgem a necessidade na criança, assim, a evolução ou o desenvolvimento (na criança) pode ser entendido de acordo com o desequilíbrio, já que a necessidade pressupõe que algo falte, que seja o caso de carência ou esteja indisponível etc. Assim, os estágios são, sensório-motor, pré-operatório, operatório concreto e operatório formal, respectivamente. O estágio sensório-motor (0 a 2 anos) se caracteriza pelos contatos pelos quais a crianças mantêm com os objetos de sua experiência, assim, a criança opera os objetos e mantêm relações com eles. Incorpora ao mesmo tempo os objetos de sua experiência 71 Perspectivas conforme as suas características. Este estágio detêm uma forma prática na aquisição de conhecimento pela criança, uma vez que sua configuração mental ainda não possibilita outras maneiras de conhecer senão o uso dos sentidos. Assim, a criança opera ações sobre os objetos e mantêm relações reciprocas, segundo Piaget (1983, p. 8) “coordenar ações quer dizer deslocar objetos, e, na medida em que esses deslocamentos são submetidos a coordenações que elabora progressivamente a partir deste fato permite [...] atribuir aos objetos posições sucessivas, também estas determinadas”, isto é dizer que a criança assimila certos objetos e recebe informações sobre os mesmos, assim como, poderá a partir destas experiências identificar objetos e manipulá-los segundo ordens espaciais. Ainda aqui, a anomia aparece como uma incapacidade pela qual o sujeito não pode compreender as regras morais de suas ações, já que é isenta de qualquer tipo de pensamento no sentido ético, a criança entende as regras como absolutas e imutáveis, assim a criança não julga os próprios atos, assumindo assim uma mera relação entre o erro e a punição como consequência5. O estágio pré-operatório (2 ao 7 e 8 anos), o segundo estágio do desenvolvimento é caracterizado por um começo de uma inteligência simbólica, desenvolverá assim associações entre os objetos de sua experiência e a sua pré-linguagem segundo categorias. Tal estágio, ainda que leve em consideração as primeiras impressões da linguagem 6 e das imagens permanece ligada ainda aqui a questões práticas, isto é, aos objetos da experiência afim de categorizá-los, assim, os esquemas do estágio operatório-motor, não podem ser vistos como 5 Tomando como exemplo a necessidade biológica da amamentação, a criança não reflete as consequências de suas ações (ao ferir a mãe mordendo-a no seu gesto de sucção. 6 Dos 2 anos onde a criança série de associações pré-conceituais e de armazenamentos. 72 Epistemologia genética e a psicanálise: uma relação possível conceitos, no entanto, aqui a criança desenvolve as noções de permanência dos objetos de sua experiência. No entanto, “toda vida mental e orgânica tende a assimilar progressivamente o meio ambiente, realizando esta incorporação graças às estruturas ou órgãos psíquicos” (PIAGET, 1999, p 17), assim, a criança desenvolverá uma série de assimilações capazes estruturar as suas representações de acordo com a sua estrutura mental, evidenciando um desenvolvimento que não era possível anteriormente uma vez que suas impressões se encontravam ainda desorganizadas, porém, neste estágio se iniciam as funções semióticas, onde ocorrem as primeiras socializações através da linguagem, assim como de imitações (pelas quais são possíveis as representações na criação desenhos), assim como também as imagens mentais trazidas pela memória. Neste estágio, a criança é subordinada a regras morais e permanece na heteronomia, enquanto segue ações e leis restritivas sem a compreensão total destas restrições, as ações da criança ainda é, pois, subordinada a certas regras fixas de convivência não-refletidas. Operatório-concreto (7 a 8 aos 11 e 12 anos), uma vez que a organização da experiência conforme as categorias na criança já são possíveis, a criança desenvolve as capacidades de comunicação pela linguagem, do mesmo modo como pode realizar ações em conjunto (socialização), como também de operações matemáticas que seguem os conceito de unidades, no entanto, recorre ao concreto (externo à criança), para a aplicação dos enunciados pré-conceituais práticos. Assim, neste estágio do desenvolvimento é possível a realização de reversibilidade entre relações entre A e B, isto é, a possibilidade de casos de reversão de um acontecimento A para B e de B para A, destarte a intuição articulada no sentido prático e da mobilidade, uma vez que a estrutura mental e biológica reflete a busca pelo equilíbrio e da plenitude. 73 Perspectivas Apenas no sentido de que o sujeito em elação com o seu meio pode conduzir à equilibração, destaca-se que a linguagem e as operações simples do intelecto (como de soma e subtração) podem ser interiorizadas no sujeito apenas na medida em que se poderá dirigir o conhecimento no que é concreto, Piaget destaca que “assiste-se durante a primeira infância a uma transformação que, de apenas senso-motora ou prática que é no início, se prolonga doravante como pensamento propriamente dito a dupla influência da linguagem e da socialização” (PIAGET, 1999, p. 27), portanto, a socialização, a possibilidade do pensamento emergem, do mesmo modo em que a linguagem e as operações matemáticas como direcionadas para a sensibilidade. As ações morais neste cenário são entendidas pela criança conscientemente, assim, ela exerce uma autonomia em suas ações segundo a reflexão moral, afirma Fini (1991, p. 60) “[...] o propósito e consequências das regras são consideradas pela criança e a obrigação baseada na reciprocidade. A criança se caracteriza pela moral da igualdade ou de reciprocidade”, uma vez que a criança se constitui como um indivíduo que faz jus à moralidade segundo a reciprocidade, evidencia-se um desenvolvimento da estrutura mental do indivíduo. Estágio Operatório Formal (12 anos, ou adolescência), a criança adentrando na faze adulta pode conceber tanto a moralidade, como foi destacado, como também a linguagem, o raciocínio hipotético dedutivo estará aqui consolidado, do mesmo modo como a construção dialógica, a comunicação e a própria cooperação social e/ou familiar. O estado mental do adolescente que por sua vez se faz dotado das faculdades necessárias para o desenvolvimento, tanto biológico quanto psicológico, possibilita-o à compreensão dos dados da experiência, ao mesmo tempo, as reflexões formais e conceituais da lógica matemática. 74 Epistemologia genética e a psicanálise: uma relação possível Nesse sentido, o indivíduo já poderá refletir as mais diversas aplicações dos esquematismos lógicos e formais à experiência, no entanto, poderá deixar de conduzir as expressões do seu conhecimento para a experiência, isto é, por conceitos e pela forma lógica o pensamento e a reflexão são possíveis. Assim, ocorre uma relação dinâmica entre o objeto e o sujeito, já que este pode abstrair a realidade e pensá-la de maneira formal. Nos diz Piaget: [...] é este poder de formar operações sobre operações que permite ao conhecimento ultrapassar o real e o que lhe abre a via indefinida dos possíveis meios da combinatória, libertando-se então das elaborações por aproximação às quais permanecem submetidas as operações concretas [...] Em geral, este último nível apresenta um aspecto marcante em continuidade, aliás com o que nos ensina toda a psicogênese dos conhecimentos a partir das indiferenciações iniciais: é na medida em que se interiorizam as operações lógicomatemáticas do sujeito (MUNARI, 2010, p. 139) De um lado, o estado mental constituindo-se da abstração e raciocínio formal, o sujeito poderá se abster de relacionar o conteúdo do pensamento, as operações formais, lógicas e dialéticas para a prática, isto é, que o desenvolvimento possibilite aqui uma separação definitiva entre a reflexão teórica e a aquisição de conhecimento a partir da experiência é inegável, contudo, as operações do intelecto uma vez que já desenvolvidas conduzem àquela ideia do equilíbrio da estrutura psicológica. Por outro lado, o desequilíbrio aparente dos outros estágios do desenvolvimento que não possibilitavam as operações lógicas no intelecto, tampouco uma autonomia da vontade de modo equilibrado, serão aqui estabilizadas com a passagem da inteligência prática para o pensamento lógico formal. Neste cenário, não poderíamos dizer de modo algum que o desenvolvimento psíquico, desde a criança à fase adolescente se esgote, pelo contrário, a necessidade e o interesse não cessará na 75 Perspectivas medida em que ocorra o desenvolvimento da criança à fase adulta, porém, que as necessidades e os interesses serão diversos daquelas manipulações de objetos e de saciação de desejos fisiológicos da criança, assim, os desequilíbrios mentais não cessam com a fase adulta, porque a mudança dirigida para a sociedade pode ser vista como um tipo de necessidade na adolescência o que ainda acarreta certos desequilíbrios que, pela necessidade, requerem a realização. 3.4 O DESENVOLVIMENTO: UMA ANALOGIA ENTRE A TEORIA PSICANALÍTICA E A EPISTEMOLOGIA GENÉTICA Podemos afirmar, com Freud, que o aparelho psíquico meramente pulsante, desejante, instintivo do Id reflita as carências e necessidades, que por sua vez podem ser entendidas como conflitivas com a moralidade, mas apenas na medida em que o Superego não esteja totalmente formado para regular a maneira instintiva que a criança age, e, no entanto, inversamente caracteriza o inconsciente. A personalidade formada como já regulada pelo Superego e a aparente manifestação de um ego (consciente) no seio de um possível equilíbrio entre as pulsões, coloca a moralidade como um fator de desenvolvimento no aparelho psíquico da teoria psicanalítica. Assim, a criança age segundo os prazeres porque ainda, na configuração do seu aparelho psíquico, o regulador moral, isto é, o Superego, não está totalmente desenvolvido, ainda que o conflito possa ser entre o desejo do Id e o Superego para as relações conflitivas das tentativas de organização das pulsões. Assim, o desenvolvimento de um “organizador” moral no aparelho psíquico pode ser entendido como um critério de maturidade. O desenvolvimento da psique, deste nosso ponto de partida, relaciona-se com as pulsões que aparecem como necessidades 76 Epistemologia genética e a psicanálise: uma relação possível inerentes no inconsciente, contudo, o conflito com a moralidade imposta pelos padrões sociais vigentes que geram as repressões instintivas, retratam o desequilíbrio, e este último necessita do desenvolvimento no aparelho psíquico para ultrapassar as repressões dos desejos inconscientes em busca da satisfação, para que dessa maneira, seja possível a ação moral. No sentido da tese científica de Piaget, ou seja, da epistemologia genética, é possível perceber que os estágios de desenvolvimento do conhecimento, das estruturas do intelecto da criança que, mais tarde, serão entendidas como uma necessidade, fosse ela biológica ou uma necessidade da estrutura mental do sujeito, definitivamente condiz o aprendizado ao mesmo tempo em que sugere que a necessidade mental surge de um desequilíbrio mental. O que Piaget descreve com a epistemologia genética, com o conhecimento e com as questões práticas, onde o desdobramento intelectual cada vez mais aguçado nos estágios do desenvolvimento lineares são evolutivos, no sentido de que a criança tem um interesse, o desequilíbrio através do desenvolvimento possibilita um equilíbrio para além da saciação imediata das necessidades, assim, a estrutura mental do sujeito pode ser vista como uma ontogênese psicológica de organismos humanos vivos, por esta ótica, a necessidade que surge do desequilíbrio na criança exige o desenvolvimento intelectual para a satisfação dessa necessidade, no entanto, apenas pelo modo em que o desenvolvimento é completado, que essas necessidades podem ser substituídas por outras. Ainda aqui, ao mesmo tempo em que Piaget retrata o desenvolvimento mental da criança até a adolescência, a moralidade também segue na estrutura do desenvolvimento. Portanto, o desenvolvimento moral está intimamente ligado com o desenvolvimento da estrutura mental do sujeito. 77 Perspectivas Tanto a teoria psicanalítica quanto a epistemologia genética sugerem que o desenvolvimento da estrutura mental/psíquica, possibilita a moralidade. Portanto, se para Freud os desejos incumbidos, a repressão, e a necessidade nasciam de um fator determinante do Id (na medida em que as pulsões permaneciam inconscientes), demostra que as pulsões do Id seja uma falta do desenvolvimento da moral da estrutura psíquica/mental. Do mesmo modo, dado que para Piaget a estrutura mental/psíquica do sujeito em desenvolvimento possibilitaria, além do desenvolvimento intelectual, também o desenvolvimento moral (da saída da anomia e da heteronomia para a autonomia da vontade), dá a entender que, tanto os estados de amoralidade e de pré-moralidade7 inferiores em Piaget, exigem o desenvolvimento mental/psíquico. Permanecem, tanto nas obras apresentadas de Freud quanto nas de Piaget, a noção de que o desenvolvimento esta (quase como uma teleologia) imbrincada no equilíbrio do sujeito frente às suas estruturas mentais/psíquicas. A possibilidade desse desenvolvimento de um lado se deu pelas condições biológicas e materiais do sujeito para ascender em suas faculdades estruturantes, por outro lado, se ressalta a importância do desenvolvimento interno do sujeito e do rompimento com as repressões. Assim, implicitamente as ideias conduzem para a concepção pela qual, de modo geral, do desequilíbrio surge a necessidade da organização que deve conduzir, eficientemente, para o equilíbrio. Portanto, a epistemologia genética dá o enfoque ao desenvolvimento do sujeito (da criança) de modo sucessivo e linear, onde, o desenvolvimento, tanto do conhecimento 7 Chamo de pré-moralidade o estágio de desenvolvimento pelo qual tanto a epistemologia genética quanto a teoria psicanalítica freudiana refletem a possibilidade da moralidade, pois esta última, engajada no desenvolvimento, tanto biológico quanto mental, pressupõe uma abordagem pela qual um indivíduo poderá tornar-se moral. 78 Epistemologia genética e a psicanálise: uma relação possível quanto da estrutura mental/ psíquica não detêm de uma parada específica. Enquanto para a psicanálise as relações do desenvolvimento estão fadadas na análise do inconsciente. Deste ponto de vista, tanto os adultos detêm de uma estrutura mental/psíquica que não cessa, mas que deve estar sujeita ainda a algum tipo de desenvolvimento que vise um equilíbrio psicológico, que transcenda as pulsões vulgares os desequilíbrios e que institua, assim, critérios para a ação moral. Por conseguinte, para uma série de estados do desenvolvimento do organismo deve visar a organização das estruturas dos sujeitos de modo geral. REFERÊNCIAS FINI, Lucila Diehl Tolaine. Desenvolvimento: De Piaget a Kohlberg. Santa Catarina: Perspectiva, v. 9, n. 16, p. 58-78, Jan/Dez, 1991. FREUD, Sigmund. Introdução ao narcisismo, ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916). V12. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. MUNARI, Alberto. Jean Piaget. Recife: Editora Massangana, 2010. MUNARI, Alberto. O Eu e o Id “Autobiografia” e outros textos (19231925). v. 16. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. PIAGET, Jean. Seis estudos de psicologia. 24.ed. Rio de Janeiro: Fenronse Universitária, 1999. PIAGET, Jean. Epistemologia genética/ Sabedoria e ilusões da filosofia; Problemas de psicologia genética. 2ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983. 79 Perspectivas 80 COMENTÁRIOS SOBRE O EXISTENCIALISMO SARTREANO E A PEÇA ENTRE QUATRO PAREDES Cristiele Rhoden* Junior Cunha** Resumo: Aborda-se neste ensaio o existencialismo sartreano e a peça Entre Quatro Paredes. É levantada a questão sobre a liberdade dos seres humanos em comporem sua essência e a angústia proveniente da constante necessidade de fazer escolhas. A filosofia existencialista de Sartre é exposta a partir de conceitos chave para a compreensão da obra do filósofo francês – Liberdade, Angústia, Nada e Outro. Por fim, com base na peça Entre Quatro Paredes traz-se a lume o questionamento se, de fato, o inferno são os outros? Palavras-chave: Liberdade. Angústia. Outro. Abstract: Sartrean existentialism and the play Entre Quatro Paredes are discussed in this essay. The question is raised about the freedom of human beings to compose their essence and the anguish arising from the constant need to make choices. Sartre's existentialist philosophy is exposed based on key concepts for understanding the French philosopher's work – Freedom, * Graduanda em Filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná. E-mail: rhoden375@outlook.com. ** Aluno regular de Mestrado em Filosofia (Bolsista CAPES) pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná. E-mail: juniorlcunha@hotmail.com. Perspectivas Anguish, Nothing and Other. Finally, based on the play Entre Quatro Paredes, the question arises whether, in fact, hell is the other? Keywords: Freedom. Anguish. Other. 4.1 INTRODUÇÃO Jean-Paul Sartre, um francês parisiense, testemunhou as duas grandes guerras mundiais, que, em especial a segunda, lhe serviram como pontos de referência em sua filosofia existencialista. Nasceu em 1905 e faleceu em 1980, destacando-se entre os intelectuais pósguerra. A cada nova publicação, sua repercussão ultrapassava as fronteiras francesas e se alastrava por toda a Europa. Reconhecidamente uma figura pública, um dos precursores dos “intelectuais públicos”, ao lado de Simone de Beauvoir (1908-1986), militava nos movimentos políticos de esquerda. Foi o primeiro filósofo a intitular-se como existencialista, denominação que Heidegger (1889-1976), Dilthey (1833-1911) e demais filósofos influenciados pela fenomenológica de Husserl (18591938), além de recusarem, rechaçaram, explicando, em parte, o grande vácuo entre a filosofia de Sartre e da do autor de Ser de tempo (1927), não raras vezes, equivocadamente, postas em comparação. Além de suas obras estritamente filosóficas, se destacam, pelo teor reflexivo dadas a elas, suas obras literárias, como o romance A Náusea (1958) e suas peças de teatro, como Entre Quatro Paredes (1944). Fortemente incentivado por Beauvoir, a obra A Náusea, o primeiro romance do filósofo parisiense, influência em muito a sociedade de sua época – ainda abalada pelas atrocidades cometidas pelo regime nazista comandado por Hitler – a pensar a liberdade, um dos temas centrais abordado por Sartre na referida obra. Em sentido 82 Comentários sobre o existencialimo sartreano... lato, a liberdade, segunda pensa o filósofo em voga, se caracteriza pelas escolhas que o ser humano faz de si mesmo e do mundo ao seu entorno. Ser livre, nesse sentido, é viver tendo que constantemente estar forçado a realizar escolhas. Malgrado a possibilidade de realizar escolhas ao qual se está submetido, infere-se também, a partir daí, que ao escolher A, por exemplo, entre A e B, automaticamente se recusa B. Quando então nos referimos a vida, sempre que realizamos uma escolha, indica que deixamos de escolher outras incontáveis possibilidades. A quimera que nos sobrepuja, no entanto, é que no âmbito de nossa existência jamais saberemos o que resulta de uma possiblidade não escolhida. Mais ainda, o ser humano é o único responsável por seus valores e por tudo que faz de si. 4.2 O EXISTENCIALIMO SARTREANO A filosofia existencialista de Sartre, nos diz que somos obrigados a realizar escolhas, portanto, inevitavelmente, a cada decisão que tomamos somos condenados ao que dela resultar. Nossa vida é, por conseguinte, fatalmente proveniente das escolhas que realizamos. Logo, na filosofia sartreana, não há determinismo ou destino que impere sobre nossas vidas, estamos apenas sob o julgo de nossas escolhas e do que delas advirem. O ser humano, em conformidade com o pensamento de Sartre, manifesta-se no mundo por meio de suas escolhas: o ser humano primeiro existe e, de sua existência, por meio de suas escolhas, forma a sua essência. Em outros termos, a existência precede a essência, a essência é criada pelo ser humano. O Ser humano, nesse sentido, é um ser-no-mundo o que implica dizer que não se compara aos demais entes e seres, estes 83 Perspectivas possuem suas essências previamente definidas, o ser humano, por sua vez, estabelece sua essência por meio de um processo constante enquanto perdurar sua existência. A essência humana se difere de um ser humano para outro e não pode ser encarada de forma estática ou acabada, mas que se modifica ao passo que as escolhas são tomadas. Dito de outro modo, estão sob o jugo de uma liberdade absoluta, fadados a definirem-se por meio de suas escolhas e ações. A própria consciência de si mesmo é um fluxo em constante mudanças. Nesse contexto, outro conceito chave da filosofia de Sartre deve ser mencionado: o Nada. O ser humano nasce como Nada, isto é, a priori é um ser indeterminado e que carece de um sentido que defina sua existência. O próprio existir é posto em questão pelo Nada. A falta de sentido suscita no ser humano o desespero de ter de encarar o peso de sua existência indeterminada. Logo, suas escolhas devem ser encaradas como meios de atribuírem sentido à própria existência. Ao ser humano está dado sua condição de livre escolha e, portanto, todo o que fizer de si é um produto de sua liberdade. De acordo com Sartre, a consciência de possuir essa total liberdade, ou seja, de ter a possibilidade de realizar escolhas, provoca no ser humano um sentimento inquietante, que o filosofo denominado angústia. A consciência de sua liberdade, bem como sua consciência do Nada – igualmente angustiante –, surge em meio a uma crise existencial, isto é, quando o ser humano nota as limitações de sua existência e passa a questionar as suas escolhas tomadas ao longo de sua vida. O sentimento de angústia pelo qual é tomado frente as suas limitações, leva o ser humano a perceber que é um ser indeterminado e que sua existência não possui um motivo ou sentido prévio que explique-a e que, embora, seja responsável por sua história, isto é, que fez as escolhas durante toda sua vida o levando ao ponto em que se encontra, é impotente frente ao peso de sua existência e que por mais 84 Comentários sobre o existencialimo sartreano... que se esforce não é capaz de atingir e dar a si mesmo um sentido que satisfatoriamente justifique sua existência. A consciência do Nada faz com que o ser humano se depare com o abismo que há entre o que é e o que gostaria de ser, em outras palavras, que a existência enquanto uma vida plena é inatingível. O ser humano se vê como Nada frente ao seu passado e descontente com o presente que está vivendo, resta-lhe apenas as projeções que faz para seu futuro, mas que ainda não às realizou. Logo, está a encargo de fazer com que o futuro projetado se concretize. Nesse sentido, implica dizer que o ser humano, inevitavelmente, se encontra na posição de único capaz de alcançar o que pretende. O ser humano, portanto, segundo a filosofia de Sartre, nasce sem nenhuma natureza que o anteceda. Nesse sentido, Deus, plano divino, figuras transcendentais, destino ou qualquer outra concepção determinista não exerce influência alguma sobre a existência humana. A existência humana é caracterizada pela total liberdade e é por meio desta que o humano escolherá ser o que desejar ser e, do mesmo modo, estabelece sua essência. Igualmente, seus valores morais serão formados mediante as escolhas das quais não pode fugir, mesmo que entre incontáveis possibilidades opte por nenhuma já está fazendo uma escolha. A angústia proveniente da necessidade constante de ter de fazer escolhas, afirma Sartre, se dá devido as inquietações existenciais as quais, inevitavelmente, todo ser humano está submetido, ou melhor, o ser humano sempre terá de arcar com a responsabilidade de ter que optar entre as diversas opções que a sua existência lhe colocar em sua frente. Quando, então, diante de determinado contexto, o ser humano sempre poderá conformar-se, aceitar ou intervir na situação. A melhor maneira de afirmar sua existência, portanto, é assumir a inevitabilidade de que sempre terá escolhas por fazer, mesmo que isso lhe cause angústia. A angústia também se dá, segundo o filósofo 85 Perspectivas parisiense, quando o ser humano reconhece que os valores são estabelecidos individualmente e que são únicos. Nesse sentido, os determinismos cultivados pela sociedade, por exemplo, a igreja ou partidos políticos, são inúteis. A essência de cada ser humano é, e só pode ser moldada por ele próprio. Sendo cada ser humano responsável pelos caminhos que sua existência toma, cada um deve preocupar-se pelas escolhas que faz diante as várias possibilidades que são apresentadas, isto pois, cada ser humano responde por suas escolhas, não podendo atribuir culpa ao Outro pelo que escolhe ou deixa de escolher, dessa forma, os sucessos ou fracassos que resultarem dos caminhos que escolhem caminhar, ou seja, das opções que optam frente a outras, são de inteira responsabilidade de cada ser humano. Escreve Sartre (1997, p.545) em Ser e o nada: O homem é livre porque não é si mesmo, mas a presença a si. O ser que é o que é não poderia ser livre. A liberdade é precisamente o nada que é tendo sido no âmago do homem e obriga a realidade humana a fazer-se em vez de ser. [...], para a realidade humana, ser é escolher-se: nada lhe vem de fora, ou tampouco de dentro, que ela possa receber ou aceitar. Está inteiramente abandonada, sem qualquer ajuda de nenhuma espécie, à insustentável necessidade de fazer-se ser até o mínimo detalhe. Assim, a liberdade não é um ser: é o ser do homem, ou seja, seu nada de ser. Para Sartre, não há limites para nossa liberdade, com exceção do fato de não sermos livres para não sermos livres, em outros termos, a liberdade é um fardo que acompanha toda nossa existência, somos condenados a ser livres. Segue daí, que cada ser humano é obrigado a fazer de si o que desejar. Entre as inúmeras possibilidades que se apresentam a sua existência está a liberdade de mudar de vida quantas vezes quiser, saciar ou ignorar seus desejos, buscar novos sentidos a 86 Comentários sobre o existencialimo sartreano... sua existência etc. Em suma, o ser humano está apenas sob o peso de sua liberdade. O peso da liberdade, entretanto, segundo o filósofo em voga, somando-se com as responsabilidades do que se resulta de nossas escolhas, provoca no ser humano um sentimento ambivalente de poder e medo. A título de exemplo, se o ser humano se colocar à beira de um penhasco sentirá o medo de cair e sentirá a angústia de pensar que nada, absolutamente nada, o impede de jogar-se lá embaixo, de lançar-se no abismo. O que de mais angustiante pode tomar o ser humano é a consciência que só cabe a ele decidir pular ou não pular. O peso da responsabilidade de decidir a cada momento o que fazer pode tornar a vida insuportável. A angústia também acomete o ser humano quando este tem a consciência total de sua liberdade e em que isso implica em sua existência, ou seja, ao gozar de sua liberdade o ser humano pode optar por caminhos os quais não oferecem vias de retorno. É, portanto, angustiante saber que estamos sujeitos a escolhas equivocadas e irremediáveis. Ademais, os ser humano pode, ainda, angustiar-se ao se deparar com resultados inesperados de suas escolhas. Nesse sentido, o ser humano é a base de sua existência, são suas escolhas que fundamentam sua essência, entretanto, está sujeito a fazer escolhas que se voltam contra si. Assim como a liberdade é a existência humana, a angústia se apresenta do mesmo modo. O ser humano sempre se angustiará, pois nunca estará plenamente capacitado para lidar com o peso de sua liberdade ou com as consequências de suas escolhas. Para mais, o futuro sempre lhe parecerá desafiador, fazendo-o contrastar o que é com o que deseja ser. Desse modo, ao mesmo tempo que a liberdade é almejada é também causadora de incertezas. Em grande parte das situações que exigirem uma escolha que inevitavelmente afetará o curso de seu futuro, o ser humano terá medo 87 Perspectivas e poderá ser tomado pelo sentimento de Nada, isto é, o vazio ou a ausência de sentido que o faz questionar suas escolhas. Se a existência do ser humano é marcada pela liberdade, na mesma proporção é marcada pela incerteza. A incerteza de ter feito a decisão correta; a incerteza pelo que teria sido se houvesse feito outra escolha; a incerteza pelas consequências que viram das escolhas feitas ou deixadas de se fazer. Se diante da angústia se pode acentuar o quão frágil é o ser humano, do mesmo modo é possível enfatizar a responsabilidade que tem sobre sua existência. Nesse sentido, conhecer-se é um fator fundamental para lidar com a angústia. Cada ser humano é o único que pode exercer controle sobre si mesmo e dar sentido a sua vida: Sou responsável por tudo, de fato, exceto por minha responsabilidade mesmo, pois não sou o fundamento do meu ser. Portanto, tudo se passa como se eu estivesse coagido a ser responsável. Sou abandonado no mundo, não no sentido de que permanecesse desamparado e passivo em um universo hostil, tal como a tábua que flutua sobre a água; mas, ao contrário, no sentido de que me deparo subitamente sozinho e sem ajuda, comprometido em um mundo pelo qual sou inteiramente responsável, sem poder, por mais que tente, livrar-me um instante sequer, desta responsabilidade, pois sou responsável até mesmo pelo meu próprio desejo de livrar-me das responsabilidades (SARTRE, 1997, p.680). É por meio da liberdade, portanto, que é possível ao ser humano realizar seus objetivos e, dentre todas as possibilidades, realizar o mais importante à existência, isto é, assumir a inevitabilidade de ter de fazer escolhas e o que delas advêm. Em O Ser e o Nada (1997), Sartre diz que a existência humana é um projeto a ser realizado, uma vez que os seres humanos não possuem uma essência definida e, por isso, está em constante construção. Sartre, em seus escritos, como já foi aludido, sempre buscou refletir sobre questões relacionadas com a existência humana e encontrou no teatro um 88 Comentários sobre o existencialimo sartreano... ótimo meio para expor seus conceitos filosóficos, como é o caso de Entre Quatro Paredes, onde Sartre expõe sua visão sobre o Outro e as angústias provenientes da liberdade. 4.3 O INFERNO SÃO OS OUTROS? Entre Quatro Paredes foi escrita em 1944, em plena Segunda Guerra Mundial e, por conta das precárias condições econômicas à época, a peça possui um único e simples cenário: sobre o palco havia apenas um sofá, um criado mudo e uma estátua de bronze sobre este. Toda a peça é representada em único Ato, dinâmico e sem rodeios. Além de causar impacto ao ser encenada a peça também pode proporcionar uma impactante leitura quando feita em um único fôlego. A peça se passa no inferno e possui apenas quatro personagens: o Criado, um coadjuvante com poucas falas, mas de função dramática importante e indispensável no início da peça. Garcin, um diretor de jornal que almejava ser um herói, mas não foi mais que um covarde em vida e também agora no inferno; um grande canalha e péssimo marido. Estelle, uma esnobe que se casa com um homem mais velho e rico para subir na vida; matou um bebê que teve com seu amante. Por fim, Inês, uma funcionária dos correios e com tendências sadomasoquistas; causava intencionalmente o sofrimento alheio. Entre os três protagonistas, Inês é a única personagem que reconhecerá sua culpa. Um ponto a ser destacado na peça é que vemos logo em seu início a desconstrução da imagem estereotipada que há do inferno e uma nova imagem sendo construída conforme os personagens vão se conhecendo. Há, portanto, grandes diferenças entre o inferno cristão e o inferno existencial, por assim dizer, mas este 89 Perspectivas pode ser tão castigador quanto o primeiro. O inferno concebido por Sartre não é representado por torturas, rios de fogo e enxofre, e sim expressado pela afirmação de Garcin: O inferno são os Outros. O que é posto em destaque por Sartre em Entre Quatro Paredes é o constante e interrupto olhar de uns sobre os outros. Ao longo do primeiro diálogo da peça, entre o Criado e Garcin, somos informados que no cômodo onde os personagens passarão a eternidade não se apaga as luzes e não há onde ou como dormir, com o tempo nem mesmo será possível piscar. No cômodo também não há espelhos e nem qualquer outro objeto que possa ser utilizado como tal. O único castigo que há no inferno de Entre Quatro Paredes é um paradoxo: os personagens só podem verem a si mesmos por meio do olhar de uns dos outros. É isso que observamos no triângulo de Entre quatro paredes: Estelle precisa do olhar de Garcin para manter sua imagem de bela e desejável. Garcin precisa do olhar de Inês para se justificar de sua covardia e Inês precisa do olhar amedrontado dos outros dois para manter sua escolha de manipuladora. Porém, ao mesmo tempo, em que desejam esse olhar [...], este mesmo [olhar] é o inferno para cada um deles, em outras palavras, “aquele que me olha”, é sempre o meu carrasco (MENDES CAMPOS, 2008, p.4). Com Entre Quatro Paredes, Sartre põe em foco o grande conflito que há entre os seres humanos. Para o filósofo, os seres humanos são consciências livres e, devido a isso, estão em um constante arranjo de encontros e desencontros. “Quando o olhar do outro está em harmonia com minhas expectativas não há conflito, mas quando isso não acontece, ele configura para mim um espelho crítico que aponta minhas falhas e mentiras” (MENDES CAMPOS, 2008, p.4). Sem poderem olharem para si a não ser pela visão dos demais, Garcin, Estelle e Inês, além de 90 Comentários sobre o existencialimo sartreano... conviverem com seus defeitos, também são forçados a encararem o olhar julgador do Outro. Para Jacoby e Carlos (2005, p. 50): [...] é a apreensão da consciência de si mesmo que descobre o outro, como aquele que retorna a verdade da minha imagem e afirma minha existência. Isso pressiona meu olhar a também servir para voltar-se sobre o Eu, agora objeto-sujeito, indagando a própria identidade. Esta reflexão sustenta a afirmação do autor de que somos situados no mundo pelo Outro, identificado como a transcendência transcendida. Dito de outro modo, a conciência de si é revelada ao Ser e ao Outro por meio do encontro entre os seres. Segue-se daí o quão decicivo é para si próprio o olhar do Outro. Mas há uma outra reflexão a ser feita frente ao inferno concebido por Sartre: os três protagonistas de Entre Quatro Paredes possuíam o que podemos chamar de falhas morais e, por conta disso, eram castigados e castigadores uns dos outros, mas e quando o Outro julga e castiga por algo que não é uma falha, longe disso, é um erro grotesco de julgamento ou de pré-conceito? Quando o Outro olha para um judeu e não vê um ser humano? Quando o Outro olha para uma mulher com roupas curtas e a julga como um objeto sexual? Ou quando o Outro olha um negro e sumariamente o condena como um bandido? Não sei se, de fato, “o inferno são outros”, mas certamente há momentos em que, principalmente, grupos minoritários são levados para campos de concentração, abusados sexualmente ou presos injustamente por outros. REFERÊNCIAS JACOBY, Márcia; CARLOS, Sergio Antonio. O eu e o outro em Jean Paul Sartre: pressupostos de uma antropologia filosófica na 91 Perspectivas construção do ser social. In: Latin-American Journal of Fundamental Psychopathology on Line, ano V, v.1, 2005. MENDES CAMPOS, Carolina. A psicanálise existencial de JeanPaul Sartre na peça “Entre Quatro Paredes”: o jogo de espelhos do encontro com o Outro. In: Anais do I Simpósio de Psicologia Fenomenológico-Existencial. BH: Fundação Guimarães Rosa, 2008. SARTRE, Jean-Paul. Entre Quatro Paredes. Trad. Guilherme de Almeida. São Paulo: Abril, 1977. SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada: ensaio de fenomenologia ontológica. Trad. Paulo Perdigão. 5º ed, RJ: Vozes, 1997. 92 REAÇÕES PESSOAIS FRENTE ÀS NOVAS CONFIGURAÇÕES DE CIDADE: (SOBRE)VIVER NA PANDEMIA Marina Garcia Lara* Aloir Pacini** Resumo: O presente artigo tem como objetivo suscitar reflexões sobre a consciência coletiva em tempos de pandemia embasados em Rousseau (1973), Mauss (2003), Park (1967) e Hannerz (2005). Analisamos as novas configurações de cidade e a reação das pessoas frente às decisões de retomada da mobilidade, depois de períodos mais intensos de reclusão em casa. Através de pesquisas bibliográficas que trazem conceitos que dialogam com o momento presente e de questionário semiestruturado, jovens estudantes relatam suas experiências. Percebemos que há uma percepção de si diferenciada enquanto pessoas contextualizadas nesse momento da história da humanidade. A chamada consciência coletiva (Durkheim, 1995), trouxe novos elementos de compreensão da realidade para superar os individualismos passados em vista de compromissos sociais com uma vida de mais equilíbrio com todos os outros seres que habitam o planeta terra, e que fazem de todos os envolvidos, cidadãos cada vez mais plenos porque se apresentam com noções mais claras do que é o bem comum. Palavras-chave: Pandemia. Pessoa. Cidadão(ã). * Aluna de Mestrado em Antropologia Social pela Universidade Federal de Mato Grosso. E-mail: profmarinalara@gmail.com. ** Doutor em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professor adjunto da Universidade Federal de Mato Grosso. Perspectivas Abstract: This article aims to raise reflections on collective consciousness in times of pandemic, based on Rousseau (1973), Mauss (2003), Park (1967) and Hannerz (2005). We analyzed the new city configurations and people's reaction to decisions to resume mobility, after more intense periods of seclusion at home. Through bibliographic research that brings concepts that dialogue with the present moment and a semi-structured questionnaire, young students report their experiences. We realize that there is a different perception of the self as contextualized people at this moment in human history. There is what we could call a collective conscience, which surpasses past individualism towards a social commitment with a more balanced life with all the other beings that inhabit the planet earth, and that make all citizens more and more full because they present themselves committed to the service of the common good. Keywords: Pandemic. Person. Citizen. 5.1 INTRODUÇÃO Estudos científicos incorporam como epidemias uma ampla gama de doenças: HIV-AIDS, cólera, peste bubônica, gripe, ebola, dengue etc. (KECK et al, 2019). Assim, o significado da palavra epidemia entendida como doença infecciosa que se generaliza sem controle em uma comunidade se diferencia da pan-demia pelo prefixo, pois essa incorpora uma dimensão universal de uma doença, por exemplo, o Covid-19. Nesse sentido, devido aos níveis alarmantes de disseminação e severidade, e também com os níveis alarmantes de inação, no dia 11 de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) avaliou que o Covid-19 seria caracterizado como uma pandemia1. 1 www.who.int/news-room/detail/27-04-2020-who-timeline---covid-19. 94 Reações pessoais frente às novas configurações de cidade... Dados de contágio e transmissão do Covid-19 são divulgados em todos os lugares do mundo. O vírus caracteriza-se como mais ou menos endêmico conforme as ações dos governos dos diferentes países. Assim, cabe salientar que a origem cultural exerce significativa influência em vários aspectos da vida das pessoas, inclusive com relação à saúde e o modo de enfrentar às doenças. Segundo Helman (2009, p. 13), a cultura engloba: [...] crenças, comportamento, percepções, emoções, linguagem, religião, rituais, estrutura familiar, dieta, modo de vestir, imagem corporal, conceitos de espaço e de tempo e atitudes em relação à doença, dor e outras formas de infortúnio – todos podendo ter importantes implicações para a saúde e os cuidados de saúde. Seguindo o conceito de cultura apresentado por Helman, pode-se dizer que a cultura influencia diretamente nas ações e reações da sociedade frente à pandemia, especialmente porque cada sociedade define suas próprias regras, presunções e crenças. Tais variações de ações tomadas por um país e outros, também interferem no atual cenário de crise global. Conforme Boaventura de Sousa Santos (2020 p. 22), este cenário pode ser caracterizado como uma crise grave: As crises graves e agudas, cuja letalidade é muito significativa e muito rápida, mobilizam os media e os poderes políticos, e levam a que sejam tomadas medidas que, no melhor dos casos, resolvem as consequências da crise, mas não afectam as suas causas. Pelo contrário, as crises graves mas de progressão lenta tendem a passar despercebidas mesmo quando a sua letalidade é exponencialmente maior. A pandemia do coronavírus é o exemplo mais recente do primeiro tipo de crise. Ademais, no contexto de estudo das epidemias, para o enfrentamento de crises frente às doenças infecciosas, percebemos a necessidade de ação imediata, uma vez que: 95 Perspectivas De natureza episódica e excepcional, as epidemias são uma crise em tempo real que impele uma resposta imediata [...]. Iluminando os contornos geopolíticos e as consequências da biossegurança, os antropólogos demonstraram como as epidemias, ou melhor, sua ameaça iminente, fornecem o pretexto para a extensão do poder governamental em todas as formas de vida e modos de vida (KECK, 2019, p. 3). Percebemos que a caracterização do Brasil como um país “em crise” não é de hoje. Em um estudo intitulado Health, Hygiene and Sanitation in Latin America, são estudadas as condições da América Latina entre os anos de 1870 e 1950, reconhecemos que muitas batalhas que vivemos hoje no Brasil carecem da mesma falta de um plano claro de enfrentamento da doença, pois o governo brasileiro vinha num processo de desmonte do Sistema Único de Saúde (SUS) para jogá-lo na mão da iniciativa privada, conforme aponta Christopher Abel (1996, p. 34): Os reformadores da saúde pública se viam conduzindo várias batalhas simultâneas: ciência versus ignorância; ciência versus erudição; ciência versus defesa do estado minimalista e baixa tributação; ciência versus os interesses arraigados dos oligarcas e coroneis rurais. A necessidade de respostas imediatas frente a uma crise de saúde pública está diretamente ligada às ações do governo ou à falta delas, como tem sido o caso do Brasil. O preparo dos governantes e dos países para lidar com crises emergentes é colocado em xeque a cada minuto, e a sensação de insegurança da população pode alterar consideravelmente o rumo dos fatos, ou seja: [...] qualquer evento de saúde pública pode enfraquecer a confiança do público na capacidade do governo de responder a emergências, minar a ordem social de uma nação, catalisar a instabilidade regional 96 Reações pessoais frente às novas configurações de cidade... ou causar impacto econômico adverso, incluindo restrições comerciais (KHAN et al, 2010, p. 1237). No caso específico do Brasil, o que estamos vivendo é uma crise generalizada que advém, especialmente, de ações tardias ou mesmo errôneas. Uma atitude que simboliza o caos vivido pelo país foi o fato de o presidente da república ter provocado aglomerações, passeando sem máscara (item obrigatório de utilização por toda a população para evitar transmissão e contágio), um dia após o Brasil ter se tornado o quinto país do mundo com mais mortes por Covid-19, em maio de 20202. Apesar dos problemas enfrentados durante esse período, “com diligência e ação concertada em vários níveis, as ameaças colocadas pelas doenças infecciosas emergentes podem ser, se não eliminadas, pelo menos significativamente moderadas” (LEDERBERG et al., 1992, p. 32). Não discutiremos nesse trabalho sobre o teor das ações que devem, ou não, ser tomadas por parte das autoridades políticas e das instituições de ensino. Por outro lado, dialogaremos sobre as consequências do que foi e está sendo feito até o presente momento entre os jovens estudantes. Frente a contextos anteriormente vivenciados no Brasil com relação a doenças, é possível destacar questões abordas, por exemplo, no período da febre amarela, época em que foi possível observar um intenso desenvolvimento de práticas individuais e coletivas para a contenção da transmissão, bem como se tratou de um momento propício para se discutir, conceitualmente, sobre doença e incorporar na experiência social-cultural formas recorrentes de descontrole governamental. Ao olhar para o passado, percebemos que a pandemia do Covid-19, malgrado todas as suas mazelas, surge como uma boa 2 www.cnnbrasil.com.br/politica/2020/05/30/bolsonaro-volta-a-passear-sem-mascara-eprovocar-aglomeracoes-durante-pandemia. 97 Perspectivas oportunidade para refletirmos, pois, se comparada com a febre amarela, parece que só mudou o nome da doença e o transmissor. Segundo Charles Rosenberg (in Löwy, 2006, p. 19): [...] a doença é ao mesmo tempo um acontecimento biológico, um repertório de construções verbais que refletem a história intelectual e institucional da medicina numa dada geração, um aspecto da política e uma legitimação desta política, uma entidade que potencialmente define um papel social, um componente das normas culturais e um elemento que estrutura as relações médico/doente. A partir disso, entendemos que a doença pode ser descrita como “um fenômeno biocultural, uma mistura de elementos independentes da vontade humana e de elementos elaborados pelos homens” (LÖWY, 2006, p. 19). A noção de movimentos interdependentes entre biologia e cultura, nos coloca a pensar socialmente sobre a crise ocasionada por essa pandemia do Covid-19, especialmente no que tange à subjetividade das pessoas que vivem esse momento. Em termos biológicos, sobrevivência significa ajustamento bem-sucedido à crise, tipicamente acompanhado por uma modificação de estrutura. Significa no ser humano um estímulo mental e maior discernimento ou, no caso de fracasso, também de certa depressão mental (THOMAS, 1912, p. 736). Percebemos que o estado de medo se alastra, e o consequente pânico coletivo é evidenciado. Giorgio Agamben, em seu texto incluso no livro Sopa de Wuhan, sugere o círculo vicioso perverso causado pelo constante estado de medo, e relaciona as emoções com o controle do governo sobre nós: “la limitación de la libertad impuesta por los gobiernos es aceptada en nombre de un deseo de seguridad que ha sido inducido por los mismos gobiernos que ahora intervienen para satisfacerla” (AGAMBEN, 2020, p. 19). Há uma falsa sensação de segurança, que nos apresenta as novas formas de vigilância vividas em períodos de pandemia. 98 Reações pessoais frente às novas configurações de cidade... 5.2 CENÁRIO CONTAMINADO: O CORONAVÍRUS NA CIDADE Apresentamos aqui as contribuições da Antropologia Urbana para esta pesquisa, e a importância de voltarmos a atenção para nossa própria sociedade: [...] a ciência da antropologia não se preocupa somente com o selvagem nu, mas com o homem ou a mulher com calça plus fours ou vestido de gala. Para o verdadeiro homem de ciência, pouco importa se ele está lidando com o subúrbio ou com a selva, com a dança de jazz moderno ou com a orgia sexual selvagem, a mágica da floresta mágica ou o deísmo antropomórfico de um verdureiro suburbano, as curas e feitiços do pagé de Bantu ou a obra de um membro do Royal College of Physicians. A diferença entre nós e os selvagens muitas vezes é mais aparente do que real; uma calça plus fours pode esconder um bruto, e uma camada de tinta pode encobrir um coração sensível (DUFF apud HANNERZ, 2005, p. 22). Segundo Hannerz (2005, p. 22) “isso também é uma contribuição da antropologia aos estudos urbanos: a antropologia urbana como instrumento pelo qual os habitantes da cidade possam pensar de maneira nova sobre o que se passa ao seu redor”. Para compreendermos as novas configurações de cidade, que foram especialmente alteradas em decorrência da pandemia pelo novo coronavírus, relembro que importantes medidas foram tomadas pelas autoridades para conter o avanço da doença a nível mundial. Dois termos surgiram para restringir ou limitar a circulação das pessoas: quarentena e isolamento social. A palavra quarentena foi usada, inicialmente, em Veneza, na Itália, em 11273. Os termos diferem-se: 3 O termo foi utilizado em relação à hanseníase e foi amplamente usada em resposta à Peste Negra e trata-se de uma reclusão das pessoas em casa para evitar o contágio. Está relacionado aos quarenta dias no deserto que Jesus Cristo passou e aos 99 Perspectivas isolamento social diz respeito à separação das pessoas que foram diagnosticadas com uma doença contagiosa, mas que não estão doentes, enquanto a quarentena “é a separação e restrição de movimento de pessoas que foram potencialmente expostas a uma doença contagiosa para verificar se elas ficam mal, reduzindo assim o risco de infectar outras pessoas” (BROOKS et al., 2020 p. 912). Nosso campo de estudo neste trabalho é a cidade de Cuiabá, capital do Mato Grosso 4 . Devemos pensar para além das fronteiras geográficas do conceito atribuído à cidade, uma vez que ela é muito mais do que um aglomerado de pessoas e edificações: a cidade é um estado de espírito (cf. PARK, 1967, p. 26). Nós pesquisadores vivenciamos conjuntamente o cenário contaminado da pandemia e desejamos entender as percepções antropológicas desse momento através da coleta de dados. Sabemos que nossos dados nada mais são do que nossa própria construção das construções de outras pessoas e que, quando bem coletados, falam por si mesmos (CARDOSO, 1986; GEERTZ, 1989). Atualmente, relatamos fatos ocorridos em Cuiabá no contexto de isolamento social que têm mudado profundamente as configurações dessa cidade que, para fins sociológicos, pode ser definida como um núcleo relativamente grande, denso e permanente, de indivíduos socialmente heterogêneos (cf. WIRTH, 1967, p. 96). Para entender fatos e atores, um questionário semiestruturado foi quarenta dias de quaresma antes da Páscoa, ou, como já incorporado pelos Chiquitanos, os quarenta dias que a mulher fica em resguardo quando ganha um filho(a). 4 Várzea Grande é uma cidade localizada no lado oposto do rio Cuiabá, uma fronteira visível entre outras tantas invisíveis. Alguns estudantes do colégio também são dessa cidade, por isso, sempre que falar em Cuiabá, não faço uma distinção radical dessa outra cidade, pois morar do lado de lá ou de cá, parece não fazer tanta diferença nessa pesquisa. 100 Reações pessoais frente às novas configurações de cidade... respondido por 50 jovens de 14 a 18 anos. Segundo Bernard (2006), o questionário é considerado o coração da pesquisa social porque é uma das principais técnicas de coleta de dados empregada no método de pesquisa. Demos preferência a esse tipo de coleta em detrimento das novas conjunturas não nos permitirem encontrar presencialmente os participantes da pesquisa. Evidenciamos que cada estudante, “ao falar do que sente, comunica-se consigo mesmo através dos outros, compreendendo, por meio desta expressão, aquilo que sente” (REZENDE e COELHO, 2010, p. 62). Inicialmente, percebemos que o cenário da pandemia trouxe significativos questionamentos e percepções sobre mobilidade. Segundo Park (1967, p. 41), o termo mobilidade, da mesma forma que seu correlativo isolamento, cobre uma ampla gama de fenômenos. Pode, ao mesmo tempo, representar um caráter e uma condição. Ademais, nas condições atuais da cidade, os dois termos relacionamse diretamente com a noção de liberdade do indivíduo. Nesse contexto, Agamben (2020) é um dos autores que questiona intensamente os poderes do Estado para impor à população a quarentena e, na mesma obra, González (AGAMBEN et al., 2020) reitera que a instalação de restrições de liberdades reforça o sentimento de medo na população. Percebemos que, após três meses de isolamento social, o sentimento de algumas pessoas é de impotência, pois há um direito nato de “ir e vir” que lhe foi tirado temporariamente. Entre os relatos observados entre os jovens, percebemos aqueles que inicialmente estavam contentes com a ideia de isolamento social, mas que logo foram tomados pela noção de realidade, como aconteceu com M, 15 anos: Sinceramente eu achei incrível! Férias adiantadas porque estaria sem aulas, mas conforme o tempo foi passando, hoje tudo o que eu 101 Perspectivas quero é que tudo volte ao normal e que nós tenhamos a liberdade de vivermos livres por aí, sem se preocupar mais com o Covid-19 [...]. Segundo Rousseau (1973, p. 249), um dos autores que influenciou a Antropologia pela sua concepção do ser humano enquanto um agente livre, que faz escolhas por ato de liberdade5, não pelo instinto: Não é, pois, tanto o entendimento quanto a qualidade de agente livre possuída pelo homem que constitui, entre os animais, a distinção específica daquele. A natureza manda em todos os animais, e a besta obedece. O homem sofre a mesma influência, mas considera-se livre para concordar ou resistir, e é sobretudo na consciência dessa liberdade que se mostra a espiritualidade de sua alma, pois a física de certo modo explica o mecanismo dos sentidos e a formação das ideias, mas no poder de querer, ou antes, de escolher e no sentimento desse poder só se encontram atos puramente espirituais que de modo algum serão explicados pelas leis da mecânica. O excesso de crises pessoais pela falta de liberdade, considerada consequência da restrição da mobilidade, sugere que a cidade necessita do movimento que articula todos os seus atores: a mobilidade da população é inquestionavelmente um fator importante de seu bem-estar social e desenvolvimento intelectual (PARK, 1967, p. 41). Com esse pensamento em mente, alguns relatos deste trabalho começam a ser justificados quando as pessoas isoladas socialmente sugerem um decréscimo em sua produção intelectual. Ademais, “a interação com redes de relações mais amplas e diversificadas afeta o desempenho dos papéis sociais” (VELHO, 1978, p. 20). Sobre a 5 Fazer escolhas é um ato de liberdade, o cachorro não faz escolha entre um prato e outro de comida, ele segue o instinto e come, se ele conseguir cheirar o veneno talvez evite, mas não faz escolhas conscientes e nem reflete sobre elas. 102 Reações pessoais frente às novas configurações de cidade... ausência de estímulos providos das interações e mobilidade, Wirth (1967, p. 104) nos diz que: A crescida mobilidade do indivíduo, que o coloca dentro do campo de estímulos recebidos de um grande número de indivíduos diferentes e o sujeita a um status flutuante no seio de grupos sociais diferenciados que compõem a estrutura social da cidade, tende para a aceitação da instabilidade e insegurança no mundo como norma geral. As novas circunstâncias e o questionamento entre ficar ou não em casa enquanto o “inimigo” está a solta, nos coloca a pensar nas características das relações, em como elas se fundamentam e como nossas escolhas são – ou não – direcionadas ao bem coletivo. Relembramos Simmel (1967) 6 , ao entendermos que é necessário a compreensão do contexto quando falamos da noção de indivíduo. Por um lado, os sensatos – para quem? – julgam que uma cidade com pessoas isolados socialmente apresenta o caminho para o fim da disseminação do vírus que assola e enterra famílias. Por outro lado, governantes federais estimulam a retomada da economia, e parte do comércio municipal começa a funcionar aguardando os indivíduos decidirem se estão do lado da vida ou da economia, como sugerem os mais críticos. Um dos estudantes entrevistados, quando questionado sobre sua opinião em relação ao comportamento dos indivíduos no período de distanciamento social, relata que “o coletivo nada mais é que a composição de indivíduos que se aliam em algumas discussões, mas se desviam da cooperação coletiva quando seus interesses são prejudicados” (M, 18 anos). Podemos relacionar a opinião do 6 “O indivíduo é pressionado, de todos os lados, por sentimentos, impulsos e pensamentos contraditórios, e de modo algum ele saberia lidar com segurança interna entre suas diversas possibilidades de comportamento – que dirá com certeza objetiva.” (SIMMEL, 2006, p. 40). 103 Perspectivas estudante M, 18 anos, com a hipocrisia de pessoas que inicialmente se mostraram favoráveis ao distanciamento social, mas quando viram que a economia e o futuro de seus negócios seriam severamente prejudicados, optaram por mudar de lado. F, 17 anos, descreve claramente sua percepção sobre a hipocrisia vivida nos tempos de pandemia: “percebi que muitos tem zero consciência coletiva e outros vivem de hipocrisia, por exemplo, nas redes sociais pregam ‘fiquem em casa’ e vão para festas ou casas de amigos. Outro exemplo de percepções de ações que não refletem o bem-estar comum pôde ser visto na resposta da estudante F, 15 anos: [...] apesar de muitas pessoas estarem sendo responsáveis, saindo do isolamento apenas para fazer o indispensável, porém, também tem muitas pessoas que desrespeitam o isolamento, e fazem festas clandestinas, o que contribui com o aumento do número de casos, e consequentemente de mortes, dificultando o controle da pandemia. Quando tratamos dessas ações ou restrições individuais, o que tem sido amplamente discutido são os direitos individuais e se o Estado pode impor restrições tamanhas aos cidadãos que não são simplesmente indivíduos, mas pessoas humanas, com liberdade, sujeitos social e culturalmente localizados. O coletivo certamente está acima do indivíduo, mas não existe sem o concreto das pessoas. Aqui recordamos a noção de consciência coletiva proposta por Durkheim (1995)7. Neste sentido, evidenciamos a insegurança da ação individual que fica mais latente nos estudantes mais novos e tende a ser mais comprometida e segura entre os estudantes que já passaram pela fase 7 Segundo o autor, a consciência coletiva é formada pelo conjunto de ideias, conceitos e categorias elaboradas em uma sociedade que determinam a conduta dos seus membros como regras sociais, porque está além dos indivíduos (In: Da Divisão Social do Trabalho. Martins Fontes: São Paulo, 1995). 104 Reações pessoais frente às novas configurações de cidade... do egocentrismo. Na escolha de um dos “lados” nesse momento em que vivenciamos papéis diferenciados na sociedade, temos que: Entendendo a personalidade social como um cluster of roles (Gluckman, op. cit.), há que entender os diferentes contextos em que são desempenhados os papéis para perceber a gramática e lógica do comportamento individual, inclusive as possíveis incompatibilidades e contradições (VELHO, 1978, p. 34). É importante ressaltar que a ausência das relações entre os grupos primários, face a face, podem sugerir o crescimento de uma falta de empatia entre as pessoas, uma vez que, quando inseridas no grupo, há uma tendência ao nós. Uma prova disso é o relato de F, 15 anos, quando perguntada sobre sua opinião acerca do comportamento das pessoas na pandemia: “extremamente egoístas, somente pensando em si e não no todo”. De uma maneira enfática, direta e sensível, outra estudante F, 15 anos, resume a falta de empatia percebida no momento: [...] as pessoas que não estão respeitando o distanciamento acho que é falta de empatia com as pessoas que estão ficando em casa, falta de empatia principalmente com muitas pessoas que estão morrendo, famílias e amigos que estão perdendo pessoas que eles amam e com os que trabalham na área da saúde, dando o seu máximo e se arriscando para poder salvar vidas enquanto pessoas que só sabem olhar para o próprio umbigo são inconsequentes e não tem noção do momento que estamos vivendo! Em contrapartida, o depoimento objetivo e forte de F, 15 anos, nos faz perceber sua consciência quando relata sobre as mudanças percebidas com o passar dos meses: “eu entendi que é uma questão de termos paciência e que enquanto eu estou sentindo falta de ir no shopping fazer compras, existem pessoas sentindo falta de alguém que amava e que acabaram perdendo por causa desse vírus.” Claramente percebemos que a questão conjuntural de mobilidade não se sobrepõe 105 Perspectivas aos sentimentos vividos pelas pessoas. Temos aqui um claro exemplo de pessoa que está vivendo muito além de sua bolha individual. Trazemos neste momento as importantes contribuições de Mauss (2003) sobre a noção de pessoa, categoria analisada que contextualiza a necessidade da antropologia ir além das ciências exatas e trazer à baila uma oposição à ideia de mero indivíduo, como se isso fosse possível na sociedade. O autor nos diz que: [...] uma das categorias do espírito humano – uma dessas ideias que acreditamos inatas - lentamente surgiu e cresceu ao longo dos séculos e através de numerosas vicissitudes, de tal modo que ela ainda é, mesmo hoje, flutuante, delicada, preciosa, e passível de maior elaboração. É a idéia de "pessoa", a idéia do "Eu". (MAUSS, 2003, p. 369). Ainda não está dito, mas a antropologia vai chegar a compreender que as relações fazem a pessoa humana e, mesmo que as relações presenciais é que geram tradicionalmente vínculos de amor, ou seja, mesmo que estas estejam sendo substituídas por relações remotas, ainda assim, são densas e complexas na constituição das identidades sociais. Por isso vamos tratar aqui da importância de certa intimidade que configura as pessoas com identidades próprias, culturalmente localizadas, não indivíduos individualistas, que reforçam a ideologia dominante do individualismo que assola a humanidade de tal forma que nos trouxe essa pandemia. Assim, psicologicamente, o resultado da associação íntima seria uma certa fusão das pessoas em um todo comum (PARK, 1987), de tal forma que cada pessoa se torna mais pessoa quando é altruísta e se dispõe a propósitos comuns do grupo. Neste ponto questionamos a ausência das relações presenciais, e como as consequências dessa falta afetam o cenário vivido na cidade, onde o novo normal consiste em seguir seu trajeto apenas em casos de 106 Reações pessoais frente às novas configurações de cidade... necessidade. Aqui insiro um dos grandes atores desse trabalho: a escola. As escolas da cidade já não são mais povoadas por jovens estudantes e professores. Logo, essa instituição, que há tanto tempo tem assumido algumas funções da família, visto que algo como um novo espírito de vizinhança e comunidade tendiam a se organizar em volta da escola, agora é impulsionada a uma nova solicitude pelo bemestar físico e moral das crianças. Para Tuan (1983, p. 83), “quando o espaço nos é inteiramente familiar, torna-se lugar”. Algumas perguntas cabem nesse momento: qual espaço da cidade é agora ocupado por essas pessoas? Será que as pessoas isoladas se identificam com os espaços que agora são obrigadas a ocupar? O problema central do sociólogo-antropólogo da cidade é descobrir as formas de ação e organização social que emergem em grupamentos compactos, relativamente permanentes, de grande número de pessoas altamente criativas, culturalmente identificadas, mas heterogêneos (WIRTH, 1967, p. 97). Através das análises, percebo que a casa e a família são lugares de pertencimento que ganharam mais relevância neste momento. As novas configurações sugerem uma nova forma de vivenciar a casa com um lugar de estudo, e as relações familiares se tornaram mais visíveis, públicas. Famílias que antes quase não se encontravam neste ambiente, pessoas que não tinham costume de fazer refeições conjuntamente, hoje são condicionadas pelas circunstâncias a estarem juntas, e estarem em casa, fazendo dela o seu “canto do mundo” (BACHELARD, 1993, p. 200). Um dos alunos entrevistados nesta pesquisa, M 16 anos, relata que uma das coisas que mudou em sua vida com o passar dos meses foi, justamente, “o modo com que eu convivia com minha família”. A aluna F, 16 anos, acrescenta: “tudo mudou. Meu relacionamento com a minha família, com o meu corpo, com minha fé. Sacudiu as bases que eu construí para que fossem fortalecidas”. 107 Perspectivas Segundo Bachelard (1993), a casa é, como se diz frequentemente, nosso primeiro universo. “É um verdadeiro cosmos. Um cosmos em toda a acepção do termo. Até a mais modesta habitação, vista intimamente, é bela.” (BACHELARD, 1993, p. 200). Percebemos que os novos movimentos fizeram as pessoas pararem para apreciar a beleza de suas moradias. Alguns jovens que entrevistamos para esse trabalho contam sobre a alegria de estarem recriando, redecorando, aquele que sugerem ser os seus espaços na moradia: especialmente seus quartos. Essa noção de moradia, do valor da casa, passava bastante despercebida, conforme aponta Bachelard (1993, p. 200): “nossa vida adulta é tão despojada dos primeiros bens, as ligações antropocósmicas se encontram tão desguarnecidas, que não sentimos seu primeiro vínculo no universo da casa”. É interessante percebermos o evidente movimento dos estudantes voltando-se para suas famílias, para a percepção das suas moradias, pois agora ganhou relevância algo que já estava aí, mas não era refletido. Entretanto, existem outros locais possíveis de convívio que os estudantes já usavam bastante que são as Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação - as chamadas TDICs. Mesmo que seja lamentável a falta de aula presencial, por faltarem alguns elos que somente são possíveis com a presença, a vivência dos afetos pode ser continuada através dos meios de comunicação, e assim percebemos que eles não estavam isolados de modo algum, mas vivendo suas relações interpessoais da maneira que foi possível. Um estudante foi enfático: “acho que eu amadureci muito com tudo isso que aconteceu, sou uma pessoa totalmente diferente do começo do ano”. Ademais, outros estudantes foram mostrando os detalhes das diversas relações que mantiveram neste tempo de reclusão, que parece mais como um tempo de retiro espiritual, que permitiu profunda conexões consigo mesmo, por exemplo: “Mudei minha concepção sobre a capacidade 108 Reações pessoais frente às novas configurações de cidade... do indivíduo de mudar ou até mesmo de respeitar o limite dos outros”. (F, 17 anos); “O distanciamento social colaborou para desenvolver minha empatia, tanto com as pessoas próximas, quanto como parte de uma sociedade que precisa melhorar”. (F, 15 anos). A síntese a seguir se apresenta como um tesouro: “Eu me tornei uma pessoa mais madura, consegui analisar e conviver com as situações que vivemos, e isso me fez uma pessoa forte e mais sábia.” (M, 15 anos). Registramos também um relato mais profundo, desejando expressar sentimentos inusitados: Psicológico principalmente, a mudança de rotina, a falta de contato com amigos e a presença dos seus familiares o tempo todo contigo faz muitas coisas mudarem, meu pensamento era que eu precisava quase sempre ter um amigo do meu lado, porém isso mudou, a quarentena me ensinou a ficar bem com a minha própria companhia, aprender a lidar melhor com minha família (eu esperava mais brigas e houve muito poucas kk), me mostrou quem são os amigos de verdade e que nem sempre eu necessito deles para fazer algo. Meu psicológico não vai sair dessa quarentena tão quebrado como eu esperava... Acho que autoconhecimento foi o ponto que mais me pegou (F, 15 anos). Agora, com a obrigatoriedade do convívio dentro das casas, especialmente nesse momento de insegurança, é importante relembrar o conforto de ter um espaço que é meu, faz-me no meu íntimo como a cama ou a rede, mas também a família: “contra tudo, a casa nos ajuda a dizer: serei um habitante do mundo, apesar do mundo” (ibid, 1993, p. 227). Como nos recorda Clarice Lispector, devemos ir além de nossas limitações e, sobretudo, se deve viver apesar de - visto que, muitas vezes, é o próprio apesar de que nos empurra para a frente (Lispector, 1998). Nesse período de mudanças e incertezas, um relato simples, objetivo e de uma sensibilidade admirável foi feito por F, 15 anos, resumiu o que temos vivido: “tudo mudou, eu mudei, o mundo 109 Perspectivas mudou.” Apesar de vivermos em um momento caótico a nível mundial, o relato da jovem F, 16 anos enche nosso coração de esperança sobre como muitos indivíduos poderão sair dessas experiências com característica de pessoa: Eu sou uma pessoa completamente diferente da que era antes. Com certeza evolui minha forma de pensar e agir (apesar de haver ainda mais aspectos que preciso trabalhar -sempre temos que buscar a mudança). Não menciono a saudade como ponto principal pois não foi isso o que realmente me afetou, mas sim o entendimento de como uma sociedade funciona no íntegro, ou seja, o sofrimento e dor coletivo, a ajuda de cada um que faz a diferença, a busca pela solução dos problemas, etc. Eu pude ‘sair do meu mundo’ e visualizar um plano geral da vida em si, pude refletir no que a vida significava e no meu papel como humano, filha de Deus. Ainda sim, me encontrei no meu eu mais íntimo, no meu microcosmos, onde aprendi que saúde é uma coletânea de fatores (físicos, emocionais, psíquicos, sociais e mentais) que são, ao meu ver, a resposta para um mundo tão caótico e doente, pois seus habitantes (nós) são assim. Enfim, foi e é uma experiência muito especial ( no sentido bom e ruim) que espero levar o que aprendi para minha vida. REFERÊNCIAS ABEL, Christopher. Health, Hygiene and Sanitation in Latin America. Londres, 1996. AGAMBEN, Giorgio et al. Sopa de Wuhan. 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