Amaury Meller Filho
Daniela Valentini
Junior Cunha
(Organizadores)
Filosofia, Psicanálise e Antropologia
Vol. II
Primeira Edição E-book
TOLEDO-PR
2020
Copyright 2020 by
Gerente Editorial
Revisão
Editores Assistentes
Corpo Científico
Capa e Diagramação
Organizadores
Ana Karine Braggio
Amanda C. Schallenberger Schaurich
Mônica Chiodi
José Luiz G. Mariani
Medéia Lais Reis
Valdenir Prandi
Dr. José Aparecido Pereira - PUCPR
Dr. Lorivaldo do Nascimento – UFFS
Dr.ª Lurdes de Vargas Silveira Schio - UNIOESTE
Dr. Tiago Soares dos Santos - IFPR
Junior Cunha
Instituto Quero Saber
CNPJ: 35.670.640./0001-93
www.institutoquerosaber.org
editora@institutoquerosaber.org
Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)
P466
PERSPECTIVAS: filosofia, psicanálise e
antropologia – vol. II. / organizadores,
Amaury Meller Filho, Daniela Valentini, Junior
Cunha. 1. ed. e-book - Toledo, Pr: Instituto
Quero Saber, 2020.
118 p.
Modo de Acesso: World Wide Web:
<https://www.institutoquerosaber.org/editora>
ISBN: 978-65-87843-13-1
1. Filosofia. 2. Psicanálise. 3. Antropologia.
I. Título.
CDD 22. ed. 100
Rosimarizy Linaris Montanhano Astolphi – Bibliotecária CRB/9-1610
Todos os direitos reservados aos Organizadores
O conteúdo dos textos aqui publicados é de exclusiva responsabilidade dos seus respectivos autores
SUMÁRIO
Apresentação .........................................................................................7
“EMPODERAMENTO DIGITAL”? SUAS IMPLICAÇÕES NO
ETHOS E NA ATIVIDADE POLÍTICA ATUAL
Rodrigo Lopes Figueiredo
Marta Rios Alves Nunes da Costa ............................................................11
ELEMENTOS INTRODUTÓRIOS À METAFÍSICA DE
ARISTÓTELES
Igor de Matos Ramos ..............................................................................45
EPISTEMOLOGIA GENÉTICA E A PSICANÁLISE:
UMA RELAÇÃO POSSÍVEL
Fernando Alves Grumicker ......................................................................61
COMENTÁRIOS SOBRE O EXISTENCIALISMO
SARTREANO E A PEÇA ENTRE QUATRO PAREDES
Cristiele Rhoden
Junior Cunha .........................................................................................81
REAÇÕES PESSOAIS FRENTE ÀS NOVAS CONFIGURAÇÕES
DE CIDADE: (SOBRE)VIVER NA PANDEMIA
Marina Garcia Lara
Aloir Pacini ...........................................................................................93
Sumário
6
APRESENTAÇÃO
A coleção Perspectivas projeta-se sobre o horizonte como um
farol a guiar aqueles que se propuserem e ousarem navegar os vastos
oceanos do conhecimento. Os textos que integram este segundo
volume representam com profundidade questões argutas e
proeminentes da humanidade. Questões que causam incomodo e
levam a reflexão. Em suma, questões que suscitam novas perspectivas
sobre a vida e o mundo que nos cerca. Uma questão arguta e
promitente é aquela que perpassa o senso comum e astuciosamente
nos provoca. Nos desestabiliza. Nos leva a (re)considerar as bases que
dão sustentação ao que conhecemos. Descartes, na filosofia; Newton,
na ciência; Kafka, na literatura – entre outros – são exemplos de
pensadores que se sentiram incomodados. Nas páginas seguintes,
autores(as) que também se sentiram incomodados(as) se colocaram a
refletir sobre questões que tangenciam a filosofia, a psicanálise e a
antropologia.
Rodrigo Figueiredo e Marta Nunes da Costa abrem o volume
com o texto “Empoderamento digital”? suas implicações no ethos e na
atividade política atual. Os autores refletem sobre “a capacidade de
influência e controle do homem quando está em posse de
equipamentos, artefatos e sistemas de informação eficientes na
produção de dados sobre a natureza e sobre o próprio homem”. A
partir da obra Questão da Técnica, de Heidegger, escrevem que
“estamos diante da possibilidade de nos perdermos no horizonte da
tecnologia, no sentido em que alicerçamos a nossa existência na
premissa do controle calculado dos recursos naturais e dos ‘recursos
humanos’, produzindo um horizonte em que nos tornamos estranhos
não só uns aos outros, mas a nós mesmos, tornando-nos incapazes de
reconhecer a dignidade e humanidade em nossos semelhantes”.
7
Perspectivas
Concluindo que “o grande desafio é questionar os limites e condições
de possibilidade deste ‘empoderamento digital’, fenômeno que
inicialmente parece inverter a ordem das prioridades, tornando o
homem subserviente das suas próprias invenções tecnológicas”.
Na sequência, Igor Ramos disserta sobre Elementos introdutórios
à Metafísica de Aristóteles. Considerando a importância em
“desenvolver um trabalho de introdução aos seus conceitos mais
elementares, como ente, ser, substância, ato e potência”, o autor
realiza uma análise da Metafísica de Aristóteles e da Metafísica antiga e
medieval de Rosset e Frangiotti, procurando “elencar e elucidar os
elementos introdutórios da Filosofia Primeira”. No terceiro capítulo,
Epistemologia genética e a psicanálise: uma relação possível, Fernando
Grumicker apresenta “uma conceitualização da epistemologia
genética e da teoria psicanalítica, buscando refletir questões filosóficas
acerca do desenvolvimento humano, tanto no sentido orgânico como
no sentido mental”. O autor direciona o artigo à “uma assimilação
entre ambas as abordagens do desenvolvimento humano”. Mais
adiante, Cristiele Rhoden e Junior Cunha tecem Comentários sobre o
existencialismo Sartreano e a peça Entre Quatro Paredes. De forma
ensaística, os autores levantam “a questão sobre a liberdade dos seres
humanos em comporem sua essência e a angústia proveniente da
constante necessidade de fazer escolhas” e trazem “a lume o
questionamento se, de fato, o inferno são os outros?”, com base na
peça Entre Quatro Paredes.
Marina Lara e Aloir Pacini encerram o volume refletindo sobre
Reações pessoais frente às novas configurações de cidade: (sobre)viver na
pandemia. Os autores analisam “as novas configurações de cidade e a
reação das pessoas frente às decisões de retomada da mobilidade,
depois de períodos mais intensos de reclusão em casa”. A partir de
pesquisas bibliográficas e relatos de jovens estudantes, os autores
evidenciam que “a chamada consciência coletiva (Durkheim, 1995),
8
Apresentação
trouxe novos elementos de compreensão da realidade para superar os
individualismos passados em vista de compromissos sociais com uma
vida de mais equilíbrio com todos os outros seres que habitam o
planeta terra, e que fazem de todos os envolvidos, cidadãos cada vez
mais plenos porque se apresentam com noções mais claras do que é o
bem comum”.
Boa leitura!
Os organizadores
9
Perspectivas
10
“EMPODERAMENTO DIGITAL”? SUAS IMPLICAÇÕES
NO ETHOS E NA ATIVIDADE POLÍTICA ATUAL
Rodrigo Lopes Figueiredo*
Marta Rios Alves Nunes da Costa**
Resumo: O presente artigo pretende refletir sobre a capacidade de
influência e controle do homem quando está em posse de equipamentos,
artefatos e sistemas de informação eficientes na produção de dados sobre a
natureza e sobre o próprio homem; neste sentido aborda a Questão da
Técnica (1932) pensada por Martin Heidegger enquanto fenômeno
desafiador da liberdade humana no sentido mais essencial. Segundo o
pensador estamos diante da possibilidade de nos perdermos no horizonte
da tecnologia, no sentido em que alicerçamos a nossa existência na premissa
do controle calculado dos recursos naturais e dos “recursos humanos”,
produzindo um horizonte em que nos tornamos estranhos não só uns aos
outros, mas a nós mesmos, tornando-nos incapazes de reconhecer a
dignidade e humanidade em nossos semelhantes. Os reflexos da
instrumentalidade técnica presente ao nosso redor, associado ao desejo
pragmático em querer buscar tudo aquilo que garante bem estar pessoal e
satisfação imediata, termina por nos disponibilizar a objetualização, isto é,
conduzindo à perda de valor em nós mesmos “ontificando-nos”. No
processo de compreensão deste perigo trazemos a contribuição de Immanuel
Kant em suas obras Antropologia de um ponto de vista pragmático (1798), Ideia
de uma História universal do ponto de vista cosmopolita (1784) e Fundamentação
da metafísica dos costumes (1785) e de Pierre Levy em sua obra O que é o virtual?
*
Mestre em Filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná.
E-mail: digo_filo@yahoo.com.br.
**
Doutora em Filosofia pela New School for Social Research. Professora adjunta da
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. E-mail: nunesdacosta77@gmail.com.
Perspectivas
Na primeira obra kantiana tratamos sobre as paixões de civilização as quais
(unidas a virtualização) configuram o “empoderamento digital”, na segunda
vimos a possibilidade do aperfeiçoamento humano, possível sobretudo a
nível de espécie e que revela a conquista histórica do homem ao transitar da
animalidade em direção a civilidade, destacando-se nesta condição a
presente virtualização de todas as instâncias, constituindo uma cultura
multimídia. Por fim, buscamos chegar a um melhor entendimento acerca da
possibilidade de um progresso na humanidade a partir de Pierre Levy, que
enfatiza os méritos de uma sociedade interligada em rede, cujo propósito é
tornar possível a produção e o acesso compartilhado (virtualmente) dos
conhecimentos construídos coletiva e globalmente. O entusiasmo de Levy
com o desenvolvimento das novas tecnologias e com o novo modo de
interação humana, realizado virtualmente numa sociedade em rede, nos
permite imaginar a concretização da expectativa de progresso “profetizada”
por Immanuel Kant em sua obra Ideia de uma História universal do ponto de
vista cosmopolita (1784). Aqui, a espécie humana atingiria o estágio de
desenvolvimento mais avançado no que se refere ao cumprimento dos fins
antropológicos necessários – o estágio da moralidade, ou seja, a condição
histórica onde se manifesta a consideração valorativa de cada sujeito racional
enquanto fim em si mesmo, havendo o respeito e a responsabilidade
recíproca. Neste sentido o grande desafio é questionar os limites e condições
de possibilidade deste “empoderamento digital”, fenômeno que
inicialmente parece inverter a ordem das prioridades, tornando o homem
subserviente das suas próprias invenções tecnológicas.
Palavras-chave: Natureza humana. Empoderamento digital. Tecnologia.
Virtualização. Ética.
Abstract: This article intends to reflect on the capacity of influence and
control of man when he is in possession of equipment, artifacts and efficient
information systems in the production of data about nature and about man
himself; in this sense it addresses the Questão da Técnica (1932) thought by
Martin Heidegger as a phenomenon that defies human freedom in the most
essential sense. According to the thinker, we are facing the possibility of
losing ourselves in the horizon of technology, in the sense that we base our
existence on the premise of calculated control of natural resources and
“human resources”, producing a horizon in which we become strangers not
12
“Empoderamento Digital”?...
only to each other. others, but ourselves, making us unable to recognize the
dignity and humanity of our fellow men. The reflexes of the technical
instrumentality present around us, associated with the pragmatic desire to
want to seek everything that guarantees personal well-being and immediate
satisfaction, ends up making objectification available to us, that is, leading
to the loss of value in ourselves “ontifying us ”. In the process of
understanding this danger, we bring the contribution of Immanuel Kant in
his works Antropologia de um ponto de vista pragmático (1798), Ideia de uma
História universal do ponto de vista cosmopolita (1784) and Fundamentação da
metafísica dos costumes (1785) and Pierre Levy in his work O que é o virtual? In
the first Kantian work we deal with the passions of civilization which
(together with virtualization) configure “digital empowerment”, in the
second we saw the possibility of human improvement, possible above all at
the level of species and which reveals the historical conquest of man as he
transitions from animality towards civility, highlighting in this condition the
present virtualization of all instances, constituting a multimedia culture.
Finally, we seek to reach a better understanding of the possibility of progress
in humanity based on Pierre Levy, who emphasizes the merits of a
networked society, whose purpose is to make possible the production and
shared access (virtually) of knowledge built collectively and globally. Levy's
enthusiasm for the development of new technologies and the new way of
human interaction, carried out virtually in a networked society, allows us to
imagine the fulfillment of the expectation of progress “prophesied” by
Immanuel Kant in his work Ideia de uma História universal do ponto de vista
cosmopolita (1784). Here, the human species would reach the most advanced
stage of development with regard to the fulfillment of the necessary
anthropological ends - the stage of morality, that is, the historical condition
in which the evaluative consideration of each rational subject is manifested
as an end in itself, with respect and mutual responsibility. In this sense, the
great challenge is to question the limits and conditions of possibility of this
“digital empowerment”, a phenomenon that initially seems to invert the
order of priorities, making man subservient to his own technological
inventions.
Keywords: Human
Virtualization. Ethic.
nature.
Digital
13
empowerment.
Technology.
Perspectivas
1.1 INTRODUÇÃO
Um dos ensinamentos que podemos extrair da experiência do
isolamento social proveniente da pandemia da COVID-19, é o fato de
que não temos o controle sobre os acontecimentos sejam eles naturais
ou históricos, tampouco conseguirmos prever todas as consequências
da ação humana. A ameaça representada pelo Novo Coronavírus
redefiniu a realidade social, desencadeando um deslocamento das
atividades da dimensão física para a dimensão virtual: empresas
passaram a priorizar o atendimento on line; a Educação a Distância
adquiriu proporções inimagináveis; as operações bancárias e
pagamentos on line multiplicaram-se devido a exigência da utilização
de cartões magnéticos e de aplicativos bancários. Diante dessa nova
realidade, as pessoas têm sido progressivamente condicionadas a
migrar da realização presencial para a realidade virtual, buscando
serviços e resolução de problemas através da internet. Aqueles que
ainda não estavam inseridos nos ambientes virtuais, se confrontaram
com grandes desafios no que diz respeito às decisões profissionais,
comerciais e até mesmo à manutenção da subsistência.
Muitos diriam que este aumento da virtualização das operações
facilita a vida de todos garantindo a solução das questões práticas e
obrigando a uma simplificação da burocracia em nome da eficiência,
flexibilizando o rigorismo das regras e oportunizando uma
acessibilidade sem precedentes, em que as distâncias entre as pessoas
são delimitadas por cliques na tela. Porém, estes mesmos mecanismos
que visam facilitar a vida, têm implicações mais profundas, por um
lado, a nível do processo de constituição da subjetividade, por outro
lado, a nível do processo da constituição e manutenção do corpo
social e político. Ainda as interações virtualizadas unidas à necessidade
14
“Empoderamento Digital”?...
do distanciamento social têm um impacto direto no estado de saúde
físico e mental dos indivíduos e também da coletividade. Desse modo,
o objetivo deste capítulo é compreender de que forma este
“empoderamento digital” compromete, limita e/ou redefine o nosso
ethos1 e a nossa forma de pensar, de fazer e de viver a política.
1.2 PRECURSORES DO “EMPODERAMENTO DIGITAL”
Pode-se dizer, em linhas gerais, que existem dois precursores
do processo de concentração do poder digital na sociedade:
1º) A Revolução técnocientífica ocorrida no século XX, a qual
teve início com o surgimento da Imprensa de Gutemberg (século XV),
com a filosofia de Francis Bacon (1561-1626) considerado o precursor
da Ciência moderna, com a distinção entre fato e valor, distinção
configurada por Galileu Galilei (1564-1642) que redirecionou a nossa
forma de pensar e fazer ciência2 e com René Descartes (1596-1650)
1
O termo ethos significa costume, comportamento e espaço de realização humana;
ele aparece na obra Paidéia: a formação do homem grego, escrita por Werner Jaeger ao
se referir a Odisséia, de Homero: “Em vez das grandiosas paixões das figuras sobrehumanas e dos trágicos destinos da Ilíada, deparamos no novo poema com grande
número de figuras de estatura mais humana. Todos têm algo de humano e amável;
nos seus discursos e experiências domina o que a retórica posterior apelidou de
ethos” (WERNER, 1995, p.30-31). O estudioso analisa o termo remetendo a
convivência humana cujas decisões são pautadas numa formação elevada, num
decoro, numa continência proveniente do caráter e da educação. Para melhor
compreensão do termo ethos indicamos o artigo de Pedro Costa Rego, Hábito e
liberdade: algumas considerações sobre a natureza do ethos, publicado na Revista Síntese
Nova Fase (v. 22, n. 69, 1995).
2
Embora esta distinção tenha-se tornado manifesta já com a polémica causada por
Copérnico, é Galileu que contribui diretamente com a defesa da autonomia da
ciência face à autoridade da Igreja católica. Diz Mariconda e Lacey (2001, p.52) que
"o argumento de Galileu — refinado, generalizado e suplementado — permanece no
centro de todas as defesas da autonomia da ciência. Para ele, podemos dizer, a
15
Perspectivas
que instituiu a posição do sujeito do conhecimento diante do objeto
visado na obra Meditações metafísicas (1641), estabelecendo os passos
do método científico em suas obras Discurso do Método (1637) e Regras
para direção do espírito (1684) e, por fim, nos permitiu ter acesso à visão
mecanicista acerca da natureza ao comparar o funcionamento dos
corpos ao das máquinas, citando particularmente o relógio em suas
Meditações metafísicas (cf. a comparação entre o corpo e o relógio no §
31).
A Revolução técnocientífica, teve sua gestação durante a
Modernidade, onde se viu o surgimento de várias ciências, originadas
a partir do desenvolvimento e da aplicação do método científico –
procedimento técnico validador dos conhecimentos elaborados e
comprovados cientificamente segundo a compreensão moderna de
Ciência, cuja evolução transitou para a denominada tecnociência3 ,
possibilitando a união entre a informática e a internet na
contemporaneidade.
2º) O segundo elemento precursor é a expansão da
virtualização, possível devido ao aperfeiçoamento dos instrumentos de
comunicação e informática, os quais contribuíram para o processo de
globalização econômica, política e social. Vejamos o que nos diz um
estudioso da tecnologia:
Uma coisa é certa: os instrumentos modernos da comunicação e da
informática simplificam o processo de globalização, já que as
informações – além da telefonia – que podem ser processadas
eletronicamente, como plantas de construção, comandos de
autonomia é necessária porque as práticas científicas contribuem para produzir
conhecimento do mundo, representado por teorias que manifestam sempre no
mais alto grau a imparcialidade e a neutralidade”.
3
A expressão tecnociência é adotada pelo filósofo psicanalista Umberto Galimberti
em seu texto Man in the age of technology, publicado no Journal of Analytical Psychology
(v. 54, n. 1, 2009).
16
“Empoderamento Digital”?...
máquinas, programas de software, etc., tornam-se sem qualquer
problema transferíveis, permitindo uma descentralização sensata
dos processos empresariais além das fronteiras nacionais (MARON,
2001, p. 182-183).
Como vemos, a internacionalização das relações econômicas,
concretizadas nas operações de importação e exportação entre as
nações e nos denominados blocos econômicos, tais como a União
Europeia e o Mercosul – Mercado comum do Sul; a
internacionalização das decisões políticas, facilitadas pelos acordos e
os protocolos de intenções assinados durante os Fóruns e demais
eventos de cunho internacional em busca de soluções para os
problemas globais e a internacionalização cultural transmitida e
propagada através dos meios de comunicação, permitindo o acesso aos
mais distintos elementos culturais é possível devido à crescente
expansão do acesso à internet.
Para entender como o globo virou uma “Aldeia global”
interligada virtualmente precisamos voltar a reflexão sobre a filosofia
cartesiana e baconiana, as quais deram o suporte metodológico para o
desenvolvimento da Ciência na modernidade.
O projeto moderno do sujeito cognoscente (cf. DESCARTES,
2004, §4) , que dirige o olhar para a natureza a partir da visão
mecanicista (vide DESCARTES, 2004, §6) e matemática (CF.
DESCARTES, 1999, regra IV) presente na filosofia de René Descartes
e que entende o conhecimento como fonte de intervenção prática na
natureza advinda do princípio baconiano do “saber é poder” (cf.
BACON, Novum Organum, aforisma III) fez o homem crer que a partir
da ciência e da tecnologia, ele conseguiria assumir o controle de sua
existência, projetando-se enquanto, senhor e dono da natureza. Nesse
sentido, Heidegger em seu texto “Die Frage nach der Technik” - A
17
Perspectivas
Questão da Técnica (1938), alertou
instrumentalidade técnica; vejamos:
sobre
os
perigos
da
Entretanto, justamente este homem ameaçado se arroga como a
figura do dominador da terra. Desse modo, amplia-se a ilusão de que
tudo o que vem ao encontro subsiste somente na medida em que é
algo feito pelo homem. Esta ilusão torna madura uma última
aparência enganadora. Segundo esta aparência, parece que o
homem em todos os lugares somente encontra mais a si mesmo.
Heisenberg apontou com toda razão para o fato de que, para o
homem de hoje, a realidade deve se apresentar desse modo mesmo
(op. cit.p.60 s.). Entretanto, o homem de hoje, na verdade, justamente não
encontra mais a si mesmo, isto é, não encontra mais sua essência. O
homem está tão decididamente preso à comitiva do desafiar da
armação, que não a assume como uma responsabilidade, não mais
dá conta de ser ele mesmo alguém solicitado e, assim também, não
atende de modo algum ao fato de que, a partir de sua essência, ele
ek-siste no âmbito de um apelo e que, por isso, nunca pode ir
somente ao encontro de si mesmo (HEIDEGGER, 1997, p.79).
O que Heidegger quer dizer quando afirma que o “o homem
de hoje não encontra mais a sua essência”? Significa admitir que o
homem não é capaz de pensar por si mesmo, de ser criativo e usar da
própria inteligência para se reinventar e pensar para além do modo
instrumental, para além das relações de troca e compensação, para
além dos objetos, dos ambientes e dos sistemas programados. Enfim,
significa desistir de si mesmo e da humanidade, embora devamos
compreender o sentido destes conceitos, a saber, sujeito e
humanidade, assim como um outro conceito ético fundamental – a
responsabilidade – e mais precisamente, a responsabilidade humana
perante a técnica.
Na primeira parte deste capítulo reconstruíram-se os
argumentos centrais de Heidegger em A questão da Técnica. Na
18
“Empoderamento Digital”?...
segunda parte buscamos refletir sobre a essência da técnica, a
tecnologia e o seu destino desafiador em relação ao homem e a
possibilidade de reencontro do homem consigo mesmo a partir das
questões fundamentais evocadas pela ética e a política.
1.3 ESSÊNCIA E TECNOLOGIA EM HEIDEGGER
Em A Questão da Técnica, texto escrito em 1954, Heidegger
questiona o lugar e o papel da tecnologia no processo do aparente
declínio da civilização ocidental. O autor introduz aquilo que viria a
ser um leitmotiv na filosofia da tecnologia até Hans Jonas nas décadas
de 1970 e 1980, a ideia que os seres humanos e a natureza enquanto
tal são percebidos e/ou compreendidos através de uma lente
tecnológica4. Contudo, Heidegger tenta identificar os modos através
dos quais o sujeito pode transformar a sua relação com a tecnologia a
fim de estabelecer uma relação verdadeira, i.e., no sentido de que os
homens não vivam condenados ao controle do poder tecnológico. A
resposta de Heidegger a este desafio pode nos ajudar a pensar os
desafios sociais que confrontamos hoje e que, em contexto de
pandemia e isolamento social, se tornam mais evidentes.
Uma das semelhanças entre o nosso tempo e o momento em
que Heidegger escreveu, consiste no modo como a nossa percepção
do tempo e do espaço tem mudado. Aparentemente, e em um cenário
onde tudo está à distância de um clique e de uma conexão de internet,
o tempo e o espaço parecem ter substanciado a distância que nos
separa uns dos outros, mas é esse efetivamente o caso? Pensar a
4
Em última análise, isto pode nos permitir estabelecer uma ponte entre a crítica da
tecnologia e a crítica do capitalismo, na medida em que os seres humanos são meros
meios no processo de produção e por isso, substituíveis.
19
Perspectivas
questão do tempo e do espaço é, de alguma forma, pensar acerca das
condições de possibilidade da (nossa) experiência (no mundo), tal
como Kant formulou na Crítica da Razão Pura (1781). Em vista disso,
como nos percebemos a nós mesmos em um mundo onde tudo parece
ter sido reduzido a simples meios de produção, de consumo e de
prazer instantâneo? Como definimos a técnica ou a tecnologia? Como
meio para um fim? Que fim?
Heidegger evidencia que embora a tecnologia tenha uma
dimensão instrumental, a sua essência não é tecnológica, logo, a
tecnologia não pode ser reduzida a mero meio, uma vez que, a
tecnologia é o espaço, o evento, é onde as coisas e fenômenos
aparecem para nós e para os outros. É precisamente este evento de
aparecer, de tornar presente, de afirmar a realidade de algo, que deve
ser objeto da nossa atenção. O acontecimento da aparência é um
evento, isto é, um ato de revelação que, tal como o entendimento
grego da palavra aletheia se dá de um modo que exige existência e
interpretação, ou seja, a experiência de ser no mundo e a capacidade
de decifrar através da linguagem (logos)5. Ao colocar o problema nestes
termos, Heidegger desloca a atenção para nós mesmos enquanto seres
que estabelecem determinadas relações com a tecnologia, consigo
mesmo e com outros através da tecnologia. Embora Heidegger não
fale nestes termos, estamos convencidos de que, a exemplo de
Sócrates, que nos convocou ao retorno reflexivo diante de nossa
existência, Heidegger faz o mesmo: ele provoca a nossa compreensão
acerca de nós mesmos, conduzindo-nos a pensar e talvez responder:
5
No texto Que é isto, a Filosofia?, Heidegger esclarece a importância do logos não só
como linguagem ou razão, mas como diálogo, como algo que supõe a publicidade
e o outro. É exatamente esta relação que será explorada por Arendt na sua
concepção de política: a relação entre ocasionar, dar início (natalidade,
imprevisibilidade) aparecer, tornar-se presença e a própria relação entre verdade e
opinião.
20
“Empoderamento Digital”?...
quem somos nós? Como nos constituímos enquanto sujeitos? Como
nos relacionamos interpessoalmente e pessoalmente?
Esses questionamentos se tornam relevantes ao refletir sobre o
primeiro tópico desenvolvido no presente texto, o qual aborda a
relação entre as ciências naturais e a tecnologia. Pode-se dizer que as
ciências naturais se consolidaram porque o horizonte tecnológico já
estava pré-determinado, isto é, primeiro precisamos pensar em termos
tecnológicos (movidos pelo impulso e compulsão de ordenar as coisas)
e depois olhamos para a natureza como aquilo que deve ser ordenado.
Da mesma forma, o tipo de relações que estabelecemos hoje é prédeterminado por este horizonte tecnológico que, reflete sobre nós a
aparente necessidade de viver de determinados modos, como se
fossemos meros meios, fontes humanas substituíveis entre outros
“objetos” numa realidade fluída6. Porém, e aqui reside a genialidade
de Heidegger, através de um compromisso primário e primordial com
a linguagem entendida como revelação7, o que aparece, aparece como
algo que suporta algo mais essencial.
Retornando à linguagem e aos seus significados etimológicos,
Heidegger explora as camadas de sentidos entre o Grego e o Alemão
e nesse sentido, aquilo que aparece dá início a algo8. Um trazer para a
frente, como a poiesis grega 9 . O evento torna presente e ao fazê-lo
assistimos a um movimento simultâneo, quase de espelhamento, de
velamento e desvelamento, de re-velação no sentido de das Entbergen
em alemão, aletheia em grego e veritas em latim. Ao levantar a questão
6
Sobre a realidade fluída, com objetivo de complementar a análise heideggeriana,
sugerimos a leitura da obra Amor Líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos, de
Zygmunt Bauman (2004).
7
Ver A Caminho da Linguagem, de Heidegger (2003).
8
Hypokeisthai - presença de alguma coisa que se apresenta. Trazer algo a aparência.
an-wesen.
9
Heidegger diz que physis é a poiesis no mais alto sentido.
21
Perspectivas
da revelação, Heidegger nos conduz à questão da tecnologia e fica
claro que para o autor é impossível reduzir a tecnologia a uma questão
de instrumentalidade. Nas palavras heideggerianas “Technology is
therefore no mere means. Technology is a way of revealing. If we give heed to
this, then another whole real, for the essence of technology will open itself up
to us. It is the realm of revealing, i.e., of truth” (HEIDEGGER, 1977,
p.12). Isto significa que o fim da tecnologia não se esgota no seu uso
instrumental; pelo contrário, ao conceber a tecnologia como domínio
onde a revelação da verdade se dá, Heidegger mostra que ao colocar a
questão da tecnologia somos obrigados a colocar a questão acerca de
nós mesmos, enquanto sujeitos para quem a tecnologia se apresenta
como domínio (de aparência) e como problema, em última análise,
ontológico.
A tecnologia moderna, embora também seja revelação10 não o
é em sentido de poiesis; em vez disso, “The revealing that rules in modern
technology is a challenging, which puts to nature the unreasonable demand
that it supply energy that can be extracted and stored as such”
(HEIDEGGER,1977, p. 14). A revelação desafia o modo como a
relação entre seres humanos e natureza é concebida e projetada.
Embora Heidegger esteja pensando na tecnologia moderna enquanto
desafio dos limites da natureza, pensamos que este raciocínio pode ser
estendido de modo a abarcar desafios contemporâneos, em especial
aqueles que dizem respeito à nossa própria natureza ou condição
humana, isto é, aos modos pelos quais nos revemos na definição de
humano e nos seus desdobramentos éticos e políticos. Heidegger
(1977, p.16) afirma:
10
Se techne é um trazer para a frente, poiesis, também está desde Platão conectada a
episteme. A tecnologia é um modo de revelar “technology comes to presence in the realm
where revealing and unconcealment take place, where aletheia, truth, happens”
(HEIDEGGER, 1977, p. 13).
22
“Empoderamento Digital”?...
[…] unlocking, transforming, storing, distributing, and switching about are
ways of revealing. But the revealing never simply comes to an end. Neither
does it run off into the indeterminate. The revealing reveals to itself its own
manifoldly interlocking paths, through regulating their course. This
regulating itself is, for its part, everywhere secured. Regulating and securing
even become the chief characteristics of the challenging revealing.
A revelação é um desafio para nós, seres humanos, na medida
em que embora não controlemos o processo de revelação ou o
processo de desvelamento, estamos no processo de revelação e por isso,
somos convidados a confrontar esses eventos, esse desafio de estar
perante si próprio e definir-se como ser no mundo, na natureza e
assim, impor-lhe ordem11:
Enframing means the gathering together of that setting-upon which sets upon
man, i.e., challenges him forth, to reveal the real, in the mode of ordering,
as standing-reserve. Enframing means that way of revealing which holds
sway in the essence of modern technology and which is itself nothing
technological (HEIDEGGER, 1977, p.20).
A armação (denominada a essência da técnica) não é a
tecnologia, mas sim o modo através do qual o real se revela.
Poderíamos fazer uma comparação entre o conceito heideggeriano de
“armação" e o conceito de Deleuze e Guattari (1994) de "plano de
imanência”, já que ambos podem ser compreendidos como
fornecendo as condições de possibilidade de ser, de aparecer
enquanto ser, de revelar o ser enquanto existência; e, a partir de uma
11
“Man indeed conceive, fashion, and carry through this or that in one way or another. But
man does not have control over unconcealment itself, in which at any given time the real
show itself or withdraws. The fact that the real has been showing itself in the light of Ideas
ever since the time of Plato, Plato did not bring about. The thinker only responded to what
address itself to him” (HEIDEGGER, 1977, p.18).
23
Perspectivas
perspectiva filosófica, como a atividade de criar conceitos12. Sob este
prisma, é possível afirmar que os atos tecnológicos, as escolhas e as
invenções, não acontecem no vazio, mas ao contrário, refletem uma
atividade humana e um horizonte mais amplo no qual podem
efetivamente emergir e se destacar. O problema para Heidegger é que,
dado que a tecnologia substituiu progressivamente as conexões
familiares entre partes do todo e o próprio todo enquanto sistema no
qual os seres humanos se tornam completamente substituíveis, a
tecnologia aparece como se tivesse um poder ilimitado e incontrolável,
afetando tudo: natureza, humanos e até deus.
12
“Enframing is the gathering together that belongs to that setting-upon which sets upon man
and puts him in position to reveal the real, in the mode or ordering, as standing-reserve. As
the one who is challenged forth in this way, man stands within the essential realm of
Enframing” (Heidegger, 1977, p.24). Se tomarmos em consideração a conceituação
de “plano de imanência” de Deleuze e Guattari (1994, p. 37-38, grifo nosso)
veremos a conexão entre os dois conceitos, os autores dizem: “Movement of the
infinite does not refer to spatiotemporal coordinates that define the successive positions of a
moving object and the fixed reference points in relation to which these positions vary. ‘To
orientate oneself in thought’ implies neither objective reference point nor moving object that
experiences itself as a subject and that, as such, strives for or needs the infinite. Movement
takes in everything, and there is no place for a subject and an object that can only be concepts.
It is the horizon itself that is in movement: the relative horizon recedes when the subject
advances, but on the plane of immanence we are always and already on the absolute horizon.
Infinite movement is defined by a coming and going, because it does not advance toward a
destination without already turning back on itself, the needle also being the pole. If ‘turning
toward’ is the movement of thought toward truth, how could truth not also turn
toward thought? And how could truth itself not turn away from thought when
thought turns away from it? However, this is not a fusion but a reversibility, an
immediate, perpetual, instantaneous exchange-a lightning Hash. Infinite movement is double,
and there is only a fold from one to the other. It is in this sense that thinking and being are
said to be one and the same. Or rather, movement is not the image of thought without being
also the substance of being”. Tal como a filosofia começa com a criação de conceitos e
o plano de imanência é o horizonte pré-filosófico, também a armação é o horizonte
pré-tecnológico onde a tecnologia emerge e aparece na sua conexão com os
humanos, com a natureza e com a verdade.
24
“Empoderamento Digital”?...
O desafio de revelar e projetar ordem, está diretamente
associada com a essência da liberdade. Para Heidegger (1977, p.25)
“the essence of freedom is originally not connected with the will or even with
the causality of human willing". A compreensão heideggeriana de
liberdade é radicalmente distinta da forma como geralmente
concebemos liberdade na história da filosofia, no sentido de
relacionar a liberdade com a vontade humana. Em Heidegger, a
liberdade torna-se o horizonte, a abertura para aquilo que se revela. A
liberdade permite o des-velamento, a re-velação, a ex-periência
entendida enquanto ex-ternalização da verdade. Assim, somos
conduzidos a constatar que existe uma relação necessária entre
verdade e liberdade.
Nessa acepção, a essência da tecnologia moderna é este ato de
revelar, no entanto, isto não deve ser interpretado de modo fatalista;
pelo contrário, a essência da tecnologia moderna revela a natureza de
seres humanos que constantemente testam os seus próprios limites, o
que representa por si só um perigo. O perigo reside no fato de que,
embora este impulso seja característico em nós e nos constitua
enquanto seres do e no mundo, nem sempre conseguimos interpretarnos, nem às tecnologias que são nossa invenção. Deste modo, para
Heidegger, o desafio diante da tecnologia tem a ver com a capacidade,
ou incapacidade, de experimentar uma verdade primordial e de
confrontar a questão eterna: quem somos nós e quem estamos
dispostos a nos tornar.
Como interpretar este olhar heideggeriano quando
confrontados com os avanços tecnológicos? Pode-se dizer que o perigo
não reside no desenvolvimento da inteligência artificial, no
desenvolvimento dos algoritmos que mapeiam os nossos movimentos
na internet e que orientam nossas condutas sem que nos
25
Perspectivas
apercebamos, nem nos modos como incorporamos CRISPR 13 de
forma a ajustar, corrigir ou substituir o genoma humano, o perigo
reside no fato de que possamos identificar erroneamente o que está
realmente em causa. Dito por outras palavras, não se contesta o
progresso tecnológico em si, mas antes quem somos enquanto seres
humanos e quem desejamos nos tornar. A tecnologia nos abre esse
horizonte e nos projeta em um cenário radicalmente novo, visto ser
possível imaginar que podemos tornar-nos algo diferente (do que
somos), num curto espaço de tempo; além disso, a tecnologia revelanos a nós mesmos e obriga-nos a levantar a questão acerca do que não
somos: vê-se o orgânico diante do mecânico, o livre racional diante do
técnico e não-racional, o afetivo diante do programado e isto tudo ora
nos fascina ora nos desconcerta, exigindo a necessidade de reconhecer
que precisamos estabelecer limites para as nossas ações. Esta
necessidade não é física, mas é uma necessidade ética fundada na
compreensão metafísica de quem somos enquanto seres e quão
ligados estamos com a experiência do Ser, da Liberdade e da Verdade.
Nesse desafio ético, a linguagem assume um papel fundamental, já que
é apenas através da linguagem que conseguimos visualizar, estabelecer
e projetar limites éticos, sustentados por discursos racionais. A
linguagem é para Heidegger, a dimensão primordial na qual os seres
humanos podem sentir e ser. Citando Hölderin, Heidegger (1977,
p.28) afirma: “Where danger is, grows the Saving Power also”.
O reconhecimento do perigo trazido pela tecnologia
proporciona um deslocamento no modo como nos relacionamentos
conosco enquanto sujeitos éticos, com os outros, com a vida e com o
próprio perigo tecnológico. É o perigo da “ontificação”, de tornarmonos predadores uns dos outros, mediados pelos meios tecnológicos;
13
Ver CRISPR: a new principle of genome engineering linked to conceptual shifts in
evolutionary biology, de Koonin (2019).
26
“Empoderamento Digital”?...
incorremos assim em uma acepção de “empoderamento digital” que
se define enquanto condição de subserviência diante da tecnologia,
fato caracterizado na terminologia kantiana como heteronomia da
vontade, isto é, incapacidade de servir-se das próprias faculdades
humanas para refrear o que nos prejudica; a tomada de consciência
de que existe um perigo essencial sinaliza para a libertação, isto revela,
ao mesmo tempo, que o inimigo mais robusto e perigoso não está na
realidade externa, mas é invisível e está em nós e entre nós. Se captarmos
esta revelação de que estamos em perigo, talvez consigamos
reconhecer o “poder salvador” da tecnologia; poderemos redirecionar
a nossa essência, entendida não como algo imutável ou constante mas
sim pensada a partir da recuperação do sentido grego de poiesis - de
trazer para a frente, de aparecer, de tornar presente, de tornar-se
presença. Assegura Heidegger (1977, p.32): “that we ponder this arising
and that, recollecting, we watch over it. How can this happen? above all
through our catching sight of what comes to presence in technology, instead of
merely starting at the technological”. Talvez esta seja a nossa tarefa hoje:
compreender o que a tecnologia torna possível, fazendo-o presente,
sem por isso ser capturado pelo seu aspecto ou aparato tecnológico.
Como Heidegger pode nos ajudar a compreender a condição
presente do homem?
Busquemos auxílio na reflexão antropológica de Immanuel
Kant, escoltada pela contribuição de alguns pensadores acerca das
consequências prejudiciais e os aspectos relevantes trazidos pela
tecnologia na atualidade.
27
Perspectivas
1.4 O ETHOS, A TÉCNICA E O LUGAR DO REENCONTRO
HUMANO
Como estão as relações humanas mediadas através dos meios
tecnológicos durante esta situação da pandemia da COVID-19? Como
ficaram as conexões entre aqueles que usufruem da alta tecnologia e
os desprovidos do acesso a realidade virtual, seja devido à deficiência
de condições econômicas, a posse de equipamentos obsoletos e até
mesmo ao “analfabetismo digital”?
Como e com que qualidade percorremos diariamente as
infovias que compõem a rede mundial de computadores? Como se
experimenta a sensação de estar em posse de recursos tecnológicos tão
potentes no alcance e na abrangência, mesmo sabendo que há tantos
desprovidos de tais meios tecnológicos? O que há em nossa natureza
que impulsione o poder de influenciar a muitos? Por que temos sede
de controle?
O desejo de poder impulsionado pelo conhecimento que se
tem dos equipamentos, dispositivos e sistemas de informação na
atualidade oportuniza a manifestação das paixões humanas de
civilização, assim denominadas pelo filósofo Immanuel Kant em sua
obra Antropologia de um ponto de vista pragmático (1798).Segundo Kant,
tais paixões são adquiridas através da convivência com os nossos
semelhantes, onde prevalecem relações de competição em detrimento
da cooperação social; quando isto ocorre há uma vivência desviante
do exercício pleno da liberdade, ocorrendo uma situação de
instrumentalização do outro, isto é, quando o sujeito se move para
satisfazer interesses pessoais guiados pela racionalidade privada, sendo
esta dirigida pelos imperativos hipotéticos, ou seja, pelos ditames
racionais, onde nos colocamos numa posição técnica (visando fins
previamente determinados) ou pragmática (visando o bem estar
28
“Empoderamento Digital”?...
pessoal) de escolha dos meios adequados em vista dos fins a que se
destina o nosso querer.
Quais seriam estas paixões de civilização? E como ocorre o
fluxo de influência destas sobre a nossa vontade?
De acordo com Kant, as paixões de segundo gênero, assim
denominadas devido a sua proveniência nas condições culturais e civis
em que estamos inseridos, são “a ambição, desejo de poder e cobiça,
que não estão ligadas à impetuosidade de uma afecção, mas à
persistência de uma máxima dirigida a certos fins” (KANT, 2006, §81,
p.165). Essas paixões se encontram unidas à razão e geralmente
seguem um curso de meios em vista de fins, isso significa dizer que,
quando os fins são exclusivamente particulares e privados da ordem
pública, os bens públicos de um modo geral, deixam de ser prioridade.
Nesse seguimento, os objetos técnicos e a acessibilidade virtual
atendem as necessidades de modo eficiente e personalizado, fator esse
que pode reforçar a configuração de subjetividades narcisistas, por um
lado, ou impulsionar o modismo de estilos, por outro. Deste modo o
que se vê atualmente é uma crescente preocupação em priorizar a
realidade estética14, em se portar no parecer e através da imagem e não
da ética, onde se assume a escolha de modo responsável e necessário15.
Alguns autores têm alertado nos seus escritos com relação à
condição humana e sua relação negativa com o contexto tecnológico,
dentre esses autores se destaca Guy Debord, que em 1967 publicou A
Sociedade do Espectáculo, denunciando o novo modelo de vida o
hegemônico em que o espectáculo se torna ideologia; Jean
14
Nossa afirmação tem respaldo argumentativo nas colocações de Gilles Lipovetsky
presentes na obra A sociedade pós-moralista: o crepúsculo do dever e a ética indolor dos
novos tempos democráticos (1992).
15
No sentido do reconhecimento da lei moral apresentada a nós como imperativo
categórico kantiano, presente na obra Fundamentação da metafísica dos costumes
(1785).
29
Perspectivas
Baudrillard, que publica A Sociedade de Consumo (1970), ou Simulacros
ou Simulação (1981), obra na qual o autor questiona a própria relação
com o real, não apenas porque tudo se resume à lógica do consumo
desenfreado, mas também porque pouco a pouco os seres humanos
perdem o vínculo com o real e são absorvidos por uma outra dimensão
não real.
Como podemos entender a relação entre a influência das
paixões de civilização, provenientes da combinação entre a nossa
constituição antropológica natural (dotada de propensões inclinadas
ao interesse de autoconservar-se egoisticamente) e os elementos sócioculturais, tais como as normas sociais, as leis positivas e as instituições
civis, associados ao impacto da virtualização em escala global?
Na Antropologia de um ponto de vista pragmático, especificamente
no parágrafo 80 Kant manifesta a sua preocupação com o barreira que
as paixões representam quanto ao exercício pleno da liberdade,
manifestada enquanto possibilidade de aperfeiçoamento: “a paixão é
um encantamento que excluí também o aperfeiçoamento” (KANT,
2006, p.163). Sob a influência das paixões a pessoa se torna cega
quanto a compreensão das consequências decorrentes de suas
escolhas, realizando um querer inclinado a satisfação do impulso e do
cálculo interesseiro; quando a pessoa se encontra sob a influência das
paixões, em especial o desejo de dominação e a ambição, ela se
encontra disposta a competir para conseguir o que deseja e age para
manter o que lhe pertence a qualquer custo. Quando esta mesma
pessoa se encontra nos ambientes virtuais em contato com os demais
‘internautas’ tende a projetar-se como alguém persuasivo e
manipulador, alimentando a imagem de estar sob o anonimato digital,
deste modo deseja controlar e não ser controlado, ofender e não ser
ofendido, influenciar sem ser descoberto, isto é visivelmente uma
ilusão.
30
“Empoderamento Digital”?...
A configuração passional presente em nossa constituição
antropológica tornaria o homem predisposto a entregar-se aos
destinos da técnica, de modo a não mais ser capaz de conceber o
perigo a que está exposto na atualidade, tornando-se não responsável.
Em outras palavras, além das paixões que, por si só, constituem um
obstáculo ao exercício da racionalidade crítica 16 e aceitando a
caracterização antropológica kantiana, reconhecemos a predisposição
humana a se deixar esmagar pelo espetáculo e simulacros, convidativos
ao cultivo de personalidades narcisistas, daí a dificuldade em
pronunciar algum juízo em relação às tecnologias e técnicas
incorporadas como modo de vida individual e coletivo.
Embora em contextos históricos diferentes, Immanuel Kant
no século XVIII e Martin Heidegger no século XX, é válido ressaltar a
preocupação de ambos em torno da responsabilidade humana 17 .
Como pensar a responsabilidade num contexto de hiper-realidade, de
virtualidade maciça, em que a tecnologia permeia e se torna condição
de possibilidade das relações humanas?
Somos condicionados a admitir que não há mais o que fazer
senão mergulharmos na perspectiva tecnológica correndo em direção
16
Visto impulsionarem a percepção e a mente para os objetos externos e realidades
exteriores ao sujeito, sendo tais realidades construções e sistemas programados para
funcionar tecnicamente segundo um destino artificial e não mais natural no que
se refere à ordem da physis grega, cuja constituição in natura manifesta uma ordem
auto regulada em ciclos integrativos nos ecossistemas. Conferir onde Kant afirma:
“Percebe-se facilmente que as paixões são altamente prejudiciais à liberdade”
(KANT, 2006, §80, p.163).
17
Hannah Arendt é um bom exemplo de pensadora contemporânea que, de forma
única e distinguível, articula as duas influências: a influência de Heidegger
traduzida no modo como propõe uma fenomenologia política, assim como no
modo como constrói e desenvolve os conceitos de ação (na sua relação com
ocasião/evento), mundo, política, compreensão e responsabilidade; e a influência
de Kant, traduzida no modo como desenvolve as condições de possibilidade do
juízo (político) a partir da leitura política da Crítica da Faculdade de Julgar.
31
Perspectivas
ao artificialismo instalado em processo, onde o instalado, o projetado,
enfim, o artificial é preferível em detrimento do natural, isto nos
distancia da concepção da physis (in natura) da natureza entendida
entre os gregos. Vejamos como Heidegger nos apresenta a natureza
desafiada pela técnica:
O campo é agora uma indústria de alimentação motorizada. O ar é
posto para o fornecimento de nitrogênio, o solo para o
fornecimento de minérios, o minério, por exemplo, para o
fornecimento de urânio, este para a produção de energia atômica,
que pode ser associada ao emprego pacífico ou à destruição
(HEIDEGGER, 1997, p.57).
O responsável por essas transformações naturais apontadas por
Heidegger é o próprio homem e se o propósito e a finalidade desses
processos não for a vida humana, de nada valem. Se no âmbito das
escolhas do ethos – entendido como espaço de realização humana, no
qual se manifesta a vontade que decide integrar-se ou desagregar-se
socialmente, o ‘humano’ não for a referência de maior valor, então
estamos fadados ao fracasso existencial. O mesmo vale nas instâncias
políticas, nas quais as decisões de alguns poucos representantes são
projetadas sobre grandes populações; se na tomada das decisões
públicas o povo e as instituições públicas não forem o referencial na
tomada de decisões, de nada vale o processo de mecanização dos
recursos naturais, ocorrendo assim uma espécie de predatismo18 em
relação à natureza.
Trata-se, portanto, de pronunciar juízo frente a realidade
tecnológica e técnica e ser capaz de determinar o que constitui um
bom uso da tecnologia e da técnica. Sabemos que é possível escolher
18
Sobre a compreensão do homem enquanto predador dos recursos naturais
sugerimos a leitura da obra O mal limpo: poluir para se apropriar?, do filósofo Michel
Seres (2008).
32
“Empoderamento Digital”?...
utilizar bem a tecnologia, empregando os meios disponíveis para o
bem da humanidade, isto é, orientar a técnica de acordo com uma
finalidade que supõe uma concepção prévia, ou postulado, da
natureza humana e do bem ou, na linguagem que remonta aos gregos,
a “boa vida”. Segundo o filósofo Pierre Levy, um grande entusiasta das
novas tecnologias da informação, vivemos em uma sociedade em rede,
na qual todos estão interligados virtualmente e o conhecimento é
construído coletiva e globalmente; toda vez que acessamos uma tela
virtual, interagindo com os nossos semelhantes conectados,
possibilitamos a rede mundial de conexão realizar um mecanismo
digital que nos permite um processo de auto ajuste constante das
condições de ensino – aprendizagem, isto ocorre em todas as
instâncias do saber humano, possibilitando uma visão colaborativa e
compartilhável dos conhecimentos produzidos por todos os
envolvidos no processo de acesso às informações. Nesse sentido, o
poder de decisão proveniente desse modelo colaborativo de saber
possibilita novos horizontes no que se refere à vivência dos valores
éticos.
Vejamos o que afirma Levy: “o ciberespaço manifesta
propriedades novas, que fazem dele um precioso instrumento de
coordenação não hierárquica, de sinergização rápida das inteligências,
de troca de conhecimentos, de navegação nos saberes e de autocriação
deliberada de coletivos inteligentes” (LEVY, 2011, p.117). As
“propriedades novas” relativas ao ciberespaço, isto é, aos ambientes
virtuais tais como sites, blogs, plataformas, redes sociais, etc. são a
interatividade, a publicidade das informações, a simultaneidade e a
universalidade de acesso aos dados e conteúdos disponíveis na rede
mundial de computadores; todas estas “propriedades” nivelam os
usuários conectados numa grande plataforma de colaboração coletiva,
deste modo a ordem hierárquica (ora ensinada pela tradição) que
delimitava bem os papéis de quem sabe e ensina e daquele que não
33
Perspectivas
sabe e deve aprender, é abalada e gradativamente substituída por uma
nova configuração cujo propósito é tornar o homem um ser
autodidata colaborativo, entendendo-se “autodidata” enquanto
aquele que desenvolve a capacidade de aprender por si só, o que não
significa tornar-se autosuficiente diante dos outros.
Sabemos que há o risco dos saberes permanecerem
concentrados em pequenos grupos privilegiados, seja devido as suas
condições econômicas, seja devido ao melhor preparo no que diz
respeito à formação intelectual, contudo, baseados no pensamento de
Levy, estamos diante da possibilidade de construção e acesso de uma
cultura digital, cujos elementos são coletivos e não mais individuais e
elitizados como queria a cultura burguesa19. Esta nova configuração
dos saberes presentes no ciberespaço e, por princípio, acessível a
todos, promete garantir uma equidade de condições, redefinindo-se
os papéis no que diz respeito ao exercício 20 da autoridade e da
responsabilidade de todos; embora ainda haja muitos que utilizam os
ambientes virtuais com propósito desviante e de modo
indiscriminado, vê-se o crescimento da vigilância coletiva devido ao
acesso a informações e conteúdos mais seguros, fato que predispõe a
construção de uma cultura de transparência e sinceridade; a
interatividade virtual permite a produção, o acesso e o
compartilhamento de conteúdos significativos de modo nunca visto
antes, isto é possível devido a oportunidade de acesso à condições
tecnológicas semelhantes numa cultura digital.
19
Sugerimos ao leitor ver o que nos diz Levy sobre o “mundo da cultura” construído
sob os moldes da burguesia em O que é o virtual? (2011, p. 120).
20
Quando nos referimos ao “exercício da autoridade e da responsabilidade”
queremos comparar o novo modelo interativo, acessível e público com a perspectiva
hierárquica e ordenada segundo os graus de concentração de conhecimento ou
vivência histórica herdados da tradição ocidental.
34
“Empoderamento Digital”?...
Como estudioso da tecnologia, Pierre Levy reconhece os
desafios globais postos diante de todos, estando ele ciente das
condições precárias dos equipamentos utilizados em muitos países,
sobretudo nos países onde a vida econômica é baseada em atividades
agropecuárias, neste sentido vê-se também a necessidade da inclusão
digital, fator que gera condições de desigualdade social em nível
global; vê-se também a produção e disseminação de conteúdos
supérfluos no que diz respeito à edificação da coletividade, sendo
necessária à seleção de conteúdos virtuais, pertinentes conforme a
atuação do sujeito e a sua capacidade de discernimento tecnológico
para com os conteúdos digitais oportunos ao desenvolvimento dos
aspectos humanos mais nobres.
Vejamos o que Pierre Levy, enuncia acerca dos impactos da
virtualização:
Graças aos produtos da atividade econômica e científica, e
apoiando-se nos meios do ciberespaço, as relações de predação,
de apropriação e de poder ganham novo impulso, numa escala
ainda maior. De todo o reino animal, é o homem que pratica
em mais alto grau o imperialismo territorial, a caça impiedosa
e a implacável dominação. Mas é também no homem que esses
tipos de relacionamento são momentaneamente suspensos
graças à relação com o objeto. Certamente a tecnociência, o
dinheiro e o ciberespaço fazem do homem um caçador, um
proprietário, um dominador mais aterrorizante que nunca.
Mas os grandes objetos contemporâneos só lhe conferem esses
poderes forçando-o à submeter-se à experiência propriamente
humana da renúncia à presa, da deserção do poder e do
abandono da propriedade. A experiência da virtualização
(LEVY, 2011, p.130).
35
Perspectivas
Como notamos na citação, o pensador da tecnologia
reconhece os perigos do emprego desviante que o homem faz de sua
liberdade nos ambientes virtuais, se expondo ao risco do domínio do
homem pelo homem, contudo, mesmo diante dos riscos e desafios
frente ao virtual, o homem não vive em uma ilha visto que, todos estão
interligados virtualmente, e por isso a experiência não é apenas
subjetiva, mas essencialmente coletiva21. Nessa perspectiva, segundo
Levy, o fenômeno da virtualização permite que a responsabilidade se
torne coletiva, de modo que todos cuidem de todos, seja nas condições
artificializadas do ciberespaço, seja nas condições empíricas em que
ocorrem os relacionamentos humanos e os contatos com os demais
seres e objetos da realidade atual. O fenômeno da virtualização nos faz
pensar uma questão central à filosofia, tal como exposta pelos gregos
e pela leitura foucaultiana das diferentes escolas (estoicismo, cinismo,
epicurismo), além do próprio Sócrates, a saber, a questão do cuidado
de si 22 . A pandemia trazida pela COVID-19 coloca a questão do
cuidado no centro do ethos e da polis.
1.5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao se entregar de modo não reflexivo as constantes exigências
da tecnologia, o homem corre o risco de perder a sua capacidade de
identificação com os semelhantes, sendo capaz de os considerar
obstáculos frente ao seu agir eficiente e efetivo, deste modo desvia-se
21
Esse exercício de poder escapa a qualquer tipo de controle, o que significa que a
internet se torna o espaço de um outro tipo de experiência de dominação,
absolutamente transnacional, sem qualquer tipo de instrumentos de fiscalização,
controle ou até percepção.
22
Para leitura e interpretação de Foucault, sobre o cuidado de si e cuidado dos
outros e suas implicações éticas e políticas ver A Hermenêutica do Sujeito e A Coragem
da Verdade.
36
“Empoderamento Digital”?...
da possibilidade de tornar-se melhor e humanamente mais
aperfeiçoado. Segundo Kant em sua obra Ideia de uma História universal
do ponto de vista cosmopolita (1784), a vivência plena da liberdade é
possível na espécie humana 23 devido a nossa capacidade de
perfectibilidade, ou seja, ao aperfeiçoamento resultante de um
processo histórico, quando somos capazes de, fazendo uso prático da
razão, conseguirmos ultrapassar a nossa constituição natural (onde
prevalecem os elementos instintivos, em especial as paixões), não
permanecendo apegados aos aspectos socioculturais, sobretudo
aqueles onde reina a instrumentalidade técnica (governada pelo
estabelecimento de meios em vista de fins) e pragmática (onde
prevalece o interesse do bem estar e da satisfação pessoal), para atingir
a dimensão ética, fundada no respeito e na virtude moral cujo
propósito é o bem da humanidade. Aqui contextualizamos este bem
quando evidenciamos a possibilidade do bom uso da tecnologia, onde
o humano ocupa o lugar de referência em detrimento do mecânico e
do artificial.
Ainda de acordo com o pensamento kantiano, a possibilidade
do aperfeiçoamento é desenvolvida de modo mais completo na
espécie humana e não no indivíduo, e isso pode ser constatado ao
olharmos para a história da humanidade, na qual em tempos mais
remotos prevaleciam os aspectos instintivos, sendo os homens
guerreiros e com sede de poder e vingança voltada a aniquilação dos
inimigos (cf. KANT, 1992, p.39); posteriormente com o
desenvolvimento da filosofia, da ciência e da cultura em geral, a
humanidade chegar ao estágio da civilidade, cuja culminância vimos
chegar a questão da técnica e da tecnologia, com suas implicações no
ethos e na política.
23
Ver KANT, 1999, p.11.
37
Perspectivas
Heidegger, por sua vez, reforça a relação intrínseca entre
liberdade e verdade na experiência que temos enquanto seres do e no
mundo, diante e através da tecnologia. A questão da técnica força a
confrontar a questão eterna de quem somos nós, e sobretudo, o tipo
de seres humanos em quem nos queremos tornar de acordo com o
desvelamento e/ou re-velação da verdade. A leitura de Heidegger
oferece uma perspectiva enriquecedora através do qual as diversas
tecnologias podem ser avaliadas.
Notamos que o filósofo Pierre Levy também aborda a
dimensão antropológica quando fala do homem dotado do instinto
de territorialidade, do poder e da dominação que, pode ser
impulsionada através dos instrumentos tecnológicos. Corroborando
com essa ideia lembramos de a reflexão heideggeriana sobre o perigo
do homem tornar-se tecnificado, e consequentemente deixar de
valorizar o que é propriamente humano em nome de um suposto
progresso do qual não tem dimensão dos resultados a longo prazo.
Contudo, para Levy, o fenômeno da virtualização nos permite
adentrar na cultura digital, na qual todos vivemos na sociedade em
rede, sendo capazes de cuidar e responder por nossas escolhas de
modo mais transparente e visível aos outros. Deste modo, há à
possibilidade de conexão entre o posicionamento filosófico de
Heidegger, Kant e Levy, cujos propósitos são alertar, prevenir e
possibilitar a nossa escolha consciente diante dos desafios que se nos
apresentam.
Em vista disso, a combinação entre os elementos presentes na
natureza humana e os artifícios culturais provenientes da nossa
capacidade inventiva, os quais são destinados segundo propósitos
instrumentais vigentes no atual paradigma, um paradigma permeado
38
“Empoderamento Digital”?...
por uma cultura multimídia 24 convocam-nos a um retorno
responsável diante dos recursos naturais - os quais dão suporte
enquanto matéria prima aos artefatos fabricados e aos demais sistemas
criados pelo homem e diante de nós mesmos. Conforme Kant, só há
um verdadeiro sentido de progresso humano e este progresso ocorre
quando somos capazes de ultrapassar o puro interesse voltado aos
objetos do nosso agrado, reconhecendo o que é realmente necessário
em nossas escolhas.
O entusiasmo de Levy com o desenvolvimento das novas
tecnologias e com o novo modo de interação humana, realizado
virtualmente numa sociedade em rede, nos permite imaginar a
concretização da expectativa de progresso “profetizada” por Immanuel
Kant em sua obra Ideia de uma História universal do ponto de vista
cosmopolita (1784) onde a espécie humana atingiria o estágio de
desenvolvimento mais avançado no que se refere ao cumprimento dos
fins antropológicos necessários – o estágio da moralidade, ou seja, a
condição histórica onde se manifesta a consideração valorativa de cada
sujeito racional enquanto fim em si mesmo, havendo o respeito e a
responsabilidade recíproca. Neste sentido o grande desafio é definir
os limites e condições de possibilidade do “empoderamento digital”
presente nas relações de convivência restritas (ethos) e nas interações
sociais mais abrangentes, as quais constituem a ordem política, para
que este não se reduza a um fenômeno que promove a inversão das
prioridades, tornando o homem subserviente das suas invenções
tecnológicas.
24
Sugerimos a leitura do artigo Ética da informação: o problema sob a ótica da ciência
da informação de Wolf Rauch (2001).
39
Perspectivas
REFERÊNCIAS
BACON, Francis. Novum Organum ou Verdadeiras Indicações acerca da
Interpretação da Natureza. 3. ed. Trad. Aluysio Reis de Andrade. São
Paulo: Abril Cultural, 1984.
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43
Perspectivas
44
ELEMENTOS INTRODUTÓRIOS À
METAFÍSICA DE ARISTÓTELES
Igor de Matos Ramos*
Resumo: A Metafísica de Aristóteles é um livro denso e de difícil
compreensão. Embora estruturado por um encadeamento lógico primoroso,
o texto em si, bem como suas traduções, podem causar confusões em leitores
desatentos. Por ser uma obra essencial no cenário filosófico, em geral, é
apresentada aos estudantes de filosofia no início de suas vidas acadêmicas.
Pareceu-me importante, portanto, desenvolver um trabalho de introdução
aos seus conceitos mais elementares, como ente, ser, substância, ato e
potência. Assim, o objetivo desse trabalho é desenvolver, por meio de uma
análise à Metafísica de Aristóteles e a Metafísica antiga e medieval de Rosset e
Frangiotti, elencar e elucidar os elementos introdutórios da Filosofia
Primeira. Destacar-se-á ainda, o motivo pelo qual Aristóteles denomina essa
ciência como Filosofia Primeira, e, por conseguinte, relacionarei, se possível,
a significação desse termo com a teleologia aristotélica.
Palavras-chave: Metafísica de Aristóteles. Filosofia Primeira. Teleologia
Aristotélica.
Abstract: Aristotle's Metaphysics is a dense and difficult to understand
book. Although structured by an exquisite logical chain, the text itself, as
well as its translations, can cause confusion for inattentive readers. Because
*
Graduando em Filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná.
E-mail: igordematos.academico@outlook.com.
Perspectivas
it is an essential work in the philosophical scene, in general, it is presented
to philosophy students at the beginning of their academic lives. It seemed
important, therefore, to develop a work of introduction to its most
elementary concepts, such as being, being, substance, act and potency. Thus,
the objective of this work is to develop, through an analysis of Aristotle's
Metafísica and Rosset and Frangiotti's Metafísica antiga e medieval, to list and
elucidate the introductory elements of First Philosophy. It will also be
highlighted the reason why Aristotle calls this science First Philosophy, and,
therefore, I will relate, if possible, the meaning of this term with Aristotelian
teleology.
Keywords: Aristotle's metaphysics. First Philosophy. Aristotelian Teleology
2.1 INTRODUÇÃO
Antes de mergulhar nas trincheiras do pensamento
aristotélico, é importante ter uma breve noção do que é metafísica.
Impermeada de conceitos complexos e termos intraduzíveis1. A obra
Metafísica carrega logo em seu título um significado importante, que
já nos instiga a buscar compreender do que se trata, o que é, e porque
é filosofia primeira.
Aristóteles (384 a 322 a.C.) jamais utilizou o termo metafísica,
que tem uma origem bem peculiar. A historiografia nos mostra que o
termo surge com o bibliotecário Andrônico de Rhodes (50 a.C.), que,
ao catalogar a biblioteca pessoal de Aristóteles, se deparou com uma
série de livros que não tinham título. Sem se preocupar em entender
sobre o que se tratavam, colocou-os ao lado dos livros dedicados à
1 Alguns termos em grego não encontram até hoje termos equivalentes em diversas
línguas, razão disso é o fato de carregarem significados complexos de uma língua
arcaica.
46
Elementos introdutórios à Metafísica de Aristóteles
física, e nomeou esse conjunto desconhecido como “metà tá physikà”.
Metafísica, portanto, significaria, ao pé da tradução, além, ou ao lado
da física. Embora não seja um termo criado para a definição que
carrega, o seu significado se encaixa no conteúdo abordado pelos
textos, pois esses tratam de coisas suprassensíveis, ou seja, que estão
para além das coisas sensíveis, ou físicas.
Diferentemente das ciências, como afirmam Rosset e
Frangiotti (2012, p.7), não é possível determinar uma cronologia ou
uma história da metafísica. Trata-se de uma área do conhecimento que
trabalha principalmente no campo das teorias e da investigação de
mistérios, ou problemas, que nem sempre estão ligados a objetos.
Nesse sentido, justifica-se a premissa, dos autores citados acima, de
que a metafísica não tem passado, visto que os mesmos problemas,
colocados por filósofos de outras épocas, ainda se mantêm vivos.
Portanto, não se pode afirmar que uma nova teoria torne a outra
obsoleta ou ultrapassada.
O homem, por possuir uma inquietude nata, não se basta com
a realidade dada, ou seja, não se limita a aceitar a realidade que lhe é
apresentada pelos sentidos. Sendo assim, sua racionalidade e
inquietude lhes levam a buscar o “fundamento constitutivo do real”.
Surge dessa imersão racional do homem na busca pelo princípio
primeiro das coisas, a pergunta pelo ser2. A questão do ser é, além do
princípio da investigação metafísica, o seu verdadeiro alicerce. Grosso
modo, o ser é o objeto do estudo metafísico, o que significa que, ao
abandonar a busca pelo ser, o filósofo também abandona a própria
metafísica.
Ao buscar o “princípio da natureza/cosmos” (archē da physis),
os primeiros filósofos iniciam uma deliberação metafísica. No
entanto, o ser se torna o objeto principal desta “investigação” a partir
2 Cf. ROSSET; FRANGIOTTI, 2012, p.8.
47
Perspectivas
de Parmênides. Segundo sugerem Rosset e Frangiotti (2012, p.8):
“Parmênides, ao indicar o ser como fundamento único, idêntico,
eterno e imutável da realidade, fez surgir a investigação metafísica”.
Essa se desenvolveu, com maior notoriedade, graças às contribuições
de Platão e Aristóteles, o que fez com que ambos norteassem os
estudos posteriores do ser, e da filosofia, uma vez que a metafísica foi
o objeto supremo de estudos da filosofia até a modernidade.
O próprio Aristóteles apresenta a sua “filosofia primeira” como
a ciência menos necessária, ou seja, do ponto de vista utilitarista, a
menos útil de todas. No entanto, ele salienta que nenhuma ciência é
melhor que a dita metafísica3. Ainda afirma o filósofo que a filosofia
é a mais primordial por se tratar de uma ciência que não tem utilidade
ou finalidade outra, se não nela mesma. Ora, como dizem Rosset e
Frangiotti (2012, p.9): “trata-se do testemunho de que ela não está
subordinada a nenhuma finalidade exterior, mas, antes, contém em si
a razão do seu próprio existir”.
Por não ser possível traçar uma linha cronológico histórica da
metafísica, outra crítica se faz a ela: por ser inatual, ou seja, estar fora
do seu tempo, visto, inclusive, que essa já é tratada como uma ciência
obsoleta, pelos adeptos da teoria do conhecimento. Porém, vale
salientar, que a pergunta pela existência jamais deixou de perturbar o
intelecto daqueles que buscam conhecer o suprassensível: a questão
do que é o “ser” permanece viva.
A metafísica é apresentada, outrossim, como uma ontologia,
ou seja, o estudo do ente enquanto ente. Do ponto de vista teológico,
a partir da compreensão do ente pelo ente o ser se mostra como fonte
originária. Transcendente. Deste modo, o logos nos é apresentado
como inteligibilidade, e a nossa busca pela inteligibilidade última é a
3 Aristóteles não usa o termo metafísica, pois esse termo só surge séculos depois
dele.
48
Elementos introdutórios à Metafísica de Aristóteles
responsável por transformar o homem em um ser pensante
autônomo. A metafísica é ainda caracterizada como ciência, mas
tendo como condição necessária para tal a afirmação do
transcendente, no ato da busca pelo conhecimento das coisas (entes),
e da razão4.
Outro ponto, abordado também por Rosset e Frangiotti (2012,
p. 10), é a relação entre a metafísica e a ontologia. A palavra ontologia,
grosso modo, quer dizer estudo do ser, de tal modo que possibilita
tratá-la como sinônimo de metafísica, o que é até natural para uma
parte dos filósofos posteriores a criação deste termo. Mas afinal, qual
dos dois termos seria mais adequado para tal definição? Para alguns,
de acordo com a etimologia de ontologia, essa seria mais adequada para
nomear o estudo da filosofia primeira, que se trata do estudo do ser.
Igualmente, não se pode negar o peso da tradição dentro da filosofia,
o que levou a maioria dos filósofos a repudiarem a substituição do
termo. Afinal, Aristóteles atribuiu também a sua filosofia primeira, a
busca pelas causas e princípios constitutivos do real.
2.2 FILOSOFIA PRIMEIRA
Na primeira frase do livro Alfa da Metafísica, Aristóteles já dá
indícios de uma das características principais de toda a sua filosofia, a
teleologia5. Ao afirmar que todos os homens propendem ao saber, ele
eleva o saber ao patamar de bem/fim em si mesmo. A teleologia não
4 Cf. ROSSET; FRANGIOTTI, 2012, p.11.
5 O termo teleologia deriva do grego télos (τέλος), que em português significa
propender/finalidade. É usado para se referir a filosofia aristotélica, justamente por
essa se tratar de um pensamento onde tudo tem uma finalidade última, que remete
sempre a um bem em si mesmo.
49
Perspectivas
é um elemento presente apenas na filosofia primeira de Aristóteles,
mas perpassa todas as suas obras: na obra “A política”, por exemplo,
o fim em si mesmo, para aonde todos os homens, por natureza, se
voltam, é a pólis.
Partindo da premissa de que existe uma realidade em si, e de
que é possível chegar ao conhecimento verdadeiro estudando-a
racionalmente, assenta-se a metafísica. Contudo, sabe-se que não é
este o termo utilizado por Aristóteles. Filosofia primeira, como ele a
denominava, trata-se da ciência que tem precedência em importância
sobre todas as outras ciências, pois estuda o ser, de forma universal. O
constitutivo de tudo o que é. A ciência que estuda toda e qualquer
forma dos entes, e mais que isso, estuda a substância universal
presente em todos eles, sendo assim, ela é, portanto, precedente sobre
as demais ciências, justificando a sua nomenclatura.
Para Aristóteles, a substância que não está sujeita ao
movimento, não é material e é divina, trata-se do primeiro motor
imóvel, que deu início a todo o movimento do universo6. A partir da
hipótese da existência de uma substância que independe da natureza,
deve haver também uma ciência que a estude: essa ciência é a filosofia
primeira.
A estima pelas sensações, segundo Aristóteles, é o que nos
direciona a sapiência, e entre as sensações, ele diz ser a visão a mais
estimada, o que é uma doutrina propriamente platônica: entre todas
as sensações, nós preferimos ver, pois a visão é a que mais nos
aproxima do conhecimento.
Ao passo em que conhecemos o mundo e suas diferenças
através das sensações, somos dotados de memória, o que nos
possibilita sentir e armazenar lembranças, não sendo necessário que
passemos novamente por determinadas situações, uma vez que, já
6 Cf. ROSSET; FRANGIOTTI, 2012, p.14.
50
Elementos introdutórios à Metafísica de Aristóteles
tendo vivenciado determinada sensação, a guardamos na memória. Da
memória que guardamos de tais sensações, obtemos o aprendizado,
que, por sua vez, é ilimitado e particular: somos capazes de, ao longo
da vida, acumular o aprendizado sobre inúmeras situações, de maneira
que jamais sobrecarregamos nossa capacidade de aprender; na medida
em que o homem aprende sobre situações particulares, e tem acesso a
várias recordações de um mesmo fato, surge diante7 dele a experiência.
A experiência nos faz capaz de conceber a técnica: essa é produto de
uma deliberação acerca daquela; sendo a experiência sempre ligada ao
particular, quando nos encontramos repletos de experiência, se faz
possível a determinação de uma noção universal daquilo que é
semelhante.8 O conjunto destes aspectos que levam ao saber estão, ou
devem estar sempre relacionados. Um não é possível de ser executado
em sua máxima perfeição sem os que o precedem. Na ocasião do agir,
a experiência e a técnica, segundo o próprio Aristóteles (2008, p.10),
não são tão diferentes, sendo ainda possível determinar que a
experiência é menos suscetível ao fracasso do que a técnica
desvinculada da experiência, e a razão disso é que a técnica é sempre
universal e a experiência é, assim como o agir, sempre associada ao
particular: o médico jamais cura os homens, mas cura Saulo, Gabriela,
Lucas, ou qualquer um que de outra forma seja chamado. É possível,
através da técnica, criar e entender o que levou todos a febre e
desenvolver um método para evitá-la, eu entender que remédio
funciona para todos, no entanto, ao tentar curá-los, a técnica,
desligada da experiência, não permite ao médico compreender as
particularidades dos organismos de cada um, ou que remédio
7 A experiência e o aprendizado não cessam, nem se esgotam; sempre há algo para
aprender e sempre há capacidade no intelecto para tal empreendimento.
8 Cf. ARISTÓTELES, 2008, p.9.
51
Perspectivas
funcionaria para Saulo, que é alérgico, ou, para Gabriela, que está
grávida.
É importante salientar, que, embora seja assim no agir, ao
considerar a sapiência e o conhecimento, a técnica está mais próxima
do que a experiência: os que possuem somente experiência conhecem
aquilo que fazem, no entanto, os que possuem a técnica conhecem
tanto o que, quanto o porquê de fazer aquilo. Ora, saber ensinar é
característica daqueles que tem o conhecimento, e os que tem técnica,
sabem ensinar melhor que os que tem apenas a experiência.
Aristóteles (2008, p. 11) acreditava que os primeiros a inventar
técnicas provavelmente foram chamados de sábios, não por criar algo
útil, mas por serem mais sábios e diferentes dos demais, e com o tempo
outros foram criando técnicas, e estes eram vistos como mais sábios
que aqueles, pois suas técnicas eram voltadas ao lazer. E quando todas
as técnicas assim já tinham sido criadas, surgem as ciências. E a
primeira a surgir é a matemática no Egito, porque lá os sacerdotes
tiveram ócio e lazer.
O mais sábio é, portanto, aquele que possui o conhecimento
das coisas universais, e conhece das coisas as quais o homem comum
não tem conhecimento. Associamos, então, a sabedoria, as ciências
que são mais exatas, sendo estas as primeiras: as ciências que precedem
as outras tem menos princípios e acréscimos que aquelas que as
sucedem; por isso determina-se que as ciências que podem mais
facilmente associar-se a sapiência são as ciências universais e primeiras
(causas).
52
Elementos introdutórios à Metafísica de Aristóteles
2.3 O ENTE
Há uma ciência que estuda o ente enquanto ente, mas não um
ente em particular, e sim o ente propriamente dito. Diferente das
demais ciências, que estudam entes particulares e suas especificidades,
a filosofia primeira estuda o ente por si mesmo, de forma universal;
visto que procuramos as causas e princípios primeiros, devemos
observar as realidades que são em si mesmas9.
A metafísica utiliza-se de objetos para chegar ao ser, esses
objetos são separados entre formal e material; o objeto material com
o qual a metafísica trabalha é o ente, mais precisamente, todos os
entes, ou seja, todas as coisas materiais que compõem o mundo; já o
objeto formal é o ser enquanto ser10. Mesmo que o objeto formal seja
o ser, aquele que o estuda não encontra o ser diretamente, mas pode
conhece-lo unicamente através do ente.
Justifica-se, então, afirmar que o ente é condição necessária
para se conhecer o ser, porém, não se pode pensar o ente sem que ele
tenha em si o ser. O ente possui ser, mas não é ser; o ser dá a
característica constitutiva de o ente ser o que é. Por exemplo, uma
garrafa de água pode ser descrita como sendo de plástico ou vidro, oca
por dentro, um receptáculo de água, mas só pode ser dita deste modo
porque é garrafa. Antes de se definir a garrafa ela deve ter forma de
garrafa.
O ente pode ser dito como: o que é; o que existe; o que é real.
E são três os tipos de entes: o ente atual é que existe e é real,
independente da consciência; o ente de razão refere-se aos conceitos
ou realidades criadas na nossa consciência pela racionalidade, mas não
deixam de serem reais e existirem, na nossa inteligibilidade, não
9 Cf ARISTÓTELES, 2005, p.131. [1003a2]
10 Cf. ROSSET; FRANGIOTTI, 2012, p.20.
53
Perspectivas
podendo se tornar ato; e o ente possível é aquele que está na razão,
mas pode se tornar ato, através da criação humana11. O ente ainda
pode ser de quatro modos: Concomitante ou acidente (symbébekos); o
ente enquanto dynamis e energueia (potência e ato); enquanto
verdadeiro e falso e como categorial.
2.4 ASPECTOS DA FILOSOFIA PRIMEIRA
Aristóteles afirma a filosofia primeira como sendo, das ciências
teóricas, a primordial, e denomina também como objeto de estudo da
teologia. O filósofo diz que os entes – existências que encontramos
corriqueiramente no cotidiano – são existências contingentes, o que,
dito de outro modo, significa que estas existências não são necessárias,
poderíamos (a totalidade dos entes) tanto existir quanto não existir.
Havendo existências não necessárias, e tendo essas se fundado
em outras, deve haver então uma existência autofundada, que não é
contingente e que é eterna e imóvel - pois o movimento é fundamento
do contingente – esta existência é Deus, e sua existência é tão certa
quanto às demais existências.
Aristóteles marca a ‘metafísica’ como ciência de caráter
universal, pois estuda o ser em todos os seus aspectos, e em todas as
coisas que, por lhes conferir o ser, são. Além do mais, a metafísica
busca também, além do sensível, o suprassensível, aquilo que está
além da matéria, portanto, o que dizemos divino. A metafísica é,
efetivamente, a ciência divina, portanto, tem mais autoridade que
quaisquer outras ciências.
11 Cf. ROSSET; FRANGIOTTI, 2012, p.21.
54
Elementos introdutórios à Metafísica de Aristóteles
4.1 Ousía ou Substância
Antes de analisar a tradução do termo grego ousía, tratarei do
esclarecimento deste termo. A tradição filosófica optou por traduzir
ousía como substância e utilizar-se do termo essência para se referir ao
termo grego tó tì en einai – que na tradução literal seria “aquilo que
era ser” – por isso utilizarei o termo substância para lidar com o
equivalente grego ousía.
A substância para Aristóteles refere-se a categoria fundamental
do ente, ou seja, o “o que é” do ente. Uma garrafa pode ser azul ou
branca, de vidro ou barro, grande ou pequena, ou conter quaisquer
outros predicados destes que pertencem a categorias efêmeras do ente.
Porém, o “ser receptáculo vedado” é substancial da garrafa: não se
pode ser garrafa se não for receptáculo vedado.
São categorias separáveis substanciais do ente aquelas sem as
quais o ente não pode ser o que é, como o exemplo acima da garrafa.
E são categorias efêmeras aquelas que são acidentais, ou seja, não
interferem no ser do ente: sendo estas qualidades, quantidades, tempo
e relação. A substância (ousía) pode ser dita, assim como o ente, de
quatro modos: to tí en einai (aquilo que era ser); khatolou (universal);
genos (gênero); e hypokeimenon (subjacente).
4.2 O ser
Saindo do ente, passando pela substância e chegando no ser,
tem-se uma linha aproximando cada um destes conceitos para facilitar
o entendimento. Inicia-se aqui o trabalho com termo “ser”.
Ser na metafísica é entendido como elemento principal do
ente, ou seja, aquilo que torna o ente o que ele é. Sem o ser o ente
nada seria, e, por conseguinte, não existiria. O ser não se trata de uma
realidade meramente física ou material, por isso é metafísico. O ente
seria então a manifestação da substância do ser. O ser possui três usos:
o predicativo, predicando sempre um sujeito, ou seja, o que se diz do
55
Perspectivas
sujeito; o uso existencial, ou o ser como existência do ente; e o
participativo, o ser como ato, entendido com aquilo que possui ser.12
O ser é, portanto, um ato universal, pois tudo é, e tudo é contido pelo
ser, o ser está, concomitantemente, em tudo. Embora ser e existir não
sejam sinônimos, existir é condição suficiente para ser, e, o ser, é
condição necessária para o existir:
O ser não é o mesmo que existir, ambos não são sinônimos. O ser é
o fundamento do ente e consequentemente, de sua existência.
Quando falamos que uma coisa existe, queremos enfatizar que está
efetivamente aí, que não é o não ser, o nada. O ser é propriedade
mais íntima das coisas, aquilo que faz as coisas existirem. Portanto,
a existência não é o ser, mas o resultado do simples fato de os entes
possuírem o ser (ROSSET; FRANGIOTTI, 2012, p. 24).
Diferentemente de Platão, Aristóteles acredita que o ser não
está separado do ente ou inacessível através dele, mas afirma que o ser
se encontra ao analisar as suas manifestações nos entes. Ao dizer que
o ser se diz de várias maneiras, Aristóteles quer elucidar que o ser se
apresenta, ou se manifesta, nos entes de diversas formas, ou seja, não
é algo imutável. Se a forma correta de interpretação do ser é através
da substância (ousía), então encontramos uma diversidade infinita de
suas manifestações, pois a substância é algo individual, de cada ente,
embora possa ser universal como característica de ser algo, como no
exemplo da garrafa: a substância de garrafa é universal, mas a
substância de uma determinada garrafa é individual.
Rosset e Frangiotti (2012, p. 64) dizem ser substância o termo
que se utiliza para designar um sujeito; e, o predicado do sujeito, ou
seja, o que se diz do sujeito, é o que podemos chamar de essência.
Portanto, sujeito é a substância e o predicado a essência. A essência
pode ser dividida em dois grupos: a essência propriamente dita, ou
12 Cf. ROSSET; FRANGIOTTI, 2012, p.23.
56
Elementos introdutórios à Metafísica de Aristóteles
seja, os predicados sem os quais o sujeito não pode ser o que é. (por
exemplo, o homem é um animal racional. Ora, sem a racionalidade,
então, o homem não pode ser homem): o outro grupo é chamado de
acidente, esse refere-se aos predicados que não interferem no ser
substancial do sujeito (o homem é um animal racional, ser gordo ou
magro, pardo ou branco, crespo ou de cabelo liso, não interfere no
‘ser homem’ do sujeito).
4.3 Ato e potência
A doutrina do ato e potência nos é apresentada por Luciano
Rosset e Roque Frangiotti, no texto Metafísica antiga e medieval, de
forma sutil. Num primeiro passo a percepção dos pré-socráticos sobre
a existência de uma substância que era igual em todos os corpos; para
uns era a água, o fogo, o ar, ou os três somados ainda a terra, para
outro o ilimitado (ápeiron). Parmênides considerava a mudança
impossível, o ser é, e não pode provir do não-ser pois esse não existe,
e nem pode provir do ser, pois ele já é13. Platão afirma a mudança
como reservada somente ao âmbito sensível, já que as formas são o
ser, que para ele são imutáveis.
Aristóteles tenta resolver este problema com a seguinte
doutrina: o ser é o que é, o que se apresenta, sendo deste modo o ‘ser
em ato’, em outras palavras, ‘o ser sendo’. Porém, o filósofo apresenta
uma noção não presente nos seus predecessores: o ser em potência; o
ser em potência é aquilo que pode vir a se tornar ato. A semente é,
potencialmente, uma árvore, nesse caso, ela se atualiza ao germinar e
virar árvore. A madeira bruta é flecha em potência, mas só é em ato
quando vira efetivamente uma flecha. Deste modo, o que é eterno e
invariável é o que está sempre atualizado, ou seja, o primeiro motor
imóvel, ou Deus, se assim for preferível chamar.
13 Cf. ROSSET; FRANGIOTTI, 2012, p. 66.
57
Perspectivas
Para melhor compreender a substância, analisando-a, é
possível distinguir no ente a forma e a matéria. Matéria (hylé), para
Aristóteles, trata-se daquilo que o ente é ou está feito. É o constituinte
da realidade sensível, e o substrato da forma. Forma seria a figura ou
imagem dos corpos, aquilo que faz com que a coisa seja o que é. Neste
sentido, a forma é a essência do ente14.
Para Rosset e Frangiotti (2012, p.74), o que preocupava
realmente os antigos era o fato de a realidade estar ameaçada pela
mudança o tempo todo. A instabilidade do real. O movimento que,
ao passar o ser para outro estado, o torna algo que ele não era.
Inimaginável para Parmênides, por exemplo. O movimento (kínesis) é
o trânsito do ser; a passagem de um modo do ser ao outro, o que
clarifica o ato e a potência de Aristóteles.
2.5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A questão que guia o pensamento de Aristóteles na filosofia
primeira é a substância e, consequentemente, tudo o que a envolve.
Ao longo do primeiro livro da metafísica de Aristóteles, encontramos
um sistema lógico complexo e bem formulado. Partindo das
sensações, o autor elenca, passo a passo, a forma como avançamos
rumo ao saber; na medida em que memorizamos as sensações,
aprendemos e ganhamos experiência, somos capazes de desenvolver
uma técnica e de ensiná-la; depois que as primeiras técnicas – que não
são voltadas a utilidade, mas ao lazer - foram inventadas, começam a
surgir as ciências, que não voltadas nem ao lazer nem a utilidade; nesse
ponto, Aristóteles inicia o trato com as ciências, e mais tarde,
determina que são as ciências teoréticas que precedem as demais, e
14 Cf. ROSSET; FRANGIOTTI. 2012, p.70.
58
Elementos introdutórios à Metafísica de Aristóteles
entre elas a teologia precede as outras e é a ideal para estudar a
substância.
Quando elenca a técnica a mais próxima da sapiência, ele o faz
por considerar que as coisas mais universais estão mais próximas da
sabedoria. Nesse aspecto, ele já está se preparando para falar da
substância desde o primeiro capítulo do livro alfa. Para finalizar o livro
alfa, o autor ainda nos traz alguns dos ditos filósofos pré-socráticos, e
disserta sobre eles, que, como é sabido, buscaram compreender, de
certo modo, a substância separada, mesmo que de um ponto de vista
material.
A substância é aquilo de mais íntimo e fundamental presente
no ente, e é separável, no sentido de que o ente, sem ela, não é o que
é. As especificidades da substância já foram tratadas acima, mas é
ainda necessário afirmar que ela tem caráter universal: aquilo que
todo cavalo tem em comum, que, sem isso, não possa ser chamado de
cavalo, isto é, uma característica universal que permite que os cavalos
sejam cavalos. Deste modo, analisando todo o sistema lógico de
Aristóteles, e a forma como ele elenca as precedências, fica claro que
a substância é justamente o objeto de estudo guia da filosofia primeira.
Todo o pensamento aristotélico segue uma mesma linha
racional que remete sempre a um fim em si mesmo. Ao longo de toda
a filosofia primeira ele analisa e elenca as causas e os princípios
primeiros, mas não deixa de direcionar suas reflexões a uma finalidade
última também: assim como na obra “A Política” a finalidade, ou o
bem em si, é a polis, na filosofia é a sabedoria. Ora, se a Filosofia
Primeira precede todas as demais ciências em importância e é,
portanto, suprema, é evidente que o fim em si mesmo que ela
apresenta seja também o bem maior entre as finalidades, ou seja, a
inteligência é, para Aristóteles, a finalidade mais divina e perfeita entre
todas.
59
Perspectivas
REFERÊNCIAS
ANGIONI, Lucas. Aristóteles, Metafísica: Livro VII. Campinas:
IFCH/UNICAMP, 2002.
ANGIONI, Lucas. Aristóteles, Metafísica: Livro I, II e III. Campinas:
IFCH/UNICAMP, 2008.
REALE, Giovanni. Metafísica de Aristóteles II. Trad. Marcelo Perine.
2. ed. São Paulo: Loyola, 2005.
ROSSET, Luciano; FRANGIOTTI, Roque. Metafísica antiga e medieval.
São Paulo: Paulus, 2012.
60
EPISTEMOLOGIA GENÉTICA E A PSICANÁLISE:
UMA RELAÇÃO POSSÍVEL
Fernando Alves Grumicker*
Resumo: O presente escrito refere-se a uma conceitualização da
epistemologia genética e da teoria psicanalítica, buscando refletir questões
filosóficas acerca do desenvolvimento humano, tanto no sentido orgânico
como no sentido mental. De um lado, ambas as abordagens pressupõem
como finalidade a ultrapassagem dos desequilíbrios e das necessidades, para
então alcançarem o equilíbrio interno das faculdades mentais (ou psíquicas)
do sujeito, por outro lado, as teorias tratam da moralidade e seus estágios
conforme o desenvolvimento do sujeito. O objetivo deste artigo se direciona
para uma assimilação entre ambas as abordagens do desenvolvimento
humano, assim como também para uma abordagem construtiva dos
conceitos em geral que estão sendo empregados. A metodologia usada será
a heurística para o cumprimento dos objetivos que este escrito se propõe.
Palavras-chave: Epistemologia.
Desenvolvimento.
Organismo.
Psicanálise.
Teoria.
Abstract: The present writing refers to a conceptualization on genetic
epistemology and the psychoanalytic theory, searching to reflect on
philosophical questions about the human development, in the organic
sense, as well as in the mental sense. On one hand, both approaches assume
*
Graduando em Filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná.
E-mail: grumickerfernando@gmail.com.
Perspectivas
as their end goal to surpass the imbalances and necessities, to then, reach
internal balance on the mental (or psychological) subject's faculties, on the
other hand, both theories treat on morality and its stages according to the
subject development. The objective of this article aims to an assimilation
between both approaches on human development, as well as an
constructivist approach on the appointed general concepts. The used
methodology is heuristic, to meet the requirements of the writing.
Keywords: Epistemology. Organism. Psychoanalysis. Theory. Development.
3.1 INTRODUÇÃO
Procuremos descrever o posicionamento de Jean Piaget (18961980), que foi um psicólogo, epistemólogo, biólogo e construtivista
suíço, com base na sua teoria de epistemologia genética e o seu
enfoque no desenvolvimento será descrita a partir de estágios, estes
por sua vez constituem uma forma de organização do estado mental,
assim, a teoria de Piaget do desenvolvimento se baseia e tem
fundamento no jogo ativo e dinâmico da assimilação entre a
equilibração partindo dos estágios do desenvolvimento, onde o sujeito
pode ser comparado com o crescimento orgânico, deste modo, os
estágios descritos por Piaget do desenvolvimento são guiados pela
continua busca pela equilibração mental, assim como do modo
orgânico em geral ocorre a equilibração nos estágios finais do
desenvolvimento.
O estágio da moralidade apenas surge pelo processo do
desenvolvimento que, em certa medida, está direcionada para a
equilibração, estas passagens são primeiramente pela autonomia, a
heteronomia e, por fim, a autonomia, esta última estão em relação as
representações do sujeito onde podem ultrapassar os estágios de mero
consenso com as leis morais para o surgimento da consciência das leis
morais instituídas e seus critérios para que, deste modo, seja possível
62
Epistemologia genética e a psicanálise: uma relação possível
a sociabilidade do sujeito. Do mesmo modo, a teoria descrita por
Sigmund Freud (1856-1939), que foi médico, neurologista, e
fundador da psicanálise e um dos maiores expoentes da teorização da
consciência humana do final do século XIX, a teoria psicanalítica de
Freud diz respeito ao aparelho psíquico e reflete os estágios de
desenvolvimento do homem a partir do sistema interno do sujeito,
isto é, uma vez que uma criança apenas detêm do Id como
caracterizadora das pulsões, ainda não é possível as reflexões entorno
da moralidade; o consciente ( que mais tarde será chamado de ego)
reflete os estados de conteúdos manifestos dos desejos e, apenas em
elação com o superego poderá assim interiorizar ações morais para a
sua ação prática, pois este pode ser entendido como arquétipo
regulador das pulsões do id, isto é, dos desejos e conteúdos de
satisfações de prazeres.
Assim, o que será destacado coloca em questão a descrição
referente à epistemologia genética de Piaget em relação direta com a
segunda tópica do aparelho psíquico descrita por Freud, aponto de,
em uma possível caracterização, demostrar como o desenvolvimento
ocorre nessas teorias e ainda, de modo objetivo, de como o
desenvolvimento moral é possibilitado segundo essas teorias, assim
como também no que concerne a ação moral.
Portanto, a partir da reflexão teórica do desenvolvimento que
de modo geral, possibilita a consciência moral para as ações com
outros sujeitos, procuramos estacar o modo pelo qual o
desenvolvimento é decisivo e detêm um peso no sentido da
equilibração mental dos sujeitos em geral. Negativamente, o passo em
que Freud elabora a sua segunda tópica do aparelho psíquico ressalta
a diferença de uma estruturação diversa do aparelho psíquico quando
comparado a outros sistemas orgânicos, neste cenário, o ponto de
partida será a estrutura do aparelho psíquico como determinante das
63
Perspectivas
ações morais dos sujeitos em geral a partir do desenvolvimento que
conduz ao equilíbrio.
3.2 O APARELHO PSÍQUICO E O DESENVOLVIMENTO NA
CONCEPÇÃO PSICANALÍTICA
Na elaboração teórica do aparelho psíquico Freud detêm de
duas tópicas que refletem a estruturação mental dos sujeitos, daremos
ênfase à segunda delas já que os termos da primeira serviram de síntese
para a configuração da segunda, isto é, como casos onde se encontra
uma aparente limitação da primeira tópica de 1900 para a o modo de
funcionamento do aparelho psíquico. Na primeira tópica Freud
destaca que a psicanálise se dirige para o estudo do inconsciente e
neste se encontram os desejos, os impulsos, e os “instintos”, deste
modo, serão estes anseios que devem ser analisadas já que estes
impulsos e desejos são reprimidos, seja pela sociedade ou pelo próprio
sujeito.
Assim, Freud como método emprega a interpretação dos
sonhos para averiguar estes impulsos reprimidos que são entendidas
como manifestações do inconsciente, do mesmo modo como entende
por “ato falho” as manifestações da linguagem verbal do sujeito através
das associações livres. A primeira tópica é retratada em termos de préconsciente, consciente e inconsciente. Respectivamente, o préconsciente pode ser entendido como um conteúdo que permanecem
ocultos mas que no entanto podem ser acessados pelo sujeito, isto é,
as suas repressões estão como que guardadas e que, no entanto,
podem ser acessados pelo consciente, o consciente retrata a estrutura
mental do sujeito pela qual os seus pensamentos e ações são
totalmente percebidos, assim como suas memórias, e frustrações, já o
inconsciente é propriamente o foco da psicanálise já que ai onde se
64
Epistemologia genética e a psicanálise: uma relação possível
encontram as pulsões agressivas, os recalques, e sentimentos que são
totalmente retidos, seja pela moralidade ou pelo próprio sujeito,
assim, os conteúdos inconscientes são afogados, uma vez que são
reprimidos.
As pulsões (auto conservação e pulsões sexuais), e desejos
reprimidos podem levar ao adoecimento psíquico, estas ao mesmo
tempo são analisadas pela psicanálise para o diagnóstico, no entanto,
as repressões sociais que analogamente com a configuração do sujeito
colocam os desejos e pulsões de maneira que evidentemente retira do
sujeito a sua autonomia, pois estas causam ações que não são de modo
algum percebidas pelo sujeito, assim, a moralidade social pode levar a
repressão de desejos que permanecem ocultos ao sujeito. Freud
afirma:
Aprendemos que os impulsos instintuais da libido sofrem o destino
da repressão patogênica, quando entram em conflito com as ideias
morais e culturais do indivíduo. Com isso não entendemos jamais
que a pessoa tenha um simples conhecimento intelectual da
existência de tais ideias, mas que as reconheça como determinantes
para si, que se submeta às exigências que delas partem (FREUD,
2010, p. 27)
Dessa maneira, os desejos inconscientes (que na segunda
tópica serão denominados de Id) podem gerar frustrações no sujeito e
anomalias comportamentais como casos de neurose e melancolia1. No
entanto, para entender o aparelho psíquico, Freud recorre à
predominância desses tipos de comportamentos para a descrição da
consciência moral e da análise dos conteúdos não manifestos da
consciência, isto é, o inconsciente que se dá pelas repressões sociais e
1
Com isso, Freud quebrou paradigmas, uma vez que descreve tipos de doenças
dado à uma sociedade repressora (a histeria é uma dessas entre várias outras).
65
Perspectivas
permanece desequilibrado, isto concernem desenvolvimento para a
equilibração.
Partindo da primeira tópica, que é uma divisão do aparelho
psíquico, na segunda tópica (que se dá a partir de 1923), ocorre uma
mudança, isto é, uma reestruturação do aparelho psíquico, do ponto
de vista freudiano, seria preciso uma investigação a respeito do que
engloba o consciente , que apesar disso detêm uma parte inconsciente
e que precisa, necessariamente, de uma descrição mais detalhada.
Assim, essa nova divisão do aparelho psíquico está descrita mais
explicitamente na obra “O Ego e o id” (1923-1925), deste modo, a
explanação freudiana diz respeito ao modo pelo qual o homem se
configura mentalmente, nesse sentido as nomenclaturas colocadas por
Freud se baseiam nos seguintes termos: Id, ego e superego. Assim, o
Id estaria descrito em termos de pulsões2 que por sua vez, o conteúdo
do Id estaria relacionado não apenas às pulsões, como também
representaria os desejos.
A partir da configuração do desenvolvimento, Freud indica
que uma criança apenas possui o Id como caracterizadora dos seus
desejos internos, para a saciar as causas de suas necessidades imediatas.
Assim, as necessidades são a chave para descrever o comportamento
mental, no sentido da configuração do aparelho psíquico, ou seja, à
personalidade do indivíduo enquanto é uma criança apenas detêm do
id, em primeira instância, como caracterizadora do seu estado mental
propriamente dito.
Assim, a teoria da pulsão freudiana destaca que na criança a
negação da alimentação resulta em carência como um fator orgânico
(considerando que se trata como exemplo a necessidade e/ou desejo
de alimentação, isto é, refere-se à ingestão oral), uma vez saciado o
2
Aqui, no entanto, Freud reestruturando o aparelho psíquico coloca a pulsão de
erros e a pulsão de morte como os que subjazem ao id.
66
Epistemologia genética e a psicanálise: uma relação possível
desejo se inscreve na memória da criança a satisfação dada pelo objeto
(seja ela o seio da mãe ou um objeto pelo qual a saciação se tornou
possível. Por esse registro n memória pela saciação a criança pode
criar alucinações de desejos pela alimentação já que esta é o seu objeto
de desejo. Do ponto de vista fisiológico, a memória do prazer
proporcionado pela alimentação não se sobressaí sobre a fome, no
entanto, ocorre uma substituição da necessidade orgânica pelo desejo
psíquico.
De acordo à Freud, a criança se constitui por desejo seja ele
sexual ou não, isto é dizer, para além dos tabus, a teoria das pulsões
freudiana representa uma estrutura objetiva de um estado do
desenvolvimento. Nos diz Freud:
Com a teoria dos instintos a psicanálise ofendeu o indivíduo
enquanto membro da comunidade social; outra parte de sua teoria
foi capaz de feri-lo no ponto mais sensível de seu próprio
desenvolvimento psíquico. A psicanálise pôs termo à fábula da
assexualidade da infância, provou que desde o começo da vida há
interesses e atividades sexuais nas crianças pequenas (FREUD, 2010,
p. 236)
É neste sentido em que a teoria do desenvolvimento
psicanalítico reflete a necessidade guiada pela pulsão, mais ainda,
onde a estrutura do aparelho psíquico regulada pelo desejo transposto
no Id caracteriza, em uma só vez, o aparato pelo qual se torna decisivo
às análises psicanalíticas a noção da necessidade psíquica para além da
necessidade orgânica.
Retratando assim um dos primeiros estados do
desenvolvimento da psicanálise, isto é, o Id e sua configuração do
desejo transposto para a necessidade psíquica, ainda restam outros
estados não menos pertinentes para o desenvolvimento.
Em um sentido ainda de crescimento fisiológico, a criança
através da sua socialização é regulada, assim como os seus desejos de
67
Perspectivas
acordo com a consciência que possui sobre suas ações, assim, o
desenvolvimento do Superego já em um estado mais apurado do
desenvolvimento psíquico, tem efetividade em como um regulador
das pulsões pelos critérios de moralidade.
Na medida em que ocorre o desenvolvimento humano, da
criança para a fase adulta, a moralidade é traçada, e isto ainda tem
problemas na vida quotidiana, no sentido de que, as pulsões não
podem ser detidas, mas são renegadas, ou seja, para o adulto já
desenvolvido, ainda permanece nele as pulsões na medida em que elas
são reprimidas, daí o mal-estar que se caracteriza pela negatividade dos
impulsos do Id frete aos fatores sociais e morais. Daí, nas palavras de
Freud (2011, p. 13) “(...) reprimido é, para nós, o protótipo do que é
inconsciente” já que está contido no Id as pulsões pelas quais, no
sentido externo ao indivíduo, precisa ser contido seja pelo Superego,
já que possibilita a organização psíquica do sujeito, seja nas suas ações
conscientes, como também pela própria sociedade no sentido geral.
3.3 O DESENVOLVIMENTO NA
CONSTRUTIVISMO DE PIAGET
CONCEPÇÃO
DO
A teoria do desenvolvimento ou a epistemologia genética de
Piaget, segundo o construtivismo, pressupõe a gênese do
conhecimento em relação constante entre o sujeito o os objetos da
experiência, assim, o dado das suas representações são entendidas
como pertencentes ao sujeito mas que também precisa da experiência
para reter dados, assim, estes dados retidos precisam, por assim dizer,
se adaptarem na estrutura mental do sujeito na medida em que se
desenvolve. A estrutura mental dos sujeitos depende das suas
representações empíricas, do mesmo modo que para a organização da
68
Epistemologia genética e a psicanálise: uma relação possível
experiência e do próprio conhecimento, seja necessário a
aplicabilidade da estrutura mental do sujeito.
No entanto, como se dá o desenvolvimento segundo a
epistemologia genética? Em um sentido bastante determinado, Piaget
pressupõe que os estágios do desenvolvimento mental se dão através
de estágios, tais estágios, são formas teóricas da organização mental
dos sujeitos. Tais estágios subsumem as representações empíricas e
ações, do mesmo modo que relacionam a experiência.
Piaget reflete que o desenvolvimento mental pode ser
comparado com o crescimento de uma planta, portanto, trata-se de
uma busca pelo equilibro 3 , nota-se que uma planta se estabiliza
conforme o crescimento, do mesmo modo é o homem, ou seja, seu
desenvolvimento mental é progressivo no sentido de que na medida
em que uma criança cresce sua estrutura mental tende ao equilíbrio
na fase adulta.
Piaget demostra que há uma continuidade entre os processos
orgânicos no sentido biológico e os processos cognitivos (mentais), daí
a importância de descrever um processo pelo qual seja garantida a
passagem de certos estágios de desenvolvimento a outros, dado que o
desenvolvimento pressupõe uma mudança tanto fisiológica quanto
mental.
Deste modo, as funções desempenhadas por uma criança são
diferentes das do adulto, as suas capacidades são, tanto do ponto de
vista fisiológico quando do ponto de vista mental, diferentes, uma vez
que além de desempenharem funções diferente detêm modos de
proceder em relação com o que é externo como também seus
processos de aprendizado, capacidade cognitivas se demonstram, na
3
Esta comparação metafórica tem relação com a ideia de que o desenvolvimento
tende ao equilíbrio, já que as ocorre o desequilíbrio dado à necessidade, seja ela de
manipulação de objetos, seja de querer “mudar o mundo” na adolescência.
69
Perspectivas
própria ação distintas. Assim, desde a infância até a adolescência os
processos podem ser vistos como distintos e é preciso que sejam, ao
mesmo tempo descritas em formas progressivas.
De maneira estruturalista, o desenvolvimento conduz ao
equilíbrio, Piaget pressupõe três modelos estruturais para o
desenvolvimento, partindo da concepção de estrutura mental do
sujeito e da psicogênese, isto coincide com uma ideia de progressão
positiva da para o desenvolvimento.
A assimilação, de onde ocorrem os processos de retirada dos
dados do ambiente, enquanto um organismo, o ser humano
necessariamente faz uso de seus sentidos. Assim, os dados retidos da
experiência incorporam com a estrutura já existente no sujeito4 em
relação dinâmica com a estrutura e com as informações.
Acomodação, onde o sujeito, para reter novas informações
inéditas modifica o seu organismo para reter novas informações sobre
o ambiente. Assim, a estrutura do sujeito influencia diretamente as
informações retidas demonstrando ser sugestivas que não se trata de
uma recepção passiva.
Adaptação, o homem age sobre o mundo e o mundo sobre o
homem, assim, evidentemente a assimilação e a acomodação, apesar
se distintas, não podem ser separadas para a configuração dos
processos mentais e intelectuais, desta maneira, se entende por
4
A assimilação pode ser entendida como: generalizadora, enquanto as estruturas
do sujeito se modificam para reter novas informações a respeito dos objetos em
geral da experiencia onde essas informações se incorporam na estrutura do sujeito.
Também como reconhecedora, enquanto a criança pode identificar objetos já
experienciados, ou seja, onde acaba retendo as informações do objeto e consegue a
diferenciar de outros. E, por fim, a assimilação recíproca, onde é possível as
identificações de sucessão, isto é, organização de objetos desorganizados em uma
totalidade.
70
Epistemologia genética e a psicanálise: uma relação possível
acomodação a maneira pela qual há reciprocidade entre sujeito e
objeto.
Deste modo, Piaget sugere quatro estádios do
desenvolvimento, já que esta parte da relação da ação da criança
enquanto um organismo sobre o seu meio. Assim, a evolução é
cognitiva e biológica. Os estágios, nas palavras de Piaget:
Cada estágio é caracterizado pela aparição de estruturas originais,
cuja construção o distingue dos estágios anteriores. [...] Mas a cada
estágio correspondem também características momentâneas e
secundárias, que são modificadas pelo desenvolvimento ulterior, em
função da necessidade de melhor organização. Cada estágio
constitui então, pelas estruturas que o definem, uma forma
particular de equilíbrio, efetuando-se a evolução mental no sentido
de uma equilibração sempre mais completa (PIAGET, 1999, p. 15)
Desta maneira, o desenvolvimento pode ser visto como uma
um dado que, conforme ocorrem as aparições de capacidades nos
indivíduos, vemos que, com isso se afirma o potencial de humanos em
geral, as crianças, se desenvolverem de uma maneira objetiva, assim,
as capacidades mentais e biológicas que constituem, segundo o autor,
o jogo entre a assimilação e a acomodação. Constitui assim a evolução
objetiva dos indivíduos. Tais estágios descritos por Piaget, são lineares
e ocorrem conforme surgem a necessidade na criança, assim, a
evolução ou o desenvolvimento (na criança) pode ser entendido de
acordo com o desequilíbrio, já que a necessidade pressupõe que algo
falte, que seja o caso de carência ou esteja indisponível etc. Assim, os
estágios são, sensório-motor, pré-operatório, operatório concreto e
operatório formal, respectivamente.
O estágio sensório-motor (0 a 2 anos) se caracteriza pelos
contatos pelos quais a crianças mantêm com os objetos de sua
experiência, assim, a criança opera os objetos e mantêm relações com
eles. Incorpora ao mesmo tempo os objetos de sua experiência
71
Perspectivas
conforme as suas características. Este estágio detêm uma forma prática
na aquisição de conhecimento pela criança, uma vez que sua
configuração mental ainda não possibilita outras maneiras de
conhecer senão o uso dos sentidos.
Assim, a criança opera ações sobre os objetos e mantêm
relações reciprocas, segundo Piaget (1983, p. 8) “coordenar ações quer
dizer deslocar objetos, e, na medida em que esses deslocamentos são
submetidos a coordenações que elabora progressivamente a partir
deste fato permite [...] atribuir aos objetos posições sucessivas, também
estas determinadas”, isto é dizer que a criança assimila certos objetos
e recebe informações sobre os mesmos, assim como, poderá a partir
destas experiências identificar objetos e manipulá-los segundo ordens
espaciais. Ainda aqui, a anomia aparece como uma incapacidade pela
qual o sujeito não pode compreender as regras morais de suas ações,
já que é isenta de qualquer tipo de pensamento no sentido ético, a
criança entende as regras como absolutas e imutáveis, assim a criança
não julga os próprios atos, assumindo assim uma mera relação entre
o erro e a punição como consequência5.
O estágio pré-operatório (2 ao 7 e 8 anos), o segundo estágio
do desenvolvimento é caracterizado por um começo de uma
inteligência simbólica, desenvolverá assim associações entre os objetos
de sua experiência e a sua pré-linguagem segundo categorias. Tal
estágio, ainda que leve em consideração as primeiras impressões da
linguagem 6 e das imagens permanece ligada ainda aqui a questões
práticas, isto é, aos objetos da experiência afim de categorizá-los, assim,
os esquemas do estágio operatório-motor, não podem ser vistos como
5
Tomando como exemplo a necessidade biológica da amamentação, a criança não
reflete as consequências de suas ações (ao ferir a mãe mordendo-a no seu gesto de
sucção.
6
Dos 2 anos onde a criança série de associações pré-conceituais e de
armazenamentos.
72
Epistemologia genética e a psicanálise: uma relação possível
conceitos, no entanto, aqui a criança desenvolve as noções de
permanência dos objetos de sua experiência.
No entanto, “toda vida mental e orgânica tende a assimilar
progressivamente o meio ambiente, realizando esta incorporação
graças às estruturas ou órgãos psíquicos” (PIAGET, 1999, p 17), assim,
a criança desenvolverá uma série de assimilações capazes estruturar as
suas representações de acordo com a sua estrutura mental,
evidenciando um desenvolvimento que não era possível
anteriormente uma vez que suas impressões se encontravam ainda
desorganizadas, porém, neste estágio se iniciam as funções semióticas,
onde ocorrem as primeiras socializações através da linguagem, assim
como de imitações (pelas quais são possíveis as representações na
criação desenhos), assim como também as imagens mentais trazidas
pela memória.
Neste estágio, a criança é subordinada a regras morais e
permanece na heteronomia, enquanto segue ações e leis restritivas
sem a compreensão total destas restrições, as ações da criança ainda é,
pois, subordinada a certas regras fixas de convivência não-refletidas.
Operatório-concreto (7 a 8 aos 11 e 12 anos), uma vez que a
organização da experiência conforme as categorias na criança já são
possíveis, a criança desenvolve as capacidades de comunicação pela
linguagem, do mesmo modo como pode realizar ações em conjunto
(socialização), como também de operações matemáticas que seguem
os conceito de unidades, no entanto, recorre ao concreto (externo à
criança), para a aplicação dos enunciados pré-conceituais práticos.
Assim, neste estágio do desenvolvimento é possível a realização de
reversibilidade entre relações entre A e B, isto é, a possibilidade de
casos de reversão de um acontecimento A para B e de B para A,
destarte a intuição articulada no sentido prático e da mobilidade, uma
vez que a estrutura mental e biológica reflete a busca pelo equilíbrio
e da plenitude.
73
Perspectivas
Apenas no sentido de que o sujeito em elação com o seu meio
pode conduzir à equilibração, destaca-se que a linguagem e as
operações simples do intelecto (como de soma e subtração) podem ser
interiorizadas no sujeito apenas na medida em que se poderá dirigir o
conhecimento no que é concreto, Piaget destaca que “assiste-se
durante a primeira infância a uma transformação que, de apenas
senso-motora ou prática que é no início, se prolonga doravante como
pensamento propriamente dito a dupla influência da linguagem e da
socialização” (PIAGET, 1999, p. 27), portanto, a socialização, a
possibilidade do pensamento emergem, do mesmo modo em que a
linguagem e as operações matemáticas como direcionadas para a
sensibilidade. As ações morais neste cenário são entendidas pela
criança conscientemente, assim, ela exerce uma autonomia em suas
ações segundo a reflexão moral, afirma Fini (1991, p. 60) “[...] o
propósito e consequências das regras são consideradas pela criança e
a obrigação baseada na reciprocidade. A criança se caracteriza pela
moral da igualdade ou de reciprocidade”, uma vez que a criança se
constitui como um indivíduo que faz jus à moralidade segundo a
reciprocidade, evidencia-se um desenvolvimento da estrutura mental
do indivíduo.
Estágio Operatório Formal (12 anos, ou adolescência), a
criança adentrando na faze adulta pode conceber tanto a moralidade,
como foi destacado, como também a linguagem, o raciocínio
hipotético dedutivo estará aqui consolidado, do mesmo modo como
a construção dialógica, a comunicação e a própria cooperação social
e/ou familiar. O estado mental do adolescente que por sua vez se faz
dotado das faculdades necessárias para o desenvolvimento, tanto
biológico quanto psicológico, possibilita-o à compreensão dos dados
da experiência, ao mesmo tempo, as reflexões formais e conceituais da
lógica matemática.
74
Epistemologia genética e a psicanálise: uma relação possível
Nesse sentido, o indivíduo já poderá refletir as mais diversas
aplicações dos esquematismos lógicos e formais à experiência, no
entanto, poderá deixar de conduzir as expressões do seu
conhecimento para a experiência, isto é, por conceitos e pela forma
lógica o pensamento e a reflexão são possíveis. Assim, ocorre uma
relação dinâmica entre o objeto e o sujeito, já que este pode abstrair a
realidade e pensá-la de maneira formal. Nos diz Piaget:
[...] é este poder de formar operações sobre operações que permite
ao conhecimento ultrapassar o real e o que lhe abre a via indefinida
dos possíveis meios da combinatória, libertando-se então das
elaborações por aproximação às quais permanecem submetidas as
operações concretas [...] Em geral, este último nível apresenta um
aspecto marcante em continuidade, aliás com o que nos ensina toda
a psicogênese dos conhecimentos a partir das indiferenciações
iniciais: é na medida em que se interiorizam as operações lógicomatemáticas do sujeito (MUNARI, 2010, p. 139)
De um lado, o estado mental constituindo-se da abstração e
raciocínio formal, o sujeito poderá se abster de relacionar o conteúdo
do pensamento, as operações formais, lógicas e dialéticas para a
prática, isto é, que o desenvolvimento possibilite aqui uma separação
definitiva entre a reflexão teórica e a aquisição de conhecimento a
partir da experiência é inegável, contudo, as operações do intelecto
uma vez que já desenvolvidas conduzem àquela ideia do equilíbrio da
estrutura psicológica. Por outro lado, o desequilíbrio aparente dos
outros estágios do desenvolvimento que não possibilitavam as
operações lógicas no intelecto, tampouco uma autonomia da vontade
de modo equilibrado, serão aqui estabilizadas com a passagem da
inteligência prática para o pensamento lógico formal.
Neste cenário, não poderíamos dizer de modo algum que o
desenvolvimento psíquico, desde a criança à fase adolescente se
esgote, pelo contrário, a necessidade e o interesse não cessará na
75
Perspectivas
medida em que ocorra o desenvolvimento da criança à fase adulta,
porém, que as necessidades e os interesses serão diversos daquelas
manipulações de objetos e de saciação de desejos fisiológicos da
criança, assim, os desequilíbrios mentais não cessam com a fase adulta,
porque a mudança dirigida para a sociedade pode ser vista como um
tipo de necessidade na adolescência o que ainda acarreta certos
desequilíbrios que, pela necessidade, requerem a realização.
3.4 O DESENVOLVIMENTO: UMA ANALOGIA ENTRE A
TEORIA PSICANALÍTICA E A EPISTEMOLOGIA GENÉTICA
Podemos afirmar, com Freud, que o aparelho psíquico
meramente pulsante, desejante, instintivo do Id reflita as carências e
necessidades, que por sua vez podem ser entendidas como conflitivas
com a moralidade, mas apenas na medida em que o Superego não
esteja totalmente formado para regular a maneira instintiva que a
criança age, e, no entanto, inversamente caracteriza o inconsciente. A
personalidade formada como já regulada pelo Superego e a aparente
manifestação de um ego (consciente) no seio de um possível equilíbrio
entre as pulsões, coloca a moralidade como um fator de
desenvolvimento no aparelho psíquico da teoria psicanalítica. Assim,
a criança age segundo os prazeres porque ainda, na configuração do
seu aparelho psíquico, o regulador moral, isto é, o Superego, não está
totalmente desenvolvido, ainda que o conflito possa ser entre o desejo
do Id e o Superego para as relações conflitivas das tentativas de
organização das pulsões. Assim, o desenvolvimento de um
“organizador” moral no aparelho psíquico pode ser entendido como
um critério de maturidade.
O desenvolvimento da psique, deste nosso ponto de partida,
relaciona-se com as pulsões que aparecem como necessidades
76
Epistemologia genética e a psicanálise: uma relação possível
inerentes no inconsciente, contudo, o conflito com a moralidade
imposta pelos padrões sociais vigentes que geram as repressões
instintivas, retratam o desequilíbrio, e este último necessita do
desenvolvimento no aparelho psíquico para ultrapassar as repressões
dos desejos inconscientes em busca da satisfação, para que dessa
maneira, seja possível a ação moral.
No sentido da tese científica de Piaget, ou seja, da
epistemologia genética, é possível perceber que os estágios de
desenvolvimento do conhecimento, das estruturas do intelecto da
criança que, mais tarde, serão entendidas como uma necessidade,
fosse ela biológica ou uma necessidade da estrutura mental do sujeito,
definitivamente condiz o aprendizado ao mesmo tempo em que sugere
que a necessidade mental surge de um desequilíbrio mental.
O que Piaget descreve com a epistemologia genética, com o
conhecimento e com as questões práticas, onde o desdobramento
intelectual cada vez mais aguçado nos estágios do desenvolvimento
lineares são evolutivos, no sentido de que a criança tem um interesse,
o desequilíbrio através do desenvolvimento possibilita um equilíbrio
para além da saciação imediata das necessidades, assim, a estrutura
mental do sujeito pode ser vista como uma ontogênese psicológica de
organismos humanos vivos, por esta ótica, a necessidade que surge do
desequilíbrio na criança exige o desenvolvimento intelectual para a
satisfação dessa necessidade, no entanto, apenas pelo modo em que o
desenvolvimento é completado, que essas necessidades podem ser
substituídas por outras.
Ainda aqui, ao mesmo tempo em que Piaget retrata o
desenvolvimento mental da criança até a adolescência, a moralidade
também segue na estrutura do desenvolvimento. Portanto, o
desenvolvimento moral está intimamente ligado com o
desenvolvimento da estrutura mental do sujeito.
77
Perspectivas
Tanto a teoria psicanalítica quanto a epistemologia genética
sugerem que o desenvolvimento da estrutura mental/psíquica,
possibilita a moralidade. Portanto, se para Freud os desejos
incumbidos, a repressão, e a necessidade nasciam de um fator
determinante do Id (na medida em que as pulsões permaneciam
inconscientes), demostra que as pulsões do Id seja uma falta do
desenvolvimento da moral da estrutura psíquica/mental. Do mesmo
modo, dado que para Piaget a estrutura mental/psíquica do sujeito
em desenvolvimento possibilitaria, além do desenvolvimento
intelectual, também o desenvolvimento moral (da saída da anomia e
da heteronomia para a autonomia da vontade), dá a entender que,
tanto os estados de amoralidade e de pré-moralidade7 inferiores em
Piaget, exigem o desenvolvimento mental/psíquico.
Permanecem, tanto nas obras apresentadas de Freud quanto
nas de Piaget, a noção de que o desenvolvimento esta (quase como
uma teleologia) imbrincada no equilíbrio do sujeito frente às suas
estruturas mentais/psíquicas. A possibilidade desse desenvolvimento
de um lado se deu pelas condições biológicas e materiais do sujeito
para ascender em suas faculdades estruturantes, por outro lado, se
ressalta a importância do desenvolvimento interno do sujeito e do
rompimento com as repressões. Assim, implicitamente as ideias
conduzem para a concepção pela qual, de modo geral, do
desequilíbrio surge a necessidade da organização que deve conduzir,
eficientemente, para o equilíbrio. Portanto, a epistemologia genética
dá o enfoque ao desenvolvimento do sujeito (da criança) de modo
sucessivo e linear, onde, o desenvolvimento, tanto do conhecimento
7
Chamo de pré-moralidade o estágio de desenvolvimento pelo qual tanto a
epistemologia genética quanto a teoria psicanalítica freudiana refletem a
possibilidade da moralidade, pois esta última, engajada no desenvolvimento, tanto
biológico quanto mental, pressupõe uma abordagem pela qual um indivíduo
poderá tornar-se moral.
78
Epistemologia genética e a psicanálise: uma relação possível
quanto da estrutura mental/ psíquica não detêm de uma parada
específica. Enquanto para a psicanálise as relações do
desenvolvimento estão fadadas na análise do inconsciente. Deste
ponto de vista, tanto os adultos detêm de uma estrutura
mental/psíquica que não cessa, mas que deve estar sujeita ainda a
algum tipo de desenvolvimento que vise um equilíbrio psicológico,
que transcenda as pulsões vulgares os desequilíbrios e que institua,
assim, critérios para a ação moral. Por conseguinte, para uma série de
estados do desenvolvimento do organismo deve visar a organização
das estruturas dos sujeitos de modo geral.
REFERÊNCIAS
FINI, Lucila Diehl Tolaine. Desenvolvimento: De Piaget a Kohlberg.
Santa Catarina: Perspectiva, v. 9, n. 16, p. 58-78, Jan/Dez, 1991.
FREUD, Sigmund. Introdução ao narcisismo, ensaios de
metapsicologia e outros textos (1914-1916). V12. São Paulo:
Companhia das Letras, 2010.
MUNARI, Alberto. Jean Piaget. Recife: Editora Massangana, 2010.
MUNARI, Alberto. O Eu e o Id “Autobiografia” e outros textos (19231925). v. 16. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
PIAGET, Jean. Seis estudos de psicologia. 24.ed. Rio de Janeiro:
Fenronse Universitária, 1999.
PIAGET, Jean. Epistemologia genética/ Sabedoria e ilusões da
filosofia; Problemas de psicologia genética. 2ed. São Paulo: Abril
Cultural, 1983.
79
Perspectivas
80
COMENTÁRIOS SOBRE O EXISTENCIALISMO
SARTREANO E A PEÇA ENTRE QUATRO PAREDES
Cristiele Rhoden*
Junior Cunha**
Resumo: Aborda-se neste ensaio o existencialismo sartreano e a peça Entre
Quatro Paredes. É levantada a questão sobre a liberdade dos seres humanos
em comporem sua essência e a angústia proveniente da constante
necessidade de fazer escolhas. A filosofia existencialista de Sartre é exposta
a partir de conceitos chave para a compreensão da obra do filósofo francês
– Liberdade, Angústia, Nada e Outro. Por fim, com base na peça Entre
Quatro Paredes traz-se a lume o questionamento se, de fato, o inferno são os
outros?
Palavras-chave: Liberdade. Angústia. Outro.
Abstract: Sartrean existentialism and the play Entre Quatro Paredes are
discussed in this essay. The question is raised about the freedom of human
beings to compose their essence and the anguish arising from the constant
need to make choices. Sartre's existentialist philosophy is exposed based on
key concepts for understanding the French philosopher's work – Freedom,
*
Graduanda em Filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná.
E-mail: rhoden375@outlook.com.
**
Aluno regular de Mestrado em Filosofia (Bolsista CAPES) pela Universidade
Estadual do Oeste do Paraná. E-mail: juniorlcunha@hotmail.com.
Perspectivas
Anguish, Nothing and Other. Finally, based on the play Entre Quatro Paredes,
the question arises whether, in fact, hell is the other?
Keywords: Freedom. Anguish. Other.
4.1 INTRODUÇÃO
Jean-Paul Sartre, um francês parisiense, testemunhou as duas
grandes guerras mundiais, que, em especial a segunda, lhe serviram
como pontos de referência em sua filosofia existencialista. Nasceu em
1905 e faleceu em 1980, destacando-se entre os intelectuais pósguerra. A cada nova publicação, sua repercussão ultrapassava as
fronteiras francesas e se alastrava por toda a Europa.
Reconhecidamente uma figura pública, um dos precursores dos
“intelectuais públicos”, ao lado de Simone de Beauvoir (1908-1986),
militava nos movimentos políticos de esquerda.
Foi o primeiro filósofo a intitular-se como existencialista,
denominação que Heidegger (1889-1976), Dilthey (1833-1911) e
demais filósofos influenciados pela fenomenológica de Husserl (18591938), além de recusarem, rechaçaram, explicando, em parte, o grande
vácuo entre a filosofia de Sartre e da do autor de Ser de tempo (1927),
não raras vezes, equivocadamente, postas em comparação. Além de
suas obras estritamente filosóficas, se destacam, pelo teor reflexivo
dadas a elas, suas obras literárias, como o romance A Náusea (1958) e
suas peças de teatro, como Entre Quatro Paredes (1944).
Fortemente incentivado por Beauvoir, a obra A Náusea, o
primeiro romance do filósofo parisiense, influência em muito a
sociedade de sua época – ainda abalada pelas atrocidades cometidas
pelo regime nazista comandado por Hitler – a pensar a liberdade, um
dos temas centrais abordado por Sartre na referida obra. Em sentido
82
Comentários sobre o existencialimo sartreano...
lato, a liberdade, segunda pensa o filósofo em voga, se caracteriza pelas
escolhas que o ser humano faz de si mesmo e do mundo ao seu
entorno. Ser livre, nesse sentido, é viver tendo que constantemente
estar forçado a realizar escolhas.
Malgrado a possibilidade de realizar escolhas ao qual se está
submetido, infere-se também, a partir daí, que ao escolher A, por
exemplo, entre A e B, automaticamente se recusa B. Quando então
nos referimos a vida, sempre que realizamos uma escolha, indica que
deixamos de escolher outras incontáveis possibilidades. A quimera
que nos sobrepuja, no entanto, é que no âmbito de nossa existência
jamais saberemos o que resulta de uma possiblidade não escolhida.
Mais ainda, o ser humano é o único responsável por seus valores e por
tudo que faz de si.
4.2 O EXISTENCIALIMO SARTREANO
A filosofia existencialista de Sartre, nos diz que somos
obrigados a realizar escolhas, portanto, inevitavelmente, a cada
decisão que tomamos somos condenados ao que dela resultar. Nossa
vida é, por conseguinte, fatalmente proveniente das escolhas que
realizamos. Logo, na filosofia sartreana, não há determinismo ou
destino que impere sobre nossas vidas, estamos apenas sob o julgo de
nossas escolhas e do que delas advirem. O ser humano, em
conformidade com o pensamento de Sartre, manifesta-se no mundo
por meio de suas escolhas: o ser humano primeiro existe e, de sua
existência, por meio de suas escolhas, forma a sua essência. Em outros
termos, a existência precede a essência, a essência é criada pelo ser
humano.
O Ser humano, nesse sentido, é um ser-no-mundo o que
implica dizer que não se compara aos demais entes e seres, estes
83
Perspectivas
possuem suas essências previamente definidas, o ser humano, por sua
vez, estabelece sua essência por meio de um processo constante
enquanto perdurar sua existência. A essência humana se difere de um
ser humano para outro e não pode ser encarada de forma estática ou
acabada, mas que se modifica ao passo que as escolhas são tomadas.
Dito de outro modo, estão sob o jugo de uma liberdade absoluta,
fadados a definirem-se por meio de suas escolhas e ações. A própria
consciência de si mesmo é um fluxo em constante mudanças.
Nesse contexto, outro conceito chave da filosofia de Sartre
deve ser mencionado: o Nada. O ser humano nasce como Nada, isto
é, a priori é um ser indeterminado e que carece de um sentido que
defina sua existência. O próprio existir é posto em questão pelo Nada.
A falta de sentido suscita no ser humano o desespero de ter de encarar
o peso de sua existência indeterminada. Logo, suas escolhas devem ser
encaradas como meios de atribuírem sentido à própria existência. Ao
ser humano está dado sua condição de livre escolha e, portanto, todo
o que fizer de si é um produto de sua liberdade.
De acordo com Sartre, a consciência de possuir essa total
liberdade, ou seja, de ter a possibilidade de realizar escolhas, provoca
no ser humano um sentimento inquietante, que o filosofo
denominado angústia. A consciência de sua liberdade, bem como sua
consciência do Nada – igualmente angustiante –, surge em meio a uma
crise existencial, isto é, quando o ser humano nota as limitações de
sua existência e passa a questionar as suas escolhas tomadas ao longo
de sua vida.
O sentimento de angústia pelo qual é tomado frente as suas
limitações, leva o ser humano a perceber que é um ser indeterminado
e que sua existência não possui um motivo ou sentido prévio que
explique-a e que, embora, seja responsável por sua história, isto é, que
fez as escolhas durante toda sua vida o levando ao ponto em que se
encontra, é impotente frente ao peso de sua existência e que por mais
84
Comentários sobre o existencialimo sartreano...
que se esforce não é capaz de atingir e dar a si mesmo um sentido que
satisfatoriamente justifique sua existência.
A consciência do Nada faz com que o ser humano se depare
com o abismo que há entre o que é e o que gostaria de ser, em outras
palavras, que a existência enquanto uma vida plena é inatingível. O
ser humano se vê como Nada frente ao seu passado e descontente com
o presente que está vivendo, resta-lhe apenas as projeções que faz para
seu futuro, mas que ainda não às realizou. Logo, está a encargo de
fazer com que o futuro projetado se concretize. Nesse sentido, implica
dizer que o ser humano, inevitavelmente, se encontra na posição de
único capaz de alcançar o que pretende.
O ser humano, portanto, segundo a filosofia de Sartre, nasce
sem nenhuma natureza que o anteceda. Nesse sentido, Deus, plano
divino, figuras transcendentais, destino ou qualquer outra concepção
determinista não exerce influência alguma sobre a existência humana.
A existência humana é caracterizada pela total liberdade e é por meio
desta que o humano escolherá ser o que desejar ser e, do mesmo
modo, estabelece sua essência. Igualmente, seus valores morais serão
formados mediante as escolhas das quais não pode fugir, mesmo que
entre incontáveis possibilidades opte por nenhuma já está fazendo
uma escolha.
A angústia proveniente da necessidade constante de ter de
fazer escolhas, afirma Sartre, se dá devido as inquietações existenciais
as quais, inevitavelmente, todo ser humano está submetido, ou
melhor, o ser humano sempre terá de arcar com a responsabilidade de
ter que optar entre as diversas opções que a sua existência lhe colocar
em sua frente. Quando, então, diante de determinado contexto, o ser
humano sempre poderá conformar-se, aceitar ou intervir na situação.
A melhor maneira de afirmar sua existência, portanto, é assumir a
inevitabilidade de que sempre terá escolhas por fazer, mesmo que isso
lhe cause angústia. A angústia também se dá, segundo o filósofo
85
Perspectivas
parisiense, quando o ser humano reconhece que os valores são
estabelecidos individualmente e que são únicos. Nesse sentido, os
determinismos cultivados pela sociedade, por exemplo, a igreja ou
partidos políticos, são inúteis. A essência de cada ser humano é, e só
pode ser moldada por ele próprio.
Sendo cada ser humano responsável pelos caminhos que sua
existência toma, cada um deve preocupar-se pelas escolhas que faz
diante as várias possibilidades que são apresentadas, isto pois, cada ser
humano responde por suas escolhas, não podendo atribuir culpa ao
Outro pelo que escolhe ou deixa de escolher, dessa forma, os sucessos
ou fracassos que resultarem dos caminhos que escolhem caminhar, ou
seja, das opções que optam frente a outras, são de inteira
responsabilidade de cada ser humano. Escreve Sartre (1997, p.545)
em Ser e o nada:
O homem é livre porque não é si mesmo, mas a presença a si. O ser
que é o que é não poderia ser livre. A liberdade é precisamente o
nada que é tendo sido no âmago do homem e obriga a realidade
humana a fazer-se em vez de ser. [...], para a realidade humana, ser é
escolher-se: nada lhe vem de fora, ou tampouco de dentro, que ela
possa receber ou aceitar. Está inteiramente abandonada, sem
qualquer ajuda de nenhuma espécie, à insustentável necessidade de
fazer-se ser até o mínimo detalhe. Assim, a liberdade não é um ser:
é o ser do homem, ou seja, seu nada de ser.
Para Sartre, não há limites para nossa liberdade, com exceção
do fato de não sermos livres para não sermos livres, em outros termos,
a liberdade é um fardo que acompanha toda nossa existência, somos
condenados a ser livres. Segue daí, que cada ser humano é obrigado a
fazer de si o que desejar. Entre as inúmeras possibilidades que se
apresentam a sua existência está a liberdade de mudar de vida quantas
vezes quiser, saciar ou ignorar seus desejos, buscar novos sentidos a
86
Comentários sobre o existencialimo sartreano...
sua existência etc. Em suma, o ser humano está apenas sob o peso de
sua liberdade.
O peso da liberdade, entretanto, segundo o filósofo em voga,
somando-se com as responsabilidades do que se resulta de nossas
escolhas, provoca no ser humano um sentimento ambivalente de
poder e medo. A título de exemplo, se o ser humano se colocar à beira
de um penhasco sentirá o medo de cair e sentirá a angústia de pensar
que nada, absolutamente nada, o impede de jogar-se lá embaixo, de
lançar-se no abismo. O que de mais angustiante pode tomar o ser
humano é a consciência que só cabe a ele decidir pular ou não pular.
O peso da responsabilidade de decidir a cada momento o que fazer
pode tornar a vida insuportável.
A angústia também acomete o ser humano quando este tem a
consciência total de sua liberdade e em que isso implica em sua
existência, ou seja, ao gozar de sua liberdade o ser humano pode optar
por caminhos os quais não oferecem vias de retorno. É, portanto,
angustiante saber que estamos sujeitos a escolhas equivocadas e
irremediáveis. Ademais, os ser humano pode, ainda, angustiar-se ao se
deparar com resultados inesperados de suas escolhas. Nesse sentido, o
ser humano é a base de sua existência, são suas escolhas que
fundamentam sua essência, entretanto, está sujeito a fazer escolhas
que se voltam contra si.
Assim como a liberdade é a existência humana, a angústia se
apresenta do mesmo modo. O ser humano sempre se angustiará, pois
nunca estará plenamente capacitado para lidar com o peso de sua
liberdade ou com as consequências de suas escolhas. Para mais, o
futuro sempre lhe parecerá desafiador, fazendo-o contrastar o que é
com o que deseja ser. Desse modo, ao mesmo tempo que a liberdade
é almejada é também causadora de incertezas.
Em grande parte das situações que exigirem uma escolha que
inevitavelmente afetará o curso de seu futuro, o ser humano terá medo
87
Perspectivas
e poderá ser tomado pelo sentimento de Nada, isto é, o vazio ou a
ausência de sentido que o faz questionar suas escolhas. Se a existência
do ser humano é marcada pela liberdade, na mesma proporção é
marcada pela incerteza. A incerteza de ter feito a decisão correta; a
incerteza pelo que teria sido se houvesse feito outra escolha; a incerteza
pelas consequências que viram das escolhas feitas ou deixadas de se
fazer.
Se diante da angústia se pode acentuar o quão frágil é o ser
humano, do mesmo modo é possível enfatizar a responsabilidade que
tem sobre sua existência. Nesse sentido, conhecer-se é um fator
fundamental para lidar com a angústia. Cada ser humano é o único
que pode exercer controle sobre si mesmo e dar sentido a sua vida:
Sou responsável por tudo, de fato, exceto por minha
responsabilidade mesmo, pois não sou o fundamento do meu ser.
Portanto, tudo se passa como se eu estivesse coagido a ser
responsável. Sou abandonado no mundo, não no sentido de que
permanecesse desamparado e passivo em um universo hostil, tal
como a tábua que flutua sobre a água; mas, ao contrário, no sentido
de que me deparo subitamente sozinho e sem ajuda, comprometido
em um mundo pelo qual sou inteiramente responsável, sem poder,
por mais que tente, livrar-me um instante sequer, desta
responsabilidade, pois sou responsável até mesmo pelo meu próprio
desejo de livrar-me das responsabilidades (SARTRE, 1997, p.680).
É por meio da liberdade, portanto, que é possível ao ser
humano realizar seus objetivos e, dentre todas as possibilidades,
realizar o mais importante à existência, isto é, assumir a
inevitabilidade de ter de fazer escolhas e o que delas advêm. Em O Ser
e o Nada (1997), Sartre diz que a existência humana é um projeto a ser
realizado, uma vez que os seres humanos não possuem uma essência
definida e, por isso, está em constante construção. Sartre, em seus
escritos, como já foi aludido, sempre buscou refletir sobre questões
relacionadas com a existência humana e encontrou no teatro um
88
Comentários sobre o existencialimo sartreano...
ótimo meio para expor seus conceitos filosóficos, como é o caso de
Entre Quatro Paredes, onde Sartre expõe sua visão sobre o Outro e
as angústias provenientes da liberdade.
4.3 O INFERNO SÃO OS OUTROS?
Entre Quatro Paredes foi escrita em 1944, em plena Segunda
Guerra Mundial e, por conta das precárias condições econômicas
à época, a peça possui um único e simples cenário: sobre o palco
havia apenas um sofá, um criado mudo e uma estátua de bronze
sobre este. Toda a peça é representada em único Ato, dinâmico e
sem rodeios. Além de causar impacto ao ser encenada a peça
também pode proporcionar uma impactante leitura quando feita
em um único fôlego.
A peça se passa no inferno e possui apenas quatro
personagens: o Criado, um coadjuvante com poucas falas, mas de
função dramática importante e indispensável no início da peça.
Garcin, um diretor de jornal que almejava ser um herói, mas não
foi mais que um covarde em vida e também agora no inferno; um
grande canalha e péssimo marido. Estelle, uma esnobe que se casa
com um homem mais velho e rico para subir na vida; matou um
bebê que teve com seu amante. Por fim, Inês, uma funcionária dos
correios e com tendências sadomasoquistas; causava
intencionalmente o sofrimento alheio. Entre os três protagonistas,
Inês é a única personagem que reconhecerá sua culpa.
Um ponto a ser destacado na peça é que vemos logo em seu
início a desconstrução da imagem estereotipada que há do inferno
e uma nova imagem sendo construída conforme os personagens
vão se conhecendo. Há, portanto, grandes diferenças entre o
inferno cristão e o inferno existencial, por assim dizer, mas este
89
Perspectivas
pode ser tão castigador quanto o primeiro. O inferno concebido
por Sartre não é representado por torturas, rios de fogo e enxofre,
e sim expressado pela afirmação de Garcin: O inferno são os Outros.
O que é posto em destaque por Sartre em Entre Quatro Paredes
é o constante e interrupto olhar de uns sobre os outros. Ao longo do
primeiro diálogo da peça, entre o Criado e Garcin, somos informados
que no cômodo onde os personagens passarão a eternidade não se
apaga as luzes e não há onde ou como dormir, com o tempo nem
mesmo será possível piscar. No cômodo também não há espelhos e
nem qualquer outro objeto que possa ser utilizado como tal. O único
castigo que há no inferno de Entre Quatro Paredes é um paradoxo: os
personagens só podem verem a si mesmos por meio do olhar de uns
dos outros.
É isso que observamos no triângulo de Entre quatro paredes: Estelle
precisa do olhar de Garcin para manter sua imagem de bela e
desejável. Garcin precisa do olhar de Inês para se justificar de sua
covardia e Inês precisa do olhar amedrontado dos outros dois
para manter sua escolha de manipuladora. Porém, ao mesmo
tempo, em que desejam esse olhar [...], este mesmo [olhar] é o
inferno para cada um deles, em outras palavras, “aquele que me
olha”, é sempre o meu carrasco (MENDES CAMPOS, 2008,
p.4).
Com Entre Quatro Paredes, Sartre põe em foco o grande
conflito que há entre os seres humanos. Para o filósofo, os seres
humanos são consciências livres e, devido a isso, estão em um
constante arranjo de encontros e desencontros. “Quando o olhar
do outro está em harmonia com minhas expectativas não há
conflito, mas quando isso não acontece, ele configura para mim
um espelho crítico que aponta minhas falhas e mentiras”
(MENDES CAMPOS, 2008, p.4). Sem poderem olharem para si a
não ser pela visão dos demais, Garcin, Estelle e Inês, além de
90
Comentários sobre o existencialimo sartreano...
conviverem com seus defeitos, também são forçados a encararem
o olhar julgador do Outro. Para Jacoby e Carlos (2005, p. 50):
[...] é a apreensão da consciência de si mesmo que descobre o
outro, como aquele que retorna a verdade da minha imagem e
afirma minha existência. Isso pressiona meu olhar a também
servir para voltar-se sobre o Eu, agora objeto-sujeito, indagando a
própria identidade. Esta reflexão sustenta a afirmação do autor
de que somos situados no mundo pelo Outro, identificado como
a transcendência transcendida.
Dito de outro modo, a conciência de si é revelada ao Ser e
ao Outro por meio do encontro entre os seres. Segue-se daí o quão
decicivo é para si próprio o olhar do Outro. Mas há uma outra
reflexão a ser feita frente ao inferno concebido por Sartre: os três
protagonistas de Entre Quatro Paredes possuíam o que podemos
chamar de falhas morais e, por conta disso, eram castigados e
castigadores uns dos outros, mas e quando o Outro julga e castiga
por algo que não é uma falha, longe disso, é um erro grotesco de
julgamento ou de pré-conceito? Quando o Outro olha para um
judeu e não vê um ser humano? Quando o Outro olha para uma
mulher com roupas curtas e a julga como um objeto sexual? Ou
quando o Outro olha um negro e sumariamente o condena como
um bandido? Não sei se, de fato, “o inferno são outros”, mas
certamente há momentos em que, principalmente, grupos
minoritários são levados para campos de concentração, abusados
sexualmente ou presos injustamente por outros.
REFERÊNCIAS
JACOBY, Márcia; CARLOS, Sergio Antonio. O eu e o outro em
Jean Paul Sartre: pressupostos de uma antropologia filosófica na
91
Perspectivas
construção do ser social. In: Latin-American Journal of Fundamental
Psychopathology on Line, ano V, v.1, 2005.
MENDES CAMPOS, Carolina. A psicanálise existencial de JeanPaul Sartre na peça “Entre Quatro Paredes”: o jogo de espelhos do
encontro com o Outro. In: Anais do I Simpósio de Psicologia
Fenomenológico-Existencial. BH: Fundação Guimarães Rosa, 2008.
SARTRE, Jean-Paul. Entre Quatro Paredes. Trad. Guilherme de
Almeida. São Paulo: Abril, 1977.
SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada: ensaio de fenomenologia
ontológica. Trad. Paulo Perdigão. 5º ed, RJ: Vozes, 1997.
92
REAÇÕES PESSOAIS FRENTE ÀS NOVAS CONFIGURAÇÕES
DE CIDADE: (SOBRE)VIVER NA PANDEMIA
Marina Garcia Lara*
Aloir Pacini**
Resumo: O presente artigo tem como objetivo suscitar reflexões sobre a
consciência coletiva em tempos de pandemia embasados em Rousseau
(1973), Mauss (2003), Park (1967) e Hannerz (2005). Analisamos as novas
configurações de cidade e a reação das pessoas frente às decisões de
retomada da mobilidade, depois de períodos mais intensos de reclusão em
casa. Através de pesquisas bibliográficas que trazem conceitos que dialogam
com o momento presente e de questionário semiestruturado, jovens
estudantes relatam suas experiências. Percebemos que há uma percepção de
si diferenciada enquanto pessoas contextualizadas nesse momento da
história da humanidade. A chamada consciência coletiva (Durkheim, 1995),
trouxe novos elementos de compreensão da realidade para superar os
individualismos passados em vista de compromissos sociais com uma vida
de mais equilíbrio com todos os outros seres que habitam o planeta terra, e
que fazem de todos os envolvidos, cidadãos cada vez mais plenos porque se
apresentam com noções mais claras do que é o bem comum.
Palavras-chave: Pandemia. Pessoa. Cidadão(ã).
*
Aluna de Mestrado em Antropologia Social pela Universidade Federal de Mato
Grosso. E-mail: profmarinalara@gmail.com.
**
Doutor em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Professor adjunto da Universidade Federal de Mato Grosso.
Perspectivas
Abstract: This article aims to raise reflections on collective consciousness in
times of pandemic, based on Rousseau (1973), Mauss (2003), Park (1967)
and Hannerz (2005). We analyzed the new city configurations and people's
reaction to decisions to resume mobility, after more intense periods of
seclusion at home. Through bibliographic research that brings concepts that
dialogue with the present moment and a semi-structured questionnaire,
young students report their experiences. We realize that there is a different
perception of the self as contextualized people at this moment in human
history. There is what we could call a collective conscience, which surpasses
past individualism towards a social commitment with a more balanced life
with all the other beings that inhabit the planet earth, and that make all
citizens more and more full because they present themselves committed to
the service of the common good.
Keywords: Pandemic. Person. Citizen.
5.1 INTRODUÇÃO
Estudos científicos incorporam como epidemias uma ampla
gama de doenças: HIV-AIDS, cólera, peste bubônica, gripe, ebola,
dengue etc. (KECK et al, 2019). Assim, o significado da palavra
epidemia entendida como doença infecciosa que se generaliza sem
controle em uma comunidade se diferencia da pan-demia pelo prefixo,
pois essa incorpora uma dimensão universal de uma doença, por
exemplo, o Covid-19. Nesse sentido, devido aos níveis alarmantes de
disseminação e severidade, e também com os níveis alarmantes de
inação, no dia 11 de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde
(OMS) avaliou que o Covid-19 seria caracterizado como uma
pandemia1.
1
www.who.int/news-room/detail/27-04-2020-who-timeline---covid-19.
94
Reações pessoais frente às novas configurações de cidade...
Dados de contágio e transmissão do Covid-19 são divulgados
em todos os lugares do mundo. O vírus caracteriza-se como mais ou
menos endêmico conforme as ações dos governos dos diferentes
países. Assim, cabe salientar que a origem cultural exerce significativa
influência em vários aspectos da vida das pessoas, inclusive com
relação à saúde e o modo de enfrentar às doenças. Segundo Helman
(2009, p. 13), a cultura engloba:
[...] crenças, comportamento, percepções, emoções, linguagem,
religião, rituais, estrutura familiar, dieta, modo de vestir, imagem
corporal, conceitos de espaço e de tempo e atitudes em relação à
doença, dor e outras formas de infortúnio – todos podendo ter
importantes implicações para a saúde e os cuidados de saúde.
Seguindo o conceito de cultura apresentado por Helman,
pode-se dizer que a cultura influencia diretamente nas ações e reações
da sociedade frente à pandemia, especialmente porque cada sociedade
define suas próprias regras, presunções e crenças. Tais variações de
ações tomadas por um país e outros, também interferem no atual
cenário de crise global. Conforme Boaventura de Sousa Santos (2020
p. 22), este cenário pode ser caracterizado como uma crise grave:
As crises graves e agudas, cuja letalidade é muito significativa e muito
rápida, mobilizam os media e os poderes políticos, e levam a que
sejam tomadas medidas que, no melhor dos casos, resolvem as
consequências da crise, mas não afectam as suas causas. Pelo
contrário, as crises graves mas de progressão lenta tendem a passar
despercebidas mesmo quando a sua letalidade é exponencialmente
maior. A pandemia do coronavírus é o exemplo mais recente do
primeiro tipo de crise.
Ademais, no contexto de estudo das epidemias, para o
enfrentamento de crises frente às doenças infecciosas, percebemos a
necessidade de ação imediata, uma vez que:
95
Perspectivas
De natureza episódica e excepcional, as epidemias são uma crise em
tempo real que impele uma resposta imediata [...]. Iluminando os
contornos geopolíticos e as consequências da biossegurança, os
antropólogos demonstraram como as epidemias, ou melhor, sua
ameaça iminente, fornecem o pretexto para a extensão do poder
governamental em todas as formas de vida e modos de vida (KECK,
2019, p. 3).
Percebemos que a caracterização do Brasil como um país “em
crise” não é de hoje. Em um estudo intitulado Health, Hygiene and
Sanitation in Latin America, são estudadas as condições da América
Latina entre os anos de 1870 e 1950, reconhecemos que muitas
batalhas que vivemos hoje no Brasil carecem da mesma falta de um
plano claro de enfrentamento da doença, pois o governo brasileiro
vinha num processo de desmonte do Sistema Único de Saúde (SUS)
para jogá-lo na mão da iniciativa privada, conforme aponta
Christopher Abel (1996, p. 34):
Os reformadores da saúde pública se viam conduzindo várias
batalhas simultâneas: ciência versus ignorância; ciência versus
erudição; ciência versus defesa do estado minimalista e baixa
tributação; ciência versus os interesses arraigados dos oligarcas e
coroneis rurais.
A necessidade de respostas imediatas frente a uma crise de
saúde pública está diretamente ligada às ações do governo ou à falta
delas, como tem sido o caso do Brasil. O preparo dos governantes e
dos países para lidar com crises emergentes é colocado em xeque a
cada minuto, e a sensação de insegurança da população pode alterar
consideravelmente o rumo dos fatos, ou seja:
[...] qualquer evento de saúde pública pode enfraquecer a confiança
do público na capacidade do governo de responder a emergências,
minar a ordem social de uma nação, catalisar a instabilidade regional
96
Reações pessoais frente às novas configurações de cidade...
ou causar impacto econômico adverso, incluindo restrições
comerciais (KHAN et al, 2010, p. 1237).
No caso específico do Brasil, o que estamos vivendo é uma crise
generalizada que advém, especialmente, de ações tardias ou mesmo
errôneas. Uma atitude que simboliza o caos vivido pelo país foi o fato
de o presidente da república ter provocado aglomerações, passeando
sem máscara (item obrigatório de utilização por toda a população para
evitar transmissão e contágio), um dia após o Brasil ter se tornado o
quinto país do mundo com mais mortes por Covid-19, em maio de
20202.
Apesar dos problemas enfrentados durante esse período, “com
diligência e ação concertada em vários níveis, as ameaças colocadas
pelas doenças infecciosas emergentes podem ser, se não eliminadas,
pelo menos significativamente moderadas” (LEDERBERG et al.,
1992, p. 32). Não discutiremos nesse trabalho sobre o teor das ações
que devem, ou não, ser tomadas por parte das autoridades políticas e
das instituições de ensino. Por outro lado, dialogaremos sobre as
consequências do que foi e está sendo feito até o presente momento
entre os jovens estudantes.
Frente a contextos anteriormente vivenciados no Brasil com
relação a doenças, é possível destacar questões abordas, por exemplo,
no período da febre amarela, época em que foi possível observar um
intenso desenvolvimento de práticas individuais e coletivas para a
contenção da transmissão, bem como se tratou de um momento
propício para se discutir, conceitualmente, sobre doença e incorporar
na experiência social-cultural formas recorrentes de descontrole
governamental. Ao olhar para o passado, percebemos que a pandemia
do Covid-19, malgrado todas as suas mazelas, surge como uma boa
2
www.cnnbrasil.com.br/politica/2020/05/30/bolsonaro-volta-a-passear-sem-mascara-eprovocar-aglomeracoes-durante-pandemia.
97
Perspectivas
oportunidade para refletirmos, pois, se comparada com a febre
amarela, parece que só mudou o nome da doença e o transmissor.
Segundo Charles Rosenberg (in Löwy, 2006, p. 19):
[...] a doença é ao mesmo tempo um acontecimento biológico, um
repertório de construções verbais que refletem a história intelectual
e institucional da medicina numa dada geração, um aspecto da
política e uma legitimação desta política, uma entidade que
potencialmente define um papel social, um componente das normas
culturais e um elemento que estrutura as relações médico/doente.
A partir disso, entendemos que a doença pode ser descrita
como “um fenômeno biocultural, uma mistura de elementos
independentes da vontade humana e de elementos elaborados pelos
homens” (LÖWY, 2006, p. 19). A noção de movimentos
interdependentes entre biologia e cultura, nos coloca a pensar
socialmente sobre a crise ocasionada por essa pandemia do Covid-19,
especialmente no que tange à subjetividade das pessoas que vivem esse
momento. Em termos biológicos, sobrevivência significa ajustamento
bem-sucedido à crise, tipicamente acompanhado por uma
modificação de estrutura. Significa no ser humano um estímulo
mental e maior discernimento ou, no caso de fracasso, também de
certa depressão mental (THOMAS, 1912, p. 736). Percebemos que o
estado de medo se alastra, e o consequente pânico coletivo é
evidenciado. Giorgio Agamben, em seu texto incluso no livro Sopa de
Wuhan, sugere o círculo vicioso perverso causado pelo constante
estado de medo, e relaciona as emoções com o controle do governo
sobre nós: “la limitación de la libertad impuesta por los gobiernos es aceptada
en nombre de un deseo de seguridad que ha sido inducido por los mismos
gobiernos que ahora intervienen para satisfacerla” (AGAMBEN, 2020, p.
19). Há uma falsa sensação de segurança, que nos apresenta as novas
formas de vigilância vividas em períodos de pandemia.
98
Reações pessoais frente às novas configurações de cidade...
5.2 CENÁRIO CONTAMINADO: O CORONAVÍRUS NA
CIDADE
Apresentamos aqui as contribuições da Antropologia Urbana
para esta pesquisa, e a importância de voltarmos a atenção para nossa
própria sociedade:
[...] a ciência da antropologia não se preocupa somente com o
selvagem nu, mas com o homem ou a mulher com calça plus fours
ou vestido de gala. Para o verdadeiro homem de ciência, pouco
importa se ele está lidando com o subúrbio ou com a selva, com a
dança de jazz moderno ou com a orgia sexual selvagem, a mágica da
floresta mágica ou o deísmo antropomórfico de um verdureiro
suburbano, as curas e feitiços do pagé de Bantu ou a obra de um
membro do Royal College of Physicians. A diferença entre nós e os
selvagens muitas vezes é mais aparente do que real; uma calça plus
fours pode esconder um bruto, e uma camada de tinta pode encobrir
um coração sensível (DUFF apud HANNERZ, 2005, p. 22).
Segundo Hannerz (2005, p. 22) “isso também é uma
contribuição da antropologia aos estudos urbanos: a antropologia
urbana como instrumento pelo qual os habitantes da cidade possam
pensar de maneira nova sobre o que se passa ao seu redor”.
Para compreendermos as novas configurações de cidade, que
foram especialmente alteradas em decorrência da pandemia pelo novo
coronavírus, relembro que importantes medidas foram tomadas pelas
autoridades para conter o avanço da doença a nível mundial. Dois
termos surgiram para restringir ou limitar a circulação das pessoas:
quarentena e isolamento social. A palavra quarentena foi usada,
inicialmente, em Veneza, na Itália, em 11273. Os termos diferem-se:
3
O termo foi utilizado em relação à hanseníase e foi amplamente usada em resposta
à Peste Negra e trata-se de uma reclusão das pessoas em casa para evitar o contágio.
Está relacionado aos quarenta dias no deserto que Jesus Cristo passou e aos
99
Perspectivas
isolamento social diz respeito à separação das pessoas que foram
diagnosticadas com uma doença contagiosa, mas que não estão
doentes, enquanto a quarentena “é a separação e restrição de
movimento de pessoas que foram potencialmente expostas a uma
doença contagiosa para verificar se elas ficam mal, reduzindo assim o
risco de infectar outras pessoas” (BROOKS et al., 2020 p. 912). Nosso
campo de estudo neste trabalho é a cidade de Cuiabá, capital do Mato
Grosso 4 . Devemos pensar para além das fronteiras geográficas do
conceito atribuído à cidade, uma vez que ela é muito mais do que um
aglomerado de pessoas e edificações: a cidade é um estado de espírito
(cf. PARK, 1967, p. 26). Nós pesquisadores vivenciamos
conjuntamente o cenário contaminado da pandemia e desejamos
entender as percepções antropológicas desse momento através da
coleta de dados. Sabemos que nossos dados nada mais são do que
nossa própria construção das construções de outras pessoas e que,
quando bem coletados, falam por si mesmos (CARDOSO, 1986;
GEERTZ, 1989).
Atualmente, relatamos fatos ocorridos em Cuiabá no contexto
de isolamento social que têm mudado profundamente as
configurações dessa cidade que, para fins sociológicos, pode ser
definida como um núcleo relativamente grande, denso e permanente,
de indivíduos socialmente heterogêneos (cf. WIRTH, 1967, p. 96).
Para entender fatos e atores, um questionário semiestruturado foi
quarenta dias de quaresma antes da Páscoa, ou, como já incorporado pelos
Chiquitanos, os quarenta dias que a mulher fica em resguardo quando ganha um
filho(a).
4
Várzea Grande é uma cidade localizada no lado oposto do rio Cuiabá, uma
fronteira visível entre outras tantas invisíveis. Alguns estudantes do colégio também
são dessa cidade, por isso, sempre que falar em Cuiabá, não faço uma distinção
radical dessa outra cidade, pois morar do lado de lá ou de cá, parece não fazer tanta
diferença nessa pesquisa.
100
Reações pessoais frente às novas configurações de cidade...
respondido por 50 jovens de 14 a 18 anos. Segundo Bernard (2006),
o questionário é considerado o coração da pesquisa social porque é
uma das principais técnicas de coleta de dados empregada no método
de pesquisa. Demos preferência a esse tipo de coleta em detrimento
das novas conjunturas não nos permitirem encontrar presencialmente
os participantes da pesquisa. Evidenciamos que cada estudante, “ao
falar do que sente, comunica-se consigo mesmo através dos outros,
compreendendo, por meio desta expressão, aquilo que sente”
(REZENDE e COELHO, 2010, p. 62).
Inicialmente, percebemos que o cenário da pandemia trouxe
significativos questionamentos e percepções sobre mobilidade.
Segundo Park (1967, p. 41), o termo mobilidade, da mesma forma que
seu correlativo isolamento, cobre uma ampla gama de fenômenos.
Pode, ao mesmo tempo, representar um caráter e uma condição.
Ademais, nas condições atuais da cidade, os dois termos relacionamse diretamente com a noção de liberdade do indivíduo. Nesse
contexto, Agamben (2020) é um dos autores que questiona
intensamente os poderes do Estado para impor à população a
quarentena e, na mesma obra, González (AGAMBEN et al., 2020)
reitera que a instalação de restrições de liberdades reforça o
sentimento de medo na população.
Percebemos que, após três meses de isolamento social, o
sentimento de algumas pessoas é de impotência, pois há um direito
nato de “ir e vir” que lhe foi tirado temporariamente. Entre os relatos
observados entre os jovens, percebemos aqueles que inicialmente
estavam contentes com a ideia de isolamento social, mas que logo
foram tomados pela noção de realidade, como aconteceu com M, 15
anos:
Sinceramente eu achei incrível! Férias adiantadas porque estaria sem
aulas, mas conforme o tempo foi passando, hoje tudo o que eu
101
Perspectivas
quero é que tudo volte ao normal e que nós tenhamos a liberdade
de vivermos livres por aí, sem se preocupar mais com o Covid-19 [...].
Segundo Rousseau (1973, p. 249), um dos autores que
influenciou a Antropologia pela sua concepção do ser humano
enquanto um agente livre, que faz escolhas por ato de liberdade5, não
pelo instinto:
Não é, pois, tanto o entendimento quanto a qualidade de agente
livre possuída pelo homem que constitui, entre os animais, a
distinção específica daquele. A natureza manda em todos os
animais, e a besta obedece. O homem sofre a mesma influência, mas
considera-se livre para concordar ou resistir, e é sobretudo na
consciência dessa liberdade que se mostra a espiritualidade de sua
alma, pois a física de certo modo explica o mecanismo dos sentidos
e a formação das ideias, mas no poder de querer, ou antes, de
escolher e no sentimento desse poder só se encontram atos
puramente espirituais que de modo algum serão explicados pelas leis
da mecânica.
O excesso de crises pessoais pela falta de liberdade, considerada
consequência da restrição da mobilidade, sugere que a cidade
necessita do movimento que articula todos os seus atores: a
mobilidade da população é inquestionavelmente um fator importante
de seu bem-estar social e desenvolvimento intelectual (PARK, 1967, p.
41). Com esse pensamento em mente, alguns relatos deste trabalho
começam a ser justificados quando as pessoas isoladas socialmente
sugerem um decréscimo em sua produção intelectual. Ademais, “a
interação com redes de relações mais amplas e diversificadas afeta o
desempenho dos papéis sociais” (VELHO, 1978, p. 20). Sobre a
5
Fazer escolhas é um ato de liberdade, o cachorro não faz escolha entre um prato e
outro de comida, ele segue o instinto e come, se ele conseguir cheirar o veneno
talvez evite, mas não faz escolhas conscientes e nem reflete sobre elas.
102
Reações pessoais frente às novas configurações de cidade...
ausência de estímulos providos das interações e mobilidade, Wirth
(1967, p. 104) nos diz que:
A crescida mobilidade do indivíduo, que o coloca dentro do campo
de estímulos recebidos de um grande número de indivíduos
diferentes e o sujeita a um status flutuante no seio de grupos sociais
diferenciados que compõem a estrutura social da cidade, tende para
a aceitação da instabilidade e insegurança no mundo como norma
geral.
As novas circunstâncias e o questionamento entre ficar ou não
em casa enquanto o “inimigo” está a solta, nos coloca a pensar nas
características das relações, em como elas se fundamentam e como
nossas escolhas são – ou não – direcionadas ao bem coletivo.
Relembramos Simmel (1967) 6 , ao entendermos que é necessário a
compreensão do contexto quando falamos da noção de indivíduo. Por
um lado, os sensatos – para quem? – julgam que uma cidade com
pessoas isolados socialmente apresenta o caminho para o fim da
disseminação do vírus que assola e enterra famílias. Por outro lado,
governantes federais estimulam a retomada da economia, e parte do
comércio municipal começa a funcionar aguardando os indivíduos
decidirem se estão do lado da vida ou da economia, como sugerem os
mais críticos. Um dos estudantes entrevistados, quando questionado
sobre sua opinião em relação ao comportamento dos indivíduos no
período de distanciamento social, relata que “o coletivo nada mais é
que a composição de indivíduos que se aliam em algumas discussões,
mas se desviam da cooperação coletiva quando seus interesses são
prejudicados” (M, 18 anos). Podemos relacionar a opinião do
6
“O indivíduo é pressionado, de todos os lados, por sentimentos, impulsos e
pensamentos contraditórios, e de modo algum ele saberia lidar com segurança interna
entre suas diversas possibilidades de comportamento – que dirá com certeza objetiva.”
(SIMMEL, 2006, p. 40).
103
Perspectivas
estudante M, 18 anos, com a hipocrisia de pessoas que inicialmente se
mostraram favoráveis ao distanciamento social, mas quando viram
que a economia e o futuro de seus negócios seriam severamente
prejudicados, optaram por mudar de lado. F, 17 anos, descreve
claramente sua percepção sobre a hipocrisia vivida nos tempos de
pandemia: “percebi que muitos tem zero consciência coletiva e outros
vivem de hipocrisia, por exemplo, nas redes sociais pregam ‘fiquem em
casa’ e vão para festas ou casas de amigos. Outro exemplo de
percepções de ações que não refletem o bem-estar comum pôde ser
visto na resposta da estudante F, 15 anos:
[...] apesar de muitas pessoas estarem sendo responsáveis, saindo do
isolamento apenas para fazer o indispensável, porém, também tem
muitas pessoas que desrespeitam o isolamento, e fazem festas
clandestinas, o que contribui com o aumento do número de casos,
e consequentemente de mortes, dificultando o controle da
pandemia.
Quando tratamos dessas ações ou restrições individuais, o que
tem sido amplamente discutido são os direitos individuais e se o
Estado pode impor restrições tamanhas aos cidadãos que não são
simplesmente indivíduos, mas pessoas humanas, com liberdade,
sujeitos social e culturalmente localizados. O coletivo certamente está
acima do indivíduo, mas não existe sem o concreto das pessoas. Aqui
recordamos a noção de consciência coletiva proposta por Durkheim
(1995)7. Neste sentido, evidenciamos a insegurança da ação individual
que fica mais latente nos estudantes mais novos e tende a ser mais
comprometida e segura entre os estudantes que já passaram pela fase
7
Segundo o autor, a consciência coletiva é formada pelo conjunto de ideias,
conceitos e categorias elaboradas em uma sociedade que determinam a conduta
dos seus membros como regras sociais, porque está além dos indivíduos (In: Da
Divisão Social do Trabalho. Martins Fontes: São Paulo, 1995).
104
Reações pessoais frente às novas configurações de cidade...
do egocentrismo. Na escolha de um dos “lados” nesse momento em
que vivenciamos papéis diferenciados na sociedade, temos que:
Entendendo a personalidade social como um cluster of roles
(Gluckman, op. cit.), há que entender os diferentes contextos em que
são desempenhados os papéis para perceber a gramática e lógica do
comportamento
individual,
inclusive
as
possíveis
incompatibilidades e contradições (VELHO, 1978, p. 34).
É importante ressaltar que a ausência das relações entre os
grupos primários, face a face, podem sugerir o crescimento de uma
falta de empatia entre as pessoas, uma vez que, quando inseridas no
grupo, há uma tendência ao nós. Uma prova disso é o relato de F, 15
anos, quando perguntada sobre sua opinião acerca do
comportamento das pessoas na pandemia: “extremamente egoístas,
somente pensando em si e não no todo”. De uma maneira enfática,
direta e sensível, outra estudante F, 15 anos, resume a falta de empatia
percebida no momento:
[...] as pessoas que não estão respeitando o distanciamento acho que
é falta de empatia com as pessoas que estão ficando em casa, falta de
empatia principalmente com muitas pessoas que estão morrendo,
famílias e amigos que estão perdendo pessoas que eles amam e com
os que trabalham na área da saúde, dando o seu máximo e se
arriscando para poder salvar vidas enquanto pessoas que só sabem
olhar para o próprio umbigo são inconsequentes e não tem noção
do momento que estamos vivendo!
Em contrapartida, o depoimento objetivo e forte de F, 15 anos,
nos faz perceber sua consciência quando relata sobre as mudanças
percebidas com o passar dos meses: “eu entendi que é uma questão de
termos paciência e que enquanto eu estou sentindo falta de ir no
shopping fazer compras, existem pessoas sentindo falta de alguém que
amava e que acabaram perdendo por causa desse vírus.” Claramente
percebemos que a questão conjuntural de mobilidade não se sobrepõe
105
Perspectivas
aos sentimentos vividos pelas pessoas. Temos aqui um claro exemplo
de pessoa que está vivendo muito além de sua bolha individual.
Trazemos neste momento as importantes contribuições de
Mauss (2003) sobre a noção de pessoa, categoria analisada que
contextualiza a necessidade da antropologia ir além das ciências exatas
e trazer à baila uma oposição à ideia de mero indivíduo, como se isso
fosse possível na sociedade. O autor nos diz que:
[...] uma das categorias do espírito humano – uma dessas ideias que
acreditamos inatas - lentamente surgiu e cresceu ao longo dos
séculos e através de numerosas vicissitudes, de tal modo que ela
ainda é, mesmo hoje, flutuante, delicada, preciosa, e passível de
maior elaboração. É a idéia de "pessoa", a idéia do "Eu". (MAUSS,
2003, p. 369).
Ainda não está dito, mas a antropologia vai chegar a
compreender que as relações fazem a pessoa humana e, mesmo que as
relações presenciais é que geram tradicionalmente vínculos de amor,
ou seja, mesmo que estas estejam sendo substituídas por relações
remotas, ainda assim, são densas e complexas na constituição das
identidades sociais. Por isso vamos tratar aqui da importância de certa
intimidade que configura as pessoas com identidades próprias,
culturalmente localizadas, não indivíduos individualistas, que reforçam
a ideologia dominante do individualismo que assola a humanidade de
tal forma que nos trouxe essa pandemia. Assim, psicologicamente, o
resultado da associação íntima seria uma certa fusão das pessoas em
um todo comum (PARK, 1987), de tal forma que cada pessoa se torna
mais pessoa quando é altruísta e se dispõe a propósitos comuns do
grupo.
Neste ponto questionamos a ausência das relações presenciais,
e como as consequências dessa falta afetam o cenário vivido na cidade,
onde o novo normal consiste em seguir seu trajeto apenas em casos de
106
Reações pessoais frente às novas configurações de cidade...
necessidade. Aqui insiro um dos grandes atores desse trabalho: a
escola. As escolas da cidade já não são mais povoadas por jovens
estudantes e professores. Logo, essa instituição, que há tanto tempo
tem assumido algumas funções da família, visto que algo como um
novo espírito de vizinhança e comunidade tendiam a se organizar em
volta da escola, agora é impulsionada a uma nova solicitude pelo bemestar físico e moral das crianças. Para Tuan (1983, p. 83), “quando o
espaço nos é inteiramente familiar, torna-se lugar”. Algumas perguntas
cabem nesse momento: qual espaço da cidade é agora ocupado por
essas pessoas? Será que as pessoas isoladas se identificam com os
espaços que agora são obrigadas a ocupar? O problema central do
sociólogo-antropólogo da cidade é descobrir as formas de ação e
organização social que emergem em grupamentos compactos,
relativamente permanentes, de grande número de pessoas altamente
criativas, culturalmente identificadas, mas heterogêneos (WIRTH,
1967, p. 97).
Através das análises, percebo que a casa e a família são lugares
de pertencimento que ganharam mais relevância neste momento. As
novas configurações sugerem uma nova forma de vivenciar a casa com
um lugar de estudo, e as relações familiares se tornaram mais visíveis,
públicas. Famílias que antes quase não se encontravam neste
ambiente, pessoas que não tinham costume de fazer refeições
conjuntamente, hoje são condicionadas pelas circunstâncias a estarem
juntas, e estarem em casa, fazendo dela o seu “canto do mundo”
(BACHELARD, 1993, p. 200). Um dos alunos entrevistados nesta
pesquisa, M 16 anos, relata que uma das coisas que mudou em sua
vida com o passar dos meses foi, justamente, “o modo com que eu
convivia com minha família”. A aluna F, 16 anos, acrescenta: “tudo
mudou. Meu relacionamento com a minha família, com o meu corpo,
com minha fé. Sacudiu as bases que eu construí para que fossem
fortalecidas”.
107
Perspectivas
Segundo Bachelard (1993), a casa é, como se diz
frequentemente, nosso primeiro universo. “É um verdadeiro cosmos.
Um cosmos em toda a acepção do termo. Até a mais modesta
habitação, vista intimamente, é bela.” (BACHELARD, 1993, p. 200).
Percebemos que os novos movimentos fizeram as pessoas pararem
para apreciar a beleza de suas moradias. Alguns jovens que
entrevistamos para esse trabalho contam sobre a alegria de estarem
recriando, redecorando, aquele que sugerem ser os seus espaços na
moradia: especialmente seus quartos.
Essa noção de moradia, do valor da casa, passava bastante
despercebida, conforme aponta Bachelard (1993, p. 200): “nossa vida
adulta é tão despojada dos primeiros bens, as ligações
antropocósmicas se encontram tão desguarnecidas, que não sentimos
seu primeiro vínculo no universo da casa”.
É interessante percebermos o evidente movimento dos
estudantes voltando-se para suas famílias, para a percepção das suas
moradias, pois agora ganhou relevância algo que já estava aí, mas não
era refletido. Entretanto, existem outros locais possíveis de convívio
que os estudantes já usavam bastante que são as Tecnologias Digitais
de Informação e Comunicação - as chamadas TDICs. Mesmo que seja
lamentável a falta de aula presencial, por faltarem alguns elos que
somente são possíveis com a presença, a vivência dos afetos pode ser
continuada através dos meios de comunicação, e assim percebemos
que eles não estavam isolados de modo algum, mas vivendo suas
relações interpessoais da maneira que foi possível. Um estudante foi
enfático: “acho que eu amadureci muito com tudo isso que aconteceu,
sou uma pessoa totalmente diferente do começo do ano”. Ademais,
outros estudantes foram mostrando os detalhes das diversas relações
que mantiveram neste tempo de reclusão, que parece mais como um
tempo de retiro espiritual, que permitiu profunda conexões consigo
mesmo, por exemplo: “Mudei minha concepção sobre a capacidade
108
Reações pessoais frente às novas configurações de cidade...
do indivíduo de mudar ou até mesmo de respeitar o limite dos
outros”. (F, 17 anos); “O distanciamento social colaborou para
desenvolver minha empatia, tanto com as pessoas próximas, quanto
como parte de uma sociedade que precisa melhorar”. (F, 15 anos). A
síntese a seguir se apresenta como um tesouro: “Eu me tornei uma
pessoa mais madura, consegui analisar e conviver com as situações que
vivemos, e isso me fez uma pessoa forte e mais sábia.” (M, 15 anos).
Registramos também um relato mais profundo, desejando expressar
sentimentos inusitados:
Psicológico principalmente, a mudança de rotina, a falta de contato
com amigos e a presença dos seus familiares o tempo todo contigo
faz muitas coisas mudarem, meu pensamento era que eu precisava
quase sempre ter um amigo do meu lado, porém isso mudou, a
quarentena me ensinou a ficar bem com a minha própria
companhia, aprender a lidar melhor com minha família (eu esperava
mais brigas e houve muito poucas kk), me mostrou quem são os
amigos de verdade e que nem sempre eu necessito deles para fazer
algo. Meu psicológico não vai sair dessa quarentena tão quebrado
como eu esperava... Acho que autoconhecimento foi o ponto que
mais me pegou (F, 15 anos).
Agora, com a obrigatoriedade do convívio dentro das casas,
especialmente nesse momento de insegurança, é importante
relembrar o conforto de ter um espaço que é meu, faz-me no meu
íntimo como a cama ou a rede, mas também a família: “contra tudo,
a casa nos ajuda a dizer: serei um habitante do mundo, apesar do
mundo” (ibid, 1993, p. 227). Como nos recorda Clarice Lispector,
devemos ir além de nossas limitações e, sobretudo, se deve viver apesar
de - visto que, muitas vezes, é o próprio apesar de que nos empurra para
a frente (Lispector, 1998).
Nesse período de mudanças e incertezas, um relato simples,
objetivo e de uma sensibilidade admirável foi feito por F, 15 anos,
resumiu o que temos vivido: “tudo mudou, eu mudei, o mundo
109
Perspectivas
mudou.” Apesar de vivermos em um momento caótico a nível mundial,
o relato da jovem F, 16 anos enche nosso coração de esperança sobre
como muitos indivíduos poderão sair dessas experiências com
característica de pessoa:
Eu sou uma pessoa completamente diferente da que era antes. Com
certeza evolui minha forma de pensar e agir (apesar de haver ainda
mais aspectos que preciso trabalhar -sempre temos que buscar a
mudança). Não menciono a saudade como ponto principal pois não
foi isso o que realmente me afetou, mas sim o entendimento de
como uma sociedade funciona no íntegro, ou seja, o sofrimento e
dor coletivo, a ajuda de cada um que faz a diferença, a busca pela
solução dos problemas, etc. Eu pude ‘sair do meu mundo’ e
visualizar um plano geral da vida em si, pude refletir no que a vida
significava e no meu papel como humano, filha de Deus. Ainda sim,
me encontrei no meu eu mais íntimo, no meu microcosmos, onde
aprendi que saúde é uma coletânea de fatores (físicos, emocionais,
psíquicos, sociais e mentais) que são, ao meu ver, a resposta para um
mundo tão caótico e doente, pois seus habitantes (nós) são assim.
Enfim, foi e é uma experiência muito especial ( no sentido bom e
ruim) que espero levar o que aprendi para minha vida.
REFERÊNCIAS
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Londres, 1996.
AGAMBEN, Giorgio et al. Sopa de Wuhan. Editorial: ASPO
(Aislamiento Social Preventivo y Obligatorio). Marzo 2020.
Disponível em: https://bit.ly/sopadewuhan.
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