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O retorno dos bens culturais

2017, Revista de Direito Internacional

O presente artigo analisa a possível existência de obrigação jurídica internacional dos Estados de atender aos pedidos de devolução de bens culturais para seus países de origem. Esses pedidos de retorno de bens culturais que foram retirados no final do século XIX intensificaram nos últimos 30 anos. Algum desses bens culturais retornaram recentemente para o seu respectivo país de origem, dentre eles as joias de Troia e peças arqueológicas do Machu Picchu. No entanto, outros bens continuam em museus fora de seu país de origem, apesar de diversos apelos para o seu retorno, este é o caso dos mármores do Partenon. Por meio de um estudo de casos e normas internacionais, procura-se analisar os argumentos contrários e a favor do retorno desses artefatos, além da solução dada pelo direito internacional para atender tais demandas. Especial atenção será dada ao caso do canhão “El Cristiano”, envolvendo Brasil e Paraguai. Em conclusão, não foi encontrada uma obrigação jurídica internacional par...

O retorno de bens culturais Return of cultural property Aziz Saliba Alice Lopes Fabris Sumário I. CrônICas do dIreIto InternaCIonal ..........................................................1 CrôniCas do direito internaCional públiCo ........................................................................ 3 a resolução 2272 (2016) do Conselho de segurança das nações unIdas – o posICIonamento da onu faCe às alegações de abuso e exploração sexual por suas tropas de paz ..................................................................................................................... 3 Sarah Dayanna Lacerda Martins Lima CrôniCas de direito internaCional privado....................................................................... 9 Nadia de Araujo, Marcelo De Nardi, Gustavo Ribeiro, Fabrício Polido e Inez Lopes I. atos e fatos InternaCIonaIs ..................................................................................... 9 CrônICa 1. novIdades de 2017 sobre CIrCulação faCIlItada de sentenças estrangeIras 9 CrônICa 2: o dIreIto transnaCIonal e os epIsódIos das Carnes ....................................16 II. deCIsões .................................................................................................................20 CrônICa 3: a IrresIstível força da ordem públICa e a homologação de sentenças estrangeIras pelo stJ .....................................................................................................20 III. legIslação doméstICa ou Comparada ..................................................................26 CrônICa 4 - dIgnIdade da pessoa humana e mudança de paradIgma da leI de mIgração no brasIl ..........................................................................................................................26 II. dossIê espeCIal: dIreIto InternaCIonal dos InvestImentos .................35 non-adJudICatory state-state meChanIsms In Investment dIspute preventIon and dIspute settlement: JoInt InterpretatIons, fIlters and foCal poInts .....................37 Catharine Titi mappIng the dutIes of prIvate CompanIes In InternatIonal Investment law ...........50 Nitish Monebhurrun la légalIté de l’InvestIssement devant l’arbItre InternatIonal: à la reCherChe d’un poInt d’équIlIbre .............................................................................................................73 Hervé Ascensio host states and state-state Investment arbItratIon: strategIes and Challenges ......81 Murilo Otávio Lubamdo de Melo rIght to regulate, margIn of appreCIatIon and proportIonalIty: Current status In Investment arbItratIon In lIght of philip Morris v. UrUgUay......................................95 Giovanni Zarra Investments on dIsputed terrItory: IndIspensable partIes and IndIspensable Issues ....122 Peter Tzeng the InfluenCe of general exCeptIons on the InterpretatIon of natIonal treatment In InternatIonal Investment law ............................................................ 140 Louis-Marie Chauvel uma proposta de reflexão sobre os aCfIs: até que ponto o tratamento de nação maIs favoreCIda pode mInar a estratégIa polítICa que os embasa? ....................................... 160 Michelle Ratton Sanchez Badin, Daniel Tavela Luis e Mario Alfredo de Oliveira eCuador’s 2017 termInatIon of treatIes: how not to exIt the InternatIonal Investment regIme ......................................................................................................... 179 Jose Gustavo Prieto Muñoz one belt, one road: novas InterfaCes entre o ComérCIo e os InvestImentos InternaCIonaIs ............................................................................................................... 193 Flávio Marcelo Rodrigues Bruno e Marilda Rosado de Sá Ribeiro III. artIgos sobre outros temas................................................................. 214 tolerânCIa e refugIo: um ensaIo a partIr do aCordo eu-turquIa ............................ 216 Flávia Cristina Piovesan e Ana Carolina Lopes Olsen o tratamento do apátrIda na nova leI de mIgração: entre avanços e retroCessos...237 Jahyr-Philippe Bichara o Caráter humanIsta da leI de mIgrações: avanços da leI n. 13.445/2017 e os desafIos da regulamentação ........................................................................................................254 Marcelo Dias Varella, Clarice G. Oliveira, Mariana S.C. Oliveira e Adriana P. Ligiero reform of the unIted natIons seCurIty CounCIl: the emperor has no Clothes.268 Ljubo Runjic a IdeIa de que os latIno-amerICanos preferem o autorItarIsmo à demoCraCIa à luz da reInterpretação dos CrItérIos do programa das nações unIdas para o desenvolvImento ..........................................................................................................286 Gina Marcilio Pompeu e Ana Araújo Ximenes Teixeira a proteção da orIentação sexual e IdentIdade de gênero dIversas na Corte penal entre realpolItIks e os dIreItos humanos ..................................... 313 InternaCIonal: Gustavo Bussmann Ferreira a desnaCIonalIzação e as vIolações de dIreItos humanos na repúblICa domInICana. 331 Daniela Menengoti Gonçalves Ribeiro e Rodrigo Ichikawa Claro Silva CompetênCIa do tpI no Caso do ataque ao hospItal de kunduz: uma análIse envolvendo a JurIsdIção do tpI em relação a naCIonaIs de estados não-parte do estatuto de roma .........................................................................................................349 Filipe Augusto Silva e Renata Mantovani de Lima a CrImInalIzação dos ImIgrantes em sItuação Irregular na ItálIa: bIopolítICa e dIreIto penal do autor...............................................................................................................369 Maiquel Angelo Dezordi Wermuth e Jeannine Tonetto de Aguiar the new rules on trade and envIronment lInkage In preferentIal trade agreements ...................................................................................................................389 Alberto do Amaral Júnior e Alebe Linhares Mesquita beyond the border between the north and the south: towards a deColonIzatIon of epIstemologIes and fIelds of researCh on merCosur .................................................. 413 Karine de Souza Silva a aplICabIlIdade da Convenção de montreal no dIreIto brasIleIro...........................430 Aziz Tuffi Saliba e Alexandre Rodrigues de Souza regIme de transparênCIa fIsCal na trIbutação dos luCros auferIdos no exterIor (CfC rules): laCunas e ConflItos no dIreIto brasIleIro ......................................................450 Paulo Rosenblatt e Rodrigo Torres Pimenta Cabral as regras brasIleIras de trIbutação de Controladas e ColIgadas no exterIor: verdadeIras Controlled foreIgn Company (CFC) rUles? ...........................................465 Melina de Souza Rocha Lukic e Amanda Almeida Muniz o retorno de bens CulturaIs ........................................................................................490 Aziz Saliba e Alice Lopes Fabris dIreItos CulturaIs e nações unIdas: uma análIse a partIr da deClaração sobre a elImInação de todas as formas de IntolerânCIa e dIsCrImInação baseadas na relIgIão ou na Crença ................................................................................................................. 511 Leilane Serratine Grubba e Márcio Ricardo Staffen os reflexos da proteção InternaCIonal da proprIedade InteleCtual para o desenvolvImento Interno: uma análIse sobre o sIstema patentárIo brasIleIro e a transferênCIa de teCnologIa........................................................................................525 Michele M. Segala e Isabel Christine S. De Gregori o Caso hIpotétICo da morte do embaIxador franCês na espanha: duas espéCIes de iUs gentiUM em franCIsCo de vItorIa ..................................................................................537 Rafael Zelesco Barretto de volta à bevIlaqua: análIse eConômICa da aplICação do art. 9º da lIndb às obrIgações CIvIs ContratuaIs .........................................................................................566 Danielle Cristina Lanius e Ivo Teixeira Gico Jr doi: 10.5102/rdi.v14i2.4663 O retorno de bens culturais* Return of cultural property Aziz Saliba** Alice Lopes Fabris*** RESUMO O presente artigo analisa a possível existência de obrigação jurídica internacional dos Estados de atender aos pedidos de devolução de bens culturais para seus países de origem. Esses pedidos de retorno de bens culturais, que foram retirados no final do século XIX, intensificaram-se nos últimos 30 anos. Algum desses bens culturais retornaram, recentemente, para o seu respectivo país de origem, dentre eles as joias de Troia e peças arqueológicas do Machu Picchu. No entanto, outros bens continuam em museus fora de seu país de origem, apesar de diversos apelos para o seu retorno, este é o caso dos mármores do Partenon. Por meio de um estudo de casos e normas internacionais, procura-se analisar os argumentos contrários e a favor do retorno desses artefatos, além da solução dada pelo direito internacional para atender tais demandas. Especial atenção será dada ao caso do canhão “El Cristiano”, envolvendo Brasil e Paraguai. Em conclusão, não foi encontrada uma obrigação jurídica internacional para o retorno desses bens retirados antes de 1970, no entanto, observa-se uma prática cada vez mais recorrente de devolução em boa-fé do patrimônio cultural para o seu país de origem. Palavras-chave: Retorno de bens culturais. Proteção do patrimônio cultural. Direito internacional. UNESCO. Canhão El Cristiano. ABSTRACT * Recebido em 28/05/2017 Aprovado em 02/09/2017 ** Doutor em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Cursou mestrado em Direito Internacional (International Trade Law) na University of Arizona. É professor e vicedireitor da Faculdade de Direito da UFMG. Diretor de Estudos do Ramo Brasileiro da International Law Association. Diretor de Direito Internacional do Instituto dos Advogados de Minas Gerais. E-mail: azizsaliba@gmail.com *** Mestranda em Direito Internacional Contemporâneo pela Universidade Federal de Minas Gerais. Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Foi bolsista de iniciação científica, com bolsa do CNPq. Email: alice.lfabris@gmail.com The present paper analyses the potential existence of a legal international obligation of States to fulfil requests of restitution of cultural property to their respective country of origin. Requests for the return of cultural property taken from the territory of States in the late 19th century have intensified over the last 30 years. A number of those cultural artefacts, such as the Troy gold and the Machu Picchu artefacts have recently been returned to their respective countries of origin. Other cultural property, as in the case of the Parthenon Marble, has stayed at a museum outside its country of origin, despite several calls for its return. In this sense, this paper outlines the reasons and tries to identify an international obligation behind such returns. Special attention will be given to the request made by Paraguay to Brazil concerning the return of the ‘El Cristiano’ cannon, a piece of artillery taken from Paraguay by the Brazilian armed forces in the war of 1864-1870, and its implications on international and Brazilian national law. In conclusion, no international legal obligation to return cultural property displaced before culturais, que têm grande significado para um ou mais povos, por ajudar a explicar e representar seu passado.3 Keywords: Return of cultural property. Protection of cultural heritage. International Law. UNESCO. ‘El Cristiano’ cannon. O presente artigo tem como objetivo averiguar a existência de uma possível obrigação jurídica dos Estados em atender tais pedidos de retorno de bens culturais. Para tanto, serão analisados alguns casos reputados emblemáticos, em razão da complexidade das negociações e das discussões teóricas que são suscitadas: (1) o pedido de retorno dos Mármores do Partenon; (2) a demanda de retorno realizado pelo Peru sobre artefatos de Machu Picchu que se encontravam na Universidade de Yale; (3) o pedido de retorno, feito pela Turquia, de vinte e quatro peças de ouro, datadas de 2.500 a.C., ao Museu de Arqueologia e Antropologia da Universidade da Pensilvânia (Penn Museum); por fim, analisaremos o caso do canhão El Cristiano. 1. INTRODUÇÃO No dia 1° de março de 2010, 140° aniversário do fim da Guerra do Paraguai contra Argentina, Brasil e Uruguai, o então vice-presidente paraguaio Federico Franco, em visita ao Brasil, pediu que fosse devolvida uma das relíquias paraguaias tomadas pelo exército brasileiro no conflito: “El Cristiano”, um canhão de 12 toneladas, que se encontra exposto no Museu Histórico Nacional no Rio de Janeiro.1 Pedidos de retorno de bens culturais como o do Paraguai, são frequentes e envolvem países de todas as regiões do mundo.2 Em regra, dizem respeito aos bens 1 RODRIGUES, José Eduardo Ramos. O caso da devolução do canhão “El Cristiano” ao Paraguai. Revista Magister de Direito Ambiental e Urbanístico. Porto Alegre, v. 6, n. 31, ago. 2010. p. 82. 2 ALBERGE, Dalya. Turkey turns to human rights law to reclaim British Museum sculptures. The Guardian. 8 dez. 2012. Disponível em: http://www.guardian.co.uk/culture/2012/dec/08/turkey-british-museum-sculptures-rights Acesso em: 13 jul. 2013; CHAWKINS, S. Native American skulls repatriated to California from England. Los Angeles Times. 20 mai. 2012. Disponível em: http://articles.latimes.com/2012/may/20/local/la-me-adv-skulls-20120520 Acesso em: 13 jul. 2013; DAY, M. We want our masterpiece back – Italians petition France to return Mona Lisa to Florence. Independent. 8 dez. 2012. Disponível em: http://www.independent. co.uk/news/world/europe/we-want-our-masterpiece-back--italians-petition-france-to-return-mona-lisa-to-florence-8117931.html Acesso em: 13 jul. 2013; FARAGO, J. Turkey’s restitution dispute with the Met challenges the ‘universal museum’. Guardian. 7 out. 2012. Disponível em: http://www.guardian.co.uk/commentisfree/2012/oct/07/turkey-restitution-dispute-met Acesso em: 13 jul. 2013; FELCH, J. Turkey asks U.S. museums for return of antiquities. Los Angeles Times. 30 mai. 2012. Disponível em: http:// articles.latimes.com/2012/mar/30/entertainment/la-et-turkeyantiquities-20120331 Acesso em: 13 jul. 2013; GRAHAM-HARRISON, E. Treasures returned to Afghan museum. Guardian. 5 ago. 2013. Disponível em: http://www.guardian.co.uk/world/2012/ aug/05/artefacts-returned-afghan-museum Acesso em: 13 jul. 2013; KANTOURIS, C. Greece wins Swiss court ruling over ancient coin. The Washington Times. 12 jan. 2012. Disponível em: http:// www.washingtontimes.com/news/2012/jan/12/greece-wins-swisscourt-ruling-over-ancient-coin/ Acesso em: 13 jul. 2013; SOWOLE, T. Amid hope of restitution, Nigeria hosts foreign museums. The Guardian (Nigeria). 15 fev. 2013. Disponível em: http://www. ngrguardiannews.com/index.php?option=com_content&view=a rticle&id=113411:amid-hope-of-restitution-nigeria-hosts-foreign- 2. CONVENÇÃO DE HAIA DE 1954 PARA A PROTEÇÃO DE BENS CULTURAIS EM CASO DE CONFLITO ARMADO E SEUS PROTOCOLOS A Convenção de Haia de 1954 consiste na primeira convenção a tratar de forma ampla a proteção de bens culturais durante um conflito armado. Essa convenção foi realizada no contexto pós-segunda guerra mundial. Nesse conflito, vários bens culturais foram retirados dos países de origem, causando perdas não só para o patrimônio cultural desses países como também para o patrimônio cultural da humanidade. Assim foi observada a necessidade de se fazer uma convenção que protegesse tais bens. Os Países Baixos, nesse sentido, submeteram à UNESCO um projeto para a elaboração de uma Convenção para a proteção de bens culturais em caso de conflito armado.4 O projeto foi acolhido pela organização que, em seguida, emitiu uma resolução, de maneira a realizar uma Conferência para sua elaboração. Essa Conferência tinha como objetivo elaborar uma museums-&catid=74:arts&Itemid=683 Acesso em: 13 jul. 2013. 3 EAGEN, S. Preserving Cultural Property: Our Public Duty: A Look at How and Why We Must Create International Laws That Support International Action. Pace International Law Review, White Plains. Vol. 13, abr. 2001. Disponível em: http://digitalcommons.pace.edu/pilr/vol13/iss2/7 Acesso em: 13 out. 2013, p. 407. 4 SCHINDLER, D. TOMAN, J. The Laws of Armed Conflicts, Martinus Nihjoff Publisher,1988, p.783-784. SALIBA, Aziz; FABRIS, Alice Lopes. O retorno de bens culturais. Revista de Direito Internacional, Brasília, v. 14, n. 2, 2017 p. 489-509 1970 was found, however a practice to return those artefacts in good faith can be observed. 491 A Convenção define bens culturais como: bens, móveis ou imóveis, que tenham uma grande importância para o patrimônio cultural dos povos, tais como os monumentos de arquitetura, de arte, ou de história, religiosos ou seculares, os lugares que oferecem interesse arqueológico, os grupos de edificações que, em vista do seu conjunto, apresentem um elevado interesse histórico ou artístico, as obras de arte, manuscritos, livros e outros objetos de interesse histórico artístico ou arqueológico.6 Ademais, a Convenção inclui os museus, bibliotecas e outros locais que armazenem os bens definidos anteriormente.7 De acordo com professor John Merryman, essa definição põe em evidência o caráter internacional do patrimônio cultural. Esse caráter se evidencia pela ligação do bem em questão com a história da humanidade.8 Nesse sentido, é importante que todos os países possuam um papel ativo na proteção dos bens culturais. Em seu artigo 4°, a convenção dispõe que os Estados-partes devem proibir, prevenir e coibir todo ato de roubo, pilhagem, vandalismo e de desvio de bens culturais, assim como impedir a requisição dos bens culturais móveis situados no território de outro país. Tal convenção foi utilizada inúmeras vezes para condenar diversos atos de pilhagem. Nos termos do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, para ser caracterizado crime de pilhagem, são necessários os seguintes elementos: a aquisição de uma propriedade, com o intuito de privar o proprietário de seu uso, para fins pessoais ou privados, sem a autorização da pessoa legalmente legitimada para dispor do bem e o ato deve 5 UNESCO. Actes de la Conférence convoquée par l’Organisation des Nations Unies pour l’éducation, la science et la culture, tenu à la Haye du 21 avril au 14 mai 1954, p.98. Disponível em: www.unesco. org. Acesso em: 03 jul. 2017. 6 BRASIL. Decreto nº 44.851 de 11 de novembro de 1958. Promulga a Convenção e Protocolo para a Proteção de Bens Culturais em caso de conflito armado, Haia, 1954, artigo 1°. 7 BRASIL. Decreto nº 44.851 de 11 de novembro de 1958. Promulga a Convenção e Protocolo para a Proteção de Bens Culturais em caso de conflito armado, Haia, 1954, artigo 1°. 8 MERRYMAN, John Henry. 1986. Two ways of thinking cultural property. The American Journal of International Law, vol. 80, n. 4, oct., 1986, pp. 831-853, p. 831-2. ser praticado em um contexto de conflito armado.9 Essa prática é condenada desde 1907 pela Convenção de Haia (IV) sobre leis e costumes da guerra terrestre, em seu artigo 47.10 Essa convenção foi utilizada como base para a condenação de Rosenberg, Goering e Heydrich no Tribunal de Nuremberg, por crime de guerra, em razão de pilhagem cometida na Polônia e Eslovênia.11 O Tribunal Penal Internacional, para a Ex-Iugoslávia, indiciou e condenou vários indivíduos por esses atos, ampliando, consideravelmente, o conceito desse crime.12 Concebeu-se o 1° Protocolo Adicional da Convenção de Haia de 1954, que dispõe, em seu artigo 1°, que as partes da convenção que ocupem território durante um conflito armado devem impedir a exportação de bens culturais.13 Dispõe o artigo 3° da Convenção, que, caso haja a exportação, os Estados que aderiram à con9 TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL. Elements of Crimes for the ICC, Pillage as a war crime (ICC Statute, Article 8(2)(b)(xvi) and (e) (v)). Acesso em: 13 jul. 2013. Disponível em: http://www.icc-cpi. int/en_menus/icc/legal%20texts%20and%20tools/official%20 journal/Pages/elements%20of%20crimes.aspx. 10 ICRC. Regulations concerning the Laws and Customs of War on Land. The Hague, 18 Oct 1907. Disponível em: http://www.icrc.org/ihl. nsf/full/195 Acesso em: 12 jan. 2013. 11 O’KEEFE, Roger. Protection of Cultural Property under International Criminal Law. Melbourne Journal of International Law. vol 11, n.2, 2010, pp. 139-392, p. 221; DECLARATION de la société des américanistes concernant le pillage archéologique et le trafic illicite des biens culturels. Journal de la Société des Américanistes. v. 63, n. 63, 1974, p. 310. 12 TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL PARA A ANTIGA IUGOSLAVIA. Judgement in the Case the Prosecutor v. Dario Kordić and Mario Čerkez, Câmara de Julgamento I, Processo No. IT-95-14/2, 26 de fevereiro de 2001 TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL PARA A ANTIGA IUGOSLAVIA. Judgement in the Case the Prosecutor v. Hadžihasanović & Kubura, Câmara de Julgamento I, Processo No. ICTY-01-47, 15 de março de 2006; TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL PARA A ANTIGA IUGOSLAVIA. Judgement in the Case the Prosecutor v. Miodrag Jokić, Câmara de Julgamento I, Processo No. IT-01-42/1, 18 de março de 2004; TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL PARA A ANTIGA IUGOSLAVIA. Judgement in the Case the Prosecutor v. Pavle Strugar, Câmara de Julgamento II, Processo No. IT-01-42, 31 de janeiro de 2005; TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL PARA A ANTIGA IUGOSLAVIA. Judgement in the Case the Prosecutor v. Radoslav Brđanin, Câmara de Julgamento II, Processo No.IT-99-36, 1° de setembro de 2004; TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL PARA A ANTIGA IUGOSLAVIA. Judgement in the Case the Prosecutor v. Zoran Kupreškić, Câmara de Julgamento I, Processo No. ICTY-95-16, 14 de janeiro de 2000. 13 BRASIL. Decreto nº 44.851 de 11 de novembro de 1958. Promulga a Convenção e Protocolo para a Proteção de Bens Culturais em caso de conflito armado, Haia, 1954, Protocolo Adicional, artigo 1°. SALIBA, Aziz; FABRIS, Alice Lopes. O retorno de bens culturais. Revista de Direito Internacional, Brasília, v. 14, n. 2, 2017 p. 489-509 Convenção que “protege[sse] a beleza do passado para, em caso de guerra, [essa possa ser] conservada para o [usufruto] nosso e de nossos antecedentes.”5 A Convenção obriga os Estados, nesse sentido, a “respeitar e salvaguardar” os bens culturais. 492 A Convenção de Haia de 1954 ainda foi atualizada, em 1999, pelo seu segundo protocolo. Tal protocolo adequou as regras de proteção do patrimônio cultural em caso de conflito armado às evoluções do direito internacional humanitário trazidas pelos Protocolos Adicionais de 1977 às Convenções de Genebra de 1949 e à jurisprudência do Tribunal Penal Internacional para a Ex-Iugoslávia.15 O Brasil ratificou essa convenção e seu protocolo em 1958. No entanto, de acordo com o artigo 28 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, um tratado (ou, no caso, a Convenção) em regra não retroage, salvo se ele dispuser de forma diversa.16 A Convenção de Haia de 1954 é silente quanto à retroatividade, portanto sua aplicação somente se daria em casos que ocorreram após a sua entrada em vigor. Contudo, a maioria dos bens que são objetos de pedidos de retorno foi retirada do território do país anteriormente à elaboração da Convenção e, sendo assim, ela não pode ser aplicada enquanto fonte convencional. da Liga das Nações,17 a partir do texto elaborado pelo Gabinete Internacional de Museus. Anteriormente, a proteção de bens culturais era somente mencionada em manuais e declarações, como o Lieber Code18 e a Declaração de Bruxelas,19 e tratados bastante amplos como as Convenções de Haia de 1899 e 1907.20 Contudo, alguns Estados estavam relutantes em adotar um tratado sobre tráfico ilícito de bens culturais que não fazia distinção entre os bens culturais públicos e privados.21 Durante as modificações pedidas pela organização e pelos Estados, a Segunda Guerra Mundial teve início e o projeto foi interrompido.22 Somente em 1964 UNESCO recomeçou os esforços para adoção de um tratado sobre a matéria e estabeleceu uma comissão de peritos para esse fim.23 Foram necessários mais 6 anos para que a convenção fosse adotada. Sua definição de patrimônio cultural difere daquela apresentada na convenção anterior na medida em que o aspecto mais evidente da Convenção da UNESCO seria o patrimônio de um povo, trazendo um caráter nacionalista para a proteção dos bens.24 Essa convenção dispõe que os Estados-Partes de- 3. CONVENÇÃO DA UNESCO RELATIVA ÀS MEDIDAS A ADOTAR PARA PROIBIR E IMPEDIR A IMPORTAÇÃO, A EXPORTAÇÃO E A TRANSFERÊNCIA ILÍCITAS DA PROPRIEDADE DE BENS CULTURAIS DE 1970 E SEU COMITÊ A Convenção da UNESCO relativa às medidas a adotar para proibir e impedir a importação, a exportação e a transferência ilícitas da propriedade de bens culturais, de 1970, foi concebida dezesseis anos após a adoção da Convenção de Haia sobre a Proteção de Bens Culturais em Evento de Conflito Armado de 1954, para enfrentar o crescente tráfico ilícito de bens culturais. A ideia de uma convenção para impedir o tráfico ilícito de bens culturais foi cogitada, inicialmente, no âmbito 14 BRASIL. Decreto nº 44.851 de 11 de novembro de 1958. Promulga a Convenção e Protocolo para a Proteção de Bens Culturais em caso de conflito armado, Haia, 1954, Protocolo Adicional, artigo 3. 15 HENCKAERTS, Jean-Marie. New rules for the protection of cultural property in armed conflict. International Review of the Red Cross, No. 835, 1999. 16 BRASIL. Decreto Nº 7.030, de 14 de dezembro de 2009. Promulga a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, concluída em 23 de maio de 1969, com reserva aos Artigos 25 e 66, Artigo 28. 17 O’KEEFE, P.J., PROTT, L.V. Cultural heritage conventions and other instruments: A compendium. Builth Wells, United Kingdom: Institute Of Art And Law, 2011, p. 64. 18 Instructions for the Government of Armies of the United States in the Field (Lieber Code). 24 April 1863. In: SCHINDLER, D; TOMAN, J. The Laws of Armed Conflicts, Martinus Nihjoff Publisher, 1988, pp.3-23 19 Project of an International Declaration concerning the Laws and Customs of War. Brussels, 27 August 1874 in SCHINDLER, D; TOMAN, J. The Laws of Armed Conflicts, Martinus Nihjoff Publisher, 1988, pp.22-34 20 ORGANISATION FOR THE PROHIBITION OF CHEMICAL WEAPONS. Convention (II) with Respect to the Laws and Customs of War on Land (Hague, II) (29 Jul 1899) Disponível em:https://www.opcw.org/chemical-weapons-convention/relatedinternational-agreements/chemical-warfare-and-chemical-weapons/hague-convention-of-1899/ Acessado em: 05 jul. 2017; ICRC. Regulations concerning the Laws and Customs of War on Land. The Hague, 18 Oct 1907. Disponível em: http://www.icrc.org/ihl. nsf/full/195 Acesso em: 12 jan. 2013. 21 O’KEEFE, P.J., PROTT, L.V. Cultural heritage conventions and other instruments: A compendium. Builth Wells, United Kingdom: Institute Of Art And Law, 2011, p. 64. 22 O’KEEFE, P.J., PROTT, L.V. Cultural heritage conventions and other instruments: A compendium. Builth Wells, United Kingdom: Institute Of Art And Law, 2011, p. 64. 23 O’KEEFE, P.J., PROTT, L.V. Cultural heritage conventions and other instruments: A compendium. Builth Wells, United Kingdom: Institute Of Art And Law, 2011, p. 64. 24 MERRYMAN, John Henry. 1986. Two ways of thinking cultural property. The American Journal of International Law, vol. 80, n. 4, oct., 1986, pp. 831-853, p. 832-3. SALIBA, Aziz; FABRIS, Alice Lopes. O retorno de bens culturais. Revista de Direito Internacional, Brasília, v. 14, n. 2, 2017 p. 489-509 venção devem devolver o artefato.14 493 Ademais, a Convenção estipulou a criação do Comitê Intergovernamental para promover o retorno de bens culturais para o país de origem ou sua restituição em caso de apropriação ilegal. O Comitê foi criado em 1978 e é composto por 22 representantes eleitos pela Conferência Geral da UNESCO, possuindo como objetivo a luta contra a pilhagem e o tráfico de bens culturais.29 Funciona como um órgão consultivo, fornecendo 25 BRASIL. Decreto nº 72.312, de 13 de maio de 1973. Promulga a Convenção sobre as Medidas a serem Adotadas para Proibir e impedir a Importação, Exportação e Transportação e Transferência de Propriedade Ilícitas dos Bens Culturais, artigo 12. 26 BRASIL. Decreto nº 72.312, de 13 de maio de 1973. Promulga a Convenção sobre as Medidas a serem Adotadas para Proibir e impedir a Importação, Exportação e Transportação e Transferência de Propriedade Ilícitas dos Bens Culturais, artigo 11. 27 BRASIL. Decreto nº 72.312, de 13 de maio de 1973. Promulga a Convenção sobre as Medidas a serem Adotadas para Proibir e impedir a Importação, Exportação e Transportação e Transferência de Propriedade Ilícitas dos Bens Culturais, artigo 7(b)(ii). 28 MERRYMAN, John Henry. Thinking about the Elgin Marbles. Michigan Law Review, v. 83, 1985, pp. 1880-1923, p.1882; REPPAS II, Michael J. The Deflowering of the Parthenon: A Legal and Moral Analysis on the “Elgin Marbles” must be Returned to Greece. Fordham Intell. Prop. Media & Ent. Law Journal, v. 9, 1999, pp. 911-980, p. 960; McINTOSH, Molly L. Exploring Machu Picchu: an Analysis of the legal and ethical issues surrounding the repatriation of cultural property. Duke Journal Comparative and International Law. v. 19, 2006, pp.199-221, p. 215; SHENG, Gao. International Protection of Cultural Property: some preliminary issues and the role of international conventions. Singapore Year Book of International Law and Contributors, v. 12, 2008, pp. 57-79, p. 63-67; GOY, Raymond. Le régime international de l’importation, de l’exportation et du transfert de propriété des biens culturels. Annuaire français de droit international, v. 16, 1970, pp. 605-624, p. 610. 29 UNESCO. Comité Intergovernamental para a Promoção do retorno dos Bens Culturais ao seu país de origem ou a sua restituição em caso de apropriação ilegal. Disponível em: http://www. unesco.pt/antigo/Comitesprogramas.htm#retbensc Acesso em: 22 out. 2013. um quadro de discussões, a fim de facilitar as negociações bilaterais para promover a devolução de bens culturais. O Comitê, no entanto, não emite resoluções vinculativas, dependendo, inteiramente, da boa vontade dos Estados.30 Ainda assim, já ajudou diversos países a reaverem bens culturais ilegalmente apropriados. O primeiro caso bem-sucedido levado ao Comitê foi em 1983 entre a Itália e o Equador, no qual a primeira devolveu 12.000 artefatos Pré-colombianos depois de sete anos de negociações.31 Em 1988, os Estados Unidos da América devolveram à Tailândia um lintel Phra Nara32 Esse caso foi resolvido por meio de mediação e a atuação do Comitê foi essencial.33 Um ano depois, a Alemanha devolveu à Turquia 7.000 artefatos cuneiformes de Bogazköy.34 Em maio de 2010, o museu Barbier-Mueller, localizado em Genebra, devolveu a máscara Makondé à República Unida da Tanzânia, que reclamava o artefato desde 2006.35 Em 2011, na 16a sessão do Comitê, redigiu-se uma recomendação sobre o caso da Sphinx de Boğazköy, escavada no sitio de Boğazköy, na Turquia, desaparecida durante a Segunda Guerra Mundial e que se encontrava no museu de Pergame em Berlim. Desde 1987, o Comitê Intergovernamental tentava mediar um acordo entre os dois países e, em maio de 2011, anunciou-se um acordo no qual a Alemanha devolveria a Sphinx à Turquia.36 30 UNESCO. Estatuto do Comité Intergovernamental para a Promoção do retorno dos Bens Culturais ao seu país de origem ou a sua restituição em caso de apropriação ilegal. Disponível em: unesdoc.unesco.org/images/0014/001459/145960e.pdf Acesso: 21 dez. 2012. 31 UNESCO. Cas de retour et de restitution sous les auspices du Comité intergouvernemental. Disponível em: http://www.unesco. org/new/fr/culture/themes/restitution-of-cultural-property/committes-successful-restitutions/ Acesso em: 29 jun. 2013. 32 Ordenamento do Phanom Rung, construção em um cone de um vulcão extinto entre os séculos XI e XII, durante o império Khmer. Disponivel em: http://www.visite-mekong.com/thailand/ jewels/phanom_rung.htm Acesso em: 29 jun. 2013. 33 UNESCO. Cas de retour et de restitution sous les auspices du Comité intergouvernemental. Disponível em: http://www.unesco. org/new/fr/culture/themes/restitution-of-cultural-property/committes-successful-restitutions/ Acesso em: 29 jun. 2013. 34 Sitio de escavação da capital do antigo Império dos Hittite, que compreendia a Turquia, Síria e Líbano, no II milênio a.C. Ver CHECHI, Alessandro; BANDLER, Anne Laure; RENOLD, MarcAndré. Case Boğazköy Sphinx – Turkey and Germany. Platform ArThemis. Disponível em: http://unige.ch/art-adr Acesso em: 21 out. 2012. 35 UNESCO. Restitution du Masque Makondé. Mai. 2010. Disponível em: http://www.unesco.org/new/fr/culture/themes/restitution-of-cultural-property/committes-successful-restitutions/restitution-of-the-makonde-mask/#c219612 Acesso em: 29 jun. 2013. 36 UNESCO. Accord bilatéral obtenu sur le Sphinx de Bogazkoy. SALIBA, Aziz; FABRIS, Alice Lopes. O retorno de bens culturais. Revista de Direito Internacional, Brasília, v. 14, n. 2, 2017 p. 489-509 vem combater a exportação e importação ilícita.25 e considerar ilícitas a exportação e a transferência forçadas da propriedade de bens culturais resultantes direta ou indiretamente da ocupação de um país por uma potência estrangeira.26 Temos ainda a obrigação dos Estados de “tomarem as medidas apropriadas, mediante solicitação do Estado de origem Parte da Convenção, para recuperar e restituir quaisquer bens culturais roubados e importados após a entrada em vigor da presente Convenção”,27 que deve ser acompanhada de compensação aos compradores de boa-fé. No entanto, tal disposição não é vista como uma obrigação de restituir os bens retirados ilicitamente, mas tão somente de realizar negociações bilaterais.28 494 A mais notória demanda de retorno de bens culturais da atualidade é o dos Mármores do Partenon. Em 1983, a Grécia pediu o retorno de um conjunto de obras de mármores, que ornamentavam o Parthenon. Elas foram levadas em 1801 para o Reino Unido por Lorde Elgin37 e se encontram, hoje, no acervo do British Museum. Um primeiro aspecto a ser analisado é a legalidade da retirada dos bens. Tomas Bruce, Sétimo Earl of Elgin, foi nomeado embaixador do Reino Unido em Constantinopla, num momento em que a ajuda britânica era essencial para o Império Otomano devido à ameaça de invasão do exército francês pelo rio Nilo.38 Tendo em vista essas circunstâncias especiais, o embaixador recebeu inúmeros privilégios.39 Nesse contexto, o Lorde pediu ao governo otomano autorização para: (i) entrar livremente na Citadel e desenhar e modelar com gesso os Templos Antigos que ali se encontravam; (ii) construir andaimes e escavar livremente para descobrir como eram as antigas fundações; e (iii) liberdade para pegar qualquer escultura que não interferisse no trabalho ou nas paredes da Citadel.40 (Tradução nossa.) Com base num documento denominado firman, Lorde Elgin retirou inúmeras esculturas em mármore que decoravam Partenon.41 No entanto, surgem, a partir da interpretação desse documento, dois problemas: 1) a legitimidade do firman e 2) as diversas traduções feitas que levam as diferentes percepções do texto. Devemos ressaltar que o firman é uma ordem, um decreto, uma Disponível em: http://www.unesco.org/new/fr/culture/themes/ restitution-of-cultural-property/committes-successful-restitutions/ bilateral-agreement-on-the-bogazkoy-sphinx/#c219670 Acesso em: 29 jun. 2013. 37 MERRYMAN, John Henry. Thinking about the Elgin Marbles. Michigan Law Review, v. 83, 1985, pp. 1880-1923, p. 1882. 38 REPPAS II, Michael J. The Deflowering of the Parthenon: A Legal and Moral Analysis on the “Elgin Marbles” must be Returned to Greece. Fordham Intell. Prop. Media & Ent. Law Journal, v. 9, 1999, pp. 911-980, p. 920. 39 REPPAS II, Michael J. The Deflowering of the Parthenon: A Legal and Moral Analysis on the “Elgin Marbles” must be Returned to Greece. Fordham Intell. Prop. Media & Ent. Law Journal, v. 9, 1999, pp. 911-980, p. 920. 40 MERRYMAN, John Henry. Thinking about the Elgin Marbles. Michigan Law Review, v. 83, 1985, pp. 1880-1923, p. 1898. A versão italiana da carta encontra-se disponível em: http:// www.britishmuseum.org/explore/highlights/highlight_image. aspx?image=firman_2.jpg&retpage=25929 Acesso em: 29 jun. 2013. 41 MERRYMAN, John Henry. Thinking about the Elgin Marbles. Michigan Law Review, v. 83, 1985, pp. 1880-1923, p. 1898. licença ou uma carta do governo otomano a um de seus oficiais, que possuía o intuito de ordenar, sugerir ou pedir que um favor fosse concedido a uma pessoa.42 No que tange ao primeiro problema, há dúvidas se o Império Otomano teria legitimidade para dispor da propriedade grega. A ocupação otomana, em território grego, teve início em 1204.43 Para Oppenheim, até o século XIX, vigorava, no direito internacional, a regra de que a potência ocupadora poderia se apropriar de todos os bens do país ocupado, independentemente de sua natureza.44 Portanto, o documento seria legítimo.45 No entanto, Reppas II argumenta que, como o Partenon é um templo religioso, a jurisdição não seria dos otomanos, mas sim das autoridades religiosas da Igreja Ortodoxa, que se encarregavam de sua manutenção.46 Em relação à jurisdição das autoridades religiosas, o argumento é suscitado no caso da Igreja Grega Ortodoxa Autocephalous v. Goldberg & Feldman Fine Arts, Inc. A Igreja, localizada no Chipre, processou a empresa Goldberg & Feldman Fine Arts, Inc, em 1988, nos Estados Unidos, pela volta dos mosaicos da Igreja Panagia Kanakaria que foram retirados do Chipre sob a autorização do exército turco em 1970 e que se encontrava no poder da empresa.47 Não obstante a alegação da ré de que a compra dos mármores foi realizada de boa-fé, a Corte de Apelações do 7o Circuito dos Estados Unidos determinou a devolução dos artefatos, entendendo que foram retirados ilegalmente do Chipre, visto que a autorização 42 MERRYMAN, John Henry. Thinking about the Elgin Marbles. Michigan Law Review, v. 83, 1985, pp. 1880-1923, p. 1898. 43 MERRYMAN, John Henry. Thinking about the Elgin Marbles. Michigan Law Review, v. 83, 1985, pp. 1880-1923, p. 1897. 44 OPPENHIEM, Lassa Francis Lawrence, LLD. International Law: a treatise, v. 2, 7 ed. Londres: Logmans, Green and Co LTDS, 1952, p. 397. 45 OPPENHIEM, Lassa Francis Lawrence, LLD. International Law: a treatise, v. 2, 7 ed. Londres: Logmans, Green and Co LTDS, 1952, p. 397; O’CONNELL, Daniel. The Law of State Succession. Londres: Cambridge, 1956, p. 226-7. 46 REPPAS II, Michael J. The Deflowering of the Parthenon: A Legal and Moral Analysis on the “Elgin Marbles” must be Returned to Greece. Fordham Intell. Prop. Media & Ent. Law Journal, v. 9, 1999, pp. 911-980, p. 948. 47 ESTADOS UNIDOS DA AMERICA. AUTOCEPHALOUS GREEK-ORTHODOX CHURCH OF CYPRUS and The Republic of Cyprus, Plaintiffs-Appellees, v. GOLDBERG AND FELDMAN FINE ARTS, INC., and Peg Goldberg, Defendants-Appellants. 17 F.2d 278 (1990). No. 89-2809. United States Court of Appeals, Seventh Circuit. Disponível em: http://scholar.google. com/scholar_case?case=16390919692097194145&q=1954+hague +convention+cultural+property&hl=en&as_sdt=2006#[19] Acesso em: 20 dez. 2013. SALIBA, Aziz; FABRIS, Alice Lopes. O retorno de bens culturais. Revista de Direito Internacional, Brasília, v. 14, n. 2, 2017 p. 489-509 4. OS MÁRMORES DO PARTENON 495 Daniel O’Connell ressalta que a legislação do Estado deve ser tomada como base para definir a transferência da propriedade no caso de absorção ou ocupação por outro Estado. Assim, as propriedades religiosas ou as instituições de caridade de propriedade de entes privados não podem ser modificadas pelo país ocupante. Contudo, isto não impede que elas possam ser expropriadas por ato subsequente, respeitando os direitos adquiridos.49 A segunda dificuldade que pode ser observada se relaciona com a tradução do documento de autorização firman. Lorde Elgin, no momento da venda dos Mármores ao British Museum, apresentou a tradução italiana ao Parlamento Inglês.50 Essa tradução foi feita por Antionio Dane, tradutor e diplomata, com a finalidade de esclarecer quais eram os limites a serem respeitados pela expedição.51 O original encontrava-se em Constantinopla e perdeu-se ao longo dos anos.52 Alguns autores argumentam que a versão italiana induz ao erro.53 Isso 48 ESTADOS UNIDOS DA AMERICA. AUTOCEPHALOUS GREEK-ORTHODOX CHURCH OF CYPRUS and The Republic of Cyprus, Plaintiffs-Appellees, v. GOLDBERG AND FELDMAN FINE ARTS, INC., and Peg Goldberg, Defendants-Appellants. 17 F.2d 278 (1990). No. 89-2809. United States Court of Appeals, Seventh Circuit. Disponível em: http://scholar.google. com/scholar_case?case=16390919692097194145&q=1954+hague +convention+cultural+property&hl=en&as_sdt=2006#[19] Acesso em: 20 dez. 2013. 49 O’CONNELL, Daniel. The Law of State Succession. Londres: Cambridge, 1956, p. 227. 50 MERRYMAN, John Henry. Thinking about the Elgin Marbles. Michigan Law Review, v. 83, 1985, pp. 1880-1923, p. 1895-1902. 51 WILLIAMS, Dyfri. 2009. Lord Elgin’s Firman. Journal of the History of Collection. Oxford: Oxford University Press, 2009. 52 MERRYMAN, John Henry. Thinking about the Elgin O governo britânico contra-argumentou que a retirada dos Mármores estava de acordo com o direito internacional vigente à época; a retirada dos Mármores constituiria em um precedente para a retirada de grandes aquisições dos museus, impedindo que eles cumprissem sua função de disponibilizar uma educação em arte e cultura; a manutenção dos Mármores no museu durante 150 anos preveniu que fossem danificados pelo alto índice de poluição em Atenas; e;os Mármores tornaram-se parte do patrimônio cultural do British Museum, devido a sua presença no Reino Unido por mais de um século.Marbles. Michigan Law Review, v. 83, 1985, pp. 1880-1923, p. 1895-1902. 53 MERRYMAN, John Henry. Thinking about the Elgin Marbles. Michigan Law Review, v. 83, 1985, pp. 1880-1923, p. 1895-1902; GREENFIELD, J. The Return of Cultural Treasures. 3. ed. Nova Iorque: Cambridge University Press, 2007, p. 55. porque, ao tratar da autorização para retirar peças do Partenon, dispunha que o Lorde Elgin poderia pegar qualche pezzi di pietra con iscrizione e figure.54 O problema reside no qualche, que pode ser traduzido para o inglês tanto como any (qualquer), quanto por some (alguns).55 No Relatório do Comitê Especial da Câmara dos Comuns sobre a Coleção do Earl Elgin dos Mármores Esculpidos, que autorizou a compra da coleção pelo governo britânico, o documento firman foi traduzido de tal maneira que proibiu que as autoridades locais impedissem o Lorde de retirar as peças.56 No entanto, o pedido grego de retorno de bens culturais não abordou a possível ilegalidade do documento, mas teve como base os quatro argumentos seguintes: (1) os Mármores pertencem ao conjunto arquitetônico do Partenon, que se encontra na Grécia; (2) os Mármores serão expostos de modo que o conjunto arquitetônico se situe no campo de visão do visitante; (3) são uma parte integrante e inseparável do conjunto e um símbolo da civilização grega em seu apogeu e seu retorno restauraria sua integralidade e a coesão do conjunto e; (4) o British Museum tem uma obrigação para com o patrimônio cultural mundial de restaurar seu símbolo.; e;57 Percebemos que toda a argumentação, seja pela volta ou manutenção das peças, tem como base a concepção nacionalista ou internacionalista da proteção de bens culturais. Os gregos argumentam que os Mármores devem voltar para a Grécia, pois eles são gregos.58 Essa é a base da concepção nacionalista: o patrimônio cultural possui tal título, pois faz parte da identidade cultural de um povo, sendo um conceito estreitamente ligado à ideia de 54 MERRYMAN, John Henry. Thinking about the Elgin Marbles. Michigan Law Review, v. 83, 1985, pp. 1880-1923, p. 1895-1902; GREENFIELD, J. The Return of Cultural Treasures. 3. ed. Nova Iorque: Cambridge University Press, 2007, p. 55. 55 WEBSTER’S New Twentieth Century Dictionary. 2. ed. World Publishing Company, 1977. 56 CÂMARA DOS COMUNS DO REINO UNIDO. Report from the Select Committee of the House of Commons on the Earl of Elgin’s collection of sculptured marbles. Disponível em: http://books.google.com.br/books/about/Report_from_the_Select_Committee_of_the.html?id=NwUFAAAAYAAJ&redir_esc=y Acesso em: 13 jul. 2013. 57 REPPAS II, Michael J. The Deflowering of the Parthenon: A Legal and Moral Analysis on the “Elgin Marbles” must be Returned to Greece. Fordham Intell. Prop. Media & Ent. Law Journal, v. 9, 1999, pp. 911-980, p. 934. 58 MERRYMAN, John Henry. Thinking about the Elgin Marbles. Michigan Law Review, v. 83, 1985, pp. 1880-1923, p. 1911-6. SALIBA, Aziz; FABRIS, Alice Lopes. O retorno de bens culturais. Revista de Direito Internacional, Brasília, v. 14, n. 2, 2017 p. 489-509 do exército turco não possuía legitimidade.48 Como no caso em tela, as autoridades turcas ocupavam o local no qual os artefatos se encontravam. No entanto, a Corte decidiu que as autoridades turcas não possuíam prerrogativa para dispor dos artefatos religiosos. 496 A concepção internacionalista, no entanto, tem como base o fato de tais artefatos serem muitas vezes chamados de patrimônio cultural da humanidade, pertencendo, assim, à humanidade como um todo e não somente a um país.61 Logo, o Estado que teria prioridade em hospedar os bens culturais seria aquele que oferecesse uma maior preservação, integridade e distribuição e não necessariamente o país de origem.62 Para Merryman, o primeiro critério a ser observado deve ser o da preservação, pois, se os artefatos fossem destruídos, a humanidade seria privada de uma importante parte de seu patrimônio cultural. No caso dos Mármores do Partenon, os ingleses asseveram que, devido à grande poluição do ar na cidade de Atenas, se os Mármores ali ficassem teriam sofrido grandes desgastes como os sofridos pela própria estrutura do Partenon.63 Os gregos, no entanto, alegaram que não se pode dizer com certeza que os Mármores seriam afetados e ainda que a viagem de navio que proporcionou a levada dos Mármores ao Reino Unido danificou as pedras devido à alta umidade.64 Além disso, alegou-se que, durante procedimento de preservação dos Mármores no British Museum, os Mármores teriam sido lavados com uma substância imprópria que retirou sua cor original.65 O segundo aspecto a ser observado seria o da integralidade dos artefatos, isto é, deve-se levar em conta a unidade da obra. Os Mármores decoravam o Partenon, 59 MERRYMAN, John Henry. Thinking about the Elgin Marbles. Michigan Law Review, v. 83, 1985, pp. 1880-1923, p. 1911-6. 60 BRASIL. Decreto-Lei n° 25, de 30 nov. 1937. Organiza a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional. 61 MERRYMAN, John Henry. Thinking about the Elgin Marbles. Michigan Law Review, v. 83, 1985, pp. 1880-1923, p. 1916-21. 62 MERRYMAN, John Henry. Thinking about the Elgin Marbles. Michigan Law Review, v. 83, 1985, pp. 1880-1923, p. 1916-21. 63 MERRYMAN, John Henry. Thinking about the Elgin Marbles. Michigan Law Review, v. 83, 1985, pp. 1880-1923, p. 1916-21. 64 REPPAS II, Michael J. The Deflowering of the Parthenon: A Legal and Moral Analysis on the “Elgin Marbles” must be Returned to Greece. Fordham Intell. Prop. Media & Ent. Law Journal, v. 9, 1999, pp. 911-980, p. 935-41. 65 REPPAS II, Michael J. The Deflowering of the Parthenon: A Legal and Moral Analysis on the “Elgin Marbles” must be Returned to Greece. Fordham Intell. Prop. Media & Ent. Law Journal, v. 9, 1999, pp. 911-980, p. 935-41. portanto sua devolução ao local de origem completaria o templo. Porém, os ingleses afirmaram que, mesmo se os Mármores voltassem para a Grécia eles não seriam recolocados no Partenon, mas sim em um museu na cidade de Atenas.66 Os gregos, por outro lado, alegaram que os Mármores seriam expostos de modo que o visitante pudesse observar, também, a estrutura do Partenon, dando uma visão completa do conjunto.67 O último aspecto a ser analisado seria o da distribuição, isto é, onde os Mármores ficariam à disposição de mais pessoas. O British Museum recebe milhares de visitantes por ano, e o turismo no Reino Unido é maior do que na Grécia (o Reino Unido recebe cerca de 25 milhões68 de turistas por ano enquanto a Grécia recebe somente 17 milhões ).69 Assim, a possibilidade de ser visto por mais pessoas em Londres foi um argumento que favoreceu a permanência dos Mármores no Reino Unido.70 Contudo, poder-se-ia argumentar que, em razão de estar de posse de obras de diversas épocas e diferentes culturas, é que o museu é mais visitado. Caso tais obras fossem alocadas alhures, possivelmente, haveria um incremento na visitação turística no local onde se situassem as obras. Além disso, a Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa aprovou uma resolução que distingue o retorno de bens culturais dentro e fora da Europa,71 na medida em que “o patrimônio histórico europeu pertence a todos os europeus e [pediu aos governos] que assegurem que a diversidade desse patrimônio continue de fácil acesso em cada país.” (Tradução nossa).72 No entanto, a Assembleia não produz resoluções cogentes, sendo estas, somente, de caráter recomendatório. Além 66 MERRYMAN, John Henry. Thinking about the Elgin Marbles. Michigan Law Review, v. 83, 1985, pp. 1880-1923, p. 1907. 67 REPPAS II, Michael J. The Deflowering of the Parthenon: A Legal and Moral Analysis on the “Elgin Marbles” must be Returned to Greece. Fordham Intell. Prop. Media & Ent. Law Journal, v. 9, 1999, pp. 911-980, p. 942. 68 Inbound Turism Facts. Disponível em:www.visitbritain.org Acessado em 08 jan. 2013. 69 Visit Greece. Disponível em:www.visitgreece.gr Acessado em 08 jan. 2013. 70 MERRYMAN, John Henry. Thinking about the Elgin Marbles. Michigan Law Review, v. 83, 1985, pp. 1880-1923, p. 1922. 71 HUMBERT-DROZ-SWEZEY. L’Europe de la culture ou des cultures? Communication et langages, v.119, 1999 pp.76-90, p. 76. 72 CHASLE, Raymon. Report and resolutions on the cultural cooperation between ACP States and the European Economic Community. Disponível em:http://aei.pitt.edu/33260/1/A81.pdf Acessado em: 24 mai. 2015. SALIBA, Aziz; FABRIS, Alice Lopes. O retorno de bens culturais. Revista de Direito Internacional, Brasília, v. 14, n. 2, 2017 p. 489-509 cultura. Muitos Estados, para ressaltar tal aspecto, definem o patrimônio cultural como propriedade estatal.59 É o que acontece no Brasil. Segundo a Lei de Tombamento, os bens culturais tombados estão sob a tutela do Estado.60 497 Não obstante os esforços da Grécia em repatriar os Mármores do Partenon, eles permanecem expostos no museu britânico. 5. REPÚBLICA DO PERU V. UNIVERSIDADE DE YALE Outro caso emblemático é o pedido do Peru de retorno dos artefatos do Machu Pichu que se encontravam na Universidade de Yale. Em 1911, Hiram Bingham, professor de Yale, redescobriu a cidade de Machu Picchu.77 Em 1912 e 1915, o professor, em uma expedição financiada pela Universidade de Yale e a Sociedade National Geographic, levou aos Estados Unidos diversos artefatos incas que hoje fazem parte da exposição do 73 GREENFIELD, J. The Return of Cultural Treasures. 3. ed. Nova Iorque: Cambridge University Press, 2007, p. 67. 74 PARLAMENTO EUROPEU. Diretiva 2014/60/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de maio de 2014, relativa à restituição de bens culturais que tenham saído ilicitamente do território de um Estado-Membro e que altera o Regulamento (UE) n. ° 1024/2012, artigo 3. 75 PARLAMENTO EUROPEU. Diretiva 2014/60/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de maio de 2014, relativa à restituição de bens culturais que tenham saído ilicitamente do território de um Estado-Membro e que altera o Regulamento (UE) n. ° 1024/2012, artigo 14. 76 Em dois anos a diretiva foi transposta em 19 países. Ver GORKA, Marciej. Directive 2014/60/EU: A New Legal Framework for Ensuring the Return of Cultural Objects within the European Union. Santander Art & Culture Law Review, v. 2, 2016, pp. 27-34, p. 32. 77 KLARÉN, P. Nación y sociedad en la historia del Peru. Lima: Instituto de Estudios Peruanos, 2008, p. 305. Yale’s Peabody Museum.78 O governo peruano fez dois pedidos formais para o retorno das obras nos dias 22 de novembro de 1918 e 26 de outubro de 1920. Tais pedidos foram direcionados a Sociedade National Geographic.79 Após uma carta de Hiram Bingham, na qual o pesquisador enfatizava que os artefatos não pertenciam à Universidade de Yale, tampouco à Sociedade National Geographic, mas ao governo do Peru,80 foram devolvidos, em 1921, alguns dos artefatos retirados.81 Em 2001, o governo peruano fez um novo pedido para a Sociedade e para a Universidade de Yale.82 Enquanto a primeira foi favorável ao retorno, a segunda negou o retorno. Em 2010, o diálogo entre a Universidade e o governo peruano se intensificou, mas nenhum acordo foi realizado.83 Em dezembro de 2008, o governo peruano processou a Universidade de Yale no Distrito de Columbia, Estados Unidos da América. Tendo em vista a decisão do tribunal de Columbia de que não era competente para apreciar a lide, o caso foi enviado, em julho de 2009, para o estado de Connecticut, onde se encontra a Universidade de Yale.84 A República do Peru acusou a universidade de: fraude; conspiração em conjunto com o arqueólogo Hiram Bingham com o intuito de iludir o governo do Peru sobre a volta 78 McINTOSH, Molly L. Exploring Machu Picchu: an Analysis of the legal and ethical issues surrounding the repatriation of cultural property. Duke Journal Comparative and International Law. v. 19, 2006, pp.199-221, p. 201. 79 McINTOSH, Molly L. Exploring Machu Picchu: an Analysis of the legal and ethical issues surrounding the repatriation of cultural property. Duke Journal Comparative and International Law. v. 19, 2006, pp.199-221, p. 201. 80 BINGHAM Urged Yale to Return Machu Picchu Relics to Peru. Latin American Herald Tribune. Disponível em http:// www.laht.com/article.asp?CategoryId=14095&ArticleId=331337 Acesso em 04 jun. 2013. 81 McINTOSH, Molly L. Exploring Machu Picchu: an Analysis of the legal and ethical issues surrounding the repatriation of cultural property. Duke Journal Comparative and International Law. v. 19, 2006, pp.199-221, p. 202. 82 McINTOSH, Molly L. Exploring Machu Picchu: an Analysis of the legal and ethical issues surrounding the repatriation of cultural property. Duke Journal Comparative and International Law. v. 19, 2006, pp.199-221, p. 203. 83 YALE. Statement from Yale University Regarding Machu Picchu Archaeological Materials. Yale News. 21 nov. 2010. Disponível em: http://news.yale.edu/2010/11/21/statement-yale-university-regarding-machu-picchu-archaeological-materials Acesso em: 04 jun. 2013. 84 ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. Republic of Peru v. Yale University, No. 1:08-CV-02109, Original Complaint, 5 dez. 2008. Disponível em: http://law.justia.com/cases/federal/districtcourts/district-of-columbia/dcdce/1:2008cv02109/134251/21/ Acesso em: 17 jan. 2013. SALIBA, Aziz; FABRIS, Alice Lopes. O retorno de bens culturais. Revista de Direito Internacional, Brasília, v. 14, n. 2, 2017 p. 489-509 disso, a diferença entre retorno e devolução de bens culturais é discutida, também, pela Assembleia Parlamentar, na qual afirma que somente a devolução, que se concretiza quando a retirada do bem é ilegal, seria obrigatória, sendo o retorno facultativo ao Estado.73 Deve-se ressaltar que o Parlamento Europeu aprovou a Diretiva 2014/60 que estabelece “os bens culturais que tenham saído ilicitamente do território de um Estado-Membro devem ser restituídos segundo os trâmites e nas condições previstas na presente diretiva”,74 mas restringe a obrigação em seu artigo 14 “para apenas a bens culturais que tenham saído ilicitamente do território de um Estado-Membro a partir de 1 de janeiro de 1993, inclusive”,75 não sendo, assim aplicável ao caso. Nota-se que essa Diretiva foi incorporada por diversos países europeus,76 contudo, seu limite temporal impede uma ampla aplicação. 498 O primeiro problema que deve ser analisado é o de propriedade. O Estado alegou, com base nos decretos peruanos de 1911, 1912 e 1916, promulgados para regulamentar a expedição de Bingham, que os artefatos são peruanos. O primeiro decreto dispõe que todos os monumentos incas são propriedade peruana e que somente réplicas eram autorizadas a sair do país.88 O segundo versa sobre as escavações realizadas pela expedição, que reservava ao governo peruano o direito de pedir o retorno de artefatos e réplicas.89 E o terceiro, também tendo como objeto a expedição, previa que os artefatos considerados propriedade nacional deveriam ser objeto de retorno em um prazo de 18 meses.90 Contudo, como a legislação de Connecticut possuía prazo de prescrição de 15 anos, foi arquivada a demanda.91 Em fevereiro de 2011, com a intervenção do Senador Cristopher Dodd, Yale e o Estado do Peru assinaram um Memorandum of Understanding. Nesse acordo, o Estado peruano e a Universidade de Yale se comprometeram a criar um centro na Universidade Peruana Universidad Nacional de San Antonio Abad del Cusco, situada em Cusco, cidade mais próxima de Macchu Picchu, que iria expor os artefatos em questão.92 Em troca dos ar85 ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. Republic of Peru v. Yale University, No. 1:08-CV-02109, Original Complaint, 5 dez. 2008. Disponível em: http://law.justia.com/cases/federal/districtcourts/district-of-columbia/dcdce/1:2008cv02109/134251/21/ Acesso em: 17 jan. 2013. 86 ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. Republic of Peru v. Yale University, No. 1:08-CV-02109, Original Complaint, 5 dez. 2008. Disponível em: http://law.justia.com/cases/federal/districtcourts/district-of-columbia/dcdce/1:2008cv02109/134251/21/ Acesso em: 17 jan. 2013. 87 ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. Republic of Peru v. Yale University, No. 1:08-CV-02109, Original Complaint, 5 dez. 2008. Disponível em: http://law.justia.com/cases/federal/districtcourts/district-of-columbia/dcdce/1:2008cv02109/134251/21/ Acesso em: 17 jan. 2013. 88 PERU. Decreto de 2 Set. 1911. 89 PERU. Decreto de 31 Out. 1912. 90 PERU. Decreto de 14 jan. 1916. 91 CHECHI, Alessandro; AUFSEESER, Liora; RENOLD, MarcAndré. Case Machu Picchu Collection – Peru and Yale University. Platform ArThemis. Disponível em: http://unige.ch/art-adr Acesso em: 21 out. 2012. 92 McINTOSH, Molly L. Exploring Machu Picchu: an Analysis of the legal and ethical issues surrounding the repatriation of cultural tefatos, outros seriam emprestados para uma exposição no Yale Peabody Museum of Natural History.93 Além disso, tanto o governo peruano quanto a Universidade de Yale se comprometeram a conjuntamente: realizar conferências sobre a cultura inca; criar um website para o novo Museu e proporcionar intercâmbio entre os estudantes das duas entidades. Além de tudo, a Universidade de Yale se comprometeu também a auxiliar na arrecadação de fundos para o Museu peruano.94 6. CONVENÇÃO DO UNIDROIT SOBRE BENS CULTURAIS ROUBADOS OU ILICITAMENTE EXPORTADOS DE 1995 Em 1995, grandes inovações foram trazidas pela Convenção do UNIDROIT sobre Bens Culturais Roubados ou Ilicitamente Exportados. Em 1983, a UNESCO destacou a necessidade de realizar uma revisão da Convenção de 1970 para sanar lacunas identificadas em várias leis nacionais. A necessidade de harmonização das legislações nacionais relativas à prevenção do tráfico ilícito era evidente, tendo em vista que a Convenção de 1970 necessitava de incorporação em ordenamentos internos ou adoção de acordos bilaterais para ter efetividade.95 Assim, a pluralidade de leis e acordos dificultava o acompanhamento da compliance da Convenção. Contudo, entendeu-se que, devido ao grande número de Estados Partes à Convenção de 1970, seria mais efetiva a adoção de uma nova convenção. Nesse sentido, UNIDROIT, o Instituto Internacional para a Unificação do Direito Privado, seguindo um pedido da UNESCO, elaborou e aprovou um novo tratado para complementar a Convenção de 1970, que estabeleceu um corpo mínimo de normas de direito privado. 96 property. Duke Journal Comparative and International Law. v. 19, 2006, pp. 199-221, p. 215; YALE. Memorandum of Understanding Regarding the UNSAAC-Yale University International Center for the Study of Machu Picchu and Inca Culture Online: Disponível em: 93 TAYLOR, K. Yale and Peru Sign Accord on Machu Picchu Artifacts. New York Times. 11 fev. 2011. Disponível em: http:// artsbeat.blogs.nytimes.com/2011/02/11/yale-and-peru-sign-accord-on-machu-picchu-artifacts/ Acesso em: 10 jan. 2013. 94 YALE. Memorandum of Understanding Regarding the UNSAAC-Yale University International Center for the Study of Machu Picchu and Inca Culture Online: Disponível em: 95 PROTT, L.V. Commentary on the Unidroit convention on stolen and illegally exported cultural objects 1995. United Kingdom: Institute of Art & Law, 1997. 96 PROTT, L.V. Commentary on the Unidroit convention on SALIBA, Aziz; FABRIS, Alice Lopes. O retorno de bens culturais. Revista de Direito Internacional, Brasília, v. 14, n. 2, 2017 p. 489-509 dos bens acusação que foi retirada em fevereiro de 201085 — exportação ilegal de bens culturais; retenção ilegal desses artefatos e enriquecimento ilícito.86 O governo pretendia receber os artefatos e os lucros oriundos da exposição ocorrida no museu da universidade.87 499 Outro importante avanço dessa convenção encontra-se no artigo 3°, inciso 3. Um dos grandes problemas do retorno de bens culturais é a ocorrência da prescrição para requerê-la. Em muitos dos casos de demanda de retorno, o artefato reclamado encontra-se em outro Estado há mais de 100 anos. O caso Certain Phosphate Lands in Nauru (Nauru v. Austrália) perante a Corte Internacional de Justiça, lida com a questão da reabilitação das terras de fosfato em Nauru depois de sua independência. No caso supracitado, a Austrália alegou que Nauru teria perdido o direito de reclamar perante a Corte o direito sobre a reabilitação de terras minadas pela Austrália em Nauru, pois a vindicação não foi realizada em tempo razoável. A Corte reconheceu que ainda que o tratado que contempla o direito pleiteado não estabeleça um tempo para se reclamá-lo perante uma Corte, a demora na submissão de um pedido para que esse direito seja cumprido pode tornar a demanda inadmissível.99 Contudo, a Corte entendeu que a prescrição em direito internacional não tem tempo preestabelecido e deve ser analisada casuisticamente.100 No caso, entendeu-se que não ocorreu a prescrição.101 Também os comentários ao Projeto da Comissão de Direito Internacional das Nações Unidas sobre Responsabilidade Internacional dos Estados endossam a noção de análise casuística da prescrição, ao afirmar que “uma reclamação não será inadmissível por prescrição, a menos que as circunstâncias sejam tais que o Estado lesado seja considerado como tendo desistido do direito pleiteado ou o Estado demandado esteja seriamente em desvantagem”.102 stolen and illegally exported cultural objects 1995. United Kingdom: Institute of Art & Law, 1997, p. 26-7. 97 SECRETARIADO DA UNIDROIT, Convention on Stolen or Illegally Exported Cultural Objects: Explanatory Report. Disponível em: http://www.unidroit.org/english/conventions/1995culturalproperty/19 95culturalproperty-explanatoryreport-e.pdf Acesso em: 18 jan. 2013. 98 BRASIL. Decreto n.º 3.166, de 14 de Setembro de 1999, Promulga a Convenção da UNIDROIT sobre Bens Culturais Furtados ou Ilicitamente Exportados, concluída em Roma, em 24 de junho de 1995. 99 CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA. Certain Phosphate Lands in Nauru (Nauru v. Austrália). Julgamento de 1992, para. 31. 100 CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA. Certain Phosphate Lands in Nauru (Nauru v. Austrália). Julgamento de 1992, para. 32. 101 CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA. Certain Phosphate Lands in Nauru (Nauru v. Austrália). Julgamento de 1992, para. 34. 102 CDI, Draft articles on Responsibility of States for Interna- Podemos perceber os problemas que o lapso de tempo pode causar ao analisar um dos argumentos que o Reino Unido utiliza para justificar a manutenção dos Mármores do Partenon no British Museum. Para lidar com esse problema, a Convenção propõe “qualquer solicitação de restituição deve ser apresentada dentro de um prazo de três anos a partir do momento em que o solicitante toma conhecimento do lugar onde se encontra o bem cultural e da identidade do possuidor, e, em qualquer caso, dentro de um prazo de cinquenta anos a partir do momento do furto.103 A Convenção, ainda, estipula que, em caso de bens pertencentes a monumentos ou escavações arqueológicas identificadas ou coleções públicas, o prazo de 50 anos não pode ser aplicado. A convenção, no entanto, entrou em vigor em 1998 e não é retroativa, não podendo, assim, ser utilizada nos casos mencionados. 7. AS JOIAS DA TURQUIA O Museu de Arqueologia e Antropologia da Universidade da Pensilvânia (Penn Museum), na Filadélfia devolveu à Turquia, no dia 1° de setembro de 2012, vinte e quatro peças de ouro, datadas de 2.500 a.C., retiradas ilegalmente durante os primeiros trabalhos de escavação no sítio arqueológico da antiga Troia.104 Em 1874, o alemão Heinrich Schliemann foi autorizado a escavar nesse sítio identificado como a Troia de Homero. Após a concessão do firman com a autorização da escavação pelo Império Otomano, Schliemann retirou do país tais joias, ato não autorizado pelo documento.105 tionally Wrongful Acts, with commentaries Yearbook of the International Law Commission, 2001, vol. II, Part Two, p. 123. Disponível em: http://legal.un.org/ilc/texts/instruments/english/ commentaries/9_6_2001.pdf Acessado em: 05 jul. 2017 103 CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA. Caso sobre algumas terras de Fosfato em Nauru (Nauru v. Austrália). Julgamento de 1992, para. 32. 104 VELIOGLU, Ece; BANDLE, Anne Laure; RENOLD, MarcAndré. “Case Troy Gold – Turkey and the University of Pennsylvania Museum of Archaeology and Anthropology,” Platform ArThemis Disponível em:https://plone.unige.ch/art-adr/cases-affaires/troygold-2013-turkey-and-the-university-of-pennsylvania-museum-ofarchaeology-and-anthropology Acessado em: 07 jul. 2017. 105 UNIVERSITY OF PENNSYLVANIA. Penn Museum Strengthens Partnership with Turkey, Agrees to Indefinite Term Loan of “Troy Gold”. Disponível em: http://www.penn.museum/ information/press-room/press-releases-research/771-penn-museum-strengthens-partnership-with-turkey,-agrees-to-indefinite-termloan-of-troy-gold Acesso em: 14 jan. 2013. SALIBA, Aziz; FABRIS, Alice Lopes. O retorno de bens culturais. Revista de Direito Internacional, Brasília, v. 14, n. 2, 2017 p. 489-509 Apesar de seus conceitos vagos, essa convenção representa um grande progresso na proteção de bens culturais.97 Um dos avanços consta em seu artigo 3°, inciso 1, que estabelece “o princípio geral da restituição dos bens culturais roubados”.98 500 Em 2009 uma nova avaliação foi realizada e foram encontradas, nas peças, partículas consistentes com o solo do sítio de Troia.108 No final de 2011, o Ministério da Cultura da Turquia contatou o Penn Museum visando ao possível retorno desses bens.109 Várias discussões entre o Museu e o governo turco seguiram, resultando no empréstimo por tempo indefinido ao Museu da Turquia em Ancara.110 106 UNIVERSITY OF PENNSYLVANIA. Penn Museum Strengthens Partnership with Turkey, Agrees to Indefinite Term Loan of “Troy Gold”. Disponível em: http://www.penn.museum/ information/press-room/press-releases-research/771-penn-museum-strengthens-partnership-with-turkey,-agrees-to-indefinite-termloan-of-troy-gold Acesso em: 14 jan. 2013. 107 BASS, G. F. “A Hoard of Trojan and Sumerian Jewelry” American Journal of Archaeology v.. 74, n. 4, oct., 1970, pp. 335-341, p. 341. 108 UNIVERSITY OF PENNSYLVANIA. Penn Museum Strengthens Partnership with Turkey, Agrees to Indefinite Term Loan of “Troy Gold”. Disponível em: http://www.penn.museum/ information/press-room/press-releases-research/771-penn-museum-strengthens-partnership-with-turkey,-agrees-to-indefinite-termloan-of-troy-gold Acesso em: 14 jan. 2013. 109 UNIVERSITY OF PENNSYLVANIA. Penn Museum Strengthens Partnership with Turkey, Agrees to Indefinite Term Loan of “Troy Gold”. Disponível em: http://www.penn.museum/ information/press-room/press-releases-research/771-penn-museum-strengthens-partnership-with-turkey,-agrees-to-indefinite-termloan-of-troy-gold Acesso em: 14 jan. 2013. 110 VELIOGLU, Ece; BANDLE, Anne Laure; RENOLD, MarcAndré. “Case Troy Gold – Turkey and the University of Pennsylvania Como nos casos apresentados anteriormente, o retorno foi possível por meio de um acordo entre o Museu de Arqueologia e Antropologia da Universidade da Pensilvânia com o Ministério da Cultura e Turismo da Turquia. Foi firmado o empréstimo por tempo indefinido à Turquia das joias; o Ministério da Cultura e do Turismo da Turquia se comprometeu a emprestar uma coleção relacionada aos artefatos escavados da tumba do Rei Midas nos sítios de Gordion e Lydia na Turquia; o governo turco concedeu um maior suporte às escavações realizadas pela Universidade no sítio de Gordion e prometeu o fortalecimento da cooperação entre a Universidade e o governo turco.111 8. CANHÃO EL CRISTIANO A Guerra do Paraguai foi um dos conflitos mais marcantes da história da América Latina. Iniciou-se em 11 de novembro de 1864 com o confisco, no Paraguai, do navio brasileiro “Marquês de Olinda” que transportava o então presidente da província do Mato Grosso. Rapidamente, o conflito se alastrou com a invasão paraguaia das províncias do Mato Grosso e Rio Grande do Sul. A apreensão do canhão “El Cristiano” foi o resultado da tomada, pelo exército brasileiro, da fortaleza de Humaitá em 1868. Esse canhão foi construído com o metal de sinos de várias igrejas paraguaias, recebendo, assim, por causa de sua origem religiosa, uma placa com os dizeres “La Religión al Estado”.112 Pode-se argumentar que o canhão era patrimônio histórico na medida em que representava os sinos das igrejas paraguaias. No entanto, o direito humanitário vigente na época autorizava a destruição ou apreensão de objetos militares em contexto de guerra, mesmo se esses constituíssem em bens culturais.113 A proibição da pilhagem é Museum of Archaeology and Anthropology,” Platform ArThemis Disponível em:https://plone.unige.ch/art-adr/cases-affaires/troygold-2013-turkey-and-the-university-of-pennsylvania-museum-ofarchaeology-and-anthropology Acessado em: 07 jul. 2017. 111 UNIVERSITY OF PENNSYLVANIA. Penn Museum Strengthens Partnership with Turkey, Agrees to Indefinite Term Loan of “Troy Gold”. Disponível em: http://www.penn.museum/ information/press-room/press-releases-research/771-penn-museum-strengthens-partnership-with-turkey,-agrees-to-indefinite-termloan-of-troy-gold Acesso em: 14 jan. 2013. 112 DUMANS, A. Museu Histórico Nacional através dos seus 19 anos de existência. Anais do Museu Histórico Nacional, v.1. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1940, p. 215. 113 Regra 38. As partes num conflito devem respeitar os bens culturais: SALIBA, Aziz; FABRIS, Alice Lopes. O retorno de bens culturais. Revista de Direito Internacional, Brasília, v. 14, n. 2, 2017 p. 489-509 O Museu comprou tais peças de um negociante de artes em 1966, não obstante sua origem duvidosa. Durante a avaliação de tais artefatos, o local de origem não foi definido, devido ao seu estilo bastante comum na Ásia e em Aegean de 2500 a.C. No entanto, foram encontradas similaridades às joias escavadas no sítio de Troia (Turquia), Poliochni on (Grécia) e Ur (Irã).106 A compra dos artefatos culminou em várias discussões dentro da comunidade do museu dando origem, em 1° de abril de 1970, à Declaração da Pensilvânia, na qual a universidade expôs uma nova política de compra de artefatos. Nesse documento, emitido pela universidade, ela se comprometeu a comprar apenas artefatos que tinham sua origem licitamente comprovada para tentar diminuir as exportações ilícitas de bens culturais, inspirando outras instituições a praticar a mesma política. Foi, ainda, ressaltada a necessidade de uma convenção eficaz que regulasse a exportação de bens culturais para que sítios arqueológicos em todo o mundo fossem preservados. O então diretor do Penn Museum declarou que “cada vez mais tesouros desse tipo perderão seu valor histórico, se a escavação e contrabando ilegal de antiguidade não acabarem.”107 A Declaração da Pensilvânia foi seguida pela Convenção da UNESCO. 501 Hoje, somente é autorizada tal destruição caso haja uma necessidade militar imperativa.119 Isto pois, com a adoção da Convenção de Haia de 1954, toda destruição do patrimônio cultural só é autorizada em caso de necessidade militar imperativa.120 Essa regra foi reafirmada A. nas operações militares ter-se-á especial cuidado em não danificar os edifícios dedicados a fins religiosos ou de caridade, ao ensino, às artes ou ciências, bem como monumentos históricos, a não ser que se trate de objectivos (sic) militares. B. não serão atacados os bens que tenham grande importância para o patrimônio cultural dos povos, salvo em caso de necessidade militar imperiosa. HENCKAERTS, J-M; DOSWALD-BECK, L. Customary Internacional Law, v. 2. Cambrigde: Cambridge University Press, 2010. 114 ICRC. Rule 52 Pillage. Disponível em:https://ihl-databases.icrc. org/customary-ihl/eng/docs/v1_rul_rule52 Acessado em: 6 jul. 2017. 115 Instructions for the Government of Armies of the United States in the Field (Lieber Code). 24 April 1863. In: SCHINDLER, D; TOMAN, J. The Laws of Armed Conflicts, Martinus Nihjoff Publisher, 1988, pp.323, artigo 44; Project of an International Declaration concerning the Laws and Customs of War. Brussels, 27 August 1874 in SCHINDLER, D; TOMAN, J. The Laws of Armed Conflicts, Martinus Nihjoff Publisher, 1988, pp.22-34, artigo 18 e artigo 39; The Laws of War on Land. Oxford, 9 September 1880 In SCHINDLER, D; TOMAN, J. The Laws of Armed Conflicts, Martinus Nihjoff Publisher, 1988, pp.36-48, artigo 32. 116 ORGANISATION FOR THE PROHIBITION OF CHEMICAL WEAPONS. Convention (II) with Respect to the Laws and Customs of War on Land (Hague, II) (29 Jul 1899) Disponível em:https://www.opcw.org/chemical-weapons-convention/ related-international-agreements/chemical-warfare-and-chemicalweapons/hague-convention-of-1899/ Acessado em: 05 jul. 2017. 117 ICRC. Regulations concerning the Laws and Customs of War on Land. The Hague, 18 Oct 1907. Disponível em: http://www.icrc. org/ihl.nsf/full/195 Acesso em: 12 jan. 2013. 118 OPPENHEIM, Lassa Francis Lawrence, LLD. International Law: a treatise, v. 2. Londres: Logmans, Green and Co LTDS, 1906, p. 139. 119 HENCKAERTS, J-M; DOSWALD-BECK, L. Customary Internacional Law, v. 2. Cambrigde: Cambridge University Press, 2010. 120 BRASIL. Decreto nº 44.851 de 11 de novembro de 1958. Promulga a Convenção e Protocolo para a Proteção de Bens Culturais em caso de conflito armado, Haia, 1954, artigo 4. no Segundo Protocolo à Convenção de Haia.121 A arte ou bens que possuem grande valor cultural a um povo não devem ser usados em ações militares.122 A definição dos artefatos que gozariam da proteção costumeira e dos tratados acima citados está explicitada no 1° artigo da Convenção da UNESCO de 1970.123 Entre o rol apresentado, encontramos “bens relacionados com a história, inclusive a história da ciência e da tecnologia, com a história militar e social, com a vida dos grandes estadistas, pensadores, cientistas e artistas nacionais e com os acontecimentos de importância nacional”.124 Dentre esses, podemos incluir o canhão do Paraguai. No entanto, Oppenheim argumenta que o metal de uma estátua não pode ser fundido para utilização militar se tal estátua tiver um valor grande para a sociedade, tendo sido essa prática considerada crime de guerra no Tribunal de Nuremberg.125 Portanto, a violação do princípio citado foi causada pelo próprio Paraguai e após a transformação dos sinos em canhões, esses se tornaram um objetivo militar, definido pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha como: Regra 8. No que diz respeito aos bens, os objetivos militares limitam-se àqueles bens que pela sua natureza, localização, finalidade ou utilização contribuam eficazmente para a ação militar e cuja destruição total ou parcial, captura ou neutralização ofereça, dependendo das circunstâncias do caso, uma vantagem militar precisa.126 Além disso, a restituição é reparação por um ato ilegal.127 Ora, o próprio Paraguai transformou os sinos em 121 BRASIL. Decreto nº 5.760, de 24 de abril de 2006. Promulga o Segundo Protocolo relativo à Convenção da Haia de 1954 para a Proteção de Bens Culturais em Caso de Conflito Armado, celebrado na Haia, em 26 de março de 1999, artigo 6. 122 OPPENHIEM, Lassa Francis Lawrence, LLD. International Law: a treatise, v. 2, 7 ed. Londres: Logmans, Green and Co LTDS, 1952, p. 395. 123 PATERSON, R. Draft Report on National Controls over the Export of Cultural Material. Disponível em: http://www.ila-hq. org/en/committees/index.cfm/cid/13 Acesso em 27 jun. 2013. 124 BRASIL. Decreto nº 72.312, de 13 de maio de 1973. Promulga a Convenção sobre as Medidas a serem Adotadas para Proibir e impedir a Importação, Exportação e Transportação e Transferência de Propriedade Ilícitas dos Bens Culturais, artigo 1°. 125 OPPENHEIM, Lassa Francis Lawrence, LLD. International Law: a treatise, v. 2, 7 ed. Londres: Logmans, Green and Co LTDS, 1952, p. 404. 126 HENCKAERTS, J-M; DOSWALD-BECK, L. Customary Internacional Law, v. 2. Cambrigde: Cambridge University Press, 2010. 127 Cf. Projeto da Comissão de Direito Internacional das Nações Unidas sobre Responsabilidade Internacional dos Estados in SALIBA, Aziz Tuffi. Legislação de Direito Internacional. 12a ed. São SALIBA, Aziz; FABRIS, Alice Lopes. O retorno de bens culturais. Revista de Direito Internacional, Brasília, v. 14, n. 2, 2017 p. 489-509 considerada norma consuetudinária114 e está contemplada em diversos manuais anteriores ao século XX.115 O primeiro documento jurídico a proibir, formalmente, a prática de pilhagem foi a Convenção de Haia de 1899 das leis e costumes da guerra terrestre, que estabelece, em seu artigo 28, “a pilhagem de uma cidade ou local, mesmo que tomadas por agressão, é proibida”,116 esse dispositivo foi reafirmado na Convenção de Haia de 1907 das leis e costumes da guerra terrestre.117 De acordo com L. Oppenheim, “movable pubilc enemy property can certainly be appropriated by a beligerent provided that it may directly or indirectly be useful for militar operations”.118 502 O vice-presidente paraguaio Federico Franco alegou que a cicatrização paraguaia das feridas decorrentes de tal conflito depende da devolução do artefato ao seu local de origem.128 Devemos salientar a importância de tal conflito para os paraguaios. Ao final do conflito, o país estava fragilizado, habitado somente por mulheres e crianças. O historiador Carlos Guilherme Mota descreve tal guerra como “um trauma, uma chacina em larga escala, uma hecatombe demográfica, um genocídio, inclusive no final, com o que restou do exército paraguaio cheio de crianças, um cataclismo que desequilibrou o Império.”.129 Todavia, a intenção manifestada pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva para que o Brasil devolvesse o canhão encontrou alguns óbices na legislação brasileira. Encontra-se na doutrina o entendimento de que a Constituição Federal tem como função primordial a proteção dos direitos fundamentais, separados em cinco modalidades130 e, dentre elas, é incluído o direito à proteção do patrimônio histórico e cultural131 que protege não somente a coisa em si, mas seu valor simbólico para a identidade de uma nação ou mesmo da humanidade como um todo. Assim, em seu artigo 23, a Constituição dispõe que: [...] são da competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: [...] III – proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, os Paulo: Rideel, 2017, pp. 361, artigo 31. 128 “[O] meu país nunca vai cicatrizar a ferida da epopéia de 1865 a 1870 se o Brasil não devolver o arquivo militar que injusta e injustificadamente retém hoje, como também retém o canhão Cristão, que devem retornar ao Paraguai para que se inicie a cicatrização do povo paraguaio” Discurso de Vice-Presidente Paraguaio no 140° Aniversário do fim da Guerra do Paraguai. RODRIGUES, José Eduardo Ramos. O caso da devolução do canhão “El Cristiano” ao Paraguai. Revista Magister de Direito Ambiental e Urbanístico. Porto Alegre, v. 6, n. 31, ago. 2010, p. 82. 129 MOTA, Carlos Guilherme. História de um silêncio: a guerra contra o Paraguai (1864-1870) 130 anos depois. Revista Brasileira de Estudos Avançados, São Paulo: v. 9, n. 24, mai./ago. 1995. 130 GOMES, E. X. O patrimônio como direito fundamental. In Patrimônio Cultural. Coleção Ministério Público e Direitos Fundamentais. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2013. 131 MIRANDA, Marcos Paulo de Souza. Tutela do Patrimônio Cultural Brasileiro: doutrina – jurisprudência – legislação. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 16-17. monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos; IV – impedir a evasão, a destruição e a descaracterização de obras de arte e de outros bens de valor histórico, artístico ou cultural.132 No entanto, o dispositivo que melhor protege o patrimônio histórico e cultural brasileiro é, sem dúvida, a Lei do Tombamento.133 Nessa é vedada a saída do país de todo bem tombado. José Eduardo Ramos Rodrigues descreve o tombamento como: “um ato administrativo pelo qual o Poder Público declara o valor cultural de coisas móveis e imóveis, inscrevendo-as no respectivo Livro do Tombo, sujeitando-as a um regime especial que impõe limitações ao exercício da propriedade, com a finalidade de preservá-las”.134 O canhão foi tombado em 1998 pelo Instituto do Patrimônio e Artístico Nacional juntamente ao acervo do Museu Histórico Nacional. Nesse sentido, a retirada do canhão do Museu e seu envio para o Paraguai seria ilegal conforme a lei brasileira. Uma possível solução é o destombamento. Ele é autorizado pelo ordenamento brasileiro caso atenda a “motivos de interesse público”, como o disposto no Decreto-Lei n.25 de 30 de novembro de 1937 e deve ser executado pelo Presidente da República de ofício ou em grau de recurso.135 Tal dispositivo, no entanto, tem sua constitucionalidade questionada por diversos doutrinadores. Segundo José Eduardo Ramos Rodrigues, não seria legítimo um ato individual do Presidente, sem a necessidade de consultar o povo, para cancelar uma proteção que tem como objeto um bem de todos. O autor propõe que, devido à importância do bem para uma comunidade ou para o povo brasileiro como um todo, o ato que cancele a proteção deveria ser executado somente mediante ação civil pública ou ação popular.136 Ademais, 132 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil (1988), 5 out. 1988, artigo 23. 133 BRASIL. Decreto-Lei n° 25, de 30 nov. 1937. Organiza a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional. 134 RODRIGUES, José Eduardo Ramos. Meio ambiente cultural: tombamento, Ação civil pública. In: MILARÉ, Edis (Coord.) Ação Civil Pública: Lei 7.347/1985 – 15 anos. 2a ed. São Paulo: RT, 2002, p. 313. 135 BRASIL. Decreto-Lei nº 3.866, de 29 de novembro de 1941, dispõe sobre o tombamento de bens no Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, artigo único. 136 RODRIGUES, José Eduardo Ramos. O caso da devolução do canhão “El Cristiano” ao Paraguai. Revista Magister de Direito Ambiental e Urbanístico. Porto Alegre, v. 6, n. 31, ago. 2010, p. 82. SALIBA, Aziz; FABRIS, Alice Lopes. O retorno de bens culturais. Revista de Direito Internacional, Brasília, v. 14, n. 2, 2017 p. 489-509 canhão, objeto militar por excelência e, assim, uma vez que o Brasil não cometeu ato ilegal, não pode o Paraguai pedir a restituição. 503 O autor, ainda, argumenta que, como o ato de tombamento pode resultar em benefícios em favor do proprietário, o cancelamento unilateral é inadmissível, pois nega aos interessados o direito ao contraditório e à ampla defesa.141 Apesar de questionado, tal dispositivo foi usado inúmeras vezes.142 De fato, a autorização presidencial para a retirada do status de um bem que teoricamente tem importância para todo o país não condiz com a função da proteção concedida que deve, entre outras coisas, proteger tal bem dos abusos do poder executivo. Assim, para legitimamente ser retirada a proteção do canhão, é necessário o pedido de destombamento, o qual poderia ser encaminhado ao Congresso Nacional, órgão representante do povo. Sobre a ilegalidade da retirada do canhão “El Cristiano” do território paraguaio, como já exposto, tal ato não violou nenhuma norma de direito internacional vigente à época, e não podem ser aplicadas, nesse contexto, a 137 MIRANDA, Marcos Paulo de Souza. Tutela do Patrimônio Cultural Brasileiro: doutrina – jurisprudência – legislação. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 129. 138 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil (1988), 5 out. 1988, artigo 84. 139 MIRANDA, Marcos Paulo de Souza. Tutela do Patrimônio Cultural Brasileiro: doutrina – jurisprudência – legislação. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 130. 140 “Artigo 182, § 1º Os bens culturais sob proteção do Estado somente poderão ser alterados ou suprimidos através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção.” ESPIRITO SANTO, Constituição de 1989. Emenda 61/09. Disponível: http://www.al.es.gov. br/appdata/anexos_internet/downloads/c_est.pdf Acesso em 20 de mai. de 2017. 141 MIRANDA, Marcos Paulo de Souza. Tutela do Patrimônio Cultural Brasileiro: doutrina – jurisprudência – legislação. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 131. 142 O destombamento da igreja de São Pedro dos Clérigos e a igreja do Calvário para a abertura da Av. Presidente Vargas, em 1942, no Rio de Janeiro; o cancelamento do tombamento do Pico do Itabirito, em Minas Gerais. in MIRANDA, Marcos Paulo de Souza. Tutela do Patrimônio Cultural Brasileiro: doutrina – jurisprudência – legislação. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p.131. Convenção de Haia sobre a proteção de bens culturais em evento de conflito armado de 1954, a Convenção da UNESCO relativa às medidas a adotar para proibir e impedir a importação, a exportação e a transferência ilícitas da propriedade de bens culturais de 1970 e a Convenção do UNIDROIT sobre bens culturais roubados ou ilicitamente exportados de 1995. Não obstante as críticas de diversos historiadores e juristas, o Ministério da Cultura sugeriu que “a devolução está sendo reconsiderada, para que o canhão faça parte de ‘ações de cooperação de interesse para os dois países’, como a criação de um museu”.143 9. CONSIDERAÇÕES FINAIS A proteção de bens culturais é objeto de discussão em diferentes conferências internacionais, desde 1907, com a Convenção de Haia (IV) sobre leis e costumes da guerra terrestre. Contudo, somente em 1970 foi adotada a primeira Convenção sobre o tráfico ilícito de bens culturais que proibiu a importação, exportação e transferência ilícita de bens culturais protegidos. Essa convenção foi atualizada em 1995 pela Convenção da UNIDROIT, que estabeleceu normas de direito internacional privado com vistas a coibir o tráfico ilícito. Observa-se que, para que haja restituição nas hipóteses contempladas por essas convenções, é necessária a comprovação da retirada ilícita do bem. No entanto, os pedidos de retorno de bens culturais lidam, em grande parte, com objetos retirados de seu país de origem antes de 1970, o que impede a aplicação dessas Convenções. Nos casos estudados, percebemos que o retorno de bens culturais, quando inaplicáveis as Convenções internacionais, sujeitam-se à discricionariedade dos Estados que receberam tais bens. Há países que discordam da ilegalidade da retirada do bem e negam seu retorno, como se constata no caso dos Mármores do Partenon, que opõe o Reino Unido e a Grécia, JUNQUEIRA, Thais Lanna. O PICO DA DISCÓRDIA: Conflitos na patrimonialização de um conjunto paisagístico em Itabirito na década de 1960. Anais do 4º Colóquio Ibero-Americano Paisagem Cultural, Patrimônio E Projeto. Disponível em:<http:// www.forumpatrimonio.com.br/paisagem2016/artigos/pdf/53. pdf> Acesso em 20 de mai. de 2017. 143 FLECK, I. A honra por um canhão. Folha de São Paulo. 18 abr. 2013. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ mundo/104452-a-honra-por-um-canhao.shtml Acesso: 04 jul. 2013. SALIBA, Aziz; FABRIS, Alice Lopes. O retorno de bens culturais. Revista de Direito Internacional, Brasília, v. 14, n. 2, 2017 p. 489-509 Marcos Paulo de Souza Miranda137 afirma que tal dispositivo não foi recepcionado pela atual Constituição, por não figurar entre as prerrogativas do Presidente da República, em seu artigo 84. No entanto, esse artigo discorre somente sobre suas competências privativas.138 Miranda ainda afirma que tal ato seria possível somente se executado mediante a expedição de uma lei.139 Essa dinâmica é prevista na Constituição Estadual do Espírito Santo.140 504 enquanto outros concordam com a restituição dos artefatos pleiteados, por meio de empréstimo e por tempo indeterminado, como se verificou no casos das joias de Troia e dos tesouros de Machu Picchu. BRASIL. Decreto Nº 7.030, de 14 de dezembro de 2009. Promulga a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, concluída em 23 de maio de 1969, com reserva aos Artigos 25 e 66. Como não se constatou ilegalidade na retirada do canhão “El Cristiano” durante a Guerra do Paraguai e inexistindo obrigação internacional de devolvê-lo, a decisão sobre seu eventual retorno ao Paraguai cabe ao Brasil. Observam-se, contudo, óbices impostos pela legislação brasileira para o retorno de um bem tombado devido ao Decreto n° 25 de 1935. Apesar de não existir uma obrigação internacional ou nacional de restituição desse bem, verifica-se, a partir dos casos estudados, uma crescente prática de devolução desses bens. BRASIL. Decreto nº 72.312, de 13 de maio de 1973. Promulga a Convenção sobre as Medidas a serem Adotadas para Proibir e impedir a Importação, Exportação e Transportação e Transferência de Propriedade Ilícitas dos Bens Culturais. ALBERGE, Dalya. Turkey turns to human rights law to reclaim British Museum sculptures. The Guardian. 8 dez. 2012. 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