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Vozes-mulheres negras ou feministas e antirracistas graças às Yabás

2021

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM MARIANA JAFET CESTARI VOZES-MULHERES NEGRAS OU FEMINISTAS E ANTIRRACISTAS GRAÇAS ÀS YABÁS CAMPINAS, 2015 MARIANA JAFET CESTARI VOZES-MULHERES NEGRAS OU FEMINISTAS E ANTIRRACISTAS GRAÇAS ÀS YABÁS Tese de doutorado apresentada ao Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas para obtenção do título de Doutora em Linguística. Orientadora: Profa. Dra. MÓNICA GRACIELA ZOPPI FONTANA Este exemplar corresponde à versão final da Tese defendida pela aluna Mariana Jafet Cestari e orientada pela Profa. Dra. Mónica Graciela Zoppi Fontana CAMPINAS, 2015 BANCA EXAMINADORA: Mónica Graciela Zoppi Fontana Ana Josefina Ferrari Lucília Maria Abrahão e Sousa Núbia Regina Moreira Pedro de Souza Rodrigo Oliveira Fonseca Lauro José Siqueira Baldini Suzy Maria Lagazzi IEL/UNICAMP 2015 Ata da defesa com as respectivas assinaturas dos membros encontra-se no processo de vida acadêmica do aluno. À minha avó Teresa da Silva Cestari, quem me ensinou que só o tempo sabe o tempo que o tempo tem. AGRADECIMENTOS Aos bons caminhos e aos passos em falso que firmaram minha pisada. Às perguntas mal feitas, refeitas, rarefeitas. Ao grupo Mulheres em Discurso, pela vontade de fazer coletivamente, ousadia, empolgação e amizades. A Águeda Borges, Aline Fernandes de Azevedo, Ana Paula Peron, Bia Bagagli, Gloria França, Luana Souza, Lauro Baldini, Monica Santos, Monica Cruvinel, Raquel Noronha, Valéria Costa, Valquiria Lima. Ao Coletivo de Trabalho e Contradição - Contradit, pelas reflexões sobre a práxis na Análise de Discurso. A Luciana Nogueira, pela parceria e pela alegria de olhar pra trás e nos ver juntas na estrada. À professora Mónica Zoppi Fontana, pela orientação, parceria e confiança. Pelo vigor teórico, que fortalece nosso caminhar como mulheres acadêmicas. Às professoras Ana Josefina Ferrari e Lucília Maria Abrahão e Sousa pelas leituras atentas, afetuosas e desafiadoras da evidência dos sentidos nas bancas de qualificação e defesa da tese (e em outras paragens). À professora Núbia Regina Moreira pela partilha de materiais sobre os movimentos de mulheres negras, contribuições de sua leitura da tese e orientação para seguir na trilha. Pelos questionamentos sobre minha identidade e afirmação de nossa fé nos passos que vêm de longe. Ao professor Pedro de Souza, pela participação instigante na banca de defesa da tese. À professora Marie-Anne Paveau, pela orientação no estágio na França e incentivo para trançar a Análise de Discurso aos estudos de gênero. Às amigues e companhias de viagens, pelas mãos dadas, risadas e abraços no inverno europeu. Alan Carneiro, Adriana Rio, Carolina Cherfem, Fernanda D’Olivo, Isadora Machado, Israel de Sá, Jane Barbosa, Moniza Moura, Renata Franco. A Rosemeire Marcelino, Claudio Platero, Miguel Leonel dos Santos e todxs funcionárixs do IEL/Unicamp que me apoiaram ao longo dos anos na pós-graduação. Ao Geledés - Instituto da Mulher Negra (São Paulo), na pessoa de Suelaine Carneiro, quem me indicou referências bibliográficas sobre as organizações de mulheres negras e documentos do arquivo da organização. A ONG Criola (Rio de Janeiro) e a Luceni Ferreira, quem me auxiliou na pesquisa de arquivo na instituição. Às mulheres que tive o prazer de encontrar durante o período do doutorado e que me inspiraram por sua postura no mundo, na academia, na luta, na relação com as palavras: Conceição Evaristo, Cidinha da Silva, Djamila Ribeiro, Nicéa Amauro, Magali Mendes, Lajara Janaína Correa, Jacqueline Moraes Teixeira. Às divas, atrevidas e empoderadas da Coletiva das Vadias de Campinas. Mexeu com uma, mexeu com todas! Às irmãs e amigas Vivian Parreira e Simone Gibran Nogueira, pela acolhida e encorajamento pessoal e político para os estudos negros. À Comunidade Jongo Dito Ribeiro. A Maria Alice Ribeiro, Alessandra Ribeiro Martins e Bianca Lúcia Ribeiro, significando três gerações de mulheres negras guerreiras que fazem acontecer e mandam no terreiro-quilombo-escola Casa de Cultura Fazenda Roseira. Ao Ilê Axé Omo Aiyê, de onde vejo as estrelas. Às irmãs, por nossa roda que não para de girar. A Benedito Luiz Amauro, o Mestre Lumumba, entusiasta do poder feminino, pelos ensinamentos sobre a história do matriarcado e das mulheres negras. Especialmente à minha Yayá Odoquerê, Nadia Santanna, pelo questionamento sobre a idealização do sagrado feminino, pela sabedoria partilhada na beira do fogão entre histórias, conselhos e temperos. Pela sorte, orgulho e responsabilidade de ser filha. Kolofé! Modupé irê! À família Jafet Cestari. Em especial, aos meus pais, pelo encontro de amor que uniu quatro continentes, pela história de luta, pela defesa da liberdade do caminhar. Às minhas comadres Alice Vilella, Gislaine Oliveira, Isabel Isoldi, Mirna Rolim e Ojire Ventura, pelos laços de afeto e vidas compartilhadas. Às amigas Larissa Rybka, Letícia Canelas, Cristina Beskow, Márcia Teani, Cecília Pereira, Maré Mariana Moreira, pelo lado a lado há um bom tempo. A Jefferson Voss, por ser cúmplice do que a palavra não diz. Pela amizade e por me ajudar com competência e praticidade a dar um ponto final na tese. A Tyara Veriato, pela leitura sagaz, escuta das angústias e dos sonhos, carinho generoso. Por fim, agradeço às agências financiadoras que viabilizaram esta pesquisa: ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), pela bolsa de doutorado durante o período de 2011 a 2014 (processo 141983/2011-6); à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), pela bolsa de doutorado entre os meses de junho de 2014 e janeiro de 2015 (processo 2014/03111-0); à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), pela bolsa de doutorado sanduíche, entre agosto de 2012 e julho de 2013 (processo PDSE nº 7240/12-0). Vozes-mulheres A voz da minha bisavó ecoou criança nos porões do navio. Ecoou lamentos de uma infância perdida. A voz de minha avó ecoou obediência aos brancos-donos de tudo. A voz de minha mãe ecoou baixinho revolta no fundo das cozinhas alheias debaixo das trouxas roupagens sujas dos brancos pelo caminho empoeirado rumo à favela. A minha voz ainda ecoa versos perplexos com rimas de sangue e fome. A voz de minha filha recorre todas as nossas vozes recolhe em si as vozes mudas caladas engasgadas nas gargantas. A voz de minha filha recolhe em si a fala e o ato. O ontem – o hoje – o agora. Na voz de minha filha Se fará ouvir a ressonância o eco da vida-liberdade. (Conceição Evaristo, in Poemas da recordação e outros movimentos, 2008) RESUMO A partir do lugar teórico, metodológico e político da Análise do Discurso materialista, em diálogo com o feminismo negro, enunciação de, para e sobre mulheres negras na abordo as lutas conjuntura das por lugares de lutas antirracistas e antissexistas no Brasil a partir de meados dos anos 70. Compreendo que estes lugares de enunciação são forjados em processos de subjetivação/identificação nos movimentos de inclusão/exclusão, diferenciação e ressignificação dos discursos feministas, dos movimentos negros, de construção da identidade nacional, da diáspora africana, entre outros. Minhas reflexões teóricas centram-se na enunciação de si, correlacionada a tópicos recorrentes, como a invisibilidade, os estereótipos sobre mulheres negras e o silenciamento, contrapostos à reivindicação da voz, da história de mulheres negras e à afirmação de identidades positivas. Construo um trajeto descritivo-interpretativo com foco nos funcionamentos do nós político e do eu político que posicionam mulheres negras como sujeitas de um dizer próprio em um corpus heterogêneo que perpassa a produção teórica, literária e intervenções políticas de intelectuais/ativistas negras. Discuto os modos como as lutas pela interpretação de si constituem as sujeitas mulheres negras em encruzilhadas de memórias e discursos fundadores. Palavras-chave: Análise de Discurso - mulheres negras; feminismo negro; silêncio; memória; discurso fundador. Abstract Based on the theoretical, methodological and political position of materialist discourse analysis, into dialogue with black feminism, I approach struggles for places of enunciation of, for and about black women in the context of anti-racist and anti-sexist struggles in Brazil from mid-70s. I understand these places of enunciation are forged in subjective/identifying processes from the movements of inclusion/exclusion, differentiation and resignification of feminist discourses, of the black movements, of construction of national identity, of the African Diaspora, among others. My theoretical reflections focus on the enunciation of self, correlated to recurring topics, such as invisibility, stereotypes about black women and the silencing, opposed to the claim of the voice and of the story of black women and to the affirmation of positive identities. I build a descriptive and interpretative path focusing on the political operation of political us and political I, both positioning black women as subject of a proper say in a heterogeneous corpus that crosses the theoretical and literary production, and political interventions of intellectual/activist black women. I discuss the ways in which struggles for the interpretation of self constitute the subject black women at a crossroad of memories and founding discourses. Keywords: Discourse Analysis - Black women; Black feminism; silence; memory; founding discourse. Lista de Figuras Figura 01 – Capa do jornal Nós Mulheres, n. 1, jun 1976. .................................................... 19 Figura 02 – Matéria De Palmares às escolas de samba, tamos aí! In: Jornal Mulherio, jan/fev. 1982. .................................................................................................................................... 92 Figura 03 – Capa do jornal O Estado de São Paulo, 3 de agosto de 1985............................ 110 Figura 04 – Montagem com imagens do vídeo do Coletivo Enugbarijo do III Encontro Feminista Latino-americano e do Caribe, 1985. Fala de Luiza Bairros e intervenção das mulheres negras brasileiras. ............................................................................................... 114 Figura 05 – Vídeo Coletivo Enugbarijo, 1985. Mulheres negras brasileiras cantam na plenária do III Encontro Feminista Latino-americano e do Caribe. . ................................................. 116 Figura 06 – Clipe de chamado à Marcha das Mulheres Negras, 2015. ................................ 118 Figura 07 – Imagem do III Encuentro Feminista Latinoamericano y del Caribe no clipe da Marcha das Mulheres Negras, 2015.................................................................................... 119 Figura 08 – Imagens de documento histórico e mapa da África do filme Ori, de Raquel Gerber (1989). ............................................................................................................................... 127 Figura 09 – Imagens de pessoas no Senegal no filme Ori, de Raquel Gerber (1989). .......... 128 Figura 10 – Imagens de pessoas em cabelereiros black no filme Ori, de Raquel Gerber (1989). .......................................................................................................................................... 129 Figura 11 – Capa e imagens do livro Eu, mulher negra, resisto, de Alzira Rufino (1988) ... 134 Figura 12 – Capa do livro Mulheres Negras em Primeira Pessoa (2012), organizado pela Articulação de Organizações de Mulheres Negras Brasileiras . ........................................... 162 Figura 13 – Imagens livro Casa Grande e Senzala em Quadrinhos, 2010. .......................... 198 Figura 14 – Página online e fotos do Coletivo Negração, 2014. .......................................... 207 Figura 15 – Página do Jornal Mulherio, n. 6, 1982. ............................................................ 210 Figura 16 – Cartaz de divulgação do Afrolatinas - exposição audiovisual de empoderamento de mulheres negras, de Chaia Dechen (2015). .................................................................... 232 Figura 17 – Cena do documentário Mulheres de Axé, de Marcos Rezende (2013)............... 235 ÍNDICE APRESENTAÇÃO................................................................................................................... 15 INTRODUÇÃO ....................................................................................................................... 17 DIZER DO LUGAR DE DIZER E(É) DIZER QUEM SOU: PROBLEMATIZAÇÃO E RECORTE .......... 27 1.1 Dos pontos de vista enunciativos às posições sujeito ...................................................... 32 1.1.1 A questão da reflexividade metaenunciativa e o discurso ..................................................35 1.2 O que dizem as mulheres negras (de si) para a Análise de Discurso? .............................. 38 1.3 Os pontos de vista das mulheres negras na academia: chegou a hora de darmos a luz a nós mesmas ................................................................................................................................ 44 1.3.1 Os pontos de vista e a enunciação de si ............................................................................46 1.4 Do conhecimento ao reconhecimento: as vozes na enunciação do saber.......................... 51 1.5 O discurso do movimento de mulheres negras? – constituição do corpus........................ 62 GUERREIRAS BRASILEIRAS: ANÔNIMAS E COM NOME E SOBRENOME .................................. 69 2.1 Origens do contemporâneo Movimento de Mulheres Negras ou feminismo negro, “nossos passos vêm de longe” ........................................................................................................... 74 2.2 Discursos fundadores ..................................................................................................... 84 2.3 De Palmares às escolas de samba: tamos aí! ................................................................... 86 2.4 Mulheres Negras Brasileiras no III Encontro Feminista Latinoamericano e do Caribe .. 100 2.4.1 O Estado de São Paulo ................................................................................................... 109 2.4.2 Vídeo do Coletivo Enugbarijo......................................................................................... 111 2.4.3 Marcha das Mulheres Negras 2015 ................................................................................ 117 2.5 Quem sou eu? – documentário Ori e a memória diaspórica........................................... 123 MULHERES NEGRAS EM PRIMEIRA PESSOA: EU, MULHER NEGRA, RESISTO! ..................... 131 3.1 O silêncio ruidoso chamado racismo e as lutas pela palavra .......................................... 137 3.2 Interlocução discursiva, posições sociais e imaginárias ................................................. 143 3.2.1 A noção de lugar de enunciação ..................................................................................... 149 3.3 Enunciação coletiva: eu e nós políticos ......................................................................... 151 3.3.1 Nós político .................................................................................................................... 155 3.3.2 Lugar de enunciação das mulheres negras, em primeira pessoa ..................................... 160 3.4 De que mulheres estamos falando? ............................................................................... 163 3.5 Eu, mulher negra, resisto .............................................................................................. 171 ESTEREÓTIPOS, LUTAS POR (RES)SIGNIFICAÇÃO E OUTRAS ROTAS DE SENTIDOS .............. 182 4.1 Estereótipo e a significação da mulher negra pelo corpo ............................................... 187 4.2 As mulheres negras escravas no discurso da democracia racial e do Brasil mestiço ..... 194 4.3 Na mira, a formação discursiva da democracia racial e a mulher negra significada pelo corpo.................................................................................................................................. 199 4.4 Outras rotas de sentidos: beleza negra ou Ora-yê-yê-ô .................................................. 209 4.5 Oyá é mulher forte, poderosa e sagrada ........................................................................ 217 CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................................... 238 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................................ 250 15 ___________________________________________________________________________ Apresentação ___________________________________________________________________________ 16 Pedrinha miudinha, pedrinha de Aruanda ê Lajedo, tão grande, tão grande de Aruanda ê Eram três pedras, eram três pedras, eram três pedras na minha aldeia Uma é maior, outra é menor A mais pequena que nos alumeia (ponto de fundamento) Não serei eu obrigado a começar por uma série de “chamadas” incidindo sobre pontos de definição que nada prova que não funcionar como signos de reconhecimento opacos, fetiches teóricos? (PÊCHEUX, 1983a: 18) Caminhos de chão batido, de grandes paralelepípedos, de pequenas pedras arredondadas, vias tão largas que são estrada ou campo aberto?, trilhas estreitas em que, ao andar, se roça em mata alta. Quantas memórias funcionam e sustentam sentidos equívocos na metáfora do caminho? Me vejo, então, em um trabalho um pouco ingrato: quero ajeitar essas imagens, penso em agrupá-las, ver quais se combinam, excluir as vias que para mim não são caminhos por critérios que invento para precisar certezas. Oponho pedras pequenas a paralelepípedos pesados, o descampado às trilhas estreitas. Pronto. Ah, não, agora tenho uma composição de quadros sem graça, ilustrações de uma fábula fora da história. Incômodo de mexer com esses objetos sem saber o que são, esse real que produz sentidos e, no meu corpo, mal estar do desencaixe. Vontade de fugir da escrita que por efeito constrói universos logicamente estáveis, de cantar o que penso sobre tudo isso e convidar quem queira para um baile de (des)mascarados. Falta clima. Sobra desconfiança. Tenho lá minhas dúvidas da autenticidade e autonomia desse eu desejante da liberdade de pisar no sem sentido ou repousar nos sentidos incertos. A teoria me puxa o pé na cama, quando acordo. Não há acordo. Permito-me questionar o trabalho científico, como tantxs fizeram e fazem. Quando suponho escolher entre as palavras aquelas menos escorregadias é por gosto de artesã do mosaico que incessantemente se (re)faz, nos deslizamentos dos sentidos evidentes ou nos que ficam de canto. Sigo para os gestos de leitura, com a disposição de superar a inclinação por uma lógica conceitual. Serei flagrada nas práticas das montagens textuais, em que funciona uma sobreinterpretação estrutural como efeito de conjunto? Pena peso pedra. 17 ___________________________________________________________________________ Introdução ___________________________________________________________________________ 18 As mulheres negras não existem. Ou, falando de outra forma: as mulheres negras, como sujeitos identitários e políticos, são resultado de uma articulação de heterogeneidades, resultante de demandas históricas, políticas, culturais, de enfrentamento das condições adversas estabelecidas pela dominação ocidental eurocêntrica ao longo dos séculos de escravidão, expropriação colonial e da modernidade racializada e racista em que vivemos (Jurema WERNECK, 2010: 10). Embora desterrada para o domínio das particularidades, das contingências, ou exterioridades do ser no qual me confinastes, pulsa em mim, em repulsa a esse ôntico ao qual me reduzistes, um resto ontológico que busca um diálogo restaurador dessa dupla mutilação que empreendestes em relação a ambos. Tu te encontras encastelado na contemplação da Ideia que tens do mundo e eu, anjo caído, residente nesse mundo te convido a olhá-lo com olhos que te permitam ver nele a tua face refletida. Só eu posso te ofertar esse olhar no qual a plenitude do teu ser se manifesta (Sueli CARNEIRO, 2005: 21). Para começar, apresento os questionamentos teóricos e políticos que senti como uma pedra no sapato na minha caminhada acadêmica, sendo que os atribuo à minha vivência fora da universidade. Durante o mestrado, estudei os discursos dos movimentos feministas brasileiros e argentinos nos anos 1970, tomando como base para o corpus da pesquisa a imprensa feminista alternativa/independente. Nesta ocasião, analisei, assim como o fizeram outras militantes feministas e pesquisadoras com base em diversas perspectivas teóricas, a emergência de mulheres como sujeito político-social no seio do movimento feminista. O foco de minha dissertação foi a relação entre a constituição de um discurso como lugar de diferentes posições sujeito feministas e a disputa pela palavra, considerando a problemática dos lugares de enunciação propícia para pensar tanto os processos de subjetivação nas práticas de resistência ao discurso dominante quanto a divisão social do direito de enunciar. A partir da perspectiva teórico-metodológica da Análise de Discurso, um dos pontos pelo qual perpassou minha incursão analítica foi o funcionamento do nós mulheres, inserido na temática do nós político. Estas análises, na trilha de estudos sobre enunciação e discurso político, discutiram a passagem de um enunciador individual eu, mulher, singular, para um enunciador coletivo, o nós, mulheres, como trabalho da linguagem que projeta imaginariamente mulheres como um coletivo social e historicamente oprimido na posição de quem toma a palavra. Este nós mulheres se constituía em um efeito de evidência do sujeito como origem de seu dizer, além de produzir um efeito de homogeneização, considerando todas as mulheres englobadas e significadas como um grupo com características comuns. Ao mesmo tempo, era lugar de denúncia, questionamento, formulação e anúncio de um programa que transformava a condição e os sentidos de mulheres por meio do engajamento político. Dito de outra maneira, os discursos feministas denunciavam a opressão das mulheres – pela socialização desde a infância que impõe papéis diferenciados a homens e mulheres, pelo não 19 reconhecimento e valorização do trabalho doméstico, pela imposição de padrões de beleza, pelo controle da sexualidade e afirmação da maternidade como vocação natural da mulher, pela violência sexista, pelas desigualdades em relação aos homens no mercado de trabalho e na política etc. – questionando os limites sócio-históricos e também discursivos que faziam com que a palavra mulher fosse significada como sinônimo de mãe, esposa e dona de casa. Além de interrogar e negar esta limitação do que mulheres poderiam ser e significar, defendendo sua construção histórica e social (em oposição à interpretação de que se tratava de algo da ordem do natural), pelo funcionamento de um futuro utópico, estes discursos convidavam as mulheres para a luta feminista em diferentes vertentes e anunciavam uma sociedade livre de opressões e desigualdades sociais. Havia, portanto, nos funcionamentos da repetição, negação e denúncia dos sentidos anteriores de mulheres e no anúncio do programa feminista desde um lugar de enunciação das e sobre as mulheres, a possibilidade de novos sentidos para mulheres na adesão ativa e performativa ao nós mulheres nos processos de identificação nas práticas feministas. Por sua vez, o feminismo era construído como o lugar da voz das mulheres (CESTARI, 2011; 2013). Figura 01 – Capa do jornal Nós Mulheres, n. 1, jun 1976. No percurso de muitas idas e vindas (nunca as mesmas idas e vindas...) que é o da descrição e análise do corpus, “Essa Nêga Falou!” foi interjeição que me instigou ainda quando eu fazia o mestrado. Este era o título de uma matéria do primeiro número do jornal feminista Nós Mulheres (1976-1978), considerado um dos mais importantes meios de organização e difusão do nascente movimento feminista de segunda onda no Brasil. A 20 ilustração da capa era uma montagem com desenhos de corpos inteiros, de uma bunda, bustos e rostos de mulheres, estas de diversas raças/etnias (negras, indígenas, brancas), idades (crianças, jovens, idosas), profissões e ocupações (dona de casa, miss, operária, trabalhadora rural, estudante, gari, etc.). Entre os funcionamentos do nós político neste discurso, nas análises que fiz no mestrado, trabalhava com a hipótese de um nós em processo de formação e não assentado em um efeito de pré-construído, em um coletivo já formado e delimitado, apesar de que funcionasse sobre já-ditos sobre as mulheres e sobre uma memória da feminilidade. A interrogação da identidade no plural, bem como a pluralidade das imagens, apontaria para uma multiplicidade de efeitos de sentidos relacionados à palavra mulheres nesta formação discursiva que designei feminista. Esta pluralidade imaginária – que incluía as mulheres negras –, no entanto, chocava-se com a constatação que eu sentia como incômoda do título Essa nêga falou!. Um incômodo sem nome (que na minha tese inspirou o nome de um subtítulo do Capítulo 3 – O silêncio ruidoso chamado racismo). Se a capa e o editorial desta edição questionavam “quem somos?”, em uma interrogação formulada desde um lugar próprio das mulheres que perguntavam sobre sua identidade – ou seja, que diziam sobre elas mesmas e para elas por meio de um locutor coletivo aqui marcado pelo pronome de primeira pessoa do plural determinado pelo nome mulheres – a tomada da palavra da mulher negra aparecia como o gesto da outra, que não ocupa posição de locutora no acontecimento enunciativo e sim é representada no enunciado como terceira pessoa pela construção com o demonstrativo 1. De certo modo, dando continuidade ao mestrado, novamente a partir do lugar teórico-metodológico da Análise do Discurso materialista, em diálogo mais direto com o feminismo negro e interlocução com a produção teórica do campo dos estudos feministas e de gênero, bem como dos estudos negros sobre relações raciais e racismo, procuro compreender a emergência de um coletivo de identificação que fissura a unidade imaginária do nós mulheres, o nós mulheres negras. Aprendi (me identifiquei) com as intelectuais/ativistas negras que a palavra mulher muitas vezes funciona(va) no discurso como sinônimo de “mulher branca urbana de classe média”. Entre elas, cito as brasileiras Lélia Gonzalez, Sueli 1 Uma breve incursão analítica da matéria Essa Nega Falou (1976) delimitou os principais temas desta tese: a disputa pela palavra na política e a divisão social do direito de enunciar; a formação do sujeito político-social e sua relação com processos de subjetivação no discurso; o engajamento do sujeito do discurso pelos sentidos das palavras, neste caso o engajamento de mulheres negras na luta pelos sentidos de determinados objetos discursivos paradoxais, em relação de polêmica com outros discursos (feminista, machista, da brasilidade, do movimento negro, etc.); os estereótipos de mulheres negras e sua relação com redes de filiação histórica dos sentidos, em que há memórias dominantes e dominadas. 21 Carneiro e Jurema Werneck e as autoras estadunidenses do Black Feminism, Angela Davis, Audre Lorde, bell hooks2, Patricia Hill Collins. Denunciar a sinonímia mulheres=mulheres brancas de classe média apagada e sustentada pela eficácia da ideologia, quando os dizeres eram direcionados ao movimento feminista, era questionar o nós mulheres do feminismo como lugar de identificação e de representação política de todas as mulheres, disputando os sentidos de mulheres e de feminino. Esses questionamentos estiveram na base da formação do que se denomina movimento de mulheres negras e/ou feminismo negro – que participou de uma das vertentes da história das mulheres negras como sujeito político-social em sua disputa por lugares de dizer (e existir) na sociedade brasileira. Os enunciados e os silêncios que significam este discurso remetem a sentidos anteriores e exteriores e a dizeres sobre e de mulheres negras na história brasileira e diaspórica africana. Nos gestos de interpretação que percorrem diferentes temporalidades nos caminhos descontínuos da memória, reconheço ser afetada pelos discursos em circulação na atualidade. Foram eles (também) que me provocaram a (e me impuseram) pensar mulheres negras como sujeitas de dizer – gritando nos atos feministas de rua suas palavras de ordem, denunciando em carta pública a discriminação racista e sexista de algum político desse nosso país, argumentando pelo uso da expressão genocídio, nas batalhas contra o brutal extermínio da juventude negra, declamando nos saraus protestos e amores, cantando ladainhas e tocando seus berimbaus em rodas de capoeira, rezando em línguas africanas nos fóruns contra a intolerância religiosa e nos terreiros, tocando seus tambus e fazendo suas mirongas nas rodas de jongo e nos encontros pelo patrimônio imaterial, em mesas de debates e de negociações políticas com o poder público para a aprovação de políticas para o povo negro. Palavras e imagens produzidas, reportadas e multiplicadas nas redes sociais, nos blogs politizados, em portais de notícia, nas dissertações, artigos e teses3. Mulher negra é colocada em foco em nossa pesquisa como sujeito político e teórico, que, ao ser pensado em sua complexidade por uma posição marcada pela Análise do 2 A grafia com as primeiras letras dos nomes em minúscula é escolha da autora, que faz uma homenagem a sua bisavó materna Bell Blair Hooks. Esta escolha política da intelectual/ativista assim como os debates feministas em torno de questões epistemológicas e sobre sexismo na linguagem impactam a escrita desta tese (com o uso de x, a inserção de primeiros nomes de autoras, o uso no feminino de termos usados em geral no masculino, entre outros). 3 Assinalo que a inserção de negros e negras no campo da pesquisa científica e da produção de conhecimento faz parte da história das lutas pelo direito à educação, ao conhecimento e pela superação do racismo (GOMES, 2010). Mais recentemente, devem-se considerar os impactos do crescente ingresso de negras e negros no ensino superior por uma série de fatores, tais quais a recente política de expansão de vagas neste nível de ensino e as cotas como parte de uma política de ações afirmativas. 22 Discurso, lança desafios teóricos, metodológicos e éticos. Penso em gênero e raça como categorias, construções discursivas e diferenciadores sociais partícipes dos processos contínuos de interpelação do sempre-já sujeito em que têm papel importante as nomeações gendradas e racializadas em redes históricas de sentidos que se movimentam e se organizam em relações de dominância que imbricam diferentes discursividades. Como e quando o sujeito do discurso é significado e toma posição em relação aos gêneros e às raças nos discursos políticos nas práticas dos movimentos políticos, sociais, artísticos, culturais e estéticos em condições de produção determinadas? Como pensar a relação entre memórias em polêmica na construção da história do Brasil, de seus discursos fundadores e das narrativas de grupos sociais que reivindicam voz e uma identidade particular? Um dos desafios a que se propõe o grupo de pesquisa Mulheres em Discurso 4, do qual sou integrante, é pensar a subjetivação na imbricação de relações de exploração e opressão. Neste sentido, pergunto-me sobre os estatutos teóricos dado ao gênero e à raça no processo de constituição subjetiva, em outras palavras, sua relação constitutiva com os processos de interpelação ideológica e de individuação do sujeito do discurso. Penso nos dispositivos de enunciação que permitem historicamente a produção da subjetividade, na contradição entre filiações de sentidos e memórias discursivas a partir das quais se constroem as identificações de classe, gênero, raciais e outras entrelaçadas, constitutivas dos sujeitos em formações sociais capitalistas, racializadas, racistas, gendradas e sexistas. Em uma proposta menos centrada na trajetória de um feminismo singular e de suas rupturas em direção à pluralidade, desloco minha questão para a constituição de lugares de enunciação das mulheres negras. Busco, assim, apreender a formação de discursos em que mulheres negras são sujeitas de dizer no campo das lutas políticas antissexistas e antirracistas nos quais se inscrevem os autodenominados movimento de mulheres negras e feminismo negro no Brasil, em suas relações com a produção literária e acadêmica de mulheres negras. Para isso, construo um trajeto descritivo-interpretativo que discute o engajamento de mulheres negras brasileiras pela tomada da palavra e por seus sentidos com/no interior dos feminismos, movimentos de mulheres e movimentos negros, na literatura e na academia no processo de sua afirmação como sujeito político autônomo a partir dos anos 1970 e mais fortemente na década seguinte. 4 “Mulheres em Discurso. Lugares de enunciação e processos de subjetivação”, financiado pelo CNPq, processo 487140/2013-3, reúne pesquisadorxs de diversas instituições em uma reflexão teórica e analítica sobre a questão das identificações de gênero, exploradas a partir da Teoria da Análise de Discurso de filiação pecheuxtiana, em diálogo com os trabalhos de estudos da mulher, estudos feministas e estudos de gênero. 23 Os anos 1980 foram de importantes iniciativas de mulheres negras a nível nacional e continental, na conjuntura das lutas das esquerdas pela chamada redemocratização, no Brasil, e também da influência, no cenário nacional, das lutas dos negros estadunidenses por direitos civis e das lutas de libertação, pela descolonização, nos países africanos. Neste contexto, formam-se organizações de mulheres negras em diferentes regiões do país, com a realização de encontros nacionais de mulheres negras, sua participação em 1988 tanto da Constituinte quanto de atividades do Centenário da Abolição e sua intervenção organizada em fóruns internacionais do feminismo. Portanto, proponho-me a compreender a constituição histórica e discursiva de lugares de enunciação coletivos das, para e sobre as mulheres negras forjados em processos de subjetivação/identificação que envolvem o movimento de inclusão/exclusão, diferenciação e ressignificação nos confrontos e alianças estabelecidos com os discursos feministas, antirracistas, os discursos de construção da identidade nacional, entre outros. Ou seja, não considero a tomada de palavra das mulheres negras no movimento de mulheres negras como inaugural (e muito menos única) na história brasileira, pois isto seria apagar outros processos discursivos em que mulheres negras também são sujeitas. De forma diversa, trato de alguns gestos de tomada de palavra por intelectuais/ativistas na relação privilegiada com os discursos dos movimentos negros e feministas a partir de um recorte temporal determinado. Para isso, acompanho o engajamento do sujeito da enunciação na reivindicação de voz em sua pluralidade de significados, entre os quais destaco o reconhecimento de mulheres negras como sujeitas políticas, históricas, de dizer e da produção de conhecimento. Esta reivindicação de voz está imbricada com a luta para se significar desde sentidos ditos próprios, na contestação de sentidos sobre mulheres negras nos discursos dominantes. A retomada das trajetórias de mulheres heroínas ou anônimas e de experiências organizativas precursoras chamadas a compor suas narrativas de origem, a afirmação de referências femininas negras nas religiões de matrizes africanas e em outros espaços da africanidade, a contestação dos estereótipos de mulheres negras, a denúncia da invisibilidade e do silenciamento de sua voz no interior do feminismo, bem como dos privilégios das mulheres brancas, entre outros, compõem sua identidade discursiva na constituição de um lugar de dizer. Além de estes dizeres participarem da formulação de uma interpretação de si, dizem da construção histórica e cultural do Brasil, disputando com os discursos da brasilidade na academia, junto aos movimentos sociais, ao Estado, entre outros. 24 Para cumprir seu objetivo geral, esta tese se estrutura em quatro capítulos que mesclam teoria e análise. O primeiro capítulo aborda questões relativas à constituição do corpus da pesquisa, à definição e à apresentação de seu objeto e da especificidade de seu recorte, retomando a trajetória de elaboração de uma pergunta discursiva no entremeio de diferentes tradições teóricas e políticas. Delimito a questão discursiva da pesquisa a partir da observação de uma regularidade nos materiais que serviram de base para o corpus, a reflexividade metaenunciativa (AUTHIER-REVUZ, 1998; ZOPPI FONTANA, 2010). Tratase da enunciação de si assentada em tópicos recorrentes sobre o sujeito da enunciação, a (im)possibilidade de dizer e o silêncio, nos quais se nomeia e se interpreta a experiência do racismo e do sexismo, bem como a partir dos quais se dão tomadas de posição comprometidas com sua transformação. Apresento, então, uma proposta descritivo-interpretativa que atrela enunciação e processos de subjetivação, explorando os procedimentos de construção do corpus. Permeia este primeiro capítulo uma tentativa de tomada de posição no trabalho teórico, que tem como pano de fundo o debate sobre a práxis, caro tanto à Análise de Discurso marxista quanto aos estudos negros e aos estudos feministas. Esta tomada de posição resulta de uma relação contributiva com o ponto de vista feminista negro entendido como proposta epistemológica que defende que as teorias dominantes de conhecimento estão assentadas em interesses, valores e concepções gendradas e racializadas, silenciando saberes e vozes de grupos sociais excluídos das instituições acadêmicas. Assumindo sua interpretação de que o racismo determina as relações de gênero no contexto de sociedades multirraciais, pluriculturais e racistas (CARNEIRO, 2003), proponho uma tomada de posição feminista e antirracista na Análise de Discurso, já considerada uma proposta de práxis na luta de classes. No segundo capítulo, tocada pelo tema das relações entre acontecimento e memória, discuto as lutas por memória empreendidas por mulheres negras para se significar e os discursos constitutivos deste sujeito em suas práticas de rememoração e enunciação de si. O principal fio condutor desta reflexão é um ensaio em torno do III Encontro Feminista Latinoamericano e do Caribe (1985), que figura em parte das narrativas de origem da ação política organizada de mulheres negras na contemporaneidade. Como analista de discurso, pergunto-me pelos sentidos atualizados ou apagados quando se toma 1985 como data inaugural do movimento de mulheres negras ou do feminismo negro ao interpretá-los. Perpasso ainda as relações entre arquivo, memória e circulação de sentidos, considerando a veiculação, nos anos 2000 na internet, de imagens desse encontro. 25 Proponho que a intervenção das mulheres negras brasileiras neste encontro seja paradigmática das articulações de múltiplos discursos fundadores (ORLANDI, 1993), pensando que mulheres negras se significam inscritas numa encruzilhada de memórias. Nesta encruzilhada constitutiva das sujeitas mulheres negras, encontram-se de forma contraditória as memórias dos denominados novos movimentos sociais e movimentos identitários, bem como a memória diaspórica, esta última marcada pela noção de continuidade e ruptura de uma história de lutas e resistências desde África até a diáspora, instaurada/reorganizada/ reinventada nos discursos. No terceiro capítulo, enfoco a relação entre enunciação e processos de subjetivação e inscrevo a discussão sobre a enunciação de si no quadro da interpelação ideológica, pensando a interlocução discursiva e as imagens de si (projeções imaginárias dos interlocutores), principalmente a partir dos postulados de Pêcheux (1969, 1975), na luta por lugares de enunciação (ZOPPI FONTANA, 2002), por voz e contra o silenciamento. Nestas reflexões, destaco a significação do corpo-mulher-negra em seus discursos nos campos dos feminismos e dos movimentos negros. Indago ainda os nexos entre voz/visibilidade e silêncio/invisibilidade. Analiso os funcionamentos do eu político e do nós político que posicionam mulheres negras como sujeitas de um dizer próprio sobre si em análises de poemas, textos teóricos e apresentações de publicações de/por intelectuais/ativistas negras, produzidos dos anos 1980 aos dias de hoje. Quando o eu diz como mulher negra (e mais outras condições atreladas, como a de professora, das classes trabalhadoras, periférica, transgênera...), projetase como integrante de um coletivo que compartilha uma história, memórias, experiências comuns. Considero que dizer eu se dá como resistência às políticas de silêncio, como afirmação da condição de sujeito, em contraponto às investidas para sua objetificação – aqui tratada como o discurso do outro sobre as mulheres negras na condição de objetos sem agência e na forma de estereótipos. Trata-se de um processo contraditório, porque remete à homogeneização do comum às mulheres negras para afirmar o singular da trajetória individual, em tomadas de posição e contraidentificação aos sentidos dominantes sobre mulheres negras e em combate às políticas do silêncio (ORLANDI, 1993). No quarto capítulo, discorrerei sobre a construção histórica dos estereótipos como cristalização do discurso dominante sobre mulheres negras significadas como corpo sem mente, pondo em diálogo formulações da Análise de Discurso (AMOSSY; PIERROT, 1997) com outras, com destaque para as de Lélia Gonzalez (1984) e de bell hooks (1995). Perpasso 26 inicialmente os processos de construção dos estereótipos raciais-gendrados no imaginário sobre as mulheres negras pela exotização do Outro e racialização do seu corpo no colonialismo, conforme Roseane Borges (2012), Amanda Braga (2013) e Janaína Damasceno (2008). Argumentarei pela articulação deste imaginário com os discursos fundadores da identidade nacional e da brasilidade, em posições sujeito identificadas ao mito da democracia racial. Em seguida, com foco na figura da mulata, analiso práticas discursivas de interpretação, contestação e ressignificação deste estereótipo (e outros a ele atrelados) por vozes-mulheres negras. Para fechar este último capítulo, volto-me às lutas pela significação dos corpos femininos negros em sentidos positivos, em referência à memória diaspórica. Em especial, apresento e discuto como vozes-mulheres negras mobilizam diferentemente elementos das religiões de matrizes africanas de liderança e poder femininos como repertório para afirmação da identidade. Analiso os efeitos de sentido produzidos nos modos de invocação das Yabás (orixás femininas) pelas vozes e corpos de mulheres negras no campo do feminismo bem como por autoridades nas comunidades-terreiros em oposição ou em outras rotas de sentidos daquelas dos padrões dominantes de feminilidade. 27 ___________________________________________________________________________ Capítulo 1 Dizer do lugar de dizer e(é) dizer quem sou: problematização e recorte ________________________________________________________ 28 Por acreditar que a explicitação de momentos que marcaram minha trajetória de vida permite uma melhor compreensão das escolhas teórico-metodológicas que fiz, abordo-a aqui resumidamente para anunciar o lugar de onde falo (Claudia CARDOSO, 2010: 15). A partir do meu percurso acadêmico, em especial das questões em aberto no meu mestrado e apresentadas sucintamente na Introdução, elaborei o projeto que esteve na base desta tese. Tal projeto versava sobre o discurso do movimento de mulheres negras no Brasil, que entendia ser, no início da pesquisa, um discurso constituído na relação entre o discurso antirracista e o discurso feminista nos anos 70 e, mais intensamente, nos anos 80, no bojo das práticas dos movimentos negros e feministas. Meu objetivo central era analisar a constituição de um lugar de enunciação das mulheres negras, buscando apreender a formação do discurso do que foi denominado e que se autodenomina movimento de mulheres negras, como um dos discursos de mulheres negras no Brasil. Pretendia, durante a pesquisa, construir um trajeto descritivo-interpretativo que discutisse o engajamento de um movimento social e político de mulheres negras brasileiras por um lugar de enunciação com/no interior dos feminismos no processo de sua afirmação como sujeito político autônomo nos anos 1980. Supunha diferentes posições sujeito no interior de um discurso (entendido como formação discursiva), que apresentaria na descrição-interpretação do corpus como sendo expressões da pluralidade ideológica interna ao movimento. No decorrer da pesquisa, se firmou a hipótese de que as narrativas de origem5 e os modos de nomear o(s) movimento(s) de mulheres negras, a(s) luta(s) e resistência(s) das mulheres negras, as trajetórias das mulheres negras, o(s) feminismo(s) negro(s) são objeto de debate, reflexão e formulação internos nos coletivos de mulheres negras, militantes, ativistas, intelectuais-ativistas. Se dizer ou não feminista (e tecer ressalvas sobre isso) é uma questão forte entre estas mulheres negras a partir dos anos 1970 e que aparece recorrentemente na bibliografia sobre suas lutas políticas. De algum modo, poderia se pensar como as polêmicas acerca da nomeação e das narrativas de origem sintetizam a contradição da encruzilhada de memórias que constituem um lugar de enunciação dividido. Afirmar que o movimento de mulheres negras veio do movimento negro; que o que existe é o movimento negro do qual participam as mulheres negras com suas demandas; que o movimento de mulheres negras contemporâneo é tributário das histórias e práticas de luta de mulheres negras na África e na diáspora; que o movimento de mulheres negras veio da 5 Tomo o termo da historiadora do feminismo Joana Pedro (2006), quem o emprega para tratar das narrativas resultantes conflitos e disputas entre coletivos e outros sujeitos político-sociais. Apresentarei uma análise sobre as narrativas de origem dos movimentos de mulheres negras no segundo capítulo. 29 multiplicação, ampliação ou fragmentação do feminismo; que a emergência do movimento de mulheres negras acontece nos anos 1970 ou 1980, elegendo marcos como 1988 e destacando a Constituinte e/ou os 100 anos da chamada Abolição, ou encontros políticos nacionais de mulheres negras ou ainda encontros feministas internacionais; que não são possíveis afirmações sobre o feminismo negro ou um movimento de mulheres negras no Brasil, pondo em questão sua expressão política, seu alcance, suas bases de sustentação; que se deve referir a esse movimento sempre no plural, tratando dos movimentos negros, dos movimentos de mulheres negras, dos feminismos; estes são todos modos possíveis de dizer desde diferentes posições sujeito, de se inserir num debate no qual se confrontam redes de memória nas lutas por sentidos e lugares de enunciação. A circulação destas diversas descrições e narrativas, que por vezes – não sempre – conforma polêmicas, extrapola os coletivos ou organizações de mulheres negras. Ela também acontece por meio da produção acadêmica sobre o tema, nos fóruns políticos que reúnem mulheres negras, em textos de opinião nos blogs de mulheres negras, em editais públicos de fomento a projetos voltados às mulheres negras, em materiais educativos e de divulgação produzidos por articulações de mulheres negras, na literatura negra, afrobrasileira, diaspórica, entre outros. Portanto, apresentar “o movimento de mulheres negras”, defini-lo, construir uma narrativa histórica sobre ele e eleger textos para significá-lo (propor uma montagem textual, constituir um corpus significando-o) implica(ria), em minhas análises, a inscrição do trabalho em uma das posições sujeito dos discursos de sujeitas mulheres negras que constroem suas narrativas de origem, dizendo de si6. Ademais, analisar discursos de sujeitos que reivindicam a palavra para se significar desde um lugar próprio coloca questões éticas e políticas para a produção do texto acadêmico. A problematização da evidência do movimento de mulheres negras, advinda do próprio contato com teorias políticas e sociais de intelectuais negras brasileiras (GONZALEZ, 1983; CARNEIRO, 2003; WERNECK, 2010; MOREIRA, 2011; CARDOSO, 2012), contribuiu, em suma, para que eu mapeasse posições sujeito de mulheres negras, bem como para que eu questionasse o limite do projeto da Análise de Discurso em descrever-interpretar posições ideológicas em um corpus. Nesta tentativa de organizar posições ideológicas no 6 Sobre os gestos de interpretação, Eni Orlandi (2012) propõe dois níveis de interpretação: um deles diz respeito à construção de um dispositivo teórico-analítico com o objetivo de deslocar o(a) analista do lugar da evidência, e o segundo diz respeito às posições sujeito em funcionamento nos textos analisados, ou seja, ao objeto da análise. No caso das minhas primeiras incursões analíticas, poderia dizer que aderi sem me dar conta a uma posição em funcionamento nos textos que potencialmente compõem meu corpus. Retomarei, ainda neste capítulo, a reflexão sobre o lugar da interpretação na Análise de Discurso. 30 interior de um discurso, o que aparecia como maior desafio para a análise era descrever as relações de força entre sentidos em sua dispersão, sem para isso circunscrever as análises nas fronteiras do que eu determinava previamente como discurso político de um movimento social, o que me levou a um movimento de ampliação do que poderia ser o corpus. Esta proposta de ampliação e diversificação do corpus motivou questionamentos em fóruns acadêmicos sobre a delimitação do objeto de minha pesquisa e sua viabilidade como projeto de tese. Foi mobilizada por estas críticas e pelas análises iniciais sobre a constituição deste lugar de enunciação de mulheres negras que, como analista, observei a recorrência da reflexividade metaenunciativa ou enunciação de si, perguntando-me sobre seus funcionamentos e as relações que poderiam ser traçadas com os processos de subjetivação, buscando com isso delimitar melhor uma questão discursiva de pesquisa e recortar o corpus. Este capítulo discute, portanto, estas questões relativas à constituição do corpus da pesquisa, à definição e à apresentação de seu objeto e da especificidade de seu recorte, retomando a trajetória de elaboração do projeto da tese e o modo como compreende e se insere na Análise de Discurso, um campo que comporta diferentes e divergentes propostas teórico-metodológicas. Também atravessa este capítulo uma tentativa de tomada de posição política no trabalho teórico; tal tomada de posição resulta de uma relação contributiva com as propostas epistemológicas feministas que defendem a existência de interesses e valores gendrados nas teorias tradicionais do conhecimento, questionam a ciência moderna como única forma de produção de conhecimento válido, defendem a pesquisa numa perspectiva emancipatória por representar um projeto social e político de transformação das relações sociais e postulam um projeto científico alternativo (CARDOSO, 2012: 67). Dentre as perspectivas feministas, elejo como central as contribuição do feminismo negro e, de modo mais amplo, das intelectuais/ativistas negras. Objetivando deslocar o lugar das evidências de sentidos, as análises dos discursos classistas racializados de gênero chocam-se com os limites das epistemologias dominantes e convidam aos diálogos com vertentes dos estudos sobre relações raciais e relações de gênero, e com lutas dos movimentos negros e feministas, como já assinalei. Dentre as propostas epistemológicas feministas, abordarei brevemente neste primeiro capítulo aquelas reunidas como epistemologias perspectivistas ou teorias do ponto de vista, por sua filiação ao pensamento feminista negro, que desafia a divisão social da enunciação, questionando as hierarquias entre os feminismos e a representação política no campo feminista, bem como a autoridade e legitimidade da fala nas epistemologias tradicionais com o silenciamento de 31 vozes e supressão de saberes de determinados grupos sociais; o farei, diga-se de passagem, me voltando para a produção acadêmica do/sobre o movimento de mulheres negras e a partir das vozes que esta circulação específica agencia, ressignifica e rememora. Esta adesão parcial às teorias do ponto de vista, em que se busca pensar “ponto de vista” discursivamente, pretende significar o reconhecimento dos processos complexos de interpelação em uma formação social com desigualdades sociais, raciais, de gênero, e com histórico de expropriação colonial e séculos de escravidão que constituem sujeitos e sentidos em luta. Nesta perspectiva, os discursos que constituem os sujeitos são pensados na tese como discursos classistas racializados de gênero, denominação que adoto para referir-me ao conjunto de discursos que produzem e fazem circular os imaginários de gênero-raça-classe. Além disso, avalio que a maior empreitada desta tese foi justamente delimitar seu objeto e seu corpus, pois o sujeito mulheres negras desafia a Análise de Discurso, ao menos da forma tal qual o concebo, como tratarei mais adiante. Arrisco afirmar que estas problematizações, que atravessam e guiam o recorte do corpus a partir da especificidade do processo discursivo, formam a parte mais substancial do trabalho, pois concentram as questões em um processo espiral de constituição de um lugar de dizer na Análise de Discurso (portanto, meu, como analista) articulado com uma tomada de posição feminista antirracista. Este lugar de dizer é a tentativa, é o esforço, de uma articulação teórica em busca da práxis. Entendo que a adesão a posições do feminismo negro e a teorias perspectivistas contribuiu para que eu assumisse e formulasse teoricamente a reflexividade da primeira pessoa como processo discursivo relacionado a determinadas condições de produção em práticas discursivas na academia, na literatura e nos movimentos sociais e políticos. Pensar na enunciação de si lançou-me à aventura de interpretar-me também, de contar-me para dizer do meu lugar de produção do conhecimento na academia e de sua relação com minha prática política. A reflexividade metaenunciativa já é efeito da interpelação, da inscrição em certas posições sujeito. Na academia, a identificação com vertentes que discutem a produção de conhecimento e questionam os limites entre sujeito e objeto de pesquisa, produz como efeito este funcionamento enunciativo. Portanto, fui impelida a refletir e dizer sobre o lugar a partir do qual enuncio como mulher cisgênera7 acadêmica socialmente branca jovem de classe média paulistana, a partir do meu percurso acadêmico, de militância nos feminismos, em 7 Sobre o conceito de cisgeneridade, cf. http://transfeminismo.com/o-que-e-cissexismo/. Sobre as relações entre transfeminismo e discurso, cf. Bagagli (2015). A utilização do prefixo cis é uma forma de disputa pelos sentidos marcada na língua para visibilizar as identidades transgêneras e denunciar o cissexismo. Este último, amparado em uma suposta relação de transparência entre sexo e linguagem, naturaliza o gênero cisgênero e violenta as pessoas transgêneras. 32 organizações de esquerda e em movimentos populares, da minha inserção em uma comunidade de jongo, na capoeira de angola, no candomblé, da construção de minha identidade étnico-racial e a responsabilidade recebida/assumida com minha ancestralidade negra – e de quantas outras experiências, desejos e dúvidas (para não fugir do tom intimista que se impõe ao eu?)... As formulações que apresento são em grande medida resultantes do debate fomentado pelo grupo de pesquisa Mulheres em Discurso e pelo Contradit – Coletivo de Trabalho, Discurso e Contradição 8. Um dos principais temas de fundo deste capítulo é a práxis na Análise de Discurso (AD)9 filiada ao autor Michel Pêcheux, quem pautou a relação entre teoria e prática política. Estes questionamentos partem de um lugar que forjo coletivamente na Análise de Discurso, e que tem suas ancoragens institucionais que legitimam minha posição, ao mesmo tempo em que “moldam” as relações que estabeleço dentro da teoria da AD, com saberes de outros campos, com outros discursos, acadêmicos ou não. A própria reflexividade torna-se objeto de formulação teórica para algumas pesquisadoras no grupo Mulheres em Discurso, sendo concebida como efeito ou ainda como funcionamento enunciativo e discursivo regular e constitutivo de determinadas posições sujeito feministas. O ponto de vista, para a AD, poderia então ser pensado como definido pelos processos de subjetivação e tomadas de posição no discurso, sendo os enunciados reflexivos um objeto privilegiado de análise, um objeto discursivo e não sociológico. 1.1 Dos pontos de vista enunciativos às posições sujeito A AD na vertente em que trabalho surgiu na França, na conjuntura intelectual dos anos 1960, e em sua primeira época constituiu-se como lugar de debate teórico sobre a leitura, com o intuito de construir um dispositivo científico que produzisse leituras não subjetivas. A proposta era de transformação da prática teórica nas ciências humanas, defendida por um grupo de pesquisadores militantes ou próximos do Partido Comunista Francês à época, 8 O Contradit aposta no encontro, na política, na reflexão e na produção teórica coletiva sobre a Análise do Discurso com ênfase na retomada do desenvolvimento do materialismo histórico em seu interior (informação fornecida na página do facebook do grupo). 9 Parte destas reflexões foi publicada em março de 2015 no formato de post no blog Mulheres em Discurso, depois da leitura e da troca de comentários sobre outro texto, da colega do grupo de pesquisa Glória França, em seu blog Ces mots que voyagent. Trata-se do texto Uma tomada de posição feminista e antirracista na Análise de Discurso(https://mulheresemdiscurso.wordpress.com/2015/03/10/uma-tomada-de-posicao-feminista-eantirracista-na-analise-de-discurso/) Compreendo esta proposta de estabelecer uma prática sistemática de construção colaborativa do conhecimento como um dos modos de ao menos questionar a lógica individualista e produtivista que domina a academia. 33 confrontando o discurso positivista em uma proposta de luta teórica contra a ideologia dominante na prática científica. Os debates fundantes acerca da leitura e das relações entre prática teórica e prática política nos princípios da Análise de Discurso na França e nos desenvolvimentos da Análise de Discurso no Brasil não cessam, ainda atualmente, de produzir efeitos (NOGUEIRA; CESTARI, no prelo). 10 Se em sua fundação a AD privilegiava o discurso político, notadamente o comunista, e os corpora escritos em leituras depois vistas pejorativamente por alguns como militantes, seu deslocamento não deveria significar a negação do caráter militante do seu programa de trabalho, do seu papel de abertura para leituras do não-realizado que possibilitam um vir-a-ser de uma outra ordem do mundo, uma transformação histórica, contra os discursos do fim da história e da naturalização conformista aos sentidos dominantes. Eni Orlandi (2012: 14), ao tratar deste cenário político e teórico, retoma a questão, a partir de Pêcheux et alii (1982), dizendo do deslocamento de uma posição que se pensa uma prótese de leitura para outra que se quer provocação à leitura (NOGUEIRA; CESTARI, no prelo). A provocação à leitura consistiria em montagens de corpora que possibilitem gestos de interpretação nos quais a categoria da contradição seja central para compreender a luta ideológica de classes ou ainda as “lutas de deslocamento ideológicas” que “poderia descrever os tipos de choque de deslocamentos, que não colocam em oposições classes, ‘interesses’, ou determinadas posições prévias, mas que tratem da reprodução/transformação das relações de classe” (PÊCHEUX, [1982] 2011: 114-115). Localizo os discursos antirracistas e feministas nestas lutas ideológicas de deslocamento, em que há o engajamento do sujeito na luta pelos sentidos para se significar. Tenho pensado nestes discursos como potenciais discursos de resistência que se constituem e são constituídos por sujeitos em seus deslocamentos contingentes sob e contra a dominação ideológica, conformando lugares de enunciação. Parece-me oportuno pontuar no que diz respeito às lutas ideológicas de classes, retomando Pêcheux ([1984], 2013: 2), “a impossibilidade de toda uma análise diferencial (de natureza sociológica ou psicossociológica) que atribui a cada ‘grupo social’ sua ideologia, antes que as ideologias entrem em conflito”. Portanto, a dominação ideológica não é externa e se manifesta na organização interna da ideologia dominada. Defendendo o primado da luta de classes sobre a 10 Neste tópico do texto valho-me do debate com a analista de discurso e militante socialista Luciana Nogueira, então colega de doutorado do IEL/Unicamp e do grupo Contradit. Parte de nossas reflexões está no artigo Análise de Discurso e Militância Política, em sua versão resumida nos anais do VI SEAD – Seminário de Estudos em Análise do Discurso http://www.ufrgs.br/analisedodiscurso/anaisdosead/6SEAD/PAINEIS/AnaliseDeDiscursoEMilitancia.pdf. 34 existência das classes e o primado do inconsciente sobre a consciência, interroga a noção de ideologia dominada como reflexo distorcido da Ideologia dominante ou germe independente e ainda nega a possibilidade de uma concepção de “consciência de classe” ou de “grupo social” que parte de um estado de “alienação” por um processo pedagógico para sua libertação, seja por si mesma, em um processo de autoexplicitação ou por ação exterior. Está posto na Análise de Discurso, a partir das interpretações dos Aparelhos Ideológicos de Estado de Althusser, o debate acerca do sujeito assujeitado pela ideologia dominante e as (im)possibilidades do “sujeito político”, aquele da “tomada de consciência”, das “lições da experiência” (PÊCHEUX, [1978] 1995: 297). Esta é a base teórica que mobilizo para pensar os pontos de vista do movimento de mulheres negras e sua subjetivação nestes lugares de enunciação, entendendo que este é um modo como se nomeiam desde determinadas posições de sujeito. Dito de outro modo, não adoto a concepção de formação de consciência a partir da experiência. Nomear “ponto de vista das mulheres negras” e dizer de uma “experiência de ser mulher negra” são já movimentos constitutivos de posições sujeito de mulheres negras no discurso. Assim não penso “mulheres negras” como grupo social, mas como sujeito do/no discurso, que enuncia e organiza os sentidos de uma experiência acerca do “ser mulher negra” em condições de produção determinadas. “Experiência”, nesta perspectiva, também é constructo teórico e objeto discursivo neste a posteriori constitutivo deste lugar de interpretação, destas posições sujeito nas relações sociais gendradas e racializadas. Com base no trabalho de Mónica Zoppi Fontana (2002: 16), compreendo que a problemática abordada através da noção de lugar de enunciação poderia ser resumida como “uma reflexão sobre a divisão social do direito de enunciar e a eficácia dessa divisão e da linguagem em termos da produção de efeitos de legitimidade, verdade, credibilidade, autoria, circulação, identificação, na sociedade” (grifos da autora). Os lugares de enunciação fariam parte do processo de constituição do sujeito nas relações de identificação/interpelação ideológica. Esta base teórica contribui para se pensar as lutas travadas por mulheres negras para transformar a divisão social da enunciação, de modo a ampliar a circulação de seus dizeres em esferas socialmente legitimadas como produtoras de verdade. Assim, pode-se pensar na possibilidade e efeito do dizer sem reduzi-los a um efeito de linguagem (de modo a apagar a história) nem descrevê-los como projeção de lugares sociais (de modo a apagar a língua). Ao considerar a enunciação, pretende-se captar o trabalho sócio-histórico (dinâmico) de sustentação de posições pelos sujeitos enunciadores. 35 Além da captura por (e da filiação a) redes de memória há investimento histórico subjetivo, militância e engajamento pelo sentido (FONSECA, 2009). Especialmente, penso no sujeito que “ousa se revoltar” e “pensar por si mesmo” (PÊCHEUX, [1978] 1995: 304; PÊCHEUX, [1984], 2013) na relação com as modalidades discursivas do funcionamento subjetivo (PÊCHEUX, [1975] 1995), um desafio teórico-político para a AD. 1.1.1 A questão da enunciação de si e o discurso Authier-Revuz (1998), sobre o plano da representação da enunciação, qualifica como configuração enunciativa da reflexividade a duplicação de um elemento do fio do dizer na enunciação. Trata-se de tipos de enunciados que comentam a própria enunciação. Nestes casos, o dizer representa-se como não falando por si, o signo, em vez de preenche-lo, transparente, no apagamento de si, de sua função mediadora, interpõe-se como real, presença, corpo- objeto encontrado no trajeto do dizer e que se impõe a ele como objeto; a enunciação desse signo, em vez de se realizar "simplesmente", no esquecimento que acompanha as evidências inquestionáveis, desdobra-se como um comentário de si mesma (AUTHIER-REVUZ, 1998: 14). Em diálogo com Zoppi-Fontana (2010), considero a reflexividade metaenunciativa de um modo mais particular, no sentido da interpretação da enunciação como acontecimento pelos sujeitos envolvidos na enunciação. Nesta interpretação, os sujeitos dizem sobre o dizer, o sujeito de dizer, a temporalidade da enunciação, a interlocução, a nomeação. Na enunciação política das mulheres negras, por exemplo, atribuir à tomada da palavra caráter inaugural é uma recorrência da interpretação que os sujeitos da enunciação fazem do seu dizer como acontecimento. Outra recorrência é dizer do eu, qualificá-lo, desdobrá-lo, tal qual na construção “eu, enquanto mulher negra”. Por esta regularidade, destaco da reflexividade metaenunciativa a enunciação de si pensada nas relações que estabelece com a construção da identidade discursiva de mulheres negras como sujeitas políticas, sociais, de dizer, de construção do conhecimento. Ao situar a realização da reflexividade enunciativa em um processo discursivo e relacioná-la com a constituição de um sujeito, atrela-se a enunciação aos processos de subjetivação, sendo o desdobramento do dizer em uma auto-referencialidade constitutivo desta dimensão imaginária do eu e, portanto, da intersubjetividade na linguagem. Este atrelamento é possível quando se considera o domínio da enunciação como aquele da impressão da realização do pensamento, conforme propõe Pêcheux (1975); efeito do 36 ideológico que produz a ilusão do sujeito como fonte do dizer e do sentido, ao invés de considerá-lo como espaço da intenção de interações e de representações. Pela reflexividade mataenunciativa, as tomadas de posição interpostas ao dizer – que tomam a enunciação como objeto de dizer, como “auto-representação do dizer se fazendo” (AUTHIER-REVUZ, 1998: 15) – produzem a impressão de que o sujeito pode saturar os sentidos, controlá-los, escapar aos equívocos e às falhas. “Os discursos dissimulam os desvios em seu interior, e, pretendendo-se únicos, dependem dessa unidade para se representarem coesos” (RESENDE, ASSUNÇÃO, 2006: 916). A partir da análise de vozes de mulheres negras em luta contra seu silenciamento histórico para dizer em primeira pessoa é possível acompanhar a constituição de lugares de enunciação. Estes lugares de enunciação são marcados pela reflexividade metaenunciativa – pelo dizer sobre quem diz, sobre quando diz, sobre o lugar de dizer, sobre a possibilidade de dizer e o silêncio. Nos enunciados reflexivos se nomeia e se interpreta a experiência de opressão em uma tomada de posição comprometida com a luta por sua transformação. As narrativas do racismo, do reconhecer-se mulher negra, do positivar o ser mulher negra desde um eu mulher negra ou nós mulheres negras (um eu singular que, pela reflexividade metaenunciativa, se desdobra em um nós coletivo) são constantes. Pela recorrência de temas, entrecruzamento de memórias de diferentes estatutos, modos de enunciação de si, penso a reflexividade metaenunciativa como parte de um processo discursivo mais abrangente, que constitui uma chave de acesso aos lugares de enunciação de mulheres negras no campo dos feminismos e dos movimentos negros, a vozes próprias que questionam as fronteiras entre estes campos. Esta reflexividade aparece para o sujeito como algo da ordem do necessário, pois fundamenta seu dizer e a necessidade de seu lugar de dizer, de sua voz, de sua visibilidade. E, apesar da heterogeneidade do que são as mulheres negras e a afirmação, por diversas vozes de mulheres negras, da pluralidade do ser mulher negra, a prática enunciativa produz como efeito uma homogeneidade, de modo a projetar imaginariamente um lugar a partir do qual o sujeito pode dizer, bem como um coletivo que legitima as vozes das mulheres negras. Deste modo, emergem identidades discursivas minoritárias ou excluídas de esferas de circulação legitimadas do discurso, que produzem como efeito o apagamento de suas contradições internas. Apesar desde efeito do nós político, a história e memória compartilhadas que justificam o nós são atualizadas na força performativa na luta política coletiva e podem se deslocar no que há de irrepitível e contingente no acontecimento da aparição do enunciado. 37 Neste funcionamento, a imagem de quem diz é construída também pelo o que diz de si. Também porque as projeções imaginárias em jogo na interlocução são parte das condições de produção do discurso e escapam aos sujeitos, sendo que não é necessário que o locutor fale de si para que se projete uma imagem de quem diz. Dizer quem é, apresentar explicitamente quem é – eu digo enquanto mulher negra, feminista, paulistana, historiadora – já é resultado da interpelação em posições sujeito com as quais mulheres negras se identificam e se constituem. Com isso, inscrevo a discussão no quadro da interpelação ideológica, pensando a interlocução discursiva e, mais especificamente, as imagens de si, as projeções imaginárias dos interlocutores, a partir dos postulados de Pêcheux (1969, 1975). Retomarei ao longo da tese as discussões sobre este funcionamento discursivo, argumentando sobre seus efeitos nos processos de subjetivação de mulheres negras, seu papel na luta por transformações na divisão do enunciar, o que aporta aos debates sobre o engajamento dos sujeitos nas lutas ideológicas por voz e pelos sentidos das palavras, trançando contribuições das teorias da enunciação com a análise de discurso. A reflexividade metaenunciativa é uma regularidade que atravessa os discursos dos movimentos de mulheres negras, dos feminismos negros, das teorias do ponto de vista, da produção textual das intelectuais/ativistas. Em diálogo com a bibliografia sobre os movimentos de mulheres negras e as feministas negras, bem como sobres os movimentos de identidade aglutinados sob o binômio diferença-igualdade e os dilemas das políticas de redistribuição-reconhecimento, resenhados ainda neste capítulo, seria possível supor que a reflexividade metaenunciativa é uma regularidade em um amplo espectro dos movimentos sociais de grupos explorados e oprimidos. Na conjuntura brasileira, remonta à década de 1980 e se relaciona com o que se denominou novos movimentos sociais. Uma das autoras que contribuem para as interpretações acerca destes movimentos que reivindicam transformações culturais ou simbólicas é Nancy Fraser (2006). A autora, da posição de uma conceituada teórica política feminista do século XX, teorizou sobre as lutas por reconhecimento como aquelas que envolvem a valorização de identidades e da diversidade cultural e, a depender de sua radicalidade, podem levar a uma transformação abrangente dos padrões sociais de representação, interpretação e comunicação, de modo a modificar o sentido do eu de todas as pessoas (FRASER, 2006: 232). Dito de outra forma, por meio destas lutas, os sujeitos fazem circular discursos com interpretações de suas identidades e interesses políticos, que podem entrar em embate com a Ideologia dominante nas lutas de deslocamento ideológico. A enunciação de si é condição para a formulação da interpretação 38 de si como possibilidade de se significar desde uma voz própria, com sentidos silenciados ou menosprezados pelos discursos dominantes. 1.2 O que dizem as mulheres negras (de si) para a Análise de Discurso? Não admitimos as equivocadas análises que fazem de circunstâncias que nos são impostas, tampouco aceitamos limitadas definições do que sejam as mulheres negras. Somente nós mesmas podemos nos definir. Somos as fontes mais genuínas de conhecimento sobre nós; exigimos que estudos que nos tomem por temática tenham como centralidade nossos pontos de vista de mulheres negras (Petronilha SILVA, 1998)11. E quando as palavras das mulheres clamam por serem ouvidas, cada uma de nós deve reconhecer sua responsabilidade de tirar essas palavras para fora, lê-las, compartilhá-las e examiná-las em sua pertinência à vida. Não nos escondamos detrás das falsas separações que nos impuseram e que tão seguidamente as aceitamos como nossas. Por exemplo: “Não posso ensinar a literatura das mulheres Negras porque sua experiência é diferente da minha”. Entretanto, durante quantos anos ensinaram Platão, Shakespeare e Proust? Ou: “Ela é uma mulher branca, o que ela pode dizer para mim” Ou: “Ela é lésbica… O que vai dizer o meu marido, ou meu chefe?” Ou ainda: “Esta mulher escreve sobre nossos filhos, e eu não sou mãe”. E assim todas as outras formas em que nos abstraímos umas das outras (Audre LORDE, 1977). Em grande medida – mas não exclusivamente – a produção teórica contemporânea sobre os movimentos de mulheres negras, as organizações de mulheres negras ou feminismo negro brasileiro ou no Brasil é também uma produção de autoras que se dizem, se fazem visíveis, audíveis e legíveis como mulheres negras. Em outras palavras, dizer do lugar desde onde se enuncia enquanto mulher negra é uma regularidade nestes trabalhos, o que por vezes expressa uma postura epistemologicamente reflexiva. Nestes casos, a enunciação de si entrelaça-se à denúncia do silêncio de grupos sociorracialmente excluídos da enunciação da produção de saber e ao engajamento para a construção de epistemologias alternativas. Inspirada em Nilma Gomes (2010), compreendo que estas mulheres dizem como intelectuais negras, em uma tomada de posição e questionamento coletivo à produção do conhecimento acadêmico e ao lugar ocupado pelo “outro” e pelas diferenças neste âmbito, bem como a produção, reconhecimento e distribuição social desigual dos conhecimentos. Desde já, me posiciono de modo a manter este diálogo e, já que falarei delas, também não posso deixar de enunciar o quanto falam para mim e para este trabalho, por isso a proposta de que as mulheres negras falam também para a Análise de Discurso, dada a posição da qual enuncio. A postura reflexiva das pesquisadoras e os debates epistemológicos travados em alguns de seus trabalhos me deram subsídios para meus questionamentos direcionados à 11 Esta citação retirada do texto Chegou a hora de darmos a luz a nós mesmas é retomada por Núbia Moreira (2007:72) e por Claudia Pons Cardoso (2012: 28). 39 Análise de Discurso e a meu próprio percurso de análise. Como pode se ler na epígrafe de Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva, há uma exigência de mulheres negras de que se tenha como centralidade seus pontos de vista quando se constrói conhecimento sobre elas. Estes pontos de vista podem ser associados às vozes e subjetividades de grupos sociorraciais que não são representados nas epistemologias dominantes e que, na maior parte das vezes, aparecem como objetos de pesquisa, e não sujeitos de conhecimento. Nas palavras de Lélia Gonzalez (1983), intelectual/ativista precursora das posições dos feminismos negros brasileiros, sobre como mulheres negras foram/são nomeadas e significadas historicamente por outras vozes: “O fato é que, enquanto mulher negra, sentimos a necessidade de aprofundar nessa reflexão, ao invés de continuarmos na reprodução e repetição dos modelos que nos eram oferecidos pelo esforço de investigação das ciências sociais” (GONZALEZ, 1983: 225). Uma breve análise nos efeitos de sentido do nós nesta formulação do texto acadêmico demonstra uma escrita subjetivamente posicionada. O nós não é marca do enunciador universal, recurso para indeterminar o sujeito e produzir um efeito de distanciamento do que diz, de objetividade e neutralidade, uma recomendação ainda corrente para a escrita de textos acadêmicos. Mulheres negras são representadas no enunciado na posição de autoras de um texto acadêmico que denuncia e questiona a articulação do racismo e do sexismo, a violência simbólica dos modos de rejeição/integração das mulheres negras no processo de formação cultural brasileira. E mais, dizem sobre elas mesmas – sobre o nós que enuncia – em um gesto de denúncia de outros lugares de enunciação e discursos que não corresponderiam a seus pontos de vista e não dariam conta da complexidade de produzir conhecimento sobre as mulheres negras. Diferentes intelectuais/ativistas dos feminismos negros apontam para as representações de mulheres negras baseadas no servilismo e na sexualidade que justificaram a exploração masculina branca e, especificamente, a violência sexual na escravidão colonial, perseguindo sua historicidade e mostrando como irrompem na atualidade em uma relação de repetição e deslocamento de seus sentidos dominantes. Em texto sobre as intelectuais negras no contexto dos Estados Unidos, bell hooks (1995) argumenta sobre a não-representação das mulheres negras na posição de intelectuais. Nos discursos dominantes, as mulheres negras aparecem como corpo-trabalho e/ou como corpo-sexo. Conforme bell hooks (1995: 469), em todos os casos, um corpo sem mente e próximo à natureza 12. À objetificação dos corpos se 12 hooks (1995) recorre a uma iconografia da escravidão para tratar das representações de mulheres negras significadas pelo corpo, encarnando uma perigosa natureza feminina a ser governada. Este texto é uma referência recorrente na bibliografia sobre as mulheres negras feministas. Os estereótipos de mulheres negras no Brasil e na 40 opõe à práxis de intelectuais negras, que confrontam estas representações – lembremos que o intelectual muitas vezes é representado como mente sem corpo 13 – e a divisão social de enunciação que hierarquiza quem pode dizer sobre determinados temas, com qual legitimidade, efeito de verdade e circulação social. Cardoso (2012) denuncia o processo de desvalorização e ocultamento da produção intelectual de homens e mulheres negros(as), apresenta a crítica feminista à ciência moderna ocidental, bem como a crítica das feministas negras, indígenas, lésbicas, não-brancas à produção feminista que as exclui. Em contraponto, defende uma epistemologia feminista negra do sul. Para as mulheres negras, a experiência com a intersecção das opressões racial e de gênero será a base para a elaboração de uma epistemologia, em outras palavras, “raça reconfigura a forma como as mulheres negras experienciam gênero em muitas sociedades” (CARDOSO, 2012: 74). Por sua vez, Sueli Carneiro (2005) trata esta violência, a partir de Boaventura de Sousa Santos (1995), como epistemicídio, neste caso uma estratégia de inferiorização intelectual dos negros, um atentado contra sua condição de sujeito de conhecimento e simultaneamente um modo de consolidação da supremacia intelectual da racialidade branca14. A reivindicação de mulheres negras de que seus pontos de vista tenham centralidade quando se constrói conhecimento sobre elas amalgama a discussão dos efeitos da exclusão das experiências e pontos de vista de grupos sociais na academia, à divisão desigual do direito de enunciar neste âmbito de produção e legitimação de discursos, à pretensão de falar pelo outro na produção acadêmica e às epistemes dominantes na Universidade. Mais do que isso, leva ao centro da produção teórica questões sobre a produção de conhecimento no diáspora, e sua participação no seio de lutas ideológicas por ressignificação, serão tematizados de forma mais detida no quarto capítulo. 13 Quais os efeitos de não dizer do corpo do intelectual? Sugiro que, desde a formação ideológica dominante, muitas vezes significa o corpo que ocupa a posição dominante na hierarquia do sistema de classe-raça-gênerosexualidade: o corpo do homem cis branco heterossexual da classe dominante. 14 A filósofa Sueli Carneiro (2005:60) diz da versão mais contemporânea do epistemicídio nas universidades brasileiras, em uma reflexão prenhe de questões éticas e políticas para qualquer estudo acadêmico que trate de temáticas envolvendo questões raciais: “Na sua versão mais contemporânea nas universidades brasileiras, o epistemicídio, cuja discussão aprofundaremos posteriormente, se manifesta também no dualismo do discurso militante versus discurso acadêmico, através do qual o pensamento do ativismo negro é desqualificado como fonte de autoridade do saber sobre o negro, enquanto é legitimado o discurso do branco sobre o negro. Via de regra a produção branca e hegemônica sobre as relações raciais dialoga entre si, deslegitimando a produção dos pesquisadores e ativistas negros sobre o tema. Isso é claramente manifesto nas listas bibliográficas utilizadas onde, via de regra, figuram autores negros não-brasileiros, ou no fato de quão poucos intelectuais negros brasileiros alcançaram prestígio nacional e internacional. Os ativistas negros, por sua vez, com honrosas exceções, são tratados, pelos especialistas da questão racial, como fontes de saber mas não de autoridade sobre o tema. Os pesquisadores negros em geral são reduzidos também à condição de fonte e não de interlocutores reais no diálogo acadêmico, quando não são aprisionados exclusivamente ao tema do negro.” 41 campo das humanidades e o comprometimento político com seu objeto/sujeito, explicite-se ou não a posição a partir da qual se enuncia, as redes de filiações teóricas e epistemológicas, o projeto empreendido e o percurso metodológico. Nesta perspectiva, uma postura reflexiva na produção do conhecimento envolve uma tomada de posição diante do embate entre o político e o teórico, entendendo que prática política e prática teórica se relacionam, mas não se equivalem. De acordo com Elsa Dorlin (2008), o feminismo negro criou um eletrochoque no pensamento feminista ao longo de toda década de 1980. Assim, o movimento reflexivo sobre o que parecia evidente no nós de nós mulheres (e a crítica à mulher como sujeito político do feminismo) foi feito por um grupo de intelectuais brancas que, mais do que isso, buscou se descentrar de sua posição dominante antes entendida como “neutra”, elucidando a posição a partir da qual falava, em nome de quem falava e quais eram seus silêncios. No entanto, não basta – defende Dorlin (2008), com quem eu concordo – dizer de onde se fala, pois isso seria confundir nossas diferenças com nossas “posições de poder”. A questão não seria de elucidação de um lugar de dizer privilegiado (pela classe, gênero, raça, orientação sexual, religião, idade, etc.), mas a necessária reflexividade sobre os próprios valores, ferramentas políticas e cognitivas. A autora, em sua crítica, diz dos prelúdios intimistas que tomam conta das intervenções acadêmicas e militantes de feministas brancas e que se encerram neles mesmos. Em outras palavras, a enunciação de si na produção acadêmica no campo feminista não implica a reflexividade na produção do conhecimento ao mesmo tempo em que enunciar sobre si neste âmbito é efeito dos processos de interpelação (portanto de ilusão subjetiva) e das lutas internas ao campo, pois resulta da vitória (ou ao menos polêmica) da posição que defende não ser possível, sem a manutenção (e expressão) dos privilégios de um grupo dominante de mulheres, enunciar por todas as mulheres ou mesmo por todas as feministas. O se dizer mulher negra em uma afirmação de identidade em que gênero e raça são constitutivos, assim como na denúncia do sexismo e do racismo, projeta imaginariamente perguntas na interlocução discursiva: “qual posição você ocupa na divisão social da enunciação para dizer de mim?” e, mais ainda, “na divisão social racializada e gendrada da enunciação?” A denúncia do privilégio de determinados lugares de enunciação na produção do saber no campo dos feminismos, recai sobre as mulheres brancas e seus privilégios pelo lugar simbólico da branquitude 15. bell hooks (1984: 46) critica mulheres brancas que se 15 Faz parte dos efeitos da branquitude a falta de reflexão sobre o papel do branco nas desigualdades raciais. O foco da discussão no negro – somente ele é estudado, dissecado, problematizado – e o silêncio do branco (que aparece como modelo universal de humanidade) integram um mesmo processo que atribui exclusivamente ao 42 dedicam a publicar ensaios e livros sobre como “desaprender o racismo” para um público branco, centrando na mudança de atitudes, ao invés de situá-lo politica e historicamente. Estas mesmas mulheres brancas se mantêm condescendentes e com atitudes paternalistas quando se relacionam com mulheres negras, convertendo-as em “objeto” de seu discurso privilegiado sobre a raça, sendo que nesta posição as mulheres negras continuam sendo “diferentes” e “inferiores”. A autora continua dizendo que parte destas mulheres se situam “en el lugar de las “autoridades” que deben mediar entre las mujeres blancas racistas — ellas, naturalmente, se ven a sí mismas libres de racismo — y las mujeres negras furiosas a las que consideran incapaces de mantener un discurso racional.” A autora finaliza seu argumento com a conclusão de que o sistema de racismo, classismo e elitismo da educação deve permanecer como está para que também se mantenha a posição de autoridade da academia branca. Ou seja, condescendência e mediação da palavra (dizer por – pelas outras diferentes) são práticas desde uma posição que defende seu lugar de privilégio e não compreende a interdependência das opressões de sexo, raça e classe, além de não se engajar pela transformação da academia. Lélia Gonzalez (1979: 15-16), tratando do feminismo brasileiro, anos antes denunciava que o discurso das mulheres negras quando explicitam sua super-exploração era considerado por diferentes setores feministas como “uma forma de revanchismo ou cobrança” ou “sua fala como sendo ‘emocional’”. A intelectual/ativista reflete sobre esta emoção, apontando que ela “está muito mais em quem nos ouve”. Na medida em que o racismo, enquanto discurso, situa-se entre os discursos de exclusão, o grupo por ele excluído é tratado como objeto e não como sujeito. Consequentemente, é infantilizado, não tem direito a voz própria, é falado por ele. E ele diz o que quer, caracteriza o excluído de acordo com seus interesses e seus valores. No momento em que o excluído assume a própria fala e se põe como sujeito, a reação de quem ouve só pode se dar nos níveis acima caracterizados. O modo mais sutilmente paternalista é exatamente aquele que atribui o caráter de “discurso emocional” à verdade contundente da denúncia presente na fala do excluído. Para nós, é importante ressaltar que emoção, subjetividade e outras atribuições dadas ao nosso discurso não implicam numa renúncia à razão, mas, ao contrário, num modo de torná-la mais concreta, mais humana e menos abstrata e/ou metafísica. Trata-se, no nosso caso, de uma outra razão (GONZALEZ, 1979: 15-16). No argumento de ambas as autoras, ficam patentes as lutas pela palavra, nas quais instituir um outro, desqualificar sua fala (como furiosa, emocional e não-racional) são táticas para se manter um lugar de dizer privilegiado sobre este outro. De modo análogo, denunciar o lugar de enunciação das mulheres brancas feministas na academia é um dos gestos que negro o problema das desigualdades raciais em uma espécie de pacto entre brancos de não se reconhecerem como parte essencial da permanência destas desigualdades e dos seus privilégios (BENTO, 2002). 43 constitui o lugar de enunciação de mulheres negras num mesmo campo. Suas análises contribuem fortemente para se pensar as lutas pela palavra, pelo direito à voz própria e as posições de privilégio na divisão social da enunciação, que se beneficiam da hierarquização de conhecimentos e discursos bem como do silenciamento de certos lugares de enunciação, lugares de fala ou pontos de vista. Compreendo que seria fundamental para pessoas brancas que se propõem a relações de aliança com os feminismos negros – como é meu caso – reconhecer e discutir politicamente o protagonismo das vozes de mulheres negras bem como engajar-se em lutas que transformem os sistemas de educação, produção e divulgação científica, a exemplo das políticas de cotas raciais para a garantia e ampliação do acesso ao ensino superior, além de abrir-se para a diversidade de modos de conhecimento. Na construção desta reflexão acerca do ponto de vista desde a AD, do qual participaram algumas pesquisadoras do Mulheres em Discurso, cito um comentário da colega de grupo de pesquisa Mônica Cruvinel sobre as epistemologias do ponto de vista e a analista de discurso que não compartilha do ponto de vista dos sujeitos de suas pesquisas, mas que é afetado por ele16. Ela afirma, inspirada no livro Diante da Dor dos Outros, de Susan Sontag (2003), que, ao “tirarmos uma foto”, ocupamos uma posição que embora não seja a mesma daquele(a) que fotografamos tem uma perspectiva e um enquadramento”, sendo que “a forma como fazemos este enquadramento pode centralizar os pontos de vistas daqueles que fotografamos-olhamos-interpretamos-dialogamos”, inclusive havendo momentos em que somos capturados por outras lentes e estamos enquadradas junto destes sujeitos para quem antes direcionávamos nosso olhar. Lembro-me de fotos em que estou com estas mulheres em espaços de encontro, luta, formação, socialização, celebração – nas ruas, nas rodas de capoeira e de jongo, nos terreiros, nas casas de cultura, em auditórios de sindicatos, em congressos acadêmicos... Esta metáfora da fotografia é produtiva quando se toma o processo de seleção do objeto (aqui sujeito) da pesquisa, o modo como dele se tratará, as questões formuladas, a posição de quem pesquisa. Nas imagens de ouvir e ver estão duas questões políticas candentes em torno da luta de mulheres negras pelo reconhecimento e contra o racismo/sexismo: a luta pela palavra e contra o silenciamento, na qual o escutar sua voz que vem de longe é central, e a luta por visibilidade, contra imagens estereotipadas ou invisibilização, para que sejam vistas na diversidade de suas existências. Busco, então, ouvir estas vozes de mulheres negras, 16 Refiro-me ao comentário de Monica Cruvinel ao meu texto Por uma tomada de posição feminista e antirracista na Análise de Discurso, disponível em https://mulheresemdiscurso.wordpress.com/2015/03/10/umatomada-de-posicao-feminista-e-antirracista-na-analise-de-discurso/#comments. 44 contribuir para sua circulação e considerar suas contribuições desde diversas disciplinas acadêmicas e de produções interdisciplinares para a AD no que tocam seu interesse histórico pelos discursos políticos de resistência. Além disso, desde a AD, produzo análises que pretendem contribuir para se pensar as relações entre enunciação, discurso, história e processos de subjetivação no campo dos estudos das relações raciais e de gênero. 1.3 Os pontos de vista das mulheres negras na academia: chegou a hora de darmos a luz a nós mesmas Inicio este tópico com um destaque: o “ponto de vista de mulheres negras” não significa necessariamente uma filiação (ao menos explícita) às teorias perspectivistas ou do ponto de vista. Portanto, não pretendo circunscrever a produção de todas as mulheres negras intelectuais que usam o termo “ponto de vista” ou dizem “como mulher negra” a uma teoria ou à perspectiva feminista negra. Certamente, há uma pluralidade e diversidade em sua produção que não poderia ser reduzida a uma posição pela força de um argumento. Ademais, não adoto “ponto de vista” conforme estas perspectivas teóricas, e sim penso em sua produtividade para a AD no deslocamento/viagem/tradução deste conceito de um campo teórico a outro. Penso este ponto de vista na polissemia dos sentidos divididos: como projeto político de um grupo social organizado; articulação com composição heterogênea do feminismo negro em relação às experiências de mulheres negras associadas às opressões; conjunto de orientações teórico-metodológicas de pesquisadoras posicionadas politicamente na produção do conhecimento; lugar de enunciação comportando a inscrição de diferentes posições sujeito; lugar de fala; palanque enunciativo; ideologia dominada. Do lugar de analista de discurso, o que pretendo fazer é refletir sobre as lutas por um lugar de enunciação muitas vezes nomeado como ponto de vista das mulheres negras por diversas vozes de mulheres negras, perguntando-me por seus sentidos e pondo-os em relação a minha posição e a da AD na produção de conhecimento. Além de questionar a divisão social da enunciação, há posições do feminismo negro com a proposta de ponto de vista que colocam questões para a AD sobre suas concepções dos processos de subjetivação e resistência, da contraidentificação à ideologia dominante e da formação das ideologias dominadas. Acerca deste último ponto, somente esboçarei neste capítulo alguns apontamentos. Na tese, meu gesto de leitura mira os processos de subjetivação e tomada de posição que conformam o ponto de vista das mulheres negras pela descrição-interpretação da reflexividade na enunciação que nomeia e interpreta a experiência do ser mulher negra, 45 significando o sujeito em novos movimentos de sentido 17. Como parte deste percurso, apresentarei ponto de vista como proposta teórico-metodológica feminista e defenderei uma tomada de posição feminista e antirracista na AD. Nos Estados Unidos, o feminismo negro pode ser interpretado como uma das principais expressões da teoria do ponto de vista (standpoint theory), ou ainda uma antecipação a esta teoria, pela defesa de uma perspectiva feminista que prescinde de uma identidade comum a todas as mulheres, conforme afirma Luiza Bairros (1995: 461), em um texto de referência para os estudos feministas no Brasil. De forma muito sintética, trata-se de uma teoria que pressupõe que todas as experiências de opressão sexista são dadas pela posição que ocupamos numa matriz de dominação na qual raça, gênero e classe social se interceptam, sendo que esta experiência particular proporciona um ponto de vista diferente sobre o que é ser mulher numa sociedade desigual – racista, cissexista, dividida em classes, hetenormativa... As mulheres negras, segundo bell hooks (1983), por ocuparem nesta matriz de dominação uma posição sem “outro”18 para discriminar, explorar ou oprimir, tem uma experiência que pode conformar um ponto de vista vantajoso para criticar a hegemonia racista, classista e sexista, bem como para formular uma contra-hegemonia. Este ponto de vista que difere de outros que têm certo grau de privilégio social pode contribuir com as lutas feministas e projetos de transformação social como um todo. Patricia Hill Collins (2000), em texto que apresenta as características principais do feminismo negro estadunidense, reforça que o fato de mulheres negras sofrerem opressões interseccionais19 produz pontos comuns entre elas, mas não garante um ponto de vista estático e homogêneo. Afirma a autora: “Igual 17 Esta formulação sobre o gesto reflexivo na enunciação que, ao interpretar a experiência num a posteriori, faz surgir um objeto discursivo – a opressão – e significa o sujeito em novos movimentos de sentido é paráfrase dos comentários de Lauro Baldini no facebook ao primeiro post de Glória, por ela reunidos em uma segunda postagem sobre o tema: “Teoria e práxis política em análise dos discursos gendrados (2)”, de 24/06/2015 (cf. http://cmqv.hypotheses.org/209). 18 De minha posição teórica e política, todo processo de subjetivação se dá na relação com um outro, pela diferenciação. Por isso, questiono a inexistência de outro para discriminar, seja pela heterogeneidade de mulheres negras, seja pela complexidade dos sistemas de dominação ou ainda pela eficácia da Ideologia dominante. Na argumentação de hooks (1983) está um elemento que permeará os discursos de mulheres negras: a experiência da opressão e da subalternização históricas proporciona um ponto de vista particular de mulheres negras e com maior alcance para dizer de si, acrescido do argumento de que este ponto de vista pode ser vantajoso para projetos de ampla transformação social. 19 Interseccionalidade é um conceito cunhado e difundido por feministas negras nos anos 1980 no contexto anglo-saxão originalmente para dar significado à luta e experiência de mulheres negras que não encontravam espaço tanto no debate feminista quanto no debate antirracista. Constitui-se como ferramenta teóricometodológica fundamental para ativistas e teóricas feministas comprometidas com análises que desvelem os processos de interação entre relações de poder e categorias como classe, gênero e raça. No decorrer da tese, não apresentei detidamente as diferentes posições destas teóricas acerca dos entrecruzamentos entre relações de gênero, classe, raça e sexualidade. Entretanto, considero que estas relações são constitutivas dos processos de subjetivação. Cf. Cristiano RODRIGUES, 2013. 46 que cambian las condiciones históricas, también lo hacen los vínculos entre las experiencias que tienen las mujeres negras y cualquier conciencia de grupo em relación a esas experiências” (COLLINS, 2000: 106). Com isso, busca evitar essencialismos em torno das mulheres negras. A autora também aponta para o potencial de resistência dos pontos de vista autodefinidos dos grupos oprimidos, e das conexões em uma relação dialógica entre as experiências (no caso, de mulheres negras estadunidenses) e os conhecimentos e pontos de vista associados. As críticas direcionadas às teorias perspectivistas, por sua vez, afirmam que considerar pontos de vista das mulheres é uma essencialização do feminino, pois restaura algo como uma natureza feminina. Esta crítica é rebatida pelo argumento de que os pontos de vista são construções coletivas a partir das relações sociais de gênero, e baseiam-se em lutas políticas e epistêmicas travadas pelos grupos dominados contra as visões dos grupos dominantes (SARDENBERG, 2002:103 apud CARDOSO, 2012: 69). Daí decorreria também o alcance destes pontos de vista dos grupos subordinados, sua dupla visão (a do dominante e do dominado). Outra crítica diz respeito ao relativismo a que se pode incorrer e mesmo ao apagamento das relações de poder entre os diversos pontos de vista. Faço eco à pergunta de Cláudia Cardoso (2012: 73): “se todos os grupos produzem pensamento especializado e o mesmo é igualmente válido não corremos o risco de construir um relativismo apolítico?”. 1.3.1 Os pontos de vista e a reflexividade na enunciação A fim de demonstrar o processo discursivo a partir do qual organizei as sequências discursivas analisadas durante a tese, considerarei o recorte de uma série enunciativa que reúne formulações em circulação em quatro dissertações de mestrado e em uma tese de doutorado defendidas entre 2007 a 2012 sobre o movimento de mulheres negras, as organizações de mulheres negras ou feminismo negro brasileiro ou no Brasil. São elas a dissertação O feminismo negro brasileiro: um estudo do movimento de mulheres negras no Rio de Janeiro e São Paulo, desenvolvida por Núbia Regina Moreira (2007) no programa de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas - Unicamp; a dissertação de Ana Angélica Sebastião, Memória, Imaginário e Poder: Práticas Comunicativas e de Ressignificação das Organizações de Mulheres Negras, defendida no Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura, Mídia e Mediações Sócio-Culturais, Escola de Comunicação, Universidade Federal do Rio de Janeiro em 2007; a 47 dissertação de mestrado As lutas das mulheres negras: identidade e militância na construção do sujeito político, de Marjorie Nogueira Chaves, defendida em 2008 no Departamento de História da Universidade de Brasília (UnB); a dissertação “Trilhando seu próprio caminho”: trajetórias e protagonismo de intelectuais/ativistas negras, a experiência das organizações Geledés/SP e Criola/RJ, de Lady Christina de Almeida, defendida no Programa de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio, em 2010; e a tese Outras falas: feminismos na perspectiva de mulheres negras brasileiras, defendida também no Programa em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo (PPGNEIM), da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia (UFBA), em 2012, por Cláudia Pons Cardoso20. A expectativa de que estes fossem somente textos sobre os movimentos de mulheres negras transformou-se pela imbricação entre produção teórica e prática política, enunciada e mais ou menos problematizada nos textos. Nesta bibliografia recente, há diferentes formas de se posicionar diante da produção e circulação de conhecimento, de justificar a escolha da temática das pesquisas, de discutir o papel da produção de conhecimento para a manutenção do status quo, transformação social, mudança das relações raciais. No entanto, sublinho que dizer do lugar desde onde se enuncia é uma regularidade nestes trabalhos. Considerando que as projeções imaginárias em jogo na interlocução discursiva são parte das condições de produção do discurso e escapam aos sujeitos, dizer quem é já é resultado da interpelação nas posições sujeito em que se inscrevem as intelectuais negras. O que se diz sobre o lugar de dizer na primeira pessoa do singular expressa a relação das pesquisadoras com as temáticas que elegem para seus trabalhos acadêmicos, tratada recorrentemente na introdução de seus textos e, por vezes, ao longo deles, do momento de pensar o objeto até as considerações finais. Uma relação que se reconhece, da qual não se pode fugir, que é um imperativo do desejo – nas palavras dessas mulheres a serem lidas no recorte a seguir, que reúne formulações retiradas das introduções21 dos mencionados trabalhos. Neste lugar de enunciação, a imagem de quem diz é construída também por o que diz de si. 20 Estes textos constam entre aqueles que Claudia Pons Cardoso (2012) apresenta e resenha em sua tese como trabalhos acadêmicos sobre o feminismo negro brasileiro – segundo a autora, uma produção pequena, porém com contribuições importantes. Adiciono à lista sua própria tese e as dissertações de mestrado de Lady de Almeida (2010) e Ana Angélica Sebastião (2007). 21 Exceção feita à sequência discursiva retirada dos agradecimentos da dissertação de Ana Angélica Sebastião (2007). 48 1. O caminho que nos leva a debruçar sobre um objeto de pesquisa, às vezes, é uma tentativa de nos autocompreender como indivíduos. Com esse propósito, escolhemos o movimento de mulheres negras, ou melhor, um tipo de organização de mulheres negras que ganhava fôlego (pelo menos nos estados do Rio e São Paulo) nas movimentações políticas do final dos anos 80, aqui demarcado com as festividades do Centenário da Abolição, e ao longo dos anos 90, em atividades tanto do movimento negro quanto feminista. [...] Depois de uma pequena participação no então Fórum de Mulheres Negras do Rio de Janeiro, na condição de recém-ingressa no feminismo negro ou, como era chamado pelas militantes históricas, “Movimento de Mulheres Negras”, reconheço que, passado uma década do meu ingresso, essa participação foi determinante para a decisão de continuar o caminho dos estudos em Ciências Sociais. Esse espaço me propiciou um aprendizado sobre a vida pelo ponto de vista da mulher negra, carioca, de escolha, urbana e iniciante nos estudos sociológicos (MOREIRA, 2007: 7). 2. Elaborar uma dissertação é sempre trilhar uma longa e surpreendente estrada. No meu caso, minha jornada começou muito antes de ingressar na universidade. Creio que iniciou na minha infância, já na escola, quando aos oito anos questionei-me de que maneira eu poderia construir uma vida ocupando a condição de mulher, negra e pobre nesta sociedade. Com o apoio, afeto e incentivo dos meus pais graduei-me como jornalista, saltei barreiras de vários tipos e tamanhos [...] A militância política no movimento negro começou nos tempos da universidade. Em seguida, ao ser contratada por uma organização nãogovernamental ligada a este movimento no Rio, presenciei os primeiros passos da Criola, grupo que viria se transformar numa das principais organizações de mulheres negras do país. Prossegui na minha carreira de jornalista, mas sempre assumindo minha militância e compromisso na observância das questões raciais. Ao decidir retomar minha jornada acadêmica, não hesitei em assumir, mais uma vez, o questionamento que tem me acompanhado ao longo da minha vida. Desta vez meu olhar direcionouse para o campo da comunicação: quais estratégias mulheres, negras e oriundas da classe pobre têm estabelecido para construir uma outra possibilidade para si e seus pares na sociedade brasileira? Ouvi-las e entender suas táticas discursivas foi uma das mais instigantes jornadas até aqui (SEBASTIÃO, 2007: 9). 3. A escolha do título de pesquisa se refere ao objeto de investigação: a constituição das subjetividades e os investimentos da política identitária na construção de um sujeito político mulher negra. Ao selecionar deliberadamente minhas fontes de pesquisa, interessei particularmente por um folder de um coletivo de mulheres negras de Brasília. Na capa, estava escrito em iorubá: “obinrinbìnrin dudù lò jagun”, que significa “as mulheres negras também lutam”. Nas minhas limitações interpretativas, esta locução quis me dizer muitas coisas. Quando as militantes afirmam que “também lutam” selam sua participação política em uma sociedade multíplice, repleta de contradições sociais em que vários grupos identitários têm reivindicado a partilha do poder na ação pela “posse da história”. Deixam transparecer a necessidade de se fazerem ouvidas, de problematizar a interação entre sexo/gênero e a raça nas propostas das agendas feministas e dos movimentos negros. Suas vozes estão presentes neste trabalho, suas identidades perpassam as 49 minhas próprias, uma espécie de “troca” que realizo com elas a partir de uma posição política. É desta maneira que me localizo para mergulhar nas interpelações que construo desde pensar o objeto até as considerações finais: mulher, negra, filha, feminista, não-militante, estudante da Universidade de Brasília, trabalhadora, brasileira (CHAVES, 2008: 11). 4. A realização da presente pesquisa tem um caráter pessoal do qual não posso fugir. Foi orientada, primeiramente, pela minha inserção social, sendo mulher e negra em uma sociedade racista e machista; pela minha participação no movimento PVNC – Pré-Vestibular Para Negros e Carentes; e pela minha inscrição acadêmica e profissional no campo das Ciências Sociais. p12 [...] Como mulher, negra e cientista social penso o quanto é importante contribuir para a visibilidade do processo de organização e emancipação realizado por mulheres negras que historicamente foram vistas, no máximo, como objeto de análise, e não como sujeitos de pensamento e de conhecimento (ALMEIDA, 2010: 14). 5. O caminho que percorri no movimento de mulheres negras me colocou lado a lado com a maioria das entrevistadas para este trabalho. Deste modo, minha história no movimento se mistura às demais histórias, todas experiências singulares, mas, ao mesmo tempo, coletivas, configuradas pelo enfrentamento do racismo, sexismo e heterossexismo. [...] Sinto-me em total sintonia com as colocações de Nilma Gomes 22, pois procuro, através da pesquisa, dar visibilidade às subjetividades das mulheres negras no caso, as ativistas integrantes de organizações de mulheres negras, aos silenciamentos e à invisibilidade forçada impostos a elas que, apesar de tudo, sempre estiveram no movimento contínuo de conquistar seus próprios espaços. [...] Como historiadora, meu interesse é contribuir para a recuperação da história das mulheres negras brasileiras na contemporaneidade e, como ativista integrante do movimento de mulheres negras, entender o processo de configuração das opressões múltiplas que recaem sobre nós mulheres negras, visando produzir conhecimento que contribua para a alteração deste quadro de desigualdades (CARDOSO, 2012: 18-21). Dos trabalhos listados, a tese de Cláudia Pons Cardoso (2012) dedica-se diretamente e de forma aprofundada a discutir e propor uma epistemologia feminista negra do sul, orientando meu caminho para chegar a outros textos e também minha leitura. Incluí como epígrafe do capítulo uma afirmação retirada da introdução de sua tese, que é exemplar de uma posição que articula experiência de vida às escolhas teórico-metodológicas na produção do conhecimento na constituição de um lugar de enunciação. Assumindo a posição de Cláudia Cardoso (2012: 18) de que as experiências das participantes dos movimentos de mulheres negras são ao mesmo tempo singulares e coletivas, configuradas pelo enfrentamento do racismo, sexismo e heterossexismo, amplio sua afirmação para pensar o lugar de enunciação das intelectuais/ativistas negras, retomando mais adiante Nilma Lino Gomes (2010) a partir 22 Claudia Cardoso (2012) refere-se a um texto de Nilma Gomes (2010) que retomarei logo abaixo. 50 da referência que a própria autora fornece. Quem enuncia nos trabalhos acadêmicos selecionados se apresenta como mulher e negra ou mulher negra, integrante da comunidade negra. Mas não só: adiciona outras informações, adjetivos e narrativas para se significar. Diz – nem sempre – de sua condição de classe como trabalhadora, pobre. De sua identidade geográfico-territorial – carioca, urbana, soteropolitana. Relata sua inserção na universidade e nas ciências humanas, na condição de pesquisadora, historiadora, cientista social, estudante, professora. Diz de sua experiência com o racismo às vezes desde a infância. Da sua participação (ou não) em movimentos sociais – no movimento negro, no movimento de mulheres negras, no feminismo negro, no movimento pré-vestibular. Se a argumentação é por um ponto de vista de mulheres negras, no corpus está presente uma pluralidade de mulheres negras. Um eu singular que se legitima em um nós coletivo, conforme indiciei ainda há pouco e argumentarei ao longo da tese, e que por ora apresento como marcas na enunciação da necessidade política de fundamentar a fala em um nós reivindicado onde antes predominava o elas. Ainda no nível da paráfrase, afirmo que, desde o lugar de enunciação constituído neste recorte, dizer das trajetórias pessoais de quem escreve é dizer das trajetórias das mulheres dos movimentos de mulheres negras, das feministas negras, de mulheres negras engajadas politicamente, bem como dizer das mulheres negras é dizer delas, dizer de nós, em uma relação em que as vozes se fazem presentes, identidades se perpassam em uma espécie de “troca”, em uma mistura de histórias. Esta relação anunciada, descrita, confessada, admitida entre as pesquisadoras negras e seu objeto – e mesmo a recusa da dicotomia entre sujeito de conhecimento e objeto de pesquisa – é mobilizada de diversas formas nos trabalhos, muitas vezes justificando os posicionamentos teórico-metodológicos das pesquisas em reflexões epistemológicas. Estes trabalhos se inscrevem em perspectivas teórico-metodológicas que primam por apoiar-se nas trajetórias e saberes de mulheres negras, em suas dimensões individual e coletiva contribuindo com um campo de estudos feministas negros ou sobre o pensamento de mulheres negras. É uma constante nestes trabalhos a realização de entrevistas com militantes, ativistas, intelectuais-ativistas, além de levantamento de bibliografia pertinente nas universidades, documentos escritos produzidos pelo movimento, materiais de mídia das organizações de mulheres negras. A justificativa para a realização de entrevistas é diversa: diz da possibilidade de lidar com a subjetividade, da escassez de outras fontes para a história do movimento, da importância da oralidade nas trajetórias das mulheres negras, das 51 contribuições da história oral e da história de vida em contraponto com correntes dominantes da historiografia23. Tais argumentos reforçam o que Nilma Gomes (2012: 20) apresenta como objetivos dos(as) pesquisadores negros(as) em seus trabalhos: “dar visibilidade a subjetividades, desigualdades, silenciamentos e omissões em relação a determinados grupos sociorraciais e suas vivências”. As escolhas metodológicas e as justificativas mobilizadas por estas pesquisadoras retornarão nas reflexões sobre a constituição do corpus discursivo de minha pesquisa. Organizo as descrições do lugar de dizer e que vão construindo uma imagem das autoras dos trabalhos acadêmicos que são também narrativas sobre elas sem ter, no entanto, intenção de apresentar um perfil sociológico e muito menos de generalizar tal perfil para as pesquisadoras negras. Reconheço, entretanto, que categorias sociológicas são mobilizadas pelos sujeitos na enunciação de si. Meu gesto de leitura concentra-se em acompanhar os deslizamentos de sentido, os sentidos em movimento, que significam um determinado lugar de enunciação em enunciados reflexivos em textos acadêmicos. Um lugar do qual se deve falar. Este dizer sobre um lugar de enunciação específico da produção do conhecimento na academia é a negação de que haja qualquer possibilidade de um lugar de enunciação que não corresponda a um ponto de vista social particular e não seja produzido a partir de uma determinada conjuntura. Para esta posição sujeito, não dizer de onde se diz significa dizer de uma posição na formação ideológica dominante, pois o que não se mostra, o não-dito, é o sentido dominante, funcionando na evidência que estabiliza como universal uma posição na relação de forças entre sentidos. 1.4 Do conhecimento ao reconhecimento: as vozes na enunciação do saber A leitura que fiz do conjunto desta bibliografia recente sobre os movimentos de mulheres negras e feministas negras trouxe duas contribuições centrais para a tese. A primeira delas, como acabo de apresentar, foi minha percepção na posição de analista do discurso da reflexividade metaenunciativa como regularidade nesta produção acadêmica, o que contribuiu para a delimitação da questão discursiva da tese: a regularidade dos processos discursivos de reflexividade constitutivos de um lugar de enunciação de mulheres negras em enunciados 23 Cardoso (2012), por exemplo, argumenta pela importância de incluir os nomes e sobrenomes das entrevistadas ao invés de tratá-las como informantes anônimas sob o argumento de preservá-las. São propostas assentadas em escritas acadêmicas posicionadas, que argumentam por ouvir as vozes das mulheres negras e por contribuir para sua visibilidade. 52 dispersos em que se inscrevem diferentes posições sujeito. A segunda contribuição foi uma visão panorâmica, uma leitura formativa, de um conjunto de questões a partir de diferentes perspectivas disciplinares – sociologia, comunicação, ciência política, história – ou ainda desde as fronteiras e encontros dessas disciplinas, por propostas interdisciplinares e transdisciplinares. A seguir, retomo as contribuições específicas de cada um dos trabalhos mencionados para a delimitação do objeto de minha pesquisa, para as relações estabelecidas com outras disciplinas e para as propostas de montagens de corpus. Com estes objetivos, resenho-os de forma interessada. A dissertação de Núbia Moreira (2007) foi a primeira leitura de fôlego que fiz sobre o movimento de mulheres negras e que me conduziu na elaboração do projeto de tese 24. Seu trabalho aborda a formação do feminismo negro brasileiro a partir do movimento de mulheres negras do Rio de Janeiro e São Paulo entre 1985 a 1995, percorrendo seminários, encontros e fóruns de debates do movimento de mulheres negras com os movimentos negro e feminista. Sua maior contribuição está no debate sobre a representação política das mulheres negras e os discursos produzidos como afirmação de uma identidade e especificidade da mulher negra, em uma abordagem que articula representação-identidade-diferença. Esta é uma questão central tanto em relação ao feminismo tradicional que busca representar as mulheres como também no interior do próprio feminismo negro, uma vez que a representação que toma a mulher negra como categoria universal torna-se insuficiente para abarcar todas as mulheres negras em suas diferenças de classe, escolaridade, religião, orientação sexual, geração, identidade de gênero... A autora reflete sobre as concepções de representações sociais por Durkheim, Weber e Bourdieu, destacando que estas dependem do reconhecimento social do enunciador e são perpassadas por disputas e lutas pelo poder de categorizar, classificar ou mesmo pelo reconhecimento do existir. Em seguida, percorre a construção, e suas transformações ao longo da história, de um imaginário repleto de valores e estereótipos sobre o negro africano e seus descendentes que buscava justificar as práticas escravistas, focando na representação das mulheres negras no cenário brasileiro. A autora ainda discute o discurso que atribui às mulheres o mundo privado e familiar, afirmando que este se direciona às mulheres das classes 24 Para dizer dos encontros que são acadêmicos e militantes, conto do lançamento do livro da autora em Campinas, que organizei com outras integrantes da Coletiva das Vadias em 2012, na Unicamp. Na ocasião, Núbia também conheceu a Casa de Cultura Afro Fazenda Roseira, um dos espaços em que atuo como jongueira da Comunidade Jongo Dito Ribeiro. 53 favorecidas, dado que as mulheres negras e pobres lidaram historicamente com o espaço público para trabalhar e, nesse espaço, criaram organizações que tinham como fonte o samba e a religião, constituindo-se como fundamentais para a sobrevivência material e simbólica da família e da comunidade negra. Formulações como esta da autora levaram-me a pensar, na perspectiva da Análise de Discurso que (re)produzo nesse trabalho, nas divisões pelo racismo tanto do discurso dominante machista-patriarcal quanto do discurso feminista tradicional, que afastam as mulheres negras das reivindicações de feministas brancas direcionadas à transgressão da família burguesa e da educação voltada ao lar, bem como do padrão de feminilidade dominante projetado pelo discurso machista-patriarcal para mulheres brancas. Traçando um panorama sobre a teoria dos movimentos sociais sob a perspectiva sociológica, compreende que o movimento de mulheres negras se constituirá como mais uma possibilidade discursiva no amplo espectro dos movimentos sociais de grupos subordinados na década de 1980 no Brasil que inventaram e puseram em circulação contradiscursos, formulando interpretações de suas identidades e interesses políticos com discurso autocentrado nas suas especificidades, assim em confronto com o princípio da igualdade. Nesta visada na qual identidade e diferença são binômios que se aglutinam na luta por representação no campo político, o movimento de mulheres negras delimitava sua identidade pela experiência de vida com o racismo. Ou seja, a diferença baseada na identidade étnico/racial foi muito ressaltada pelas feministas negras brasileiras em detrimento da identidade de gênero25, sendo a condição de negra inscrita no corpo um elemento identificador da diferença da cor/raça com as feministas brancas. Núbia Moreira (2007) entende que a constituição do movimento paulistano e carioca de mulheres negras é liderado por mulheres que ocupam um lugar distintivo, pois assistiram a um processo de mobilidade social proporcionado pela formação escolar que as fez ascender à condição de uma classe média, mesmo que o referencial dessa posição se restrinja apenas à população negra. Em diálogo com Nancy Fraser (2002), a autora discute as limitações das políticas de identidade baseadas nas categorias de gênero e raça, que tendem a subordinar as lutas sociais às lutas culturais, defendendo a articulação das políticas de redistribuição às políticas de reconhecimento para se atacar as profundas desigualdades sociais. Núbia Moreira (2007) é enfática sobre as consequências do discurso da diferença que criou uma identidade representacional no campo feminista no fim dos anos 1980. Para ela, este discurso produziu 25 Moreira (2007: 104), nesse ponto, dialoga com Brah (2006) em sua advertência do perigo da essencialização que comparece no discurso em prol da racialização do gênero como crítica à determinação do gênero, sufocando, assim, outras determinações. 54 “um sentido político de mulher negra que acabara por fomentar uma ‘racialização’ do gênero e, consequentemente o esquecimento da classe enquanto uma categoria que articulada com gênero e raça estruturam o quadro das desigualdades na sociedade brasileira” (MOREIRA, 2007: 111). A autora sublinha que a tensão acerca da representação política para e nas organizações de mulheres negras atinge o modo como suas integrantes vão se autodenominar, seja como feministas, militantes do movimento negro ou do movimento de mulheres negras. Nessa direção, afirma que a partir do III Encontro Feminista Latinoamericano e do Caribe ocorrido em Bertioga, em 1985, que se consolida entre as mulheres negras um discurso feminista e “emerge a organização atual de mulheres negras com expressão coletiva com o intuito de adquirir visibilidade política no campo feminista” (MOREIRA, 2007: 59). Esta afirmação me levou a formular a hipótese de que o III Encontro Feminista Latinoamericano e do Caribe poderia ser compreendido como acontecimento discursivo, por desregularizar redes de memórias de sentidos. Retomarei esta hipótese e realizarei análises que envolvem esse evento no próximo capítulo, quando me detiver nas narrativas fundadoras do movimento de mulheres negras e do feminismo negro. Para Moreira (2007), é uma característica da década de 90 a autoidentificação como feminista das mulheres negras presentes nos documentos e discursos plenários e encontros tanto nos fóruns feministas como nas reuniões dos movimentos negros. Nesta década, ganha força o processo de institucionalização ou onguização do feminismo negro, que expôs suas diferenças e intensificou a luta em torno do que seria a legítima representação das mulheres negras. Ana Angélica Sebastião (2007), analisando mais detidamente a intervenção de três organizações de mulheres negras 26 no âmbito das tecnologias da comunicação e a função estratégica que a comunicação assume nas organizações, discute a maneira como estas se inserem em disputas ideológicas que consolidam uma nova identidade da mulher negra no Brasil. Esta intervenção se daria através do que a autora denomina “produção discursiva da 26 As três instituições são: Geledés – Instituto da Mulher Negra (SP), Grupo Criola (RJ) e Casa de Cultura da Mulher Negra (Santos), definidas segundo os critérios de localização, operacionalização da comunicação como campo estratégico, conteúdo comunicativo e relevância da organização no movimento de mulheres negras. Geograficamente, localizam-se em regiões metropolitanas onde as organizações têm ampla capacidade de reverberação e influência nas agendas feministas, órgãos de governos, instituições nacionais e internacionais e outras organizações de mulheres negras no país (SEBASTIÃO, 2007: 27). Apresento a justificativa da autora, pois ao longo da tese analisarei textos produzidos por estas três instituições e/ou por mulheres intelectuais/ativistas integrantes de seus quadros, que são recorrentemente acessadas nos estudos acadêmicos sobre o movimento. 55 memória ressignificada”, que faz das organizações de mulheres negras “guardiãs da produção discursiva da memória sobre o grupo na medida em que produzem, registram, difundem, arquivam e lutam pela ressignificação da história da mulher negra e da sua respectiva representação” (SEBASTIÃO, 2007: 22). Para suas análises, Sebastião (2007) adota a concepção de discurso de Norman Fairclough (2001) e se dedica às práticas de rememoração das organizações, em que há lembrança do passado e produção de um novo sentido, com a transformação do imaginário coletivo. Em suas práticas discursivas, as mulheres negras se apropriam da “memória subterrânea”, conceito emprestado de Michael Pollak (1989) para dizer das memórias silenciadas e/ou não ditas que nos processos de rememoração produzem a projeção ou identificação com determinado passado e, como “memória quase herdada”, um sentimento de identidade, ligado a um sentido da imagem de si, para si mesmo e para os outros. Ao processo de construção de si em que há pertencimento, coerência e continuidade do indivíduo e do grupo, a autora, em diálogo com Zygmunt Bauman (2005), contrapõe a opressão de identidades impostas por outros, que estereotipam, humilham, desumanizam, estigmatizam. Os movimentos negros, nos quais se inserem as organizações de mulheres negras, têm papel ativo na construção de laços identitários a partir das especificidades do grupo, com destaque para o passado histórico comum dos negros brasileiros como herdeiros dos escravizados africanos e sua situação atual como membros de grupo estigmatizado, racializado e excluído das posições de comando na sociedade, conforme afirma Kabengele Munanga (2004). Por sua vez, o passado tem sido rememorado pelas organizações de mulheres negras através de narrativas que reverenciam mulheres silenciadas e esquecidas pela história, com foco ora em personagens históricas femininas, ora em mulheres negras do cotidiano, ou ainda com referências a orixás femininos. Outras práticas de rememoração se dão por entrevistas e reportagens sobre mulheres negras no tempo histórico presente ocupando cargos públicos e realizando atividades de destaque. Nestas práticas, recorre-se à legitimidade do conhecimento científico, aos elementos da estrutura narrativa mítica para o relato não ficcional das histórias de vida e à inversão dos estereótipos. A autora também busca examinar as relações entre ressignificação, construção de novos discursos em torno do grupo e emergência de um novo sujeito histórico, entendido como constituído por uma memória histórica e coletiva e “constitutivo de um poder de fala, portador de uma voz coletiva” (SEBASTIÃO, 2007: 38), que enfatiza o combate ao racismo em suas práticas discursivas sobre o gênero, disputando a construção de uma agenda feminista 56 política que seja pluralista e multiculturalista (e/ou multiracialista). O trabalho de Sebastião (2007) ao relacionar memória, identidade e representação, tratando de forma central a ressignificação discursiva como integrante da luta no campo simbólico e cultural para a construção de novas imagens de mulheres negras, contribui de forma significativa para meu percurso de teorização sobre as lutas ideológicas pelos sentidos, por outras maneiras para dizer de si e por um novo lugar de dizer no espaço público, travadas por mulheres negras nas quais se entrecruzam diferentes redes de memória para constituição do sujeito mulheres negras. Ademais, o conceito de memória subterrânea que ela mobiliza permite atravessar a opacidade do silêncio das mulheres negras para escutar vozes e sentidos que percorrem outros trajetos senão o dominante. Inscrita em uma perspectiva que denomina pós-moderna, a dissertação de Chaves (2008) põe em diálogo teorias feministas, com destaque para as foucaultianas, reconhecendo o feminismo negro como arcabouço em construção dentro da epistemologia feminista brasileira. Em sua empreitada, por vezes lança mão das contribuições de Eni Orlandi (2005) para analisar as entrevistas de militantes e documentos políticos. O objetivo de seu trabalho é discutir as identidades de mulheres negras militantes contra o sexismo e o racismo, elegendo como ponto fundamental da existência do grupo de mulheres negras sua experiência (tomada como categoria de análise) de ser mulher e negra na sociedade brasileira. A autora insiste no caráter móvel e provisório dessas identidades coletivas e individuais, compreendendo-as na relação com sistemas de representações e discursos que constroem os lugares a partir dos quais os indivíduos podem falar. Conclui que as políticas de identidade são necessárias na emergência de identidades excluídas da ordem discursiva, no entanto, “consistem em camisasde-força que criam um sujeito supostamente coerente, escondendo a pluralidade das condições de existência” (CHAVES, 2008: 106). Contribuem com minha reflexão as ponderações que ela faz sobre o fato de estas identidades serem permeadas de negociações constantes por conta da fixação da identidade política do sujeito que constrói um discurso próprio, sobre sua história, e que elabora propostas políticas específicas. Em seu trabalho, Chaves detêm-se ao corpo a partir de sua construção histórica e de sua significação pelo imaginário, argumentando a favor de identidades femininas negras complexas, envoltas por uma multiplicidade imagética – de representações estereotipadas e imagens negativas desde a escravidão, de ressignificação e desconstrução de sentidos nas lutas por libertação, nas práticas de religiosidade que sustentaram laços culturais e 57 manutenção das tradições de origem africana (a autora dedica um tópico de seu segundo capítulo à “Ancestralidade: o poder feminino no candomblé”). Em síntese, a autora entende o corpo como cerne da definição do que somos e lugar de luta e as identidades conformadas pelo assujeitamento e resistência, sendo preponderantes os discursos sobre o corpo na significação das mulheres negras no imaginário, a exemplo da figura da mulata, e sua ressignificação pelas militantes. Mostrando a construção das identidades sempre em relações de alteridade, nomeia seu segundo capítulo com uma interrogação: “Vozes femininas negras ou vozes negras femininas?” Novamente estão postas as reflexões em torno da prevalência de uma opressão – a sexista ou racista? – e também do que predomina na construção da identidade – ser negra ou ser mulher? Assim como a autora, não pretendo defender uma posição. Limito-me a constatar a regularidade desta questão (como já afirmei) no interior dos movimentos de mulheres negras, dos feminismos negros, na militância política e na produção teórica, discutindo os efeitos das nomeações no discurso e as relações com suas condições de produção. Lady Almeida (2010) elege como objetivo realizar um estudo sobre trajetórias e narrativas de (ex)integrantes das ONGs Geledés (São Paulo) e Criola (Rio de Janeiro) 27. A autora constata que “as principais lideranças [das organizações pesquisadas] exercem de forma simultânea uma dupla atividade: trabalho intelectual e atuação política” (ALMEIDA, 2010: 17), o que a leva a defender sua abordagem conjunta e a utilização do termo intelectualativista para referir-se às participantes das organizações de mulheres negras. Em sua argumentação, recorre às formulações de Patricia Hill Collins (2000) sobre pensamento feminista negro e a indissociabilidade entre teoria28 e prática, para afirmar o ponto de vista das mulheres negras sobre elas mesmas como principal fonte de análise. Este ponto de vista permitiria às intelectuais/ativistas a construção de narrativas que traçam a inscrição de si mesmas e uma nova visão da sociedade brasileira, em uma luta pela narrativa histórica, contra as tentativas de silenciamento do dominador da versão do subalternizado – aqui Lady Almeida (2010) relaciona intelectualidade e subalternidade, debatendo trabalhos como os de 27 Na bibliografia sobre os movimentos de mulheres negras e as feministas negras, estas duas organizações são referências recorrentes, o que oferece indícios sobre seu funcionamento como porta-vozes e aponta limites para generalizações sobre o feminismo negro ou o movimento de mulheres negras a partir de experiências particulares situadas em duas capitais da região sudeste. 28 A autora destaca o aumento significativo, no tocante à produção teórica das intelectuais/ativistas pesquisadas de publicações de artigos nas novas mídias, como blog, portal, clippings, boletins, jornais, revistas. A maior parte das entrevistadas atua como organizadora e/ou autora de livros. Seus escritos abordam inúmeros temas, como questões raciais, de gênero, sexualidade, religiosidade, saúde, biopolítica, ação afirmativa, política pública, entre outros (ALMEIDA, 2010: 167). 58 Gayatri Spivak (1985) e Bhabha (1998). Em meu trabalho, instiga-me uma das questões formulada pela autora, nestes termos: “haveria, então, espaços sociais e culturais independentes que permitiriam a circulação de discursos dissidentes que podem romper com os oficiais hegemônicos?” (ALMEIDA, 2010: 121). Traduzida a questão para a Análise de Discurso, pergunto-me sobre as relações entre discursos dominados e discurso dominante, em suas formas de formulação e circulação. Se, para a AD, os discursos dominados estão sempre em relação aos dominantes (não são germes independentes deles), poderia se pensar as memórias subterrâneas como redes históricas dos sentidos dominados ou trajeto de vozes e sentidos silenciados historicamente. Outras duas contribuições da cientista social Lady Almeida (2010) que eu gostaria de destacar são o retrato que desenha da mulher negra na sociedade brasileira e as reflexões teóricas que apresenta sobre os novos movimentos sociais. No retrato, demonstra como o elemento cor passou, além de indicar uma desigualdade social, a significar uma supremacia dos brancos e inferioridade dos negros, fazendo persistir representações e estereótipos associados à cor e às diferenças raciais que sustentam preconceitos e discriminações, em circulação na literatura, nos livros didáticos, nos ditados populares, no folclore brasileiro e em outras esferas da cultura. A partir destes estereótipos, são associadas aos negros as características de irresponsabilidade, falta de higiene, imoralidade, incompetência e incapacidade. Assim como Núbia Moreira (2007), a autora retoma a partir do clássico Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre, a inserção da mulher negra na vida privada da sociedade patriarcal, seu papel de criar os filhos dos brancos, cozinhar e atender à demanda sexual dos senhores. Nessa obra, as relações entre senhores e escravas foram construídas sobre laços de afetividade e reciprocidade, interpretação da qual discorda Giacomini (1988), que defende que a exaltação sexual da escrava e o culto da sensualidade da mulata serviram como função justificadora dos ataques sexuais e estupros que vitimavam as escravizadas, que tem sua sexualidade representada como alheia à procriação, enquanto as normas morais direcionam-se às mulheres brancas. Em nosso terceiro capítulo, retomaremos o funcionamento dos estereótipos sobre mulheres negras com foco na figura da mulata e na luta de mulheres negras para ressignificá-la, o que inclui o confronto com ideologias da mestiçagem que desconstroem a identidade negra – na interpretação de Munanga (2008), buscando sua autodefinição e reconstrução de imagens de mulheres negras em recusa ao olhar 59 do outro. Por fim, ressalto a articulação teórica que Almeida (2010) faz para situar o movimento de mulheres negras como novo movimento social, recorrendo a Gohn (2007). Segundo essa autora, a identidade coletiva é fundamental nas explicações dos Novos Movimentos Sociais (NMS), sendo esta constituída em um processo relacional e autoreflexivo que define seus membros, fronteiras e ações do grupo que dão base ao surgimento de um novo sujeito em um modelo teórico cultural, com o abandono de um sujeito pré-determinado e do marxismo como campo teórico capaz de explicar a ação coletiva da sociedade contemporânea. No caso do movimento de mulheres negras, a interseccionalidade e outras formulações do Black Feminism nos Estados Unidos aparecem como alternativas teóricas e políticas, que têm por princípio a ideia de que os sistemas de opressão de classe, gênero, raça e sexualidade estão interrelacionados. Esta concepção de NMS e as críticas feitas ao marxismo – desde dentro ou não – rondam as formulações acerca dos movimentos de mulheres negras. A tese de Cláudia Pons Cardoso (2012) comporta uma pluralidade de vozes, resultado de seu empreendimento epistemológico bem fundamentado, que se reverte no modo como propõe sua escrita. Seu texto serviu-me constantemente como orientador de leituras. A reflexividade enunciativa é recorrente ao longo de seu texto, articulada a uma reflexividade como tomada de posição epistemológica e política. Leiamos o que escreve sobre a forma como lidava com as entrevistas que realizou em sua pesquisa: Nesse processo de reflexão, percebi que minha primeira incursão no campo foi em busca do feminismo negro, independentemente do que encontraria, e, previamente fechava as portas para a própria dinâmica do movimento de mulheres negras trazida pelas histórias das integrantes. Desta maneira, perdia a riqueza e a singularidade das entrevistas, na medida em que não ouvia as histórias, mas, sim, enquadrava-as em uma pré-concepção daquilo que compreendo como feminismo negro. Eu estava definindo o movimento de mulheres negras pelo feminismo, antes mesmo de ouvir como as ativistas se posicionavam. Foi necessário, então, desconstruir o que esperava encontrar para encontrar o que desejava: histórias dos movimentos de mulheres negras (CARDOSO, 2012: 41). Inspirada em compreender o lugar de enunciação dos discursos de mulheres negras no espaço feminista, Cardoso (2012) investiga trajetórias de mulheres ativistas brasileiras que são articuladoras de um ponto de vista das mulheres negras, atuando como lideranças e conselheiras do movimento, além de mediadoras políticas. Cada uma das ativistas 60 entrevistada é uma Griô, uma analogia entre os sentidos dos Griôs 29 tradicionalistas como guardiões da palavra em comunidades africanas e aqueles das entrevistadas no movimento de mulheres negras, como narradoras e personagens das histórias narradas. Seu objetivo é compreender como as desigualdades de raça, gênero, classe e sexualidade são operacionalizadas no ativismo dos movimentos de mulheres negras e como estes incorporaram/recriaram o discurso feminista no Brasil. Ela analisa, então, a tessitura de um pensamento feminista negro, que desafia as estruturas de poder em um processo de autoafirmação e valorização articulado com a manutenção e exaltação da tradição (e elaboração de novas tradições), o que proporciona o desenvolvimento de um sentimento étnico/racial de pertencimento individual e de grupo, elemento de resistência e sobrevivência. Já na introdução de seu texto, Cláudia Pons Cardoso caracteriza o pensamento feminista negro pela recuperação da história das mulheres negras; por sua reinterpretação a partir de uma nova estrutura teórica, revelando a contribuição das mulheres negras em diversas áreas do conhecimento; pelo enfrentamento político ao racismo, ao sexismo e ao heterossexismo através de uma perspectiva interseccional (CARDOSO, 2012: 25). Em diálogo com Avtar Brah (2006), Claudia Cardoso propõe pensar que a racialização da subjetividade negra é manifestada e conforma o que ela chama de “corpo negro-mulher”30, no qual se imbricam as estruturas de subordinação de gênero e raça. Para abordar a crítica ao feminismo hegemônico, remonta os postulados gerais dos feminismos da igualdade e da diferença, uma vez que são alvo das críticas de feministas negras, chicanas e lésbicas nas décadas de 1970 e 1980, argumentando que a dicotomia de gênero do feminismo da diferença (e a consequente uniformidade da forma de opressão para todas as mulheres) foi deslocada para o apontamento da diferença entre mulheres e redefinida pelo debate pós-colonial, que insere as experiências das mulheres no contexto do colonialismo, racismo e imperialismo. Apesar de reconhecer as contribuições das críticas feministas pós-coloniais, a autora indica que os maiores deslocamentos teóricos empreendidos foram possibilitados pelas críticas das feministas latinas ao etnocentrismo feminista a partir do Sul, percorrendo as teorizações sobre a colonialidade de gênero de María Lugones (2008; 2011). 29 Cardoso (2012:31-32) dialoga com a concepção de Griot apresentada por Hampâté-Bâ (1982). Segundo o autor, na sociedade africana, griô é quem transmite oralmente a tradição histórica do povo. São trovadores ou menestréis que percorrem o país ou estão ligados a uma família. 30 Conceito que retomarei mais detidamente (cf. capítulo 04) para abordar os sentidos racializados sobre os corpos de mulheres negras e sua luta pela ressignificação dos estereótipos, pensando na centralidade que os corpos das mulheres negras têm para representações negativas, bem como nas práticas de resistência – pelos cabelos, vestimentas, assessórios, posturas corporais, danças, entre outros. 61 No que diz respeito à produção teórica brasileira, Cardoso detém-se nas contribuições de Lélia Gonzalez (1984) e em sua proposta de amefricanizar 31 o feminismo, dando peso à sua afirmação de que a especificidade do feminismo negro – e sua diferença em relação ao ocidental – reside na solidariedade fundada pela experiência histórica comum e assumindo como pressuposto que as resistências das mulheres negras brasileiras contra as relações patriarcais ao longo da história são inspiradoras para a práxis feminista negra e constituem a genealogia de um pensamento feminista negro, imprimindo diferenças nas memórias históricas dos feminismos (CARDOSO, 2012: 86). Outra contribuição significativa da tese é sua abordagem acerca das imagens estereotipadas das mulheres negras em diferentes países da diáspora. Estas imagens transformam particularidades em marcas essencializadas, justificadoras das diferenciações sociais e cumpridoras de um papel de dominação ideológica daquelas que foram representadas negativamente. Em diálogo com a produção de Lélia Gonzalez (1983), Patrícia Hill Collins (2000), Stuart Hall (2010) e Homi Bhabha (2001), propõe como agenda de pesquisa que representações racializadas de gênero sejam analisadas em sua constituição, o que busco empreender no quarto capítulo desta tese e que também assumo como ponto de uma agenda de pesquisa para a AD em uma tomada de posição feminista e antirracista. Entre os estereótipos recorrentes sobre mulheres negras no Brasil, aprofunda a reflexão acerca da noção de mulata por entendê-la como uma “expressão máxima da violência simbólica do racismo gendrado produzido pelo contexto das colonialidades do poder e de gênero” (CARDOSO, 2012: 129). Para finalizar por ora a resenha interessada do trabalho de Claudia Cardoso (2012), adianto o debate entre diferentes versões da emergência do movimento contemporâneo de mulheres negras. A autora questiona a compreensão de que a organização das mulheres negras surge em reação ao movimento feminista branco, aprofunda o contexto político do binômio “feminismo/movimento de mulheres” nos anos 1980 e debruça-se sobre interpretações do III Encontro Feminista Latinoamericano e do Caribe – um evento que aparece muitas vezes no que estou considerando narrativas fundadoras do movimento de mulheres negras, objeto do segundo capítulo. 31 Amefricanidade, categoria cunhada por Lélia Gonzalez nos anos de 1980, surge no contexto da diáspora negra e do extermínio da população indígena das Américas e recupera as histórias de resistência contra a colonialidade do poder. A proposta permite abordar de forma interligada racismo, colonialismo, imperialismo e seus efeitos (CARDOSO, 2012: 118). 62 1.5 O discurso do movimento de mulheres negras? – constituição do corpus Como ensinam muitos dos trabalhos da AD, os desafios de se estabelecer critérios para a seleção, organização, descrição e análise de corpus em consonância com as bases teóricas em que se situa o trabalho marcam a história desse domínio de pesquisa. Reconhecendo estes desafios, tento estabelecer as questões relativas ao meu corpus em diálogo privilegiado com três textos que são (ao menos na tradição em que se inscreve meu trabalho) considerados fundamentais: o livro Análise do discurso político: o discurso comunista endereçado aos cristãos, de Jean-Jacques Courtine (1981), o texto O Discurso: estrutura ou acontecimento?, da apresentação de Pêcheux (1983a) em um congresso sobre “Marxismo e a Interpretação da Cultura”, e o balanço Análise de Discurso: três épocas, também de Pêcheux (1983b). De forma resumida, Courtine (1981: 31) reconhece as dimensões histórica e linguística do “discurso” buscando, no entanto, sua especificidade como objeto: “A adoção de um ponto de vista especificamente discursivo deve evitar, se é verdade que no discurso se estabelece uma determinada relação entre o linguístico e o ideológico, reduzir o discurso à análise da língua ou dissolvê-lo no trabalho histórico sobre as ideologias”. Esta proposta teórica deveria conduzir ao estabelecimento de procedimentos metodológicos para a definição de uma forma de corpus. De saída, encontrei muitos problemas. Como evitar que minha hipótese, inclusive em suas implicações para a constituição do corpus, sobredeterminasse minhas análises e apagasse a relação constitutiva da alteridade no discurso? Como dizer de um “discurso do movimento de mulheres negras” e supor sua constituição a partir do discurso feminista e do discurso do movimento negro, em embate com os discursos sexista e racista, sem produzir como efeito a homogeneidade e apagar as relações de força entre esses discursos e no “interior” de cada um deles? Ainda que o trabalho de Courtine (1981), apoiado na Arqueologia do Saber de Foucault (1969), tenha argumentado a favor do funcionamento heterogêneo da memória no discurso político, assinalando que as formações discursivas (FD) têm fronteiras instáveis, como aponta Pêcheux (1981: 23), “permanecem problemas sobre os critérios de identificação das formações discursivas e dos enunciados: essa releitura mantém uma identidade da formação discursiva”. Pêcheux (1983b: 314-316) defende que o que marca o deslocamento teórico do segundo período da AD é a noção de formação discursiva, que começa a fazer explodir a 63 noção de discurso como “máquina estrutural” fechada, na medida em que a FD estabelece relação paradoxal com seu exterior. Mais do que problematizar os pontos de confronto polêmico nas fronteiras internas da FD, tematizados como efeitos de ambiguidade ideológica, “a insistência da alteridade na identidade discursiva coloca em causa o fechamento dessa identidade, e com ela a própria noção de maquinaria discursiva estrutural... e talvez também a de formação discursiva”. A terceira época, vivida por Pêcheux no momento da escrita de seu texto, era de “tentativa” de novas construções. O procedimento da AD por etapas, com ordem fixa, explode “através da desestabilização das garantias sócio-históricas que se supunham assegurar a priori a pertinência teórica e de procedimentos de uma construção empírica do corpus refletindo essas garantias”. Ganham espaço “os estudos da construção dos objetos discursivos e dos acontecimentos, e também dos “pontos de vista” e “lugares enunciativos no fio do intradiscurso”. Na terceira época, se questionam os procedimentos que sequenciam em etapas análise linguística e discursiva, se recolocam questões, a partir de análises intradiscursivas acerca do “sujeito da enunciação” nas tensões entre o mesmo e o outro, entre assujeitamento e emergência de novas posições sujeito, entre estrutura e acontecimento, regularidades e rupturas; pergunta-se pelas relações entre leitura, interlocução, pensamento e memória, entre outros pontos pertinentes à tese e que retornarão ao longo do texto. Sobre a delimitação do corpus na AD na França, Courtine ([1992] 2006: 45) escreve que este é o lugar de múltiplas tensões, hesitando entre o exame de corpora doutrinais, com suas séries regulares de enunciados – privilegiados na primeira fase da AD – e o exame de práticas linguageiras dispersas e heterogêneas, envolvendo as práticas orais com o objetivo de apreender as margens do discurso 32. As noções de instabilidade da FD e da dinamicidade do corpus no curso do desenvolvimento da análise “possibilitam descrever os regimes de enunciabilidade em sua dispersão, tanto nas regularidades de funcionamento quanto nas rupturas provocadas pelo acontecimento” (ZOPPI-FONTANA, 2005: 95). Desta forma, o corpus responde aos objetivos e às questões formuladas incessantemente pelo analista, em um processo em espiral, e seu fechamento se dá de fato ao final das análises, considerando tanto as determinações da 32 A escolha por um corpus heterogêneo que contemplasse inclusive a oralidade se inseriu na tentativa de desprendimento da inclinação da AD por enunciados legitimados de porta-vozes. De alguma forma, tocada por Pêcheux (1981: 25), abri-me para aceitar o confronto com a “‘memória sob a história’ que percorre o arquivo não escrito dos discursos subterrâneos” sob múltiplas formas orais. “Essa heterogeneidade discursiva, feita de trechos e fragmentos, interessa na medida em que nelas podem ser determinadas as condições concretas de existência das contradições pelas quais a história se produz, sob a repetição de memórias ‘estratégicas’”. 64 história sobre os processos discursivos quanto os efeitos do gesto de leitura do pesquisador. Para a perspectiva adotada, a prática analítica consiste em um trabalho de descrição da materialidade simbólica do discurso, procurando nas formulações os traços de determinação da memória discursiva, os elementos pré-construídos, as repetições, reformulações e deslocamentos de enunciados já ditos. E como tentativa de não encerrar minhas questões nos limites da noção de FD, procuro vias para reconstruir “o espaço de memória de um corpo socio-histórico de traços discursivos, atravessado de divisões heterogêneas, de rupturas e de contradições” (PÊCHEUX, 1983: 317). Um discurso sempre remete a um discurso anterior e o estudo de um processo discursivo no interior de uma FD é indissociável do estudo da determinação desses processos discursivos pelo interdiscurso. Considerar o interdiscurso como instância de formação/repetição/transformação dos elementos de uma FD (COURTINE, 1981: 100) levanos à análise dos pré-construídos produzidos no exterior de uma FD particular, mas incorporados e redefinidos, o que pode tanto revelar o deslocamento das fronteiras daquela FD quanto os embates de sentido com outras formações discursivas. A busca aqui é por escapar da FD como máquina discursiva de assujeitamento voltada para a repetição, que apagaria o acontecimento e levaria à sobre-interpretação (PÊCHEUX, 1983a: 56), além de anular a possibilidade do “sujeito que ousa lutar”. A princípio, meu projeto de tese previa a organização do meu corpus em torno da hipótese de dois acontecimentos discursivos. O primeiro acontecimento discursivo se inscreveria no momento de constituição do discurso do movimento de mulheres negras, segundo uma de suas narrativas fundadoras. Trata-se do III Encontro Feminista LatinoAmericano realizado em Bertioga-SP, em 1985. O segundo acontecimento discursivo que nortearia a delimitação do corpus de nossa pesquisa era a Campanha Nacional contra a Esterilização em Massa de Mulheres Negras com o slogan "Esterilização de Mulheres Negras: Do Controle da Natalidade ao Genocídio do Povo Negro", sob a liderança do Programa de Mulheres do Centro de Articulação de Populações Marginalizadas do Rio de Janeiro 33. Se supor a priori a existência/constituição de determinadas formações discursivas 33 Esta campanha, iniciada em 1990, visava denunciar o viés racista das iniciativas de controle populacional, definidas como de planejamento familiar, empreendidas por organizações não-governamentais brasileiras e internacionais nas diferentes regiões do país (LOPES, WERNECK, s/d: 10). Escolhi este segundo acontecimento por tratar de um tema da sexualidade que foi polêmico entre os movimentos negros e feministas e também porque esta campanha de alcance nacional marcou a história do movimento de mulheres negras e repercutiu nos meios de comunicação massivos. No entanto, em pesquisa de arquivo na Ong Criola (abril de 2014), no Rio de Janeiro, não localizei os materiais relativos à campanha, apesar de eles figurarem no catálogo do arquivo (podem ter sido extraviados em pesquisas anteriores, por exemplo). 65 pode produzir como efeito as conclusões analíticas como espelhamento da hipótese de pesquisa, eu diria o mesmo da eleição prévia de acontecimentos discursivos a partir de hipóteses de outras disciplinas. As análises oriundas de diversos campos disciplinares apontarem o encontro e a campanha mencionados como momentos de embate e afirmação do movimento de mulheres negras é indício de narrativas fundadoras do/sobre o movimento de mulheres negras. Na constituição do corpus, pretendi explorar arquivos diversos, com a diretriz de constituí-lo por várias sequências discursivas, produzidas por vários locutores, a partir de posições ideológicas heterogêneas e em diacronia. Sua constituição se deu a partir da pesquisa em bibliotecas, arquivos pessoais de militantes, arquivos privados e públicos, virtuais ou sediados em organizações de mulheres negras34. Reuni materiais produzidos pelos movimentos de mulheres negras e outros materiais sobre os movimentos de mulheres negras, como reportagens, biografias, vídeos e fotografias 35. Feita esta contextualização sobre os debates em torno da constituição do corpus na AD e meu trajeto pessoal de pesquisa, situo meu trabalho entre os que, de forma geral, discutem enunciação e discurso político. A eleição/construção do discurso político como objeto de análise pode ser compreendida tanto pelas características a ele atribuído, um discurso apropriado para uma leitura em termos de ideologia, quanto pela política da AD, considerando que falar do discurso político implica uma tomada de posição pelo analista (COURTINE, 1981). Assumindo as articulações entre a história da AD como domínio das ciências humanas, seus métodos e objetos, Courtine ([1992] 2006) defende que as transformações do discurso político nas suas modalidades de existência material e nas suas percepções individuais e coletivas impactam a AD. Afirma o autor que não fazemos a mesma análise do discurso político quando a comunicação política consiste num comício que reúne uma multidão em torno de um orador e quando essa comunicação toma a forma de shows televisivos, aos quais cada um assiste em domicílio. Tampouco fazemos a mesma análise do discurso independentemente das crenças, das segmentações sociais e ideológicas, das polêmicas antigas ou recentes; elas exercem suas coerções sobre o discurso das ciências humanas, sobre as escolhas dos sujeitos, sobre 34 Menciono as organizações Criola (Rio de Janeiro-RJ), Geledés (São Paulo-SP) e Casa de Cultura da Mulher Negra (Santos-SP); e o Arquivo Edgard Leuenroth (AEL/Unicamp). Destaco que tive dificuldades em relação às pesquisas de arquivo, dado que as bibliotecas das ONGs Geledés (São Paulo) e Casa de Mulheres Negras (Santos) estiveram fechadas para manutenção durante parte do período da pesquisa. No entanto, ambas as organizações disponibilizam parte de suas produções em suas páginas na internet. 35 Neste processo, foi fundamental a contribuição de Núbia Regina Moreira, que me repassou um conjunto significativo de textos produzidos pelo movimento de mulheres negras, por intermédio de Magali Mendes, funcionária da Unicamp e militante feminista há décadas, hoje atuante na Associação de Promotoras Legais Populares Cida da Terra de Campinas e Região, na Articulação Popular e Sindical de Mulheres Negras de São Paulo e no Quilombo Urbano OMG (Oziel, Monte Cristo e Gleba B). 66 a definição dos objetivos e sobre a reprodução dos recortes formais (COURTINE, [1992] 2006: 50). Não pretendo me dedicar às transformações do discurso político desde o surgimento da AD na França ou ainda tratar de suas metamorfoses na realidade brasileira. Alguns dos trabalhos por mim resenhados, ao tratarem das características dos novos movimentos sociais ou das políticas de identidade fazem emergir questões sobre os sentidos do político, das práticas políticas e dos discursos políticos. Para além de deter-me em tipologias do discurso, interessa sublinhar os desafios das análises dos discursos políticos, daqueles que se relacionam com a militância ou que intervêm na esfera da política quando se consideram as materialidades discursivas complexas e, principalmente, quando se questionam os parâmetros do que define o político para diferentes posições sujeito. A questão sobre o estatuto do discurso político atinge diretamente a constituição do corpus. Há de se reconhecer a pluralidade das expressões políticas de mulheres negras e admitir que as mudanças operadas nas práticas do político dizem respeito aos materiais de análise eleitos em minha pesquisa. Limitar o corpus a textos produzidos por porta-vozes, pelo o que demonstraram minhas primeiras incursões analíticas, seria excluir/silenciar sentidos em funcionamento no discurso dos movimentos de mulheres negras e feminismos negros. O que dizer, por exemplo, de uma série de fotografias de encontros feministas em que estão mulheres negras trançando umas os cabelos das outras? Ou então, da opção que um grupo de mulheres faz por cantar uma música na ocasião da plenária final de um encontro?36 Quais práticas considerar em uma encruzilhada de memórias e materialidades da linguagem sem partir de definições prévias de quais são as práticas políticas, onde circula o discurso político, quem são seus enunciadores privilegiados? Minha tomada de posição se dá pelo reconhecimento dos efeitos de identificação a posições dos feminismos e do movimento negro, em considerar os debates teóricos e epistemológicos que propõem conformar um projeto de AD assentado em uma racionalidade que não dissocie corporeidade, musicalidade, narrativas, formas comunitárias de aprender, culturas negras, discurso político, considerando que “nem sempre os instrumentais metodológicos e as tradicionais categorias de análise construídas sob a égide da lógica da racionalidade ocidental moderna dão conta de interpretar a complexidade de expressões e vivências afro-brasileiras”, como afirma Nilma Gomes (2012: 510). No entanto, avalio que o reconhecimento do impacto destas questões na 36 Refiro-me, mais diretamente, a fotografias do livro Mulheres e Movimentos, de Claudia Ferreira e Claudia Bonan (2005), e à intervenção de mulheres negras brasileiras no III Encontro Feminista Latinoamericano e Caribenho, em análise no capítulo 2. 67 delimitação do corpus foi tardio e não subverteu a centralidade da escrita, das porta-vozes e da produção acadêmica em sua constituição e nas análises empreendidas. Feitas estas ressalvas, procuro apontar as consequências destas reflexões. Os discursos dos movimentos de mulheres negras e a pluralidade de posições sujeito nele inscritas – mas que não se restringem a ele, pois são encontradas em outras instâncias da sociedade – deixaram de ser foco exclusivo da análise, proposta que me afasta da descrição de posicionamentos ideológicos e da tarefa de analista de nomeação de formações discursivas e posições sujeito como imprescindível37. Orientei, então, a constituição do corpus da pesquisa a partir da regularidade da reflexividade metaenunciativa que no discurso constitui o que denominei reflexividade discursiva, que atravessa os discursos do movimento de mulheres negras, do feminismo negro, da teoria do ponto de vista, da produção literária, cinema e artes visuais negros. Portanto, a regularidade da reflexividade metaenunciativa orientou a delimitação do corpus desta pesquisa a partir de um arquivo composto por publicações de divulgação e formação de organizações autônomas de mulheres negras e articulações nacionais e regionais de mulheres negras, de falas de mulheres negras intelectuais/ativistas em encontros políticos feministas e de mulheres negras, de textos acadêmicos e militantes sobre as mulheres negras, de poemas da literatura brasileira contemporânea escrita por mulheres negras. Ou seja, deve-se atentar que as vozes-mulheres negras em questão nesta tese não são, de forma geral, aquelas excluídas da universidade ou da educação básica, da produção literária escrita, dos espaços de representação da militância política organizada (seja do movimento feminista, negro ou de mulheres negras) ou de posições de porta-voz das religiões de matrizes africanas, apesar de apontarem a exclusão e silenciamento históricos, fazendo ecoar outras vozes e sentidos em seus dizeres. A descrição-interpretação do corpus voltou-se ao dizer de si e, por vezes, seu atrelamento ao funcionamento do dizer do lugar de onde se diz, uma regularidade na pluralidade de posições sujeito analisadas, relacionada a uma temática que perpassa o corpus e que abordo na tese. Trata-se da visibilidade/invisibilidade e a voz/silêncio de mulheres negras na história e na sociedade brasileiras como tópicos no discurso que constituem mulheres negras como sujeitas em enunciados inscritos na trama de diferentes redes de memória. Os recortes discursivos são compostos por sequências sobre o “ser mulher negra”, 37 Esta consideração não me eximiu de buscar a todo tempo marcar as relações de sentido entre as posições sujeito, apontar a (re)organização de memórias nos discursos e seus embates. Ademais, no Capítulo 4, em especial, eu nomeei formações discursivas em contradição como forma de sistematizar as relações de inclusão/exclusão, negação e ressignificação de posições sujeito em luta. 68 na qual são preponderantes a autodenominação e narração em primeira pessoa de sua experiência com o racismo e com o sexismo, de suas práticas políticas e de suas trajetórias históricas Como um dos elementos de análise, descrevo os efeitos de sentido nas denominações movimento de mulheres negras, feminismo negro, entre outras, na construção de mulheres negras como sujeitas de dizer de um discurso sobre si e sujeitas políticas, discutindo o nexo entre as duas categorias. Para além da enunciação, questiono-me sobre os modos de o se dizer negra articular-se ao ser negra que pressupõe, projeta e se inscreve em um corpo, com o objetivo de problematizar a relação entre palavra, corpo e a construção sócio-histórica da significação. Com foco nos processos de identificação no discurso que participam da formação do sujeito social e político mulheres negras na segunda metade dos anos 1970 e principalmente nos anos 1980, constituo um corpus que acompanha o funcionamento discursivo da reflexividade metaenuciativa na autodenominação do movimento, na construção de suas “narrativas de origem” (incluindo os efeitos da circulação atual de dizeres e imagens dos anos 70 e 80) e depois a partir dos anos 2000, quando se transformam as condições de produção e circulação do discurso com a internet. Ao longo dos três capítulos seguintes, argumento que as lutas para dizer sua história em primeira pessoa, a memória diaspórica negra, em sua dinâmica incessante de ressignificação, se atualizam nas relações contraditórias e conflituosas com os discursos dominantes da historiografia e da identidade nacional, da brasilidade, nos quais o racismo é estruturante. 69 ___________________________________________________________________________ Capítulo 2 Guerreiras brasileiras: anônimas e com nome e sobrenome ___________________________________________________________________________ 70 Não sou descendente de escravos, sou descendente de seres humanos que foram escravizados (Makota Valdina). O negro tem que ter nome e sobrenome (Lélia Gonzalez). A reflexão sobre as lutas por memória empreendidas por mulheres negras para se significar e os discursos em contradição na constituição deste sujeito em suas práticas de rememoração são objeto deste segundo capítulo. Para conduzir esta reflexão, elejo um acontecimento que figura em algumas das narrativas de origem da ação política organizada de mulheres negras na contemporaneidade – o III Encontro Feminista Latinoamericano e do Caribe (1985) – e discuto-o como paradigmático das articulações destas narrativas com um possível discurso fundador (ORLANDI, 1993) de um dos modos de afirmação de mulheres negras no Brasil, aquele estabelecido nas relações com o feminismo (sejam elas de negação, de diferenciação ou outras possíveis). Reconheço que as polêmicas em torno destas narrativas, os modos de contá-las, sua circulação desde diferentes lugares de enunciação constituem um determinado sujeito mulheres negras – em sua heterogeneidade, como a todo momento assinalo –, que reivindica sua história e, como procurarei demonstrar ao longo do capítulo, ao tomar a palavra e dizer de si, instaura uma memória sobre quem é em uma filiação a sentidos anteriores que se deslocam, são visibilizados, se organizam, se imbricam, se encontram, se tecem por este gesto. As lutas por uma memória, pela rememoração do vivido que foi silenciado, em confronto com outras memórias sobre as mulheres negras, a história do Brasil, a brasilidade, a construção do povo brasileiro, o colonialismo escravista fazem política hoje, considerando que dizer do passado, nas posições sujeito em questão, é condição de possibilidade para se dizer no presente e projetar o futuro. Fazem política porque mulheres negras seguem lutando por sua visibilização positiva na história brasileira e por sua representação no imaginário fora de estereótipos que cristalizam/reproduzem a memória dominante construída historicamente sobre as mulheres negras. E tem conquistas significativas nas lutas empreendidas. Quando se pensa especificamente nas narrativas de origem, pode-se afirmar que estas têm efeitos na política hoje, pois os acontecimentos das lutas por memória e pela ressignificação discursiva do momento que se considera inaugural do movimento de mulheres negras, refiro-me especialmente aos anos 1970 e 1980, retornam nas formas do discurso relatado/reportado (inclusive em suas novas formas no digital) no discurso de mulheres negras no campo político 71 na segunda década do século XXI38, na escrita da história das mulheres negras na rememoração de sua militância, da história de suas vozes na política Além dos acontecimentos, as intelectuais/ativistas dos anos 1970/1980 são relembradas como percussoras, a exemplo das publicações sobre Lélia Gonzalez e de sua eleição para o Projeto Memória39e das menções que a ela se faz nos documentos dos movimentos de mulheres negras e na produção de intelectuais/ativistas e poetas negras atualmente. Compreendo que esta rememoração no século XXI que (re)produz as narrativas de origem – ordena o relato – do movimento contemporâneo de mulheres negras faz-se no movimento de atualização do discurso fundador de certa identidade de mulheres negras, em um retorno que não é repetição pelas mudanças das condições de produção e circulação dos discursos e porque a memória suposta pelo discurso é sempre (re)construída na enunciação. As práticas de rememoração atualizam a encruzilhada de memórias que constituem um sujeito mulheres negras, a memória diaspórica negra e sua noção de continuum e a memória de contemporaneidade dos movimentos sociais negros e feministas, principalmente quando se assume a perspectiva da história dos novos movimentos sociais, dos movimentos identitários ou, em relação à historiografia dos feminismos, sua organização em ondas. Esta encruzilhada de memórias40 é constitutiva do sujeito mulheres negras, é uma regularidade analisada no acontecimento do Encontro até práticas atuais. Para tanto, o capítulo subdivide-se da seguinte forma: inicialmente, apresento a conceituação de narrativas de origem tal qual proposta por Joana Pedro (2006) em seu trabalho sobre a história do feminismo no Brasil. A partir deste trabalho, persigo os modos 38 Nesta afirmação está meu reconhecimento enquanto analista de dois pontos. Primeiro, uma continuidade das iniciativas do movimento de mulheres negras dos anos 1970 até hoje, com diferentes fases, como delimita Cláudia Pons Cardoso (2012) em sua proposta de organização da história do feminismo negro brasileiro. Depois, a percepção no processo de constituição do corpus de que os anos 1970 e 1980 aparecem como inaugurais do movimento (quase sempre com ressalvas, como procurarei apontar ao longo do capítulo), em textos produzidos desde os anos 1970 até a atualidade desde diferentes vozes mulheres negras no campo feminista. 39 O Projeto Memória é um projeto da Fundação Banco do Brasil, criado em 1977 para “difundir a obra de personalidades que contribuíram significativamente para a transformação social, a identidade cultural brasileira e o desenvolvimento do Brasil. São desenvolvidos produtos educativos e kits pedagógicos que circulam pelo país, dirigidos para bibliotecas e escolas públicas. O objetivo é alcançar professores, alunos da rede pública de ensino, historiadores e formadores de opinião”. Lélia Gonzalez foi a segunda mulher em destaque no projeto, em 2015. Disponível em http://www.projetomemoria.art.br/leliaGonzalez/ 40 Proponho a noção-imagem de encruzilhada de memórias a partir das considerações da professora Lucília Maria Abrahão e Sousa na banca de qualificação do doutorado. A professora, na ocasião, apontou que havia um entre como regularidade no corpus de tese e nas questões colocadas por este corpus: os enunciados das vozesmulheres negras estavam entre a teoria e a prática política, entre o sagrado e o profano, entre o privado e o público, o político e o cotidiano, demandando da análise uma posição entre a Análise de Discurso e outras teorias. Sugeriu, então, encruzilhada como um termo que diria dos entremeios entre formações discursivas (FD), das nuances de fendas em uma mesma FD, que não seria o atravessamento de FD ou a heterogeneidade discursiva, já teorizados na AD, mas uma FD inscrita em diferentes regiões dos sentidos, de modo a constituir um lugar de imbricamento, como uma forquilha. 72 como se estabilizam as narrativas de origem como o que aconteceu e deve ser contado às novas gerações, o que explica a emergência histórica de um movimento social ou o marco da identificação com um ideário político. Estas narrativas são resultantes de conflitos de poderes e posições entre grupos que protagonizam os movimentos e/ou produzem sentidos sobre eles. Neste ponto, teço algumas considerações sobre a história das mulheres e a história dos movimentos e pensamentos feministas, evidenciando sua multiplicação pela luta de grupos de mulheres que não se reconhecem na história do feminismo hegemônico. Foco, então, nas narrativas do/sobre o movimento de mulheres negras brasileiras. Em seguida, caracterizo a noção de discurso fundador em Eni Orlandi (1993) e apresento o artigo A boa nova da memória anunciada: o discurso fundador da afirmação do negro no Brasil, de Pedro de Souza (1993: 60) que, a partir de análise do Manifesto do Dia Nacional da Consciência Negra, escrito em 1978 pelo Movimento Negro Unificado (MNU), afirma que “a condição de possibilidade para a fundação e sustentação do discurso de afirmação do negro no Brasil” é a legitimidade histórica da memória de Palmares e de Zumbi, em um movimento de negação de sua folclorização. A partir da análise do artigo De Palmares às escolas de samba, tamos aí!, de Lélia Gonzalez (1982), assinalo as referências femininas anunciadas pelas vozes-mulheres negras e questiono se Palmares e Zumbi também constituiriam o discurso fundador de subjetividades de mulheres negras no campo das lutas feministas e antirracistas, aventando a hipótese de sua constituição como resultante de múltiplas fundações discursivas, em uma encruzilhada de memórias míticas e históricas. Analiso, então, sequências discursivas produzidas a partir do acontecimento do III Encontro Feminista Latinoamericano e do Caribe, realizado em Bertioga-SP, em 1985, do qual participaram integrantes de organizações do movimento de mulheres negras brasileiras. Pergunto-me pelas condições pelas quais este “acontecimento histórico (um elemento histórico descontínuo e exterior)” se inscreve na “continuidade interna, no espaço potencial de coerência próprio a uma memória” (PÊCHEUX, 1982: 50). Meu olhar mira-o através dos dizeres, imagens e sons sobre ele produzidos em diferentes momentos, desde durante o próprio encontro até 2015. Parte dos discursos sobre o evento define-o como fundador, ou seja, estabelece na interpretação o sentido da fundação. Este foi um dos critérios que me levou a selecionar o acontecimento histórico do encontro para em torno dele constituir um corpus discursivo, considerando as hipóteses de seu caráter de acontecimento por outros gestos de leitura e a diversidade e recorrência de sua menção, referência, retomada desde diferentes posições, materialidades significantes, condições de produção e circulação. O fechamento das 73 análises acerca do Encontro elege como corpus um clipe da Marcha de Mulheres Negras de 2015, que faz ecoar o acontecimento do encontro como fundador das movimentações políticas que sustentam a Marcha bem como atualiza a memória diaspórica negra. O encerramento deste segundo capítulo se faz com uma análise do documentário Ori, de Raquel Gerber (1989). Esta análise objetiva aprofundar o que se entende por memória diaspórica, a que diria da trajetória coletiva caracterizada pela ideia de conservação e continuidade, bem como de rupturas violentas que impulsionam questões identitárias, em funcionamentos que reescrevem as narrativas de dispersão dos africanos e africanas escravizados e de suas consequências no presente em uma reconstrução do que o sistema escravista tentou apagar. A análise se desenvolve em relação a uma das perguntas fundamentais nos movimentos de identidade: quem sou eu?, cuja resposta projeta um coletivo de mulheres negras com expressão no campo político, objeto do terceiro capítulo do ponto de vista da enunciação e dos processos de subjetivação. Certamente, os debates no campo da história sobre a perspectiva etnocêntrica da escrita historiográfica, as relações com a memória e a oralidade, a presença das mulheres e iniciativas de transformações internas ao campo como a história das mulheres 41, o gênero como categoria útil para a história, como defende Joan Scott (1995)42, entre outros esforços teóricos e políticos de feministas na academia, mereceriam um aprofundamento que não será dado neste capítulo. No entanto, registro estes empreendimentos e ainda sua insuficiência ao tratar do tema da história das mulheres negras na diáspora quando se argumenta que o silenciamento das mulheres na história diz respeito à sua menor aparição no espaço público, que seria o objeto maior da narrativa, repetindo a noção de que as mulheres estão prioritariamente no privado, o que não se aplica à totalidade das mulheres, a exemplo das mulheres negras diaspóricas que trabalharam na condição de escravizadas, depois como 41 A introdução de Michelle Perrot ao seu livro As mulheres ou os silêncios da história (2005) traça um pouco a trajetória do projeto da história das mulheres e seus desafios. Reproduzo a seguir uma passagem em que ela dimensiona o projeto da História das Mulheres, em uma postura reflexiva semelhante a que analisei nas introduções dos trabalhos acadêmicos sobre os movimentos de mulheres negras e os feminismos negros (o faço com o intuito de mostrar como a reflexividade atravessa diversas escritas feministas): “É raro poder conciliar um projeto que seja simultaneamente individual, intelectual e político (no sentido mais forte e cidadão do termo). A história das mulheres o permitia. De minha parte, foi assim que a vivi e particularmente durante este último trabalho. Tive o sentimento de encontrar as mulheres que por muito tempo eu evitara. Encontrar sua amizade, sua alegria, suas angústias, sua procura de um sentido; o sentimento de melhor compreender aquelas linhagens de mulheres que me haviam precedido, entre as quais minha mãe, e com isso, encontrar a mim mesma...” (PERROT, 2005: 25). 42 Cf. Gênero: uma categoria útil para a análise histórica, de Scott (1995). Mais tarde, Scott ([1999] 2008: 29) questiona se a categoria gênero manteria o efeito estranho, desestabilizador e provocador que teve nos anos 1980 quando pareceria a melhor maneira de cumprir o objetivo das historiadoras das mulheres dos anos 1970, que era arrastar as mulheres das margens ao centro da história e mesmo reescrever a história. 74 libertas e trabalhadoras livres no Brasil e que tiveram participação política e comunitária também no espaço público 43. 2.1 Origens do contemporâneo Movimento de Mulheres Negras ou feminismo negro, “nossos passos vêm de longe” Inspirada em reflexões da historiadora feminista Joana Pedro (2006), no texto Narrativas Fundadoras do Feminismo: poderes e conflitos (1970-1978), sobre a forma como foram definidas as datas do ressurgimento do feminismo no Brasil, na década de 1970, tomo as narrativas de origem ou narrativas fundadoras (termos utilizados pela autora) do movimento de mulheres negras ou feminismo negro como produzidas em meio a disputas, poderes e conflitos entre os coletivos de mulheres negras e outros sujeitos político-sociais, captando o processo de sua constituição como organização dos sentidos resultante de um trabalho ideológico. No texto mencionado, a autora discute narrativas de feministas brasileiras prevalentes até os dias de hoje que apresentam as datas do ressurgimento do feminismo de segunda onda no país. A historiadora mostra em suas análises as disputas de poder entre diversos grupos feministas e outras personagens envolvidas na luta contra a ditadura militar em narrativas que “expõem as múltiplas perspectivas em que viveram aquele momento, e as diferentes leituras que fazem nos dias atuais” (PEDRO, 2006: 251). O ano de 1975 aparece recorrentemente na memória de muitas mulheres como fundante da identificação feminista, apesar de haver mulheres que anteriormente a esta data discutiam o feminismo e, entre elas, algumas que não reconheceram como feministas as atuações de vários dos grupos assim autodenominados, tornando a própria denominação feminista objeto de disputas. Ressalto que em seu trabalho as mulheres negras não aparecem como sujeitas de dizer destas narrativas (as narradoras são mulheres sem determinação étnico-racial e a questão racial não é pautada); e isso acontece muito embora 1975 também figure em algumas de suas narrativas como um marco de origem do movimento de mulheres negras ou do feminismo negro, ou como um momento que marca as divisões do feminismo brasileiro pela diferenciação de demandas 43 Cláudia Pons Cardoso escreve sobre o silêncio da historiografia brasileira a respeito da história das mulheres nos anos 1990, quando realizou seu mestrado. Segundo ela, “em relação às mulheres negras, o silêncio era quase total. Estas, quando apareciam, exclusivamente como escravas, eram coadjuvantes da história das mulheres brancas.” (CARDOSO, 2012: 17-18). Diz ainda que, para estas mulheres, bem como, de modo geral, para as mulheres pertencentes aos segmentos populares, desde o período escravista até o presente, “a intimidade da vida e do trabalho doméstico ou a separação entre os espaços público e privado nunca tiveram a mesma significação que para as mulheres brancas das elites” (Idem: 76). 75 políticas entre mulheres brancas e negras. A autora conclui seu artigo afirmando que “das utopias e projetos revolucionários do século XX, o que lhes sobreviveu foi o projeto feminista” e que este seria o motivo para se questionar hoje “os marcos fundadores dessa revolução no Brasil. Afinal, uma nova correlação de forças está a exigir uma nova narrativa fundadora” (Idem: 269). Para meu trabalho, mais importante do que mapear posições ideológicas, como já afirmei no capítulo anterior, é descrever-interpretar as contradições constitutivas do sujeito mulheres negras em uma encruzilhada de memórias e diferentes gestos de fundação. Reforço também que não tenho interesse em defender uma data como aquela do nascimento dos movimentos contemporâneos de mulheres negras e, sim, analisar os efeitos de sentido das disputas em torno da invenção destas origens. Nesta perspectiva, é significativo que algumas organizações de mulheres negras e algumas intelectuais-ativistas tenham se tornado portavozes das mulheres negras44, em um processo que não pode dizer de todas as mulheres negras a não ser por um efeito ideológico da representação política na enunciação, conforme argumentarei no próximo capítulo. Antes de seguir para as narrativas de origem dos movimentos de mulheres negras, retomo um panorama histórico por mim escrito do movimento feminista brasileiro. Tal qual o caso da primeira análise incômoda da matéria Essa Nêga Falou! do jornal Nós Mulheres (1976), realizada ainda no mestrado, este panorama, após minhas primeiras leituras dos feminismos negros, foi um dos textos ao qual retornei por constatar sua inscrição em uma posição sujeito da qual pretendia me deslocar. Reproduzo logo abaixo o panorama por mim elaborado para comentá-lo em seguida, tornando minha escrita acadêmica parte do corpus da tese para discutir os efeitos da branquitude na construção dos relatos históricos sobre o feminismo brasileiro, e também os deslocamentos e tomadas de posição, resultantes dos processos de identificação com os feminismos negros e que podem vir expressos no funcionamento da reflexividade metaenunciativa. No Brasil, iniciado entre as camadas médias nos anos 1970, o feminismo expandiu-se através de uma articulação política peculiar dos grupos feministas com os grupos populares que tinham participação expressiva de mulheres, tornando as demandas femininas das organizações de base, como as creches, próprias do movimento geral das mulheres brasileiras (SARTI, 2004). Segundo Soares (1998: 39), “as feministas fazem do conhecimento e da eliminação das hierarquias sexuais seu objetivo central, e a partir daí se articulam com as outras vertentes do movimento de mulheres”. Desta forma, 44 Como já apontado, as organizações de mulheres negras, em especial as ONGs, são aquelas que aparecem como principais porta-vozes (e personagens) da história do movimento de mulheres negras e, por vezes, outras organizações e iniciativas têm menor visibilidade. 76 “as feministas brasileiras, sem abdicar das especificidades de suas bandeiras de luta enquanto mulheres, souberam traçar políticas de alianças com outras forças oposicionistas no processo de luta por 'liberdades democráticas'” (MORAES, 1997). As bandeiras mais relacionadas à sexualidade, por sua vez, eram menos expressivas, por conta das alianças do feminismo com a esquerda e com o setor progressista da Igreja Católica (PINTO, 2003). Na década de 1980, com a abertura democrática, o movimento questionou o discurso da década anterior, se multiplicou por meio de novos grupos feministas nas grandes cidades brasileiras e assumiu novas bandeiras como os direitos reprodutivos, o combate à violência contra a mulher e a sexualidade (RAGO, 2003). Também nos anos 1980, o sujeito político “mulheres” diversificou-se em novas identidades, como as mulheres negras e as mulheres lésbicas, que se organizavam desde a década anterior (ALVAREZ, 1994). Por sua vez, a década de 1990 é marcada pelas novas modalidades de organização e identidades feministas: as mulheres pobres através das associações de moradores, as operárias por seus sindicatos e centrais sindicais, as trabalhadoras rurais por meio de suas várias organizações começaram a autoidentificar-se com o feminismo, o chamado feminismo popular. Crescem as organizações feministas de mulheres negras, ampliando a agenda e os parâmetros da luta feminista (COSTA, 2005: 19). De acordo com Soares (1998: 46), “os anos 1990 demonstram que o feminismo multiplicou os espaços e lugares em que atua e, consequentemente, onde circula o discurso feminista. As fronteiras entre o movimento de mulheres e o feminista têm sido sistematicamente ofuscadas, com um número crescente de mulheres pobres, trabalhadoras, negras, lésbicas, sindicalistas, ativistas católicas progressistas e de outros setores do movimento de mulheres incorporando elementos centrais do ideário e do imaginário feministas, reelaborados de acordo com suas posições, preferências ideológicas e identidades particulares. Assim, muitos feminismos são construídos. As mulheres dos movimentos pertencem a grupos e classes sociais muito diversos, a raças e etnias diferentes, com trajetórias políticas distintas”. Com este panorama, propunha-me a destacar, apoiando-me em Lady Almeida (2010: 03), que “o termo feminismo negro é questionado por boa parte das ativistas do movimento de mulheres negras, por considerarem o termo feminismo datado, e ligado às demandas das mulheres brancas e burguesas”. Nessa perspectiva, perguntava-me sobre como o discurso do sujeito mulheres negras significava as fronteiras entre o movimento de mulheres e o movimento feminista. O questionamento sobre os limites entre movimento de mulheres e feminismo no interior dos discursos de mulheres negras ativistas/militantes é objeto de reflexão de outros trabalhos acadêmicos, a exemplo dos de Almeida (2010) e de Cardoso (2012). Esta última dedica um subtópico de um dos capítulos de sua tese (Entre feminismo e movimento de mulheres), indagando sobre quem define essas fronteiras e sobre as diferentes perspectivas quanto à autodenominação feminista nas concepções que orientam as práticas das ativistas negras. Portanto, a autodenominação feminista por parte das intelectuais-ativistas, militantes, 77 organizações – bem como a definição do movimento de mulheres negras como feminista ou das práticas de mulheres negras que não se significavam como feministas em sua atuação e que passam a ser assim definidas posteriormente – é uma prática que resulta e conforma diferentes tomadas de posição de mulheres negras. Sobre as vozes de mulheres negras organizadas, Núbia Moreira (2007: 08) diz que, diante das entrevistas que realizou em seu mestrado e dos contatos com as entrevistadas, “ficou evidente que, independente dessas militantes se auto-afirmarem como feministas ou mulheres militantes do movimento negro, tornou-se uníssona a tensão acerca da representação política para e nas organizações de mulheres negras”. No entanto, o modo como eu formulava o questionamento sobre as fronteiras entre o movimento de mulheres e o movimento feminista já estava inscrito em uma posição que apreendia a narrativa histórica do feminismo (no singular), sua fundação no que se denominou segunda onda feminista nos anos 1970, em um relato que, ao propor a pluralização do sujeito mulheres do feminismo e do movimento em feminismos nos anos 1980, excluía as mulheres não-brancas de suas iniciativas anteriores a este momento. Valendo-me da expressão de Matilde Ribeiro (1995: 446), as mulheres negras apareciam na minha narrativa como sujeitos implícitos. E por que não narrar a história das organizações de mulheres negras a partir do movimento negro ou de suas próprias iniciativas, relacionadas ou não com os feminismos? 45 A escolha em narrar o surgimento das organizações a partir de uma história do feminismo inscreve-as como dele tributárias, silenciando outras memórias e práticas que também são fundantes de sua identidade política. Esta forma de narrar o feminismo partindo de sua unidade para sua multiplicação reafirma, por efeito, sua origem pela ação de mulheres brancas das classes médias ou burguesas. Ainda desconsidera outras iniciativas organizativas de mulheres não-brancas e das classes populares que eram e se diziam feministas, ou que, posteriormente, reivindicaram a denominação feminista para significar suas práticas na história fora desta narrativa hegemônica – a exemplo da reivindicação da tradição do pensamento feminista negro pelas feministas afro-estadunidenses46, como comentei no 45 A dissertação Feminismos em debate: reflexões sobre a organização do movimento de mulheres negras em Salvador (1978 – 1997), de Silvana Santos Bispo (2011), por exemplo, mostra a organização das mulheres no Movimento Negro Unificado (MNU) em Salvador, uma organização mista na qual foram protagonistas e desde onde pautaram debates sobre as mulheres negras. 46 Cf. As mulheres negras na construção de uma nova utopia, de Angela Davis (2011), sobre a contribuição das mulheres pobres e não escolarizadas das classes trabalhadoras ao feminismo negro, em especial das mulheres cantoras de blues nos anos 20 nos EUA. Afirma a autora: “Quando se chamam hoje os nomes das nossas ancestrais feministas, percebemos que elas foram educadas, escolarizadas. [...] Mas o que aconteceu com as 78 primeiro capítulo, feita também por feministas negras brasileiras 47. Este pequeno preâmbulo que retoma minha trajetória como pesquisadora feminista é ilustrativo das narrativas acerca do feminismo brasileiro. Poderia aqui elencar outras autoras que fazem o mesmo e de posições de maior autoridade, credibilidade e legitimidade, como é o caso de Céli Regina Pinto, em Uma história do feminismo no Brasil (2003), um livro de grande circulação. O que procuro destaca, retomando a proposição da historiadora Joana Pedro (2006) sobre as narrativas de origem do feminismo brasileiro, são os sentidos silenciados nestas narrativas que se fazem presentes nas narrativas de origem do movimento de mulheres negras. É da luta para deixar de ser sujeito implícito nestes discursos que emergem estas narrativas de origem; em outras palavras, as narrativas do feminismo hegemônico que invisibilizam as mulheres negras são objeto de disputa desde certa posição sujeito de mulheres negras e são interiorizadas em seu discurso pela denúncia de invisiblização e silenciamento, mas também pela afirmação e ampliação de outras narrativas que trazem à tona memórias que tem rotas distintas dos sentidos em relação ao feminismo hegemônico, retomadas e ecoadas entre mulheres negras africanas e na diáspora. Parece-me oportuno retomar um dos enunciados da matéria Essa Nêga Falou! (1976), apresentada na introdução da tese: “Era a primeira vez, quem sabe, que a mulher negra tinha oportunidade, no Brasil, de manifestar sua revolta publicamente.” Apesar da modalização pela expressão “quem sabe”, representa-se o acontecimento da enunciação como novidade e ruptura – a manifestação da revolta da mulher negra no espaço público. Neste caso, o enunciado se inscreve em uma posição sujeito feminista que representa a mulher negra como outra, referindo-a em terceira pessoa. O publicamente da afirmação trataria do campo do feminismo até então branco? E então poderia se parafrasear o publicamente por no campo do feminismo, ou ainda direcionado a mulheres brancas feministas? O expressar publicamente poderia significar ser ouvidas pelas mulheres brancas feministas falando enquanto mulheres negras? Rascunho estas perguntas para ilustrar minha argumentação de que a temporalidade representada no acontecimento do enunciado diz das posições sujeito no/do discurso. Seriam as relações de força entre sentidos a proporcionar a inscrição ou não de um mulheres que não escreviam? O que aconteceu com a mulher pobre da classe trabalhadora? Existe alguma forma de recuperar a contribuição dessa mulher para o feminismo negro? Por isso, passei a olhar e analisar o blues, observei as mulheres cantoras de blues e me dei conta de que elas encontraram maneiras de conversar sobre o feminismo, falando, por exemplo, de sexualidade”. 47 Cf. História das mulheres negras e pensamento feminista negro: algumas reflexões, de Elisabeth Cardoso (2008), sobre a trajetória de Laudelina de Campos Mello e de suas companheiras de luta como reveladoras de experiências concretas de resistência de mulheres negras pobres ao processo de exclusão social. 79 acontecimento na memória e sua inclusão ou desaparição como se nunca tivesse se passado na narrativa de um grupo ou movimento social. E também a transformação das condições de produção a possibilitar novas narrativas de origem de um sujeito ou ampliação da circulação de seu discurso em uma mudança de correlação de forças, como assinala Joana Pedro (2006) sobre as narrativas de origem do feminismo brasileiro. A organização crescente e articulada politicamente de mulheres não-brancas no campo do feminismo, com seu questionamento conjunto de um discurso homogeneizador da história do feminismo, transforma as condições de produção das narrativas de origem do movimento de mulheres negras brasileiras inscrevendo-as em uma correlação de forças em que há um processo de multiplicação e fragmentação dos discursos feministas pelo questionamento dos sentidos do sujeito feminista que se colocavam como resistência à opressão sexista dominante. Nesta perspectiva, o fortalecimento do feminismo negro intervém na correlação de forças entre sentidos e faz com que outras posições no feminismo e na historiografia narrem diferentemente suas histórias de luta48. Passo, então, para algumas importantes intelectuais/ativistas do movimento de mulheres negras. Segundo Lélia Gonzalez (1984), foi no movimento negro que as mulheres negras encontraram o espaço necessário para as discussões e o desenvolvimento de uma consciência política a respeito do racismo, de suas práticas e articulações com a exploração de classe. No entanto, as mulheres negras, além da discriminação racial, viviam o machismo dos homens brancos e dos homens negros, o que era tema de reuniões entre elas antes mesmo da formação do que se conheceu depois como organizações de mulheres negras. De acordo com Lélia Gonzalez, as mulheres não deixavam de reconhecer o “machismo negro”, articulado a “mecanismos compensatórios que são efeito direto da opressão racial”. Para a autora, é a experiência de discriminação racial que diferencia o “feminismo negro” do “feminismo ocidental”, por construir “a solidariedade, fundada numa experiência histórica comum” (GONZALEZ, 1984: 03). Os anos 1980 foram de formação de muitos coletivos autônomos e institucionais em diversos estados brasileiros, os quais impulsionaram o movimento de mulheres negras. 48 Eu coaduno com a análise do fortalecimento e difusão do feminismo negro no Brasil, como o faz Inês Castilho, feminista histórica branca e editora do jornal Mulherio, um dos veículos de comunicação para o qual colaborou Lélia Gonzalez, no artigo A surpreendente ascensão do feminismo negro, publicado 27 de julho de 2015 no site de mídia livre Outras Palavras. Castilho (2015) afirma: “São evidentes os sinais de maturidade e crescimento da onda do feminismo negro. Nas ruas já se fazem notar os cabelos crespos ou trançados e turbantes coloridos, na contracultura do alisamento que marcou os penteados femininos, das brancas inclusive, nos últimos tempos. Décadas de luta do movimento negro, somadas às políticas públicas inclusivas nas universidades, à multiplicação de saraus pela periferia e de blogueiras negras na rede já exibem seus frutos” (Disponível em: http://outraspalavras.net/blog/2015/07/27/a-supreendente-ascensao-do-feminismo-negro/). 80 Nesta perspectiva, Sueli Carneiro (1993) postula que o Centenário da Abolição, em 1988, constituiu-se como um momento político propício para a repercussão da mobilização das mulheres negras no Brasil, o que foi o resultado da ação política de diversos grupos. De acordo com a autora, o movimento de mulheres negras nasce marcado pela contradição que advém da necessidade de demarcar uma identidade política em relação a estes dois movimentos sociais [o movimento feminista e o movimento negro] de cujas temáticas e propostas gerais também partilha e que, em última instância, determinam sua existência e ambiguidades (CARNEIRO, 1993: 14). Na metáfora do nascimento, poderia se construir a seguinte paráfrase: o movimento de mulheres negras nasce do movimento negro e do movimento feminista. Matilde Ribeiro (1995: 446-447), por sua vez, afirma que “o movimento contemporâneo de mulheres negras emergiu no bojo da luta feminista e antirracista da década de 70”, no contexto da agitação social de esquerda contra a ditadura militar, sendo tensa sua relação com os movimentos feminista e negro, por serem as mulheres negras consideradas por ambos sujeitos implícitos (como mencionei um pouco antes). Está posta a formação contemporânea de grupos de mulheres negras em sua relação política com outros movimentos sociais. Sueli Carneiro lista alguns coletivos surgidos nos anos 1980 e início dos 1990, além de mencionar a atuação de mulheres negras nos diversos Conselhos da Mulher e Conselhos do Negro, as mulheres negras atuantes nos Movimentos de Favelas do Rio de Janeiro, nas Comissões do Negro do Partido dos Trabalhadores (PT) e nos grupos de mulheres do Movimento Negro Unificado (MNU) (CARNEIRO, 1993: 13). Ressalto que estes coletivos (ao menos os quais pude tomar conhecimento por meio de minha pesquisa) não usaram no nome a denominação feminista. Há a presença de designação “mulheres negras”, a escolha de nomes de mulheres africanas e afro-brasileiras com destaque na história da luta por libertação e direitos sociais e políticos ou de nomes relacionados a uma identidade negra feminina49. 49 Recorri ao artigo O movimento de mulheres negras brasileiras: desafios e perspectivas de Edna Roland (2000), que busca traçar uma breve história do movimento de mulheres negras brasileiras desde meados dos anos 1980 até 2000. Este texto lista diversos “grupos de mulheres negras autônomos ou no interior de organizações negras”. Há entre eles coletivos que utilizam a denominação “mulheres negras”, nomes relacionados a uma “identidade negra feminina”, nomes de organizações de mulheres negras africanas ou de personalidades africanas e afro-brasileiras. Constam na lista: Coletivo de Mulheres Negras de São Paulo (SP), 1983; Comissão de Mulheres Negras de Campinas (SP), 1989; Coletivo de Mulheres Negras da Baixada Santista / Casa de Cultura da Mulher Negra, Santos (SP), 1986; Grupo de Mulheres Negras do Espírito Santo, 1987; Coletivo de Mulheres Negras de Belo Horizonte, 1987; Coletivo de Mulheres Negras de Salvador. Nzinga - Coletivo de Mulheres Negras do Rio de Janeiro (RJ), 1983; Geledés, Instituto da Mulher Negra, São Paulo, 1988; Grupo de Mulheres Negras Mãe Andresa, Maranhão (MA), 1986; Comissão de Mulheres Negras Laudelina de Campos Melo, Campinas (SP), 1992; Criola – Organização de Mulheres Negras, Rio de Janeiro (RJ), 1992; Associação 81 Dez anos mais tarde, Sueli Carneiro (2003: 119) explica a utilização da expressão “enegrecendo o feminismo”, que designaria a trajetória das mulheres negras no interior do movimento feminista brasileiro para assinalar “a identidade branca e ocidental da formulação clássica feminista, de um lado; e, de outro, revelar a insuficiência teórica e prática política para integrar as diferentes expressões do feminino construídas em sociedades multirraciais e pluriculturais”. Ainda segundo a filósofa, estas iniciativas possibilitaram uma agenda específica que combateu as desigualdades de gênero e intragênero e se inseriu na luta antirracista no Brasil: “Afirmamos e visibilizamos uma perspectiva feminista negra que emerge da condição específica do ser mulher, negra e, em geral, pobre” (Idem). Cláudia Pons Cardoso (2012: 184) afirma que “existe certo consenso entre pesquisadoras(es), ativistas e público em geral de que a organização das mulheres negras na contemporaneidade ocorreu pela exclusão dos movimentos negro e feminista”. A historiadora discorda deste consenso e apresenta diferentes narrativas de origem do movimento contemporâneo de mulheres negras brasileiras a partir das entrevistas feitas com suas griôs e de outras fontes, defendendo que “tal perspectiva peca por desconsiderar a própria dinâmica dos movimentos de mulheres negras”. Para a autora, deve se levar em conta as conquistas de espaços políticos pelas mulheres negras nos grupos mistos do movimento negro para pautar o sexismo e entender que o surgimento de organizações do movimento de mulheres negras não é uma reação ao movimento feminista branco. Para ela, “o movimento [de mulheres negras] nasce em resposta ao racismo e à discriminação racial, ao sexismo, às desigualdades sociais e à discriminação sexual” (Idem: 194). Ou seja, como resposta às múltiplas opressões que recaem sobre as mulheres negras e não à falta de espaço político em outros movimentos. Como procurei mostrar, as leituras sobre as relações entre movimento feminista e movimento negro na emergência do movimento de mulheres negras brasileiras são diversas, apesar de haver uma dominante e que, como diz Claúdia Cardoso (2012), aparece como consensual – aquela que entende que o movimento emerge da falta de espaço político nos movimentos feminista e negro. Há uma pluralidade de posições no interior do movimento das mulheres negras que mostram seu caráter heterogêneo. E há tantas outras vozes de mulheres negras que não se significam diretamente em relação aos feminismos que dizem de mulheres negras em movimento, em processos de intervenção política, e que não se inserem ou tem menor inserção nas narrativas dos/sobre os movimentos de mulheres negras. As críticas de mulheres negras aos movimentos feministas e negros têm nuances e não produziram a de Mulheres Negras Oborin Dudu, Espírito Santo, 1995; Fala Preta! Organização de Mulheres Negras, São Paulo, 1997. 82 unidade entre os coletivos de mulheres negras, conforme demonstram as polêmicas entre as militantes desde o I Encontro Nacional de Mulheres Negras (CARNEIRO, 1993: 15) – visto em muitas narrativas de origem como um marco do movimento de mulheres negras brasileiras por seu significado de organização e mobilização 50. Adjetivar como contemporâneo – dizendo do movimento contemporâneo de mulheres negras – produz quais efeitos de sentido? O contemporâneo se significa em relação a um movimento de mulheres negras anterior, com outras estratégias, táticas, formas organizativas? O que instaura o contemporâneo, ou em quais sentidos e acontecimentos ele se assenta? Um marco mencionado é a abertura política no processo de redemocratização pósditadura militar no país. Não haveria, por efeito, um apagamento das experiências organizativas de mulheres negras anteriores aos anos 1970 e 1980? Ou, ainda, o apagamento de outras experiências organizativas exclusivas de mulheres negras ou com participação expressiva e/ou majoritária de mulheres negras concomitantes ao que é denominado neste discurso como movimento de mulheres negras, pela afirmação de que as organizações de mulheres negras estariam necessariamente constituídas por sua relação com o movimento feminista e negro? Como analista de discurso, o que faço é reproduzir desde outro lugar (e por isso com outros efeitos de sentido) perguntas feitas desde posições sujeito mulheres negras sobre se há ou não apagamento de algumas experiências organizativas em detrimento de outras em certas narrativas sobre a organização de mulheres negras no Brasil. Sendo, para a posição teórica em que se inscreve este trabalho, o não-dizer constitutivo do dizer, vejo estas polêmicas como parte das disputas pelas formas de representação das mulheres negras, seja 50 No artigo “A importância da organização da mulher negra no processo de transformação social”, Lélia Gonzalez (1988: 02) aproxima suas críticas ao I Encontro Nacional de Mulheres Negras daquelas do III Encontro Feminista Latino-Americano e do Caribe: “O I Encontro Nacional de Mulheres Negras (Valença, RJ, 2 a 4/12/1988) demonstrou - em diversos aspectos e mais do que nunca - o quanto é fundamental nossa organização, sobretudo quando se trata de um projeto de transformação social. Afinal, o que vimos ali foi uma espécie de reprodução em mulato-preto (porque negro é outra história) do que se deu em Bertioga (1985): a afirmação de um feminismo erroneamente chamado de radical, quando, na verdade, sua marca é a do sectarismo. Fechado em si mesmo pela identificação imaginária que o fundamenta, seus critérios são os da reprodução especular (e haja espelho nesta estória), caracterizados pelo sexismo extremado. Como lhe falta o impulso necessário para atingir o simbólico, ela não consegue apreender o real ou, como se diz, cair na real. Daí a grande distância que o separa da realidade vivida por milhões de mulheres negras deste país e a sua grande proximidade do modelo ariano de explicação (cujo elemento de sustentação é justamente o racismo)". A autora segue argumentando contra a postura da Comissão Executiva do Encontro que prejudicaria o debate político entre suas participantes e esquece a opressão racial e a exploração de classe. Em sua crítica, diz do isolamento do feminismo negro do movimento de mulheres negras nos Estados Unidos e da resistência da maioria das mulheres negras ao feminismo. Neste texto, ainda trata da história de resistência e lutas cujas protagonistas são mulheres negras "graças a uma dinâmica de uma memória cultural ancestral (que nada tem a ver com o eurocentrismo desse tipo de feminismo)" (Idem: 02). Retomarei sua formulação sobre a memória ancestral no ponto seguinte do texto sobre memória diaspórica negra. (Artigo disponível em: http://www.projetomemoria.art.br/leliaGonzalez/obras-em-pretugues/artigos.jsp). 83 pelos múltiplos sentidos de mulheres negras ou por sua representação no campo político. Contribui fortemente para a reflexão o artigo “Nossos passos vêm de longe! Movimentos de mulheres negras e estratégias políticas contra o sexismo e o racismo”, de Jurema Werneck (2010). A autora menciona exemplos de formas políticas e organizativas e de modelos de força feminina precedentes à invasão escravista e colonial, como as ialodês, divindades iorubanas e bantas, sociedades secretas femininas, que “reafirmavam e reafirmam a política como um atributo feminino desde a época anterior ao encontro com o Ocidente”. De forma incisiva, contesta os que afirmam que a ação política das mulheres negras foi novidade inaugurada pela “invasão europeia e instauração da hegemonia cristã” e indaga sobre a influência destas ações que precederam o feminismo em sua criação, contrapondo-se e invertendo a ideia dominante de que o feminismo teria influenciado o movimento de mulheres negras (WERNECK, 2010: 14). Lélia Gonzalez, há quase três décadas, construía sua argumentação no mesmo sentido, afirmando que nas sociedades africanas, em sua maioria, desde a antiguidade até a chegada dos islames e dos europeus judaico-cristãos, o lugar da mulher não era de subordinação, o da discriminação. Do Egito antigo aos reinos dos ashanti ou dos yorubá, as mulheres desempenharam papéis sociais tão importantes quanto os homens (GONZALEZ, 1988: 02 apud CARDOSO, 2012: 123). Jurema Werneck associa esta tradição organizativa às ações de resistência à escravidão no Brasil das quais participaram as mulheres negras, como a organização quilombola e, com o fim da escravidão e do regime colonial, a luta para a garantia de participação de negras e negras na sociedade brasileira com condições de equidade. Como exemplo, a autora menciona a fundação da primeira associação de trabalhadoras domésticas na década de 1930 por Laudelina de Campos Melo, também integrante da Frente Negra Brasileira (WERNECK, 2010: 15) e que nomeia uma das organizações de mulheres negras criada em 1992, em Campinas-SP. No interior do movimento de mulheres negras, na produção teórica de sua intelectualidade na práxis política, vislumbra-se este efeito contraditório produzido a partir de diferentes posições no discurso: ao mesmo tempo em que se constrói de forma dominante a narrativa de origem do movimento de mulheres negras como emergente na tensão entre movimento feminista e movimento negro, ou exclusivamente ou mais fortemente com o feminismo, e a conformação nessa tensão de um novo sujeito político – as mulheres negras –, afirma-se uma historicidade das mulheres negras como coletivo em luta que antecede o acontecimento da aparição organizada do que se autodenominou movimento de mulheres 84 negras e das organizações de mulheres negras. A narrativa de origem do movimento de mulheres negras é acompanhada de outra narrativa fundadora, a da experiência histórica comum da escravidão e da resistência a ela, assim como a da ação política das mulheres africanas anterior ao colonialismo e ao escravismo. Trata-se de uma narrativa fundadora que recebe ressalvas no presente em sua diferenciação de um discurso dominante que representa os negros brasileiros no lugar de escravos: o escravismo é parte da história de subordinação das mulheres negras pelos dominantes, sem ser suficiente para explicar sua subordinação atual, pois esta se deve a práticas e mecanismos atuais de discriminação. Esta história de dominação enunciada desde posições sujeito de mulheres negras é acompanhada pela luta de resistência a ela. A reivindicação de uma anterioridade da luta, de sua historicidade, da resistência de uma memória que circula de geração em geração de mulheres negras é uma regularidade neste discurso e faz parte da luta pela visibilização das mulheres negras na história e é em grande medida compartilhada com o movimento negro de forma mais ampla, com destaque para a participação feminina, ou, mais do que isso, na construção de uma espécie de linhagem de mulheres negras guerreiras. Lady Almeida (2010: 166) afirma que a constituição e consolidação das organizações de mulheres negras “não apaga as outras organizações, movimentos, outras lutas e histórias antecessoras, porém sugere uma maior visibilidade das mulheres negras como sujeitos políticos, traçando uma inscrição de si mesmas”. A polêmica em si acerca do apagamento é um dos modos de materialização da luta entre sentidos inscritos em diferentes memórias e que se encontram nas narrativas de origem do movimento de mulheres negras, das organizações de mulheres negras, do feminismo negro, das trajetórias de luta de mulheres negras. Volto a pluralizar as formas de nomear práticas políticas empreendidas por mulheres negras para novamente destacar que estas denominações são resultantes de tomadas de posição pelas vozes-mulheres negras. 2.2 Discursos fundadores Eni Orlandi (1993:07), no prefácio ao livro Discurso Fundador – a formação do país e a construção da identidade nacional, um livro do qual é organizadora, afirma que, são fundadores os “discursos que funcionam como referência básica no imaginário constitutivo desse país”. Para além do país, se poderia pensar como se dá a instauração da discursividade 85 que configura um processo de identificação para uma cultura, uma raça uma nacionalidade, retomando Foucault51, o discurso fundador como aquele que instala as condições de formação de outros, filiando-se à própria possibilidade. A Análise de Discurso se perguntaria pelos modos como estes sentidos se estabilizam como referência de uma memória, como significam o sem-sentido em novos sentidos, pressupondo que os sentidos não têm origem e sua organização é resultante do trabalho ideológico, apesar de ser possível traçar uma história de sua constituição. Para a autora, o foco recairia na dimensão de acontecimento do discurso, aquela que permite melhor pensar a relação do significar com o sem-sentido. Aponta, então, no movimento de construção do significar, “um movimento regular que vai do sem-sentido em direção ao sentido”: a. Seu apagamento por uma memória já estabelecida dos sentidos (o já-dito); b. a resistência ao apagamento e a consequente produção de outros sentidos; e c. o retorno do “recalque” (ou seja, do que foi excluído pelo apagamento) sobre o mesmo, deslocando-o (ORLANDI, 1993: 11). Com o pressuposto de que não há rituais sem falhas, considera-se a possibilidade de rupturas dos trajetos dos sentidos e instauração de uma nova ordem de sentidos, que se vale do ritual instalado para o novo. Pergunto-me a partir da autora, sobre quais sentidos dispersos se organizaram em uma nova ordem dos sentidos nas narrativas das trajetórias das mulheres negras na diáspora (para além da narrativa de origem de um movimento social contemporâneo), considerando que os enunciados proferidos desde diferentes lugares de enunciação têm possibilidades distintas de circulação. Como diz Mariani (1993: 41), “embora seja lícito atribuir à memória o espaço da reprodução homogênea de determinados sentidos produzidos por formações discursivas hegemônicas em dado período, parece ser lícito, também, considerar que ocorre um “silenciamento” temporário dos sentidos excluídos”. Haveria outros trajetos de sentidos – das memórias dominadas, subterrâneas – ditos por sujeitos silenciados no discurso dominante, sujeitos que disseram na história apesar de não serem por muitos ouvidos, em outras palavras, que estiveram alijados de instituições de legitimação, validação social e ampla circulação dos discursos. São estes sentidos excluídos que depois retornam sobre o dominante em um processo de ruptura que cria uma filiação de memória em relação de conflito com o processo de produção dominante de sentidos. Um processo que instaura um lugar de enunciação que irrompe no fio da história, reorganizando gestos de interpretação. Como 51 é característico do Cf. O que é um autor?, de Michel Foucault (1969). discurso fundador, sentidos anteriores são 86 desautorizados para a instalação desta nova “filiação”, que pelo seu surgir cria uma memória e projeta uma futuridade de sentidos, “cria tradição de sentidos projetando-o para frente e para trás, trazendo o novo para o efeito do permanente” (ORLANDI, 1993: 13-14). A reivindicação de uma memória para legitimar-se é também a reivindicação de um lugar de dizer sobre seu passado, sua história – logo a desautorização de sentidos é também a deslegitimação ou ao menos o questionamento da legitimidade de lugares de enunciação sobre esse passado e essa história em processos cujas testemunhas recorrentes são as figuras enunciativas de porta-vozes em seu papel de representação política. No caso do lugar de enunciação de mulheres negras desde posições antirracistas, tal questionamento é direcionado à historiografia oficial ou dominante, às interpretações da brasilidade e da construção da nação brasileira, aos movimentos negros, ao feminismo branco ou ocidental e mesmo às mulheres negras inscritas em outras posições sujeito. Portanto, a instauração desse discurso fundador se dá pela afirmação de uma participação histórica apagada e invisibilizada, se dá por práticas que reivindicam uma memória de resistência, sendo que o acontecimento constitui um sujeito que já existia, um sujeito com história, um sujeito que luta para dizer essa história, pois afirmando quem é – se subjetiva – no presente e aponta projetos de futuro. Como já dito, no caso das mulheres negras em questão nessa tese, o processo de constituição do sujeito relaciona-se ao processo de constituição de um lugar de enunciação de mulheres negras no campo feminista ou em diálogo com questões consideradas feministas – os feminismos negros ou movimentos de mulheres negras – produzem a multiplicação de narrativas dos feminismos (não é possível, desde essas posições, dizer de um feminismo ou narrar sua história singular de mulheres sem especificar as articulações entre classe, gênero e raça que as constituem diferentemente). 2.3 De Palmares às escolas de samba: tamos aí! Para Palmares veio negro (...) E negro roubado a esmo do cativeiro para a liberdade, do senhor para si mesmo (Oliveira Silveira). A invisibilidade está na raiz da perda da identidade. Então eu conto a minha experiência de não ver Zumbi, que para mim era o herói (Beatriz Nascimento). Passo agora à apresentação do artigo presente no livro Discurso Fundador que 87 contribui para meu trabalho por sua temática e proposta interpretativa: A boa nova da memória anunciada: o discurso fundador da afirmação do negro no Brasil, de Pedro de Souza (1993). O autor inicia sua reflexão com uma polêmica na historiografia brasileira sobre a escravidão acerca da atitude dos negros escravizados. Os historiadores, sociólogos, antropólogos e economistas se dividem em polos antagônicos, os que descrevem os escravos como instrumentos passivos e os que os entendem como agentes ativos contra a escravidão em ações de rebeldia. Nessa luta entre/pelos sentidos, o discurso de reação tem como estratégia “transformar em mito a passividade do negro e estabelecer a resistência e o ativismo dos escravos como a verdade histórica” (SOUZA, 1993: 59, grifos do autor). Neste discurso, estão em questão os modos de estabelecimento do verdadeiro sobre o saber histórico em dois campos precisos, a historiografia sobre a escravidão negra no Brasil em uma posição a favor do discurso da história de resistência e as práticas sociais (e discursivas) dos ativismos dos negros brasileiros em torno de sua afirmação. O autor busca captar o “momento em que é possível estabelecer as regras de formação de outros discursos sobre o tema de Palmares e o movimento negro no campo da história”. Aqui sublinho que não há divisão estanque entre estes campos, pois como vimos em relação às posições sujeito de mulheres negras, é forte a produção acadêmica engajada e a figura da(o) intelectual-militante nos estudos negros como um movimento de crítica e ocupação de um espaço de produção de verdades, que confere credibilidade aos discursos, em embate com dizeres sobre os negros que invisibilizam a resistência e com as vozes que contestam o trabalho acadêmico explicitamente engajado politicamente. O episódio de Palmares seria o “instrumento mais mobilizado com vistas à elaboração de uma subjetividade para os indivíduos da raça negra” (Idem: 59) e o que se buscaria seria o alçamento de Zumbi e Palmares ao efeito-verdade ainda não inscrito na história oficial brasileira 52, negando a folclorização de sua memória (dado que a narrativa sobre o quilombo dos Palmares circula sob a forma de lenda nos compêndios de literatura folclórica): “a legitimidade histórica desta memória [de Palmares] é a condição de possibilidade para a fundação e sustentação do discurso de afirmação do negro no Brasil” 52 O artigo se refere a um momento histórico de reivindicação da data de 20 de novembro como Dia Nacional da Consciência Negra. São ilustrativas as palavras de Beatriz Nascimento (1985: 124) sobre o processo de proposição do 20 de novembro como Dia Nacional da Consciência Negra: “Com a publicação de artigo no Jornal do Brasil em 1974, o grupo Palmares de Rio Grande do Sul, do qual participava entre outros o poeta Oliveira Silveira, sugeria que a data de 20 de novembro, lembrando o assassinato de Zumbi e a queda do Quilombo dos Palmares passasse a ser comemorada como data nacional contrapondo-se ao 13 de maio. Argumentava que a lembrança de um acontecimento em todos os sentidos dignificante da capacidade de resistência dos antepassados teria uma identificação mais positiva do que a Abolição da escravatura, até então vista como uma dádiva de cima para baixo, do sistema escravagista e de S. Alteza Imperial.” 88 (Idem: 60). Na narrativa de Palmares como fato histórico, estaria a localização geográfica deste quilombo e a comprovação do período histórico de sua existência bem como de seus personagens. As reflexões do autor são pautadas na análise que faz do Manifesto do Dia Nacional da Consciência Negra do Movimento Negro Unificado (MNU), de 1978, considerado um acontecimento discursivo no qual “Zumbi e Palmares podem ser focalizados como termos indiciais da dêixis fundadora da afirmação do negro como sujeito” (Idem: 60), valendo-se do conceito de dêixis fundadora proposto por Maingueneau (1987). O efeito fundador presente no Manifesto se assentaria na anterioridade do processo discursivo que subjaz aos enunciados desta emissão, sendo que Zumbi e Palmares são vestígios de outra enunciação captada no interdiscurso do Manifesto; um acontecimento é discursivamente prefigurado no passado e figurado no presente em que a identidade negra está em questão. O confronto de enunciados no domínio da historiografia – como as problemáticas em torno das datas 13 de maio e 20 de novembro – que constitui o campo de discurso de singularização da consciência negra “é deslocada do campo discursivo do saber histórico para o das lutas contra o racismo e inaugura neste uma discursividade centrada no problema da afirmação do negro enquanto sujeito, e não mais apenas no efeito de saber” (Idem: 67), “um campo de subjetividade negra, ou seja, um modo de o negro ser referido e referir-se a si” (Idem: 68). O texto de Pedro de Souza (1993) suscita uma série de questões em relação ao corpus de minha pesquisa. Quando o autor trata do “discurso de afirmação do negro no Brasil”, negro é singular e masculino; não se faz o recorte de gênero, não se abordam as diferentes formas de subjetivação, apesar de o autor circunscrever sua reflexão no campo do discurso militante de afirmação da identidade negra. Palmares e Zumbi constituiriam também o discurso fundador do movimento de mulheres negras brasileiras, englobando todas as posições sujeito mulheres negras nele inscritos? Constituiriam outras posições sujeito mulheres negras externas aos denominados movimentos de mulheres negras? À narrativa de Palmares se anexariam outras – a das mulheres de Palmares, por exemplo? Quais histórias não se contam quando se narra Palmares? E a memória do vivido individual do cotidiano como fica em relação a esta narrativa heroica? Formulo estes questionamentos atrelando-os à hipótese de que o discurso de afirmação de uma determinada identidade de mulheres negras no Brasil é resultante de múltiplas fundações discursivas. Em outras palavras, defendo sua constituição em uma 89 encruzilhada de memórias que representa sua fundação recorrentemente em relação a um passado ao mesmo tempo histórico e mitológico, em camadas de memória entrecruzadas ou mesmo de regimes de temporalidade diversos, do tempo sucessivo da história e do tempo cíclico dos mitos. Ressalvo, com Pêcheux que “memória deve ser entendida aqui não no sentido diretamente psicologista da ‘memória individual’, mas nos sentidos entrecruzados da memória mítica, da memória social inscrita em práticas, e da memória construída do historiador” (PÊCHEUX, 1983: 50, grifos meus). Com o objetivo de articular a memória mítica, a memória construída pelo historiador e aquela construída pelos sujeitos que reivindicam uma memória no campo político, retomo Beatriz Nascimento (1986) sobre os sentidos de Zumbi e do Quilombo de Palmares53. A rememoração de Zumbi como herói emerge como reação aos que foram privados de seus símbolos durante a ditadura militar brasileira, como tática afastadora de estereótipos de um povo escravizado pela tradição e pela história, na busca de uma autoimagem positiva, atraindo outras codificações, diria, aproximando a narrativa histórica da resistência negra no Brasil a outras memórias. O discurso do campo da história comparece e, deste modo, legitima a narrativa, não apaga os sentidos mitológicos ou lendários de Zumbi como herói civilizador e Palmares como a terra prometida. Retomo a autora: O mito da terra prometida – o Quilombo de Palmares – a edificação do herói Zumbi, civilizador de uma cultura negra, atraem outras codificações que não as já estereotipadas pela tradição e pela história. À sombra deste mito recriado circulam outras manifestações ocultas até então, tais como as religiões afro-brasileiras, conduzindo à compreensão, na linha do tempo, da vinculação de nossos ancestrais com nossa história de vida. Consequentemente, a extrema importância assumida pela comprovação da existência terrena, histórica, daquele escolhido como herói civilizador da cultura negra brasileira, dado que este herói poderia ser compartilhado dentre os aqui nascidos: negros, índios e brancos também. O mito surge, então, do real para o simbólico e o herói seria mormente um conciliador banido da própria história do Brasil, preencheria a lacuna daqueles que, vivos, em vinte anos (1964-1984) foram cassados em seus direitos individuais e privados de seus símbolos coletivos (NASCIMENTO, 1986: 126). 53 Neste artigo, Daquilo que se chama cultura (1986: 126), publicado em uma revista de psicanálise, Beatriz Nascimento dialoga com o ensaio de Freud Moisés e o Monoteísmo, propondo que “se não houver culpa ligada a um passado de escravos, há um complexo interpretativo onde a identificação total com o fraco, o vencido, o inumano, é insuficiente para, ao nível da luta do dia-a-dia, contrapor-se às formas de discriminação”. Mais adiante neste capítulo, retomarei uma passagem da autora na narração do filme Ori em que diz da “experiência de não ver Zumbi”. No texto referido, a autora não escreve especificamente sobre as mulheres (a exemplo de outros como A mulher negra e o amor, 1990, ou Kilombo e memória comunitária: um estudo de caso, 1982). Em concordância com Alex Ratts (2007), em livro sobre Beatriz Nascimento que ao seu final compila textos da autora aos quais recorro, diria que esta é uma mulher negra intelectual ativista reverenciada por seu caráter precursor que certamente deveria ser mais lida a despeito das dificuldades de seu reconhecimento por setores hegemônicos da academia brasileira. 90 A narrativa de Palmares aparece em vozes-mulheres negras como atestado da verdade histórica da insubmissão de negros escravizados – homens e mulheres; como modelo civilizatório de sociedade livre onde teria existido a verdadeira democracia racial, um sistema alternativo ao vigente; como símbolo de resistência política, ideológica, cultural, étnico-racial, relembrado como desejo de uma utopia herdeira no período colonial e imperial no Brasil, sendo o quilombo instituição de origem africana na história pré-diáspora54; como veremos nas análises de corpus, aparece também como lugar de protagonismo de mulheres líderes e heroínas ícones das mulheres negras como lutadoras aguerridas, a exemplo de Aqualtune, Acotirene, Luiza Mahin, Dandara. O subtítulo do capítulo, De Palmares às escolas de samba, tamos aí, corresponde ao título do texto que analiso a seguir, publicado no Jornal Mulherio na edição de jan/fev de 1982. Este é um dos artigos de opinião da intelectual/ativista Lélia Gonzalez no importante tabloide feminista brasileiro dos anos 198055. Na apresentação da história do jornal contida no site, encontramo-nos com o caráter de “exemplo de um trabalho precursor” da publicação, “testemunha de um tempo e de um lugar, reflexo de um momento histórico”, segundo Inês Castilho 56, editora do jornal na época, comentando sua disponibilização na rede. Ou seja, Lélia Gonzalez escreve num periódico feminista que teve papel de difusão de posições do movimento feminista brasileiro – especialmente em relação às publicações feministas brasileiras dos anos 1970, pode-se considerar a imprensa feminista como lugar de constituição do discurso feminista, para além de um meio de circulação57. Como pressuposto na AD, a partir da noção de condições de produção, dizer desde um periódico feminista que não assume uma posição racial na construção de sua identidade, como é o caso de Mulherio, é diferente de dizer desde uma publicação de um coletivo de mulheres 54 Cf. O conceito de quilombo e a resistência cultural negra, de Beatriz Nascimento (1985). O jornal Mulherio está disponível em todas as suas edições para consulta no portal da Fundação Carlos Chagas (http://www.fcc.org.br/conteudosespeciais/mulherio/), que editou o jornal entre os anos 1981 e 1988. 56 Como mencionei em nota anterior, autora do texto A surpreendente ascensão do feminismo negro (2015). Recorto, neste texto, a menção que a autora faz a um tributo prestado a Lélia Gonzalez em São Paulo: “O lançamento, em 15 de julho, do Projeto Memória Lélia Gonzalez, veio regar as raízes dessa frutificação exuberante. Lélia, que escrevia em “pretuguês”, recriando a língua para falar da história do seu povo, “enegreceu o movimento feminista e feminizou a raça”, como afirma a filósofa Sueli Carneiro, herdeira intelectual de Lélia e autora de sua fotobiografia. Colaboradora do jornal feminista Mulherio (1981-1988) desde as primeiras edições, deixou grande legado nos estudos sobre raça e gênero do país, além de originar, com sua obra, diversos outros trabalhos. [...] A noite era de encontro e eu estava lá, cabelos quase brancos. De volta. Quando finalmente cheguei à mesa em que Sueli Carneiro autografava os livros, um abraço emocionado e a dedicatória lembrando “Mulherio, uma das casas preferidas de Lélia e memória de nossa nascente, possível e desafiadora sororidade.” Oxalá! A democracia feminista será preta, pobre e periférica – ou não será.” 57 Cf. A constituição do discurso feminista no Brasil e na Argentina, de Cestari (2011) – minha dissertação de mestrado. 55 91 negras, um artigo acadêmico escrito como pesquisadora negra, ou uma fala política na Marcha de 20 de Novembro. Constrói-se a imagem de interlocutor mulher negra que diz desde o campo do feminismo em uma projeção de várias imagens de interlocutores na cena discursiva, como as mulheres negras, os homens negros, as mulheres não-negras, as feministas brancas, os favoráveis à democracia. Lélia Gonzalez, por exemplo, em outros espaços, diz da valoração negativa que as mulheres brancas no interior do movimento feminista faziam das falas e críticas das mulheres negras58, consideradas como emocionais e revanchistas, o que não faz em seus artigos em Mulherio, onde predomina a denúncia do racismo e sexismo estruturantes da sociedade brasileira e das desigualdades entre as mulheres brancas e negras, junto com a reivindicação do reconhecimento da participação negra na história do país. A construção de um lugar de enunciação de mulheres negras marcado pelo antirracismo, antissexismo e pela afirmação de uma identidade comum de mulher negra – que destaca características racializadas (e) de gênero – se faz na relação com as diferentes condições de produção do discurso.59 Fiz a opção de reproduzir o texto na íntegra (com reprodução fac-símile60 e transcrição do texto) porque compreendo que sua análise de conjunto propicia uma reflexão sobre a luta pela memória de um grupo social específico em sua filiação a múltiplas temporalidades e discursos, sabendo que o texto não é unidade de análise da AD. Destaco funcionamentos discursivos que são regularidades nesta luta, como o denunciar do silenciamento (pela historiografia oficial, pela escola, etc.); o nomear heróis, personalidades, divindades, acontecimentos; o lembrar de feitos históricos e práticas cotidianas invisibilizadas. Na análise, deterei minha atenção à narrativa de Palmares e do herói Zumbi como parte do discurso fundador para uma determinada subjetividade negra, bem como o destaque dado pelos movimentos de mulheres negras às lideranças femininas, às mães dos terreiros de samba e das religiões de matrizes africanas – e ainda às suas divindades femininas. Por 58 Cf. Cultura, etnicidade e trabalho: efeitos linguísticos e políticos da exploração da mulher, de Lélia Gonzalez (1979), referido e discutido no primeiro capítulo desta tese. 59 Vou tratar mais detidamente as condições de produção no próximo capítulo, quando aprofundarei a noção de lugar de enunciação na relação com as projeções imaginarias na interlocução discursiva. No entanto, abordo as imagens dos interlocutores em jogo no texto para pensar em relação a quais sujeitos no/do discurso se formulam as narrativas históricas na luta por uma memória apagada e/ou folclorizada pela historiografia dominante e pelos discursos da identidade nacional 60 O fac-símile da matéria está disponível para consulta no site do Projeto Memória Lélia Gonzalez – o feminismo negro no palco da história, uma iniciativa da Fundação Banco do Brasil com parceria com a Rede de Desenvolvimento Humano, Redeh (Disponível em: http://www.projetomemoria.art.br/leliaGonzalez/obras-empretugues/artigos.jsp). 92 enquanto, já adianto que este efeito de continuidade histórica organiza uma narrativa da trajetória do grupo social dos negros e negras na história do Brasil, instituindo datas importantes de rememoração desta narrativa na atualização de sentidos que mobilizam a prática política no presente. Mas não se trata de uma narrativa de fatos lineares – ela também é composta de comemorações de divindades e símbolos significados como negros, que quando relacionadas às trajetórias das ialodês na diáspora atualizam uma memória mítica assentada em uma temporalidade cíclica, apesar de por vezes referir a acontecimentos históricos, a exemplo de civilizações africanas com localização e temporalidade especificadas no discurso. Figura 02 – Matéria De Palmares às escolas de samba, tamos aí! In: Jornal Mulherio, jan/fev. 1982. Final do ano e início do outro são ocasiões de comemoração de uma porção de coisas que mostram a contribuição que a gente tem dado pra história e pra cultura de nosso país. Por isso mesmo, acho bom lembrar certas datas importantes em que a negrada (especialmente o mulherio) está muito presente. Estamos cansados de saber que nem na escola, nem nos livros onde mandam a gente estudar não se fala da efetiva contribuição das classes populares, da mulher, do negro e do índio na nossa formação histórica e cultural. Na verdade o que se faz é folclorizar todos eles. E o que é que fica? A impressão que só os homens, os homens brancos, social e economicamente privilegiados, foram os únicos a construir esse 93 país. A essa mentira tripla dá-se o nome de sexismo, racismo e elitismo. E como ainda existe muita mulher que se sente inferiorizada diante do homem, muito negro diante do branco, muito pobre diante do rico, a gente tem mais é que tentar mostrar que a coisa não é bem assim, né? Para começar tem o 20 de novembro, o Dia Nacional da Consciência Negra, em homenagem a um dos maiores heróis brasileiros, o negro Zumbi de Palmares, assassinado neste mesmo dia em 1695 pelos representantes do escravismo. Seu “crime” foi ter liderado uma luta de vida ou morte por uma sociedade justa e igualitária, onde negros, índios, brancos e mestiços viviam do fruto de seu trabalho livre e eram respeitados em sua dignidade humana. Essa sociedade efetivamente democrática existiu em Palmares, que foi o primeiro Estado livre das Américas e um Estado criado por negros. Durante cem anos os palmarinos resistiram aos ataques das tropas enviadas pelas autoridades coloniais e pelos senhores de engenho escravistas, irritados e invejosos de sua prosperidade. As mulheres palmarinas também participaram nas lutas, ao lado de seus companheiros. E quando Palmares foi finalmente destruído, elas preferiram matar os próprios filhos, suicidando-se em seguida, para que não sofressem a indignidade e humilhação de serem escravos. Ao morrerem, tornaram-se vivas em nossa memória. (Por essa razão, temos hoje no Rio de Janeiro um grupo de mulheres negras cujo nome é Aqualtune, uma heroica Palmarina, mãe de Ganga Zumba, antecessor de Zumbi). De dia trabalho duro, de noite cai no samba Dezembro tem muito a ver com a mulher negra, enquanto perpetuadora dos valores afro-brasileiros; aqui as “mães” e as “tias” têm papéis fundamentais. Quem é que pode esquecer toda a importância de uma Tia Ciata, quando chega o 2 de dezembro, Dia Nacional do Samba? Ela é o símbolo da alegria, do bom humor, do espírito descontraído da negra que trabalha duro, é objeto das maiores desigualdades, das maiores injustiças, dos maiores sofrimentos, mas não deixa de ir no samba pra “sacudir o esqueleto” (mesmo que tenha que acordar cedo no dia seguinte pra enfrentar a “cozinha da madame”). Historicamente, a casa da Tia Ciata foi um núcleo irradiador do que veio a ser o samba carioca, os blocos e as escolas de samba. Isso sem contar sua atuação como Yalorixá. Isso nos remete para duas outras datas importantes: 4 e 8 de dezembro. A primeira, dia de Santa Bárbara, na verdade é muito mais festejada como o dia da Iansan, a rainha dos raios, dos ventos e das tempestades, a grande guerreira. A segunda, dia de Nossa Senhora da Conceição, também é o dia de Oxum, a grande mãe (protetora de todas as crianças, desde o nascimento até o momento em que andam e falam), a dona do ouro, símbolo da beleza e da feminilidade, senhora das águas doces. E, no Rio de Janeiro, dia 31 de dezembro é o dia em que cariocas e fluminenses se dirigem às praias pra levar suas flores a outra grande mãe: Iemanjá, rainha do mar, doadora de bênçãos e de sorte, mãe de vários orixás. Lembrar essas festas é não esquecer Ianassô, Mãe Aninha, Mãe Senhora, Mãe Menininha, Mãe Cantu, Mãe Estela, Mãe Bida e muitas outras que com sua sabedoria e espírito ecumênico, nunca perguntaram qual a religião, a classe social, o partido político ou origem étnica daqueles que, desesperados, buscavam um alento, uma esperança para seguirem vivendo. E sabemos o quanto os terreiros de candomblé, de umbanda, de batuque, de xangô etc. foram perseguidos pela polícia a mando de autoridades políticas e religiosas. Isto sem falar dos blocos e escolas de samba. De qualquer modo, as “mães” e as “tias” souberam segurar a barra de seus filhos e sobrinhos, fazendo de seus terreiros (religiosos ou de samba), verdadeiros centros de 94 resistência cultural. Ainda em dezembro chegando em meados de janeiro, existem as festas populares do ciclo natalino, em que a negadinha participa dando o tom de alegria pelo nascimento de Cristo. (Afinal Natal não é sexta-feira da Paixão, né?). E toma de festa de largo, folia de reis, pastoris e outras “milongas mais”. É por isso que dá pra entender por que o carnaval brasileiro assumiu o lugar da festa popular mais famosa do país. O tal do entrudo era um negócio meio sem graça, sem jogo de cintura, sem calor; só a partir do momento em que a negadinha começou a participar é que a coisa foi tomando colorido e acabou por se transformar na maior fonte da indústria turística desse país. Os afoxés, cordões, blocos, frevos, escolas de samba, esses baratos todos, que antes eram chamados de “coisas de negro”, e por isso mesmo reprimidos, hoje fazem parte de um “patrimônio cultural nacional” do qual, é claro, os beneficiários não são os “neguinhos”, mas as secretarias e as empresas de turismo. E foi por aí que pintou o lance de criarem uma nova profissão pra mulher negra (a de mulata), como já vimos no número anterior. De qualquer modo, mulata passista ou componente da ala das baianas, ela taí, mais firme do que nunca, trabalhando como sempre, segurando as pontas da família como sempre, e, como sempre, muito cheia de axé. Por isso, só temos uma coisa a dizer pra ela: tamos aí. (De Palmares às escolas de samba, tamos aí! In: Jornal Mulherio, a. 2, n. 5, São Paulo: Mulherio, jan/fev. 1982.) O artigo se organiza a partir de datas de comemoração em um calendário compartilhado pelos brasileiros, sendo estas datas expostas em sua sequência cronológica. Temos os dias 20 de Novembro, Dia Nacional da Consciência Negra; 2 de dezembro, Dia Nacional do Samba; 4 de Dezembro, Dia de Santa Bárbara ou/e Iansã; 8 de Dezembro, Dia de Nossa Senhora da Conceição e/ou Oxum. O texto também menciona o ciclo natalino de festas e o carnaval. Se tomadas as imagens em jogo na interlocução discursiva, conclui-se que a condição compartilhada entre os interlocutores que se mantém ao longo do texto é a de ser brasileira(o), apesar de outros coletivos se delimitarem pelo funcionamento do nós61 neste texto (negros, mulheres negras, coletivo que reúne negros, índios, mulheres, classes populares). Lembrar as datas é lembrar da contribuição dos negros e das mulheres negras para nossa formação histórica e cultural, referidos pela autora por negrada (especialmente o mulherio)62 em uma construção em que mulheres negras são significadas como parte do coletivo mais amplo de negros. Nas expressões estamos cansados de saber e em a gente tem mais é que tentar 61 O nós está presente desde o título e funciona de modo ambíguo. Os funcionamentos do nós político serão objeto do próximo capítulo. 62 Negrada, palavra que se reveste de sentidos negativos quando dita desde uma posição racista, mas que da posição que se coloca como na resistência às desigualdades raciais e ao racismo diz de um modo de tratamento usado no interior do que é significado como a “coletividade dos negros”. Haveria muito a dizer sobre a escrita de Lélia Gonzalez e sobre o pretuguês, sua instigante proposta teórica sobre o português falado no Brasil ter sido africanizado pela mãe preta no tempo da escravidão, acrescido a vocábulos de línguas indígenas, configurando essa língua característica e exclusiva do Brasil. Sobre o pretuguês, cf. Gonzalez (1984). 95 mostrar que a coisa não é bem assim, né?63 está um funcionamento de um nós / a gente didático – que faz a leitura política sobre os livros didáticos nas escolas brasileiras, por exemplo, e expõe aos excluídos do nós, a mulher, o negro e o pobre que ainda se sentem inferiorizados diante do homem, do branco, do rico – há aqui a construção de uma série de oposições que ora significam sujeitos diferentes ora compõem características de um mesmo sujeito. O que importa por agora na análise é a exclusão deste nós dos homens brancos, social e economicamente privilegiados, os maiores beneficiários da mentira tripla do sexismo, racismo e elitismo, em uma perspectiva teórico-política da tripla opressão. Está aí a denúncia da exclusão de sentidos, do seu apagamento, de seu silenciamento: o que não se fala, apesar de se falar sobre; as datas estão no calendário, no entanto não se lembra do que deve ser lembrado. O sentido apagado no discurso dominante racista é presença ausente nos já-ditos dos discursos aos quais se dirigem a denúncia e se faz visível desde a posição em que se inscreve o texto – uma voz mulher negra que se engaja na luta pelos sentidos divididos na luta ideológica – em um retorno do excluído que, do lugar da resistência ao apagamento, desloca os sentidos, produz outros sentidos. Explico-me sobre este ponto que é crucial no corpus: mulheres negras são faladas e estão nos ditos, são representadas e estão visíveis em imagens – no entanto sem que falem, sejam ouvidas, se representem, se reconheçam nas imagens e ditos. Folclore não é a contribuição efetiva para a formação da nação; quando se diz Santa Bárbara não se diz Iansã; Zumbi não cometeu um crime, foi um dos maiores heróis brasileiros e líder de uma luta por uma sociedade justa e igualitária; transformar afoxés, cordões, blocos, frevos, samba de coisas de negro para patrimônio cultural nacional não beneficiou os negros e sim os empresários do turismo e o Estado. Em outras palavras, o denunciar e o lembrar articulam apagamento-afirmação da contribuição dos negros e das mulheres negras em especial para a formação cultural e histórica da nação pela negação-deslocamento de sentidos dominantes dos objetos de luta ideológica que significam paradoxalmente as diferentes vozes-mulheres negras. 63 Adianto aqui a análise do nós político: A alternância na mesma sequência de nós com diferentes projeções referenciais contribui para a indeterminação do nós e para o efeito de palavra comum, um efeito ideológico de inclusão do interlocutor, um efeito performativo da tomada de palavra por mais de um. É o que ocorre no funcionamento didático acima analisado, em que há a passagem entre um nós exclusivo para um nós inclusivo, em uma espécie de gradação, de ampliação ou dilatação do nós. Retomo: Estamos cansados de saber que nem na escola, nem nos livros onde mandam a gente estudar não se fala da efetiva contribuição das classes populares, da mulher, do negro e do índio na nossa formação histórica e cultural. Se pensamos os funcionamentos de nós e a gente, haveria na sequência três recortes referenciais em gradação. O a gente do grupo que lê politicamente a mentira tripla a que se dá o nome de sexismo, racismo e elitismo poderia se ampliar, se difundir para todos que frequentam as escolas brasileiras, locais onde são excluídas classes populares, mulher, negro e índio da nossa formação histórica e cultural, o nossa se referindo a todos os brasileiros, com a dilatação do nós. 96 Apesar de o texto referir-se a datas que ocorrem na sequência de dois meses (novembro e dezembro), seu título produz um outro efeito em relação à temporalidade atrelado ao sujeito mulheres negras. Se interpretarmos que o nós do título institui como recorte referencial mulheres negras, na retomada de sua participação desde o quilombo de Palmares, nos séculos XVII e XVIII, até as escolas de samba, no século XX, momento da publicação, estaremos diante de um efeito de continuidade histórica e de permanência de um sujeito à temporalidade que atravessa ao menos quatro séculos, um passado presente que investe o sujeito de memórias entrecruzadas – permanência marcada no tempo verbal do presente do indicativo: tamos aí. Sendo que a história do Brasil é objeto de disputa, Palmares é início pelo efeito de sentido no título que estabelece dois marcos. Notemos que Palmares e escolas de samba não são “em si” indicadores temporais. São nomes que sustentados pela memória e pela construção de x a y permitem essa leitura. Apesar do centro da disputa ser a história do Brasil, ela extrapola os limites do nacional para a luta pelos sentidos da diáspora africana nas Américas: Palmares é o primeiro Estado livre das Américas. Neste texto, em acordo com o artigo de Souza (1993), o episódio de Palmares é mobilizado na elaboração de uma subjetividade para os negros em um movimento que busca um efeito de verdade histórica negado nos livros e na escola (no texto, datas e personagens são mencionados). Também é negada sua folclorização, que compreendo como uma memória que funciona pela repetição reiterada de imagens estereotipadas, fixas, de tipos, em um processo de controle do movimento de sentidos que significam o outro para significar o que foi dominado na constituição do nacional. Há ainda sua afirmação como símbolo de resistência, relembrado em um movimento de projeção de uma futuridade de sentidos em direção a uma sociedade democrática, justa e igualitária. Na comemoração do Dia Nacional da Consciência Negra, revive-se Palmares em uma utopia de futuro que reúne negros, brancos, índios e mestiços a viver de seu trabalho livre e em mútuo respeito. O mito da passividade dos escravizados é contestado pela lembrança dos heróis, mártires e seus sentidos de resistência, pelo tempo de duração da existência de Palmares, pelo enfrentamento de um inimigo poderoso – “as tropas enviadas pelas autoridades coloniais e pelos senhores de engenho escravistas, irritados e invejosos de sua prosperidade”. Detenho minha análise no parágrafo dedicado às mulheres palmarinas – o segundo parágrafo que trata de Palmares, dizendo das mulheres que “também participaram nas lutas, ao lado de seus companheiros”, mas que não aparecem no lugar de protagonistas (o 97 grande herói é Zumbi). Sua participação é afirmada e tem forte caráter de martírio, significado como condição para inscrição na memória, em um movimento do sacrifício para a lembrança – morrem para viver na nossa memória, sendo que o nossa já não diz das mulheres palmarinas (negras, índias, brancas, mestiças na utopia relembrada) e sim de mulheres negras. Esta memória, conforme afirmei anteriormente, pode se fazer presença no nome de grupos de mulheres negras, como é o caso da palmarina Aqualtune64 que nomeia uma organização carioca, revelando relações entre os processos de subjetivação envolvidos na criação de laço social e o ato de nomear as organizações políticas. Outro ponto que destaco de minha leitura deste texto é mulheres negras significadas por suas relações familiares (da posição de mães com seus filhos, de tias com seus sobrinhos em famílias ampliadas) e que não são construídas como guerreiras com os sentidos atualizados na memória que emerge no III Encontro Feminista Latino-americano e Caribenho. O poder das mulheres palmarinas é outro nesta formulação de Lélia Gonzalez. Aqualtune é mãe de Ganga Zumba, uma heroína mãe de outro herói. As palmarinas preferiram a morte à escravidão, ou seja, tiveram o poder de decidir sobre sua vida e morte e também a de seus filhos. No recorte que analiso, elas não morreram no combate armado, no choque com as tropas colonialistas e escravistas. Em seu sofrimento e conduta moral, escolheram “matar os próprios filhos, suicidando-se em seguida” a aceitar a humilhação da escravidão, em uma oposição entre os sentidos de Palmares de liberdade e dignidade contraposto aos sentidos de humilhação e indignidade da escravidão. Passo à próxima data comemorativa anunciada no texto para seguir na análise sobre as mulheres negras “mãe” e “tia” – quando têm “papel de perpetuadoras dos valores afro-brasileiros”. “Quem é que pode esquecer toda a importância de uma Tia Ciata, quando chega o 2 de dezembro, Dia Nacional do Samba?”. O subtítulo De dia trabalho duro, de noite cai no samba, como todo enunciado na perspectiva teórica que assumo, tem sentidos diferentes de acordo com a posição sujeito desde a qual é proferido. Ele poderia dizer da maior parte dos brasileiros, que apesar das dificuldades da sua vida de trabalhadores explorados depois do expediente vão festejar a vida: o povo brasileiro, alegre e trabalhador. O enunciado também dialoga com a memória dos lugares sociais ocupados pelas mulheres negras no discurso dominante sobre a brasilidade, como o samba e o carnaval. Estes sentidos 64 Uma conquista dos movimentos negros em luta pela legitimação de Palmares como verdade histórica, e a relação da narrativa de Zumbi com o lugar geográfico do quilombo, na Serra da Barriga, foi a fundação em 2007, do Parque Memorial Quilombo dos Palmares (AL). Neste memorial, um dos pontos de visita é o Espaço Aqualtune, possível de ser visitado no passeio virtual do site (cf. http://serradabarriga.palmares.gov.br/?p=17). 98 estão ali, mas se deslocam para dizer de um dos lugares sociais que ocupam as mulheres negras brasileiras, aquelas que são as mais prejudicadas em um sistema social articulador de desigualdades, mas que lideram seus terreiros religiosos ou culturais como centros de resistência, segurando a barra de seus filhos e sobrinhos. E no sentido em luta do que é coisa de negro e patrimônio cultural nacional, as tias e mães, a exemplo de Tia Ciata, estão na base dos valores afro-brasileiros e de manifestações culturais coletivas identificadas com a brasilidade, são personagens fundamentais na formulação e circulação da memória diaspórica65. Sigamos para o 4 e 8 de dezembro, datas ligadas ao religioso: respectivamente, dia de Santa Bárbara e de Nossa Senhora da Conceição ou dia de Iansã e de Oxum. Uma reflexão sobre sincretismo, resistência e as religiões afro-brasileiras poderia ser aqui feita – a referência aos orixás femininos, às yabás, apagada quando se nomeia o feriado com referências cristãs, no entanto presente nos festejos populares (“A primeira [data], dia de Santa Bárbara, na verdade é muito mais festejada como o dia da Iansan”). Mas o que ressalto são os sentidos de feminilidade relacionados a Iansã, Oxum e Iemanjá, sentidos que circulam quando estas yabás são festejadas, e que trazem fortemente o lugar da mãe protetora e doadora e também da guerreira. Nas caracterizações de Lélia Gonzalez, Iansã é a grande guerreira, Oxum uma grande mãe (protetora das crianças), Iemanjá (doadora de bênçãos e de sorte, festejada no dia 31 de dezembro). Retomarei de forma mais aprofundada no quarto capítulo os sentidos em torno das Yabás e os modelos de feminilidade acionados na formação das subjetividades desde diferentes vozes mulheres negras, discutindo o que se repete e o que desliza – paráfrase e polissemia – dos sentidos dominantes de feminilidade. Na progressão do texto, vamos das Yabás às mães de santo, as mulheres que têm papel central nos cultos a essas divindades: lembrar aqui é lutar contra o esquecimento, contra o apagamento. Seguem mais nomes próprios de mulheres negras mães de santo, grifo, que “com sua sabedoria e espírito ecumênico, nunca perguntaram qual a religião, a classe social, o partido político ou origem étnica daqueles que, desesperados, buscavam um alento, uma esperança para seguirem vivendo”. São novamente as mães acolhedoras e cuidadoras, as mães de todos? No que repetem, deslocam, negam, contrapõem-se à figura contestada da mãe 65 Cito o livro Mulheres Negras do Brasil,: “Sem exageros, é possível afirmar que os símbolos de africanidade que se espraiaram por nossa sociedade foram sustentados, em grande parte, pelas iniciativa e determinação dessas mulheres em seus espaços religiosos. Lundus, umbigadas, jongos, sambas, maracatus, afoxés, cirandas, congadas e outras expressões coletivas sempre tinham uma mãe de santo como ponto de referência e união” (SCHUMAHER, BRAZIL, 2013: 57). No último capítulo retomarei as formas de circulação e significação da memória diaspórica negra entre e sobre mulheres (e o feminino) nas religiões de matrizes africanas. 99 preta? Estas são perguntas que retornarão no quarto capítulo da tese, nas análises das lutas contra os estereótipos acerca de mulheres negras, no processo histórico de constituição que lhes dão sustentação e na afirmação de modelos de feminilidade negra constituídos em encruzilhadas de memórias, com preponderância da memória diaspórica negra das religiões de matrizes africanas. O lembrar destas mulheres mães por essa voz mulher negra, mulheres que abrem rodas, puxam passeatas, organizam outras vozes murmurantes em grito, em um jornal feminista como Mulherio, produz quais efeitos de sentido? Em textos teóricos e na luta política, lê-se sobre as diferenças em torno dos sentidos de mãe no feminismo hegemônico e nos movimentos de mulheres negras. O feminismo hegemônico defende o direito de a mulher decidir se quer ou não ter filhos, a possibilidade da mulher ser significada fora das relações familiares, como mãe, filha, esposa, compreendendo a família como lugar de opressão da mulher pela figura do patriarca. O feminismo negro, os movimentos de mulheres negras, vozes-mulheres negras retomam a negação da maternidade na escravidão para as mulheres escravizadas ontem e articulam à luta contra a violência do Estado e pelo direito à maternidade hoje, denunciando a violência obstétrica e o alto índice de mortes decorrentes de gravidez entre mulheres negras. A luta contra a esterilização forçada de mulheres negras na década de 1980 também articula a defesa da maternidade à luta contra o extermínio da população negra, hoje mais direcionada ao genocídio dos jovens negros pela violência policial e sua criminalização por propostas de redução da maioridade penal. 66 Certamente não são uníssonas as vozes-mulheres negras em luta sobre temas da maternidade e da sexualidade. É o caso de vozes de mulheres negras transgêneras e lésbicas, que elaboram pautas sobre a sexualidade menos visíveis mesmo entre mulheres negras 67. Para terminar a análise da matéria de Lélia Gonzalez, um retorno ao início. Remarco que o nós do título delimita diferentemente sua referência discursiva em relação ao nós da sequência só temos uma coisa a dizer pra ela: tamos aí. Ela retoma mulher negra, 66 Cf. A perspectiva do feminismo negro sobre violências históricas e simbólicas, de Djamila Ribeiro, publicado em 4 de agosto de 2015, no blog da Boitempo Editorial (Disponível em: http://blogdaboitempo.com.br/2015/08/04/a-perspectiva-do-feminismo-negro-sobre-violencias-historicas-esimbolicas/). 67 Cardoso (2012:16) diz que em sua experiência no movimento de mulheres negras, mais especificamente no Grupo de Mulheres Negras Maria Mulher, em Porto Alegre, “as sexualidades não eram debatidas, a não ser para acusar uma ou outra de práticas sexuais consideradas “mais liberais”. O heterossexismo, com certeza, rondava o grupo. Em sua tese, ao tratar do silêncio sobre a sexualidade e a identidade lésbica nas vozes das ativistas brasileiras, mostra que entre suas entrevistadas há diferentes perspectivas. Algumas compreendem que a repressão escravista sobre os corpos e desejos de mulheres negras deixou marcas que impedem o debate de assuntos como a sexualidade; outras entendem que a lesbofobia internalizada também entre mulheres negras ou as demandas impostas pelo racismo impõem temas e pautas em detrimento de outros (CARDOSO, 2012:230). 100 mulata passista ou componente da ala das baianas, e é representada no enunciado na posição de terceiro, ou seja, não está contida no nós que enuncia. Desse modo, mulher negra estaria excluído de nós? Ou essas duas figuras, mulata e baiana, estariam excluídas do nós mulheres negras, sendo a expressão tamos aí afirmação de solidariedade (algo que se aproximaria das expressões “é nóis!” ou “tamo junto”) com a mulher negra na posição de mulata passista ou baiana? Ou haveria um efeito de didatismo, de uma determinada posição no discurso que diz enquanto mulher negra, uma posição sujeito que se diz representada no enunciado como mulher negra, para outras que mulheres negras que (ainda) não estariam identificadas com essa posição? Estes questionamentos consideram que a figura da mulata desde posições sujeito feministas de mulheres negras é denunciada em seu papel de expressão da ideologia da mestiçagem e da democracia racial, que hipersexualiza e mercantiliza os corpos e subjetividades de mulheres negras. Essa denúncia faria da mulata exclusivamente objeto do discurso, e nunca sujeito do discurso ou sujeito político do movimento de mulheres negras? 68 Percorrerei este tema no quarto capítulo da tese. Adianto que há uma articulação fundamental entre a luta por uma memória que ressignifica a história do Brasil e a construção da identidade nacional e a luta contra estereótipos para significar as mulheres negras na posição de sujeito dos movimentos de mulheres negras e feminismos negros. 2.4 Mulheres Negras Brasileiras no III Encontro Feminista Latinoamericano e do Caribe Ao analisar diferentes materialidades significantes acerca do III Encontro Feminista Latinoamericano e do Caribe (1985), com foco nos sentidos da participação de mulheres negras brasileiras, trabalho, como pano de fundo, questões centrais e profícuas da Análise de Discurso. São elas as relações entre estrutura e acontecimento, regularidade e ruptura, descontinuidade exterior e continuidade coerente, enfim, a inscrição do acontecimento na memória, e a fundação das discursividades – os modos como as discursividades trabalham o acontecimento e como o acontecimento instaura discursividades. Tomo o acontecimento deste encontro político como objeto de disputas discursivas, e não 68 Novamente teço um comentário analítico a partir do funcionamento do nós: O nós tanto diz de mulheres negras como unidade, como grupo homogêneo, que compartilha características comuns, quanto, na relação de exterioridade que estabelece com ela na sequência analisada, revela uma heterogeneidade de mulheres negras, em diferentes representações do sujeito do discurso. No recorte analisado, quem enuncia não é nem a mulata passista, nem a componente da ala das baianas. 101 como da ordem do natural ou do factual, percebendo que a estabilização dos sentidos que produzem o efeito de sempre já lá por sua posição de dominância é efeito de uma determinada correlação de forças nas lutas entre e pelos sentidos passíveis de se transformarem na história. Analiso o encontro mencionado através dos dizeres, imagens, sons sobre ele produzidos em diferentes conjunturas, desde durante o encontro até 2015. O encontro foi objeto de materialidades discursivas complexas. Foram registros feitos em vídeos independentes em circulação na internet nos anos 2000, fotografias, balanços internos ao movimento por organizações de mulheres negras presentes em seus materiais de comunicação, relatos de militantes que circularam em publicações de organizações de mulheres negras do período, textos acadêmicos que problematizam-no em suas narrativas e reflexões sobre o movimento de mulheres negras, o feminismo negro, os feminismos latinoamericanos, os movimentos de mulheres e sua repercussão na grande mídia, em especial na imprensa. Ao interpretar este corpus, pergunto-me pelos sentidos atualizados na tomada de palavra das mulheres negras em 1985, ou apagados quando se toma 1985 como data de constituição do discurso feminista negro ou como marco inaugural do movimento de mulheres negras. Mais do que interpretar os sentidos do encontro ou tomar posição em relação ao seu caráter fundador, buscarei discutir a encruzilhada de memórias com diferentes trajetos no acontecimento, visto como possibilidade do vir-a-ser outro do sentido e dos sujeitos. E os modos como este acontecimento se inscreve na memória delineando sentidos de tomada da palavra inaugural por um grupo social específico ou de emergência de uma voz social. Discuto ainda a relação entre arquivo, circulação e memória, considerando as diferentes condições de produção e circulação dos sentidos nas materialidades discursivas complexas. Menciono, para ilustrar, a republicação de vídeos do encontro nos anos 2000 em um portal na internet dedicado à memória da cultura negra, vídeo este que tem trechos inseridos em uma campanha de divulgação da Marcha Nacional de Mulheres Negras de 2015, em imagens e sons que remetem às lutas de mulheres na África e na diáspora. Há ainda que se considerar a posição das mulheres que são protagonistas no encontro e que recentemente ocuparam espaços institucionais importantes no Brasil, a exemplo de Luiza Bairros – quem terá sua fala em plenária do encontro analisado, e que foi ministra da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (2010-2014). A circulação destas imagens no século XXI é também um modo de narrar a trajetória de uma geração de intelectuais/ativistas que hoje ocupam posições importantes na institucionalidade (seja no Estado, ONGs, redes) e mantém 102 diferentes relações com os movimentos sociais e populares. Podem-se supor outras narrativas por parte de mulheres que trilharam outros caminhos, que romperam com suas organizações, que divergiram dos rumos de institucionalização, etc. Organizo a análise da seguinte forma: inicio com os modos como o encontro é enunciado na produção de intelectuais-ativistas do movimento de mulheres negras ou do feminismo negro, sigo para a cobertura que o jornal O Estado de São Paulo conferiu ao evento, depois analiso o registro audiovisual da intervenção das mulheres negras brasileiras na plenária do encontro. Neste momento, aprofundo um pouco mais a análise, pensando nos efeitos da dêixis inaugural na enunciação do porta-voz, no efeito metafórico da visibilização de um sujeito coletivo que diz e tem sua voz ouvida em um campo político determinado, nas encruzilhadas de memória em uma relação específica entre literatura negra, palavra cantada e política. Finalizo com um vídeo publicitário de 2015 de chamado à Marcha Nacional de Mulheres Negras Contra o Racismo e pelo Bem Viver. Segundo Núbia Moreira (2007: 59), em reflexão sobre a tensão acerca da representação política para e nas organizações de mulheres negras, a relação das mulheres negras com o movimento feminista se estabelece a partir do III Encontro Feminista Latino-americano ocorrido em Bertioga em 1985, de onde emerge a organização atual de mulheres negras com expressão coletiva com o intuito de adquirir visibilidade política no campo feminista. A partir daí, surgem os primeiros Coletivos de Mulheres Negras, época em que aconteceram alguns Encontros Estaduais e Nacionais de Mulheres Negras. A autora é enfática sobre o caráter inaugural do movimento: “a partir do encontro ocorrido em Bertioga, se consolida entre as mulheres negras um discurso feminista uma vez que em décadas anteriores havia uma rejeição por parte de algumas mulheres negras em aceitar a identidade feminista” (MOREIRA, 2007: 60). Suas afirmações são citadas e adotadas por outras pesquisadoras e intelectuais-ativistas, a exemplo de Lady Almeida (2010: 85), em sua dissertação de mestrado e a filósofa feminista negra Djamila Ribeiro (2015), em texto publicado no portal Carta Capital, na sessão Escritório Feminista, intitulado Quem tem medo do feminismo negro?69, para marcar a circulação desta narrativa de origem em diferentes campos, o acadêmico e o das mídias digitais, em espaços feministas. Matilde Ribeiro (1995: 447) também considera a importância histórica do evento em seu texto Mulheres Negras Brasileiras: de Bertioga a Beijing, quando diz “da presença 69 Quem tem medo do feminismo negro?, publicado em 24/03/2015, por Djamila Ribeiro (Disponível em: http://www.cartacapital.com.br/blogs/escritorio-feminista/quem-tem-medo-do-feminismo-negro-1920.html). 103 mais organizada das mulheres negras no movimento feminista em nível nacional e continental a partir de 1985”, em um título que faz referência a dois momentos, o III Encontro Feminista Latino-americano e do Caribe e o processo de organização das mulheres brasileiras (1994/95) rumo a Beijing na IV Conferência Mundial sobre a Mulher 70. Em outro texto, Antigas personagens, novas cenas: mulheres negras e participação política (RIBEIRO,1998), uma referência para se pensar a trajetória organizativa de mulheres negras, outro marco importante para o movimento de mulheres negras apontado pela autora é o I Encontro Nacional de Mulheres Negras (ENMN), em Valença/RJ, em 1988, sendo que o encontro de 1985 não é mencionado. Matilde Ribeiro (1998: 200) afirma que “No Brasil, desde 1988 — ano de realização do 1º Encontro Nacional de Mulheres Negras (ENMN) —, estruturam-se grupos e entidades de mulheres negras e Fóruns Estaduais de Mulheres Negras em quase todo o país”. Optei por tratar da narrativa da trajetória de organização política das mulheres negras pela mesma autora para pensar os modos como se constroem seus marcos inaugurais, seja em tomadas de posição abertas por um evento fundador por parte das ativistas-militantes – como é o caso de Núbia Moreira – ou pela inclusão em um título e narrativa breve acompanhada de relato da trajetória individual de militância em primeira pessoa em um texto, como ocorre com De Bertioga a Beijing, que conta a trajetória de feministas negras em uma década. Os sentidos entram em embate tanto pelo engajamento explícito dos sujeitos nas lutas pelos sentidos, quanto por outros processos discursivos, pois é constitutiva do discurso a relação entre lembrar e esquecer, o dito e o não-dito, as contradições e relações de dominância entre as formações ideológicas e discursivas. O fato marcante que aparece nos textos acadêmicos, nas entrevistas e relatos de militantes do movimento deste período, e que também repercutiu nos meios de comunicação massivos, é a cena em que se estabelece uma tensão por conta da chegada de um ônibus de mulheres na maioria negras, de movimentos de bairro do Rio de Janeiro, que queriam participar do encontro e que não tinham dinheiro para pagar a taxa de inscrição. Matilde Ribeiro (1995: 449), em nota de rodapé, relata que se instalou uma longa discussão entre o grupo organizador (composto em sua maioria de brancas) e as mulheres negras (as que 70 Em uma estrutura semelhante ao título De Palmares às escolas de samba, tamos aí!, os nomes de cidade, em alusão às localidades que sediaram encontros, ambos marcantes para a intervenção de mulheres negras brasileiras no âmbito da militância feminista internacional e da ONU, respectivamente significam uma temporalidade e também uma projeção política do movimento, em uma paráfrase: “do Brasil [Bertioga] ao mundo [Beijng, China]”. Além do III EFLAC, a autora menciona o processo da III Conferência Mundial das Mulheres ocorrido em 1985 em Nairobi, no qual o Conselho Estadual da Condição Feminina (SP) produziu um diagnóstico sobre a situação da mulher no Brasil, com um estudo sobre a mulher negra de autoria de Sueli Carneiro e Thereza Santos. Tal estudo foi referência para os movimentos e para a academia nos anos seguintes. 104 estavam no ônibus e outras que se envolveram no problema). Interessa-me o modo como no texto da autora se passa do relato do encontro em terceira pessoa em uma construção de indeterminação do sujeito, em que o dizer do outro legitima a constatação enunciada (Constatou-se pelos depoimentos) a um comentário em primeira pessoa sobre sua trajetória militante (Quando eu cheguei no movimento de mulheres), significando o encontro como emblemático da polêmica entre mulheres negras e brancas nos feminismos latino-americano e brasileiro em particular: As mulheres negras de vários países debateram a temática “Racismo e Feminismo”. Constatou-se pelos depoimentos das participantes que a dificuldade de tratamento da realidade vivida pelas mulheres negras é um traço comum. Quando cheguei (no movimento de mulheres) me dei conta que meu problema de negra eu não poderia reivindicar. Tive que colocarme em outra instância onde se tomava em consideração outra especificidade. [...] Em particular entre as brasileiras (brancas e negras) não havia sido construída ainda uma prática de trabalho conjunto. Explicitaramse diversas questões: quem é ou não feminista, que cara tem ou deveria ter o movimento feminista brasileiro, as possibilidades de aliança e rumos do movimento feminista (Idem: 449). A reflexividade metaenunciativa que acompanha a produção textual feminista e que está presente nos trabalhos acadêmicos de mulheres negras sobre mulheres negras, como procurei mostrar no primeiro capítulo, está em funcionamento como tomada de posição da possibilidade de se significar como mulher negra. A constatação da dificuldade de tratamento da realidade vivida pelas mulheres negras (elas) é sobre as outras mulheres negras (um traço comum), mas é sobre a intelectual/ativista (eu), pois viveu o mesmo problema de negra. O eu é testemunha da dificuldade da prática de trabalho conjunta entre brancas e negras, que não havia sido construída ainda, legitimando por efeito do pré-construído, o III EFLAC como marco fundador, a despeito do eu não dizer de sua participação no encontro. Outro texto escrito por um coletivo de autoras71 trata da trajetória dos Encontros Feministas Latinoamericanos e Caribenhos como “espaços críticos transacionais nos quais militantes locais remodelam e renegociam identidades, discursos e práticas distintivas dos feminismos da região” (ALVAREZ et al., 2003: 542) ou, como afirmam mais adiante, 71 Reproduzo parte do parágrafo que apresenta as autoras no artigo (ainda há uma longa nota de rodapé tratando de suas trajetórias). Trata-se de mais um exemplo da reflexividade metaenunciativa na escrita acadêmica feminista em um movimento de situar o lugar de enunciação de quem escreve na primeira pessoa do plural: “Como participantes deste Encontro, assim como de Encontros anteriores, e como analistas dos feminismos latino-americanos, e tendo ligações várias e extensas com militantes e acadêmicas por toda a região, nós percebemos que a agenda do Encontro de Juan Dolio também nos oferecia uma oportunidade única para refletirmos coletivamente sobre as dinâmicas passadas e presentes e sobre os prospectos futuros dos feminismos no Sul das Américas. Nosso interesse em comum de trazer as experiências latino-americanas para o centro dos recentes debates a respeito da ‘internacionalização’ ou ‘globalização’ dos feminismos serviu como mais uma inspiração para este ensaio em conjunto” (ALVAREZ et al., 2003: 542). 105 procura destacar “a interação dinâmica e mutuamente constitutiva de identidades, discursos e práticas feministas nacionais e transnacionais” (Idem: 543). O artigo, publicado na Revista Estudos Feministas, tem como foco a oitava edição do evento, em 1999, momento dedicado a um balanço de três décadas das ações feministas na região. No entanto, examina seus principais debates desde 1981, quando se realizou o primeiro encontro, entre os quais aqueles “centrados nas diferenças, desigualdades e desequilíbrios de poder entre mulheres em geral e entre as feministas em particular” (Idem: 545). Segundo interpretação destas autoras, os encontros realizados na década de 1980 são marcados pela mudança de significado do feminismo na região, sendo que as discussões realizadas giraram em torno de dois pontos: as relações conflituosas entre os movimentos feministas e as esquerdas revolucionárias e “a relação entre os movimentos feministas e o mais amplo movimento de mulheres, que surgiu no contexto da crise econômica e de violação dos direitos humanos generalizados por toda América Latina e Caribe” (Idem: 545). Faço referência a estes debates e cito-os textualmente com o intuito de ressaltar a distinção entre feminismo e movimento de mulheres como polêmica constante que atravessa diferentes conjunturas na região, não se restringindo a mulheres negras brasileiras envolvidas nas lutas políticas. O feminismo é, portanto, disputado em seus sentidos por sujeitos inscritos neste campo de polêmica – seja para chamá-lo de excludente, para reivindicá-lo marcando diferenças internas a ele, para dizer que não representa todas as mulheres, para defender suas especificidades diante de lutas de mulheres vistas desde esta posição como não feministas ou como políticas (aquelas envolvidas em organizações de esquerda), entre outras posições possíveis. O ideal de autonomia e a questão das práticas de inclusão e exclusão do feminismo atravessavam estes debates, especialmente em relação à classe, raça, etnia e sexualidade, sendo que se estabelece como desafio desde certas posições feministas as lutas contra as maneiras com que os privilégios de classe, raça e de orientação sexual estruturam relações de poder entre as mulheres, inclusive internamente aos feminismos. Sobre este tema, leiamos as palavras das autoras: O dilema da inclusão tornou-se particularmente relevante em parte porque os movimentos feministas da segunda onda na América Latina e no Caribe sempre viram as mulheres pobres e da classe trabalhadora como um alvo ou clientela-chave. Os anos 1980, marcados por uma opressão estatal brutal e um empobrecimento crescente, novas oportunidades e desafios para a criação de um movimento feminista de bases mais amplas, à medida que milhares de mulheres começaram a se mobilizar politicamente – mesmo que não necessariamente como feministas – como resposta a crises econômicas, à repressão política e às violações dos direitos humanos. Em contraste à face 106 branca/mestiça e de classe média do feminismo nos seus primeiros tempos, o movimento de mulheres dos anos 1980 floresceu com uma composição predominante de mulheres pobres, trabalhadoras, e/ou negras e indígenas (ALVAREZ et al., 2003: 547-548). A partir destas reflexões, as autoras chegam à conclusão de que “a crise persistente do feminismo com relação à inclusão e exclusão literalmente se estacionou na porta desse Encontro” [o Terceiro Encontro Feminista Latinoamericano e Caribenho, em Bertioga], em referência ao momento “quando um grupo de mulheres de uma favela do Rio de Janeiro chegou em um ônibus, pedindo para poder participar, apesar de não ter condições de pagar a taxa de inscrição” (Idem: 548). Ou seja, o encontro é significado como acontecimento de uma crise de alcance continental, extrapolando o sentido fundador de um movimento social particular e restrito a um país, conectando o sentido de fundação do movimento de mulheres negras brasileiras a uma dinâmica internacional dos feminismos e lutas das mulheres. Muitas das participantes, especialmente as militantes do então emergente movimento de mulheres negras, insistiram que as questões de raça e classe não ocupavam um lugar central na agenda do Encontro e que as mulheres negras e pobres não tiveram uma participação significativa na elaboração dessa agenda. Sobre o episódio, as autoras informam que várias bolsas tinham sido asseguradas pelas organizadoras brasileiras para as mulheres pobres e que “muitas participantes suspeitaram que o incidente do ônibus foi orquestrado por partidos políticos em uma tentativa de desacreditar o feminismo” (2003: 548), argumento que repercutirá no jornal O Estado de São Paulo. Cláudia Pons Cardoso (2012: 189) discute o III Encontro Feminista Latinoamericano e Caribenho como inaugural dos movimentos de mulheres negras em sua tese. Como apresentei no tópico sobre as narrativas fundadoras dos movimentos, a autora contesta a posição de que as organizações de mulheres negras surgem como forma de reação ao movimento feminista branco racista e ao movimento negro sexista, o que retiraria o agenciamento das mulheres negras. Esta posição de um modo específico retorna em sua interpretação dos sentidos do Encontro, quando argumenta por uma dinâmica própria dos movimentos de mulheres negras. Ao retomar o encontro em sua tese, Cardoso (2012: 188) tem “por objetivo mostrar como se estruturou, no Brasil, o diálogo entre os sujeitos dos chamados movimento feminista e do movimento de mulheres negras”, em um capítulo em que se debruça sobre a formação contemporânea de grupos de mulheres negras e as relações políticas com outros segmentos dos movimentos sociais. Em sua argumentação, mostra como diferentes episódios 107 são tomados como marcos pelas ativistas a partir de seu local de militância e, por vezes, aparecem em narrativas sobre o movimento de mulheres negras brasileiras 72. Para a autora, “o episódio [III ECLAC] evidencia, indubitavelmente, a mobilização de um grupo de mulheres negras do Rio de Janeiro e, principalmente, as contradições e limites do feminismo brasileiro em um dado momento” (CARDOSO, 2012: 187). Para sua afirmação, apoia-se, entre outros, no relato de Jurema Batista, importante militante carioca do movimento, citada pela autora a partir de Contins (2005). Segundo Jurema Batista, diante da exclusão do grupo de mulheres negras do encontro, foi “resolvido que iríamos, a partir dali, fundar o movimento de mulheres negras” (apud CONTINS, 2005: 286). É no contraponto entre os relatos de Jurema Batista e o artigo de Alvarez et al. (2003) que Cardoso (2012) desenvolve seus argumentos. Leiamos o modo como a autora enuncia seu propósito: O episódio em si não está em análise, isto é, não tenho por objetivo buscar “a veracidade dos fatos”, até mesmo porque ambas as perspectivas aportam “verdades” a partir do ponto de vista de quem viveu a experiência. Portanto, no caso de Jurema Batista, me interessa a sua percepção sobre o episódio a partir da posição de mulher negra, moradora da periferia do Rio Janeiro. E no caso da avaliação escrita coletivamente, meu interesse reside na análise conjuntural realizada pelas autoras a partir do lugar de feministas, todas vinculadas a Universidades, algumas latinas, morando nos EUA (CARDOSO, 2012: 189). Esta passagem interessa-me para análise, pois nela se operacionaliza a relação entre ponto de vista, lugar-posição, sujeito histórico e experiência em uma autora filiada ao feminismo negro como práxis que atravessa seu trabalho acadêmico. A reflexão sobre esta relação é anunciada pela autora, que visa delimitar o lugar de enunciação do ponto de vista dos sujeitos envolvidos, nos anos 80, no binômio feminismo/movimento de mulheres, para então compreender o alcance dos acontecimentos para o conjunto do movimento de mulheres brasileiras. Jurema Batista e as autoras têm percepções diferentes – “e aportam ‘verdades’ a partir do ponto de vista de quem viveu a experiência” – porque dizem desde lugares diferentes. A primeira tem sua percepção “a partir da posição de mulher negra, moradora da periferia do Rio de Janeiro”, enquanto as últimas “a partir do lugar de feministas, vinculadas a Universidades, algumas latinas, morando nos EUA”. As duas posições apresentadas são “definidas por raça e classe” (Idem: 189). Cardoso (2012) percebe a priorização de acontecimentos da trajetória de Jurema 72 Joana Pedro (2005) faz apontamento similar em relação às narrativas do feminismo brasileiro. 108 Batista como ativista dos movimentos negros e de mulheres negras na narrativa que ela constrói do movimento de mulheres negras. Reproduzo abaixo um trecho do depoimento de Jurema Batista em Contins (2005), citado por Cardoso (2012: 189): Lotamos o ônibus e fomos para o encontro, em Bertioga. Ao chegarmos, começamos uma grande negociação com as mulheres. Negocia de lá, negocia de cá, entra, não entra. Foi para plenária, que votou que as mulheres não deviam ser admitidas, pois não pagaram para entrar. Uma coisa assim bem econômica mesmo. Não pagou, tinha um prazo de pagar, então quem não pagou não podia entrar. Começamos a ver que existia uma diferença, que existiam mulheres e mulheres. Elas eram de uma classe social diferente da nossa; elas, porque tinham poder econômico, definiam se podíamos participar ou não. Fizemos, então, um encontro paralelo, na praia, do lado de fora. [...] As mulheres da República Dominicana, da Nicarágua, de Cuba, todas iam fazer o encontro conosco: rachamos o encontro. Ficamos lá todos os dias. Fazíamos dinâmica, debate sobre questão do imperialismo, discussões sobre a mulher e a política, tudo que não rolava inclusive lá dentro, onde ficou uma coisa mais light, uma coisa de corpo. Foi uma tremenda experiência. Voltei de lá achando que não devia estar somando num movimento que, na verdade, não somava em nada para mulheres populares, apesar de reconhecer realmente que o movimento feminista foi a pedra de toque para mulherada deslanchar no mundo, para reivindicar seus espaços. Eu, porém, divergia de muitas coisas da concepção delas do modo de ver o mundo, até porque elas viam o mundo de outro ponto de vista, que era o de mulheres de classe média, cheias de informação. Vimos, que coincidentemente, a maioria das mulheres que estava no ônibus era negra (apud CONTINS, 2005: 285286). Pode-se observar o funcionamento da passagem do nós para o eu e em seguida do eu para o nós, um movimento que, em relação ao eu-mulher negra e ao nós-mulheres negras, parece ser contínuo e funda a possibilidade da discursividade nas posições sujeito em análise. A experiência individual de Jurema Batista – sua percepção do encontro e sua divergência da concepção delas (voltei de lá achando que; eu divergia) se significa na relação com o coletivo de mulheres negras e, aqui, de mulheres populares e mulheres da República Dominicana, da Nicarágua, de Cuba (seriam estas mulheres também das classes populares e negras? 73). O que aparece como maior diferença entre nós e elas é a classe social, que posiciona as mulheres de classe média, com poder econômico em condições de definir quem participaria do encontro e, por extensão, do feminismo, se tomamos o encontro como sinônimo de movimento feminista e elas como as feministas. A questão de raça se articula a de classe somente ao final do relato de Jurema Batista: “Vimos, que coincidentemente, a maioria das mulheres que estava no 73 Alvarez et al. (2003) apontam que o encontro seguinte, em San Bernardo (Argentina), teve presença marcante de redes formais intra-regionais do movimento como a Rede Latino-Americana e Caribenha de Mulheres Negras, demonstrando a capacidade de articulação política deste fórum e as identificações de mulheres negras para além das fronteiras nacionais. 109 ônibus era negra”. Uma coincidência não tematizada no relato, mas largamente discutida no interior dos movimentos de mulheres negras (um não-dito polissêmico, que pode ser lido na chave da ironia). Como afirma a ativista, “existiam mulheres e mulheres”, em uma expressão que denuncia os sentidos divididos de um objeto discursivo paradoxal. Cláudia Cardoso (2012: 191), na análise que faz do relato de Jurema Batista, destaca três questões: “a capacidade de mobilização das mulheres pobres e negras; a divergência com o movimento feminista branco e de classe média na definição da agenda política; e o distanciamento do feminismo hegemônico com mulheres pobres, trabalhadoras e negras, ou seja, da discussão de raça e classe.” O interessante para minha análise é perceber a relação entre as interpretações do Encontro, a posição desde onde enunciam as autorasativistas e os sentidos em torno do sujeito mulheres negras na relação com os feminismos. Se, por um lado, Núbia Moreira (2007) afirma a fundação de uma discursividade feminista pelas mulheres negras, por outro, Jurema Batista (2005) marca o momento de perceber a diferença entre as mulheres em movimento a partir da constatação da exclusão de classe interna ao feminismo. Há diferenças entre as duas posições, mas ambas inscrevem-se a atuação de mulheres negras na relação com os feminismos hegemônicos e com o sujeito feminista visto majoritariamente como mulheres brancas. Este movimento de inclusão/exclusão das mulheres negras do sujeito dos feminismos, principalmente do sujeito do feminismo hegemônico, é constitutivo das posições sujeito mulheres negras no campo feminista ou nas relações com o feminismo. Os imaginários feministas, o feminismo enquanto objeto de dizer disputado em seus sentidos, interioriza-se no discurso dos movimentos de mulheres negras pelo funcionamento discursivo da denúncia do feminismo hegemônico em suas narrativas de origem. 2.4.1 O Estado de São Paulo elas não aceitam uma mulher favelada discutindo no mesmo nível problemas filosóficos, culturais e políticos de nosso povo. Não concordam que uma mulher negra, magra, de olhos esbugalhados pela fome, possa ter conhecimentos quase idênticos aos delas, que puderam frequentar uma faculdade e falar várias línguas (...) (depoimento de Maria Alice Santos, líder negra de um dos bairros periféricos do Rio de Janeiro, no Jornal O Estado de São Paulo, de 3 de agosto de 1985). Por três dias seguidos, o jornal O Estado de São Paulo noticiou o III ECLAC com destaque para a polêmica da proibição da participação das militantes que não podiam pagar 110 sua inscrição. No dia 2 de agosto de 1985, a manchete da matéria foi “Encontro Feminista não aceita mulheres que não podem pagar”, e teve como subtítulo da fotografia que acompanhava o texto os dizeres “Faveladas ficaram na praia sem poder participar”. Ou seja, ambas as manchetes destacam a questão de classe como divisora interna do feminismo. No dia seguinte, a matéria tinha como manchete: “Faveladas acusadas: fazem política”. A matéria dizia das integrantes do Movimento de Favelas Rio de Janeiro e da acusação, pela comissão organizadora do encontro, de que estariam sendo manipuladas por grupos políticos. A última matéria não fazia menção em seu título à interdição da participação, apesar de retomá-la ao longo do texto. Intitulada “Termina o encontro do feminismo”, dizia do documento final do encontro e do ato público de encerramento. Sublinho que o jornal noticia a sensibilização das delegações estrangeiras, o debate do problema no grupo de discussão do encontro sobre “feminismo e racismo”, a denúncia da “democracia racial brasileira” como “propaganda pra esconder o preconceito existente no país” e as “queixas” das mulheres de que “as negras têm dificuldade de encontrar trabalho até como empregada doméstica enquanto folhetos de propaganda turística do carnaval brasileiro vendem sua imagem de alegria.” Figura 03 – Capa do jornal O Estado de São Paulo, 3 de agosto de 1985. O feminismo está na mira, no foco das três matérias mencionadas, que partem de 111 uma mídia reconhecidamente conservadora, em críticas de seu caráter elitista, sublinhando a rivalidade e as diferenças entre as mulheres. Certamente haveria de se refletir sobre o papel dos meios de comunicação massivos em suas propagandas antifeministas e/ou na reprodução de ideologias sexistas, distante da proposta de difusão do potencial transformador dos feminismos, por exemplo. De qualquer modo, deve-se reconhecer que tanto o Encontro quanto o Movimento de Favelas foram pauta da grande imprensa e alcançaram um público amplo. E, principalmente, a denúncia do racismo e elitismo da sociedade brasileira, mas também de vertentes do feminismo, se fez durante o encontro dentro e fora de suas dependências, em uma polêmica noticiada, que contribuiu para acirrar debates e ânimos e fortaleceu a ação das mulheres negras brasileiras no evento, bem como de outros setores excluídos do feminismo hegemônico. Deste modo, também a grande mídia, ao noticiar o acontecimento do encontro, participa de sua instauração como acontecimento discursivo. 2.4.2 Vídeo do Coletivo Enugbarijo no portal Cultne Analisarei uma sequência discursiva retirada de um vídeo feito por um coletivo autônomo de comunicação dos anos 1980 chamado Enugbarijo. O vídeo está hoje abrigado no site do Acervo Digital de Cultura Negra Brasileira (http://www.cultne.com.br), um projeto que procura disponibilizar o registro de uma “parte da história brasileira (...) que até pouco tempo era escamoteada ou ignorada por grande parte da sociedade”. A internet como arquivo (do) contemporâneo, organiza narrativas histórias de grupos sociais particulares, ao mesmo tempo em que fornece uma massa de informações dispersas pertinentes a uma questão, de modo a desafiar e fragilizar a invisibilização e silenciamento impostos pelo discurso dominante na historiografia e acervos estatais bem como a divisão social da leitura e da interpretação de que fala Pêcheux (1982), em Ler o arquivo hoje. 74 A criação de meios para difusão dos processos e personalidades históricas inspiradoras do movimento negro é uma prática dos coletivos que dele participam, sendo a disputa pela memória uma regularidade nos seus discursos. Neste acervo, uma das categorias de vídeos é nomeada mulheres negras, mostrando nesta forma de arquivo uma organização da memória que indexa mulheres negras como tema específico. O vídeo inicia com a intervenção de Luiza Bairros na plenária do encontro, 74 Aqui faço duas ressalvas: não se trata de defender a internet como lugar da possibilidade igualitária de interpretação e circulação de discursos (cf. GARCIA, D. A. ; SOUSA, L. M. A. E. , 2014), nem de negar as lutas e resistências internas à historiografia e presente nos acervos dos documentos do Estado. 112 ministra da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) entre 2011 e 2014, na ocasião, militante do Movimento Negro Unificado. A seguir, apresento recortes de sua fala, entremeados de análises sobre os modos como o objeto feminismo é disputado em seus sentidos e sobre a dêixis discursiva que constrói o momento como tomada da palavra pelas mulheres negras. Houve um primeiro momento do movimento feminista manter uma unidade, um certo fechamento, no sentido positivo da palavra, em cima de questões específicas, mas eu creio que chegou o momento da gente começar a olhar o que existe de diferente no movimento, o que existe de aparentemente contraditório [interrupção por palmas da plenária]. E se a gente começar a enxergar isso de frente, acho que vai ter sido dado um salto qualitativo e quantitativo muito importante. No início da sequência, feminismo é objeto de que se fala, em uma apresentação histórica. Em seguida, a passagem para a primeira pessoa do singular (eu creio) e então para a primeira pessoa do plural (a gente) compromete o eu com a análise apresentada para depois produzir como efeito um coletivo de mulheres feministas. A marcação na enunciação de dois momentos do feminismo – um “primeiro momento de unidade” e o outro, que “chegou”, de “começar a enxergar” a diferença – produzem como efeito a atualidade da disputa pela palavra, pelo reconhecimento e visibilidade política das mulheres negras no interior do movimento feminista. Basicamente, essa coisa nos vem em função do fato de nós tentarmos trabalhar enquanto mulheres negras certas coisas que nós aprendemos com o feminismo levando em conta nossa especificidade étnica. E a gente não pode de maneira nenhuma esquecer que, na América Latina e no Caribe, a grande maioria das mulheres não são brancas e, por não serem brancas, têm uma forma muito especial de inserção na sociedade determinada por essa condição. [interrupção por palmas] Nós não diz mais respeito ao conjunto das mulheres feministas, é delimitado por mulheres negras. Na argumentação, o nós se legitima e se autoriza na afirmação do que o delimita; se diz a partir da afirmação do que se é, “enquanto mulheres negras”, na reflexividade metaenunciativa que diz do sujeito da enunciação. O feminismo volta a ser objeto de que se fala, marcando uma relação de exterioridade com o coletivo mulheres negras: as mulheres negras aprendem com o feminismo. Em “a gente não pode de maneira nenhuma esquecer que, na América Latina e no Caribe, a grande maioria das mulheres não são brancas” pode-se supor que há uma retomada do nós feministas do início da fala, podendo ainda significar uma indeterminação que parafraseio por “não se pode esquecer”. As palmas (coletivas) seriam o reconhecimento (o “enxergar a diferença”) do nós/a gente feministas da plateia e/ou também indício da identificação das mulheres que não são brancas da América 113 Latina e do Caribe com as negras brasileiras que tomavam a palavra de forma inaugural, no efeito de sentido da sequência. Pela afirmação de que a maioria das mulheres não são brancas, há a denúncia dos privilégios da branquitude e do racismo dentro do feminismo. Ressalto o deslocamento da designação negras para não-brancas em uma conjuntura política da presença no encontro de países com expressiva presença indígena, o que poderia indicar a aliança entre não-brancas. As duas designações (negras e não-brancas) só poderiam funcionar como sinônimas em um apagamento da diversidade étnico-racial do encontro e, em especial, das mulheres indígenas, o que ocorre por vezes como efeito nos funcionamentos polêmicos do discurso dos movimentos de mulheres negras em polarização com os discursos feministas significados como discurso de mulheres brancas. Nestas polêmicas, em alguns casos, somente os polos antagônicos significados como dominante e dominado aparecem: o das mulheres negras e o das mulheres brancas, em um apagamento de outras posições. Neste recorte vemos uma outro modo de construir, nomear e dizer da contradição no discurso. Dito de outra forma: se a polarização é uma regularidade em muitos discursos em polêmica na política, neste recorte ela não se dá entre brancas e negras, mas entre brancas e não-brancas, numa aliança entre diferentes coletivos não identificados com o polo dominante das relações raciais. O dizer como mulheres negras não limita a identificação a este coletivo – a possibilidade de identificação ao coletivo do nós é ampliada às nãobrancas. Disputa-se o sentido de feminismo em um processo contraditório que afirma e nega o pertencimento a ele. A relação de exterioridade com o feminismo e a passagem de mulheres negras para mulheres que não são brancas produz pela negação e pela passagem/reescritura de feminismo para o a gente feminista o efeito de sentido das feministas como brancas. Em outras palavras, a construção discursiva da identidade das mulheres negras se faz em oposição e diferenciação às “feministas” em seu sentido dominante não-dito de “mulheres brancas feministas”, ao mesmo tempo em que disputa um lugar no feminismo para o “nós mulheres negras” e “não brancas”. 114 Figura 04 – Montagem com imagens do vídeo do Coletivo Enugbarijo do III Encontro Feminista Latino-americano e do Caribe (1985). Fala de Luiza Bairros e intervenção das mulheres negras brasileiras. Destaco ainda a expressão “especificidade étnica” para falar da “experiência das mulheres negras” – as noções de experiência e especificidade podem ser inscritas na discursividade de vários outros movimentos sociais (os chamados “novos movimentos sociais”). Detenho-me na “especificidade” e na polêmica que percorria os movimentos feministas entre a “luta geral” e as “lutas específicas”. O debate do feminismo fortemente atrelado ao marxismo na América Latina e no Caribe era de pensar o capitalismo como sistema que conjuga exploração de classe a opressões como o machismo, a homofobia e o racismo, por um lado, e os desafios para avançar na luta contra esse sistema complexo, de outro, o que incluía o debate sobre os sujeitos políticos de uma transformação social e sobre os sentidos desta transformação. Havia feministas que argumentavam, então, que somente a “luta geral” (a luta contra a exploração de classe, que tinha como principal sujeito a classe trabalhadora) não resolveria as questões “específicas” (as opressões), sendo as lutas contra as opressões uma luta protagonizada pelos setores oprimidos. A gente vai agora [mulheres negras começam a ir a frente, juntando-se a Luiza Bairros], a gente que eu digo, além de mim, que faço parte do Movimento Negro Unificado, as mulheres do Agbara, do Coletivo de Mulheres Negras de São Paulo, do Nzinga, Coletivo de Mulheres Negras do Rio de Janeiro, e mais outras companheiras que são do Sindicato das Enfermeiras e universitárias do Rio de Janeiro, a gente vai querer mostrar alguma coisa pra vocês, uma mensagem final nossa, que é um pouco da história das mulheres negras e de seu processo de resistência na luta que o negro desenvolve, que sempre desenvolveu dentro desse país pelo direito de existir como ser humano [palmas]. Ao final de sua fala, a intelectual-ativista chama outras mulheres negras – 115 universitárias, sindicalistas, de coletivos de mulheres negras – para juntar-se a ela. São cerca de 15 mulheres que deslocam-se para frente do público do encontro e cantam em coro, emocionando a plateia que reage com aplausos. Trata-se da adaptação do poema “Salve a mulher negra”, de Oliveira Silveira 75, cantado pelas participantes do encontro76: Luiza Mahin Chefa de negros livres E a preta Zeferina Exemplo de heroína Aqualtune de Palmares Soberana quilombola E Felipa do Pará Negra Ginga de Angola África liberta Em tuas trincheiras Quantas anônimas Guerreiras brasileiras A canção, em sua letra, atualiza a memória das lideranças femininas nos quilombos e nas revoltas contra a escravidão no Brasil (Luiza Mahin, na Revolta dos Malês; Aqualtune, no Quilombo dos Palmares; Zeferina, no Quilombo do Urubu) e em África (Negra Ginga de Angola é uma referência à poderosa rainha africana Nzinga Mbandi no século XVII). Tendo em seu centro a participação feminina, seja de heroínas nomeadas ou de anônimas, há uma filiação da memória do “movimento de mulheres negras” no Brasil a uma história de luta anterior na qual se reconhecem e que se relaciona à organização política na África, é marcada pela colonização, escravidão e resistência a estes processos de dominação. Constrói-se uma trajetória de “guerreiras brasileiras” na qual se inscreve o sujeito da enunciação que inclui as guerreiras africanas pelo funcionamento dos nomes próprios e breves caracterizações (como “Luiza Mahin, chefa de negros livres”), produzindo como efeito uma continuidade temporal sem que para isso se empregue dêixis temporal. De forma heterogênea, o deslocamento África-Brasil é significado paradoxalmente como interrupção e continuidade para o sujeito dos movimentos de mulheres negras no Brasil. A retomada das trajetórias de mulheres (heroínas, com nome e sobrenome, guerreiras anônimas do cotidiano) ou de experiências organizativas precursoras do movimento de mulheres negras chamadas a compor suas narrativas de origem participa da formulação de uma interpretação de si e da construção histórica e cultural do Brasil. 75 Militante e professor, é importante referência de intelectual diaspórico negro na literatura brasileira, sendo também representante fundamental da literatura negra brasileira. 76 Tive a oportunidade de perguntar sobre essa música diretamente a Luiza Bairros na ocasião de sua visita à Casa de Cultura Fazenda Roseira (Campinas/SP) em abril de 2014, a quem agradeço por ter me fornecido a referência do poema de Oliveira Silveira. 116 Neste caso, por efeito, o nós mulheres negras, predicado por guerreiras brasileiras, por efeito do canto coletivo, se amplifica e significa a soma de diferentes vozes que rompem o que é denunciado como silêncio histórico a elas imposto, fazendo ressoar uma memória pouco difundida que disputa com as memórias do feminismo e da construção do Brasil. Neste gesto, diz-se do passado, do presente e projeta-se uma futuridade dos sentidos, pela abertura do possível no acontecimento que também se faz a chance do militante (ZOPPI FONTANA, 2009) na performatividade da palavra comum que aproxima o sujeito de dizer do sujeito histórico da ação política. Mulheres negras em luta na história que atravessa o Atlântico da África ao Brasil são visíveis para si mesmas e para as outras. Estaríamos diante de um acontecimento histórico que rompe o círculo da repetição de modo que o irrealizado formaria novos sentidos? Figura 05 – Vídeo Enugbarijo (1985). Mulheres negras brasileiras cantam na plenária do III Encontro Feminista Latino-americano e do Caribe. Tomo a descrição que Pêcheux (1982) faz da figura do porta-voz na representação política, que concomitantemente enuncia diante dos seus e representa-os perante outro interlocutor. Nessa perspectiva, seria possível pensar em um funciomento distinto daquele do funcionamento enunciativo da figura clássica do porta-voz. Neste caso, dentre as múltiplas formas de fazer política de mulheres negras, se apresenta um locutor coletivo. A opção por uma canção em lugar da leitura de um manifesto político (pelo poema político cantado em detrimento do manifesto escrito lançado), por exemplo, e a escolha de apresentar diante do público um coletivo de mulheres, no lugar da manutenção exclusiva da figura do porta-voz, podem ser lidas como indícios da irrupção na atualidade do acontecimento de diferentes práticas organizativas e discursivas que desafiam e hibridizam dicotomias de categorizações 117 que lhes são exteriores, como a de oralidade e escrita, verbal e não-verbal, arte e política, entre outras. Em síntese, as análises sugerem que a intervenção das mulheres negras brasileiras na plenária do III Encontro Feminista Latino-Americano e do Caribe poderia ser entendida como emblemática e mesmo metafórica de muitos funcionamentos dos discursos dos movimentos de mulheres negras no que diz respeito à sua identidade discursiva na inscrição/construção de memórias negras diaspóricas e à sua reflexividade sobre a voz e visibilidade das mulheres negras. Do silêncio, ou melhor, do dizer à margem das posições de maior poder, à assunção da palavra no campo feminista e sua disputa na relação com as mulheres brancas, em busca de um lugar de dizer legítimo, com credibilidade e maior circulação social. De invisíveis ou invisibilizadas, ocupam o espaço para o qual se dirigem os olhares, para “se enxergar a diferença”, passando a uma posição de visibilidade diante de outras mulheres e de um público mais amplo com elementos próprios do seu modo de existir e de fazer política. 2.4.3 Marcha das Mulheres Negras 2015 A intervenção de mulheres negras brasileiras no III Encontro Feminista Latinoamericano e do Caribe aparece em um vídeo de chamado 77 à Marcha das Mulheres Negras 2015 – Contra o racismo e a violência e pelo bem viver78. É justamente a cena do canto em coro do poema Salve a mulher negra, de Oliveira Silveira, em imagens retiradas do 77 Griô Produções. Dezembro de 2014. Realização AMNB – Articulação de Mulheres Negras Brasileiras. Coordenação: Jurema Werneck, Nilza Iraci e Simone Cruz. Apoio Fundo Elas. Filmagens, edição e finalização de Chaia Dechen. Roteiro e produção executiva de Jaqueline Fernandes. Produção musical de Higo Melo. Vozes/cantoras: Elaine Dorea. Mabô. Leci Brandão (disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=AaGIPizSeCE). 78 A Marcha das Mulheres Negras 2015 foi idealizada por ocasião do Encontro Paralelo da Sociedade Civil para o Afro XXI: Encontro Ibero Americano do Ano dos Afrodescendentes, em 2011. A iniciativa foi “aglutinar o máximo de organizações de mulheres negras brasileiras, assim como outras organizações do Movimento Negro, sem dispensar o apoio de organizações de mulheres e de todo tipo de organização que apoiem a equidade sociorracial e de gênero. Sem dúvida, o protagonismo é de mulheres negras brasileiras.” (Histórico da Marcha Nacional, disponível em http://www.marchadasmulheresnegras.com/#!historico/c1xsb). Destaco que as organizações de mulheres negras são significadas como parte do movimento negro e as outras organizações de mulheres que não tenham esta identidade são nomeadas sem mencionar sua identidade racial e/ou feminista. Com organização nacional, com núcleos impulsores em quase todos os estados brasileiros, o Comitê Impulsor da Marcha é composto das seguintes organizações: Agentes de Pastoral Negros – APNs; Articulação Nacional de Mulheres Negras – AMNB; Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas – CONAQ; Coordenação Nacional de Entidades Negras – CONEN; Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas – FENATRAD; Fórum Nacional de Mulheres Negras; Movimento Negro Unificado – MNU; União de Negras e Negros pela Igualdade – UNEGRO. 118 vídeo Luiza Mahim, no canto das mulheres negras brasileiras (1988)79, a incluída na edição do vídeo. Pergunto-me pelos efeitos de sentido do acontecimento do retorno dessas imagens e sons 30 anos mais tarde. O sentido do acontecimento histórico do Encontro como fundador para os movimentos de mulheres negras e feminismos negros é atualizado do vídeo? Figura 06 – Clipe de chamado a Marcha das Mulheres Negras 2015. Apesar da Marcha de Mulheres Negras 2015 não carregar em seu nome a denominação feminista, a escolha das imagens e poema musicado de um encontro feminista como referência para seu chamado significam sua filiação a este campo. A única menção direta ao Encontro está na legenda que acompanha a cena do canto das mulheres, com seu nome e o ano de sua realização A atualização da memória deste acontecimento como fundador de determinada subjetividade de mulheres negras se faz pelo contraste entre o branco e preto destas imagens com o colorido do restante do vídeo e da identidade visual da Marcha de 2015, que jogam com os sentidos de passado e presente, na memória do preto e branco como linguagem audiovisual anterior às cores. Vislumbro o mesmo efeito na mudança dos ritmos e estilos musicais dos dois cantos e mesmo nas diferentes condições de produção e modos de circulação da palavra política. Se as mulheres militantes participantes de um fórum internacional do feminismo cantaram ao som de palmas em 1985, em 2015 mulheres negras do segmento artístico e cultural cantam em um clipe com produção e direção musical, no qual tem peso a participação de Leci Brandão, uma mulher que é cantora e compositora, além de deputada que assume as pautas políticas das mulheres negas 80. 79 Este vídeo, disponível no site da Cultne, tem direção e imagens de Vik Birkbeck e Ras Adauto, e produção de Enugbarijó. Para mencionar outros retornos destas imagens nos dias de hoje, cito a apresentação de Jurema Werneck no Festival Latinidades Afrolatinas de 2014, que inicia com este vídeo (disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=XqvqH_vaM2g&feature=youtu.be). Também poderia dizer da edição e legendagem dos dois vídeos que fiz para apresentá-los em congressos acadêmicos durante o doutorado. 80 Cf. Jurema Werneck (2008: 82), que afirma que “ser a cultura de massa, especificamente a música popular e sua indústria, o espaço público de maior presença e expressão pública de mulheres negras no Brasil e em toda a 119 Figura 07 – Imagem do III Encuentro Feminista Latinoamericano y del Caribe (1985) no clipe da Marcha das Mulheres Negras 2015. Apresento brevemente a proposta deste vídeo de divulgação da Marcha de Mulheres Negras para situar melhor a análise81. O vídeo é um clipe do poema Salve a mulher negra cantado por mulheres negras – entre elas integrantes dos grupos Bsb-girls, Ilú Obá de Min e Cia Capulanas – com a participação especial de Leci Brandão. Inicia com uma menina negra declamando “Sou negra como a noite, sou negra e sou amor, sou negra e sou a vida”, para então vir o canto. É em meio ao canto das mulheres de hoje que irrompe a cena do canto em 1985, em um movimento do presente para o passado, do passado para o futuro da Marcha no chamado de uma menina (“Vem marchar com a gente!”) ao final do vídeo. Esta menina também é o presente-futuro, a nova geração de mulheres negras ou por quem lutamos hoje. Novamente são entrecruzadas diferentes temporalidades e memórias que constituem o lugar de enunciação de mulheres negras no campo feminista, se sobrepomos 1985, 2015 e a projeção temporal aberta pelo poema, que remonta um passado anterior ao colonialismo europeu em África e projeta um futuro utópico. Apesar da encruzilhada de memórias atualizada no clipe, suas imagens não se significam como metáfora da voz e da visibilidade de mulheres negras em meio a um feminismo significado como branco, pois nesta retomada do poema musicado em outras condições de produção, na interlocução discursiva, não estão projetadas como interlocutoras as mulheres brancas. Trata-se de um chamado de mulheres negras para mulheres negras. Os embates internos ao campo do feminismo, com a denúncia de racismo no diáspora africana”. Em sua tese sobre mulheres negras no samba, a intelectual/ativista elege três sambistas negras (entre elas, Leci Brandão) e analisa a obra destas mulheres a partir de aspectos de gênero e raça. 81 A Marcha de Mulheres Negras tem outros vídeos de divulgação, com outras propostas, também disponíveis em seu site. Menciono o clipe da música Negras em Marcha, da MC Luana Hansen e produção de Anksata, Parcerias Disponível em https://www.youtube.com/watch?t=10&v=p6kRqzpoo3k. Este rap é um manifesto cantado da Marcha. 120 feminismo branco, seguem como regularidade nos anos 2000 em parte dos discursos desde vozes mulheres negras. No manifesto da Marcha de Mulheres Negras do Núcleo Impulsor do Estado de São Paulo , a luta para enegrecer o feminismo está presente, mas os embates diretos e as polêmicas com o feminismo hegemônico não aparecem. Não são as feministas ou pessoas solidárias às lutas feministas as principais interlocutoras. O interlocutor é mais indeterminado – são as outras organizações políticas, as mulheres negras participantes das atividades promovidas pelo núcleo impulsor, as feministas, a população que recebe o manifesto na rua, o que reforça a argumentação de que as polêmicas são demarcadas nas relações estabelecidas pela interlocução discursiva em condições de produção determinadas. Deixando as análises em torno do acontecimento do III Encontro Feminista Latino-amaricano e do Caribe, parto para um recorte deste Manifesto. Inicialmente, o foco são outros funcionamentos da rememoração de mulheres negras da história nas vozes-mulheres negras no presente. Tenhamos especial atenção para o modo como apresenta o dia 25 de Julho: Estaremos nas ruas em 2015 por um Brasil sem machismo, sem homofobia, sem intolerância religiosa, sem racismo, preconceito e discriminação de qualquer natureza, que reconheça a voz das mulheres negras. Resistimos através da nossa cultura, da ancestralidade quilombola, da resistência dos terreiros. Somos as cotistas que enegrecem as universidades e faculdades, que lutam diariamente pela igualdade real, que batem tambor, que amam seu cabelo afro, que lutam contra a criminalização e genocídio de nossos filhos e irmãos. Somos as que amamos nossa identidade negra! Brigamos por melhores condições de trabalho, pelo direito ao aborto legal e seguro, para desmistificar a imagem sexualizada que nos é atribuída. Exigimos políticas de promoção da igualdade e queremos enegrecer o feminismo. Em São Paulo, em 25 de Julho de 2014, Dia Internacional da Mulher Negra Latino Americana e Afro Caribenha e Dia Nacional de Teresa de Benguela 82 e da Mulher Negra, houve o lançamento oficial da Marcha das Mulheres Negras 2015. O evento reuniu cerca de 200 mulheres vindas do movimento de mulheres negras do Estado de São Paulo, partidos, sindicatos e centrais sindicais, ONGs, igrejas, movimentos populares, organizações estudantis de mulheres e de juventude. Juntas construímos um momento importante da luta por um Brasil com soberania, desenvolvimento social e econômico, sem racismo, discriminação, homofobia, machismo e intolerância religiosa. 82 Nota do Manifesto: “Tereza de Benguela foi uma liderança quilombola que viveu no século XVIII. Foi esposa de José Piolho, que chefiava o quilombo do Piolho ou Queriterê, nos arredores de Vila Bela da Santíssima Trindade, Mato Grosso. Quando seu marido morreu, Tereza assumiu o comando daquela comunidade quilombola, relevando-se uma líder ainda mais implacável e obstinada. Benguela comandou a estrutura política, econômica e administrativa do Quilombo, mantendo um sistema de defesa com armas trocadas com os brancos ou resgatadas das vilas próximas”. 121 O manifesto, que tem como objetivo principal apresentar as pautas políticas da Marcha, também traz à tona datas importantes de rememoração e luta das mulheres negras, por isso lançar a Marcha nesta data. O 25 de julho articula as lutas do movimento latinoamericano e afro-caribenho83 com o movimento de mulheres negras brasileiras – é dia internacional e nacional. Uma nota de rodapé diz sobre o Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra. Assim como no texto de Léllia Gonzalez (1982) quando diz das mulheres palmarinas, esta nota descreve e narra a trajetória de Tereza de Benguela, significando sua posição social em relação à família, no caso ao marido, chefe do quilombo do Queriterê. No entanto, o faz diferentemente. Inicia com uma descrição que não diz dos laços conjugais de Tereza de Benguela e enfatiza seu papel de liderança quilombola. Em seguida, afirma que ela foi “líder mais implacável e obstinada” que o marido, exaltando suas características como comandante da estrutura do Quilombo e de seu sistema de defesa. Tereza de Benguela é, nesta narrativa, significada como uma liderança política e militar. O Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra, instituído pela lei 10.987/201484, segundo a ex-senadora e autora do texto Serys Slhessarenko, foi uma forma de criar um ícone para as mulheres negras do país. Em declaração à Agência Câmara Notícias 85, afirmou: “É preciso criar um símbolo para a mulher negra, tal como existe o mito Zumbi dos Palmares. As mulheres carecem de heroínas negras que reforcem o orgulho de sua raça e de sua história”. O nome de Tereza de Benguela não tem a popularidade do de Zumbi dos Palmares. No entanto, iniciativas como a criação da lei e a difusão de sua história pelas organizações e articulações de mulheres mostram a continuidade da luta para a ressignificação da história das mulheres negras e a luta por memória mesmo em relação aos símbolos negros e as articulações políticas de mulheres negras para ampliar a circulação de seu discurso sobre seu apagamento na história brasileira. Assinalo que, apesar da regularidade do lembrar e reivindicar sua participação com protagonismo na história, elegendo ícones e relacionando-o às mulheres negras em luta na contemporaneidade, estas referências históricas são significadas de forma plural pelas vozes-mulheres negras. A intelectual/ativista Jarid Arraes, em matéria do Portal Fórum, seção 83 Em 1992, no I Encontro de Mulheres Afro-Latino-Americanas e Afro-caribenhas realizado na República Dominicana, foi criada a Rede de Mulheres Afro-latino-americanas e Afro-caribenhas e definido o 25 de julho como Dia da Mulher Afro-latino-americana e Caribenha. Ou seja, a data brasileira foi instituída mais de 20 anos depois. 84 O texto da Lei 10.987 está disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato20112014/2014/lei/l12987.htm. 85 A matéria da Agência Câmara Notícias está disponível em http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/DIREITOS-HUMANOS/465261-CAMARA-APROVADIA-NACIONAL-DE-TEREZA-DE-BENGUELA-E-DA-MULHER-NEGRA.html. 122 Questão de Gênero86, intitulada 25 de Julho: toda mulher negra é um quilombo, defende que, apesar do reconhecimento oficial, “Tereza ainda é mais uma mulher negra negligenciada pela história brasileira”. Jarid Arraes apresenta Tereza de Benguela como um “ícone feminista” das mulheres negras, uma “mulher negra guerreira”, em uma afirmação inscrita em uma posição sujeito feminista: Apesar de tudo, a história da vida de Tereza de Benguela resiste ao tempo, mesmo com o racismo e o machismo, sobrevivendo devido ao esforço incansável de centenas de jovens negras, que buscam por ícones feministas além das intelectuais da Europa e outras mulheres com as quais nem sempre conseguem se identificar. Ao mesmo tempo, afirma que “Cada mulher negra que se mantém caminhando e enfrenta o racismo e o machismo em sua rotina diária é também um ícone de força e celebração da negritude”, buscando afastar-se da ideia de heroína distantes do que é comum, ao mesmo tempo em que reafirma a imagem da mulher negra como “fortaleza”, “as bravas líderes da revolução cotidiana” relacionando esta força à memória de resistência do quilombo: “Toda mulher negra é um quilombo”. A luta para visibilizar mulheres negras na história destacando seu nome e sobrenome, nesta posição, deve ser a celebração também das anônimas guerreiras brasileiras e dos processos históricos coletivos, como ocorre com a personificação e atualização do quilombo em que a mulher negra é novamente significada em uma encruzilhada de memórias, em relação a um passado de lutas. Voltemos, então, ao recorte do Manifesto. Teço comentários sobre a reflexividade metaenunciativa na construção da identidade negra com caráter afirmativo e positivo. Por meio do nós, o locutor se apresenta, diz de si, e produz efeitos de sentidos sobre quem são as mulheres negras em marcha. Há, portanto, em vários momentos, a delimitação do nós mulheres negras para aquelas em marcha, que reivindicam por todas as mulheres negras e que são significadas como um grupo em luta, uma luta no espaço das ruas, com suas pautas, em luta pelo reconhecimento de sua voz. Se no primeiro parágrafo os sentidos em torno de mulheres negras vão se produzindo pelas pautas políticas e pelo sentido da marcha que as reúne em torno de tais pautas, no parágrafo seguinte, quando se diz como resistimos e lutamos, por o que brigamos, o que exigimos, o que queremos e também quem somos, vão se produzindo imagens de quem são estas mulheres pela afirmação. Pela afirmação da cultura, da ancestralidade quilombola, da resistência dos terreiros, da presença negra no ensino superior, do amor aos cabelos afro: somos as que amamos nossa identidade negra! e brigamos para desmistificar a imagem sexualizada que nos é atribuída. Neste caso, é pela 86 Matéria disponível em http://www.revistaforum.com.br/questaodegenero/2014/07/25/25-de-julho-tereza-debenguela/. 123 afirmação (do amor) que se ressignifica uma memória de depreciação. Portanto, as respostas para as questões “quem sou eu?” ou “quem somos nós?” que estão na base da constituição de um discurso sobre a identidade negra que perpassa as vozes de mulheres negras em luta vão se produzindo pelo anúncio das pautas políticas, pela narrativa de uma história de lutas e pela afirmação do orgulho de uma identidade. 2.5 Quem sou eu? – documentário Ori e a memória diaspórica Para fechar este segundo capítulo, apresentarei uma análise do documentário Ori (GERBER, 1989), com objetivo de discutir mais detidamente o que entendo por memória diaspórica nesta tese. Esta escolha deve-se ao fato de o documentário ter como principal narradora um eu-enunciador feminino negro (apesar de ser polifônico) e perpassar o imaginário construído em experiências diaspóricas87, em referência às relações que as populações africanas deportadas para as Américas mantiveram/mantêm com sua história, memória e origem nos processos de dispersão e reagrupamento de africanos e de seus descendentes em diversas partes do mundo (BAMBA, 2012). Traço esta reflexão a partir dos textos Pensando a diáspora: reflexões sobre a terra no exterior, de Stuart Hall (2003), sobre as identidades caribenhas diaspóricas sob as condições contemporâneas de globalização, e Os modos de figuração da memória e das experiências diaspóricas em quatro documentários brasileiros, de Mahomed Bamba (2012), que propõe a noção de memória diaspórica em sua teorização e análise. Hall (2003) aponta os perigos de concepções fechadas e essencializadas de diáspora que tomam a identidade cultural como “estar primordialmente em contato com um núcleo imutável e atemporal, ligando o passado, o futuro e o presente numa linha ininterrupta” (HALL, 2003:32). Neste sentido de diáspora, a tradição seria a ligação e fidelidade às origens. O autor retoma as características dos mitos fundadores: seu caráter transistórico, sua estrutura narrativa cíclica em contraposição à linearidade do tempo histórico, seu poder redentor projetado como porvir e o papel que têm em moldar o 87 Segundo Bamba (2012, s/p), “a noção de “diáspora” serve também para falar de todos os povos dispersos que mantêm um laço “comunitário” por referência a uma terra de origem [...]. Se alguns estudiosos lamentam o uso generalizado e metafórico do termo “diáspora”, outros, ao contrário, vêem por trás desta extrapolação terminológica um desejo de forjar um conceito operatório que dê conta da heterogeneidade das realidades de dispersão de populações provocadas pelo exílio ou pelas ondas migratórias (diásporas armênia, africana, irlandesa, chinesa, mexicana, etc.). Sendo assim, o termo “diáspora” não só se revela um conceito ideologicamente construído pelos teóricos dos estudos culturais, bem como reveste-se de um valor heurístico que permite repensar as relações dos indivíduos, comunidades e grupos sociais com suas memórias e com seus sentimentos de pertencimento identitário no interior dos estados-nações”. 124 imaginário, conferindo sentidos à nossa história e à nossa vida. Argumenta, então, pela existência de identidades múltiplas e híbridas nas situações diaspóricas. Não se poderia pensar nestas identidades simplesmente como a significação dos elos que ligariam a uma unicidade primordial, à indivisibilidade e mesmice, conforme os modelos de identidade cultural em que se presume uma origem. Considerando a identidade como questão histórica e a diversidade das origens dos descendentes de africanos nas diásporas, devem-se considerar as descontinuidades e rupturas violentas com o passado. Em relação à diáspora caribenha, o autor não desconsidera os esforços de reconstrução das identidades por gestos que pretenderam um retorno às origens. Segundo o autor, retrabalhar a África no Caribe teve caráter subversivo no século vinte, em especial diante dos modelos culturais orientados para a nação. Todavia, isso não se deveu “ao fato de estarmos ligados ao nosso passado e herança africanos por uma cadeia inquebrantável, ao longo da qual uma cultura africana singular fluiu imutável por gerações, mas pela forma como nos propusemos a produzir de novo a África” (HALL, 2003:44). Nessa perspectiva, afirma que a “‘África’ é o significante, a metáfora, para aquela dimensão de nossa sociedade e história que foi maciçamente suprimida, sistematicamente desonrada e incessantemente negada”; no novo mundo é aquilo que se tornou, sendo significativa “a forma como essa ‘África’ fornece recursos de sobrevivência hoje, histórias alternativas àquelas impostas pelo domínio colonial e as matérias-primas para retrabalhá-las de formas e padrões culturais novos e distintos” (Idem:45-46). Mahomed Bamba (2012: s/p), apoiado no conceito de memória étnica de Le Goff (1988) e de diversas leituras sobre as diásporas negras, notadamente sobre seus modos de reinventar as identidades culturais, defende que a memória coletiva das populações negras ou mestiças do Atlântico Negro “é ao mesmo tempo étnica, oral, gráfica e figurativa: ela se constitui de vestígios das culturas oral, percussiva, musical e das práticas linguísticas e religiosas”, sendo comportamentos, experiências, práticas sócio-culturais e artísticas da problemática diaspórica aqueles que revelam a lógica e contradições das memórias de origem africana na história e na modernidade de alguns países. A memória diaspórica é aqui pensada como construção discursiva contraditória e móvel que perpassa diferentes práticas sociais e materialidades significantes à revelia ou em relação às narrativas da história oficial, muitas vezes em tensão com os discursos que constroem as identidades nacionais. Essa memória diaspórica diria da trajetória coletiva caracterizada pelas ideias de conservação, continuidade e ruptura em funcionamentos que 125 reescrevem as narrativas de dispersão e de suas consequências no presente em uma reconstrução e recriação diante de uma história de silenciamemento e invisibilização. Esta trajetória coletiva é, a cada conjuntura histórica, reinterpretada, relida, ressignficada. A memória diaspórica negra também concerne às formas como as populações do novo mundo se relacionam com a história da escravidão, as diversas formas de recriação e “idealização” da “cultura de origem” de sujeitos negros nas conjunturas nacionais. A potencialidade do conceito de memória diaspórica negra está em contribuir para a reflexão sobre a atualização e deslocamentos nas diferentes condições de produção do discurso nos processos identitários dos sujeitos diaspóricos nos contextos pós-coloniais. Uma memória atualizada e em movimento nas lutas dos sujeitos negros e afrodescendentes, ao mesmo tempo sua condição de subjetivação, o que projeta imaginariamente o laço social entre os africanos e seus descendentes diaspóricos pela origem comum e também por uma trajetória semelhante nas diásporas negras, pelas experiências da escravidão, do racismo e da discriminação racial. Nesta perspectiva, tanto a África como origem comum, a despeito de sua multiplicidade, quanto a própria diáspora são projeções imaginárias a partir do movimento colonialista e escravista que constitui a diáspora. Portanto, a construção imaginária da diáspora é um discurso fundador da subjetividade negra, é condição de possibilidade da discursividade que configura os processos de identificação dos sujeitos negros e ainda condição de formação de seus discursos por ser referencial básico do imaginário. Estes sujeitos, paradoxalmente, são constituídos nos diferentes modos que mobilizam a memória instaurada pelo discurso fundador – em filiações pela vitimização, afirmação da resistência, orgulho do que é significado como africano, etc. Retomando os postulados de Pêcheux, considero que as redes sócio-históricas dos sentidos vão se tecendo no embate ideológico. Portanto, não penso a memória diaspórica negra como autônoma em relação à ideologia dominante. Interessa-me o que Beatriz Nascimento afirma em um texto sobre a intelectualidade branca que adota o negro como objeto de estudo: “Depois de nos explorar e tirar as melhores coisas, depois de nos reprimir, a ideologia dominante quer nos ‘descobrir’ (...) ‘puros’, ‘ricos culturalmente’, ‘conscientes de nossa raça’” (NASCIMENTO, 1974: 100). A autora defende que a consciência negra só pode se produzir pelos negros a partir de uma consciência do dominador. Ori projeta imaginariamente mulheres negras brasileiras como sujeito dividido, no embate entre os sentidos de objetos paradoxais como negro, escravo, carnaval, candomblé e 126 quilombo, significados diferentemente nos discursos da construção do Brasil calcados na ideologia da democracia racial ou nos discursos dos movimentos negros. Em Ori, as escolas de samba são lugar de resistência e continuidade cultural e histórica para os descendentes de africanos no Brasil, sentido antagônico ao carnaval como momento de celebração da alegria da democracia racial. O funcionamento contraditório desses objetos e a luta por seus sentidos é um dos modos de atrelamento dos discursos de resistência ao discurso dominante. A pluralidade de formas nas práticas de resistência à ideologia dominante também se faz nos modos de mobilizar elementos dessa memória diaspórica desde diferentes posições sujeito, com palavras, silêncio, imagens (e não projeção de imagens estereotipadas), sons, silêncio, movimentos corporais, gestos... Feitas estas considerações, situo o documentário Ori, dirigido por Raquel Gerber. Este é um filme histórico e político, com textos e narração de Beatriz Nascimento, intelectual/ativista, historiadora e poeta. É considerado um filme-tese sobre a identidade negra na América. Documenta, resgata a história e a memória dos movimentos negros no Brasil entre 1977e 1988 e estabelece relações entre Brasil e África, tendo a vida pessoal de Beatriz Nascimento e sua pesquisa sobre quilombo como fios condutores. Originalmente de 1989, o documentário foi restaurado e remasterizado digitalmente em 2008 e relançado no ano seguinte (BAMBA, 2012). Considerado por Bamba (2012, s/p) um filme comprometido com a memória diaspórica, reinterpreta a memória da escravidão (e a resistência a ela) e as sucessivas formas de organização sócio-culturais e políticas dos negros no contexto brasileiro. Procura também “inventar estratégias de representação do passado e do presente das populações afrodescendentes de tal forma que o imaginário e a história de suas lutas pela afirmação na sociedade brasileira se misturam no discurso fílmico”. Segundo o autor, Ori compartilha uma rede de figuras e unidades temáticas e enunciativas com outros filmes inseridos na problemática diaspórica que constituiriam um campo discursivo no cinema brasileiro. São imagens do retorno imaginário ou real à África (imagens do oceano, das rotas marítimas, dos arquivos coloniais); figuras e alusões à terra de origem (imagens de tribos, aldeias e costumes africanos); personagens históricas e mitos (como a rainha Nzinga). 127 Figura 08 – Imagens de documento histórico e mapa da África do filme Ori, de Raquel Gerber (1989). Inspirando-me no trabalho de Bamba (2012), penso nas regularidades nos temas e nas formas de enunciar em Ori. Tentarei demonstrar com as análises que, no quadro da AD, seria produtivo pensar em efeitos de sentidos nos modos de construir estes temas e figuras em diferentes condições de produção, ao invés de fixar uma interpretação de uma metáfora visual. Na análise, ponho em relevo dois pontos: 1) a questão da identidade formulada de forma reflexiva pela personagem principal. Um “eu” feminino que enuncia perguntando-se sobre sua identidade, significada simultaneamente como identidade pessoal, étnico-racial e posicionamento político; 2) as metáforas visuais das continuidades e descontinuidades nas relações África-Brasil. Entre elas, escolho as imagens do oceano como metáfora, buscando demonstrar uma multiplicidade de sentidos que diz das posições sujeito a partir das quais se enuncia. As imagens que abrem Ori são do céu e em seguida de um oceano. Primeiro, o alto mar, depois ondas quebrando na areia, uma encosta. Imagens e sons do mar. O movimento é de chegada, do alto mar a terra. A narração em off de Beatriz Nascimento diz: A Terra é circular. O sol é um disco. Onde está a dialética? No mar. Atlântico mãe. Como eles puderam partir daqui para um mundo desconhecido? Aí eu chorei de amor pelos navegadores, meus pais. Chorei por tê-los odiado, chorei por ainda ter mágoa dessa história. Mas chorei fundamentalmente diante da poesia do encontro do Tejo com o Atlântico, da poesia da partida para a conquista. E eles fizeram por medo também e talvez tenham chorado diante de todas as belezas do mar Atlântico. Ó paz infinita poder fazer elos de ligação em uma história fragmentada. A África e América, e novamente Europa e África. Angolas, Jagas e também os povos de Benin de onde veio minha mãe. O Atlântico aqui não significa (somente) o retorno à África. É mobilizado pelo eu para se dizer, para dizer o que é: eu sou atlântica, em movimento e presa em elos de ligação de uma história fragmentada. Tem a poesia da partida para a conquista, tem o medo do mundo 128 desconhecido. Atlântico onde atravessaram os antepassados. Travessias entre África e América, entre Europa e África. A direção não é única: da África ao Brasil, no navio negreiro, na condição de escravizado; nem do Brasil à África, em um retorno à origem. Ori não traz imagens de sofrimento relativas à escravidão, apesar de dizer desse sofrimento de outras formas. Não usa imagens para dizer do negro como escravo, resiste a essas imagens que significam o negro na história do Brasil. Por enquanto, a imagem de quem é atlântica é o oceano, esse entre-lugar que é também lugar de significação. Ainda não há imagem de rosto humano para significar. Retomando a luta por se dizer do movimento social de mulheres negras, a voz de Beatriz Nascimento em Ori é uma voz feminina em uma narração poética e política que diz de sua trajetória pessoal e da trajetória de todos os negros brasileiros ou mesmo diaspóricos. Essa voz fala muitas vezes do homem como significando todos os homens; não diz “nós mulheres negras”, diz em alguns momentos “eu mulher”, diz do Atlântico como mãe, da terra como mãe, da lua como mulher, da história continente comparada com as paredes de um útero. Aos poucos essa voz constrói a imagem de um lugar de dizer feminino e negro. Figura 09 – Imagens de pessoas no Senegal no filme Ori, de Raquel Gerber (1989). Do mar seguimos para Senegal, e iniciam imagens de pessoas em seus cotidianos. Dizendo sobre a relação entre escravos no tráfico, a voz em off afirma: Ele troca com o outro a experiência do sofrer, a experiência da perda da imagem, a experiência do exílio. É preciso a imagem para recuperar a identidade. Tem que tornar-se visível. Porque o rosto de um é o reflexo do outro, o corpo de um é o reflexo de outro. E em cada um o reflexo de todos os corpos. A invisibilidade está na raiz da perda da identidade. Então eu conto a minha experiência de não ver Zumbi, que para mim era o herói. As imagens mostradas, de pessoas na África, contrastam com a perda da imagem que é narrada. Essa que vai significar a negação do negro como pessoa. Uma negação 129 relacionada ao sofrimento do exilio forçado. A dúvida de quem se é vem na dificuldade de entender essa raiz para além da experiência da escravidão, é o questionamento dos elos de uma origem perdida. Retomar a imagem é necessário para recuperar a identidade. Essa recuperação da imagem é também a reinterpretação da África – A África imaginária de Ori se faz nos encontros que a história produz; é frouxa a linha entre quem copia, quem restaura, quem cria a África. A sequência de imagens agora é em cabeleireiros e bailes Black no Brasil, em diálogos entre os movimentos negros brasileiros, dos Estados Unidos e de outros países das diásporas negras. Destaco a sequência de imagens refletidas no espelho, que em referência a um movimento político que envolve a estética negra, de uma só vez significam as transformações individuais e coletivas que passam pelo corpo, em especial pelo cabelo (no black e nas tranças, nas imagens abaixo). Figura 10 – Imagens de pessoas em cabeleireiros black no filme Ori, de Raquel Gerber (1989). A materialidade da imagem do espelho que, metaforicamente, a um só tempo, é a imagem que o homem e mulher negros têm de si e a imagem que têm deles seus interlocutores (o cabeleireiro e cabeleireira?, quem filma?, quem assiste ao vídeo?, quem lê essa tese?) remete às imagens de si, que são tratadas no capítulo seguinte como formações imaginárias em jogo na interlocução discursiva. As imagens projetadas na interlocução serão relacionadas aos funcionamentos do nós e no eu político de mulheres negras (e, nessa perspectiva, a imagem dos corpos de mulheres negras em afirmação positiva de sua identidade negra será retomada no capítulo 4). Na enunciação política e poética, veremos que a historicidade e memória visitadas neste capítulo comporão estas imagens: o eu e o nós no presente da enunciação atualizam uma rede de memória de sentidos e se significam imaginariamente como continuidade de um passado de lutas de resistência e sofrimentos, de uma experiência em África e nas diásporas. Em suma, nas posições sujeito analisadas, a imagem de quem diz 130 com amor à identidade negra é aquela que lembra com orgulho do passado, das raízes africanas e afro-diaspóricas. 131 ___________________________________________________________________________ Capítulo 3 Mulheres Negras em primeira pessoa: Eu, mulher negra, resisto! ___________________________________________________________________________ 132 Terra azul Céu escuro Fantasmas passam nas ruas Como eu fantasma nua A caminhar A quem procuro? Em que corpo quero estar? Em que cama repousa espírito tão inquieto? Nas rotas de sol em ritmo blues Em remansos passados Em fechados futuros Em furioso silêncio. (Beatriz Nascimento, em Sol e Blues, 1990) Me assusta e acalma ser portadora de várias almas de um só som comum eco ser reverberante, espelho, semelhante ser a boca ser a dona da palavra sem dono de tanto dono que tem. (Elisa Lucinda, em O semelhante, 2007) 133 Lançado em 1988, na III Feira Internacional do Livro Feminista, no Canadá, o livro Eu, mulher negra, resisto, que tem seu nome retomado no título do presente capítulo da tese, é de autoria de Alzira Rufino, poeta e militante da Casa de Cultura da Mulher Negra, em Santos-SP, desde sua fundação88. Na apresentação do livro, ela escreve: Num mundo onde se pede paz através da guerra, onde o ser separou-se do humano, onde a cor separa os direitos, onde as nossas lutas, a luta de nossos líderes, ninguém conhece, onde o negro continua escravo do seu silêncio, escravo do dia-a-dia, essas folhas misturam denúncias, choro, amor, gritos de guerra. Primeiro gerou-se a certeza de fazer o livro. Depois, o conteúdo se fez. E pra quem sabe das coisas eu, mulher negra, resisto. axé a autora O livro tematiza o silêncio e a verbalização, em um mundo onde “o negro continua escravo do seu silêncio” – já era antes do presente da enunciação, pelo pressuposto do verbo “continua”, e o era na escravidão, pelo funcionamento da memória discursiva. Um eu escravo do “seu silêncio” e que foi silenciado. Silenciado por políticas do silêncio com suportes institucionais, principalmente jurídicos, que perpassam séculos da história brasileira, e que também foi escravo de “seu silêncio” pela eficácia ideológica dos discursos dominantes que (re)produzem sentidos de subalternização acerca dos negros e dificultam os processos de subjetivação na resistência. O que não significa que não tenha havido resistência e muitos brados de revolta repletos de palavras e também de silêncios, como procuro argumentar ao longo da tese. Os poemas do livro são “denúncias, choro, amor, gritos de guerra”. De um eu predicado por mulher negra. Mas não só do eu. Em silêncio está “o negro” e diz-se de “nossas lutas”, “nossos líderes”, de um nós negros ou de um nós, negros e negras. As ilustrações da edição trabalham o silenciamento e o dizer pela metáfora de uma boca costurada que aos poucos vai se soltando de suas amarras, até que surja, ao final do livro, o nome próprio da autora como assinatura, de próprio punho, na escrita de si. Eu, Alzira Rufino. 88 Alzira Rufino é uma referência para os movimentos de mulheres negras, feminismo negro e para o movimento feminista brasileiro de modo geral. A organização na qual atua desde sua fundação teve papel histórico nestes movimentos e foi objeto de estudos acadêmicos, como mencionei no primeiro capítulo. O enunciado “eu, mulher negra, resisto”, que nomeia seu livro, figura em manchetes de textos de blogs e também é estampa em camisetas de uma marca gerida por uma mulher negra, Dara Ribeiro. 134 Figura 11 – Capa e imagens do livro Eu, mulher negra, resisto, de Alzira Rufino (1988) O título do livro de Alzira Rufino, suas ilustrações (tanto a capa que tem em primeiro plano uma mulher negra quanto a sequência dos lábios costurados à libertação pelo nome próprio), o funcionamento do eu e do nós, produzindo imaginariamente diferentes recortes referenciais – mulher negra, negros, negras e negros – e dizendo reflexivamente do silêncio e da verbalização, sua saudação (axé!) ao final da apresentação remetem aos temas que percorrerei neste terceiro capítulo, para dar continuidade às reflexões sobre os processos de subjetivação que constituem mulher(es) negra(s) na posição de sujeito de um dizer próprio sobre si no campo dos feminismos e dos movimentos negros. Neste percurso, ainda na temática apresentada no primeiro capítulo a partir das contribuições do feminismo negro sobre o ponto de vista das mulheres negras (BAIRROS, 1995; CARDOSO, 2012; COLLINS, 2000), desloco-me para os estudos da enunciação política, das figuras enunciativas e discursivas nas práticas políticas. Parto dos estudos enunciativos e discursivos do nós político e costuro a este arcabouço a proposição do eu político. Este entrelace se faz em recorrência a poemas e à teoria sobre a literatura negra brasileira, que propõe como uma de suas características o eu-enunciador negro (DUARTE, 2011; EVARISTO, 2009). Esse gesto de leitura aponta para um lugar de enunciação no qual o eu e o nós político se enlaçam na produção de um efeito de singularidade e coletividade. É na possibilidade de enunciar na primeira pessoa do singular, como eu-enunciador, que a mulher negra ocupa o lugar de sujeito de dizer em um processo contraditório, porque remete à homogeneização do comum às mulheres negras, resultante do processo histórico que constrói “as mulheres negras” para afirmar o singular da experiência individual. Em outras palavras, o 135 dizer em primeira pessoa relaciona-se ao silenciamento e projeções imaginárias de quando são faladas pelo outro, em ditos racistas e sexistas que intentam a desumanização, infantilização, afirmação da incapacidade de fala e raciocínio ou do exagero das emoções. Como resistência a esta violência simbólica é que penso o eu mulher negra como eu político. No funcionamento da reflexividade discursiva, neste lugar de enunciação, a imagem de quem diz é construída também pelo o que diz de si. Também porque as projeções imaginárias em jogo na interlocução são parte das condições de produção do discurso e escapam aos sujeitos, sendo que não é necessário que o locutor fale de si para que se projete uma imagem de quem diz. Dizer quem é, apresentar explicitamente quem é e/ou defender as implicações da noção de “local de fala” – eu digo enquanto mulher negra, feminista, paulistana, historiadora –, resulta da interpelação em uma posição sujeito. Com isso, inscrevo a discussão sobre a reflexividade discursiva no quadro da interpelação ideológica, pensando a interlocução discursiva e, mais especificamente, as imagens de si, as projeções imaginárias dos interlocutores, a partir dos postulados de Pêcheux (1969, 1975). Nesse itinerário, passarei pela construção da subjetividade na língua (BENVENISTE, 1967) e pela inscrição do locutor no enunciado, trançando contribuições das teorias da enunciação com a análise de discurso, em diálogo com os estudos sobre as relações étnico/raciais e de gênero. Tais reflexões foram se tecendo na observação e análise do funcionamento da reflexividade metaenunciativa (AUTHIER-REVUZ, 1998), especificamente quando se projetam imagens no discurso de mulher(es) negra(s) que diz(em) de si e de seu lugar de dizer, do silêncio e do dizer, em um corpus heterogêneo, composto por poemas, textos teóricos, apresentações de livros de autoras negras, produzidos dos anos 1980 aos dias de hoje. Minhas análises perpassarão os poemas resisto e resgate de Alzira Rufino (1988); o poema Vozes-Mulheres, de Conceição Evaristo (2008); recortes do texto Identidade Feminina, da filósofa Sueli Carneiro (1989) no Caderno Geledés; da introdução do livro Mulheres negras na primeira pessoa, de Jurema Werneck, Nilza Araci e Simone Cruz (2012); do prefácio de Jurema Werneck (2012) ao livro Outras Mulheres – mulheres negras brasileiras ao final do século XXI. Dizer das mulheres negras na primeira pessoa desde o nós mulheres negras e/ou o eu mulher negra é uma tomada de posição e contraidentificação aos sentidos dominantes de mulheres negras (ou dito de outro modo, aos sentidos de mulheres negras nos discursos dominantes) e ao fato de as mulheres negras terem sido majoritariamente ditas por outros e de terem sido silenciadas. Assim tornar sujeito da própria fala ou falar por si são expressões 136 que marcam na materialidade da língua lutas pelo dizer e significar: lutas por um lugar de enunciação reconhecido socialmente e de ampla circulação para discursos que pretendem contestar os discursos dominantes As formações imaginárias integram a interlocução discursiva que analiso sob os funcionamentos do nós político e eu político. Meu objetivo é discutir a relação entre formações imaginárias, posições sujeito e a significação dos corpos na enunciação política e na interlocução discursiva no funcionamento da reflexividade discursiva Discuto, então, o modo como as lutas antirracistas elegem como uma de suas táticas o combate à política do silêncio (ORLANDI, 1993) em seu caráter de violência usurpadora da humanidade do ser, atrelando-a à luta pelo dizer, pela palavra, por voz, uma luta para o sujeito se significar. O silenciamento é objeto de denúncia na luta para se dizer na primeira pessoa, para ser sujeito de dizer – que aqui estou tratando como a luta pela legitimidade, credibilidade e circulação do dizer, nos marcos das noções de lugar de enunciação (ZOPPI FONTANA, 2002) e palanque enunciativo (FONSECA, 2013), bem como da luta por representação (SPIVAK, [1985] 2010), que articula o falar por e o dizer de si. Não perco de vista que o dizer de si é também dizer do/sobre o outro. Como tenho argumentado na tese, desde sua introdução, há interpretações no campo dos feminismos (na militância e na produção teórica) de que a mulher negra fala pela primeira vez nos anos 1970/80 ou, pelo menos, que fala pela primeira vez na política. No entanto, o nós mulheres negras diz de um passado, de “passos que vêm de longe”, de um caminho silenciado, mas que foi trilhado (e no caminho mulheres ensinaram a outras como caminhar). Diz do silêncio, de um silêncio saturado de palavras de outrem. Um silêncio tão cheio de palavras e sentidos que faz com que sejam inaudíveis as vozes das mulheres negras. Um silêncio que se conjuga à invisibilização ou superexposição, que lhes faz inexistentes no que são. Silêncio e invisibilidade se repetem para dizer do lugar ocupado pelas mulheres negras, do lugar a ser transformado, de um passado que se projeta como aposta para o futuro quando o nós se dirige no presente da enunciação a “outras mulheres negras”, às “novas gerações”, às “meninas negras” ou a “seja quem for” (entre aspas expressões da apresentação do livro Mulheres Negras em Primeira Pessoa, em análise a seguir). Procuro, então, estabelecer nexos entre voz e visibilidade, por um lado, e silêncio e invisibilidade, por outro. O capítulo inicia com uma reflexão acerca do silêncio e do silenciamento, em diálogo com o trabalho das analistas de discurso Eni Orlandi (1993) e Ana Josefina Ferrari (2008), e da escritora afro-americana Audre Lorde (1977). Depois, apresento brevemente a noção de condições de produção e interlocução discursiva (PÊCHEUX, 1969, 1975; INDURSKY, 137 1997) para sustentar as reflexões sobre o eu e o nós político, bem como para precisar algumas das relações entre locutor e sujeito do discurso implicadas nas noções de lugar de enunciação (ZOPPI-FONTANA, 2002) e palanque enunciativo (FONSECA, 2013). Em seguida, apresento teoricamente questões sobre o nós político para então me aprofundar nas análises centradas no funcionamento da reflexividade metaenunciativa (AUTHIER-REVUZ, 1997), no eu e nóspolítico, na tematização do silêncio e do dizer que dão contornos ao lugar de enunciação de mulheres negras. 3.1 O silêncio ruidoso chamado racismo e as lutas pela palavra Que palavras ainda lhes faltam? O que necessitam dizer? Que tiranias vocês engolem cada dia e tentam torná-las suas, até asfixiar-se e morrer por elas, sempre em silêncio? Talvez para algumas de vocês hoje, aqui, eu represento um de seus medos. Porque sou mulher, porque sou negra, porque sou lésbica, porque sou eu mesma – uma poeta guerreira negra fazendo seu trabalho. Pergunto: vocês, estão fazendo o seu? [...] O fato de estarmos aqui e que eu esteja dizendo essas palavras, já é uma tentativa de quebrar o silêncio e estender uma ponte sobre nossas diferenças, porque não são as diferenças que nos imobilizam, mas o silêncio. E restam tantos silêncios para romper! (LORDE, 1977). Como podemos compreender o silêncio de que falam as mulheres negras em sua luta pelas palavras e pelos sentidos? Como compreender as lutas do sujeito para se significar na relação com os processos históricos de silenciamento? Retomando as análises já realizadas até aqui, há a denúncia do silêncio da historiografia sobre a participação de mulheres negras na construção do Brasil e das lutas negras, de sua trajetória própria desde a África. Um silêncio que se relaciona à invisibilidade ou à supervisibilização, que seria mostrar o mesmo, o repetido, o estereótipo (na historiografia, na publicidade, na televisão, no cinema, na literatura...) na tensão nunca estável de reprodução dos sentidos dominantes. Um silêncio, portanto, que não é a ausência total de palavra; é a ausência de determinadas palavras significadas de um modo com o qual se identifiquem as mulheres negras em luta. É presença menos audível de palavras de mulheres negras; é presença maciça de palavras proferidas desde a posição de dominação. É presença menos audível de sentidos produzidos desde posições sujeito de resistência à dominação ideológica; é presença maciça de sentidos produzidos desde posições sujeito racistas patriarcais heterossexistas e cissexistas. Para contribuir com esta reflexão, recorro ao estudo fundamental sobre o silêncio na Análise de Discurso. Trata-se do livro As formas do silêncio – no movimento dos sentidos, de Eni Orlandi ([1992] 2007). Tendo como fio condutor do livro a apresentação dos sentidos do silêncio, a autora já na introdução de seu livro assinala que 138 o mais importante é compreender que: 1) há um modo de estar no silêncio que corresponde a um modo de estar no sentido e, de certa maneira, as próprias palavras transpiram silêncio. Há silêncio nas palavras; 2) o estudo do silenciamento (que já não é silêncio, mas “pôr em silêncio”) nos mostra que há um processo de produção de sentidos que nos faz entender uma dimensão do não-dito absolutamente distinta da que se tem estudado sob a rubrica do “implícito” (ORLANDI, [1992] 2007: 11-12). A primeira característica corresponde à proposta da autora de produzir uma teoria positiva do silêncio; não do silêncio como falta, ou como algo que complemente a linguagem ou precise ser transformado em linguagem verbal para significar e sim como condição do significar. A segunda, que a princípio é mais produtiva para meu trabalho, liga o não-dizer à história, à ideologia e detém-se na política do silêncio, no silenciamento como limitante do sujeito no percurso de sentidos, como modo de apagar sentidos, de produzir o não-sentido onde ele mostra algo que é ameaça. O silenciamento é visto como alargamento da noção de censura, uma “estratégia política circunstanciada em relação à política dos sentidos: é a produção do interdito, do proibido” (ORLANDI, 1992: 75), sendo que se proíbem palavras com o objetivo de se proibirem sentidos. No caso das classes e grupos dominantes no Brasil e sua relação com o Estado, não está estabelecida uma política do silêncio direcionada às mulheres negras diretamente definida pela censura89, pela interdição do dizer instituída e regulamentada. Entretanto, há uma política do silêncio pelo fato de os discursos dominantes apagarem sentidos possíveis e indesejáveis para o rompimento do status quo, de seus privilégios de classe-gênero-raça assim como a divisão social e material da enunciação não possibilita que todos ocupem os mesmos lugares de poder-dizer, seja na universidade, no legislativo, nos meios de comunicação, na literatura etc. A exclusão do não-dito constitutiva do dizer, no discurso dominante (que domina a circulação), apaga os sentidos de formações discursivas que não componham a formação ideológica dominante. Seguindo com a autora, “como, no discurso, o sujeito e o sentido se constituem ao mesmo tempo, ao se proceder desse modo se proíbe ao sujeito ocupar certos “lugares”, ou melhor, proíbem-se certas posições do sujeito” (ORLANDI, 1992: 76). Nesta perspectiva, penso ao menos duas facetas do silenciamento de mulheres negras: a 89 Esta afirmação não apaga gestos de censura efetiva pelo Estado, a exemplo do poema Quadrilha, de Lívia Natalia, que foi publicado em outdoor em Itabuna-BA, como parte integrante do projeto “Poesias nas Ruas” (aprovado pelo Fundo de Cultura do Estado da Bahia) e censurado em seguida por criticar os assassinatos perpetrados pela polícia militar. Cf. A gente não suporta chacina. A gente quer poesia, justiça e liberdade, de Cidinha da Silva (2016), em http://www.revistaforum.com.br/2016/01/15/a-gente-nao-suporta-chacina-a-gentequer-poesia-justica-e-liberdade/ 139 da interdição de que ocupem certos “lugares” legitimadores dos discursos e a da profusão de ditos de outros que as superexpõem e simultaneamente invisibilizam-nas como sujeitas de dizer pela formulação e circulação de imagens que não correspondem àquelas com que mulheres negras se identificam em posições de resistência aos discursos dominantes. Em uma síntese de resultados de um estudo sobre os lugares de brancos e negros na mídia brasileira, Paulo Vinicius da Silva e Fúlvia Rosemberg (2008) apresentam o silenciamento como uma de suas particularidades, ao lado da negação ao direito à existência do negro com a eleição do branco como representante da espécie e da estereotipia na representação do homem e da mulher negra. O silenciamento dos discursos dominantes acerca das desigualdades raciais é interpretado como uma constante, sendo que “o silêncio exerce duplo papel: o de negar os processos de discriminação racial, buscando ocultar a racialização das relações sociais, ao mesmo tempo em que propõe uma homogeneidade cultural ao brasileiro” (SILVA, ROSEMBERG, 2008:82), ou seja, apaga pela afirmação do nacional as diferenças e desigualdades étnico-raciais. Pode-se pensar que esta política do silêncio nos diversos veículos midiáticos se repete em outros campos, como os discursos da história, a literatura e outros que constroem a imagem de Brasil como país da democracia racial, apesar das iniciativas dos movimentos negros, indígenas e de outras vozes que denunciam as desigualdades étnico-raciais. Voltarei ao tema da estereotipia e das lutas por ressignificação dos discursos dominantes e de defesa de outras rotas de sentidos desde a África no próximo capítulo. No quadro da discussão sobre o político na linguagem, Orlandi detém-se acerca do silenciamento: “Aí entra toda a questão do “tomar” a palavra, “tirar” a palavra, obrigar a dizer, fazer calar, silenciar etc.” (ORLANDI, [1992] 2007: 29). Prosseguindo em sua reflexão, compreende que, em face de sua dimensão política, o silêncio pode ser considerado na relação da retórica da dominação, da opressão, e da retórica do oprimido, da resistência. Portanto, tomando os discursos dominantes da historiografia sobre a construção do Brasil e da brasilidade, em contradição com os discursos dos movimentos feministas e antirracistas nos quais se inserem os lugares de enunciação de mulheres negras que analiso na tese, penso seus discursos como retórica da resistência. Nesta retórica da resistência, o silêncio é tematizado como falta de voz e de sentidos próprios ou legítimos para a posição desde a qual se quer romper o silêncio, tomar a palavra, apropriar-se da palavra. Faço um empréstimo de expressões da linguagem corrente para tematizar as relações silêncio-palavra, citadas pela autora para deixar de pensar o silêncio como falta e passar a pensar a linguagem como 140 excesso, considerando que nosso imaginário social destinou um lugar subalterno ao silêncio. Para ela, tais expressões significam a palavra como excesso, dado que se opõem a estar em silêncio, guardar o silêncio, ficar em silêncio (ORLANDI, [1992] 2007: 31, grifos da autora). Compreendo que, na retórica da opressão, em geral o silêncio é oposto à linguagem e à ação, e estas são significadas como positivas em oposição ao primeiro. Ana Josefina Ferrari (2008) contribui para uma reflexão sobre a resistência às políticas do silêncio em sua tese de doutorado que toma como corpus anúncios de fuga de escravos publicados em jornais de Campinas entre 1870 e 1876. A analista do discurso e semanticista mostra, com especial atenção para o nome próprio e para a descrição, como através da voz do dono de escravos se forma uma imagem pública e singular do escravizado. Ela afirma o caráter inesperado e contraditório dos anúncios, pelos processos discursivos que constituem o escravo como objeto da propriedade do dono que o reclama ao mesmo tempo em que o constituem como sujeito singular, em suas relações consigo mesmo e com outros membros de sua comunidade. “Esses anúncios informavam o nome do fugitivo e descreviam suas características físicas e pessoais. Em alguns casos, os que nos ocupam, mencionavam outro nome próprio: aquele que o escravo dava a si mesmo” (FERRARI, 2008: 24). A autora, bem como outros teóricos e teóricas acionados nesta tese, se opõe à historiografia tradicional que apresenta os negros e negras escravizados como passivos. Definindo a fuga como resistência na perspectiva de Foucault, observa a articulação das relações de poder e do processo de subjetivação dos escravos em uma sociedade que os considera objeto de direito no discurso da lei e argumenta que esse processo de subjetivação se discursiviza na imprensa por meio do anúncio de fuga. Em suas palavras: Os senhores submetiam os escravos ao seu poder, através de diferentes modos de controle e elaboravam-se estratégias para a manutenção desse sistema, porém os escravos resistiam e procuravam não serem sujeitos AO dono e sim sujeitos à sua própria identidade, e uma das estratégias para atingir tal fim era a fuga. A fuga que era escrita nos jornais pelos próprios donos. Paradoxalmente, chega-nos até hoje, relatada pela boca do dono através da escrita no jornal, a constituição do escravo como sujeito à própria identidade. Chega até nós à escrita (descrita) de uma estratégia de resistência tenaz (FERRARI, 2008: 242). Na concepção de Ferrari (2008), em cada pequeno anúncio, uma história sobre gestos cotidianos de liberdade que dizem não somente sobre o escravo que fugiu, pois muitas outras singularidades não apreendidas e inapreensíveis fugiram com ele. “Aqueles que foram condenados ao silêncio sem juízo prévio não conseguiram ser silenciados. A força de sua luta transparece a cada linha, em cada anúncio de fuga” (FERRARI, 2008: 258). E o que escapou 141 à dominação permite entender movimentos de sentido – nos enunciados e nos silêncios – na atualidade, quando remontamos sua historicidade, os trajetos de sentidos e as continuidades e rupturas das políticas de silêncio instituídas desde a dominação. Seu trabalho reforça a afirmação de que a reprodução das classes, ideologia e discursos dominantes se dá em luta, com as resistências, os deslocamentos, o que falha, os sentidos que não podem ser apreendidos e escapam. O silenciamento, portanto, nunca é total. Diz-se diferentemente, se diz depois, se diz escondido, se diz e se guarda o dito. Os silêncios também significam e têm sua historicidade, podendo irromper em palavras no futuro do dizer ou em outras formas de linguagem, nos corpos, nos cabelos, nas roupas, na percussão, na dança, teatro, performances, nos cantos religiosos, entre outros. Afirmar sobre os discursos de mulheres negras sobre o silêncio, como retórica da opressão, e negar o silenciamento total, não implica negar a resistência silenciosa, individual e coletiva; o silêncio tático ou a cumplicidade do silêncio no encontro dos olhares, o não dizer quando se espera resposta, o calo agora, mas te pego no momento certo – para citar alguns exemplos. Não implica negar os sentidos do silêncio enquanto matéria significante diferente da linguagem verbal e não verbal, conforme propõe Orlandi (1992: 31-33). Nem tampouco ficar presa ao efeito de evidência do silêncio, seja ele produzido desde a retórica da resistência – quando se diz do silêncio do passado ou do silêncio a se romper – ou dos discursos que objetificam os negros e negras, atacando sua humanidade, em imagens repetidas do seu silêncio e de sua dor. Enfim, busco uma posição que considere a resistência e trajetória histórica dos dizeres e saberes de mulheres negras, apesar da violência da dominação desde o colonialismo e o escravismo aos dias de hoje. O texto principal no qual me apoio para a reflexão sobre o discurso de mulheres negras acerca do silêncio é a importante contribuição de Audre Lorde (1977): A transformação do silêncio em linguagem e ação 90. Escrito para uma comunicação em um painel intitulado “Lésbicas e literatura”, depois da poeta ter vivido a experiência de um tumor de mama e tomar “consciência da própria mortalidade”. Ela aborda, então, o silêncio em oposição ao medo e à dor, medo da autorrevelação e da visibilidade implicadas no dizer e no agir, quando a história é de invisibilização ou de distorção da visão por conta dos efeitos de 90 A versão do texto que cito não está paginada. Ela foi publicada em 2015 no portal da organização Geledés e também está disponível em blogs de outras organizações de mulheres negras, o que mostra sua circulação ainda na atualidade e sua referência para determinadas mulheres negras em luta nos dias de hoje (disponível em: http://www.geledes.org.br/a-transformacao-do-silencio-em-linguagem-eacao/#gs.3166ad574ee04f4db647097658ad93a7). 142 despersonalização do racismo (LORDE, 1977). Deve-se romper e quebrar o silêncio significado como não-linguagem ou como não-dito visto desde a linguagem, em consonância com uma visão de primazia do verbal, e então transformá-lo em linguagem e ação. Seria, portanto, o silêncio a matéria prima que se transforma em resistência sussurrada, gritada, discursada em encontros políticos, escrita em versos...? Em várias passagens do texto, se diz desde um eu sobre a experiência individual – do silêncio, da tentativa da palavra, da doença e de sua superação, dos valores da celebração de Kwanza em sua casa, do diálogo estabelecido com sua filha sobre o tema de sua comunicação. O silêncio é ativo, movimenta-se, faz-se incômodo, violenta quem o abriga dentro de si. Acompanhemos este diálogo: minha filha, quando falei de nosso tema e de minhas dificuldades, me disse: “Fala para elas de como nunca se é uma pessoa inteira se guardas silêncio, porque esse pedacinho fica sempre dentro de ti e quer sair, e se segues ignorando-o, ele se torna cada vez mais irritado e furioso, e se nunca o deixar sair um dia diz: basta! e te dá um soco dentro da boca” (LORDE, 1977). Parafraseio o texto de Lorde (1997) no que trata do silêncio como excesso de forma a personificá-lo: quando guardado, quer sair e torna-se furioso e irritado. Não se pode ignorá-lo. O silêncio diz basta e dá um soco dentro da boca! Ele está dentro de cada uma das mulheres. Neste texto, diz-se menos dos processos de silenciamento do que de como é vital transformá-lo em linguagem a favor das mulheres silenciadas. Voltemos às primeiras frases do texto: Muitas vezes penso que preciso dizer as coisas que me parecem mais importantes, verbalizá-las, compartilhá-las, mesmo correndo o risco de que sejam rejeitadas ou mal-entendidas. Mais além do que qualquer outro efeito, o fato de dizê-las me faz bem (LORDE, 1977). Dizer, verbalizar e compartilhar é preciso. Falar verdades fortalece, a despeito dos mal entendidos e rejeições das palavras ditas. Por sua vez, o silêncio não protege, mesmo que se morra com ele. Não dizer é estar quieta, emudecida, calada como se engarrafada. Dito pela autora, desde um múltiplo eu poeta negra lésbica que instaura vocês, outras mulheres, e diz de nós, mulheres, nos sobrepondo a nossas diferenças, pois para ela, mais do que as diferenças, o que divide as mulheres é o silêncio: Meus silêncios não tinham me protegido. Tampouco protegerá a vocês. Mas cada palavra que tinha dito, cada tentativa que tinha feito de falar as verdades que ainda persigo, me aproximou de outras mulheres, e juntas examinamos as palavras adequadas para o mundo em que acreditamos, nos sobrepondo a nossas diferenças. [...] Podemos nos sentar num canto e 143 emudecer para sempre enquanto nossas irmãs e nossas iguais são desprezadas, enquanto nossos filhos são deformados e destruídos, enquanto nossa terra está sendo envenenada, podemos ficar quietas em nossos cantos seguros, caladas como se engarrafadas, e ainda assim seguiremos tendo medo (LORDE, 1977). O silêncio é estar com o medo, em nossos cantos, sozinhas (“No silêncio, cada uma de nós desvia o olhar de seus próprios medos”) e se contrapõeao compartilhar as palavras adequadas para o mundo que acreditamos, que não é aquele do desprezo, deformação, destruição dos nossos irmãos, irmãs, de nossa terra. A utopia coletiva – o mundo que acreditamos – precisa das palavras comuns. Não adianta se trair e esperar que outras falem (“Só havia traído a mim mesma nesses pequenos silêncios, pensando que algum dia ia falar, ou esperando que outras falassem”). Cada uma deve romper o seu silêncio, o seu medo, para sua autorrevelação, que é nossa: das mulheres negras e de todas as mulheres (neste texto de Audre Lorde). A intelectual-ativista-poeta diz então de um compromisso compartilhado com a linguagem e com o seu poder, concluindo: “Na transformação do silêncio em linguagem e em ação, é de uma necessidade vital para nós estabelecer e examinar a função dessa transformação” (LORDE, 1977). Como já disse, a tematização da relação com a palavra e com o silêncio atravessa décadas dos discursos de mulheres negras. E o silêncio não é significado de uma só maneira nestes discursos, apesar de regularidade de que se deve rompê-lo, de que ele foi imposto, de que ele se opõe à liberdade de dizer, de ser, de significar. Muitas vezes, dizer é significado como existir de forma plena, exercer a autorrepresentação, saber quem se é, ter uma identidade. O chamado a dizer é o chamado à organização política e à insurgência. O dizer é a política, a política é a arena da disputa entre palavras. O silêncio é a não-participação desta arena, a não representação, o jugo. 3.2 Interlocução discursiva, posições sociais e imaginárias Parece-me oportuno situar as noções de condições de produção e interlocução discursiva no discurso para discutir os modos como se projetam as imagens de mulheres negras como sujeitas de seu dizer em oposição a sua posição com objeto do dizer de outras vozes91. Nas formulações em Análise de Discurso, estas projeções imaginárias são constituídas historicamente e não dependem simplesmente da vontade ou das estratégias 91 Escrevi parte deste tópico com base no capítulo teórico de minha dissertação de mestrado. 144 argumentativas dos interlocutores, apesar de o enunciador tomar posição sobre seus enunciados, como vemos nos enunciados reflexivos de mulheres negras. A proposição de condições de produção do discurso significa uma ruptura epistemológica levada a cabo por Pêcheux (1969a: 74) em relação à teoria linguística de sua época. Para esta última, o contexto situacional era “pano de fundo específico dos discursos”. Por sua vez, Pêcheux (1969) compreende que as relações de força internas a uma formação social integram o mecanismo de colocação dos protagonistas e do objeto do discurso, sendo constitutivas de suas condições de produção. Poderia, então, pensar que as relações de força da luta gendrada e racializada de classes em sua historicidade e heterogeneidade – pois “o discurso se conjuga sempre com um discurso prévio, ao qual ele atribui o papel de matéria prima” (Idem: 77) – constituem as condições de produção dos discursos em análise. O orador sabe que quando evoca um acontecimento que já foi objeto de discurso produz um efeito no ouvinte, ou seja, experimenta, de certo modo, o lugar do ouvinte a partir do seu próprio lugar de orador: “esta antecipação do que o outro vai pensar parece constitutiva de qualquer discurso” (Idem: 77). Na proposta de Pêcheux (1969a), o discurso é concebido como “efeito de sentidos” entre interlocutores (A e B), sendo que A e B definem-se na relação que estabelecem entre si. Portanto, a “mensagem” não é prévia. Para a AD, o “referente” (R) é construído (é um objeto imaginário), a materialidade significante afeta o sentido (o “código” não é instrumental), assim como sua circulação (entendida como “canal”, na teoria comunicacional). O mecanismo das CP é tomado como o funcionamento de projeções imaginárias de “lugares determinados na estrutura de uma formação social” em jogo nos processos discursivos: “o que funciona nos processos discursivos é uma série de formações imaginárias que designam o lugar que A e B atribuem a si e ao outro, a imagem que eles se fazem de seu próprio lugar e do lugar do outro” (Idem: 77). As formações imaginárias integram a interlocução discursiva que analiso sob os funcionamentos do nós político e eu político. Na construção de um locutor coletivo, há a projeção imaginária de elementos de saber que conformam esse coletivo e o objeto de que fala, em outras palavras, dão cara a um sujeito de um dizer significado como coletivo. Nessa perspectiva, as imagens dos interlocutores e do referente dizem do locutor coletivo. Abaixo, dois quadros elaborados pelo próprio Pêcheux (1969a: 83) ilustram estas relações: 145 Expressão que designa as FI* A B Significação da expressão Questões implícitas cuja “resposta” subentende a FI correspondente IA (A) Imagem do lugar de A para o “Quem sou eu para lhe falar assim?” sujeito colocado em A IA (B) Imagem do lugar de B para o “Quem é ele para que eu lhe fale sujeito colocado em A assim?” IB (B) Imagem do lugar de B para o “Quem sou eu para que ele me fale sujeito colocado em B assim?” IB (A) Imagem do lugar de A para o “Quem é ele para que me fale assim?” sujeito colocado em B Questão implícita cuja “resposta” subentende a formação imaginária correspondente “Ponto de vista” de A sobre R “De que lhe falo assim?” Expressões que designam as FI A IA (R) Significação da expressão B “Ponto de vista” de B sobre R “De que ele me fala assim?” IB (R) *FI: Formação(ões) Imaginária(s) Em um texto posterior, Pêcheux (1975: 171) procura afastar qualquer leitura da noção de formações imaginárias como proposta psicologizante. O autor admite formulações ambíguas presentes no texto de 1969 em torno do termo condições de produção, que “designava ao mesmo tempo o efeito das relações de lugar nas quais se acha inscrito o sujeito e a situação no sentido concreto e empírico do termo, isto é, o ambiente material e institucional, os papéis mais ou menos conscientemente colocados em jogo, etc.” (Idem: 171). A confusão das relações de lugar do discurso com o jogo de espelhos de papéis interiores a uma instituição teria sido decorrente da ausência de uma teoria do imaginário localizado em relação ao real. Segundo Pêcheux (1975), faltava uma teoria não-subjetiva da constituição do sujeito do discurso e de seu assujeitamento que explicasse a aparente contradição de que o sujeito não é origem dos processos discursivos e, no entanto, eles se realizam necessariamente nesse sujeito. Pêcheux (1975: 150) avança em suas formulações, relacionando o processo de interpelação ideológica à identificação do sujeito com a formação discursiva que o domina e com a sustentação de seu dizer por elementos do interdiscurso. Sobre este ponto, afirma que a interpelação do indivíduo em sujeito de seu discurso se efetua pela identificação (do sujeito) com a formação discursiva que o domina (isto é, na qual ele é constituído como sujeito): essa identificação, fundadora da unidade (imaginária) do sujeito, apoia-se no fato de que os elementos do 146 interdiscurso (... enquanto “pré-construído” e “efeito de sustentação”) que constituem, no discurso do sujeito, os traços daquilo que o determina, são reinscritos no discurso do próprio sujeito (Idem, grifos do autor). A reinscrição dos elementos do interdiscurso, enquanto lugar de constituição do pré-construído, no fio do discurso (no intradiscurso de uma sequência discursiva), remete aos objetos do discurso que se apresentam ao sujeito como evidências pelo esquecimento constitutivo do movimento de identificação desse sujeito com a FD que o afeta. Desta forma, “o ‘pré-construído’ corresponde ao ‘sempre-já-aí’ da interpelação ideológica que forneceimpõe a ‘realidade’ e seu ‘sentido’ sob a forma da universalidade (o ‘mundo das coisas’)” (Idem: 151, grifos do autor) e, por sua vez, “o ‘fio do discurso’ do sujeito é, a rigor, um efeito do interdiscurso sobre si mesmo, uma ‘interioridade’ inteiramente determinada como tal do ‘exterior’” (Idem: 154). Nesta perspectiva, há, portanto, um descentramento do sujeito e historicização do sentido: “sujeito e sentido se constituem reciprocamente em relação a uma (ou várias) FD(s), dentro da(s) qual(is) ambos são produzidos como efeitos, efeito de sentido e efeito-sujeito” (ZOPPI FONTANA, 1997: 35). O sujeito como fonte e origem do dizer e do sentido é deslocado e substituído definitivamente na teoria do discurso com a teoria das ideologias e o atravessamento de uma teoria psicanalítica, pois o sujeito é determinado ideologicamente por formações discursivas que o precedem e excedem e dentro das quais se constituem posições sujeito que permitem seu dizer. Essa determinação ideológica também acomete o sentido, que é produzido nos processos discursivos em que as formações discursivas se relacionam. Em outras palavras, “o ‘sentido’ de uma sequência só é materialmente concebível na medida em que se concebe essa sequência como pertencente necessariamente a esta ou àquela formação discursiva (o que explica, de passagem, que ela possa ter vários sentidos)” (PÊCHEUX, FUCHS, 1975: 169). Por conta das críticas e autocríticas da noção de formação imaginária, o próprio Pêcheux abandonou esta formulação. A imbricação estabelecida entre discurso e a teoria das ideologias contribuiu para que as condições de produção fossem pensadas pelos teóricos da Análise de Discurso a partir da relação entre formações discursivas e formações ideológicas. Negada a liberdade, consciência e intencionalidade do locutor como determinantes do sentido, com base em uma teoria do assujeitamento ideológico que constitui o sujeito do/no discurso, não se pode apagar a intervenção do imaginário acerca das posições sociais na interlocução. Nos quadros que representavam as relações imaginárias de interlocução, Pêcheux (1969a) não incluiu a presença eventual de um personagem terceiro em uma situação de 147 diálogo, apesar de prevê-lo como protagonista do discurso. A análise do lugar do terceiro no discurso é especialmente importante no discurso político, para se pensar o adversário político, por exemplo, mas também outros interlocutores que muitas vezes não estão explicitamente participando da interlocução. Para esta reflexão, assumo a partir de Indursky (1997: 137) dois níveis de interlocução, a enunciativa e a discursiva: enquanto as figuras dos interlocutores da cena enunciativa representam-se com clareza, o mesmo não ocorre com a interlocução discursiva. Nela, o sujeito do discurso e o outro podem apresentar-se de modo indeterminado. Para examinar essa relação, faz-se necessária a análise da interlocução discursiva, pois é nesse nível que tais figuras trabalham, instaurando interlocuções menos explícitas, entre interlocutores, na maior parte das vezes, indefinidos ou indeterminados. Este segundo nível caracteriza-se por uma interlocução opacificada que propicia a instauração da cena discursiva. [...] Nesta segunda instância de interlocução, o sujeito do discurso, ao interpelar o outro, pouco definido e até ausente, instaura a cena discursiva, que não é espacialmente definida pelo espaço físico em que a alocução está ocorrendo nem pela presença física do interlocutor. A cena discursiva remete para o cenário discursivo que não possui materialidade física e que é mobilizado pelo imaginário social do sujeito do discurso (grifos da autora). No caso dos denominados movimentos indentitários, feminismos da diferença, movimentos antirracistas, movimentos negros, as imagens de quem diz são fundamentais para a constituição e legitimação do dizer. Constituem-se novos lugares de dizer na história nesses movimentos coletivos que projetam um imaginário determinado de quem diz com base em experiências, histórias, modos de vida, cultura, discriminações e lutas comuns. Assumindo que não se trata de um sujeito de dizer consciente, centrado, único, completo, admite-se que, na interlocução discursiva, as imagens dos protagonistas do discurso participam das representações do sujeito do discurso e do outro. Amossy (2005: 09), em seu livro intitulado Imagens de si no discurso – a construção do ethos, argumenta que “todo ato de tomar a palavra implica a construção de uma imagem de si”, sendo que “deliberadamente ou não, o locutor efetua em seu discurso uma representação de si”. Mesmo que a noção de ethos, que remonta a construção da imagem de si para o sucesso da oratória na retórica antiga, difira daquela de formação imaginária, compreendo que elas podem ser aproximadas por tratarem das imagens do interlocutor no discurso. O faço para considerar a apresentação da autora sobre os modos como os “estudos culturais” mobilizam a noção de ethos em uma nova perspectiva, situando-o no centro dos problemas de gênero e da etnicidade. Partindo do pressuposto de que a natureza do eu e de suas representações na linguagem foram questionadas por teorias ligadas à psicanálise, ao marxismo ou à desconstrução, estes estudos consideram os debates em torno do sujeito, da 148 ideologia e da escritura quando se propõem a pensar o ethos discursivo em sua indissociabilidade com um posicionamento político. Nas palavras da autora: “trata-se de ver como pode se instaurar um ethos discursivo que contribua para constituir uma fala de mulher ou, ainda, a de um ‘subalterno’” (AMOSSY, 2005: 23). Como enfatizei no primeiro capítulo, a organização política de mulheres negras no feminismo lança a questão para todas as feministas não-negras, e especialmente para as brancas, que nas relações étnico-raciais brasileiras ocupam uma posição de dominação: “quem são vocês pra dizer isso sobre mim?” (aqui na interpelação direta com o emprego do pronome vocês). Uma questão que pode ser formulada quando na interlocução discursiva se projeta um sujeito coletivo como protagonista do discurso que reivindica seu lugar de dizer como aquele legítimo para dizer de si, em um atrelamento do lugar social de quem diz com a experiência, o conhecimento que tem do que diz, do quanto o que diz pode ser considerado crível, verdadeiro, etc. Algo que, no caso da violência étnico-racial e da resistência antirracista poderia ser parafraseada por “quem sente na pele é quem sabe o que é ser o que sou e é quem pode dizer sobre isso”. Aproximo esta reflexão dos apontamentos de Gayatri Spivak ([1985] 2010) em Pode o subalterno falar?92, quando distingue dois sentidos do termo representação (em alemão, haveria duas palavras diferentes, vertretung e darstellung): o primeiro se referiria ao ato de assumir o lugar do outro na política – a representação como “falar por” – e o segundo, como aparece na arte ou na filosofia, “re-presentar” (SPIVAK, [1985] 2010: 32). Ser representado pelo outro é tanto ser falado pelo outro como ser falado pelos sentidos do outro (de outra posição sujeito). Por esta formulação da autora, o que a retórica da resistência muita vezez nomeia como silenciamento, como o não poder falar, seria esse sistemático ser falado pelo outro. Desde a Análise de Discurso, em uma posição afastada das teorias do ato de fala, adoto discurso como o efeito de sentido entre interlocutores, que são sujeitos do/no discurso. A interlocução em foco não é a empírica, mas a interlocução discursiva como jogo imaginário, no qual as posições sociais são projetadas como imagens no discurso. Na interlocução discursiva, as duas acepções de representação estão em jogo: o poder falar relacionado às possibilidades históricas, sociais e políticas de se autorrepresentar e o poder 92 Nas palavras da autora, neste livro ela pretende se deslocar de “uma crítica aos esforços atuais do Ocidente para problematizar o sujeito, em direção à questão de como o sujeito do Terceiro Mundo é representado no discurso ocidental” (SPIVAK, ([1985] 2010: 20). Trata-se de um trabalho que não poupa a produção intelectual ocidental, vista muitas vezes como cúmplice dos interesses econômicos internacionais ocidentais. 149 falar (e ser ouvido) sem a mediação da voz de outrem, sem que outro fale por ou ainda sem que haja mediação do discurso dominante. A partir do debate proposto por Spivak, proponho que a luta pela palavra e pela imagem de si tem estas duas facetas, sendo que, por vezes, se produz como efeito sua sobreposição: o dizer sem a mediação da palavra de outro significando a representação do que se é como verdade, apagando o necessário imaginário que funciona em ambas as acepções. No eu, a coincidência do ego com o pronome eu é efeito imaginário fundante da subjetividade; no nós, já há mediação da voz do outro, mesmo que da voz dos que são significados como iguais ou como o mesmo; e a construção dos sentidos de todos os objetos discursivos diz dos embates ideológicos, da relação de forças entre sentidos 93. 3.2.1 A noção de lugar de enunciação Mobilizo a noção de lugar de enunciação para pensar os efeitos produzidos por uma enunciação em relação ao lugar a partir do qual é proferida e, ainda, a relação deste lugar com um mecanismo estrutural do qual retira sua eficácia. Procuro apreender a relação entre funcionamentos enunciativos com o fundamento discursivo da representação política. Com base no trabalho de Zoppi Fontana (2002: 16), compreendo que a problemática abordada através da noção de lugar de enunciação poderia ser resumida como “uma reflexão sobre a divisão social do direito de enunciar e a eficácia dessa divisão e da linguagem em termos da produção de efeitos de legitimidade, verdade, credibilidade, autoria, circulação, identificação, na sociedade” (grifos da autora). A noção de lugar de enunciação é inserida “no quadro teórico da figura da interpelação e considerando o processo de constituição do sujeito do discurso nas relações de identificação estabelecidas com a forma-sujeito e as posições sujeito definidas nas FD que o afetam” (ZOPPI FONTANA, 2002: 18). Esta noção propicia a reflexão sobre a seguinte questão: como pensar a “eficácia ideológica” (possibilidade de dizer, efeito do dizer) de um discurso sem cair nas armadilhas de reduzi-la a um puro efeito de linguagem, no seu funcionamento genérico-retórico-argumentativo (apagamento da história) nem descrevê-la como projeção (imediata ou mediada) de uma topografia de lugares sociais institucionalmente definidos 93 Sobre as evidências dos sentidos e dos sujeitos, Pêcheux (1975: 139) cita Althusser em Aparelhos ideológicos de Estado: “Como todas as evidências, inclusive aquelas que fazem com que uma palavra ‘designe uma coisa’ ou possua um significado (portanto inclusas as evidências da ‘transparência da linguagem’), a evidência de que vocês e eu somos sujeitos – e que isto não constitua um problema – é um efeito ideológico, o efeito ideológico elementar”. 150 (apagamento da língua) (Idem: 21). Os lugares enunciativos fariam parte do processo de constituição do sujeito nas relações de identificação/interpelação ideológica, que seriam definidas não somente em relação aos elementos de saber de uma FD, mas também em relação aos modos de dizer como esses elementos aparecem nas sequências discursivas e, acrescento, às imagens dos interlocutores projetadas na interlocução discursiva. Como venho argumentando, as formações imaginárias produzem uma força argumentativa: do lugar do corpo negro feminino significado como sem voz e raciocínio, como sexo e trabalho, desde posições racistas, os lugares de enunciação das mulheres negras projetam imagens do corpo negro consciente de si, da sua negritude (a consciência negra), em busca de sua identidade (a identidade negra) e liberdade de ser numa potencialidade múltipla. No caso de nossa pesquisa, se coloca a questão da relação do sujeito enunciador com o enunciado. Como afirma Zoppi Fontana, a partir de Pêcheux (1975), “o sujeito enunciador só tem acesso às operações que constroem as formulações e não aos enunciados do ‘seu’ discurso, isto é, ele só opera (pré)conscientemente com o dito, não com o dizível, e, menos ainda, com o que fica fora desse dizível” (ZOPPI FONTANA, 1997: 36). Deste modo, as correções que o sujeito faz para explicar o que disse, para aprofundar o que pensa, explicitar o que quis dizer, produzem “a fonte da impressão de realidade do pensamento para o sujeito (‘eu sei o que eu digo’, ‘eu sei o que eu falo’)” (PÊCHEUX & FUCHS, 1975: 176). Esta ilusão de realidade do seu pensamento e o acesso parcial às operações de argumentação e organização textual do “seu” discurso fazem com que se represente imaginariamente para o sujeito como uma “tomada de posição” em relação ao enunciado. Sobre este ponto, contribui a proposta de Rodrigo Fonseca (2013), quem se propõe a pensar o engajamento do sujeito na luta pelos sentidos e a sustentação de posições pelos sujeitos enunciadores. Em busca de uma noção discursiva da práxis mobiliza o que Jacques Rancière (1996: 47) denomina modos de subjetivação: “produção, por uma série de atos, de uma instância e de uma capacidade de enunciação que não eram identificáveis num campo de experiência”. O autor chama estes modos de subjetivação de palanques enunciativos com o objetivo de ressaltar o trabalho dos sujeitos para se fazerem audíveis e visíveis em meio às relações de força entre os discursos, como uma reação aos efeitos de dominação sem, no entanto, repor o sujeito consciente de suas ações, em um debate sobre o caráter insuficiente das concepções de ideologia e assujeitamento em Althusser para pensar o 151 sujeito fora das armadilhas das evidências ideológicas. Na interlocução discursiva, as imagens projetadas no discurso são de lugares sociais já significados pelas posições ideológicas no interior das formações discursivas. Exemplifico: no discurso do movimento de mulheres negras, projeta-se imaginariamente mulher negra como sujeito que se diz identificado com posições feministas e antirracistas. É necessário levar em conta a rede teórica: dizer de uma posição feminista e antirracista quando a projeção imaginária do interlocutor é de uma mulher indígena produz outros efeitos de sentido. Poderia se pensar que isso ocorre porque é constitutivo de posição sujeito antirracista, feminista e indígena projetar imaginariamente a mulher indígena como quem seria a interlocutora privilegiada dessa posição; e que há elementos de saber constitutivos da posição que a distanciam de uma posição sujeito feminista negra. O que procuro ressaltar, articulando as propostas de Pêcheux de formações imaginárias e de posições sujeito, tendo em vista a proposição de que o sentido das palavras muda de acordo com a posição de quem as emprega, é que essa posição está no interior de uma formação discursiva e também se relaciona às imagens dos interlocutores. Dito de uma forma talvez simplificada, não existem posições ideológicas que não projetem quem as defende, contesta, etc. em uma relação determinada pelas condições de produção de quem está autorizado, tem credibilidade e legitimidade de dizer de uma posição e a credibilidade e legitimidade do que se diz. Esta projeção inclui corpos constituídos historicamente e discursivamente por relações de classe-raça-gênero-sexualidade. 3.3 Enunciação coletiva: eu e nós políticos [...] dizendo eu, não posso deixar de falar em mim. (BENVENISTE, 1966: 250) Para introduzir as análises do funcionamento do eu e do nós político no discurso do movimento de mulheres negras, farei uma incursão nos estudos enunciativos que tomaram o eu e o nós como objeto de reflexão. O objetivo desta retomada é pensar o eu e nós como constitutivos da subjetividade no discurso político, situados no quadro da interpelação ideológica do sujeito do/no discurso, e como um dos recursos linguísticos que se relaciona à enunciação coletiva e, especificamente, à representação na política. Ao analisar os processos enunciativos e discursivos que constroem “mulheres negras” como coletivo que demanda voz, é recorrente o funcionamento do nós político, que oscila na construção de diferentes recortes referenciais: “nós feministas”, “nós negros”, “nós mulheres 152 negras”, “nós brasileiros”. Além de delimitar os recortes referenciais instituídos pelo nós político, interessam os funcionamentos discursivos associados a cada um deles e as relações de sentido que se estabelecem na passagem de um a outro: este nós diz de si mesmo inserido em polêmicas, em um movimento de denúncia ao racismo, ao sexismo e à exploração de classe, de negação dos dizeres e ditos sobre as mulheres negras, de reivindicação e construção de imagens positivas para “mulheres negras”, de narração de suas histórias e construção de seus heróis e heroínas, de lamento de suas dores, entre outros. O eu político é também uma regularidade na enunciação de mulheres negras em luta. As análises que fiz no primeiro capítulo sobre o eu na introdução de trabalhos acadêmicos de mulheres negras sobre mulheres negras procuraram mostrar que, quando o eu diz como mulher negra (e mais outras condições atreladas, como a de universitária, professora, das classes trabalhadoras...), projeta-se como integrante de um coletivo que compartilha uma história, memórias, experiências comuns. É sobre o que procuro argumentar, a seguir (cf. 3.3.2) a partir das trajetórias individuais narradas em primeira pessoa do singular que compõem o livro “Mulheres Negras em Primeira Pessoa”94. Filiado a Saussure e ao pressuposto de língua como sistema de signos linguísticos que se organiza por meio de relações opositivas, Benveniste (1966) propõe-se a refletir sobre os atos pelos quais a língua é atualizada em palavras por um locutor. Em seus estudos sobre a categoria pessoa, particularmente relevantes para este trabalho, retoma a tradição da descrição e classificação gramatical para denunciá-la. Segundo o autor, “ao alinharmos numa ordem constante e num plano uniforme ‘pessoas’ definidas pela sua sucessão e relacionadas com esses seres que são ‘eu’, ‘tu’ e ‘ele’, não fazemos senão transpor para uma teoria pseudolinguística diferenças de natureza lexical” (BENVENISTE, 1966: 248). Seria necessário romper com a noção de que há um conjunto de três posições determinantes de uma forma verbal provida de um índice de pessoa para perguntar-se sobre como cada pessoa se opõe ao conjunto das outras e sobre o princípio desta oposição. Propõe, então, para pensar tal oposição relativamente ao ato de enunciação, a retomada das definições dos gramáticos árabes, para quem a primeira pessoa é “aquele que fala”, a segunda “aquele a quem nos dirigimos” e a terceira, “aquele que está ausente”. Benveniste (1966) considera que a subjetividade se dá na e pela linguagem em seu 94 Em trabalho anterior de mestrado, analisei este funcionamento do eu em crônicas publicadas tanto nos jornais feministas brasileiros quanto argentinos nos anos 1970 – um eu que narrava o dia de uma esposa-mãe-dona de casa, em seu acúmulo de funções e tarefas, enfim, que falava de um eu particular assentado no que este discurso projetava como comum da vivência das mulheres nesta posição. 153 exercício no ato de enunciação, pois é somente a linguagem que fundamenta na sua realidade o conceito de ego. Isto é, as línguas particulares fornecem os meios do sujeito se dizer. Há em todas as línguas os pronomes e, entre eles, uma forma linguística auto-referencial para se dizer o ego. Em outras palavras, “o fundamento da ‘subjetividade’ se determina pelo status linguístico da ‘pessoa’” (BENVENISTE, 1966: 286). Estas formas dêiticas – signos “vazios” se os consideramos como não referenciais relativamente à “realidade” – tornam-se “plenas” no ato de enunciação, quando o locutor as emprega. Ou seja, se referem às categorias enunciativas, unicamente a uma realidade de discurso. Eu é signo virtual disponível para todo locutor, com a condição de que cada vez ele só remeta à instância do seu próprio discurso. De uma só vez, eu designa aquele que fala e implica um enunciado sobre o eu: “dizendo eu, não posso deixar de falar em mim” (BENVENISTE, 1966: 250). Não seria possível atingir o homem separado da linguagem, pois esta integra sua natureza. Portanto, a linguagem não lhe serve de instrumento, mas é constitutiva de sua subjetividade, tratada como “capacidade do locutor para se propor como ‘sujeito’ definindo “a unidade psíquica que transcende a totalidade das experiências vividas que reúne, e que assegura a permanência da consciência” (BENVENISTE, 1966: 286). A reflexão de Benveniste sobre o papel da linguagem na constituição da subjetividade, de fornecer meios para o sujeito se dizer, constituindo o conceito de ego, unidade psíquica que assegura a consciência, é deslocada, na perspectiva da AD, pela concepção de sujeito atravessado pelo inconsciente e pela ideologia. No entanto, reconheço, na produção de Benveniste sobre a categoria de pessoa, elementos importantes que, no deslocamento teórico anunciado, vão compor o efeito de evidência que apaga para o sempre-já sujeito os processos de subjetivação na sua relação com a materialidade linguística. Eu e nós não referem a uma realidade exterior e anterior à enunciação, mas se significam a cada tomada de palavra pelo locutor, a cada enunciado em que funciona a categoria de pessoa. O que Benveniste propõe como fundante da subjetividade considero como apagamento para o sujeito de sua constituição como efeito de processos de subjetivação. As imagens de “tomar a palavra”, “falar por” – em disputa pelas mulheres negras na luta por representação – se assentam na evidência do locutor como origem do sentido e do dizer. Com base na definição de que há na enunciação ao mesmo tempo uma pessoa implicada e um discurso 95 sobre essa pessoa, somente eu e tu são considerados pessoas e 95 Trata-se de uma concepção de discurso diferente daquela da AD. Benveniste (1966:267) entende o discurso “na sua mais ampla extensão: toda enunciação que suponha um locutor e um ouvinte e, no primeiro, a intenção 154 identificariam os participantes do discurso (locutor e interlocutor), caracterizados por sua unicidade em uma relação potencialmente reversível. Por sua vez, um predicado sobre a terceira pessoa é possível somente fora do eu-tu e pode referir-se a uma infinidade de sujeitos, a nenhum sujeito ou ainda a uma coisa, o que leva Benveniste a considerar o que seria a terceira pessoa na tradição gramatical uma não-pessoa ou uma forma não-pessoal da flexão verbal, definida a partir da ausência daquilo que qualifica eu e tu. De forma mais esquemática, as características da noção de pessoa são: 1) unicidade específica (eu e tu são únicos em cada ato de enunciação); 2) caráter reversível (eu e tu são reversíveis na alocução). Entretanto, eu e tu opõem-se pela correlação de subjetividade: “eu” é interior ao enunciado e exterior a tu e eu é transcendente em relação a tu, pois pode projetar tu como uma “pessoa” fictícia, uma “pessoa imaginável”. Estas correlações de personalidade e subjetividade não se mantêm no plural. A unicidade e a subjetividade inerentes a eu contrariam esta pluralização como somatória de eu+eu, sendo o nós a junção entre o eu e o não-eu, independentemente do conteúdo do nãoeu, em uma relação de predominância de eu, indispensável e constitutiva de nós. Além disso, ressalta Benveniste (1966: 256), há em inúmeras línguas uma diferenciação da forma verbal da primeira pessoa plural sob o aspecto inclusivo e exclusivo, que envolve outra complexidade. Nestes dois tipos de nós se expressariam as duas correlações que organizam o sistema das pessoas no singular. A diferença entre as formas inclusiva e exclusiva modela-se sobre a relação entre a primeira e a segunda pessoa singular e entre a primeira e a terceira pessoa singular, respectivamente. O nós inclusivo (eu + tu, vós / você, vocês) une as pessoas que se opõem na correlação de subjetividade, ou seja, inclui o interlocutor, enquanto o nós exclusivo (eu + ele, eles) consiste na junção das duas formas que se opõem como pessoal e não-pessoal, assim excluindo o interlocutor. Nas línguas em que não há esta diferenciação, nós não seria a junção de elementos definíveis, podendo com a forte predominância do eu substituir um singular, como em um nós de majestade ou, então, na atenuação do eu, numa expressão ampla e difusa de um orador ou autor. Em síntese, para Benveniste, a passagem do singular eu para o plural nós não implica apenas multiplicação, mas indefinição, pois “anexa ao ‘eu’ uma globalidade indistinta de outras pessoas”. O nós é, portanto, “pessoa amplificada e difusa” (BENVENISTE, 1966: 258). Esta concepção será retomada, apropriada e deslocada nos estudos sobre o nós político que buscam mapear os diversos sentidos do nós. Em reflexões que extrapolam o ato de de influenciar, de algum modo, o outro”, ou seja, todos os gêneros, orais e escritos, nos quais se enuncia como locutor, organizando o que se diz na categoria de pessoa. 155 enunciação e buscam compreender a relação entre língua, ideologia e história, o nós será estudado como um dos recursos da linguagem na política. 3.3.1 Nós político Diversos autores discutem a polissemia tanto linguística quanto discursiva de nós. Sob a forma de superfície nós é possível analisar diferentes funcionamentos pelos recortes referenciais que este pronome institui. No número 10 da Revista Mots, de 1985, dedicado exclusivamente aos estudos das variações em torno do nós político, os autores concordavam, com base nos estudos de Benveniste, de que nós não é somatória de “eu+eu” nem nomeia um grupo pré-existente de indivíduos. Para se definir a referência de nós é necessário recorrer à enunciação. Em alguns destes estudos, os autores construíram uma grade referencial do nós em relação aos diferentes funcionamentos dos enunciados no corpus analisado, buscando identificar as formas de representação do locutor no discurso. Entre os anseios destes estudos estão questões importantes para a ciência e filosofia política sobre o que seria uma enunciação política e como se constitui um sujeito político. Nestes estudos do nós político, não se parte do pressuposto de que uma nova classe social ou um novo coletivo significam um novo lugar de enunciação; percorre-se o trajeto do pronome nós e de toda a série que refere a primeira pessoa do plural, seus recortes referenciais e a relação com um contexto que extrapola o linguístico. Vejamos as contribuições desta publicação para em seguida aproximá-las às nossas questões de pesquisa. Na apresentação desta revista, Geffroy (1985) retoma o sentimento de evidência com que nós é empregado e o conhecimento que se tem de sua polissemia tanto linguística quanto discursiva. Seu caráter polissêmico, leva ao questionamento sobre que pessoas o nós convoca e para quê, sobre a inclusão de si no discurso bem como sobre um “locutor coletivo”, figura construída na enunciação que não pode ser elucidada facilmente. Se este elucidação não é direta, análises linguísticas (e discursivas) podem contribuir para iluminar seu funcionamento, considerando adjetivações, nominalizações, por exemplo. Sem supor a priori que o emprego de nós implica a constituição de um sujeito político, estas análises auxiliam a refletir sobre as relações entre locutor, laço social, sujeito político e ideologia. A autora apresenta três pontos recorrentes nestes trabalhos: 1) a enunciação de um nós constitui um ato de linguagem, que pode conduzir um pressuposto à força do imperativo; 2) o “nós nacional” é muito recorrente e sólido no século XVIII ou no século XX, tanto à “direita” quanto à 156 “esquerda”; 3) a coesão do nós é muito frequentemente assegurada pela existência maligna de um terceiro excluído – excluído da alocução, do “grupo-nós”, do universo da linguagem, em uma exclusão criadora do nós. Landowski (1985), em uma abordagem semiótica, considera que o sistema gramatical e funcional dos dêiticos estudado pelos linguistas, em especial o eu e o nós remetem à construção dos sujeitos individuais e coletivos e à distinção entre público e privado. As oposições entre privado/público e individual/coletivo tomadas frequentemente como equivalentes não se sustentam na diversidade das figuras produzidas pelo cruzamento destas oposições. Estas figuras do nós são submetidas a regimes de visibilidade, pela presença ou ausência de uma “terceira pessoa” na função de observadora. O trabalho deste autor contribui para se pensar a imagem de si no discurso, bem como nos levam a questionar as oposições tomadas a priori do individual e coletivo e do privado e público e sua correlação com as formas linguísticas eu e nós. Eu não poderia significar um coletivo, quando se constrói uma narrativa individual, por exemplo, como expressão de uma trajetória fundamentalmente compartilhada com um grupo? Para Guilhaumou (1985), a forma nós impõe o alargamento da noção de contexto de um plano estritamente linguístico ao nível das configurações discursivas, o que significaria, para este autor, considerar o horizonte histórico da forma mais ampla possível. Ele propõe que a organização de configurações textuais em torno da série enunciativa “nós/você(s)” dá uma coerência a uma dispersão de enunciados nos arquivos disponíveis sobre a conjuntura estudada, no caso, a festa da união em 10 de Agosto de 1793, considerando a diversidade dos arquivos que relatam ou antecipam este importante acontecimento da Revolução Francesa, a aprovação da Constituição da França. Segundo o autor, em sua investigação prioritariamente de ordem histórica, mas que leva à caracterização de funcionamentos linguísticos, a coerência produzida pela descrição das configurações textuais acerca do pronome nós permitiu uma visão dos fatos bem diferente da apresentada pelos historiadores, em uma reflexão que considera a construção do laço social nos processos revolucionários e a aceitabilidade social dos enunciados. No texto intitulado Y a-t-il un nous autogestionnaire?, Geneviève Petiot, Benoît Habert e Josette Lefèvre (1985) estudam o funcionamento polissêmico do nós fundado pelos estatutos dos agentes dos discursos em um corpus composto por textos produzidos por grupos e organizações autogestionárias, como o Partido Socialista Unificado (PSU). Os autores propõem como critérios de caracterização destes discursos os modos de elaboração e 157 circulação de textos, as relações discursivas entre porta-voz, organização e destinatários, considerando que a polivalência e a ambiguidade de nós parecem manifestar e organizar os universos discursivos de vulgarização e popularização das organizações políticas. Os autores compreendem que a polissemia do nós não se limita aos gêneros do discurso ou à reivindicação do discurso por um ou outro grupo social, mas principalmente ao entrelaçamento de diversos nós discursivos, que revelam a heterogeneidade constitutiva do discurso. O que faz um texto parecer singular é o modo como se relacionam esta pluralidade de vozes pelo nós manifestada. Com atenção, sobretudo, aos modos de relação entre o singular, o plural e o coletivo, de um lado, entre o nós e o não-nós (os outros discursivos), de outro lado, os autores localizam como característica constitutiva dos discursos analisados o fluxo de passagens entre o nós singular e o nós coletivo-geral. O artigo Le Nous de Robespierre ou le territoire impossible, de Geffroy (1985), traz grandes contribuições do ponto de vista das reflexões mais gerais sobre a designação sociopolítica. Nós é considerado como elemento de um sistema de designação sociopolítico, que é ao mesmo tempo linguístico e ideológico; performativo e axiológico. Mais do que isso, este seria o designante sócio-político por excelência, pois é uma unidade linguística arcaica transhistórica, então disponível em todas as histórias e todas as conjunturas, e que é veículo de “personalização” característico da ideologia nacional, forma ancorada na ilusão política. Com base em um corpus do discurso de Robespierre (1789-1794), a autora analisa cerca de 1500 ocorrências de “pontos de enunciação em nós” e aponta que a função central deste termo é delimitar em um universo de pessoas um conjunto de extensão variável associado ao enunciador, sendo que as ocorrências mais representativas em seu corpus são de um nós pseudo-dialógico, que convoca os alocutários, e um nós nacional, que se delimita principalmente a partir do possessivo “nossos” seguido dos inimigos e do tema da guerra. Portanto, a unidade do nós decorre não de uma fusão em comunidade positiva, mas é determinado pela exterioridade, pelo o que fica excluído de nós. Seu estudo sobre os termos povo e sans-culottes levam-na a pensar que um grupo social é primeiramente nomeado com um termo pejorativo por aqueles que não pretendem dele fazer parte em uma hetero-designação que se dá por um performativo próximo ao insulto. O grupo nomeado pela palavra do outro em geral retoma o nome, de modo que a heterodesignação transforma-se em auto-designação, sendo que este processo é acompanhado por polêmicas definitórias. Retomando a proposição canônica de Benveniste de correlação de pessoa no discurso, reflete que eu é unicamente auto-designativo, enquanto tu/você(s) são 158 exclusivamente hetero-designativos. Por sua vez, nós, que equivale a “eu mais outras pessoas incluídas a meu propósito” (do eu à humanidade inteira) é auto e hetero-designativo. Esta característica pode ser relacionada com as funções enunciativas de falar por si e de si e falar no lugar de e falar de, o efeito que sobrepõe autorrepresentação e representação, que funde na enunciação política as duas acepções de representação, conforme Spivak ([1985] 2010). A autora ainda aponta que nós é a forma pela qual o sujeito político tenta escapar de suas responsabilidades enunciativas de sujeito em proveito de um coletivo com contornos sempre móveis. Para finalizar a caracterização problemática do designante nós, Geffroy (1985) aponta o fato de que comumente nós é utilizado como metalinguagem descritiva nas obras de reflexão sobre a política, particularmente naquelas de inspiração psicanalítica e que tratam do “laço social”, sendo o nós considerado o termo fundador do político. Isso não impede que a autora veja nos funcionamentos dos enunciados ideológicos que empregam o nós um reforço da operação fundamental que é a construção de lugares enunciativos entre os quais o propósito ideológico vai se desenvolver. É a existência desses lugares que parece dizer do mistério do “laço social”. Os saltos enunciativos aos quais nós é apto descreveriam o percurso da enunciação política em que, se as questões fundamentais que se colocam são “quem fala?” e “a quem fala?”, as respostas não se limitam ao real histórico, sobretudo se somamos a elas a questão “em nome de quem se fala?” fundadora do político, que é em si uma subversão de toda fala real. A autora ilustra a inseparabilidade fundamental do enunciado e da enunciação. Esse fato tem consequências para a teoria linguística, mas tem também uma tradução política direta. Do artigo de Guilhaumou (1985), retenho sua proposição de organização e descrição do corpus em torno do “nós/vocês” como uma forma de propor uma coerência à dispersão de enunciados que é própria do discurso. Entre as diversas formas de entrada de análise na tese, esta é uma das escolhidas para aproximar textos produzidos em diferentes condições de produção. Explicito o procedimento: não parti, por exemplo, de textos produzidos desde um único lugar institucional (como uma determinada ONG de mulheres negras), de um mesmo espaço geográfico, de um período de tempo determinado por uma hipótese de regularidade discursiva ou de deslocamentos na direção da constituição de outros sentidos. 159 Nas análises que seguem, tenho atenção aos funcionamentos do nós na projeção de coletivos imaginários que se delimitam na enunciação e a força performativa do nós mulheres negras quanto ao dizer do sujeito do/no discurso sobre si. Ainda analiso as relações de inclusão/exclusão deste nós mulheres negras com outros coletivos projetados: brasileiros, mulheres, negros, feministas. Note-se que, apesar de concentrar as reflexões e análises sobre o eu e nós políticos neste capítulo, desde a introdução tenho tratado destes funcionamentos, por sua recorrência e centralidade na construção de um lugar de enunciação de mulheres negras. Além de realizar recortes discursivos a partir do nós, atento para o você(s) que cada uma das ocorrências do nós institui, refletindo sobre a recorrência de certas representações da interlocução e para a definição/indefinição do outro para quem se dirige o nós. A cada ocorrência nos recortes discursivos de nossa análise do funcionamento do nós, chamo a atenção para o que fica excluído do grupo-nós, percebendo que a reivindicação de um lugar de dizer e de significar no movimento de mulheres negras só é possível pela exclusão de um terceiro. Pergunto-me se à dispersão do nós na diversidade de situações de enunciação estudadas se sobressalta algum funcionamento discursivo e as implicações desta prevalência. É tentador propor classificações/tipificações do discurso a partir do funcionamento do nós ou supor um funcionamento enunciativo e discursivo do nós calcado na reivindicação do discurso por um grupo social (as mulheres negras). Mesmo que estas classificações se apresentassem como resultantes das análises, se incorreria na ideia de uma identidade fixa, única, imutável, pronta e até mesmo anterior ao discurso dos movimentos de mulheres negras, como se mulheres negras não estivessem em movimento nos processos sempre contínuos de subjetivação nas diferentes modalidades de identificação no/do discurso. E, no caso dos discursos feministas, seria uma projeção no discurso do que se analisa nas práticas organizativas feministas propor que o nós trate por vezes de um discurso que fala do cotidiano das mulheres negras, e, em outras circunstâncias, de um “discurso generalizante”, que unifica a condição das mulheres negras na recorrência desse cotidiano visto por uma posição feminista negra que faz uma análise política e divulga sua análise de forma pedagógica a outras mulheres, com quem se pode formar um coletivo de ação militante pela adesão à análise apresentada. Retomando o trabalho de Landowski (1985), se colocaria em funcionamento uma mecânica de oposições tomadas a priori do individual e coletivo, do privado e público, em certas correlações estabelecidas com as formas linguísticas eu e nós. 160 A partir de pesquisas como a de Geffroy (1985), reencontramos a temática da relação entre o sentido e posição sujeito, entendido que a significação sempre se dá no interior de formações discursivas e de trajetos históricos dos sentidos, o que faz com que uma palavra não signifique o mesmo se enunciada de diferentes posições no discurso. As polêmicas sobre as palavras do adversário – e não só do adversário principal, mas daqueles que se contesta para afirmar um lugar de dizer e existir politicamente –, recorrentes no campo político, estão no centro de nossas análises sobre os objetos discursivos construídos como alvo das disputas pelos sentidos no discurso de vozes de mulheres negras. O tema dos encontros subjetivos no discurso e na história que produzem laço social e tecem o sujeito político que enuncia é objeto de nossa reflexão sobre a possibilidade do vir a ser outro do discurso e do sujeito em práticas de reprodução-resistência aos sentidos dominantes. Retomando trabalhos realizados no Brasil sobre o nós político, destacamos o de Indursky (1997), em sua tese de doutorado que trata, entre outros, do sujeito do discurso da ditadura militar brasileira. Por considerar que nós designa conjuntos lexicalmente nãonomeados, entende-o como não-pessoa discursiva. “Ou seja, na interlocução discursiva, a não pessoa discursiva corresponde ao referente lexicalmente não-especificado ao qual eu se associa para constituir nós” (Idem: 67). A ocorrência de diferentes níveis referenciais do nós na mesma sequência discursiva produziria como efeito um “sujeito embaçado de uma enunciação indeterminada e ambígua” (Idem, p.76). Em meu trabalho, reflito sobre o funcionamento do nós enquanto correspondente a um referente lexicalmente nãoespecificado, mas também nas determinações do nós em nós mulheres, nós mulheres negras, nós negros, nós brasileiros e, principalmente, nos efeitos de sentido e efeitos-sujeito na passagem de um ao outro no interior de uma sequência discursiva. Além de usar o critério de aparição do nós e toda a série relacionada à primeira pessoa do plural para a composição do corpus, privilegio sequências em que o dizer é tematizado pelas vozes de mulheres negras, ou seja, em que a enunciação, o silenciamento, a infantilização pela negação do acesso à palavra de forma legítima e crível e a luta por dizer sobre si são tópicos nos enunciados de mulheres negras. 3.3.2 Lugar de enunciação das mulheres negras, em primeira pessoa na medida em que nós negros estamos na lata de lixo da sociedade brasileira, pois assim o determina a lógica da dominação [...] o risco que assumimos aqui é o do ato de falar com todas as implicações. Exatamente porque temos sido falados, infantilizados [...] que neste trabalho assumimos nossa própria 161 fala. Ou seja, o lixo vai falar, e numa boa (GONZALEZ, 1980). A partir do que discuti até este ponto, sistematizo alguns dos funcionamentos destes lugares de enunciação coletivos de mulheres negras. A partir deste lugar, negam-se os estereótipos negativos, que seriam os sentidos, as representações que outros fazem de mulheres negras e que põem para circular quando falam por mulheres negras. Em contrapartida, afirmam-se imagens e representações que seriam de mulheres negras sobre elas mesmas: outras referências de feminilidade e negritude, de negritude feminina, de feminino negro. Na retomada de mulheres negras que tiveram preponderante participação nas lutas históricas; no destaque às posições de liderança social e comunitária, seja nos terreiros religiosos ou os considerados culturais, na referência a divindades femininas; na luta pela representação das mulheres negras nos meios de comunicação e na publicidade em diferentes posições sociais, nas artistas negras que acompanham e são acompanhadas pelo movimento; na divulgação/construção de estéticas negras; na valorização das mulheres negras anônimas trabalhadoras e cuidadoras das famílias, do cotidiano e das novas gerações negras. As diferentes condições de produção e os interlocutores envolvidos na interlocução discursiva (mulheres negras, feministas brancas e negras, mulheres e homens negros, cidadãos brasileiros, etc.) intervêm nestas composições das imagens de si e no que é mobilizado na argumentação na luta pela palavra. Mulheres negras em primeira pessoa, na primeira pessoa do singular ou na primeira pessoa do plural, na maior parte das vezes, significando mulher(es) negra(s) como coletivo. Há um funcionamento no discurso do movimento de mulheres negras, em especial no que dizem suas intelectuais-ativistas e escritoras literárias, no qual as categorias da tradição gramatical como sujeito e pessoa significam para além do discurso de gramática. O título do livro da Articulação de Organizações de Mulheres Negras Brasileiras (AMNB: 2012) é exemplar deste funcionamento: Mulheres negras na primeira pessoa96. O livro reúne entrevistas sobre as trajetórias de vida de vinte mulheres de organizações de mulheres negras filiadas a AMNB em todas as regiões brasileiras. Nestas entrevistas, ao longo de todo livro, está a primeira pessoa do singular, um eu algumas vezes predicado como eu, mulher negra 96 Efeitos de sentido semelhantes se produzem no título do documentário 25 de julho- Feminismo Negro contado em primeira pessoa, de repercussão na mídia nacional e internacinal, exibido em diversos espaços culturais, eventos e cine clubes sobre racismo, machismo e a invisibilidade do 25 de julho, dia da mulher afro-latinoamericana e caribenha, do Morro Produções, 2013 https://www.youtube.com/watch?v=J6ev2V-Ee3U; no título da matéria Empoderadas: histórias negras femininas contadas em primeira pessoa, sobre uma websérie feita sobre e por mulheres negras, publicado na plataforma No Brasil, 2015 http://nobrasil.co/empoderadas-historiasnegras-femininas-contadas-em-primeira-pessoa/; no título do blog Preta ‘Dotora’ na primeira pessoa, da historiadora feminista negra Giovana http://pretadotora.blogspot.com.br/, para mencionar alguns exemplos. 162 que se repete e nunca é o mesmo ao longo de todo o livro. A imagem de um rosto de uma mulher negra em primeiro plano também compõe esse efeito de sentido: é uma mulher única, particular, que diz e é (necessariamente) significada como parte do coletivo de mulheres negras, no plural, conforme o título da publicação. Na introdução do livro, as organizadoras Jurema Werneck, Nilza Araci e Simone Cruz escrevem: Apesar das várias limitações que enfrentamos para superar a força com que o racismo patriarcal busca nos subordinar ou aniquilar, trazemos aqui, neste livro, nossas apostas para o futuro. Mensagens que dirigimos às novas gerações, a meninas negras que nascem agora e um dia nos sucederão. Para elas, estas meninas negras do tempo presente e do futuro, deixamos um legado potente de apostas em mudança, transformação, superação – todos são traços comuns na história das entrevistadas aqui reunidas. Elas falam de nós, por nós, e representam um microcosmo das mulheres negras brasileiras – milhares de outras mulheres negras vão se reconhecer nessa trajetória. Este livro apresenta mulheres reais. Esperamos que você, seja quem for, aprecie a leitura. Figura 12 – Capa do livro Mulheres Negras em Primeira Pessoa (2012), organizado pela Articulação de Organizações de Mulheres Negras Brasileiras . A primeira pessoa do título significa a trajetória de cada uma das entrevistadas e de todas as mulheres negras brasileiras, tendo os funcionamentos do nós papel preponderante para a construção da indeterminação do locutor e de mulheres negras como sujeito e objeto do discurso. O eu, mulher negra se pluraliza e na voz de um nós, mulheres negras que funciona como porta-voz vira elas que “falam de nós e por nós” (a passagem do eu para o nós será mais adiante objeto de reflexão e análise). Vemos irromper um nós que diz das mulheres negras, organizadoras da publicação, das organizações de mulheres negras, das mulheres negras brasileiras representadas e que se reconhecerão nas trajetórias narradas no livro. Enfim, o que funciona e significa é um nós que ainda quando predicado por mulheres negras institui 163 diferentes recortes referenciais; é dividido, elástico, ambíguo, indeterminado, ao mesmo tempo em que produz efeito de evidência de sentido – todos sabem o que é uma mulher negra, o que são as mulheres negras, retomando o efeito de pré-construído da interpelação ideológica (PÊCHEUX, 1975) que apaga que um objeto discursivo paradoxal é significado no confronto entre memórias diferentes e até mesmo antagônicas, a exemplo daquelas dos movimentos negros e de outros espaços de sociabilidade e resistência do povo negro na diáspora que contestam o racismo e a dominação racial branca, por um lado, e dos discursos da democracia racial brasileira e do embranquecimento, por outro. 3.4 De que mulheres estamos falando? Lélia Gonzalez (1984), há mais de trinta anos, afirmava que a modernização conservadora pós-1964 imposta pelos donos do poder tinha como grande excluída “a mulher negra”, o que não foi percebido pelo feminismo, que dizia das transformações da inserção da força de trabalho feminina como se todas as mulheres estivessem nelas implicadas. Nessa “forma de universalização abstrata” está uma das contradições do movimento de mulheres no Brasil, que em sua dependência cultural reproduz em suas práticas a “condição de invisibilidade” do “negro”. De forma enfática, a autora afirma: As intelectuais e ativistas tendem a reproduzir a postura do feminismo europeu e norte-americano ao minimizar, ou até mesmo deixar de reconhecer, a especificidade da experiência do patriarcalismo por parte de mulheres negras, indígenas e de países antes colonizados (GONZALEZ, 1984: 34). A denúncia do não reconhecimento de vertentes do feminismo dos impactos do racismo na vida das mulheres negras e, por vezes, também das indígenas ou ainda a denúncia mais direta de racismo no interior do feminismo são constitutivas do lugar de enunciação de mulheres negras, sejam em posições que se dizem feministas ou aquelas que negam o termo feminismo para se significar e que se identificam com muitas das bandeiras históricas do feminismo. Recortei uma sequência que me parece emblemática desde funcionamento, retirada do texto Identidade Feminina (1989), de Sueli Carneiro, publicado em 1993, em uma das edições do Caderno Geledés e relançado em 2011, na ocasião dos 23 anos da organização Geledés Instituto da Mulher Negra e disponibilizado em formato digital em seu portal. 97 Trata-se de um texto de uma intelectual integrante de uma das pioneiras e mais influentes 97 O artigo Identidade Feminina (1989) content/uploads/2015/05/Mulher-Negra.pdf está disponível em http://www.geledes.org.br/wp- 164 organizações de mulheres negras da contemporaneidade, hoje institucionalizada como ONG. No prefácio à edição comemorativa, afirma-se que “a decisão de republicar tais textos foi tomada a partir de nossa avaliação de que permanecem vivos e atuais na medida em que não foram superados, e podem ainda continuar alimentando novas gerações do crescente Movimento de Mulheres Negras no Brasil” (CARNEIRO, 1989 [2011]: 07), o que produz o efeito de continuidade e filiação histórica e política destas iniciativas. O texto Identidade Feminina projeta como principais interlocutoras feministas ou pessoas que conhecem e talvez se solidarizem com o debate e as lutas das mulheres no campo feminista. Carneiro (1989 [2011]: 07) inicia discutindo a identidade social como resultante de um processo histórico-cultural que envolve elementos culturais, religiosos e psicológicos. Parte do pressuposto de que nascemos com uma definição biológica (mulheres e homens) e com uma definição racial (brancos ou negros). Neste processo, na cultura ocidental, a diferença, sempre construída em relações opositivas com o outro, é vivida como inferioridade. Deste modo, na diferenciação com o masculino se constrói uma identidade feminina negativa, que justifica sua subordinação e opressão. Em seus primeiros passos, o movimento feminista no Brasil teria se revoltado contra esta opressão e contestado os estereótipos tradicionais existentes sobre a mulher. Em seguida, percebendo sua aproximação com os modelos da masculinidade, resgatou uma “dimensão feminina irrecusável: somos mulheres! Temos útero, não pênis. Procriamos. Somos mulheres e pensamos. Somos mulheres e trabalhamos. Somos seres plenos de potencialidades, exercendo uma cidadania de segunda classe” (CARNEIRO, 1989: 09)98. A partir dessa construção com um nós inclusivo, que diz de todas as mulheres, propõe a identidade feminina como projeto em construção que passa pela “desmontagem dos modelos introjetados de rainha do lar, de destino inexorável da maternidade, da restrição ao espaço doméstico familiar e o resgate de potencialidades abafadas ao longo de séculos de domínio pela ideologia machista e patriarcal” (Idem: 10). A esses estereótipos, a autora relaciona uma série de bandeiras de luta do movimento feminista, como as lutas por salários iguais no mercado de trabalho, a luta contra a estereotipia na educação formal, o direito à contracepção e ao controle reprodutivo, entre outras, que compreende como lutas pelo direito à plena cidadania. 98 Parte dos estudos de gênero contestará a formulação de que nascemos biologicamente mulheres ou homens, compreendendo que o sexo biológico já é um modo de significar das construções gendradas. Veja-se, a exemplo, a posição dominante do Transfeminismo brasileiro (cf. http://transfeminismo.com/). Feita essa ressalva, retomo a argumentação da autora para discutir a construção das feminilidades nos discursos. 165 Em seguida, questiona se através deste conjunto de direitos se garantiria a cidadania a todas as mulheres brasileiras e a construção de uma identidade unívoca para as mulheres. O nós deixa, então, de oscilar entre significar mulheres e feministas e passa significa mulheres negras. Como efeito, mulheres e feministas, que não eram acompanhadas de predicação para delimitar seu pertencimento étnico-racial, passam a ser significadas como mulheres e feministas brancas, em um processo de diferenciação das mulheres negras pela reivindicação de uma experiência histórica particular na qual as mulheres brancas ocuparam posições de opressoras nas classes dominantes. Vemos funcionamento similar aquele analisado no capítulo anterior no início da fala de Luiza Bairros no III Encontro Feminista Latinoamericano e do Caribe. Segue o recorte que analiso logo abaixo: Afinal, que cara tem as mulheres deste país? Quando falamos do mito da fragilidade feminina que justificou historicamente a proteção paternalista dos homens sobre as mulheres, de que mulheres estamos falando? Nós mulheres negras fazemos parte de um contingente de mulheres, provavelmente majoritário, que nunca reconheceram em si mesmas este mito, porque nunca foram tratadas como frágeis. Fazemos parte de um contingente de mulheres que trabalharam durante séculos como escravas nas lavouras ou nas ruas como vendedoras, quituteiras, prostitutas etc.; mulheres que não entenderam nada quando as feministas disseram que as mulheres deveriam ganhar as ruas e trabalhar! Fazemos parte de um contingente de mulheres com identidade de objeto. Ontem, a serviço de frágeis sinhazinhas e de senhores de engenho tarados. Hoje empregadas domésticas de mulheres liberadas e dondocas, ou mulata tipo exportação. Quando falamos em romper com o mito da rainha do lar, da musa idolatrada dos poetas, de que mulheres estamos falando? As mulheres negras fazem parte de um contingente de mulheres que não são rainhas de nada, que são retratadas como as anti-musas da sociedade brasileira, porque o modelo estético de mulher é a mulher branca. Quando falamos em garantir as mesmas oportunidades para homens e mulheres no mercado de trabalho, estamos garantindo emprego para que tipo de mulher? Fazemos parte de um contingente de mulheres para as quais os anúncios de emprego destinam a seguinte frase: “Exige-se boa aparência”. Quando falamos que a mulher é um subproduto do homem, posto que foi feita da costela de Adão, de que mulher estamos falando? Fazemos parte de um contingente de mulheres originárias de uma cultura que não tem Adão. Originária de uma cultura violada, folclorizada e marginalizada, tratada como coisa primitiva, coisa do diabo, este também um alienígena para a nossa cultura. Fazemos parte de um contingente de mulheres ignoradas pelo sistema de saúde na sua especificidade, porque o mito da democracia racial presente em todos nós torna desnecessária a coleta da cor dos pacientes nos formulários da rede de saúde, informação que seria indispensável para avaliarmos as condições de saúde das mulheres negras no Brasil, pois sabemos, por dados de outros países, que as mulheres brancas e negras apresentam diferenças significativas em termos de saúde. 166 Fazemos parte de um contingente populacional que foi objeto de atenção especial do ex-governador de São Paulo, Paulo Salim Maluf, cuja assessoria elaborou proposta de esterilização massiva das mulheres negras, a partir do argumento de que se o crescimento da população negra não fosse controlado, no ano 2.000 eles seriam maioria absoluta e poderiam disputar o controle do poder político no país. Estas colocações têm por objetivo apontar que o “pressuposto que afirma a identidade feminina como um campo de significações particulares, incorre no risco de não considerar a complexidade das relações sociais. Tal complexidade implica na existência de totalidade feminina e masculina insensatas de diferenciação”. As mulheres negras advêm de uma experiência histórica diferenciada, e o discurso clássico sobre a opressão da mulher não dá conta da diferença qualitativa da opressão sofrida pelas mulheres negras e o efeito que ela teve e tem ainda na identidade das mulheres negras. A ausência desta compreensão tem determinado que no geral as conquistas do movimento de mulheres tendem a beneficiar as mulheres brancas como consequência da discriminação racial que pesa sobre as negras. De maneira semelhante, as poucas conquistas do movimento negro tendem a privilegiar o homem negro como consequência da discriminação sexual que pesa sobre as mulheres negras. Como foi dito anteriormente, a identidade feminina é hoje um projeto em construção que depende do rompimento com velhos modelos impostos à mulher, que depende da construção da plena cidadania à mulher pela garantia de seus direitos fundamentais. E o rompimento com esses velhos modelos passa, também, pela rejeição da prática da discriminação racial que institui a mulher branca como o modelo privilegiado de mulher. E a construção da plena cidadania para as mulheres brasileiras passa também pela rejeição aos mecanismos de discriminação racial como a boa aparência, que garantem o acesso privilegiado ao mercado de trabalho para as mulheres brancas; passa pela exigência da coleta do quesito cor nos formulários e prontuários dos pacientes, para termos o direito de saber do que adoecemos e do que morremos; passa pela exigência de que nos censos se coletem sistematicamente o quesito cor, porque temos o direito de saber quanto somos e como vivemos; passa pela luta pela aplicação do princípio constitucional que torna crime a prática da discriminação racial. Passa, enfim, pela luta por uma sociedade multicultural e plurirracial, onde a diferença seja tida e vivida como equivalência e não mais como inferioridade (CARNEIRO, 1989 [2011]: 11-12). Pela repetição ao longo do texto da estrutura “quando falamos” seguida de formulações que poderiam ser atribuídas a um discurso feminista, “mulheres negras” se constrói no embate aos sentidos do objeto “mulheres” no discurso feminista. A questão inicial “Que cara tem a mulher desse país?” e a inserção de “mulheres negras” a um conjunto mais amplo (“parte de um contingente de mulheres”) produzem o rompimento da unidade imaginária de “mulheres” (ou mesmo de “mulher”, no singular) do “nós feministas”. Na disputa contra “mulheres” como grupo homogêneo, está o confronto à dominância do sentido de “mulheres brancas” que em “mulheres” não é marcado e, no entanto, significa, por práticas 167 históricas racistas de exclusão, “a mulher branca como modelo privilegiado de mulher”. A relação de exterioridade e negação das feministas como representantes de todas as mulheres chega à recusa de qualquer tipo de identificação: as “feministas” falaram e as “mulheres negras” “não entenderam nada”, o que não se verifica na totalidade da argumentação da autora. Se no discurso feminista, tem-se um sentido de opressão das “mulheres” em benefício dos “homens”, as “mulheres negras” estiveram (ontem) a serviço de “senhores e sinhazinhas” – por efeito de pré-construído, trata-se das mulheres e homens brancos – e estão (hoje) a serviço de “liberadas e dondocas”. A qualidade de frágil atribuída às sinhazinhas (e não partilhada pelas “mulheres negras” que trabalhavam nos campos e nas ruas) retoma o mito da fragilidade feminina evocada pelo feminismo. “Liberadas”, por sua vez, na contradição entre discurso feminista e discurso da modernização (em circulação, por exemplo, em revistas femininas), significa no deslizamento de “mulheres modernas” para “mulheres feministas”. A oposição “homens” e “mulheres” nas relações sociais hierárquicas é deslocada quando “mulheres negras” constroem no lugar da “opressão” “homens brancos” e “mulheres brancas”, denunciando as relações hierárquicas intragênero. Em outras palavras, desloca mulheres do lugar de sempre e exclusivamente oprimidas. Ressalto que as denominações gendradas e racializadas “dondocas”, “sinhazinhas”, “senhores de engenho” têm uma forte ligação com uma posição de classe (são mulheres e homens das classes dominantes) assim como o lugar de trabalhadoras relacionado às mulheres negras: “quituteiras”, “lavadeiras”, “prostitutas”, “empregadas domésticas”. A dimensão histórica que liga as mulheres negras da atualidade do dizer às ancestrais escravizadas (as de “hoje” e as de “ontem”) aparece como fundamental para a construção da identidade discursiva de “mulheres negras”. A caracterização de tarados atribuída aos senhores de engenho e a menção à “mulata” (nome que marca gênero e raça) podem ser interpretadas como uma crítica à figura da “mulata” como o “encontro das raças” nas leituras que apoiam o “mito da democracia racial no país”, a explicitação da objetificação da mulher negra (“tipo exportação” é designação para mercadorias) e de exploração de sua sexualidade. 99 Mais uma vez, vemos a continuidade temporal marcada no enunciado para significar mulheres negras. Aqui, a continuidade histórica também significa as mulheres 99 Discutirei detidamente os sentidos de mulata, sua historicidade, relação com o mito da democracia racial e as lutas de mulheres negras para negar este estereótipo e deslocar os sentidos dominantes de mulheres negras no próximo capítulo. 168 brancas. No modo como esta posição de mulheres negras retoma o feminismo (em outros textos, adjetivado como feminismo hegemônico, branco, ocidental), na relação polêmica de polarização e na constituição dos sentidos de mulheres brancas opostas a mulheres negras, em certas construções, as mulheres brancas de hoje são significadas como das classes dominantes e descendentes dos colonizadores de ontem, pela escolha destes dois marcos temporais – da escravidão e da atualidade do dizer – produzindo um efeito de sentido de todas mulheres brancas como das classes dominantes. 100 A mesma polarização pode produzir no discurso o apagamento de outras mulheres que não são nem brancas nem negras, a exemplo das indígenas, mencionadas em outros textos de Sueli Carneiro e ao longo do trabalho de Lélia Gonzalez, que fazem do feminismo negro uma vertente em aliança com feminismos nãobrancos e contra-hegemônicos. No texto Identidade Feminina, a repetição da estrutura “fazemos parte de um contingente de mulheres que...” sustenta-se no implícito de que este contingente extrapola as mulheres negras representadas pelo nós. Ressalto que as polarizações são parte dos processos de construção identitária, como frisa Carneiro (1989 [2011]) no início de seu artigo, e recorrentes nos discursos políticos. É o que faz o feminismo hegemônico quando este opõe os sentidos de homem e mulher, de masculinidade e feminilidade, os dois polos em luta, silenciando as mulheres negras e outras mulheres que não se incluem nos sentidos dominantes de mulheres, bem como pessoas transgêneras, intergênero ou não-binárias. São estes sentidos dominantes, nos temas do trabalho, dos mitos em torno do feminino, da objetificação da mulher, que são caros ao discurso e às práticas dos feminismos em sua oposição ao machismo os disputados em seus sentidos por estas vozes-mulheres negras. “Mulheres negras” denunciam que o imaginário dominante do que são “mulheres” não é o mesmo para “brancas” e “não brancas” e que estas lidam com este imaginário para pautar suas lutas, que em suas conquistas não atingem o conjunto das mulheres. Nas palavras de Carneiro (1989 [2011]: 12), “o pressuposto que afirma a identidade feminina como um campo de significações particulares, incorre no risco de não considerar a complexidade das relações sociais”, as experiências históricas diferenciadas que 100 Analisando este texto, para dizer da condição de trabalhadoras das mulheres brancas, citei em artigo apresentado no COPENE de 2014, sua inserção nas fábricas têxteis nos séculos XIX e início do século XX. Retomo este exemplo, pois minha formulação naquele texto produziu a invisibilização da exclusão das mulheres negras nesta mesma indústria pela ideologia do branqueamento, escondida sob os argumentos da qualificação profissional (na ocasião, não foi possível fazer uma nota ou errata – que procuro fazer aqui). Poderia ainda mencionar as mulheres que, no espaço rural, não se identificaram com esta oposição casa-rua (ou mesmo espaço doméstico-espaço público) conforme significada desde a posição de um feminismo urbano branco de classe média, como é o caso de mulheres negras quilombolas. 169 produzem uma “diferença qualitativa da opressão sofrida pelas mulheres negras e o efeito que ela teve e tem ainda na identidade das mulheres negras”. “O modelo estético é a mulher branca”, enquanto as mulheres negras encontram os anúncios de emprego cuja expressão “boa aparência” funciona como sinônimo de “ser branca”. “Mulher” como “frágil”, “rainha do lar”, “musa dos poetas” e “bela” de uma posição ideológica machista contestada pelo “feminismo” também sustenta sentidos no discurso do movimento de mulheres negras pelo questionamento de que as “mulheres negras” não ocupam o lugar de “mulheres” nestes discursos. Se no discurso feminista hegemônico, este discurso machista é interiorizado pelos funcionamentos da denúncia, da negação e da oposição, nas vozes mulheres negras, ele também é constitutivo pela denúncia do racismo do feminismo branco e de sua não aplicabilidade/direcionamento às mulheres negras e, na proposição de Carneiro ([1989] 2011), pela defesa de que o rompimento com os velhos modelos machistas para a mulher “passa também pela rejeição da prática da discriminação racial que institui a mulher branca como o modelo privilegiado de mulher”. Uma luta para existir como “mulheres” para além dos modelos impostos101. Retomando Pêcheux (1982: 12), seria possível afirmar que a unidade do “discurso feminista” e do “discurso machista” é submetida a uma divisão própria da luta ideológica, que “consiste em desenrolar-se em um mundo que não acaba nunca de se dividir em dois”. Articulado ao racismo e às desigualdades de classe, o discurso machista que inferioriza as mulheres negras é idêntico e antagônico ao dirigido às mulheres brancas. Uma das hipóteses analíticas poderia afirmar que os discursos desde vozes mulheres negras se constituiriam como efeito das divisões dos discursos feministas e dos discursos machistas na luta ideológica em que ambos são atravessados pelo racismo. Eles poderiam ser assim vistos quando focamos os embates internos aos discursos feministas e quando não consideramos, ou minimizamos, os 101 Menciono o discurso E não sou uma mulher?, de Sojourner Truth, proferido como uma intervenção na Women’s Rights Conversation em Akron, Ohio (EUA), em 1851. Em uma reunião de clérigos onde se discutiam os direitos da mulher, Sojourner levantou-se para falar após ouvir de pastores presentes que mulheres não deveriam ter os mesmos direitos que os homens, porque seriam frágeis, intelectualmente débeis, porque Jesus foi um homem e não uma mulher e porque, por fim, a primeira mulher fora uma pecadora. Reproduzo parte de seu discurso, considerado fundador do feminismo negro nos EUA: “Aqueles homens ali dizem que as mulheres precisam de ajuda para subir em carruagens, e devem ser carregadas para atravessar valas, e que merecem o melhor lugar onde quer que estejam. Ninguém jamais me ajudou a subir em carruagens, ou a saltar sobre poças de lama, e nunca me ofereceram melhor lugar algum! E não sou uma mulher? Olhem para mim? Olhem para meus braços! Eu arei e plantei, e juntei a colheita nos celeiros, e homem algum poderia estar à minha frente. E não sou uma mulher? Eu poderia trabalhar tanto e comer tanto quanto qualquer homem – desde que eu tivesse oportunidade para isso – e suportar o açoite também! E não sou uma mulher? Eu pari treze filhos e vi a maioria deles ser vendida para a escravidão, e quando eu clamei com a minha dor de mãe, ninguém a não ser Jesus me ouviu! E não sou uma mulher?”. Como vimos, há funcionamento similar no texto Identidade Feminina, de Sueli Carneiro. Texto disponível em http://arquivo.geledes.org.br/atlantico-negro/afroamericanos/sojournertruth/22661-e-nao-sou-uma-mulher-sojourner-truth. 170 trajetos das memórias diaspóricas que, mesmo em embate com a ideologia dominante, tem uma rota própria que exige um olhar atento para evitar a repetição de apagamentos históricos e de simplificações. Em suma, ao considerar os funcionamentos do nós político e as imagens de mulheres negras dizendo de si em embate com mulheres brancas e com o feminismo na interlocução discursiva, compreendo que é constitutiva dos processos de subjetivação/identificação de mulheres negras no campo dos feminismos uma luta para existir como “seres humanos” e “mulheres”, na relação com os sentidos que estes objetos discursivos têm em formações discursivas ligadas a uma formação ideológica dominante. Reconheço as contribuições dos estudos de gênero e da produção feminista que tomam a categoria “mulher” como resultante de construções históricas e sociais que produzem efeitos de transparência para o objeto “mulher” e para os sentidos a ele articulados em diferentes discursividades. 102 Para encerrar as análises do nós na relação com os objetos discursivos e os sujeitos do discurso, trago um recorte de um texto de uma intelectual-ativista do movimento de mulheres negras dos anos 2010. Trata-se de um trecho do prefácio de Jurema Werneck ao livro Outras Mulheres – mulheres negras brasileiras ao final da primeira década do século XXI, publicado pela Editora PUC, no Rio de Janeiro. O tom é de balanço sobre a atuação das mulheres negras brasileiras na “contramão dos silêncios”. Já faz muito tempo, nós, mulheres negras, temos trilhado outros caminhos – os caminhos da brasilidade e da vida na diáspora africana na contramão desses silêncios. Todo esse tempo, temos sido o que somos, temos dito o que somos. A novidade deste momento é termos rompido outras barreiras e podermos contar com mais ouvidos para ouvir, mais olhos para ver. Não somente nossas dores – que são muitas! Não somente nossas derrotas incontáveis – pois o racismo patriarcal sempre teve (ainda tem?) muitos aliados. Mas principalmente as conquistas de sermos o que somos, apesar de... As conquistas de irmos adiante do que fomos, de projetarmos o que seremos e seguirmos na direção de... (WERNECK, 2013: 09). Vejamos as indeterminações em torno de mulheres negras na metáfora dos caminhos da brasilidade e da vida na diáspora africana: do que fomos, do que somos e do que seremos. Nesta formulação, como efeito da indeterminação, mais importa ser do que o que se é, ou ainda dizer quem é e ser ouvida e vista. Se vimos no corpus a construção imaginária em torno da tomada da palavra “pela primeira vez” nos anos 1970/1980, dizendo do silencio e da 102 Além do questionamento feito pelas feministas negras, outras vertentes dos feminismos dirigiram suas críticas à “mulher universal”. Entre as formulações mais difundidas, estão as de Butler (1990: 20), para quem “Se alguém é uma mulher, isso certamente não é tudo o que este alguém é: O gênero estabelece interseções com modalidades raciais, classistas, étnicas, sexuais e regionais de identidades discursivamente constituídas”. 171 invisibilidade, acompanhada da afirmação de passos, dizeres e ecos que vem de longe, agora a “novidade” é ter “mais ouvidos para ouvir e mais olhos para ver”, numa espécie de balanço positivo das lutas travadas pelas mulheres negras que preconiza na indeterminação uma possibilidade mais aberta do ser mulher negra e de seus projetos de futuro. 3.5 Eu, mulher negra, resisto resisto De onde vem este medo? sou sem mistérios existo Busco gestos de parecer Atando os feitos que me contam Grito de onde vem esta vergonha sobre mim? Eu, mulher, negra, RESISTO. (RUFINO, 1988: 14) “De onde vem este medo?”, pergunta(-se) o eu mulher negra. Poderia se interpretar que a questão é dirigida a ela mesma, projetada às mulheres que se identifiquem com este eu, ou a outro interlocutor menos definido na interlocução discursiva que tematiza sua existência. Um eu que é e existe, poderia se dizer, que resiste pelo seu ser que, dito e em circulação, se faz audível na luta pelo reconhecimento deste existir. O medo, um sentimento íntimo e compartilhado, bem como os são a vergonha e a resistência, nos efeitos de sentido produzidos pelo poema resisto quando lido em relação a um conjunto de enunciados de mulheres negras. A pergunta que se segue é grito (grito de um som interior? Grito em alto bom tom para quem quiser ouvir?): “de onde vem esta vergonha sobre mim?”. De todo modo, haveria “uma necessidade de se autoquestionar para se reconhecer” (SOUZA, 2014: 18), uma pergunta que, como vimos, também atravessa o filme Ori – o que pode explicar a regularidade da reflexividade metaenunciativa no que diz respeito aos questionamentos que o sujeito da enunciação dirige a si mesmo. Sentimentos, caros à expressão poética, em seu desejo de transformação têm força performativa para ações políticas. São eles mesmos políticos e politizados na poesia feminina negra. A angústia de lidar com a falta da imagem para o reconhecimento, ou melhor, a angústia de lidar com a imagem significada como distorcida, deslocada da evidência do 172 reflexo-espelho. Como vimos, tais sentimentos podem aparecer em uma comunicação acadêmica: lembro aqui do medo de que fala Audre Lorde (1977) em seu texto sobre os silêncios – “podemos ficar quietas em nossos cantos seguros, caladas como se engarrafadas, e ainda assim seguiremos tendo medo”. O medo de dizer, de dizer os próprios silêncios, atrela-se ao medo de ser o que se é de um sujeito em movimento em um processo de contraidentificação com elementos da ideologia dominante, pois os questionamentos direcionam-se a um enunciado da afirmação identitária de um sujeito que historicamente foi silenciado e dito pelo outro: “Eu, mulher, negra, RESISTO!” – a força da afirmação aumentada pelo uso das letras maiúsculas. Souza (2014: 18), pesquisador da poética de Alzira Rufino, chama a atenção para a vírgula entre mulher e negra neste verso (acrescento o destaque de sua ausência no título do livro): “as palavras eu, mulher e negra, cada uma representando um sujeito que assim se concebe; cada uma representando as identidades do eu poético, e, principalmente, a consciência de si diante dos questionamentos anteriormente feitos do eu”. O autor então afirma o autorreconhecimento e o encontro de si revelados nos versos. Apresento a descrição de sua interpretação porque mostra o caráter cindido do eu. Da perspectiva da AD, eu proporia que se trata de elemento fornecido pela língua para significar o sujeito da enunciação que, em condições de produção determinadas, é mobilizado, no discurso, nas enunciações de afirmação identitária produzindo uma série de efeitos de sentido, como o de autorreconhecimento atrelado ao reconhecimento do sempre-já-sujeito como parte de uma coletividade, o de visibilidade de uma coletividade, o de afirmação do laço social que funda os lugares enunciativos coletivos. Eu como significante que pode amalgamar ou dissociar condições, características, estados a cada acontecimento enunciativo, produzindo o efeito de que este eu é sujeito único, origem do dizer, do sentido e da consciência de si. Esse eu que narra sua vivência, que escreve sobre ela, apaga o limite da tematização de si mesmo e do outro. O questionamento e afirmação identitários são feitos prioritariamente desde este eu político, com efeito de sentido de (res)significação da existência individual. Nesta perspectiva, compreendo que os enunciados de afirmação identitária presentes no corpus ressignificam a existência do eu nos processos de identificação imaginária com a coletividade mulheres negras. resgate sou negra ponto final devolvo-me a identidade rasgo minha certidão 173 sou negra sem reticências sem vírgulas sem ausências sou negra balacobaco sou negra noite cansaço sou negra ponto final (RUFINO, 1988: 88) Desde o poema resgate é possível sistematizar outros elementos do eu político das vozes-mulheres negras. “Sou negra e ponto final” é afirmação que nega um enunciado nãodito no poema, aquele que interdita ou impõe barreiras para a identificação como negra. Um silêncio da ideologia do embranquecimento, que produz tabus linguísticos em torno de termos como negro, negra e mulata nas relações que caracterizam o racismo à brasileira.103 Mais do que isso, se compreendermos que o racismo tem uma política do silêncio, e que o silenciamento de sentidos, conforme Orlandi (1993), interdita processos de subjetivação, a afirmação do pertencimento étnico-racial gendrado – sou negra – é contraidentificação do sujeito ao discurso do embranquecimento da ideologia dominante e resistência às políticas racistas de silêncio. Retomo o fato de que a nomeação negros e seu caráter homogeneizador carrega a palavra do colonizador desde posições racistas em um processo de classificação da população mundial com base na hierarquização racial, no qual os europeus – da posição da dominação – determinaram-se como modelo de humanidade e referência e atribuíram identidades a outros povos. Segundo Quijano (2005: 249), a história do poder colonial implicou decisivamente no despojamento das identidades próprias e singulares dos povos colonizados e, de forma atrelada a isso, a nova identidade racial, colonial e negativa implicava o despojo de seu lugar na história da produção cultural da humanidade. Este processo atrela-se, especialmente a partir do século XVIII, ao racismo científico (evolucionismo histórico, darwinismo social, antropologia física e criminal), que retomarei no próximo capítulo para dizer especificamente dos discursos dominantes sobre mulheres negras. A afirmação da identidade negra se faz na positivação do que foi significado como negativo pelos discursos dominantes. A homogeneização das características racializadas de um coletivo desde a posição dominante é mobilizada diferentemente desde posições da resistência, que questionam os sentidos negativos e violentadores da humanidade dos diversos povos africanos reunidos como negros e acionam a história compartilhada de opressão e 103 Cf. Censo e contrassenso: nomes e cores ou quem é quem no Brasil, de Lília Schwarcz (2012). 174 exploração histórica bem como as lutas de resistência e revolta para a identidade política coletiva. Esta afirmação se faz na forma de um resgate, que remete ao passado, como vimos com o trabalho sobre a memória diaspórica e muitas vezes se faz na primeira pessoa do singular, como necessidade vital do existir e do se reconhecer. “Devolvo-me a identidade”, esta que me foi tirada, depreciada desde o colonialismo, passando pela escravidão, produzindo dor, sofrimento, sentimento de inferioridade como forma de manutenção da dominação pela fragmentação dos negros e de sua solidariedade104. No poema sem marcação de pontuação, o eu poético reafirma reiteradamente “Sou negra”, sendo que repete o enunciado “Sou negra ponto final”. A afirmação positiva da negritude que resiste aos sentidos dominantes se dá por uma insistência repetida que parece desejar a saturação dos sentidos do eu, definido por esta identidade racial, como se pudesse definir (e ponto final) os sentidos do sujeito. Para significar a identidade negra, as palavras dizem “sou negra” e o gesto rasga a certidão, o documento oficial do Estado que atesta o nascimento, retomando, com esta imagem, a memória sobre o modo como os negros escravizados eram tratados pelo branco colonizador, que negava seus nomes e os batizava na Igreja Católica, impondo-lhes uma religião. Esta força simbólica de nomear em sua própria língua aparece nos nomes de organizações de mulheres negras, em suas publicações, nos eventos que promovem, nos nomes que dão a seus filhos e filhas. Ao longo das análises, venho argumentando sobre o eu mulher negra que não diz exclusivamente de uma enunciação individual e que não se refere somente às experiências pessoais, mas significa o dizer, como o nós mulheres negras, de uma coletividade em luta. Com esta reflexão, certamente não pretendo apagar as singularidades da enunciação em eu de uma mulher negra em sua existência contingente e única, nem propor mulheres negras como coletividade homogênea desde a qual enuncia o eu, na condição de mulher negra. Considero que dizer eu se dá como resistência às políticas de silêncio impostas às mulheres negras na história brasileira e diaspórica, em contraponto aos intentos de objetificação – aqui tratada como o discurso do outro sobre as mulheres negras na condição de objetos sem agência, de corpo sem mente em uma homogeneização dos sentidos na forma de estereótipos. O dizer eu é parte da afirmação da condição de sujeito, um sujeito que se contraidentifica ao discurso dominante que apaga a possibilidade da singularidade na homogeneização e indistinção de negros ao mesmo tempo em que é condição de possibilidade do dizer nós, este último visto como o significante por excelência da enunciação política 104 Uma literatura especializada trata a identidade negra desde diferentes perspectivas: a sociologia, a psicologia, a educação, a antropologia (cf. MUNANGA, 1988, SOUSA, 1983). 175 coletiva. Assim, este eu não é aquele da afirmação da falsa liberdade, do eu posso, eu consigo, eu sou o que quiser ser, conforme ocorre de modo dominante na formação social capitalista (o que não significa que escape dos processos de interpelação e assujeitamento constitutivos do sempre-já sujeito). Os trabalhos produzidos no campo da teoria e crítica literária acerca do que definiria uma literatura negra ou afro-brasileira, na qual está presente o debate acerca do discurso sobre negros e de negros contribuem para se pensar nestes enunciados de afirmação identitária bem como na constituição de um enunciador eu mulher negra105. Desde a década de 1970 é mais expressiva a produção de escritores que afirmam seu pertencimento como negros ou afrodescendentes, ocupando maior espaço na cena cultural ao mesmo tempo em se ampliam e adquirem visibilidade institucional as demandas do movimento negro (DUARTE, 2011). De forma simplificada, neste debate, pergunta-se: seria a temática negra a definidora desta literatura ou o pertencimento étnico-racial de quem escreve? Percorro este debate a partir dos artigos Por um conceito de literatura afro-brasileira, de Eduardo de Assis Duarte (2011) e Literatura negra: uma poética de nossa afro-brasilidade, de Conceição Evaristo (2009). Contribui ainda com a reflexão sobre a literatura afro-feminina, como define a autora, o artigo Poéticas da Diferença: a representação de si na lírica afro-feminina, de Lívia Natália (2011)106. Pela leitura do artigo de Duarte (2011), conheci o Introdução à literatura negra, de Zilé Bernd (1988). Centrado na poesia, seu trabalho estabelece características da literatura negra, entre elas a oposição aos sentidos hegemônicos e construção de uma “nova ordem simbólica”, a construção da epopeia negra e, sobretudo, a “emergência de um eu enunciador”, como se pode ler: 105 Apesar da tese não ter priorizado na constituição de seu corpus textos literários e, para as análises, a produção bibliográfica dos estudos literários, os poemas e textos em prosa escritos por mulheres negras integraram o grande arquivo construído ao longo da pesquisa. Como vimos na análise do III ECLAC (1985) e, depois, no vídeo da Marcha das Mulheres Negras (2015), a poesia é acionada para significar a luta, como se o poético fosse uma forma privilegiada para expressar sua complexidade, dor, ritmo, história e beleza ou, ainda, como se a poesia e a literatura fossem arenas imprescindíveis para luta e re-existência das vozes mulheres negras. Uma reflexão sobre as relações entre movimentos de mulheres negras e produção artística certamente seria imprescindível para avançar nestas afirmações, bem como, de forma mais específica, as relações entre feminismos negros e literatura. Aproveito para registrar que foi somente na reta final da tese que fiz leituras de mais fôlego dos estudos literários sobre literatura negra ou afro-brasileira, o que rendeu reflexões profícuas, porém sem o devido aprofundamento. 106 Há uma longa trajetória de escritoras mulheres negras na literatura brasileira, bem como expressiva produção teórica sobre a literatura negra feminina (Cf. EVARISTO, 2009). Lívia Natália (2011:113) afirma que “a ausência acintosa de mulheres negras no cânone literário brasileiro pode ser justificada mais pelos processos de invisibilização e minoração do valor estético de seus textos que por qualquer questão relativa à sua potência criadora” e lista uma série de escritoras, de Maria Firmina dos Reis, a primeira romancista brasileira, que publicou Úrsula (1859) às jovens Cristiane Sobral e Mél Adun. Atualmente, devem-se considerar os crescentes movimentos dos saraus e maior expressão da literatura periférica e da literatura negra ou afro-brasileira. 176 A montagem da poesia negra faz-se a partir da (re)conquista da posição de sujeito da enunciação, fato que viabiliza a re-escritura da História do ponto de vista do negro. Edificando-se como espaço privilegiado da manifestação da subjetividade, o poema negro reflete o trânsito da alienação à conscientização. Assim, a proposta do eu lírico não se limita à reivindicação de um mero reconhecimento, mas amplifica-se, correspondendo a um ato de reapropriação de um espaço existencial que lhe seja próprio (BERND, 1988: 77, grifos da autora apud DUARTE, 2011). Nesta perspectiva, a partir da (re)conquista da posição de sujeito da enunciação, do ponto de vista negro, em uma enunciação do pertencimento étnico-racial negro, que não se representa no enunciado somente como voz individual mas identifica-se com a comunidade, se produz este eu enunciador negro. No caso dos poemas resisto e resgate, de Alzira Rufino (1988), há o efeito de sentido de trânsito da alienação à consciência, no questionamento do medo e da vergonha que se faz afirmação da resistência (em resisto) ou na afirmação da identidade negra em relação a uma memória de negação (em resgate). Porém, deve-se tomar este critério do movimento da consciência como critério para definir o poema negro (ou os funcionamentos discursivos relacionados ao eu mulher negra)? Outras definições articulam o sujeito de enunciação à exigência de pertencimento e compromisso ideológico de quem escreve, argumentando que tão relevante quando o sujeito de enunciação próprio de eu lírico ou narrador que se autoproclama negro ou afrodescendente é o ponto de vista. Duarte (2011: 07), depois de compilar posições diferentes no debate acerca da literatura negra e da literatura afro-brasileira, defende elementos distintivos desta literatura. Seriam constantes discursivas a atravessar os textos ao longo do tempo: Para além das discussões conceituais, alguns identificadores podem ser destacados: uma voz autoral afrodescendente, explícita ou não no discurso; temas afro-brasileiros; construções linguísticas marcadas por uma afrobrasilidade de tom, ritmo, sintaxe ou sentido; um projeto de transitividade discursiva, explícito ou não, com vistas ao universo recepcional; mas, sobretudo, um ponto de vista ou lugar de enunciação política e culturalmente identificado à afrodescendência, como fim e começo. Nas formulações deste autor, o ponto de vista e o lugar de enunciação estão em relação de paráfrase. Este indicaria a visão de mundo autoral e o conjunto de valores que fundamentam as opções presentes na representação. O tema e a ascendência africana de quem escreve seriam insuficientes – seria “necessária ainda a assunção de uma perspectiva identificada à história, à cultura, logo a toda problemática inerente à vida e às condições de existência desse importante segmento da população” (DUARTE, 2011: 10). Na perspectiva da AD, uma tomada de posição constitutiva do lugar de enunciação. Livia Natália (2011:111) argumenta que o reconhecimento da inscrição de 177 diferenças várias na produção literária e pensar a literatura através do recorte destas diferenças é positivo e necessário aos estudos literários, defendendo que “a literatura tem sobrenomes, e são muitos: homoafetiva, feminina, negra, periférica, oral”, sendo que cada um deles desafia diferenças silenciadas e a identidade unívoca (que nas relações de poder significa a posição de dominação como neutra). Esta defesa vem acompanhada de uma ressalva à estabilização dos sentidos por qualquer interpretação que faça “dos sobrenomes” aprisionamento da leitura, condicionada “a novos centramentos fixos, como outras formas de apagamento da diferença, mas como centros instáveis e inseguros que preservam a capacidade que toda expressão artística tem de se oferecer ao mundo em ininterrupto devir” (NATALIA, 2011:111). Acerca dos limites e virtudes da vertente negra da literatura brasileira, Ronald Augusto (2014), poeta, músico, ensaísta, problematiza (evitando análises concludentes) as posições que a pensam na perspectiva de lances identitários, frisando a especificidade da linguagem da literatura, que não deve servir às necessidades de certas interpretações. O autor defende que o tópico da literatura negra é um debate que não deve ser lacrado, assim às pressa. Exceto, talvez, do ponto de vista acadêmico ou do discurso militante, é algo que, a rigor, não tem de ser resolvido. As tensões etnicossociais, antropológicas e políticas às quais esses textos em algum momento fazem alusão, essas sim podem e devem ser resolvidas. Mas um poema de verdade não admite solução. (AUGUSTO, 2014:209) As reflexões de Natalia (2011) e Augusto (2014) alimentam um debate fecundo sobre as relações entre a legitimidade construída pela experiência de ser negra, as temáticas que são a ela atreladas e a criação e textualidade na produção literária. Não haveria uma (de)limitação das temáticas esperadas pelos efeitos dos processos de constituição e afirmação deste lugar de enunciação das mulheres negras, por vezes sobreposta a outros aspectos do texto literário? Estabelecer esses parâmetros para caracterizar a literatura negra ou afrofeminina não exclui vozes de mulheres negras que não se enquadrem (e não queiram se enquadrar) no que se estabelece como critério? Processo similar não ocorre nesta minha tese, quando elenco regularidades enunciativas e discursivas desde posições sujeito de mulheres negras e reúno-os sob o nome “lugar de enunciação de mulheres negras”, seja no singular ou no plural?107 Em suma, este debate no campo literário pode ser ampliado para o campo 107 Os questionamentos são de minha responsabilidade, mas não poderia deixar de mencionar que estas reflexões foram fomentadas por Cidinha da Silva (prosadora, dramaturga, cronista e pesquisadora), especialmente em seu curso “Literatura negra contemporânea no Brasil: uma mirada”, no Centro de Pesquisa e Formação do SESC-São Paulo, em abril de 2015. Além dos debates propostos por Cidinha da Silva neste curso, foi através de sua 178 político e teórico-analítico da Análise de Discurso quando se lida com a organização e análise de corpora em torno de regularidades (aqui, os modos de dizer de si do sujeito da enunciação) e retoma os debates da AD sobre delimitação de formações discursivas e suas relações com o acontecimento discursivo, bem como a posição dx analista que organiza e interpreta um corpus, mas que não pode limitar os trajetos vários dos sentidos, na materialidade do discurso sempre aberta às (outras) injunções interpretativas. Conceição Evaristo (2009: 17-18), escritora que combinou sua militância como artista negra com seu trabalho acadêmico,108 define o corpus da literatura negra brasileira como “produção escrita marcada por uma subjetividade construída, experimentada, vivenciada a partir da condição de homens negros e mulheres negras na sociedade brasileira”, em que há a presença de uma vertente negra feminina. Defendendo o “ponto de vista” como preponderante para esta definição, insiste na relação deste ponto de vista inventado e criado no texto com um “corpo-mulher-negra” em vivência, do qual a escritora não se desvencilha. No bojo desta reflexão, a autora propõe o conceito de escrevivência, que entrelaça ficção, poesia, testemunho e biografia. A esta escrevivência, contrapõe “a roupagem estereotípica com a qual os negros são vestidos em várias obras brasileiras”, da qual ressalta um “imaginário construído em que o sujeito negro surge destituído do dom da linguagem” (EVARISTO, 2009: 22). Portanto, a escrevivência é também resposta, reação, é palavracombate (seja aberto ou não). A autora afirma que “nossa escrevivência não pode ser lida como história de ‘ninar os da casa-grande’, e sim para incomodá-los em seus sonos injustos”. (EVARISTO, 2005). Proponho pensar que nas imagens de si projetadas na interlocução discursiva têm peso um corpo que historicamente foi significado em diversos discursos de forma negativa, e que será positivado. Um corpo que é discurso e que se faz presente tanto na escrita quanto na oralidade, nas interlocuções face a face de um encontro político ou em um texto acadêmico no qual o eu diz como mulher negra, compreendendo que as projeções imaginárias funcionam na interlocução discursiva quando se vê ou não este corpo. Concluo, então, que o dito projeta visualmente um corpo e o dizer; cada enunciação é um gesto de visibilidade que constitui a voz e o corpo ressignificado de mulheres negras. Logo, a construção da legitimidade deste dizer se assenta neste funcionamento imaginário. indicação de leitura que tomei contato com a produção de Lívia Natália. 108 Cf. Machado (2011), em artigo que expõe parte de sua pesquisa de mestrado intitulada “Conceição Evaristo e a intelectualidade negra no contexto do movimento negro brasileiro contemporâneo”. 179 O poema Vozes-mulheres, do livro Poemas da recordação e outros movimentos, de Conceição Evaristo (2008), que abre a minha tese, desde seu título contribui com elementos para pensar os lugares de enunciação de mulheres negras. São vozes de mulheres, vozes que são mulheres. Não há o adjetivo negras, mas a memória evocada de porões de navios somada à menção aos brancos significa estas mulheres como negras. A voz da minha bisavó ecoou criança nos porões do navio. Ecoou lamentos de uma infância perdida. A voz de minha avó ecoou obediência aos brancos-donos de tudo. A voz de minha mãe ecoou baixinho revolta no fundo das cozinhas alheias debaixo das trouxas roupagens sujas dos brancos pelo caminho empoeirado rumo à favela. A minha voz ainda ecoa versos perplexos com rimas de sangue e fome. A voz de minha filha recorre todas as nossas vozes recolhe em si as vozes mudas caladas engasgadas nas gargantas. A voz de minha filha recolhe em si a fala e o ato. O ontem – o hoje – o agora. Na voz de minha filha Se fará ouvir a ressonância o eco da vida-liberdade. (EVARISTO, 2008) Uma voz que tem história, uma história que une mulheres de uma mesma família (da bisavó à filha), de um eu que diz hoje se significando nas relações com o passado e que projeta sentidos para as gerações futuras. Um eu testemunha que narra seu passado, tematiza sua voz, filiando-a a outras vozes, pelas quais se responsabiliza em processos que significam este eu, inserido em uma história familiar e de todo povo afrodescendente no Brasil que compartilha esta história. O eu diz do nós, fala pelas gerações atuais e passadas e, na interpretação que faz da voz da filha, diz pelas gerações futuras. Uma voz de mulher que 180 reúne outras vozes de mulheres – dos lamentos de infância perdida, da obediência aos brancos-donos de tudo, da revolta que não pode romper o fundo das cozinhas dos patrões brancos e a situação de pobreza – a filha responsabilizada por gerações de mulheres negras que não tiveram a mesma possibilidade de fazer ecoar suas vozes. Mulheres cujas vozes ecoaram a despeito das políticas do silêncio ao longo de séculos; ecoaram apesar serem mudas, caladas, engasgadas nas gargantas (expressões similares aquelas que emprega Audre Lorde em seu texto sobre os silêncios). Nestes versos, não são vozes de heroínas, de mulheres lideranças comunitárias ou revoltas populares. São vozes de mulheres negras comuns, as anônimas guerreiras, que mesmo em seu sofrimento, quando não representadas como aguerridas, têm a força de fazer resistir sua voz às gerações seguintes. No percurso teórico-analítico que tenho trilhado, penso na mudança da correlação de forças entre sentidos e na luta pela formulação e circulação de dizer – no caso, no espaço literário, majoritariamente elitista – de um eu-enunciador mulher negra que, ao dizer, diz de si nas múltiplas e compósitas possibilidades das identificações gendradas-racializadas-classistas possíveis para as mulheres negras. Este eu perpassa o testemunho, a biografia, a experiência, a vivência em processos de subjetivação que entrecruzam classe, raça, gênero, orientação sexual, geração, religião, entre outros. Como tenho exposto nas análises, este eu invade o texto acadêmico que teria preferência por construções impessoais, perpassa falas políticas em que o eu representa um coletivo em um encontro político, está na vertente feminina da literatura negra, em balanços de militantes dos movimentos de mulheres negras ou feminismos negros, em relatos e entrevistas em primeira pessoa que contam as trajetórias de mulheres anônimas guerreiras brasileiras, que passam a ter seus nomes registrados pela luta por memória ou de representativas lideranças dos movimentos negros109, no teatro, no cinema, entre outros. São as relações com as posições sujeito (feministas e antirracistas, por exemplo), os tópicos de seus dizeres – os temas negros ou afro-brasileiros, como a história do povo negro e das mulheres negras na diáspora, os embates com as memórias dominantes de brasilidade, as tradições culturais ou religiosas de matrizes africanas, etc., e a relação do eu com a responsabilidade do dizer, o eu que assume um pertencimento identitário e 109 Cf. Alberti; Pereira (orgs.) Histórias do Movimento Negro no Brasil – depoimentos ao CPDODC. Ed. Pallas: Rio de Janeiro, 2007. Em muitas das entrevistas sobre as histórias de vida de lideranças negras, o perceber-se negro aparece como resultado de um caso de racismo narrado pelo eu ou pela advertência da família que prepara os filhos para enfrentar o racismo fora de casa e é retomado pelos avistas dos movimentos negros quando vão tratar do que denominam consciência negra, a politização do ser negro. 181 comunitário, que delimitam este eu mulher negra. As passagens do eu para o nós também são constantes, delimitando seus contornos e projetando as relações de interlocução dos discursos desde vozes-mulheres negras. 182 ___________________________________________________________________________ Capítulo 4 Estereótipos, lutas por (res)significação e outras rotas de sentidos ___________________________________________________________________________ 183 Abram alas para as mulatas brasileiras. “E lá vão elas, rebolantes e sorridentes rainhas, distribuindo beijos como se fossem bênçãos para seus ávidos súditos nesse feérico espetáculo...” (GONZALEZ, 1984: 227). É carnaval, festa da carne, dos corpos à vontade, momento de encenar o mito da democracia racial. É por aí que Lélia Gonzalez (1984: 228), no emblemático texto Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira, entende seu “endeusamento carnavalesco”, quando “ela perde seu anonimato e se transfigura na Cinderela do asfalto110, adorada, desejada, devorada pelo olhar dos príncipes altos e loiros, vindos de terras distantes só para vê-la.” Depois da quarta, dos sonhos sobram as cinzas (mas ano que vem tem mais!) e essa mulher se transfigura na empregada doméstica. Hora de guardar a fantasia, de tirar o bloco da rua, de voltar pra cozinha, da mulher negra ocupar outro lugar nas imagens que lhe cabem na cultura brasileira. Segundo Lélia Gonzalez (Ibidem), “os termos mulata e doméstica são atribuições de um mesmo sujeito. A nomeação vai depender da situação em que somos vistas”. Neste enunciado, mulheres negras são representadas enquanto seres no mundo na posição de autoras de um texto acadêmico que denuncia e questiona a articulação do racismo e do sexismo, a violência simbólica dos modos de rejeição/integração das mulheres negras no processo de formação cultural brasileira. Como autoras, dizem sobre elas mesmas – sobre o nós que enuncia – de como foram/são nomeadas e significadas historicamente por outras vozes, conforme analisei no primeiro capítulo da tese: “O fato é que, enquanto mulher negra, sentimos a necessidade de aprofundar nessa reflexão, ao invés de continuarmos na reprodução e repetição dos modelos que nos eram oferecidos pelo esforço de investigação das ciências sociais” (GONZALEZ, 1984: 225). Com esta introdução, espero ter tocado os dois temas que serão abordados nesta primeira parte do capítulo. Inicialmente, os processos de construção do imaginário sobre as mulheres negras no Brasil. Para pensar neste imaginário, refletirei sobre a construção histórica 110 Pouco antes da escrita do texto de Lélia Gonzalez, em 1978, Pinah Maria Ferreira Ayoub tornara-se famosa como Cinderela Negra, depois de sambar com o príncipe Charles durante uma visita do herdeiro real britânico ao Brasil. Em 1983, quando a Beija Flor se apresentou na Sapucaí com o enredo “A Grande Constelação de Estrelas Negras”, o público presente na avenida cantou os versos “Pinah êêê Pinah, a Cinderela negra que ao príncipe encantou no carnaval com seu esplendor”. A metáfora da mulher negra na passarela do samba como Cinderela, portanto, foi formulada e circulou nestes acontecimentos, produzindo outros efeitos de sentido, sugerindo seu alcance ideológico e ao mesmo tempo desafiando o que diferenciaria negra e mulata. Estes não são casos únicos do emprego da denominação Cinderela Negra – nestes acontecimentos com a adjetivação negra, demarcando por efeito o sentido de branca da Cinderela não-adjetivada. Ele retorna, por exemplo, em reportagem da Revista Manchete: Deise Nunes. Miss Brasil 86, o sonho da Cinderela Negra, analisada por Amanda Braga (2012:172174), quando aponta a oscilação entre os termos negra e mulata no contexto de reabertura política e fundação do Movimento Negro Unificado (1979), no qual o termo negro voltaria à tona, após ficar em suspenso durante todo o período ditatorial. A autora afirma que a vitória de Deise Nunes foi absolutamente representativa do momento político pelo qual passava o país. 184 dos estereótipos como cristalização do discurso dominante sobre mulheres negras em que sua significação pelo corpo sem mente e exótico é fundamental, pondo em diálogo formulações da Análise de Discurso (principalmente de Amossy) com outras de mulheres negras intelectuais/ativistas em diversas áreas do conhecimento, com destaque para Gonzalez (1984), hooks (1995) e as articulações teóricas mais recentes que propõem Borges (2012) e Cardoso (2010). Argumentarei pela articulação destes estereótipos com discursos fundadores da identidade nacional e da brasilidade, em posições sujeito identificadas ao mito da democracia racial111, em que é central a figura da mulata com raízes históricas na figura da mucama da escravidão (GONZALEZ, 1984) e ainda na exotização do Outro e racialização do seu corpo no colonialismo, conforme Borges (2012), Braga (2013) e Damasceno (2008). E o segundo tema: a luta pela interpretação e ressignificação deste imaginário travada por mulheres negras ativistas/intelectuais, pelo autodenominado movimento contemporâneo de mulheres negras, pelo feminismo negro ou por outras vozes-mulheres negras. Os dois temas são interligados, dado que a construção do imaginário se dá nos embates entre sentidos em que o evidente é efeito de uma memória dominante, de uma ou mais formações discursivas da formação ideológica dominante, que fazem com que o sentido apareça como estabilizado e literal. Apesar do efeito de evidência, os objetos discursivos podem estar no alvo de disputas por interpretação, de lutas ideológicas entre posições sujeito diferentes, ou mesmo antagônicas, como é o caso de mulata, contestado desde vozes-mulheres negras e outras posições identificadas com o antirracismo e o antissexismo, conforme apresentarei e defenderei mais adiante. Nesta perspectiva, analiso o trabalho da historicidade nos modos como as posições sujeito em luta organizam diferentemente os sentidos nas materialidades discursivas complexas, afetadas pelas memórias do dizer e também pelas possibilidades de ruptura do dizer. Nestes confrontos, os sujeitos se engajam pelos sentidos das palavras e expressões, os quais são constitutivos de sua própria subjetividade. Conforme retomei no capítulo anterior, como um dos pressupostos da Análise de Discurso filiada a Michel Pêcheux: sujeito e sentido se constituem em um mesmo processo discursivo. Em outras palavras, mulher negra é tomado como objeto e sujeito de dizer paradoxais, ao mesmo tempo idênticos e antagonistas em relação a si mesmos (PÊCHEUX, 111 A denominação “mito da democracia racial” remonta ao modo como os militantes políticos e ativistas negros referirão tanto as relações entre brancos e negros, quanto ao padrão ideal destas relações com o objetivo político de contrapor-se à ideologia oficial patrocinada pelos militares e propalada pelo luso-tropicalismo. (GUIMARÃES, 2001). 185 1982; ZOPPI FONTANA, 2005) e que podem estar no centro de polêmicas, ideologicamente marcados para a interpretação (teórico-política), tensionados pelas relações de forças entre sentidos. Nesta luta para se significar e se representar para além dos sentidos produzidos desde outras posições sujeito e pelos dizeres dos outros – por outros lugares de enunciação, vozes mulheres negras atualizam as memórias diaspóricas negras em seus sentidos de continuidade e ruptura, movimentam-se nos discursos que fundam a sua identidade discursiva como efeito dos processos de subjetivação na imbricação das relações sociais de exploração e opressão, reconhecida a complexidade estrutural das desigualdades. Nestas lutas, os estereótipos “gendrados” e racializados, constitutivos dos processos de identificação, manifestam-se em materialidades discursivas complexas e, mais do que conteúdos, palavras ou imagens, significam-se pelos efeitos de sentidos entre interlocutores em relação a uma memória dominante. Nesta perspectiva, uma designação gendrada e racializada pode ser dita desde diferentes lugares de enunciação, significando diferentemente de acordo com as condições de produção, sendo que a expressão usada em um discurso racista – como foi o caso da designação negro, que se tornou sinônimo de ser primitivo e inferior na conjuntura do tráfico moderno dos escravos negros africanos na ocupação colonial da África no século XIX (MUNANGA, 1986: 09) – pode ser positivada, deslocada, ressignificada pelo movimento de negritude. Aqui me parece importante uma ressalva sobre a luta contra os estereótipos discursivos. Sua eleição como alvos dos discursos politicamente engajados nas lutas travadas contra o racismo e com o sexismo não significa a dicotomização e separação com limites prédeterminados do dizer do outro e do dizer do eu e do nós, dado que todo dizer é constituído por um outro, anterior, exterior, conforme a posição teórica na Análise de Discurso a que este trabalho se filia. Nessa mesma perspectiva, pondero as dicotomias entre o dizer de si como lugar da autoafirmação dos sentidos da resistência e o ser objeto do dizer do outro como repetição dos sentidos dominantes, sendo o estereótipo uma das formas de sua materialização. Tomar os objetos discursivos como paradoxais, com seus sentidos divididos, e sua relação com a constituição dos sujeitos do discurso, abre a possibilidade de se pensar em sujeitos paradoxais, idênticos e antagônicos a eles mesmos, que se movimentam nos rituais de reprodução dos sentidos dominantes, com suas falhas e nas práticas de sustentação de posição dos sujeitos do discurso. Em uma proposta descritiva e interpretativa destas lutas entre/pelos sentidos, tenho sustentado que haja diferentes lugares de enunciação, entre os quais destaco o das 186 mulheres negras que dizem sobre as mulheres negras na prática política, inscritas em diferentes posições sujeito identificadas com as lutas das mulheres e/ou feministas e antirracistas. Um dos funcionamentos do discurso desde vozes mulheres negras em luta é a denúncia e ressignificação de estereótipos racializados e gendrados (que representam o racismo em sua articulação com as distinções de gênero), sendo a incursão à história de sua construção em diferentes discursos um dos recursos para contestar sua naturalização. Para compor o corpus discursivo deste lugar de enunciação, neste capítulo, estão manifestos, fotos e textos midiáticos dos movimentos de mulheres negras no Brasil (a partir dos anos 1970) bem como textos teóricos e políticos de suas intelectuais/ativistas, com destaque para a produção de Lélia Gonzalez (1984). Esta luta se dá na formulação e constituição do discurso desde vozes mulheres negras e no embate que fazem para mudanças na circulação de representações estereotipadas de mulheres negras na mídia e nos currículos e materiais didáticos da educação básica, para mencionar duas importantes arenas de luta (a mídia e a escola). Por sua vez, compõem o corpus discursivo sobre as mulheres negras em posições identificadas com o mito da democracia racial recortes da obra clássica Casa Grande e Senzala (FREYRE, 1933) e, pontualmente, de sua edição em quadrinhos com texto adaptado de Estêvão Pinto e desenhos de Ivan Wasth Rodrigues, publicado em 1981 e relançado em cores em 2000 em comemoração ao centenário de nascimento de Gilberto Freyre. Aqui adentro os discursos da brasilidade. Trata-se, em geral, de imagens de mulheres negras projetadas desde um lugar de enunciação masculino, branco, por vezes, elitista, heterossexual e estrangeiro. Em muitas dessas representações, as mulheres negras são servis e, seus corpos, sexualizados e disponíveis, sendo que a figura da mucama parece significar de forma sintética a harmonia das relações raciais-sexuais-afetivas entre senhores brancos e escravizadas negras que, para esta formação discursiva, estariam na base da miscigenação racial harmoniosa no Brasil. A apresentação a seguir dos lugares de enunciação relacionados a certas posições sujeito ilumina as oposições e dicotomias de forma bem sistemática. Reconheço, entretanto, que discursos dominados se formam no interior do discurso dominante, em uma trama complexa de sentidos112. A negação e a denúncia do discurso da democracia racial mostram 112 Pêcheux (1982b) aborda “dois efeitos religiosos complementares”. O primeiro deles seria “localizar a fonte do processo revolucionário em um discurso teórico”. O segundo deles “consiste em pressupor, no interior do mundo existente, a existência de um germe revolucionário independente, presente no estado prático como essência certamente entravada, reprimida, dominada, mas prestes a fazer irromper” (PÊCHEUX, 1982b:16). Este segundo efeito religioso atingiria formulações sobre a ideologia proletária e sobre o feminismo, por exemplo, 187 sua interioridade no discurso do movimento de mulheres negras, para mencionar um exemplo. Portanto, as disputas políticas por um lugar de enunciação e pelos sentidos de mulheres negras travadas por mulheres negras para dizerem de si mesmas são pensadas como práticas políticas de intervenção coletiva em processos de afirmação e desconstrução de identidades discursivas, em que há repetição e deslocamento dos sentidos em relação às identificações dominantes. 4.1 Estereótipo e a significação da mulher negra pelo corpo A noção de estereótipo interessa a diferentes disciplinas. Um livro que se dedica ao tema é Stéreotypes et Clichés, de Amossy e Pierrot (2005), que historia noções relacionadas ao conceito de estereótipo em diferentes abordagens nas ciências humanas (as ciências sociais, as ciências da linguagem e os estudos literários) e propõe, em um de seus capítulos, uma reflexão sobre a estereotipia desde a Análise de Discurso. O termo estereótipo remonta à tipografia, ao que é impresso com placas de caracteres fixos, conservados para novas tiragens (AMOSSY & PIERROT, 1997: 30). Apesar de a Análise de Discurso francesa ter se interessado pouco pela estereotipia, segundo as autoras (AMOSSY & PIERROT, 1997: 106), seu quadro é propício para pensá-la. A noção de estereótipo poderia se aproximar daquela de pré-construído, correspondente ao “‘sempre-já-aí’ da interpelação ideológica que fornece-impõe a “realidade” e seu “sentido”” (PÊCHEUX, 1975: 151). O estereótipo remete a um já dito e a discursos anteriores, considerando que o pré-construído remete a uma construção anterior, exterior e independente do enunciado (apagada nas nominalizações, por exemplo) e a discursos prévios, num sentido mais amplo, como discursos que precedem o sujeito que enuncia e os quais ele não debate ou questiona, pois se supõe origem do dizer e do sentido. Faz-se produtiva esta ligação com o pré-construído quando pensamos o estereótipo como resultante de um conjunto não recuperável de acontecimentos enunciativos irrepetíveis que produz como efeito a cristalização e fixação de sentidos pela projeção da repetição do mesmo que apaga os confrontos entre formações discursivas diferentes e até mesmo antagônicas ao longo da história. Ao situar o estereótipo significando o mesmo como efeito da memória discursiva, dado que não existe reprodução sem falha e todo acontecimento vistos como “contra-ideologias revolucionárias”. Estas leituras cegam-se “ante ao fato de que toda dominação ideológica é antes de tudo uma dominação interna” e que “as ideologias dominadas se formam sob a dominação ideológica e contra elas, e não em um ‘outro mundo’, anterior, exterior ou independente”. (Idem, grifos do autor) 188 é contingente (carrega a possibilidade do novo), retomamos o princípio da Análise de Discurso de que as palavras se significam no interior e no embate entre formações discursivas, ou seja, de acordo com as posições sujeito em que se inscrevem os enunciadores. Nesta perspectiva, não há fixidez de sentidos, mas efeito de fixidez na evidência dos sentidos dos objetos discursivos pelo apagamento dos embates ideológicos e da história. Em outras palavras, o estereótipo é uma forma específica de presença da memória discursiva assentada em um efeito de fixidez dos sentidos pela repetição de elementos desta memória. Quais seriam, então, os elementos reproduzidos que em sua evidência apagam outros sentidos? Como os estereótipos significam um grupo racial? Como são pensados desde posições que buscam outras representações para/das mulheres negras? De que modo os sentidos dominantes são reproduzidos e/ou deslocados na formulação dos estereótipos e em sua contestação por vozes mulheres negras em luta? São estas questões que me acompanham na primeira parte deste capítulo, e que, de certa, estão contempladas também em outras discussões da tese. Borges (2012: 178), em seu trabalho reflexivo sobre a mídia e os racismos, aponta que uma significativa fração dos estudos com ênfase nas questões raciais abordam os modos de produção e manutenção de estereótipos e estigmas em torno do negro, defendendo “a necessidade premente de instauração de outras narrativas capazes de abordar dimensões variadas sobre esse grupo racial, o que confere à discussão uma dimensão política”. A partir do que aponta a autora, poderíamos pensar na luta epistêmica nas universidades por espaço e reconhecimento para a temática, nas lutas contra a veiculação de imagens sexistas e racistas na mídia (inclusive aquelas que lançam mão de denúncias ao judiciário, para citar um exemplo), por cotas raciais na publicidade, por papéis diversificados para os atores e atrizes negras na televisão e no cinema, entre tantas outras. De forma muito ampla, estas são lutas pela representação da diversidade do ser negro e ser mulher negra, considerando a mídia como fundamental para a superação da discriminação e do racismo e da prática recorrente nos sistemas midiáticos “de emoldurar o Outro, de fundi-lo em figuras restritas” por meio de uma gramática que “homogeneíza signos dispersos no tecido social” (BORGES, 2012: 182). Estas imagens conduzem as rotas da interpretação em sua circulação: pelo préconstruído, produzem o efeito de conhecido por todos, aquele da evidência ideológica. Em seu componente racializado e gendrado, significando sujeitos, estes estereótipos compõem um conjunto restrito de imagens para significa-los, imagens coladas aos corpos dos sujeitos racializados e gendrados. A eficácia da Ideologia se faz, portanto, na interpretação como o 189 mesmo, diante do efeito de fixidez em uma pluralidade de imagens. Eficácia que determina o que se pode e deve ver a partir de determinadas posições sujeito. Para meu trabalho, a principal contribuição de Borges (2012:184) é sua interpretação de que o sistema de representação nas mídias, em especial os modos como são projetadas as figuras do homem e da mulher negra(os), “gravita normalmente em discursos fundadores que remetem sempre a referenciais mais ou menos estáveis, a despeito da gradual mudança que a questão racial negra tenha sofrido nos últimos anos, principalmente nas esferas publicitária e dramatúrgica”. Um grupo de autoras e autores trabalha a historicidade apagada nos estereótipos e procura investigar sua constituição. Borges (2012) empreende este caminho e o faz recorrendo, entre outras referências, à noção de discurso fundador de Orlandi (1993). A autora, acerca dos discursos sobre o negro e a mulher negra nos sistemas midiáticos brasileiros, afirma que há estigmas e estereótipos que parecem se repetir indefinidamente, não em termos de conteúdo, mas de articulação, fazendo permanecer as referências do passado. “No caso em questão, essa articulação vincula remotamente, aos pilares do racismo, à dimensão corpórea como elemento distintivo entre um eu civilizado e o outro bárbaro”, retomando uma concepção colonialista e etnocêntrica (Idem: 188). É esta articulação, e não os conteúdos das representações, que deveriam ser objeto das análises, pois os estereótipos em torno das mulheres negras “se movimentam sobre uma estrutura cíclica, em que os discursos fundadores do Outro ainda são o grande manancial para tipificação dos personagens negros e dos assuntos relacionados à África e ao Brasil negro” (Idem: 198). O caso que a autora aborda como fundador da imagem da mulher negra é a história de Sarah Baartman, que ficou conhecida como Vênus Hotentote. Enfocarei sua história por meio das intepretações que argumentam que foi pelo corpo de Sarah que se fundou o conceito moderno de raça no século XIX (DAMASCENO, 2008) e a constituição de um universal do corpo da mulher negra (DAMASCENO, 2008; BORGES, 2012). Este caso insere-se no quadro da colonização recente da Europa no século XIX, quando as posições dominantes se empenharam em poder provar cientificamente a inferioridade dos povos não europeus. Este é um dos três momentos distintos, apontados por Stuart Hall (1993 apud DAMASCENO, 2008), de encontro do Ocidente com o negro, em que foi central o estereótipo como prática de significação para a representação da diferença racial, uma 190 prática representacional que reduz, essencializa, naturaliza e fixa as diferenças do Outro 113. Segundo leitura que Damasceno (2008) faz de Hall (1997), o estereótipo divide o normal e o aceitável do anormal e inaceitável e, então, exclui ou expele o diferente. Em síntese, para Hall, a produção de estereótipos serve à manutenção tanto da ordem social quando da simbólica e estereotipar seria “um elemento chave no exercício da violência simbólica” (HALL, 1997: 259 apud DAMASCENO, 2008). Nascida em 1789, na África do Sul, e batizada por seus patrões, “como era comum às mulheres hotentotes, Sarah tinha nádegas proeminentes (esteatopigia) e grandes lábios hipertrofiados em virtude da manipulação da genitália, o que lhe rendeu o apelido de tablier, avental em francês” (BORGES, 2012: 190). Foram estas características corporais a despertar atenção de viajantes europeus que a converteram em espetáculo público em shows circenses nos quais os corpos humanos eram exibidos como monstruosidades e cujo público era numeroso e composto especialmente por homens. Neste contexto, o corpo de Sarah, também conhecida como Saartje, é exposto como a extrema diferença e anormalidade, servindo para confirmar a normalidade e civilidade europeia: o Mesmo. Nas palavras de Damasceno (2008: s/p), “se no século XIX o corpo europeu masculino representa a normalidade, o quê se não o corpo de uma mulher, negra, para representar sua radical alteridade?” Depois de transformada em espetáculo por meio de exibições públicas nos freak shows da Inglaterra, ela é tornada objeto científico na França, sendo que “em ambas as situações, ela é reduzida ao corpo, com análises racializadas e sexualizadas” (BORGES, 2012: 193). Considera-se, portanto, que, nos marcos do colonialismo europeu, tanto a espetacularização dos freak shows quanto as práticas médicas inscreveram o corpo como lugar de significação da diferença. De acordo com Damasceno (2008, s/p), em referência a Gilman (1985), o discurso científico médico construiu o conceito de negritude e de racismo a partir da diferenciação do corpo feminino negro pensado como anormal, desviante em relação ao corpo masculino europeu. Naquele se articulavam categorias de raça e gênero que, universalizadas, acabaram por criar uma iconografia de hipersexualidade da mulher negra que impera até hoje e nisso o papel do anatomista francês, Cuvier, foi preponderante. A partir de seus estudos o corpo de Saartje começou a representar um ícone sobre o qual a diferença sexual entre negros e brancos foi fundada (GILMAN, 1985), ela era a alteridade personificada. 113 Os outros dois momentos seriam as práticas da escravidão no século XVI e no Pós-guerra, quando se inicia a migração negra para a Europa e o Norte da América (HALL, 1993 apud DAMASCENO). 191 Na medida em que se considera Georges Cuvier o cientista que protocolou o termo raça na ciência moderna (SCHWARCZ, 1993 apud DAMASCENO, 2008), seu caso pode ser pensado como acontecimento histórico e acontecimento discursivo de caráter fundador. Damasceno (2008, s/n) é enfática: “Sarah Baartman deu um corpo à teoria racista”. Borges compreende que “o discurso instala-se por meio do corpo de Sarah num discurso fundador, nos moldes em que foi cunhado por Eni Orlandi” e a partir do qual “Vênus Hotentote configura [...] uma situação emergente, tida como fundadora, que tipifica o que é ser mulher negra, cria uma tradição e institui uma memória outra” (BORGES, 2012:194), produzindo “o efeito do novo que se arraiga, no entanto, na memória permanente” (ORLANDI, 1996: 12 apud BORGES, 2012: 194), por se significar como evidente e familiar. Pode-se compreender o duplo caráter fundador do caso da Vênus Hotentote como acontecimento histórico e discursivo – a fundação do conceito de raça e da imagem universal da mulher africana (que deslizará para a imagem universal hipersexualizada da mulher negra brasileira, estendida aos negros de modo geral) pelos processos discursivos que constituem raça por meio de um corpo negro e feminino significado como diferença anormal. Em síntese, o discurso fundador de raça faz com que as mulheres negras sejam significadas pelo corpo, um corpo investido de sentidos sexualizados e racializados ao longo da história e que se projeta imaginariamente na interlocução discursiva. Nesse discurso, a humanidade da mulher negra é violentada simbolicamente em sua redução a objeto, coisa, corpo e natureza. Este corpo é significado como anômalo a partir de sua genitália, vista como diferença sexual natural que aproximava esta mulher ao selvagem, primitivo e animal. Damasceno (2008), novamente com base em Hall (1997), defende que neste caso ocorre um processo comum no fetichismo, que racionaliza e legitima o fato de as mulheres negras ocuparem as posições mais baixas nas hierarquias sociais 114. As 114 Em seu artigo, Damasceno (2008) não deixa de conferir a possibilidade de resistência desta mulher. Leiamos as palavras da autora: “Em dezembro de 1815, depois de contrair uma doença contagiosa, Sarah bebe até a morte, diz Cuvier. Desse modo matou a khoi-san de nome desconhecido para nós, a boer Sarah e a Vênus Hotentote, a identidade dominadora que a habitava. Destruindo-se ela mostrava que ainda detinha poder sobre o seu corpo que não podia ser de todo controlado, assim ela resgatava tragicamente sua autenticidade.” Braga (2012: 72) demonstra em sua tese a continuidade desta luta pelo corpo de Sarah, que diz da permanência de relações de poder e também da luta para a ressignificação por aqueles atingidos diretamente pelo racismo. Afirma a autora: “sobre Saartjie, é preciso que se diga: mesmo depois de morta, em 1815, aos 26 anos, seu corpo continuou a ser exposto. Sua genitália, nunca descoberta durante as apresentações que fazia, foi retirada por Cuvier, conservada em formol, e exposta juntamente com outros órgãos, inclusive o cérebro, até 2002, no Museu de História Natural de Paris – depois chamado de Musée de l´Homme. Segundo o próprio Cuvier, orgulhoso de seu feito, não havia “nada mais famoso na história natural que o tablie das hotentotes” (apud DAMASCENO, 2007). Assim, após receber atestado científico de sua inferioridade racional, sexualidade aflorada e aproximação com os babuínos pelo desenvolvimento de suas nádegas, Saartjie continuou a se apresentar, dessa vez em frascos de formol que ilustravam as prateleiras do Musée. Apenas em 2002, por reivindicação de Nelson Mandela, seus 192 formas deste corpo diriam de um apetite sexual incontrolado e instintivo, significariam pelas dimensões das nádegas e da genitália a hipersexualização, o corpo-sexo em uma interpretação legitimada pelo discurso científico. No discurso fundador da raça como conceito moderno no qual o corpo de Sarah é a evidência das diferenças das raças e a pura natureza, produz-se também a invisibilidade do corpo masculino europeu branco como normal, em detrimento de sua significação como cultura e inteligência. Neste caso, a evidência ideológica produz a invisibilidade do corpo masculino branco como materialidade significante. O homem branco europeu normal é mente e, em contrapartida, em uma repartição binária dos sentidos nessa matriz de significação, ou formação discursiva racista, a mulher negra africana é corpo e natureza. Uma das decorrências, que venho analisando ao longo da tese, é que se diz desde este lugar sem mobilizar recursos linguísticos que o determinem, pelos efeitos de evidência que o produzem como universal. Em contrapartida, lugares de enunciação que denunciam a historicidade e as relações de poder deste “sujeito universal” lançam mão da determinação do lugar desde onde dizem nos processos constitutivos de sua subjetividade e na luta pela legitimação de seu lugar de enunciação e de seus dizeres. Damasceno (2008, s/p) argumenta que o caso de Sarah diz respeito ainda à racialização da forma de conhecimento e que a dicotomia entre sujeito e objeto através de um binarismo que opõe o sujeito que conhece ao objeto que é conhecido tornou-se um dos pilares da construção do estereótipo da mulher negra. Concepções de Sarah como natureza a ser conhecida e dos europeus como cultura que conhece, mantém uma representação calcada em oposições binárias que a essencializam e fixam o seu significado. Esse processo se deu e se dá através de sua objetificação. Ao se tornar um objeto de conhecimento lhe é interditado o poder de conhecer e nomear a si mesma e aos outros. À objetificação se opõe a práxis de mulheres negras na produção intelectual, porque, como afirma bell hooks (1995: 469), “mais do que qualquer grupo de mulheres nesta sociedade, as negras têm sido consideradas só corpo sem mente”. Em artigo intitulado Intelectuais negras, a autora prossegue sua argumentação dizendo que esta representação é uma justificativa da exploração masculina branca e do estupro das mulheres negras durante a escravidão: “a cultura branca teve de produzir uma iconografia de corpos de negras que insistia em representá-las como altamente dotadas de sexo, a perfeita encarnação de um órgãos, bem como uma caixa com sua ossada, foram devolvidos à África do Sul. Carregados de história, racismo e da ferocidade científica do colonialismo, aqueles ossos, pedaços de cérebro e vagina receberam as honras de um chefe de Estado e tiveram seu sepultamento sob salvas de canhão e um discurso inflamado proferido por Nelson Mandela acerca da herança e da identidade africana. 193 erotismo primitivo e desenfreado” (Idem: 469). Adentremos, pois, o imaginário acerca das mulheres negras nos regimes de escravidão negra nas Américas. Braga (2013), argumentando pelos nexos entre representação da beleza negra atual e uma rede histórica dos sentidos, no capítulo de sua tese dedicado à história das marcas do período escravocrata no corpo, dedica um subcapítulo ao tema (de Vênus a Vênus), em que parte da representação clássica de uma Vênus branca, passa pela representação da Venus noire, na França do século XIX, e discute seus desdobramentos no Brasil no período da escravidão, com a abordagem do apelo sexual atribuído ao corpo negro. A autora afirma que “acusada pela ciência europeia de uma hipersexualidade, a mulher hotentote, no Brasil escravocrata, também não ficou alheia aos sentidos sexuais oferecidos a seu corpo” (BRAGA, 2013: 75). A leitura de hooks (1995) sobre uma iconografia de representação da mulher negra perpetrada pela ação conjunta do racismo e do sexismo contribui para se pensar em um imaginário sobre as mulheres negras compartilhado na diáspora africana. Algo que já podia ser lido na produção de Lélia Gonzalez (1988) sobre as mulheres amefricanas e em sua defesa de um feminismo afro-latino-americano. Para hooks (1995: 468), esta iconografia “imprime na consciência cultural coletiva a ideia de que ela [mulher negra] esteja neste planeta principalmente para servir aos outros”, opondo duas imagens que registram a presença feminina significada pelo corpo: a de selvagens sexuais desqualificadas e/ou prostitutas e a da mãe preta, “neste caso a construção de mulher como mãe peito amamentando e sustentando a vida dos outros”. A autora ainda diz da “insistência cultural em que as negras sejam encaradas como empregadas domésticas independentemente de nosso status no trabalho ou carreira assim como a aceitação passiva desses papéis pelas negras” (Idem: 470), compreendendo que esta iconografia impede que mais mulheres negras escolham tornar-se intelectuais. Na mesma direção, Borges (2012: 195) compreende que a aceitação dessas representações continua a informar o modo como se veem as mulheres negras: “vistos como ‘símbolo sexual’, os corpos femininos negros são postos numa categoria, em termos culturais, tida como bastante distante da vida mental”. Feito este percurso, sigo para as análises sobre a figura da mulata em um dos discursos fundadores da brasilidade, aquele que diz do encontro e da harmonia das raças, engengrado nos anos 1930 por expoentes como Gilberto Freyre, compreendo que os estereótipos em torno das mulheres negras se constituem no entrecruzamento de discursos fundadores que repetem e atualizam sua significação prevalente pela centralidade que 194 conferem ao corpo. Um corpo sem mente, um corpo para servir aos outros, seja pelo trabalho ou pelo sexo115. Percorro o tema dos estereótipos de mulheres negras, reconhecendo no caso da Vênus Negra a instauração de um discurso fundador, e na produção de autoras feministas afro-americanas e negras brasileiras um terreno da luta política. Esta produção intelectual discute e, em alguns casos, desafia as epistemologias dominantes, na busca da constituição histórica de sentidos de sexualização e servilismo cristalizados nos estereótipos ainda hoje correntes acerca das mulheres negras. Na segunda metade do capítulo, volto-me para as lutas pela significação dos corpos femininos negros em sentidos positivos, em contradição (por embate direto ou não) com os estigmas e estereótipos raciais-sexuais. Foi o que denominei outras rotas de sentidos, em referência à memória diaspórica (em especial a elementos das religiões de matrizes africanas), mobilizada por vozes de mulheres negras ativistas/intelectuais como repertório para afirmação da identidade feminina negra em oposição aos padrões dominantes de feminilidade. 4.2 As mulheres negras escravas no discurso da democracia racial e do Brasil mestiço O livro Casa Grande e Senzala (1933) foi escolhido como objeto de análise por seu caráter inaugural e fundador da formação discursiva da miscigenação, por ser repetidamente referido por vozes-mulheres negras em suas denúncias do racismo e do mito da democracia racial e por seu caráter ambíguo e oscilante – entre a superação da antropologia racista e o acobertamento do racismo por uma posição que enxerga relações raciais harmoniosas e doces entre brasileiros miscigenados – que alimenta diferentes leituras ao longo de décadas (ou seja, seu lugar de texto primeiro objeto de comentários que buscam perscrutar ou restituir-lhe os sentidos). No ensaio freyreano, o clima é de intimidade e cooperação, em uma análise que, para explicar a sociedade patriarcal brasileira, confere centralidade à sexualidade e à “esfera privada”. Vejamos no recorte passagens de Casa Grande e Senzala retomadas pelas intelectuais/ativistas negras116 como insumo em suas denúncias acerca da hipersexualização dos corpos de mulheres negras e sua estereotipia. No recorte do corpus que apresento, há 115 Poderia ainda se propor, com os olhos de hoje no movimento contemporâneo das profissionais do sexo, questionar a dicotomia trabalho e sexo, considerando a possibilidade do sexo como atividade profissional, e não necessariamente (ou somente) violência imposta por outrem. 116 Cf. Lady Almeida (2010) e Núbia Moreira (2011). 195 diferentes imagens destas mulheres escravizadas no espaço da casa grande – em especial das mucamas e das amas de criar – que se relacionam aos estereótipos de mulheres negras em circulação hoje: Mas aceita, de modo geral, como deletéria a influência da escravidão doméstica sobre a moral e o caráter do brasileiro da casa-grande, devemos atender às circunstâncias especialíssimas que entre nós modificaram ou atenuaram os males do sistema. Desde logo salientamos a doçura nas relações de senhores com escravos domésticos, talvez maior no Brasil do que em qualquer parte da América. A casa-grande fazia subir da senzala para o serviço mais íntimo e delicado dos senhores uma série de indivíduos – amas de criar, mucamas, irmãos de criação dos meninos brancos. Indivíduos cujo lugar na família ficava sendo não o de escravos mas o de pessoas de casa. Espécie de parentes pobres nas famílias europeias. À mesa patriarcal das casas grandes sentavam-se como se fossem da família numerosos mulatinhos (FREYRE, 1933 [2005]: 435). “Circunstâncias” que “entre nós modificaram ou atenuaram os males do sistema”. Chamo atenção para o trabalho da ideologia na materialidade do discurso que constrói o nós brasileiros. Houve senhores e escravos, brancos e negros, filhos-família da casa-grande brasileira e amas de criar, mucamas, irmãos de criação dos meninos brancos, agora há brasileiros somente, em um elogio da doçura das relações que estariam na base da mestiçagem e da influência negra ao brasileiro. Há nesta passagem um efeito de sentido denunciado por aqueles que criticam a representação de negros em parte dos livros didáticos de história: estes aparecem em sua contribuição ao Brasil como trabalhadores escravizados durante a escravidão e, no pós-abolição, são apagados por brasileiros. Também gostaria de destacar a expressão “como se fossem da família”, que ainda hoje anda na boca de patrões e patroas para dizer da relação com suas empregadas domésticas e que encobre de forma perversa a exploração da força de trabalho de mulheres, muitas vezes negras, de uma categoria que segue em luta por direitos trabalhistas igualitários. Continuemos para a segunda passagem de Casa Grande e Senzala. Na ternura, na mímica excessiva, no catolicismo em que se deliciam nossos sentidos, na música, no andar, na fala, no canto de ninar menino pequeno, em tudo que é expressão sincera de vida, trazemos quase todos a marca da influência negra. Da escrava ou sinhama que nos embalou. Que nos deu de mamar. Que nos deu de comer, ela própria amolengando na mão o bolão de comida. Da negra velha que nos contou as primeiras histórias de bicho e de mal-assombrado. Da mulata que nos tirou o primeiro bicho-de-pé de uma coceira tão boba. Da que nos iniciou no amor físico e nos transmitiu, ao ranger da cama-de-vento, a primeira sensação completa de homem. (FREYRE, 1933 [2005]: 367.). Novamente, o funcionamento do nós possibilita, do lugar de analista de discurso, perceber diferentes recortes referenciais por ele instituído, sendo que a passagem de um nós 196 para outro produz o efeito ideológico de inclusão em um coletivo. “Trazemos quase todos as marcas da influência negra” – nós, brasileiros, quase todos miscigenados. A direção do argumento do texto parece indicar uma sequência de exemplos de ações no passado que marcam a influência negra nos brasileiros, mas vejamos um pouco mais detidamente como operam os diferentes recortes referenciais do funcionamento deste pronome no discurso. Na formulação “Da que nos iniciou no amor físico e nos transmitiu, ao ranger da cama-de-vento, a primeira sensação completa de homem”, no nós cabem somente os homens iniciados sexualmente por mulatas (conforme formula esta posição sujeito inscrita na FD miscigenante e que será contestada a seguir). A afirmação da doçura das relações se insere no contexto de outra afirmação, a da corrupção da vida sexual da sociedade brasileira (da influência deletéria da escravidão doméstica sobre a moral e o caráter do brasileiro), que se dá entre senhores e escravos, em uma argumentação que culpabiliza o escravo ou o sistema social e econômico e desresponsabiliza os que ocuparam posição privilegiada neste sistema. Nesta perspectiva, Gilberto Freyre (1933: 398) contesta a tese de que “a negra corrompeu a vida sexual da sociedade brasileira, iniciando precocemente no amor físico os filhos-família”. Para o autor, “essa corrupção não foi pela negra que se realizou, mas pela escrava. Onde não se realizou através da africana, realizou-se através da escrava índia” (Idem: 398) – notemos que em ambos os casos aquela que ocupava posição subordinada no sistema das relações sociais de classe, gênero e raça (as mulheres africanas e indígenas). Portanto, seria “absurdo responsabilizar o negro pelo que não foi obra sua nem do índio, mas do sistema social e econômico em que funcionaram passiva e mecanicamente” (Idem: 399). Continuando: “não era o negro, portanto, o libertino: mas o escravo a serviço do interesse econômico e da ociosidade voluptuosa dos senhores. Não era a “raça inferior” a fonte da corrupção, mas o abuso de uma raça por outra. Abuso que implicava conformar-se a servil com os apetites da todo-poderosa” (Idem: 402). Se o apetite e voluptuosidade era dos senhores, por que não propor que a corrupção tenha se realizado através do senhor, já que este ocupava o lugar privilegiado neste sistema? Ou ainda da senhora, em posição vantajosa em relação aos escravizados – homens e mulheres – na imbricação das relações de classe, gênero e raça? Amplio minhas perguntas, de certo retóricas. Com esta argumentação, haveria, pois, o afastamento da representação da mulher negra como encarnação do pecado por sua sensualidade naturalmente provocante, sentidos presentes no estereótipo da mulata e com raízes na figura da mucama, na argumentação de Gonzalez (1984)? O autor, contestando pela 197 negação estes sentidos, escreve: “não que fossem as negras que trouxessem da África os instintos, no sangue, na carne, maior violência sensual que as portuguesas ou as índias” (Idem: 516), sendo que “exageram a influência perniciosa da negra ou da mulata”, em uma posição que por fim reitera esta “influência”, explicando-a pela docilidade da escrava. Leiamos a terceira passagem que compõe o recorte: O que a negra da senzala fez foi facilitar a depravação com sua docilidade de escrava; abrindo as pernas ao primeiro desejo do sinhô-moço. Desejo, não: ordem. Os publicistas e até cientistas brasileiros que se têm ocupado da escravidão é um ponto em que sempre exageram a influência perniciosa da negra ou da mulata: esse de terem sido elas corruptoras dos filhos-famílias. (FREYRE, 1933: 455) O movimento de escrita do texto, de negação e afirmação, de reescrita (não x, y – para mencionar uma das estruturas das formulações recorrentes) em um jogo de interiorização no discurso de sentidos depreciativos aos negros e negras, para em seguida ponderá-los, negálos, questioná-los, produz um efeito de ambiguidade, de ser e não ser, de pertencer e não pertencer. Retomando a expressão “quase da família”, o pertencimento não se completa, se está na casa grande, sem a ela pertencer como os senhores. Tratar-se-ia de um não-lugar, do lugar indeterminado atribuído por Osmundo Pinho (2004) para pensar na figura do mestiço? Adentrando o imaginário gendrado e racializado das relações sexuais, são as mulatas passivas e ativas, inocentes e culpadas, dóceis e perniciosas? Desde as vozes-mulheres negras, veremos que sua interpretação não enxerga nesta oscilação ambiguidade de sentidos em torno da sexualidade de mulheres negras escravizadas na formação discursiva da miscigenação – o sentido na obra freyereana é a do imaginário dominante gendrado e racializado das relações sexuais ainda hoje em vigência. Para explicitar minha colocação, retomo o texto de Gilberto Freyre sobre as mulheres negras na vida sexual da casa grande, com foco nos verbos e locuções verbais: iniciaram no amor físico; nos transmitiram a primeira sensação completa de homem; abriram as pernas ao primeiro desejo do sinhô-moço (não desejo, ordem); facilitaram a depravação com sua docilidade de escravas (não que tenham sido elas as corruptoras dos filhos-famílias). As construções verbais empregadas significam estas mulheres numa posição de sujeito agente: iniciaram, transmitiram, facilitaram, abriram as pernas, enquanto são pacientes – sofrem as ações – o sinhô-moço, os filhos-família, os brasileiros. Nesta escrita, o lugar de quem enuncia é o do homem, brasileiro, heterossexual, em posição de classe dominante, que olha para o passado para dizer da identidade nacional do presente e se exime da responsabilidade histórica pelo lugar de opressão. Se em uma das 198 passagens os senhores aparecem na posição de mando, dando ordem, expressões como apetite e ócio voluptuoso apagam ou amenizam a violência sexual e, principalmente, a posição de senhores brancos como estupradores. O foco é na iniciação sexual de sinhôs-moços (e não na violência sexual contra escravas negras e mulatas); na moral sexual da família brasileira (e não se fala em família dos escravizados e na sua moral sexual). A representação de Casa Grande e Senzala em quadrinhos (2010), com a adaptação de seu texto, explora da mesma forma a exaltação sexual da escrava. Elementos gráficos, como o coração centralizado na página abaixo, dizendo de relações de amor incestuosas, transformam violência em reciprocidade. O destaque ao sexo entre senhor branco e mulher negra no quadrinho (as personagens aparecem em maior tamanho do que nas outras ilustrações), em uma representação, ao meu olhar, de uma relação sexual consensual. Docilidade, passividade, de um lado, a gula da adolescência insaciável, de outro. Ao apetite, desejo, soma-se a gula e a avidez em um elogio ao impulso sexual masculino (branco?) insaciável... e também incontrolável? Algo que iria de encontro aos instintos de violência sensual de mulheres negras, como nega e afirma Gilberto Freyre? Figura 13 – Imagens livro Casa Grande e Senzala em Quadrinhos. Noutros vícios escorregava a meninice dos ioiôs. As primeiras vítimas eram os moleques e animais domésticos; mais tarde é que vinha o grande atoleiro da carne: a negra ou mulata. Nele é que se perdeu, como em areia gulosa, muita adolescência insaciável. Fala-nos um cronista anônimo (1817) da “grande lubricidade” dos negros de engenho, mas adverte-nos que estimulada pelos “senhores ávidos de aumentar o rebanho”. Os corpos de mulheres negras são representados como “grande atoleiro de carne”, “areia gulosa”, apresentados em uma lista que reúne animais e pessoas escravizadas (moleques, a negra e a mulata), em um processo de desumanização que nesta passagem 199 significa “negros” como parte de um “rebanho”, negando seu status de ser pelo racismo e pela discriminação racial no sistema escravocrata. E vejamos funcionamento semelhante ao que acabo de analisar: “a grande lubricidade dos negros de engenho” não é negada em sua totalidade; faz-se a ressalva (pela adversativa) de que ela era “estimulada pelos senhores”. Esta publicação foi objeto de inquérito instaurado por meio de representação no Ministério Público de Pernambuco como resultado da luta do Observatório Negro, da Articulação Negra de Pernambuco e da mobilização de diversos ativistas negros e de direitos humanos que apontaram seu caráter racista117. O livro, editado pela Global, foi distribuído entre crianças e adolescentes das redes públicas de ensino por um convênio entre a Fundação Gilberto Freyre e as secretarias de educação do Estado de Pernambuco, até ter sua distribuição interrompida por esta ação política. A argumentação contrária à publicação alegava se tratar de uma “versão deturpada da história da formação nacional brasileira, que adoça o escravismo colonial português e põe a pessoa negra, em especial a mulher, em um lugar naturalizado de coisificação, exploração e subserviência, ocultando o protagonismo e resistência negras contra a violência racial e sexista da escravização”, argumentos que a análise que apresentei endossa. Trago à tona este episódio por entender que a luta pela representação do povo negro brasileiro é uma luta que inclui a denúncia de sentidos depreciativos cristalizados em estereótipos e sua ressignificação por meio da afirmação da resistência – em oposição aos sentidos de passividade e resignação – inscrita em posições antirracistas. Esta luta se dá pelos ativismos em diferentes esferas, como a produção acadêmica e os embates pelos meios legais em casos específicos de racismo e sexismo, como este. Os estereótipos que constituem mecanismos de invisibilização e representação negativa, que limitam as possibilidades do ser, são vistos por esta posição como “causa de um processo complexo de genocídio contra a população negra”, em uma articulação da luta pelo direito de se dizer e de se significar a outros direitos sociais. 4.3 Na mira, a formação discursiva da democracia racial e a mulher negra significada pelo corpo A seguir, foco na constituição e na luta por ressignificação do estereótipo da mulata compreendendo que esta figura é central para a imagem do Brasil como país mestiço (para brasileiros e para estrangeiros), para o mito da democracia racial, para o silenciamento 117 Cf. matéria Caso Casa Grande e Senzala: Arquivamento do Inquérito Civil, na página do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades, de 11/12/2010. http://www.ceert.org.br/acontece/noticia.php?id=655 200 da violência sexual durante a escravidão e do papel de mulheres negras na constituição da subjetividade do povo brasileiro, exaltada por Freyre (1933) e por muitos outros pela figura da mãe preta, e que estará no alvo da denúncia de muitas vozes de mulheres negras. Sobre a figura da mulata, na perspectiva de Osmundo Pinho (2004: 91), trata-se da figura idealizada do “mestiço” pressuposta na formação discursiva da miscigenação, que opera por estruturar discursivamente – e isso quer dizer também materialmente – raça, sexualidade e identidade nacional de modo a instituir um campo de leituras, interpretações, sujeitos, todo um regime de verdade, que pressupõe uma figura idealizada de “mestiço” – a mulata ou mulato – como base para a transformação modernizante e modernista da sociedade brasileira naquilo que ela é como vontade e como representação. A partir do seu trabalho, penso a figura da mulata como constituída por essa formação discursiva e funcionando como se fosse algo da ordem do real do mundo, apagando a historicidade dos sentidos e dos sujeitos que constrói essa figura de raça/gênero. Como o autor diz mais adiante no seu texto, nesta formação discursiva (concebida pelo autor com base em Foucault), “produzir a nação e a cultura nacional em diversas versões da mística miscigenante é fazer sexo” (PINHO, 2004: 101). A mestiçagem na metáfora biológica e cultural resolveria a contradição da brasilidade. O mestiço é eleito herói de nossa gente (PINHO, 2004: 105) em Macunaíma (1928) de Mario de Andrade; a mulata é a rainha do carnaval (GONZALEZ, 1984), símbolo da alegria, descontração, sensualidade, encanto especial do povo brasileiro. Paradoxalmente, o mestiço é “objeto indeterminado, incapaz de propor-se como sujeito” (PINHO, 2004: 104). No entanto, entrevê-se, apesar do imaginário e da dominância de sentidos na luta ideológica, inventores do Brasil mestiço e harmonioso, a emergência de sujeitos sociais afrodescendentes em afirmações da negritude (vista como categoria sócio-histórica mobilizada no discurso identitário) em embate com os discursos identitários da classe dominante que os acusam de querer dividir o Brasil. “Essa crítica tem a ver com o fato de não existir um discurso político sobre a identidade branca apesar de esta existir tacitamente, pois todos têm consciência das vantagens que a branquitude lhe oferece nesta sociedade!” (MUNANGA, 2012: 13) Ocorreriam, então, processos de contraidentificação com a formação discursiva da mestiçagem e o discurso da democracia racial, produzindo interpretações sobre si, sobre as relações raciais no Brasil, sobre a história e formação cultural brasileiras, que incluem a positivação do adjetivo “negra” e sua afirmação em contraposição a uma infinidade de nomes e adjetivos como mulata, morena, cor de jambo, queimada, escurinha em uma história que conferiu ao termo negro uma espécie de tabu. Tomando negritude como categoria sócio- 201 histórica nas lutas sociais, a contraidentificação à formação discursiva da mestiçagem é a negação do embranquecimento cultural, como identificação ao discurso dominante de inferiorização dos negros, “movimento de recusa do embranquecimento – retomada de si, aceitação da herança sócio-cultural” (MUNANGA, 1986: 06). Considerada a formulação de Pinho sobre o mestiço como “objeto indeterminado”, poderíamos perguntar se o objeto se tornaria sujeito. Prefiro pensar em falhas e resistências no processo de subjetivação que individualiza o mestiço, nas quais a afirmação de uma identidade negra é uma das práticas sociais de resistência, tomando a relação de forças entre ideologia dominante e ideologias dominadas. Não sou mulata nem morena, sou negra! – ouve-se de vozes de mulheres negras118. Lélia Gonzalez (1984), citada no início deste capítulo, compreende a figura da mulata como uma das faces da dupla imagem da mulher negra hoje, a outra seria como empregada doméstica119, em discursos que articulam racismo e sexismo produzindo efeitos violentos para a mulher negra em particular. A partir da psicanálise, especialmente das noções de consciência e memória em sua relação dialética, detém o olhar em determinados aspectos da chamada cultura brasileira para desvelar os processos de ocultação e revelação das marcas da africanidade que a constituem. O engendramento da mulata e da doméstica se fez a partir da figura da mucama. Para a autora, um processo de apagamento de sentidos (eu diria, a partir da AD, de silenciamento) envolve a palavra mucama, derivada do quimbundo mukama120. “Como todo mito, o da democracia racial oculta algo para além daquilo que mostra” (GONZALEZ, 1984). Em recorrência à definição da palavra no dicionário Aurélio, na qual não está dito o sentido de escrava sexual, argumenta sobre a ocultação da dimensão dos serviços sexuais e da prática sistemática da violência sexual contra as mulheres marcada pela hierarquia que articula posição social, de gênero e racial bem como das contradições e conflitos das relações entre escravizadas, escravizados, senhores e senhoras. Um processo 118 Cf. Nem morena, nem mulata, da poeta e blogueira Jarid Arraes (2005), http://www.revistaforum.com.br/2015/03/05/nem-morena-nem-mulata/ e a música Negra sim!, da rapper Preta Rara. https://soundcloud.com/pretarara 119 Lado oposto à exaltação, no cotidiano a figura de trabalhadora doméstica como imagem imposta às mulheres negras é atestada pela discriminação do olhar racista que só vê as mulheres negras em determinados lugares sociais subalternizados. Nas palavras de Lélia Gonzalez (1984:230): “Não adianta serem ‘educadas’ ou estarem ‘bem vestidas’ (afinal, ‘boa aparência’, como vemos nos anúncios de emprego é uma categoria ‘branca’, unicamente atribuível a ‘brancas’ ou ‘clarinhas’). Os porteiros dos edifícios obrigam-nos a entrar pela porta de serviço, obedecendo instruções dos síndicos brancos (os mesmos que as ‘comem com os olhos’ no carnaval ou no oba-oba”. Sobre a construção discursiva dos estereótipos de mulheres negras no Brasil e os efeitos de evidência que apagam ideologicamente a historicidade da subalternização de mulheres negras, em uma análise da discriminação da figura da empregada doméstica, cf. ZOPPI-FONTANA & CESTARI, 2014. 120 No dicionário escolar afro-brasileiro, Nei Lopes assim define mucama: “Escrava doméstica. O termo é angolano, derivando do quimbundo mukama, “concubina”, “escrava amante de seu senhor””. 202 semelhante ocorreria na hipersexualização da figura da mulata, atribuindo a sua natureza e conduta a violência simbólica que se pratica contra ela e as mulheres negras de modo geral. A exaltação e o culto à sensualidade das mulatas e negras parecem servir como “função justificadora” aos ataques sexuais e estupros que vitimavam as escravas, afirma a historiadora Sonia Giacomini (1988:66). Lady Almeida (2010) afirma: “de fato, havia dois tipos de mulheres que complementavam dois tipos de relações distintas” com os senhores brancos. A mulher branca para o matrimônio; e a mulher negra e escrava para satisfação sexual. Há, ainda, o silenciamento da negação à maternidade por parte das mulheres negras, pela afirmação da mãe preta sem a explicitação de que a mulher negra é mãe da criança branca, mas enfrenta grandes dificuldades para criar seus filhos pretos; o silenciamento da mortandade dos seus filhos e da apropriação da sua capacidade de amamentar, justificadas ideologicamente pela doçura e carinho recíprocos que embalam o nhonhô. A figura da mucama, portanto, não é a mesma que a ama de leite e ama de criar que muitas vezes ocuparam o lugar de mães de criação com espaço destacado na família patriarcal neste discurso: “Quanto às mães-pretas, referem as tradições o lugar verdadeiramente de honra que ficavam ocupando no seio das famílias patriarcais” (FREYRE, 1933: 435). Afirmo isso em relação ao imaginário e não às mulheres negras empíricas. Podese pensar que são duas maneiras de nomear a mesma mulher, como a mulata e a doméstica na forma como as entende Lélia Gonzalez. É esta autora que afirma sobre a mãe-preta: “Exatamente essa figura para a qual se dá uma colher de chá é quem vai dar a rasteira na raça dominante” (GONZALEZ, 1983: 235), isto porque a “mãe preta” representaria o esperado da mulher negra desde posições inscritas na formação ideológica dominante: “A figura simpática, amorosa e inofensiva da mãe preta realiza a aceitação sem resistência do poder instituído, da escravidão, dissimulando, inclusive, os horrores do período escravista para as mulheres negras escravizadas e/ou libertas” (CARDOSO, 2012: 128). Este estereótipo de resignação e passividade, que nega a agência destas mulheres, para além de ser positivado por Lélia Gonzalez, é deslocado com a afirmação da mãe preta como sujeito destacado no processo de formação cultural brasileiro – ela é a mãe da cultura brasileira, por transmitir ao brasileiro branco as categorias das culturas negro-africanas e ser responsável pela africanização do português falado no Brasil. Nas palavras da autora, “o que a gente quer dizer é que ela não é esse exemplo extraordinário de amor e dedicação totais como querem os brancos e nem tampouco essa entreguista, essa traidora da raça como querem alguns negros muito apressados em seu julgamento” (GONZALEZ, 1984: 235). Aponto a 203 mãe-preta e a ama de leite, como controversas e polêmicas, entre anjos e demônios, conforme Elisabeth Magalhães e Sônia Giacomini (1983), talvez pela relação conflituosa com as mulheres brancas no seio das famílias patriarcais brancas no escravismo. Se estas davam a luz aos filhos do senhor, muitas vezes não exerciam o que denominamos função materna, efetuada por mulheres negras. Retomo um trecho da entrevista com a militante Estela na matéria Racismo, uma opressão a mais, no jornal feminista Nós Mulheres (1977), que esteve na introdução do trabalho, juntamente com um recorte do texto Identidade Feminina, de Sueli Carneiro (1989), analisado no capítulo anterior. A estes dois, somo o primeiro parágrafo da Carta Aberta à População da Comissão Nacional de Mulheres Negras (1991), na ocasião do II Encontro Nacional de Mulheres Negras (Salvador/BA). Na verdade, como mulher, você está um pontinho abaixo na escala social. Como negra, nem se discute, você nem existe. [...] Você está dentro dos estereótipos que fazem da mulher negra: você é cama, cozinha e babá dos filhos da mulher branca. No Brasil, o auge do destaque que deram a ela foi aquela estátua que tem em São Paulo. A mãe preta, conformada com seu destino. Uma coisa cheirosa e macia. O grande útero do brasileiro. Por outro lado, você é uma mulher meiga e quentíssima. Só porque é preta, entende de sexo. Já nasceu sabendo. No carnaval, só ouve falar: mulher preta é comigo, sangue quente é comigo. Se o branco discrimina a mulher, como preta é pior ainda. Em termos gerais, ele nem te vê como mulher, e sim como negra. É outro departamento. Se a mulher tem direito a duas palavras, a negra não pode nem abrir a boca. (entrevista com a militante Estela – matéria Racismo, uma opressão a mais, Jornal Nós Mulheres, n. 5, jun./jul, 1977) [nós, mulheres negras] Fazemos parte de um contingente de mulheres com identidade de objeto. Ontem, a serviço de frágeis sinhazinhas e de senhores de engenho tarados. Hoje empregadas domésticas de mulheres liberadas e dondocas, ou mulata tipo exportação (CARNEIRO, 1989: 11). CARTA ABERTA À POPULAÇAO Há quase 500 anos se processa no Brasil a exploração negra e em tamanha proporção sobre a Mulher Negra, o nosso corpo tem sido objeto de violação ao longo dos anos, desde a reprodutora de crias para o trabalho escravo, a iniciadora de "Senhorzinhos", até o sensacionalismo da "Mulata pra Ninguém Botar Defeito", nos oba-oba da vida. [...] (Comissão Nacional de Mulheres Negras, 8 mar 1991. Reprodução no jornal sobre o II Encontro Nacional de Mulheres Negras, Salvador/BA:7) Com este recorte procuro enfatizar o modo como desde os anos 1970, na militância política, estas vozes – da academia à militância e também a partir do entrecruzamento destas esferas de atividade – pautavam de forma articulada os estereótipos de mulheres negras (bem como as vozes de poetas da literatura negra, cantoras, artistas plásticas, entre outras, já em outras esferas de circulação). E, ao pautar estes estereótipos, apontavam para a centralidade do corpo, corpo significado como objeto e violado historicamente, 204 remontando a escravidão em um processo de 500 anos com efeitos no hoje em sua atualização. Também formulavam, com a crítica à ideia de que haveria sentidos homogêneos para significar as mulheres, sobre a diferenciação de modelos e imagens de feminilidade destinadas a negras e brancas pelo discurso machista-racista em um gesto de denúncia da hierarquia intragênero e da opressão entre mulheres, de brancas sobre negras, no interior dos feminismos, dos movimentos negros e a partir de suas organizações e articulações autônomas (no caso, uma comissão que expressa a organização de mulheres negras a nível nacional). São vozes que estabelecem diferentes interlocutores: a população, os brasileiros e brasileiras, as feministas, as mulheres brancas feministas. Na afirmação de Estela, trata-se da ambiguidade no modo como as mulheres negras são vistas pelos outros: “você é cama, cozinha e babá dos filhos da mulher branca”: a mulher negra significada como corpo trabalho servil e também como corpo-sexo; “cama” dos filhos das famílias brancas retoma a violência sexual dos filhos da Casa Grande, ou como “iniciadora de ‘senhorzinhos’”, desde a posição do discurso da democracia racial. Nesta junção do que seriam duas representações distintas de mulheres negras, a figura da mãe preta como homenagem121, “conformada com seu destino”, “cheirosa e macia”, “o grande útero do brasileiro” parece esconder, como a figura da mucama na argumentação de Lélia Gonzalez (1984) a dimensão da violência sexual e da resistência. Visto deste modo, tanto os estereótipos da mulata quanto a figura da mãe preta, a princípio corpo macio e aconchegante de mãe, o corpo que não se poderia desejar, também apagaria os sentidos da violência sexual histórica contra as mulheres negras. O que ressalto é que os estereótipos atribuídos às mulheres negras – mormente visibilizadas como mulatas ou empregadas domésticas – têm ligação com a escravidão ou a formação da nação brasileira. Retomo este imaginário: a mulata como encontro harmonioso entre colonizador branco e escravizada negra e a figura da empregada doméstica, prisão da mulher negra ao corpo-trabalho, naturalização e fixação de sua subalternização que apaga sua construção histórica, esta última significada como mãe preta, novamente a harmonia instalada 121 Considero que há um campo muito fecundo para se discutir os sentidos contraditórios da figura da mãe preta no Brasil e ainda das representações de mulheres negras como mãe, seja na literatura, no discurso militante, nas telenovelas, etc. Este apontamento também é feito por Segato (2006), que, de um ponto de vista da antropologia e da psicanálise, escreve O Édipo brasileiro: a dupla negação de gênero e raça. No site da prefeitura de São Paulo, na seção de Departamento Histórico, por exemplo, a construção do monumento à Mãe Preta, é descrito como resultante da ação articulada de agremiações negras do Estado de São Paulo por meio do Clube 220, no início dos anos 1950. Ou seja, há coletivos negros que compreendem os sentidos positivos das mães pretas a elas rendendo homenagens, fato que expõe ainda as contradições nos processos de subjetividade, nos quais não se faz possível dicotomizar de forma simplificada os dizeres dos outros e os dizeres próprios, nos negros e dos brancos. Cf.http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/cultura/patrimonio_historico/adote_obra/index.php?p=829 1. 205 entre brancos e negros por sua suposta participação na família patriarcal branca, na contradição de estar e não ser da Casa Grande. Para Borges (2012:196), em síntese as referências sobre a mulher negra oscilam, então, da figura sexualmente atrativa ou feita para o trabalho: “as duas categorias, do trabalho subalternizado e do prazer corporal, acompanham irrevogavelmente as imagens midiáticas da mulher negra. Funcionam, como dissemos, como discursos fundadores”. Segundo Núbia Moreira (2007), a imagem do símbolo sexual acaba recaindo sobre a mulata. Já a mulher negra estaria restrita à servidão. Daí o ditado violento: “Branca pra casar, preta pra trabalhar, mulata pra f@#”122. Há, portanto, desde posições inscritas nos feminismos e nos antirracismos, uma organização dos sentidos sobre mulheres negras remetidos a uma história, a uma rede histórica da memória, que tolhe a humanidade destas mulheres na possibilidade de se significarem fora desta rede de estereótipos racializados e gendrados. É recorrente a articulação entre os temas dos estereótipos e do silenciamento. Ser significada pelo corpo é não ter direito sobre o próprio corpo, sobre a própria vida, sobre as próprias palavras que dizem sobre ser mulher negra e sobre este corpo. O corpo do estereótipo é um corpo sem voz própria. Ser mulher negra é carregar esta marca. Estes corpos expostos de mulheres negras são os corpos dos sentidos dominantes. A exposição do corpo da mulher negra como exótico e hipersexual – desde Vênus de Hotentote às mulatas tipo exportação – produz como paradoxo a hipervisibilização e a invisibilização de mulheres negras que não querem ser significadas pelo corpo. Nesta perspectiva, é que se pode afirmar que a mulata não é sujeita de dizer, ela é somente objeto dos dizeres alheios123. Estas últimas considerações eu faço em diálogo com o artigo intitulado Vênus de Hotentote em qualquer lugar: a exotização da mulher negra, da filósofa feminista negra Djamila Ribeiro, publicado no Blogueiras Negras 124, que demonstra a atualidade destas reflexões pautadas há pelo menos 40 anos na luta política brasileira: O corpo da mulher negra não é dela. Essa é a sensação que carrego desde muito cedo. A ultrassexualização de nossos corpos faz com que interpretem nossa imagem baseada na exotização. “Nós carregamos a marca” é uma frase muito dita por Luiza Bairros e que exemplifica bem nossa situação. Essa marca que carregamos fruto de violência é mascarada pelo mito da democracia racial, o que faz com que se ignore 122 Hoje há importantes trabalhos sobre a afetividade e solidão das mulheres negras que retomam os impactos deste imaginário (cf. PACHECO, 2008). 123 Explicito que esta interpretação se faz desde posições sujeito identificadas com o feminismo e o antirracismo e não significa que não haja mulheres que se identifiquem como mulatas e que não sejam significadas como sujeitas de dizer. É ilustrativo desta ponderação o filme Mulatas! Um tufão nos quadris, de Walmor Pamplona (2011), que apresenta “entrevistas com 13 mulatas de escolas de samba do Rio, de gerações diferentes, que ajudam a compor um retrato da vida deste personagem fundamental da cultura popular” https://www.youtube.com/watch?v=HcSdMjLePL8 124 Texto disponível em: http://blogueirasnegras.org/2013/12/23/venus-hotentote-lugar-exotizacao-mulher-negra/ 206 ou romantize o problema. Ou melhor, a marca nem é vista como problema, é vista como elogio, exaltação da beleza. Porém, essa marca existe e nos segue para além das terras tupiniquins. A exotização da mulher negra está presente em todos os lugares, ainda mais se aliado ao fato da nacionalidade brasileira. De modo geral, as brasileiras são estereotipadas como sendo excessivamente sensuais. Ribeiro (2015) pauta uma das contradições do estereótipo da mulata. O corpo marcado faz com que seja somente ele visto em sentidos com direção histórica determinada, em uma violência que se faz pela exaltação da beleza, não beleza das mulheres negras, mas da beleza e sensualidade das mulatas que desliza para a beleza e sensualidade das brasileiras, disponíveis para o sexo, marcadas no corpo pelo destaque aos quadris (brasileira é bunda). Assim como o samba significa o Brasil, a mulher mulata, em um deslizamento dos sentidos, significa a mulher brasileira. Discutindo o concurso da Globeleza promovido pela rede Globo, retoma o confinamento da mulher negra a sua significação como objeto sexual e produto, a relação entre esta representação e a ausência de outras e a comparação desta representação com aquela que se faz de mulheres brancas no mercado da objetificação das mulheres: Esse caça a “mulatas” promovido pela rede Globo para eleger a nova “Globeleza”, percebe-se como a mulher negra é colocada em lugares determinados, como é vista como objeto sexual, produto a ser vendido. Quantas negras vemos na grade da emissora? Quantas apresentadoras, repórteres, atrizes? Somos invisibilizadas em outras áreas e super expostas no carnaval como pedaços de carne. Mulheres brancas também são objetificadas; isso é inegável. Porém, a mulher negra carrega a opressão histórica. Mesmo nesse mercado de exploração, a carne negra é a mais barata. Para se ter uma idéia, de toda a história da revista “Playboy” no Brasil, somente sete negras foram capas (RIBEIRO, 2015, s/p). Se a luta ideológica contra os estereótipos que limitam a representação das mulheres negras se mantém nos dias de hoje, temas e formas de travar a luta se repetem e se deslocam. Lanço meu olhar ao facebook, à página do Coletivo Negração, organizado na UFRGS, que carrega no nome a identificação com a negritude e sua significação ativa, em oposição aos sentidos de passividade e resignação. Foco nas fotos unicamente destinadas para a circulação no meio digital, em que aparecem mulheres sem roupas que cobrem seus corpos com cartazes que em outras condições de produção poderiam ser levantados em protestos de rua. O digital como meio de circulação destas vozes mulheres negras em protesto impacta os modos de dizer, de formular a luta. Nestas fotos, as cores são vermelho, verde e amarelo – as cores significadas como da consciência negra. 207 Figura 14 – Página online e fotos do Coletivo Negração (2014). O cartaz segurado por uma única mulher, em uma série, diz do nosso papel, de mulheres negras, em um processo de significação que poderia ser aproximado aqueles analisados das passagens do eu para o nós, do nós para o eu, do eu significando nós, do nós significando eu. Apesar de não haver na materialidade do enunciado a palavra eu, a imagem desta única mulher, no que toca ao gesto de segurar o cartaz, poderia ser prarafraseada por “eu digo”, em uma proposta analítica de transposição da materialidade visual para a linguística. As cores da bandeira brasileira estão nesta foto e são mais um elemento para a significação da pátria (o verde dos ladrilhos, o amarelo do cartaz, o azul da sombra da maquiagem da mulher), no enunciado “Não deixem que te façam pensar que nosso papel na pátria é atrair gringo interpretando mulata”. Mesmo que não se diga “mulheres negras” para significar o nosso do enunciado, o verbo interpretar sugere, no campo das artes cênicas, um sujeito que atue um papel que não coincide com o que ele é. Ou seja, na posição sujeito em que se inscreve este enunciado, não há mulatas, elas são uma figura que pode ser interpretada. A interlocução no espaço de enunciação brasileiro, que instaura um vocês ludibriado por um sujeito indeterminado, aquele faz pensar que o papel das mulheres negras é interpretar o papel de mulata para gringo articula o discurso dos sentidos do Brasil no imaginário de outros países, para os estrangeiros, ou, nas palavras de Ribeiro (2015), “a marca existe e nos segue para além das terras tupiniquins”, o que faz da exotização das mulheres negras recorrente em outros países ter um caráter particular quando aliado à nacionalidade brasileira. Vê-se ao longo das análises esta constante sobredeterminação dos sentidos de mulheres negras como mulheres negras brasileiras, funcionamento que se desloca por vezes nas coalizões regionais como das mulheres afro-latinas e caribenhas. 208 A maquiagem atualiza a memória das passistas das escolas de samba na qual se assenta a Globeleza, tematizada no texto do blog do grupo que retoma os da objetificação dos corpos das mulheres negras, da representação da mulher negra como empregada doméstica ou mulata, do carnaval como momento de exaltação e comercialização dos corpos dessas mulheres. No entanto, a alegria estampada no rosto da Globeleza e das passistas no carnaval se opõe à expressão séria da mulher na foto, dando indícios da direção de crítica e denúncia do enunciado. A recorrência à etimologia da palavra mulata atualiza os sentidos de animalização em um enunciado que denuncia o termo como dito pelo outro, pelas posições racistas: No bojo do tema que envolve a comercialização do carnaval, que avança a cada ano, o assunto que mais nos toca enquanto mulheres negras é a objetificação de nossos corpos – o que para nós não é nenhuma novidade – que ganha certa ofensiva nos meses que antecedem o carnaval. A exemplo disso há pouco tempo tivemos a escolha da ‘globeleza’, uma disputa na escolha da melhor ‘mulata’. [...] A mula é o produto resultante do cruzamento do cavalo com a burra, ou seja, passou a aplicar-se ao filho do homem branco com a mulher negra. Já pararam para pensar por que a mulher negra só aparece na televisão apenas em dois momentos: ou ela é escrava/doméstica, ou é mulata no carnaval e nessas duas visões ela está sendo colocada a serviço do homem branco. (...) A Globeleza representa a nossa exploração, representa o quanto ainda nos tratam como se só fossemos feitas para o sexo e para demonstrar, dentro da sociedade, o selvagem, o folclórico. Ela representa o controle que a mídia branca e machista obtém sobre os nossos corpos, mas não se deixem enganar, “não deixe que te façam pensar que o nosso papel na pátria é atrair gringo turista interpretando mulata.” Por isso buscamos escurecer/esclarecer aqui esse assunto que tanto nos atinge, a Globeleza não nos representa! Não aceitamos essa imagem, não somos o que essa mídia racista diz, não somos mais escravos e não aceitamos esse papel. (Disponível em: http://coletivonegracao.blogspot.com.br/search/label/Globeleza, acesso em 21 fev 2014). A superexposição violenta dos corpos de mulheres negras na história produz a tensão do expor-esconder o corpo nas fotos da campanha do Negração, considerando o corpo como materialidade significante e seu uso recorrente como protesto por vertentes dos feminismos, a exemplo das várias edições da Marcha das Vadias. No caso de mulheres negras nos feminismos, esta exposição é apresentada como polêmica pelo peso histórico da escravidão e hipersexualização. Veryato (2014, s/p), em seu trabalho sobre os modos de significação do corpo na Marcha das Vadias, no qual toma o sujeito como materialidade na relação com o corpo e com a ideologia, propõe que, no corpo como protesto (nas marchas as mulheres desnudam-no, usam lingeries, escrevem sobre eles), “é como se o discurso sobre o 209 corpo se costurasse ao próprio uso do corpo. Este, funcionando como textualidade, interagindo com as palavras escritas em sua superfície, significando-as e significando-se”. Nesta perspectiva, penso que o corpo, sempre-já inscrito na história, ao ser exposto/coberto significa o dito do cartaz, e o enunciado textual – assim como as cores, por exemplo – significam este corpo. Mais do que isso, pensando no discurso sobre as mulheres negras ser majoritariamente um discurso sobre o corpo das mulheres negras exposto e desnudado pelo outro, é como se este corpo tivesse os sentidos dominantes costurados sobre ele em sua nudez de tal modo que o desnudar-se significa diferentemente em relação às mulheres brancas, conforme se pode analisar nas polêmicas de mulheres negras sobre a prática de exposição dos corpos nos protestos das Marcha das Vadias 125. 4.4 Outras rotas de sentidos: beleza negra ou Ora-yê-yê-ô Nas lutas pela significação dos corpos femininos negros fora dos estigmas e estereótipos raciais-sexuais, os movimentos de mulheres negras e os movimentos negros realizam práticas que procuram investir estes corpos de sentidos positivos para a constituição da subjetividade negra, em lutas contra os sentidos dominantes atribuídos a estes corpos. Este é o pano de fundo para concursos de beleza negra, como o concurso de escolha da “Negra Ilê”, da associação do Ilê Aiyê, em Salvador, no qual se formaria um outro ideal de feminilidade negra. Neste processo, o corpo é reinventado “na medida que inscrevemos nele os signos da historicidade e revertemos o estigma e a corporalidade compulsória a ele atada” (PINHO, 2004: 107). Nesta inscrição no corpo, há filiação a e instauração de outras trajetórias dos sentidos, como aquela instaurada pela prática das tranças, de grande importância na reinvenção do corpo negro. A análise que se segue parte do texto Beleza negra, ou: ora-yê-yê-ô!, de Lélia Gonzalez, publicado na edição de março/abril de 1982 da revista Mulherio. Inicio a análise com foco nos funcionamentos enunciativos do eu, do nós e do a gente e nos sentidos da africanização da Bahia e de Salvador, aqueles cuja direção fornecerá os critérios para a eleição das mulheres negras belas. Em seguida, tratarei dos estereótipos de mulheres negras, das ações de contestação destes estereótipos e de como a ressignificação dos corpos negros atualizam contradições, seja por uma certa essencialização da Beleza Negra ou pela 125 Cito como exemplo a posição sustentada por Sueli Carneiro, em entrevista ao V Latinidades, sobre os estigmas que o colonialismo imprimiu sobre os corpos das mulheres negras, sendo a exposição deste corpo a reiteração de um lugar onde ele foi historicamente colocado (cf. https://www.youtube.com/watch?v=IGqESMvHK8k). 210 associação entre beleza e mercadoria. Figura 15 – Página do Jornal Mulherio, n. 6, 1982. Mulheres e homens, jovens e velhos, crianças e adultos, com aquele jeito gostoso de falar (“diga preta”), aquela hospitalidade, aquele clima espontaneamente sedutor, fazem com que pinte na gente uma vontade danada de ficar por ali mesmo, de sentar na praça da Liberdade e viver seu cotidiano negroafricano. É aí que vem à tona uma saudade da Mãe África dos mercados vibrantes de vida e colorido, de alegria e receptividade. Afrobahia. Força de orixá pulsando dentro da gente... (...) Nunca esquecerei o carnaval de 78, que passei em Salvador. Graças à recomendação do Macalé, um de seus fundadores, participei do desfile do Ilê. Foi de arrepiar e fazer o coração da gente bater disparado. (...) fiquei muito tempo sensibilizada quando minhas irmãs do Ilê Aiyê me convidaram para presidir a escolha da “Negra Ilê” de 1982, ocorrida no dia 6 de fevereiro. Infelizmente, as exigências da nossa luta fizeram com que eu permanecesse no Rio e não participasse, também, da escolha da beleza negra do Male Debalê, no dia 14. De qualquer modo, ficam aqui o nosso testemunho e a nossa solidariedade para com esse importantíssimo trabalho. E, para as escolhidas de 82, a nossa saudação, na saudação de Oxum: ORAYÊ-YÊ-Ô! (Jornal Mulherio, Ano 2, n. 6, mar/abr., 1982: 03) 211 A descrição do cotidiano do bairro da Liberdade se constrói pela retomada de elementos que poderiam ser considerados tipicamente baianos desde uma determinada posição no discurso sobre a Bahia, que poderíamos encontrar na literatura ou ainda no discurso do turismo – jeito gostoso de falar, hospitalidade, clima espontaneamente sedutor. Desde a posição sujeito a partir da qual se enuncia, há adjetivos que se somam na posição de sufixo: afro e negro. Trata-se da Afrobahia, estado que no discurso do turismo também é anunciado como de influência africana em sua culinária, muitas vezes representada pelo acarajé, e na capoeira (que tenho tratado como objeto discursivo paradoxal marcado por disputas ideológicas). O cotidiano do bairro da Liberdade é negroafricano, em um amálgama de dois adjetivos recorrentes nos movimentos negros. Esta vivência desperta, pinta, na gente uma vontade danada de ficar por lá, em que este a gente pode significar os que vão (foram ou poderiam ir) ao bairro e não fazem parte de seu cotidiano, incluindo ou não o eu que enuncia. No texto referido, Lélia Gonzalez relata em detalhes o dia-a-dia desse bairro, o que produz como efeito de sentido a ideia de que o conhece e que vivenciou pessoalmente a crônica que descreve. A saudade da Mãe África vem aos que (re)encontram esse cotidiano negroafricano? À Lélia Gonzalez? A África projetada, aquela que deixou saudade, compartilha receptividade e alegria com a imagem da Bahia que os guias de turismo anunciam, de que parte de seu povo se reconhece e se orgulha (o que articula de forma contraditória os discursos das identidades negras ao mercado, como aponta Pinho, 2004). À continuidade temporal se junta à continuidade espacial: o sujeito que vai se construindo por efeito das formulações repetidas em que há relações de continuidade temporal e espacial; no ontem e no hoje, na África e no Brasil. O sujeito que vive no Brasil de hoje a saudade da África passada, que (re)encontra no Brasil a África, que é a África no Brasil, que faz do Brasil um pouco da África. Talvez pudesse dizer mais: que disputa os sentidos do Brasil e se significa no equívoco da brasilidade, se tomado o funcionamento metonímico da Bahia como Brasil. Cartão postal para os outros, os de fora? Terra da resistência, que traz no nome seu anseio e sua vivência cotidiana da liberdade? Para Pinho (2004: 91), o concurso de beleza do bloco afro soteropolitano Ilê Aiyê atesta a emergência de uma figura de raça e gênero no processo conhecido como reafricanização da cultura e da política em Salvador, “este processo entendido como uma inflexão modernizante e auto-reflexiva das identidades negras em Salvador, desencadeada a partir dos anos setenta, na confluência da democratização da sociedade brasileira com os 212 fluxos internacionais da diáspora africana global”. Segundo o autor, nestes concursos, os estereótipos raciais-sexuais da mulata, da doméstica e da baiana de acarajé eram contestados na construção de um novo ideal de feminilidade negra, de forma articulada com a transformação da identidade negra em mercadoria. Vejamos o modo como Lélia Gonzalez apresenta-o nos anos 1980: não se trata de um concurso de beleza tipo ‘miss’ isso ou aquilo, o que não passaria de uma simples reprodução da estética da ideologia do branqueamento. Afinal, pra ser “miss” de alguma coisa, a negra tem de ter “feições finas”, cabelo “bom” (“alisado” ou disfarçado por uma peruca), ou então, fazer o gênero “erótico/exótico” [...]. Na verdade, ignora-se tranquilamente essas alienações colonizantes, complexadas, não só das classes “brancas” dominantes, como também dos “jaboticabas” e/ou dos “negros recentes” (né João Jorge?). O que conta pra ser uma “Negra Ilê” é a dignidade, a elegância, a articulação harmoniosa do trançado do cabelo com o traje, o dengo, a leveza, o jeito de olhar ou de sorrir, a graça do gesto na quebrada de ombro sensual, o modo doce e altaneiro de ser, etc. E se a gente atentar bem para o sentido de tudo isso, a gente saca uma coisa: a Noite da Beleza Negra é um ato de descolonização cultural (Jornal Mulherio, Ano 2, n. 6, mar/abr., 1982: 03). Um ato de descolonização cultural contra a estética da ideologia do branqueamento, segundo proposição de Lélia Gonzalez sobre a subversão dos sentidos de dominação dos concursos de beleza do Ilê Aiyê 126. Interessa-me ver como se significam os padrões de estética feminina negra e branca, e o que se repete e desloca em relação ao imaginário sobre as mulheres negras. O padrão de beleza dominante das mulheres brancas elegeria (e produziria) as de “feições finas” (em oposição às “feições grossas” de quem?) e “cabelo bom” (em oposição ao “cabelo ruim”, expressão racista corrente para os cabelos crespos). Estes critérios são contestados pelos que elegem a Negra Ilê. O cabelo alisado é substituído pelo cabelo trançado, sendo que as tranças significam uma estética negra nãoidentificada com o branqueamento e que retoma os saberes de outras mulheres negras, trançadeiras e cabelereiras que se multiplicavam nas periferias de Salvador na reinvenção do cabelo negro e contraposição ao alisamento. Vimos anteriormente os cabelereiros Black no filme Ori (GERBER, 1989), em que os reflexos nos espelhos metaforizavam a possibilidade do reencontro com a própria imagem nesta reinvenção de si em um movimento políticoestético filiado a uma rede de memória diaspórica. Dito por Pinho (2004: 116), 126 A importância dos blocos como Ilê Ayiê nas lutas dos movimentos negros e no que Pinho (2004) chama reafricanização não está em foco. Entretanto, deve-se reconhecer seu alcance para as mulheres negras para além da formulação e valorização de uma estética negra feminina. Logo na abertura do I Encontro Nacional de Mulheres Negras, em Valença-RJ, as participantes aparecem cantando a música Que bloco é esse, de Paulinho Camafeu, apresentada pelo Bloco no carnaval de 1975, como se pode ver em vídeo no Cultne https://www.youtube.com/watch?v=VLib9atLXW0 213 A Beleza Negra ganha uma conotação altamente politizada, porque quer produzir uma inversão ou fissura na cadeia de significação que encadeava negro-primitivo-feio-inferior. Depois do Ilê e de suas “negras de trança”, a mulher negra passou a contar com outras imagens de afirmação de identidade e de construção de si ancoradas na re-invenção do cabelo. Pergunto-me sobre os outros sentidos que dizem da forma dessa mulher negra se apresentar, seu jeito: dignidade, elegância, dengo, leveza, jeito de olhar ou de sorrir, a graça do gesto na quebrada de ombro sensual, o modo doce e altaneiro de ser. Parte das características elencadas por Lélia Gonzalez são compartilhadas por discursos sobre as mulheres negras em que estas são estereotipadas. Destaco o dengo e a sensualidade a que se recorre também para dizer das mulatas. Suponho que seja aqui produtivo pensar sobre as relações entre o dizer de si e o dizer do outro, entre posições racistas e posições que afirmam como positivos atributos ligados ao “ser negra”, bem como sobre como as mesmas palavras significam diferentemente dependendo da posição de quem as emprega. Antes de seguir nesta reflexão, parece-me oportuno retomar o que diziam outras mulheres negras da experiência catártica da proximidade com Lélia Gonzalez. Transcrevo a seguir um parágrafo do livro Lélia Gonzalez, o feminismo negro no palco da história, escrito com base em uma entrevista concedida por Sueli Carneiro a Schuma Schumaher: Para uma mulher negra, era uma experiência catártica estar diante de Lélia Gonzalez e ouvir aquela mulher que era capaz de escutar a nossa própria mente e nosso coração e vocalizar, sem medo, todas as angústias e sequelas produzidas pelo racismo. Se uma mulher negra, intelectual poderosa como aquela, podia dizer todas aquelas coisas sem pejo, então todas poderiam! Mais ainda, ao tornar público o seu processo pessoal de desconstrução do branqueamento que o racismo impunha, Lélia arrastava consigo legiões de mulheres negras que, como ela, haviam assumido suas cabeleiras black, usavam roupas coloridas que valorizavam a negritude e aceitavam suas características físicas e sua peculiar expressão da sexualidade (CARNEIRO, 2014: 24). Novamente, deparamo-nos com verbos semanticamente relacionados com a interlocução: dizer, falar, vocalizar, ouvir, escutar. De uma posição com legitimidade social, a de intelectual, com brilhantismo, Lélia Gonzalez vocalizava, sem medo, as angústias e sequelas de todas as mulheres negras, porque ela podia escutar as mentes e corações destas mulheres, seus pensamentos, seu intelecto, seus sentimentos, suas emoções – o que não se escuta quando as mulheres negras são vistas como corpo-sexo e/ou corpo-trabalho. Se Lélia dizia, todas poderiam dizer. Uma mulher negra que ouvia Lélia Gonzalez saberia que poderia dizer em primeira pessoa das sequelas do racismo e, assim como Lélia o fazia, de sua experiência pessoal de resistência ao embranquecimento. Em sua presença, ouvi-la era 214 também vê-la com seu cabelo black e roupas coloridas significadas como valorização da negritude. Se os corpos femininos negros eram vistos e falados pelos discursos racistas de modo a inferiorizá-los (mesmo quando os exaltavam por sua potência sensual e sexual), na sua presença (de Lélia), quando investidos de sentidos que remetiam à ancestralidade africana, significam aceitação e assumpção do que as mulheres negras são. Em suma, assinalo a relação entre este dizer politizado sobre o racismo de uma posição legitimada socialmente e a visibilidade do corpo feminino negro ressignificado pela negritude em uma posição sujeito identificada com o antirracismo e o anti-sexismo. Detenho-me, então, à negação por vozes de mulheres negras da hipersexualização de seus corpos, representada pela figura da mulata, e na aceitação “de suas características físicas e peculiar expressão da sexualidade”. Nega-se o que é significado de forma depreciativa pelo outro e, afirmam-se, na forma de aceitação, sentidos de sexualidade e sensualidade distintos daqueles atados aos seus corpos. Nesta afirmação, está o direito ao próprio corpo, aos desejos e sexualidade, aos afetos, ao amor, e não à submissão aos prazeres masculinos brancos, quando são vistas como somente corpos e despojadas de sua personalidade, em uma afirmação da participação das mulheres no samba, e especificamente das mulheres negras passistas no carnaval, transformadas em folclore e mercadoria pelos discursos dominantes da brasilidade e do turismo, como vimos argumentando. Recorro, para concluir o argumento, ao artigo O sagrado e o profano: as mulatas e o racismo, de Mariana Assis dos Santos para os Blogueiras Negras em 13 de dezembro de 2013127. Aparece como disparadora do texto uma imagem do concurso da Globeleza. Nela, há sete mulheres negras: seis candidatas aparecem de costas, de biquíni fio dental, e, entre elas, no centro, olhando para frente, Sheron Menezes, apresentadora do concurso e atriz da emissora Globo. Esta imagem circulou nas redes sociais insistentemente, acompanhada de calorosos debates sobre as representações de mulheres negras na mídia (as lutas por visibilidade, os lugares reservados às mulheres negras na mídia, a relação com a autoestima das mulheres negras), as astúcias do racismo ao selecionar uma atriz negra para apresentar o concurso e sua postura ao aceitar fazê-lo, entre outras temáticas suscitadas. Depois de afirmar o quanto a cena foi para ela agressiva e violenta, por expor os corpos de mulheres negras para avaliação do olhar alheio em uma imagem que remete à escravidão quando eram consideradas coisas, Santos (2013) prossegue em sua argumentação: Corpos sem rosto, apenas bundas e coxas bem torneadas, foi a isso que reduziram as nossas bailarinas, as bailarinas do samba, artistas da 127 Disponível em: http://blogueirasnegras.org/2013/12/13/sagrado-profano-mulatas-racismo/. 215 sensualidade e do gingado ancestral e sagrado trazido de África, marcado em nosso DNA. Era esse talento que deveria ser avaliado, sua dança, a força de seus corpos, a precisão dos movimento perfeitos que só uma boa passista consegue alcançar por ter a paixão do samba correndo nas veias, na ponta do pé. Aqueles que conseguem olhar a nossa cultura com os olhos apaixonados de quem realmente incorporou sua ancestralidade negra, já deve ter ficado maravilhado com a beleza, destreza e talento dessas mulheres, dançarinas formadas nas rodas de samba dos becos e vielas; guetos e favelas da vida 128, cujos quadris, pernas e pés são instrumentos que mantêm vivo nosso amor pela dança, nossos laços com África. Em uma negação da denominação mulata, aparece então a denúncia da redução das bailarinas do samba, artistas da sensualidade e do gingado ancestral e sagrado trazido de África, marcado em nosso DNA. O corpo aqui continua a carregar a marca, no DNA que o liga à África e a suas civilizações. No entanto, este corpo não é carne sem rosto, apenas bunda e coxas bem torneadas, marcado pelo racismo. Pergunto-me pelos sentidos deste corpo e sua significação remetida a uma ancestralidade. O corpo sensual é o corpo em movimento, é o corpo da dança, da ginga, da bailarina. A marca no DNA aqui descrita aparece como marca de uma vivência corporal nos rituais negros diferenciada da dominante ou do que se espera do corpo feminino disciplinado e contido da mulher de casa em oposição à da rua. Este seria um corpo mais liberto do sentimento dominante ocidental cristão, o corpo da culpa e do pecado, suporte da alma, conforme propõem Jorge Sabino e Raul Lody (2011) sobre os sentidos do corpo nas danças de matriz africana. Continua a autora: O corpo da mulher negra quando dança torna-se divino, mas em nossa sociedade racista, com sua limitada dicotomia entre sagrado e profano não é possível pensar em divindades sensuais e belas, com desejos e defeitos; em rituais sagrados e alegres, onde as pessoas se divertem, dançam, cantam, amam e odeiam; isso jamais seria respeitado da forma que deveria. Por isso mesmo esses corpos serão sempre apenas corpos, apenas carne, apenas um deleite para os olhos e os desejos de homens brancos que continuam escolhendo negrinhas para aquecer suas noites solitárias, negrinhas que rebolam e requebram para seduzi-lo, afinal estão ali pra isso: agradar seus senhores e enlouquecer suas senhoras de ciúmes. Somos eternas Negras Fulô129 e vemos a ordem escravocrata ser reproduzida em cada comentário grosseiro e despeitado quanto às nossas belas passistas, quando ouvimos homens brancos encherem a boca para falar de seus casos amorosos com mulheres negras e suas infinitas habilidades sexuais, ao mesmo tempo que ostentam suas boas senhoras brancas ao lado; também quando vemos nossos irmãos patrocinarem o vilão130. Foi doloroso ver a Sheron Menezes protagonizando a palhaçada, por sua importância para 128 Na publicação original, hiperlink para a música Carlos Marighella, dos Racionais MC. Na publicação original, hiperlink para o poema Essa Negra Fulô, de Jorge de Lima. 130 Na publicação original, hiperlink para vídeo da música Carta à Mãe África, de GOG, no qual, na abertura, se dedica a música à “Mãe África, mãe de todas as mães”, com participação de Ellen Oléria, que entra cantando, “a carne mais barata do mercado é a carne negra”, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=C1Q1mtChWmE. 129 216 nossas lutas, por ser uma atriz negra, presente em diversas produções da maior emissora de televisão do país, ostentando uma belíssima cabeleira totalmente natural, na lamentável imagem faz as vezes do comerciante de escravos, comercializando suas irmãs como peças de carne. As mulatas, que se apropriaram da denominação terrível e transformaram em um símbolo de sua arte, estão ali expostas como as criaturas sem alma em que tentaram transformar nossos ancestrais no passado, estão ali vendo seu talento ser vulgarizado, sua cultura ser reduzida à farra vulgar da dominação branca incapaz de entender a importância do nosso carnaval, a intensidade de nossa música e dança, o que há de sagrado em nossa folia e, consequentemente, em nossos corpos, sensuais, envolventes e lindos, mas que não é pro seu bico!!! Nesta luta para significar como esse corpo é carne no olhar do outro, do racismo, dos olhos e desejos dos homens brancos e do ciúme das mulheres brancas, afirma-se um corpo divino e sagrado, o corpo em festa, alegre, na intensidade da música e da dança, o corpo que desafia a dicotomia do sagrado e do profano. São corpos sensuais, envolventes e lindos os das mulheres negras desde esta posição – adjetivos que poderiam ser usados desde uma posição racista para dizer das mulatas – no entanto, aqui, não estão para servir a quem for, ou nas palavras de Santos (2013), “mas não é pro seu bico!”. Nesta oposição da luta por ressignificação, para desestabilizar o olhar do discurso dominante sobre estes corpos, afirmam-se corpos femininos negros – os nossos corpos – com características comuns. Há, portanto, por efeito, uma generalização, nesta argumentação, de um corpo feminino negro, em uma tensão entre a beleza e sensualidade materializadas em coxas e bundas bem torneadas do discurso dominante que enxerga estes corpos como carne, por um lado, e a beleza e sensualidade dos corpos em movimentos desafiadores dos sentidos de profano e sagrado. São sentidos divididos, de objetos paradoxais, a exemplo da belíssima cabeleira totalmente natural de Sheron Menezes, que ao mesmo tempo em que significa um movimento de valorização do cabelo negro na televisão não significa uma tomada de posição na luta antirracista, na análise feita por Santos (2013). Ao contrário, “na lamentável imagem faz as vezes do comerciante de escravos, comercializando suas irmãs como peças de carne”. Desde esta segunda posição, pode-se perguntar se ela diz somente daquelas designadas pelo discurso dominante de mulatas (e se contesta esta denominação) ou de todos os corpos negros femininos que dançam o carnaval, inclusive aqueles que não se enquadram no papel de “mulata” sensual e que sofrem com o olhar de ojeriza ou outras formas de depreciação da diferença desde a posição da norma herdeiras dos modos de ver e significar o corpo da Vênus Negra. 217 4.5 Oyá é mulher forte, poderosa e sagrada131 O debate que Santos (2013) propõe sobre a dicotomia entre profano e sagrado, sobre um corpo que remete a divindades sensuais e belas, com desejos e defeitos, nos reaproxima do artigo de Lélia Gonzalez. O artigo Beleza negra, ou: ora-yê-yê-ô! traz já no título a saudação a Oxum, orixá feminino, Yabá, que é muitas vezes evocada para referências à beleza, adjetivada como negra. É a essa beleza qualificada como negra que se reverencia com a saudação dedicada a Oxum. Tal saudação, neste texto, se relaciona à força de orixá pulsando dentro da gente no cotidiano negroafricano como uma forma de viver a espiritualidade e relação com o próprio corpo, o corpo também como expressão do divino e no qual prazer e alegria se conjugam com a fé. Apesar das análises terem se focado em enunciados verbais escritos, vimos que o corpo tem centralidade nos processos de significação. Esta centralidade dá-se na forma de resistência à estereotipia e estigmatização históricas, mas também a outras rotas de sentidos, a outras corporeidades e narrativas corporais. Em pesquisa sobre o papel da liderança religiosa feminina no candomblé, Maria Salete Joaquim (2011) defende que, para os movimentos negros, o candomblé é considerado elemento de resistência cultural, religiosa e dos meios de vida, por preservar as tradições negras e africanas e o culto aos Orixás, ao mesmo tempo em que serve de fonte de conhecimento para estes movimentos. Dito pela autora, “o candomblé, assim constituído, originalmente africano e negro, hoje se tornou afro-brasileiro, permeando todos os movimentos que assumem uma política de identidade negra, tendendo, ao mesmo tempo, a não ser exclusivamente negro” (JOAQUIM, 2001: 69)132. Segundo Eduardo Oliveira (2006: 135 apud CARDOSO, 2012: 42), A práxis dos afrodescendentes envolvidos em movimentos negros, encantados pelo fascínio dos candomblés, acaba por produzir subjetividades autoreferentes [sic] porque celebram sua identidade a partir da cosmovisão africana ressignificada no Brasil. Essa identidade celebrada é ao mesmo tempo uma arma ideológica na disputa pelo poder, e uma disputa política pela universalização de seus valores civilizatórios. Certamente as relações entre mulheres negras em luta no campo do feminismo e 131 O subtítulo deste capítulo retoma os versos do afoxé Oyá mulher forte, de Manoel Silva, cantado pelo Afoxé Oyá Alaxé, de Recife-PE. Cf. vídeo de Zumbayllu (2007), em https://www.youtube.com/watch?v=l2TGYqYJKg 132 Essa afirmação de Joaquim (2011) não deve apagar as diferentes relações estabelecidas pelos movimentos negros com o candomblé, as relações estabelecidas com outras religiões de matrizes africanas e mesmo a militância negra em segmentos religiosos com outras matrizes. 218 da luta antirracista e as religiões de matriz africana bem como os modos como estas sustentam e aparecem em sua prática política (porque há o que não se vê com qualquer olho – aqui parece que seria possível afirmar que as formações discursivas determinam aquilo que pode ser visto em determinadas condições de circulação) formam espaço de reflexões amplo e rico que não será abordado neste capítulo com o aprofundamento que demanda por sua complexidade. Estas relações são plurais, assim como são estas religiões e os modos como ressignificam as cosmovisões africanas. Antes de definir o que estará em foco na abordagem deste tópico, retomo o modo como percebi ao longo do trabalho a sua presença nos materiais a partir dos quais delimitei o corpus de minha pesquisa. As religiões de matriz africana aparecem como depositárias dos valores, saberes, tradições africanas no Brasil, como constitutivas da cultura brasileira, como símbolo de resistência cultural e política. Também aparecem nas pautas das lutas contra a intolerância religiosa e por respeito. Os terreiros são apontados como espaços agregadores de socialização das famílias negras, nos quais as mulheres exercem papel preponderante, com destaque às Mães de Santo, propagadoras do axé (energia vital), sacerdotisas que são exemplo e referência de liderança moral, espiritual e comunitária. Esta liderança é explicada pelo papel exercido pelas mulheres negras em diversas civilizações africanas, especialmente antes da invasão colonial, o que contraria a ideia das mulheres apartadas da vida pública e política a qual o feminismo combateria. As deusas das religiões de matrizes africanas são recorrentes no nosso corpus como modelos de força, inteligência e feminilidade, muitas vezes em referência a um afastamento do cristianismo e dos valores e posturas que este prescreve às mulheres; fazem parte do imaginário mobilizado para nomear e compor a identidade visual das organizações de mulheres negras, de suas publicações, de seus eventos; são invocadas, para proteção, homenagem e ensinamentos, por vezes, nos encontros políticos. Para retomar a análise anterior, uma Yabá, Oxum, foi referida como modelo feminino negro de beleza em contraposição à estética do branqueamento e de depreciação dos corpos de mulheres negras. Nesta eleição, há uma ressignificação de características como é o caso da sensualidade, que deixa de ser vista como atributo que aproxima as mulheres negras dos sentidos de corpo-sexo para um corpo em movimento sensual articulado a uma dança sagrada, em um rompimento da dicotomia entre sensual-corpo/assexuado-alma e um afastamento dos modelos femininos de Virgem Maria e da “mulher de família” (oposta às mulheres da rua e a Maria Madalena). Nas palavras de Sueli Carneiro e Cristiane Cury (1982: 24), 219 Se a civilização ocidental propõe à mulher um estereótipo feminino calcado na docilidade e submissão, o candomblé tem sua contrapartida em Oxum (a mais bela iyabá, a mulher por excelência). Também à mulher ocidental não é permitido a violação desta moral sem cair em desgraça: “Ela é puta ou santa”. Virgem Maria ou Maria Madalena (essa última só encontra redenção ao abdicar de sua sexualidade). Oxum não. Oxum é bela, meiga e faceira; porém, também sensual, esperta e traiçoeira. Ela encanta os homens e os submete. As descrições sobre as Yabás, o conjunto de narrativas míticas acerca de cada uma delas, as conclusões sobre os atributos das pessoas regidas por elas no plano terreno não são unânimes, seja pelas diferentes tradições, pela dinâmica da oralidade e/ou pelas diferentes posições diante das relações de gênero e raciais em que se inscrevem. Aqui, em texto dedicado a examinar o poder feminino no culto aos orixás, que tem como um de suas autoras uma das mais renomadas feministas negras brasileiras, este é exaltado e posto na relação com os modelos de feminilidade branca. Ou seja, há um movimento em direção ao repertório mítico afro-brasileiro para a constituição de outros modelos de feminilidade para as mulheres negras ao mesmo tempo em que se mantém a relação de referência (por oposição) aos modelos de feminilidade dominantes. Conforme Sueli Carneiro e Cristiane Cury (1982), no artigo O Poder Feminino no Culto aos Orixás, a visão mítica da mulher expressa nos cultos afro-brasileiros constitui importante elemento no resgate da identidade feminina negra. Esta visão vai para além das Yabás. Seus estudos retomam mitos da criação, sociedades secretas femininas na África, entre outros. Jurema Werneck (2010:11), no artigo Nossos passos vêm de longe! Movimentos de mulheres negras e estratégias políticas contra o sexismo e o racismo também argumenta que os mitos sagrados presentes no Brasil desde a criação da diáspora africana formam repertório no qual estão “figuras femininas que atuaram e ainda atuam como modelos, como condutores de possibilidades identitárias para a criação e recriação de diferentes formas de feminilidade negra”. A autora assinala que este repertório é maleável e mutante, respondendo a contextos históricos e políticos, assim como, principalmente, a projetos de futuro. Ao se reconhecer a diversidade entre as mulheres negras a conformar diferentes agentes históricas e políticas, é possível perceber e visibilizar as diferentes possibilidades a que as mulheres negras recorreram, os diferentes repertórios ou pressupostos de (auto)identificação ou de identidade e de organização política (WERNECK, 2010). E mesmo os diferentes modos com que mobilizam e significam este repertório, considerando que sua maleabilidade também corresponde às posições sujeito. Dito de outra forma, mulheres negras inscritas em diferentes posições sujeito mobilizam o repertório dos mitos sagrados 220 diferentemente ao longo de sua história de resistência. Jurema Werneck segue situando estes mitos na tradição yorubá, dos povos africanos sub-saarianos, em especial aqueles vindos de onde hoje são Benin e Nigéria, a partir do século XIII e afirma a resistência à escravidão, ao eurocentrismo cristão, ao racismo e à violência patriarcal para que compusessem a tradição afro-brasileira no século XXI. Dito de outra forma, trata-se da resistência destes sentidos aos sentidos das formações ideológicas das classes dominantes em diferentes condições de produção, o que conforma o que chamamos nesta tese de memória diaspórica africana no Brasil declinada em favor do que muitas vozes na produção teórica e na política denominam empoderamento das mulheres negras. Cardoso (2012), ao dimensionar a importância da formação religiosa das ativistas negras que entrevistou em sua pesquisa doutoral133 afirma que valores civilizatórios negro-africanos difundidos pelas práticas religiosas são incorporados, divulgados e constantemente apresentados pelas ativistas negras como basilares para informar novas epistemologias. A interpretação empírica dos mitos das religiões de matrizes africanas tem inspirado a práxis política das ativistas através de exemplos e modelos de comportamento mais assertivos e proativos baseados nas ações das Orixás femininas. De forma semelhante às análises que acabo de apresentar, deterei minha atenção aos modos como as vozes de mulheres negras feministas se significam na relação com as Yabás – palavra que em uma de suas traduções significa mãe rainha e designa um conjunto de divindades femininas –, como Oxum, Iemanjá, Oyá, Ewá, Nanã e Obá 134 como formas de representação do feminino, das mulheres negras, do que elas são e do que poderiam ser quando em luta ou mesmo livres do racismo e do eurocentrismo. Meu olhar também buscará perceber as referências a outros elementos das cosmovisões das religiões de matrizes africanas que são mobilizadas quando as Yabás são chamadas pelas vozes e corpos de mulheres negras feministas. Posta a questão na Análise de Discurso, pergunto pelos efeitos de sentido e os modos de invocação das Yabás pelas vozes e corpos de mulheres negras no campo do feminismo. A cosmovisão do candomblé, especialmente, fortalece o papel das mulheres e do feminino em seus rituais ao destacar os feitos e poderes das Yabás. Nesta 133 Cardoso (2012), ao descrever o perfil das mulheres negras que entrevistou em sua pesquisa de doutorado, afirma que “grande parte das ativistas ‘é feita’ [iniciada] no candomblé, em especial das nações Ketu/Nagô e Angola, e, mesmo aquelas que professam outras religiões ou se apresentaram como ateias, mostraram identidade com a cosmovisão que sustenta as religiões de matrizes africanas” (CARDOSO, 2012: 42). Em sua tese, no quadro de identificação das entrevistadas, explicita-se de quais orixás a ativista é filha, o que sugere relações com suas personalidades, trajetórias, posicionamentos. Explico que “nos terreiros de candomblé não é uma prerrogativa das mulheres a possessão pelas divindades femininas (yabás): também os homens poderão passar pelo transe das yabás e as mulheres poderão manifestar divindades masculinas” (BOTELHO, 2010: 159-160). 134 Faço referência às yabás conforme são nomeadas no candomblé ketu, aquele da maioria de adeptos no país. Ressalto que os candomblés estão divididos por nações (jêje, angola, fon, ketu, entre outras) e cada uma delas tem suas formas e expressões próprias de cultuar suas divindades. 221 aproximação, trarei vozes de mulheres que são lideranças e autoridades nas comunidadesterreiros e que não se posicionam como feministas, principalmente para pensar as mulheres e o feminino significados desde diferentes posições sujeito no discurso por vozes de mulheres negras. Começo com a abertura do I Encontro Nacional de Mulheres Negras (ENMN), realizado em Valença-RJ, em 1988. Como já mencionei no Capítulo 2, sobre as narrativas fundadoras dos movimentos de mulheres negras brasileiras, o I ENMN foi um marco histórico pelo seu significado de organização, mobilização e definição de agenda política, quando se debateram questões sobre as mulheres negras e o feminismo em nível nacional (CARDOSO, 2012)135. A abertura do encontro foi registrada em vídeo e está disponível no acervo Cultne136. Faço uma descrição do início da primeira parte deste vídeo, que tem três partes. O vídeo inicia com imagens externas das participantes do encontro, segurando a faixa/bandeira com o texto escrito “I Encontro Nacional de Mulheres Negras”, e com as cores verde, amarelo e vermelho, das bandeiras da Etiópia, de vários estados africanos e movimentos panafricanistas, mobilizadas em lutas negras antirracistas. Estas mulheres, animadas, conversam e riem, sendo interrompidas por uma delas, que começa a cantar “Que bloco é esse”, do Ilê Aiyê. As outras acompanham. Há um corte e segue um plano da mesa de abertura com mulheres se arrumando para seu início, malas, pessoas entrando em um salão. Outro corte, imagem de uma mulher de costas usando um pano de cabeça e uma roupa com tecidos coloridos, arrumando flores brancas em um vaso. Ao fundo, uma voz diz: “Eu estou achando que vocês têm garra, que essa coisa de dizer que a mulher é parte fraca, isso é bobagem”. Enquanto ouve-se essa fala, há um corte para uma cena de uma mulher soltando um rojão. Continua a voz, agora com a imagem de uma mulher em primeiro plano, Mãe Beata de Iemanjá: “Temos que fazer muito, principalmente... tanto dentro da intelectualidade como dentro da religiosidade”. Corte para imagem com a faixa do nome do encontro. Em seguida, plano da mesa de abertura, com diversas mulheres sentadas e uma mulher 137 usando um turbante e uma amarração com tecido africano, fios de contas que podem ser lidos como indício do seu pertencimento religioso, aparece anunciando no microfone 138 (em um momento 135 Lélia Gonzalez foi uma das principais porta-vozes desse evento, ao lado de Luiza Bairros, Benedita da Silva, Rosália Lemos, Helena Theodoro, Heloisa Marcondes, Hildésia Medeiros, Joselina da Silva, Maria Beatriz Nascimento, Neuza das Dores Pereira, Wania Sant’Anna dentre outras. http://www.projetomemoria.art.br/leliaGonzalez/vida/do-brasil-para-o-mundo.jsp 136 I Encontro Nacional de Mulheres Negras. Não há informações no vídeo sobre sua ficha técnica. Canal Cultne. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=VLib9atLXW0. 137 Não consegui identificar quem é esta mulher, seu nome, organização/coletivo, ou região do Brasil. 138 Marquei com os colchetes os trechos que não consegui entender pela qualidade do áudio. 222 no meio de sua fala, corte para imagem sem som da entrevista com Mãe Beata e retorno): [...] a guerreira das Orixás, a mulher de guerra, a mulher de luta. E refletindo sobre isso, a gente resolveu começar o encontro homenageando Iansã e também depois, consultando nossa mãe espiritual, nossa mãe [...] do encontro, Mãe Beata, que dizia que realmente o orixá que estava regendo o encontro era Iansã. Então, confirmou realmente. Então, pensando assim, a gente vai chamar a companheira Uyara, que tem um canto em homenagem a Iansã. Os sentidos vão se tecendo ao longo destas imagens. Mulheres negras em movimento, anunciando sua chegada, em primeira pessoa: “que bloco é esse, que eu quero saber, é o mundo negro, que viemos mostrar pra vocês”, que traz a pergunta da voz do outro e sua resposta. O mundo negro a ser mostrado. Uma dessas mulheres arrumando as flores brancas – as flores da decoração, da beleza, dos cuidados do feminino? As flores dos rituais religiosos, das Yabás, também dos cuidados femininos? A voz que segue é de Mãe Beata de Iemanjá, como é mais conhecida Beatriz Moreira Costa, referência entre os adeptos das religiões de matrizes africanas e, destas, representante em outros âmbitos. Esta voz anuncia o que virá, dá início ao encontro, sentido que se relaciona com a imagem da mulher que solta o rojão, atividade que não seria tipicamente feminina e que também anuncia um início de festividades, solenidades, etc. Este anúncio do início do encontro legitima a importância de sua iniciativa e afirma uma necessidade de ação “tanto dentro da intelectualidade como dentro da religiosidade”, indicando dois setores em que as mulheres negras estavam organizadas. Não me parece menor percorrer esta descrição-interpretação antes de dizer de Iansã, representação, inspiração da mulher negra guerreira militante, divindade que se corporifica nesta mulher – “a mulher de guerra, a mulher de luta”. Os efeitos de sentidos estão não somente no que Iansã simboliza, nas histórias que contam as sagas heroicas, desventuras e astúcias desta Yabá, aproximada das mulheres em luta. A reverência à Mãe de Santo como orientadora espiritual do encontro é feita pela fala na plenária, mas também pela construção do vídeo. Ela vem antes, ela dá início, ela orienta, diz que Iansã está regendo o encontro. Neste caso, Mãe Beata não diz em primeira pessoa como mulher negra feminista; ela se dirige às mulheres do encontro como “vocês” e não como “nós”. Por sua vez, quem anuncia o início do encontro diz da decisão da homenagem como precedente à consulta com Mãe Beata, que confirma Iansã como regente do encontro. Há, aí, duas posições sujeito diferentes em que se inscrevem mulheres negras, sendo que ambos compartilham elementos da cosmovisão africana presentes nos candomblés e em outras religiões de matriz africana. O gesto da anunciadora do início do encontro 223 respeita a hierarquia entre mais velhos e mais novos comum às relações nas comunidadesterreiros ao fazer referência a Mãe Beata neste momento, bem como partilha desta cosmovisão ao homenagear Iansã e, mais do que isso, compreender que a energia desta Yabá dará os rumos do encontro, em um entrelaçamento dos sentidos da força da organização política coletiva com a força de Iansã, da Yabá Iansã como a própria mulher negra militante. Tal gesto encontra outros, comuns às práticas políticas no formato de plenárias. A representante da organização do encontro chama uma companheira para tomar a palavra. Esta mulher canta, dança ao som dos atabaques (tocado por outra mulher negra) e das palmas das participantes da plenária e da saudação que se ouve diversas vezes: Eparrei!139 Muitas mulheres se levantam e dançam. Há outras mulheres de religiões de matriz africana na sala, de branco, torço e contas, que participam da homenagem. Os corpos nos movimentos da dança, as palavras da saudação, as palavras cantadas, as palmas compartilhadas parecem, enfim, no que meu olhar consegue captar, retomando Oliveira (2006), conformar a celebração de uma identidade a partir da cosmovisão africana ressignificada e mobilizada na luta ideológica. Logo no início do encontro, muito já havia de comum entre suas participantes, as mulheres negras. A apresentação de Iansã como uma deusa guerreira é comum. Nas palavras de Werneck (2010: 12), é a senhora dos ventos e dos raios. Uma força guerreira, perigosa, insubordinada. É ela que, desobedecendo à regra que vedava às mulheres a participação no culto dos mortos, obteve o poder de penetrar suas cerimônias e dançar com eles. Compartilha seus mistérios. E ainda, é aquela que, apropriando-se dos poderes destinados ao rei − Xangô, seu marido − adquiriu o poder de cuspir raios e soltar fogo pela boca. Iansã é também a mãe que abandona os filhos, que serão criados por Iemanjá. As características de fortes e aguerridas associadas às mulheres que sobrevivem apesar das adversidades e ainda se engajam nas lutas coletivas são mobilizadas para a afirmação do sujeito mulheres negras militantes, conforme vimos nas análises que retomam as guerreiras quilombolas, rainhas africanas, comandantes de forças armadas, entre outras. Ao sentido de mulher negra guerreira se articula a força, o que tem suscitado debates entre as mulheres negras para que também possam significar suas fraquezas e, em algumas 139 A saudação Eparrei dá nome à revista – nas versões online e impressa – da Casa de Cultura da Mulher Negra (Santos-SP), organização com 24 anos de idade (cf. http://www.casadeculturadamulhernegra.org.br/), também é nome de uma grife de camisetas, turbantes, saias e acessórios já mencionada em nota anterior. Na página da marca no facebook, lê-se: “Eparrei, pede licença e vem para politizar e sambar na cara da moda que hoje vemos atualmente” (cf. https://www.facebook.com/pages/Eparrei/278066629063763?sk=info&tab=page_info). 224 circunstâncias, sua necessidade de apoio 140. Aqui, para além desta característica, é destacada a insubordinação às proibições impostas às mulheres (o que difere de afirmações de guerreiras que lutam por seus filhos, por suas famílias, por seus povos e por sua sobrevivência material e espiritual) e uma informação sobre sua relação com a maternidade que contraria o imaginário da mãe ideal: Iansã é a mãe que abandona os filhos. Parte destas características de Iansã aparece no relato de Mãe Cleo Martins a Salete Joaquim (2001:94-95), que expõe as relações entre o arquétipo da Yabá e as características de seus filhos e filhas141, entre as narrativas que envolvem Oyá e a dimensão mística, religiosa, do orixá no dia-a-dia. O caráter transgressor é destacado bem como sua relação de alteridade com outros orixás nas narrativas que contam sua trajetória. Contestadora, Oyá adentrou espaços tradicionalmente masculinos, especificamente o da guerra e, para alguns, desgosta do espaço doméstico e das tarefas a ele relacionado: O arquétipo de Iansã é o dela que e Orixá. Agora, o meu não necessariamente corresponde ao da Oiá. Você entende? Eu sou assim. Oiá poderá ser ou não igual a mim. Poderei ou não ser igual a Oiá. Mas de certa forma você não limita. Primeiro porque Deus também é uma coisa inatingível. Na igreja católica eles pregam a imitação (...) Ao passo que... no candomblé... como o fenômeno é individual é uma experiência mística muito particular, é difícil você ter uma imitação. Você vive a religião. (...) A parte mitológica do candomblé é que é transmitida pela língua, pela vivência na comunidade. (...) Por exemplo, Oiá, orixá Iansã, tem aspectos incríveis. Ela é transgressora, mas ela é extremamente generosa. A transgressão gera generosidade. Ela é altamente... Ela é um orixá, vamos dizer assim, que deu a banana para o medíocre. Ela contestou. Iansã foi o primeiro orixá feminino que entrou no mercado masculino. No mercado de trabalho, que foi para a guerra nestas culturas ditas primitivas é uma coisa supermasculina. Quem faz a guerra é o homem. Ogum é dono da guerra. Agora a coisa que mais eu acho incrível... até tem um quadro ali, olha na sala ele mostra esta história de um Odú de Ifá Ogum coroa Iansã. Mas ele coroa Iansã como? Ele tira a coroa da cabeça dele que é a coroa de guerra de Ogum. Eu acho que neste momento Ogum tá reconhecendo em Oiá um igual. Uma... sabe o que você dá para outra pessoa uma coisa sua e dizer toma, como que dividindo com ela o poder de guerra. Ela é tão guerreira quanto ele. Eu sou o rei de guerra e você é minha rainha. Mas não a rainha porque você é bonita, porque eu gosto de você. Não. Mas porque eu te reconheço uma igual. 140 Cf. Parem de dizer às mulheres negras que sejam fortes!, por Élida Aquino http://meninasblackpower.blogspot.com.br/2015/02/parem-de-dizer-mulheres-negras-que.html 141 Em entrevista ao jornal A Tarde, Makota Valdina opõe-se à aproximação das divindades com os seres humanos no candomblé: “Eu sou do candomblé 24 h por dia porque ele está impregnado no meu corpo e no meu espírito. Dizem: ‘Ah, porque gente de Oxum é assim’. Estereotiparam e folclorizaram muitas coisas, eu não concordo. Fica parecendo que é um ser humano. Oxum, Dandalunda, é a deusa do amor, da beleza. Ora, Dandalunda é a maior paz, porque é água. E todo mundo bebe Oxum e precisa de Oxum, porque sem água nada existe. Se eu respiro o tempo todo, o ar é essência de orixá de N’kisi. Todo ser humano precisa dessa essência, forças naturais que o homem não fez e estão aí na natureza. Isso não é magia. Candomblé para mim não é magia, é realidade de um viver humano. Ainda que se viva numa cultura que não tenha a ver com Orixá. É nisso que eu acredito...” (MAKOTA VALDINA, 2009: 12 apud CARDOSO, 2012: 299). 225 É um companheirismo conquistado, como demonstração de valores. Ela era igual neste particular. Você vê que Oiá é aquela mulher que dividiu com Xangô o poder de fogo. Ela fez o fogo com Xangô. Para fazer o fogo são necessários dois gravetos. Você não faz o fogo só com um. Amanhã no Axé Opô Afonjá tem uma cerimônia que é a cerimônia do Agerê, no qual Xangô carrega o fogo e Oiá carrega o fogo. Xangô come o fogo e Oiá também. Uma coisa que a gente concluiu é que sem Oiá Xangô não faz fogo nenhum. Como ela não faria sem Xangô. Há necessidade dos dois para evocarem o fogo. (...) Agora eu acho que Oiá dividiu com Xangô o poder do fogo, com Ogum o poder da guerra e com Oxóssi, o poder da transformação. Ela é muito... Oiá é um orixá que... engraçado... ela sempre está em relação a outro, ela sempre complementa neste particular. O que ressalto no que expõe Mãe Cleo é o reconhecimento do feminino como igual pelo masculino e uma noção de complementariedade entre feminino e masculino que permeia seu relato. O reconhecimento de Ogum em relação a Oyá como igual em “um companheirismo conquistado”, este reconhecimento lhe rende o posto de rainha e o poder da guerra (e não sua beleza ou o amor romântico, como ocorre em muitos contos de fada, princesas e rainhas – narrativas fundadoras ocidentais ou ocidentalizadas). Em outra passagem, ela quem dividiu o poder do fogo com Xangô, ela fez junto, pois “para fazer o fogo são necessários dois gravetos”. Pergunto-me se na afirmação de que “há necessidade dos dois para evocar o fogo” não estaria uma sugestão do caráter complementar entre o feminino e o masculino, nesta ideia de que Oyá “sempre está em relação a outro”, um outro, nas passagens que a mãe de santo evoca, referente a três orixás masculinos – Ogum, Xangô e Oxossi. Dito de outra forma, a sacerdotisa evoca a mesma característica de transgressão da Oyá, mas o faz diferentemente de Jurema Werneck, intelectual/ativista dos movimentos de mulheres negras. Em sua versão, o caráter insubordinado do feminino e sua ação em direção ao mundo considerado masculino, que tem a guerra como símbolo, convive com a concessão de poderes do masculino, com seu caráter complementar. Se na descrição de Werneck, Oyá “apropriando-se dos poderes destinados ao rei − Xangô, seu marido − adquiriu o poder de cuspir raios e soltar fogo pela boca”, para Mãe Cléo, “ela dividiu com Xangô o poder do fogo”. A ênfase e o modo de relatar a transgressão são diferentes. Além do que a transgressão de Oyá não fere uma qualidade inerente da mãe no discurso dominante, a generosidade. Mas e a rejeição dos filhos da qual falou Werneck? Leiamos outra forma de relatar as relações de Oyá e Xangô com o poder do fogo novamente pelas palavras de Mãe Cleo, agora na posição de autora do artigo “A transgressora 226 pela vida”, sobre Oyá, publicado em 9 de julho de 2009 no A tarde on line142, lida por um público amplo. Novamente, há uma positivação da transgressão, revelando seu caráter negativo nos discursos dominantes. A autora inicia sua apresentação dizendo que Iansã é “a protetora das mulheres independentes e de todas as pessoas que tenham sede e fome de liberdade e justiça” e, reafirmando a centralidade de sua qualidade de transgressora, afirma: “em uma tradição oral, transmitida de gerações para gerações, nada mais óbvio do que a existência de mitos diferentes sobre o mesmo Orixá; alguns, até, conflitantes. Apesar das variações, no que diz respeito a Oiá, uma coisa é certa: é a transgressora pela Vida”. No relato, foi Oyá quem deu o poder a Xangô: Oiá, a mulher-búfalo, “a Vermelha” (como são os búfalos-fêmeas), com o condão de chafurdar na lama, pesando toneladas, transforma-se em borboleta. Também é popularmente conhecida por “a Voadora”. Pariu nove filhos, dentre os quais os egunguns, os espíritos-ancestrais, ela mesma um Egumgum-Oiá, quando quer. Senhora das brisas que nos dão o frescor, também o é a dos furacões avassaladores e das tempestades. É tão valente e incorruptível quando Ogum (não aceita mentiras e mentirosos, dissimulações, lorotas e bajuladores) e é a parte mais atuante na justiça ígnea de Xangô. Detesta iniquidades e tudo que negue o Amor. Filha adotiva de Olu-Odé, o Alaketu – o qual, segundo uma corrente da mitologia, a denominou Oiá, a ligeira –, esposa de Ogum, o Orixá vanguardeiro e inventor; o primogênito dentre os Orixás Caçadores e, posteriormente, de Xangô, o Senhor do Fogo e do Poder em Exercício. Na verdade, foi ela quem deu o fogo ao marido, transformando-o no que é. Só que antes de entregar ao Rei a porção que o faria dominar o elemento sagrado, resolveu prová-la – desobedecendo às determinações conjugais… sem Oiá-Iansã, Xangô não produz nem uma faísca… A desobediência, a insubordinação e a transgressão estão presentes novamente, mas, se em Werneck a transgressão era das regras dos cultos religiosos e do poder do rei, neste relato aparecem com mais destaque as relações conjugais. O poder de Xangô é dependente de Oyá, o marido se transforma por causa da esposa... As regras, expectativas, enfim, os discursos em torno do casamento e relacionamentos amorosos permeiam esta narrativa. Carneiro e Cury (1991: 21) argumentam que “o equilíbrio de forças entre os sexos está sempre presente nos mitos; há neles o reconhecimento, do ponto de vista do homem, da necessidade de controlar a mulher, não porque ela seja inferior, subproduto dele, mas sim porque tem características capazes de submetê-lo”. Sobre a necessidade dos homens de controlar as mulheres, Helena Theodoro (1985:148) afirma que “Na cultura africana os mitos situam o poder de realização da mulher, indicando, também a necessidade de controle de tal 142 Matéria disponível em http://jeitobaiano.atarde.uol.com.br/?p=592. 227 poder: tal controle se justificará pela voracidade, intolerância e exageros que os africanos atribuem como naturais e próprios do “Axé” das mulheres.” No caso de Oyá, sua capacidade de transmutação (do pesado e forte búfalo para a leve e voadora borboleta), da brisa aos furacões, desafia este controle masculino. Nesta versão, se diz que Oyá pariu nove filhos, dentre eles os espíritos-ancestrais. Carneiro e Cury (1991), assim como Werneck (2010), escreveram sobre Iansã e outras Yabás em um texto que se centra nos modelos de feminilidade nesta mitologia. Esta escrita comporta descrição das características da Yabá, narrativas em que é protagonista, seus símbolos nos rituais de candomblé, as características de suas filhas e a relação entre esta figura feminina e o que seria o discurso dominante sobre as mulheres. Em suma, retomando a afirmação de Carneiro (2007) anos depois, tratava-se de “identificar uma perspectiva feminista a partir da mitologia, e como essa mitologia opera ainda hoje sobre as mulheres reais e concretas nesse país” (apud ALBERTI & PEREIRA, 2007: 277). Leiamos a apresentação que Carneiro e Cury (1991: 24-25) fazem de Iansã: De temperamento forte, intrépida, voluntariosa e sensual, Iansã é uma deusa guerreira. Ela luta ao lado de Xangô, seu marido, e domina os espíritos dos mortos (os Eguns). Deusa do fogo e das tempestades, assim como Xangô tem domínio sobre os trovões, ela controla os raios. Seus símbolos rituais são a espada e o eiru (arma com que Iansã espanta os Eguns) e sua cor é o vermelho vibrante. Dança agitando os braços distendidos, simulando desencadear os elementos naturais e afastar os Eguns dos seres vivos. Um de seus mitos relata: “No começo do mundo, a mulher intimidava o homem desse tempo, e o manejava com o dedo mindinho. É por isso que Oyá (conhecida mais comumente nos cultos afro-brasileiros sob o nome de Iyãnsan) foi a primeira a inventar o segredo ou a maçonaria dos Egungun, sob todos os seus aspectos. Assim, quando as mulheres queriam humilhar seus maridos, reuniam-se numa encruzilhada sob a direção de Iyãnsan. Ela já estava ali com um grande macaco que tinha domado, preparado com roupas apropriadas ao pé de um tronco de igi (árvore), para fazer o que fosse determinado por Iyãnsan por meio de uma vara que ela segurava na mão, conhecida com o nome de Isan. Depois da cerimônia especial, o macaco aparecia e desempenhava seu papel segundo as ordens de Iyãnsan. Isso se passava diante dos homens que fugiam aterrorizados por causa desta aparição. Finalmente, um dia, os homens resolveram tomar providências para acabar com a vergonha de viverem continuamente sob o domínio das mulheres. Decidiram então ir a Orunmilá (Deus do oráculo Ifá), a fim de consultar Ifá para saber o que poderiam fazer para remediar uma tal situação. Depois de ter consultado o oráculo, Orunmilá lhes explicou tudo o que estava acontecendo e o que eles deveriam fazer. Em seguida, ele mandou Ogun fazer uma oferenda, ebó, compreendendo galos, uma roupa, uma espada, um chapéu usado, na encruzilhada, ao pé da referida árvore, antes que as mulheres se reunissem. Dito e feito. Ogun chegou bem cedo à encruzilhada e fez o preceito com galos, de acordo com o que Orunmilá ordenou. Em 228 seguida, ele pôs a roupa, o chapéu e pegou a espada na mão. Mais tarde, durante o dia, quando as mulheres chegaram e se reuniram para celebrar os ritos habituais, de repente, viram aparecer uma forma terrificante. A aparição era tão terrível que a principal das mulheres, isto é, que estava à frente, Iyãnsan, foi a primeira a fugir. Graças à força e ao poder que tinha, ela desapareceu para sempre da face da terra. Assim, depois dessa época, os homens dominaram as mulheres e são senhores absolutos do culto. Proibiram e proíbem as mulheres penetrar no segredo de toda sociedade de tipo maçônico. Mas, segundo o provérbio, ‘é a exceção que faz a regra’; os raros exemplos de sociedades secretas às quais eram autorizadas a participar em território yorubá continuaram a existir em circunstâncias especiais. Isto se explica por que Iyãnsan-Oiyá é adorada e venerada por todos na qualidade de Rainha e Fundadora da Sociedade Secreta dos Egungun na terra”. O povo de santo diz que com as filhas de Iansã ninguém pode, elas são temidas e respeitadas. Os mitos falam de Iansã e Xangô..., Iansã e Ogun..., de Iansã e Oxossi... ela é ardente... Se a sociedade patriarcal não comporta a insubordinação feminina, ela é mitificada no candomblé, Iansã e Obá são sua expressão. Nesta versão de Carneiro e Cury (1991), em um trabalho que teve como base pesquisa de campo com filhas de santo em candomblés em São Paulo, na década anterior, Oyá é uma deusa guerreira, voluntariosa, sensual, ardente e representa a insubordinação feminina mitificada. Essa insubordinação remonta seu papel no tempo em que o poder era das mulheres e os homens, seus maridos, eram por elas aterrorizados, um passado que se faz presente na exceção das sociedades secretas femininas existentes em território yorubá 143. Um mito que poderia ser lido como a passagem do matriarcado para o patriarcado de um ponto de vista feminista, que defende que o poder masculino se fez a partir do embate com uma sociedade regida pelas mulheres, em uma polarização de homens e mulheres com interesses conflitantes que atravessa os tempos. Iansã vive nas filhas, o matriarcado vive nas filhas, que são temidas e respeitadas. Lutar é (re)viver Iansã, sentir sua força. A insubordinação de Iansã também passa por sua sexualidade insubordinada à sociedade patriarcal, na enumeração dos orixás com que se relacionou por sua ardência. Nesta versão, não se fala de Oyá como mãe. Vejamos o modo como Werneck (2005)144 constrói uma narrativa exemplar sobre Oxum para tratar das ialodês na diáspora. Conta-se a história de uma mulher trabalhadora e obstinada de nome Oxum. Que, apesar de seus muitos esforços, não conseguia melhorar de vida. Vendo que nada do que fazia era suficiente para superar suas dificuldades, resolveu 143 O nome de uma das mais importantes organizações de mulheres negras no Brasil, o Geledés – Instituto da Mulher Negra, do qual Sueli Carneiro é uma das fundadoras, remonta uma forma de sociedade secreta feminina de caráter religioso existente nas sociedades tradicionais yorubás. Disponível em: http://www.geledes.org.br/geledes/quem-somos/455-geledes-instituto-da-mulher-negra. 144 O artigo foi publicado na revista Nouvelles Questions Féministes. A versão que consultei está disponível no blog http://mulheresrebeldes.blogspot.com.br/2008/10/de-ialods-e-feministas.html, em formato de post, sem numeração de páginas. 229 procurar ajuda entre as pessoas sábias da comunidade. Como sempre acontece nestes casos, fez, através do jogo de búzios, uma consulta aos orixás, de modo a se reparar os problemas que vivia. A resposta veio com a necessidade de preparo e entrega de uma oferenda na casa de Orixalá, o rei. Esta entrega deveria vir acompanhada de pedidos, em voz alta, de tudo que fosse necessário para que assim Oxum pudesse finalmente progredir. E assim foi feito. Preparada a vistosa oferenda, Oxum foi levá-la ao palácio do rei. Chegando lá, ao invés de pedir, Oxum começou a maldizer o rei. Acusando-o de injusto e opulento, enquanto ela, uma mulher trabalhadora e dedicada, não conseguia nada. Suas maldições jogadas contra Orixalá provocaram alvoroço e aos poucos foi juntando gente em volta da casa do rei para ver o que se passava. Lá dentro, ouvindo os rumores da multidão, Orixalá convocou seus conselheiros, pedindo informações. Estes lhe contaram que se tratava de uma mulher que vigorosamente amaldiçoava o rei, acusando-o de toda sorte de desigualdades e injustiças. Orixalá pede a seus assessores um conselho e estes recomendam que o rei dê algum presente à mulher, para fazê-la calar-se. O que é feito rapidamente. Recebendo os presentes, Oxum agradece e renova suas maldições, insistindo na injustiça da situação em que o rei acumulava riquezas enquanto ela, uma mulher lutadora, tinha muito pouco. Novos presentes lhe foram entregues. Novas maldições ela dirigiu ao palácio, na frente de toda a cidade que observava excitada as acusações contra o rei, cuja soberania estava sendo posta em questão. Dentro do palácio, os conselheiros continuavam recomendando presentes a Oxum. Finalmente, o rei a mandou buscá-la e, já dentro do palácio, mandou que lhe dessem tudo o que ela desejasse. Dessa forma, Oxum tornou-se a dona de todo o ouro e de toda a riqueza. Aqui, este relato tem a utilidade de expor um dos pressupostos do papel feminino negro vivido pelas mulheres no Brasil. Estes pressupostos falam de dimensões de luta, de instabilidade de posições, de poderes de agenciamento e transformação capazes de serem vividos pelas mulheres. Falam da disponibilidade para a luta e das possibilidades de êxito que a luta traz. Fala da responsabilidade das mulheres em relação ao grupo. E da existência de uma coletividade de interesses, a que cada indivíduo deve se reportar. Fala do poder masculino sendo questionado. Fala do poder da riqueza sendo questionado. Fala da revolução onde a riqueza muda de mãos. Fala da presença das mulheres no espaço público, sua capacidade de liderança, de ação política. Fala de Oxum, a ialodê primordial, segundo a tradição. A orixá marcada pela sensualidade, pela força de vontade e capacidade de realização. E celebra a figura das ialodês, mulheres que se colocam como agentes políticos de mudança, detentoras principais das riquezas conquistadas. Assim, recoloca a dimensão ativista que as mulheres negras têm vivenciado, desde seu passado (ou presente) africano até o cotidiano da diáspora. Ainda que se tenha perdido o rastro temporal da origem desta história exemplar, é possível afirmar que as lutas contra o patriarcado e a dominação política e econômica associadas a ele vêm de muito longe para nós mulheres negras. E o vigor com que esta narrativa vem sendo atualizada até o século XXI assinala sua pertinência na modernidade ocidental, guardando uma perspectiva de continuidade fundamental ao longo dos séculos. O feminismo, como teoria, veio depois. Neste caso, a narrativa é seguida de apontamentos sobre sua pertinência no século XXI para nós, mulheres negras. Oxum era mulher trabalhadora que, apesar de seu esforço não progredia na vida. Inconformada com a distribuição desigual da riqueza, desafiou o poder do 230 rei, acusando-o de injusto. Os presentes a ela ofertados foram uma tentativa em vão de calar sua voz, pois ela só se satisfez quando todos os seus desejos foram concedidos, o que a tornou “a dona de todo ouro e de toda riqueza”. A interpretação da autora direciona a leitura da narrativa e insere-a em sua formulação sobre “um dos pressupostos do papel feminino negro vivido pelas mulheres no Brasil”, “a dimensão ativista que as mulheres negras têm vivenciado, desde seu passado (ou presente) africano até o cotidiano da diáspora”. A narrativa de Oxum fortalece o argumento de que as lutas de mulheres negras remontam um tempo passado que não pode ser rastreado, mas que certamente é anterior ao feminismo como teoria. As mulheres negras de hoje presentificam uma continuidade histórica de início irrecuperável, atestada pela pertinência da narrativa ao longo do tempo. A partir da referência à “ialodê”, título conferido a mulheres de reconhecido valor para a comunidade, representantes das mulheres em instâncias de poder, atribuído a Oxum e a Nanã, a autora adota-a como metáfora de liderança e auto-governo, argumentando que na noção de ialodê está a característica de Oxum de realização e criação do novo, bem como a característica de preservação da tradição de Nanã. Sobre a escolha das ialodês como chave de leitura, afirma a autora: Não se trata de contrapor ao mito de fundação patriarcal ou da branquitude burguesa do feminismo outro que simbolize seu oposto radical, quer dizer, que reitere essencialismos e estereótipos com sinais trocados. Ao propor uma interpretação a partir e através das ialodês e dos diferentes repertórios identitários a que lançamos mão, o que pretendo é mostrar o caráter contingente do relato patriarcal e racista, naturalizado e reiterado nas historiografias da cultura, do anti-racismo e do feminismo. E, principalmente, recolocar o lugar das mulheres negras e o impacto de sua atuação para a constituição da diáspora negra. Como também para as disputas ainda em desenvolvimento, que podem ser capazes de impactar, até mesmo, a cultura global (WERNECK, 2010: 15). A identidade feminista seria, para esta posição, limitante, além de promover o apagamento desses passos que vem de longe. Para muitas das ialodês, o feminismo não é referência central, a exemplo das sambistas, estudadas por Jurema Werneck em seu doutoramento. Aqui me parece oportuno, já na reta final do texto, justificar parte do título desta tese: “feministas e antirracistas graças às yabás”. Esta escolha não desconsidera que há mulheres negras que não se identificam com o termo “feminista”, mesmo entre aquelas que participam de espaços considerados, por desde outras posições sujeito, como feministas. Ao contrário, busca dizer da encruzilhada de memórias, de repertórios, de elementos de saber que constituem as sujeitas políticas mulheres negras no campo feminista, foco das análises desta tese. Cheguei a este título pela leitura do artigo Antigas personagens, novas cenas: mulheres 231 negras e participação política, de Matilde Ribeiro (1998), que tem um tópico nomeado “Feminista e antirracistas graças às deusas”. O deslocamento para yabás deveu-se à importância para diferentes mulheres negras em luta, especialmente aquelas no campo do feminismo e do antirracismo, das palavras oriundas de línguas africanas145 e da visibilização das religiões de matrizes africanas, com forte liderança feminina, e de suas divindades como fontes de modelos de feminilidade com disposição para as lutas, diferentes dos modelos de feminilidade brancos, tanto dos discursos patriarcais quanto dos feministas 146. Divergente ao discurso religioso dominante que inferioriza as mulheres e contra o qual o feminismo hegemônico se levanta, as feministas negras estabelecem um diálogo privilegiado com o discurso religioso afro-brasileiro. Para concluir esta exposição sobre diferentes modos de narrar, descrever e relacionar as Yabás às mulheres, em especial às mulheres negras, por vozes de mulheres negras identificadas com o feminismo, volto a atenção dx leitorx para o cartaz de divulgação da Afrolatinas – exposição audiovisual de empoderamento de mulheres negras, realizada em março de 2015, no Museu Nacional de Brasília. Trata-se de foto e arte de Chaia Dechen de uma apresentação do bloco afro do Ilu Obá de Min – Educação, Cultura e Arte Negra147, na edição do Latinidades de 2013. Quem aparece na foto é Christiane Gomes, uma das coordenadoras do corpo de dança do bloco, representando uma Yabá guerreira. A exposição reuniu parte do acervo das sete edições já realizadas maior festival de mulheres negras da América Latina, o Latinidades - Festival da Mulher Afro-Latino-Americana e Caribenha. 145 Considerando a língua um importante fator de identidade, os terreiros religiosos de matrizes africanas são espaços de resistência de línguas africanas atingidas no contexto escravista, a partir das cantigas, durante os cultos religiosos para a comunicação entre humanos e divindades, nas relações entre os adeptos, entre outros. 146 Uma frase estampada pelas feministas negras afro-americanas que também me inspirou para este título é “I met God and she is Black”, que quebra com as expectativas dominantes de deus como imagem à semelhança de um homem branco. 147 O bloco foi constituído como uma entidade feminina com o objetivo de preservar e divulgar a cultura negra no Brasil, mantendo um diálogo cultural constante com o continente africano por meio dos instrumentos, dos cânticos, dos toques e da corporeidade, visando ao fortalecimento individual e coletivo das mulheres na sociedade. Nos cortejos, o Ilú Oba De Min homenageia mulheres que para o bloco são representativas da cultura afro-brasileira. As canções exaltam a beleza, a contribuição e a condição da mulher negra na sociedade. Por sua ligação com o candomblé, todos os anos o Ilú homenageia também um orixá em específico, geralmente o orixá de cabeça da personalidade homenageada (cf. Valéria de Souza (2014), em sua dissertação intitulada Os tambores das “Yabás”: raça, sexualidade, gênero e cultura no Bloco Afro Ilú Obá De Min). 232 Figura 16 – Cartaz de divulgação do Afrolatinas – exposição audiovisual de empoderamento de mulheres negras, 2015. As cores predominantes, o vermelho, o preto e o branco, encontram o verde e amarelo do patrocínio da Petrobrás, parceria e apoio de órgãos do governo federal. Deste modo, as Afrolatinas ligam-se ao Brasil. Afrolatinas é reescrita por mulheres negras: são as mulheres negras da diáspora africana no caribe e na América Latina, em sua articulação regional. Passo ao que significa esta mulher da fotografia na relação com as Yabás. A foto paralisa o movimento de um punho em riste a segurar uma espada, cabeça erguida em um grito (de fala política, canto, ilá de orixá?). A memória da militância política, dos punhos cerrados em protesto, se encontra com a memória das Yabás guerreiras, a empunhar suas armas ancestrais. Nesta encruzilhada de memórias, a mulher negra é significada como forte, lutadora, de autoestima elevada, de olhar para cima: a mulher empoderada, e não a vítima do machismo e do racismo. A força da mulher negra não para o trabalho braçal, para servir os outros, nas representações dominantes, mas herança positiva para a luta por sua libertação ou para expressar uma liberdade e força que já são suas desde a ancestralidade, desde tempos 233 imemoriais. Diante de uma história de representação de mulheres negras pelo corpo, este significado como corpo sem mente, corpo-objeto, corpo-sexo, a imagem contrapõe-se como corpo-luta, corpo-voz. A edição da imagem, que avermelha o torço de Christiane Gomes e aproxima-o daquele do logotipo do festival Latinidades, faz com que o rosto de uma mulher negra particular signifique o coletivo das mulheres negras representadas no logo, também perfil de uma mulher negra, porém com traços generalizantes (uma regularidade nos logotipos). Ainda assemelha o torço a uma rosa vermelha e ao fogo, a chama de Oyá, que tem como uma das suas principais cores o vermelho. O fogo e a rosa vermelha remetem à transformação, sendo que esta última simboliza paixão, a luta socialista. Pode ainda ser pensada como a esperança da transformação pelas mulheres negras, na relação com sua ancestralidade, pelo uso dos torsos. Deste modo, repete, atualiza e desloca os sentidos do logotipo. Quanto às Yabás nas versões de ativistas/militantes dos movimentos de mulheres negras, é interessante refletir sobre o menor destaque ou mesmo a não menção do papel de mãe de Oyá e Oxum, em contraste com dois depoimentos de lideranças femininas no candomblé sobre o papel das Yabás. Refiro-me às falas de Mãe Jaciara de Oxum e Makota Valdina do documentário Mulheres de Axé, de Marcos Rezende (2013)148, que analisarei a seguir. Com este comentário não pretendo generalizar os sentidos das Yabás nas vozes das intelectuas/ativistas negras149 nem opor sua posição àquelas das lideranças religiosas (ou ainda opor os sentidos de guerreira e mãe, o que não se verifica nas narrativas das Yabás). Procuro ponderar que a crítica à mulher significada como mãe – a maternidade como realização da condição feminina, como abnegação, um dos fins do matrimônio... – pelo discurso dominante que tem no discurso feminista hegemônico sua negação, pela proposta da mulher ser significada fora de suas relações familiares e pelo direito de decidir sobre o corpo e sobre ter ou não filhos, pode ter efeitos nos discursos de mulheres negras quando mobilizam elementos da mitologia afro-brasileira para a militância feminina negra. Ressalto que a negação da figura da mãe preta como mãe dos filhos dos brancos, a luta contra as dificuldades históricas impostas para a constituição de famílias negras, bem 148 O documentário teve apoio da Secretaria da Promoção da Igualdade Racial da Bahia. Realização: ONG Ação pela Cidadania, Associação Cultural e Religiosa São Salvador Ile Axé Oxumare – tradição ancestral com compromisso social, Associação Beneficente Axé Abassá de Ogum, Associação Comunitária Alzira do Conforto, Coletivo de Entidades Negras (Cen). Produtora Água de Meninos. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=qbgoqgoBiKU. 149 Uma importante referência para aprofundar estas reflexões iniciais é o trabalho de Helena Theodoro (1985, 1996). 234 como as lutas contra as políticas de controle de natalidade pela esterilização de mulheres negras nos anos 1980, contra o genocídio da juventude negra pelo Estado, pelo SUS sem racismo (com destaque à violência obstetrícia) 150 são lutas pelo direito à maternidade das mulheres negras. Importa determo-nos nesta pluralidade de sentidos atribuídos à maternidade 151 em contradição nos processos discursivos. Oyèrónké Oyewùmí (2004), em seu artigo Conceituando o gênero: os fundamentos eurocêntricos dos conceitos feministas e o desafio das epistemologias africanas, indaga os conceitos de gênero e outros a ele articulados desde experiências e epistemologias culturais africanas. A autora argumenta que em grande parte da teoria feminista branca, a sociedade é representada como uma família nuclear, composta por casal e filhxs. Neste caso, a categoria de análise que se faz fundamental é o gênero (e não raça e classe). Sendo a unidade de análise a família, a mulher é reduzida à esposa e a esfera privada significada como aquela da subordinação feminina. Nesta linha argumentativa, a mãe é definida como esposa, explicação, segundo a autora, para a expressão “mãe solteira”, que de uma perspectiva africana não faria sentido, pois mães por definição não podem ser solteiras, dado que, na maioria das culturas, a maternidade é definida como uma relação de descendência, não como uma relação sexual com um homem. Conclui a autora: “Dentro da literatura feminista, a maternidade, que em muitas outras sociedades constitui a identidade dominante das mulheres, está subsumida a ser esposa” (OYEWÙMI, 2004: 05). Ao retomar esta crítica às teorias feministas eurocêntricas desde uma tomada de posição que busca construir epistemologias africanas, busco pensar sobre os trajetos sóciohistóricos dos sentidos que significam a maternidade, as relações afetivo-sexuais entre feminino e masculino e mesmo a distinção entre masculino e feminino e sua hierarquização nas vozes de mulheres negras. Compreendo que as formas de narrar e interpretar as Yabás relacionam-se aos modos como estas memórias dominantes e dominadas se entrecruzam em diferentes estados das relações de força entre sentidos na construção de imagens plurais de mulheres guerreiras e mães. O documentário Mulheres de Axé – vozes contra a intolerância inicia com um 150 Cf. Maternidade e racismo: a exclusão das mães negras, de Jarid Arraes (2015) http://www.revistaforum.com.br/questaodegenero/2015/05/06/maternidade-e-racismo-exclusao-das-maesnegras/ 151 Parece-me que os estudos a se fazer sobre a figura da mãe preta no imaginário e nas narrativas fundadoras da brasilidade passam também por considerar os sentidos divididos em torno da maternidade em contradição entre diferentes memórias, a diaspórica e a dos sentidos dominantes, mesmo quando se considera que a primeira não é autônoma em relação à outra, estudos como o de Oyewùmi (2004) demonstram outras rotas de sentidos. Nesta perspectiva, contribuem os estudos de Rita Segato (2006). 235 barulho do vento, imagens de árvores balançando e a bandeira branca de Tempo tremulando. Em seguida, uma canção 152 por uma voz feminina e sob o ritmo afoxé diz: Axé, força vital, meu ori, meu eledá, Mulher guerreira negra grande yabá Manteve a nossa fé, religião Poder do candomblé, no coração Mulher Construiu a tradição deste país Empreendeu ação, plantou raiz Mulher Nanã, Oxum, Iansã Ewa, Obá, Iemanjá Dulcíssimas Yabás Cantem pra trazer a paz Dancem pra cuidar de nós Nesta versão, a mulher negra integrante do candomblé é significada como Yabá, ao mesmo tempo doce e guerreira, cuidadora em sua luta pela paz. Em seguida à canção, vem a saudação aos mais velhos por Mãe Stella de Oxossi, do Ilê Axé Opô Afonjá, gesto compartilhado pelas mulheres negras em seu I Encontro Nacional, como já dito. Esta saudação é feita nominalmente a Iyá Nassô, Iya Akalá e Iya Adetá, as três velhas africanas que levaram o candomblé para a Bahia de forma mais ampla. Em seguida, uma mulher negra vestida de Oxum dança ao som de “yalodê, yalodê iyabá”, tendo como fundo um mural com a divindade pintada, novamente em uma aproximação entre deusa e mulher, na qual são fundamentais a dança, o vestuário, as ferramentas ou aparatos do orixá, revelando que estes elementos compõem a narrativa e as referências de feminilidade das Yabás. Um corte, e Mãe Jaciara de Oxum, do terreiro Abassé de Ogum, diz sobre o empoderamento da mulher negra, recorrendo a uma narrativa sobre Oxum. Enquanto Mãe Jaciara faz seu relato, há momentos em que as imagens são as da dança: Figura 17 – Cenas do documentário Mulheres de Axé (2013) Mãe Jaciara de Oxum relata e Oxum dança. 152 Tema do documentário Mulheres de Axé (2013), de autoria de Marcos Rezende, na voz de Márcia Short. 236 Falar de empoderamento de mulher, de poder de mulher, eu lembro de um oriki muito importante na nossa liturgia africana. É um momento onde homens se reuniram para fazer uma grande reunião e era proibida a presença de mulheres. E o que aconteceu? Tudo ficou ruim nesse momento. As cachoeiras secaram, as mulheres ficaram inférteis, a natureza não dava um retorno à comunidade e aí esses orixás masculinos procuraram Ododuá, pra saber o que estava acontecendo, e ao chegar lá, eles comentaram que estava tudo ruim na terra, que nada dava certo, os lagos secaram, as cachoeiras secaram, as mulheres não engravidavam, tava tudo um caos. Então Ododuá disse, perguntou pra eles: Oxum faz parte dessa reunião? Eles responderam que não. Então ficou claro que a falta da presença de Oxum e do poder feminino estava fazendo aquilo acontecer. Então eles retornaram, procuraram Oxum, pediu pra ela participar da reunião. Ela foi arredia, não queria, mas terminou aceitando e aí tudo voltou ao normal. As mulheres ficaram felizes, voltaram a engravidar, a terra ficou fértil, os rios e cachoeiras brotaram água em abundância, tudo deu certo. Aí Oxum recebeu o título de Yalodê, que significa um título de grande poder e isso acontece até hoje, o poder que as mulheres têm, por ser mulher, de ter o poder de engravidar, de produzir tantas coisas. Então, assim, no candomblé, a importância muito grande das mulheres estarem fazendo parte, lado a lado, igual com todos os homens (Mãe Jaciara de Oxum, terreiro Abassá de Ogum). Nesta narrativa, o poder de Oxum é o poder feminino da fertilidade da natureza, dos lagos, rios, cachoeiras, da terra e da mulher, que pode engravidar. Os homens não podem reunir-se sem as mulheres porque sua exclusão gera caos. Nesta narrativa, a insubordinação feminina não aparece como embate direto (a exemplo de Oxum maldizendo o rei em frente ao seu palácio, ou Oyá desobedecendo as regras conjugais). A ausência de Oxum gera o desequilíbrio; sua presença, a normalidade – do que se conclui que as mulheres devem estar lado a lado com os homens em situação de igualdade. É pelo poder de gerar, de engravidar, de garantir a fertilidade natural que Oxum ganha o título de Yalodê. Notemos que as características destacadas de Oxum são outras em relação àquelas da narrativa de Jurema Werneck. O poder feminino passa pelo poder de engravidar sem a ele se restringir, o que aproxima e afasta esta mulher da mulher significada como mãe e esposa, o outro do homem, no discurso patriarcal dominante. Passemos ao depoimento de Makota Valdina Pinto153 no documentário Mulheres de Axé. Há dois momentos de inserção de sua entrevista no documentário. Inicialmente, ela se pergunta sobre “até que ponto o feminismo negro carrega a importância da mulher negra de ontem”, questionando se a busca por novos espaços pelas mulheres negras não minimizaria as 153 Makota, designação religiosa dos Candomblés de nação angola para definir cargo hierárquico feminino, foi integrado ao nome, explica Valdina, para valorizar uma das línguas africanas formadora da língua brasileira e para afirmar uma identidade banto na religião de matriz africana. Esta incorporação do título religioso por Valdina Pito teve também objetivo de visibilizar a atuação, a voz, a filosofia das mulheres do candomblé para além de sua imagem na Lavagem do Bonfim nos cartões postais (CARDOSO, 2012: 297). 237 ocupações e profissões do passado enquanto afirma que “detrás, elas sempre foram muito o que estas feministas são hoje”. Em seguida, trata da importância de se designar mãe a líder do terreiro (e não sacerdotisa, como algumas mulheres reivindicam): A questão da religião da importância da mãe, como também do pai, numa família religiosa. Mas da mãe, porque a gente tá falando de mulher. Eu acho muito errado hoje de quando as mulheres, líderes de terreiro, querem ser chamadas de sacerdotisa. Isso minimiza muito, porque uma das coisas que existiu para a existência de famílias negras hoje foi a mulher como mãe de terreiros, de comunidades religiosas, quando a gente não tinha direito de ter família. E quem foi que fez esse papel, de agregar? – tudo pela religiosidade – e ser mãe de uma família de santo? Foram as mulheres. Isso é muito importante. Ninguém atina pra isso, mas tem que atinar pra isso. Que hoje a gente casa, forma família, e no tempo que não? Qual era a família? Por isso a gente tem hoje essa coisa da mãe do terreiro, de uma mãe de santo, numa linguagem mais comum, as Yalorixás, as Domés, as Nenguas, é muito importante esse nome de mãe, de Ya, de Doné, de Nengua, de Mametu. É mais importante que sacerdotisa, que isso denota o que? A mãe, ela é mãe de filhos, ela tem uma família. O argumento de Makota Valdina pelo termo mãe, em diversas línguas africanas, nas diferentes nações do candomblé, retoma o papel de mulheres negras na escravidão quando “a gente não tinha direito de ter família” 154 e estas mulheres tiveram um papel agregador de uma noção de família diferente da família nuclear. Vejamos que aqui mãe também não significa descendência ligada à linhagem como “sistema familiar baseado na consanguinidade” como em Oyewùmi (2004: 07), mas papel de aglutinação, daquela que tem filhos e família (sem que isso signifique ser esposa), e que este debate não é travado no interior do feminismo negro e sim entre as mulheres de axé, entre religiosxs de matrizes africanas, o que mostra que os sentidos em torno da maternidade e seu prestígio para nomear as posições mais altas na hierarquia das religiões na relação com outras religiões são objeto de polêmica (socialmente, mãe é menos que sacerdote?). Para reforçar o argumento que atravessa esta segunda parte do capítulo, não há oposição entre as posições sujeito em que se inscrevem as que se identificam como mulheres de axé e/ou intelectuais/ativistas dos movimentos de mulheres negras, mas diferentes ênfases em torno dos sentidos de objetos discursivos paradoxais, com destaque para mulher e mãe. 154 A força do argumento sobre a formação das famílias negras na conjuntura da violência da escravidão pode apagar as famílias que existiram a despeito ou sob essas condições. Cf. Na senzala uma flor – esperanças e recordações na formação da família escrava: Brasil Sudeste, século XIX, de Robert SLENES (2011). 238 __________________________________________________________________________ Considerações Finais ___________________________________________________________________________ 239 Dentre as coisas que aprendi com as minhas mulheres negras mais velhas está o respeito a esta longa trajetória de lutas, de participação, de presença na cena pública, que não é de hoje, não começou agora. Mesmo que a memória dessas trajetórias esteja guardada somente em nós (Jurema WERNECK, 2013). O poeta negro Aimé Cesaire disse que “as duas maneiras de perder-se são: por segregação sendo enquadrado na particularidade, ou por diluição no universal”. A utopia que hoje perseguimos consiste em buscar um atalho entre uma negritude redutora da dimensão humana e a universalidade ocidental hegemônica que anula a diversidade. Ser negro sem ser somente negro, ser mulher sem ser somente mulher, ser mulher negra sem ser somente mulher negra. Alcançar a igualdade de direitos é converterse em um ser humano pleno e cheio de possibilidades e oportunidades para além de sua condição de raça e de gênero. Esse é o sentido final dessa luta (Sueli CARNEIRO, 2001). A partir dos postulados teóricos, políticos e metodológicos da Análise de Discurso materialista, busquei lançar-me na interlocução com outros campos de saber, notadamente os dos feminismos negros e dos estudos negros, sobre relações raciais e racismo. A procura por este lugar de entremeio na teoria foi impulsionada pelo reconhecimento e tomada de posição diante da militância explícita na academia de intelectuais/ativistas negras que reivindicavam que pesquisas deixassem de tomá-las como objetos e que considerassem seu ponto de vista. Em suas reflexões, estas mulheres denunciavam o processo de desvalorização e ocultamento da produção intelectual de homens e mulheres negrxs, um processo que se caracterizaria pela negação aos negrxs de sua condição de sujeitos do conhecimento e deslegitimação de seus saberes sobre si mesmos e sobre o mundo (CARNEIRO, 2005)155. Foram minhas principais interlocutoras as intelectuais/ativistas negras cujos trabalhos abordam as articulações (ou intersecções) entre classe, raça, gênero e sexualidade, olhar necessário e demandado para se pensar as sujeitas mulheres negras em sua complexidade no campo das lutas antissexistas e antirracistas a partir dos anos 1970 no Brasil. Por sua vez, do lugar de analista de discurso, minha observação da regularidade da enunciação de si correlacionada a determinados tópicos discursivos em sua produção escrita levou à proposta de constituição do corpus desta pesquisa e de sua hipótese central. Trata-se da suposição da reflexividade metaenunciativa (AUTHIER-REVUZ, 1998) como um dos modos de materialização das lutas por lugares de enunciação de/para mulheres negras e a 155 Sueli Carneiro (2005:121) atribui um caráter mais amplo ao que eu exponho como tomada de posição: “(...) encontramos no campo do saber no Brasil um reconhecimento da disputa que os negros vêm travando no sentido de afirmar um olhar, um ponto de vista acadêmico insurgente. O dispositivo de racialidade, frente à crescente perda de legitimidade da exclusividade do discurso branco sobre o negro, começa a desenvolver um novo procedimento estratégico que altera, relativiza o monopólio do saber dentro de uma lógica de transição lenta e gradual, em que os intelectuais brancos e ativistas e pesquisadores negros realizam um tipo de parceria, na qual se reconhece o ativismo como fonte de saber.” Nesta perspectiva, suponho que minha tomada de posição ganhe força política na luta teórica quando integra um projeto coletivo ou uma agenda para a AD (a exemplo das iniciativas dos grupos de pesquisa Mulheres em Discurso e Contradit) e quando eu saio da AD para encontrar intelectuais negrxs e/ou que que debatam a produção teórica sobre a questão racial (um exemplo atual de articulação interna à ciência no Brasil é a Associação Brasileira de Pesquisadores Negros - ABPN). 240 favor de seu papel central nos processos de subjetivação das sujeitas mulheres negras no discurso. Estas lutas perpassam sua produção teórica, literária e intervenção política nos campos ou em diálogo com o antirracismo e antissexismo, questionam a divisão social da enunciação e buscam ocupar espaços que conformem lugares de enunciação legítimos, com credibilidade e ampla circulação, a exemplo da Universidade e da literatura, em sua história elitista que resguarda privilégios de classe-raça-gênero, ambas, âmbitos de interpretação e construção da identidade nacional. A enunciação de si relacionada às lutas por voz e por transformações na divisão social da enunciação, que elege como tópicos discursivos o silenciamento histórico, a invisibilização e a identidade, não é exclusiva de mulheres negras (seja nos feminismos negros, nos movimentos de mulheres negras, na produção teórica de intelectuais/ativistas, na literatura, no teatro e em outras artes). Seria possível pensar que este funcionamento enunciativo está na base de um conjunto de lutas políticas dos denominados novos movimentos sociais de grupos subalternizados que têm em comum o questionamento do modo universalista de organização da classe trabalhadora. No Brasil, com maior expressão política a partir dos anos 1980, na esteira dos movimentos de democratização do país e em relação a dinâmicas internacionais, poderia citar os movimentos feministas, negros, indígenas, homossexuais e suas intersecções, como os ativismos de mulheres negras lésbicas. Estes movimentos fizeram circular discursos que tinham a identidade como um tema central, por vezes traduzido na demanda dirigida ao Estado por direitos sociais assentados nas políticas da diferença. Desde a abordagem discursiva empreendida, a pesquisa discutiu os processos constitutivos de mulheres negras como sujeitas de dizer em determinadas condições de produção do discurso, ou seja, na relação com determinados discursos e interlocutores em sua historicidade. A partir de um corpus heterogêneo e composto de materialidades discursivas complexas, acompanhei a conformação de um coletivo de identificação por diversos embates ideológicos que fissuram/ressignificam (pelas intersecções e encruzilhadas de memórias) outras unidades imaginárias resultantes de processos anteriores e exteriores que atravessam sua discursividade. De forma esquemática, são eles os coletivos de mulheres (pela racialização e racismo que significam diferentemente as mulheres), de negros (pelo sexismo que atravessa os movimentos negros e conforma o racismo gendrado), de brasileiros (pela apropriação e/ou apagamento de negrxs na identidade nacional do país mestiço e da democracia racial), de africanos (pela diáspora em seus processos de rupturas, continuidades e 241 permanente recriação da África). Inscrita em um teoria não-subjetivista do sujeito, em que este como evidência (origem ou causa de si) é efeito da interpelação ideológica, que também acomete o sentido, penso no sujeito da enunciação que se volta contra o sujeito de saber de uma determinada formação discursiva na modalidade de identificação compreendida por Pêcheux (1975) como contraidentificação. Esteve como pano de fundo desta tese o tema dos encontros subjetivos no discurso e na história em práticas de reprodução-resistência aos sentidos dominantes que produzem laço social e a possibilidade do vir a ser outro do discurso e do sujeito. Compreendo que as mulheres negras são constituídas contraditoriamente pelos sentidos sobre elas desde diferentes posições sujeito e pelos contingentes movimentos de sentido resultantes do engajamento que sustenta posições nos discursos antirracistas e antissexistas em embate com os sentidos dominantes nas lutas ideológicas de deslocamento. Tal engajamento inclui lutas pelos sentidos das palavras e para se significar, marcando a relação entre efeito de sentido e efeito sujeito. Neste quadro, as delimitações imaginárias que constituem mulheres negras foram captadas principalmente nas relações estabelecidas pelo nós político, que institui diferentes recortes referenciais na enunciação, não como estratégia argumentativa de um locutor na política, mas materialização nos enunciados das múltiplas identificações contraditórias de um sujeito do/no discurso. No movimento de associação do eu à não-pessoa discursiva, conjuntos lexicalmente nomeados – como negros, mulheres, feministas, mulheres negras, brasileiros – compõem os nós com seu sentido dividido no corpus. São eles objetos/sujeitos discursivos paradoxais, marcados para a interpretação e disputados em sua dominância. Nestas múltiplas identificações, de pressuposta alteridade, há processos de inclusão/exclusão, diferenciação, ressignificação das fronteiras móveis entre discursos que constituem um sujeito paradoxal numa encruzilhada de memórias – um sujeito de identidade compósita, imbricada, caleidoscópica, interseccionada, consubstanciada, para retomar alguns dos termos que figuram no debate político e em textos teóricos sobre identidade na contemporaneidade. Na maior parte do corpus, ser brasileira sobredetermina o conjunto dos processos de subjetivação: ser brasileira inflexiona de um modo particular o ser negra e o ser mulher, apesar de nem sempre aparecer explícito como predicação 156. Esta não predicação trabalha no 156 O primeiro parágrafo do Manifesto da Marcha das Mulheres Negras contra o Racismo e a Violência e pelo Bem Viver 2015 é exemplar deste funcionamento: “Somos 49 milhões de mulheres negras, isto é, 25% da população brasileira. Vivenciamos a face mais perversa do racismo e do sexismo por sermos negras e mulheres. No decurso diário de nossas vidas, a forjada superioridade do componente racial branco, do patriarcado e do 242 equívoco de uma particularidade das mulheres negras brasileiras e de uma universalidade das mulheres negras da diáspora africana, pela narrativa de origem comum que as une à mãe África. Há, entretanto, predicações que atribuem traço regional aos processos de autorreconhecimento identitário – a mulher negra brasileira desdobra-se em latino-americana e afrocaribenha, a exemplo do 25 de julho – Dia da Mulher Negra Latino-americana e Caribenha. Nesta perspectiva, as intelectuais/ativistas negras formulam conceitos como amefricanas (GONZALEZ, 1984) e yalodês (WERNECK, 2010) como modos de significar as mulheres negras diaspóricas, na primeira denominação, ou diásporicas e africanas, no segundo caso. No dizer em primeira pessoa, eu e nós se imbricam na construção de um lugar de enunciação coletivo, sendo o dizer eu condição de possibilidade do dizer nós por significar no discurso o sujeito singular em sua autonomia de ser e de se dizer. Portanto, para além do nós, significante por excelência da enunciação política coletiva, o eu mostrou-se imprescindível nesta enunciação política e, assim como o nós, se desdobra/divide pela polifonia de vozes 157. Sua particularidade, nas condições de produção analisadas, está no que é significado como (re)construção identitária pessoal. Na reflexividade metaenunciativa, o eu – como elemento fornecido pela língua para significar o sujeito da enunciação – é mobilizado nos enunciados de afirmação identitária e de autorreconhecimento. A busca da imagem de si é fundante da visibilidade de uma coletividade em que um se enxerga no outro, em um atrelamento da condição de se ver e de dizer eu como sujeito único, origem do dizer, do sentido, da consciência de si, de sua experiência, em movimentos que borram os limites da tematização de si e do outro. Nos discursos analisados, dizer eu se dá como resistência às políticas de silêncio impostas às mulheres negras na história brasileira e diaspórica – a voz rompe o silêncio e um sujeito torna-se visível para si pela ressignificação de sua imagem, deslocando-se da posição de objeto do discurso do outro que pelo racismo representa a mulher negra como sem agência, sexismo, que fundamenta e dinamiza um sistema de opressões que impõe, a cada mulher negra, a luta pela própria sobrevivência e de sua comunidade”. Disponível em http://www.marchadasmulheresnegras.com/. 157 Paulillo (2004) trabalha, também desde a AD, com o discurso de si, entendido pela autora como modalidade do discurso no qual o eu fala de si mesmo em um processo autorreflexivo. Em sua tese, a autora volta-se a funcionamentos do discurso de si em situação de conversação íntima, de caráter confidencial, em falas em situação terapêutica, em escritos íntimos a exemplo dos diários, em que considera a enunciação vacilante quando o sujeito fala de seus sentimentos e estados psíquicos de modo a escancarar seu atravessamento pelo silêncio e sua incompletude, reveladores de um sujeito dividido. A enunciação de si do eu político nas vozes-mulheres negras não se dá no espaço privado ou íntimo – apesar de casos em que a intimidade é representada no enunciado. Esta enunciação se constrói como tentativa de unidade ou de composição de traços identitários em uma imagem-corpo-voz que, mesmo quando se apresenta como esgarçada, em seguida se refaz para afirmação de pertencimento a um coletivo pela interpretação de si. 243 ou corpo sem mente. Por meio de tomadas de posição, mulheres negras lutam por imagens de si, para si e para os outros por meio da enunciação de si, que estabelece diferentes relações de pertencimento identitário e de interpretação de si e do mundo. A enunciação de si aparece para o sujeito como algo da ordem do necessário: o silêncio deve ser rompido, deve-se autoquestionar para se reconhecer e, deste modo, possuir um discurso sobre si que signifique a recuperação de uma identidade. Se, desde posições racistas, ocorre a homogeneização na significação de um grupo de pessoas reduzidas às construções históricas dominantes de raça-gênero-classe, nos enunciados reflexivos – pelo eu político ou pelo nós político – também está em jogo a homogeneização de um coletivo imaginário. Mulheres negras compartilham sentidos comuns pela narração e interpretação do racismo e do sexismo que conformam uma experiência histórica diferenciada e pela afirmação da identidade negra feminina em contraposição às políticas de embranquecimento, nas quais a reivindicação ou atualização de uma memória de luta e resistências na história são recorrentes. Ou seja, apesar da heterogeneidade do que são as mulheres negras, reivindicada por diversas vozes de mulheres negras, a prática enunciativa produz como efeito uma homogeneidade. Porém, diferentemente do efeito de homogeneização pelos discursos racistas, pelas vozes mulheres negras projeta-se imaginariamente um lugar a partir do qual o sujeito pode dizer eu em uma multiplicidade de sentidos, bem como um coletivo que dá corpo às vozes em luta para ocupar esferas de circulação legitimadas do discurso. Contribuem para estas reflexões os estudos literários sobre literatura negra ou afro-brasileira e as produções em torno dos (limites dos) feminismos das diferenças em suas lutas por reconhecimento. Contudo, deve-se reconhecer que o corpus da pesquisa não perseguiu nem as polêmicas entre as vozes-mulheres negras158 – nas quais são marcadas as diferenças internas a este coletivo de identificação, nem as determinações de mulheres negras por predicações 159, o 158 Sobre as polêmicas internas aos movimentos de mulheres negras e as tensões acerca de sua representação nos anos 1990, cf. MOREIRA, 2007. 159 Leiamos, por exemplo, parte do chamado da Marcha de Mulheres Negras 2015: “O convite-convocação é geral… Temos interesse especial em mobilizar: meninas negras, adolescentes e jovens negras, do campo e das cidades; negras enfermeiras, negras professoras, negras empregadas domésticas, negras quilombolas, negras das manifestações e danças tradicionais (carimbo, marabaixo, maracatu, tambor de crioula, jongo e outras), negras do samba (sambistas, passistas, portas-bandeiras), negras prostitutas, negras médicas, negras ligadas às religiões de matrizes africanas (candomblé, mina, quimbanda, umbanda, pena-maracá e outras), negras cujos filhos/as foram assassinados pela polícia, negras lavadeiras, negras cozinheiras, negras da construção civil, negras cristãs (católicas, anglicanas, presbiterianas, batistas, testemunha de Jeová, assembleianas, dentre outras), negras bahaistas, negras nerds, negras punks, negras emos, negras desportista, negras artistas, negras atéias, negras portadoras de deficiência, negras regueiras, negras rapers, negras funkeiras, negras DJs, negras grafiteiras, negras garis, negras empresárias, negras que conseguiram cursar o terceiro grau, negras cujos parentes foram assassinados nos episódios do Carandiru, Candelária, Vigário Geral, Eldorado dos Carajás e outros massacres, 244 que ocorre em todos os campos que forneceram materiais para a pesquisa: a literatura (especialmente a poesia), a produção teórica escrita, as intervenções políticas e produções gráficas e audiovisuais, notadamente de organizações de mulheres negras e de intelectuais/ativistas.160 O foco e as temáticas das análises que percorri ao longo da tese foram determinados principalmente pelos materiais produzidos nos anos 1980, sendo que a questão da unidade do feminismo e da homogeneização de mulheres foi largamente retomada ao longo dos anos 1990 em uma crítica à essencialização das identidades políticas (racializadas, sexualizadas) operada pelos movimentos negros, feministas, lésbicos, transsexuais, de mulheres negras, quando esteve em pauta o fundacionalismo da identidade política por um a priori. Também não foram objeto de detida reflexão as transformações ocorridas ao longo de mais de quarenta anos nestas vozes-mulheres negras, apesar de apontamentos sobre a encruzilhada de memórias que atualiza nesta segunda década dos anos 2000 os discursos fundadores de uma determinada subjetividade de mulheres negras, nas vozes que conquistaram maior amplificação, que são mais ouvidas e que incluem como precursoras do feminismo negro mulheres que lutaram nas décadas de 1970 e, com maior expressão, de 1980161. negras lésbicas, negras bissexuais, negras transsexuais, negras modelos fashions, negras sem terra, negras atingidas por barragens, negras sem teto, negras-indígenas, negras ribeirinhas, negras extrativistas, negras não alfabetizadas; negras que foram mal atendidas no sistema de saúde). Ou seja, todas as mulheres negras, inclusive, e principalmente, as que foram e/ou estão sendo discriminadas por vizinhos, por médic@s, por dentistas e outros, mas que têm se sentido impotente diante de tão grande opressão.” Neste chamamento, negras desdobra-se num gesto que parece buscar a saturação de sentidos pelo excesso e a contenção da deriva dos sentidos (e se englobam meninas, adolescentes e jovens para marcharem com as mulheres). Interessante notar, ao final da lista, sua reescritura por “Ou seja, todas as mulheres negras”, projetada imaginariamente como coletividade plural. Disponível em http://www.marchadasmulheresnegras.com/. 160 Ou seja, do lugar de analista de discurso, questiono se o gesto analítico de (de)limitação de temáticas e funcionamentos na constituição das vozes-mulheres negras também não homogeneíza e exclui vozes-mulheres negras que não se enquadrem nas regularidades eleitas e analisadas. 161 Da denúncia do silenciamento, na relação com o Estado, está a aprovação e luta para implementação da lei nº 10.639/2003, que obriga o ensino da história e da cultura africana e afro-brasileira em todos os níveis de ensino, em que estiveram mobilizadas como protagonistas e para a difusão histórica de seu protagonismo como mulheres negras. Poderia ainda mencionar a participação nos fóruns internacionais, desde a intervenção na organização das mulheres brasileiras rumo a Beijing na IV Conferência Mundial sobre a Mulher, ou ainda sua luta pela criação da SEPPIR e a ocupação deste espaço por mulheres negras na posição de ministras. Para citar uma ação próxima, a “Marcha das Mulheres Negras contra o Racismo, a Violência e pelo Bem Viver”, em 2015, é a primeira marcha de âmbito nacional de mulheres negras. Na disputa pelas narrativas, pela palavra e pela memória, há muitas iniciativas na internet, como espaço de organização política, formulação e circulação de discursos de mulheres negras, com destaque para as jovens, em instrumentos de comunicação como o Blogueiras Negras, uma comunidade formada em 2012 que atualmente reúne mais de 200 autoras, “mulheres de pena e teclado, reinventando a tela para que amplifique nossas vozes” (Disponível em http://blogueirasnegras.org/quemsomos/). Poderia ainda dizer, no campo dos discursos antissexistas, da produção acadêmica crescente e engajada de mulheres negras, de sua produção literária, no cinema, nas religiões de matrizes africanas, nos grupos culturais, quilombos urbanos e rurais, nas periferias, nas lutas pela diversidade sexual e em tantos outros espaços. Nesta reflexão sobre as transformações das vozes-mulheres negras nas últimas décadas, devem-se considerar ainda as transformações dos discursos racistas e antirracistas, do discurso feminista hegemônico, dos 245 Os processos envolvidos no tornar-se sujeito de seu dizer analisados nesta tese pela interlocução discursiva se assentam em duas acepções de representação, a partir de leitura de Spivak (1985): a representação da política, o falar por, e a representação da arte e da filosofia, o re-presentar ligado ao imaginário. Mulheres negras questionam o nós mulheres do feminismo como possibilidade de identificação e de representação política de todas as mulheres, disputando os sentidos de mulheres, feminino e feminista. Desta forma, questionam que feministas falem por elas argumentando que feministas significa mulheres brancas, o que apaga na representação de mulheres os sentidos diferenciais (das experiências históricas de opressão que conformam as identidades) de mulheres brancas e mulheres negras. Ao mesmo tempo, constroem sua identidade nas relações com os discursos feministas em movimentos que descrevi como de inclusão/exclusão, de diferenciação e de ressignificação. Reconhecendo os movimentos dos sujeitos e dos sentidos nestas práticas políticas de resistência, destaco que estes são processos contraditórios na (re)construção de contradiscursos. As lutas de mulheres negras para dizer sem a mediação da voz de outrem, no campo do feminismo, é a luta contra a mediação de suas vozes por mulheres brancas na denúncia de sua ilegitimidade e, no limite, não rompem com o dizer de algumas mulheres negras por outras mulheres negras próprio das práticas políticas dominantes. De modo similar, as lutas para dizer a partir de uma autorrepresentação, uma autoimagem que seria própria e não determinada pelos sentidos dominantes, aqueles ditos pelo outro, encontram os limites da determinação do discurso dominante em seu próprio discurso nas formas da refutação direta ou da afirmação de outras rotas de sentidos, quando outras já é expressão de uma dominância (duas formas de tomada de posição na modalidade da contraidentificação). Seguindo o caminho desta reflexão, procurei enfrentar a opacidade dos sentidos de silêncio, tomado como objeto de dizer por vozes-mulheres negras. A oposição voz/silêncio é uma forma de significar as lutas por representação – as lutas pela formulação e circulação das imagens de si desde uma voz própria (do dizer em primeira pessoa) em lugares de enunciação legitimados, ou seja, que difundam estas imagens. Portanto, assumida a dupla acepção de representação, dizer se aproxima de ser ouvidx e ser vistx em uma correlação de voz/silêncio e visibilidade/invisibilidade. O racismo entendido como política de silêncio pode ser atrelado à política da invisibilização: por interditar ou dificultar o acesso dos sujeitos racializados a determinadas posições na divisão social da enunciação ou por levar ao nãodizer sobre as desigualdades raciais ao mesmo tempo em que é constitutivo dos discursos da discursos sexistas, dos discursos de construção da identidade nacional. Enfim, dos discursos que estabelecem relação privilegiada na constituição da enunciação de si por vozes-mulheres negras. 246 democracia racial, da desigualdade social como explicação exclusiva da desigualdade racial, do mérito, da diversidade cultural, entre outros, nos quais pessoas negras são representados pela repetição do imaginário dominante. Assim como o silêncio, a invisibilidade significa. O processo de invisibilização do sujeito é pensado como repetição de determinadas imagens acompanhada de interdição a determinadas representações, ao invés de não-representação. As construções negativas das imagens de mulheres negras conjugam inferioridade e subalternidade, carregando as marcas do racismo em suas investidas para a desumanização, negação da capacidade intelectual e redução do outro ao seu corpo. Em minhas análises, trato do corpo-trabalho, corpo-sexo, corpo-peito nas imagens da empregada doméstica, da mulata e da mãe preta, difundidas como estereótipos discursivos. As lutas para significar materializadas pela enunciação de si passam pela ressignificação do corpo das mulheres negras, pois o processo de legitimação de seus dizeres implica enfrentar os sentidos dominantes acerca de seus corpos. Nestas lutas, as vozes de mulheres negras atrelam a luta contra seu silenciamento e para dizer em primeira pessoa com a luta por visibilidade e pela negação, interpretação e ressignificação de imagens com as quais se contraidentificam. O corpo historicamente significado de forma depreciativa é positivado e faz-se presente na escrita e na oralidade, nas interlocuções face a face ou na poesia escrita, compreendendo que as projeções imaginárias do corpo como discurso constituem as condições de produção de toda interlocução discursiva. Logo, concluo que o dito projeta visualmente um corpo e o dizer, cada enunciação é um gesto de visibilidade que constitui a voz e o corpo ressignificado de mulheres negras, sendo que a construção da legitimidade deste dizer se assenta neste funcionamento imaginário. A contestação dos estereótipos discursivos – uma arena da luta política – se dá pelas interpretações das intelectuais/ativistas de sua historicidade com objetivo de desnaturalizar a inferioridade e subalternidade nestas representações, considerando que o efeito de fixidez dos estereótipos denunciados pelas vozes-mulheres negras relaciona-se ao seu funcionamento calcado naquilo que é conhecido por todos pela evidência ideológica (da Ideologia dominante). Este funcionamento limita as representações de mulheres negras a um conjunto restrito de imagens para significar corpos racializados e gendrados que definem o que se pode e deve ver. Estes estereótipos apoiam-se em discursos fundadores, como vimos nas análises sobre a fundação do conceito moderno de raça no século XIX focada no corpo de Vênus de Hotentote que constituiu um universal do corpo da mulher negra (DAMASCENO, 2008; 247 BORGES, 2012). Minha análise direcionou-se ao estereótipo da mulata, considerada figura central de um dos discursos fundadores da brasilidade, aquele que diz do encontro e da harmonia das raças, engendrado nos anos 1930 por expoentes como Gilberto Freyre e que é significado desde vozes negras como discurso, mito ou ideologia da democracia racial. A mulata como símbolo do Brasil mestiço harmonioso apaga a violência sexual da escravidão e, na exaltação da alegria e beleza celebradas simbolicamente no carnaval, reafirma a hipersexualização dos corpos de mulheres negras fundada pelo racismo-sexista e apaga ainda outra representação de subalternidade naturalizada, a de empregada doméstica, retomando Lélia Gonzalez (1984), para quem as representações de mulata e doméstica são dois modos dominantes de como mulheres negras são vistas. Indo além nas reflexões da autora, as análises das representações de mulheres negras na cultura brasileira desvelam os processos de ocultação e revelação das marcas da africanidade que a constituem. Em suma, as contestações dos estereótipos não se restringem a interpretações de si por vozes-mulheres negras, pois disputam sentidos com os discursos da identidade nacional, sobre as desigualdades raciais, dos feminismos e dos antirracismos. Nestes processos de afirmação da identidade negra feminina em contraponto à depreciação histórica de sua imagem racializada-gendrada pela ideologia dominante (nomeada no manifesto de Marcha de Mulheres Negras 2015 como “racismo estrutural patriarcal”) é fundamental a memória diaspórica, constituída pela ideia de ruptura e continuidade e que atravessa palavras, corpos, práticas organizativas. E, se estes estereótipos estão calcados na redução de mulheres negras ao corpo, as práticas de contestação a eles muitas vezes envolvem os corpos de mulheres negras162 de diferentes formas. Seja nos protestos, a exemplo da campanha do Coletivo Negração, na defesa de uma estética negra pelos concursos da Beleza Negra ou pela difusão de uma estética do cabelo negro – depreciado como cabelo ruim no discurso dominante, e ressignificado como marca de orgulho da negritude e identidade negra, seja por tranças, black power ou outros. Além das lutas diretas de contestação aos estereótipos, de denúncia e negação, analisei as lutas para a significação dos corpos femininos negros por sentidos positivos, em referência à memória diaspórica. As análises focaram-se nos modos como as vozes-mulheres negras intelectuais/ativistas e/ou autoridades religiosas mobilizam os mitos sagrados presentes 162 Reconheço que, pelo maior foco desta pesquisa nos enunciados escritos, conforme apontei no Capítulo 1, as análises e reflexões sobre o corpo foram feitas por meio dos modos como este corpo é tratado pelas intelectuais/ativistas, mais do que por meio de análises sobre estes corpos (apesar de análises de alguns vídeos e fotografias) na condição de discurso. 248 no Brasil desde a criação da diáspora africana como repertório de possibilidades identitárias de feminilidade negra. Na mobilização deste repertório, há o questionamento dos padrões dominantes de feminilidade, dos sentidos dominantes de mulher, aqueles contestados também pelo feminismo hegemônico, em especial as representações da sexualidade feminina ancoradas nas tradições judaico-cristãs que dicotomizam as mulheres em santas e putas. Nas análises empreendidas, sem pretensão de ser conclusiva, destaquei questionamentos, ambiguidades e polêmicas em torno dos sentidos de mãe e guerreira para significar as mulheres negras, ou mais especificamente as mulheres negras militantes e/ou sacerdotisas, procurando estabelecer relações com a interdição histórica às mulheres negras do direito à maternidade (e sua luta e relação com outras trajetórias de memória para significar maternidade) e com a polêmica figura da mãe preta nos discursos fundadores da brasilidade e nos discursos dos movimentos negros. A projeção ou identificação com um passado (seja do tempo histórico ou mitológico) produz o efeito de uma memória herdada, sendo que a ruptura com o passado é instauradora de questões identitárias, as quais mobilizam práticas de rememoração, busca e afirmação de uma continuidade histórica que produz narrativas comuns de um coletivo imaginário que se desdobram no efeito de anterioridade do sujeito e apoiam a projeção de um futuro comum. Esta memória é mobilizada e (re)construída diferentemente por vozes negras, seja na militância política, na literatura, em práticas religiosas, na música, no audiovisual, etc. É o funcionamento desta memória que posiciona mulheres negras como sujeitas da enunciação em uma encruzilhada de temporalidades onde encontram-se a memória diaspórica negra e sua noção de continuum e a memória de contemporaneidade dos movimentos sociais, principalmente quando se assume a perspectiva da história dos novos movimentos sociais. Na contradição entre estas memórias, mulheres negras são significadas como novo sujeito político nos anos 1980 (no anúncio da tomada da palavra inaugural pelas mulheres negras) ao mesmo tempo um sujeito existente desde antes do colonialismo e do escravismo em África. Pensar a memória diaspórica é reconhecer redes históricas de memórias dominadas, resistentes no tempo. Em contrapartida, é percebê-la como lugar da reinvenção ininterrupta do passado e da África (bem como dos elos entre gerações, da continuidade), assentado em uma narrativa de origem, aquela que instaura a diáspora pela violência, em relação com outros discursos nas diferentes condições de produção. As práticas de rememoração pelas vozes-mulheres negras – de retomada das trajetórias de mulheres eleitas como ícones por feitos heroicos ou das mulheres do cotidiano, de experiências organizativas 249 na África, anteriores à diáspora, de resistência à escravidão na diáspora – bem como a afirmação de referências femininas negras nas religiões de matrizes africanas e em outros espaços da africanidade, portanto, são constitutivas do sujeito mulheres negras. A partir da tese, e em diálogo com outros trabalhos da Análise de Discurso que buscam uma posição feminista antirracista, listo alguns temas de pesquisa para trabalhos futuros: investigar a constituição histórica dos sentidos dominantes nos estereótipos e imagens de controle em corpora heterogêneos em diacronia, remetendo às formações discursivas em suas regularidades, bem como aos deslocamentos dos trajetos dos sentidos; analisar o modo como figuras de classe-raça-gênero-sexualidade se relacionam às formações discursivas da formação ideológica dominante (a exemplo do lugar da mulata na posição dominante do discurso da identidade nacional brasileira); discutir as relações entre representação política e imaginária nos processos de subjetivação no discurso e ainda as relações entre enunciação, silenciamento/invisibilização e voz/visibilidade, considerando o corpo como discurso; analisar o trabalho de sustentação de posições pelos sujeitos enunciadores na luta pelos sentidos para se significar e para significar classe-raça-gênero-sexualidade como lutas de deslocamento ideológico; estudar as relações entre memória diaspórica, acontecimento e subjetivação para significar classe-raça-gênero-sexualidade, para além de enunciados verbais (e escritos) produzidos prioritariamente por porta-vozes e em diálogo com as produções das e sobre as mulheres negras de religiões de matrizes africanas 163. 163 E apesar desta lista ser extensa e poder se desdobrar em cada encruzilhada, que eu não esqueça as minhas mais velhas, que me sopram no ouvido, falam nos sonhos e às vezes dão bronca em público: “compreender é melhor do que ser compreendida”, segundo minha avó. Ou ainda, as palavras de Mestre Pastinha: “escutar é infinitamente mais importante do que falar”. 250 ___________________________________________________________________________ Referências Bibliográficas ___________________________________________________________________________ ALBERTI, Verena; PEREIRA, Amilcar Araújo. (Orgs.) História do movimento negro no Brasil: depoimentos ao CPDOC. Rio de Janeiro: Pallas/CPDOC-FGV, 2007. ALMEIDA, Lady. Protagonismo e autonomia de mulheres negras, a experiência das organizações: Geledés e Criola. In: Anais do Seminário Fazendo Gênero 9. Diásporas, diversidades, deslocamentos. UFSC, 2010. __________. Trilhando seu próprio caminho: trajetórias e protagonismo de intelectuais/ativistas negras: a experiência das organizações Geledés/SP e Criola/RJ. 2010. 204f. Dissertação (Mestrado em Sociologia). Rio de Janeiro: Pontifícia Universidade Católica, 2010. AUGUSTO, Ronald. Escritores negros: além da recepção convencional. In: Cidinha da Silva (Org.) 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