https://doi.org/10.55738/alaic.v16i30.523
CIUDAD PERSONA E A RELAÇÃO
ENTRE CORPOS
PERSON CITY AND THE RELATIONSHIP BETWEEN BODIES
CIUDAD PERSONA Y LA RELACIÓN ENTRE LOS CUERPOS
Regiane Miranda de Oliveira Nakagawa
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Docente permanente do PPG em Comunicação – Mídia e formatos narrativos da UFRB e do
CECULT/UFRB. Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP. Atualmente, realiza estágio
pós-doutoral na Universidade Complutense de Madrid.
E-mail: regianemo@uol.com.br
Fábio Sadao Nakagawa
Docente da FACOM/UFBA. Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP. Atualmente,
realiza estágio pós-doutoral na Universidade Complutense de Madrid.
E-mail: fabiosadao@gmail.com.br
RESUMO
Tendo por base a compreensão proposta por V. V. Ivanov sobre o modelo de funcionamento
semiótico da cidade como uma “pessoa” e a perspectiva epistemológica de estudo da cultura
vinculada à semiosfera (Lotman, 1996), este artigo realiza a análise de um grupo de cartazes
que compôs a exposição Ciudad Persona, ocorrida na cidade de Madrid em 2018. Como
estratégia metodológica de análise, partiu-se do reconhecimento de um dominante presente
num grupo de peças, relativo à correlação estabelecida entre o “corpo humano” e o “corpo
da cidade”. Com isso, foi possível delinear como a ideia concernente à “cidade pessoa” é
ressignificada na atualidade.
PALAVRAS-CHAVE: SEMIÓTICA DA CULTURA; ANÁLISE SEMIÓTICA; CIDADE; DESIGN GRÁFICO.
ABSTRACT
Based on the understanding proposed by V. V. Ivanov on the semiotic functioning model
of a city as a “person” and the epistemological perspective of the study on culture related
to semi sphere (Lotman, 1996), this article analyzes a set of posters that composed the
exhibition Person City (Ciudad Persona), carried out in the city of Madrid in 2018. As an
analytical methodological strategy, the starting point was the recognition of a dominant
found in a set of posters related to the correlation established between the “human body”
and the “urban body”. Thus, it was possible to outline how the idea regarding to “person city”
is re-signified nowadays.
KEYWORDS: CULTURE SEMIOTICS; SEMIOTIC ANALYSIS; CITY; GRAPHIC DESIGN.
RESUMEN
Basado en la comprensión de V. V. Ivanov sobre el modelo de funcionamiento semiótico de la
ciudad como una “persona” y la perspectiva epistemológica de estúdio de la cultura vinculada
a la semiosfera (Lotman, 1996), este artículo realiza el análisis de un grupo de carteles que
compuso la exposición Ciudad Persona, realizada en la ciudad de Madrid en 2018. Como
estrategia metodológica de análisis, se partió del reconocimiento de un dominante presente
en un grupo de piezas, relativo a la correlación establecida entre el “cuerpo humano”; y
el “cuerpo de la ciudad”;. Así, fue posible delinear cómo la idea concerniente a la “ciudad
persona” es resignificada en la actualidad.
PALABRAS CLAVE: SEMIÓTICA DE LA CULTURA, ANÁLISIS SEMIÓTICO, CIUDAD, DESIGN GRÁFICO.
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1. Introdução
No artigo “Contribuición al estudio semiótico
de la historia cultural de la gran ciudad”, o filólogo
e semioticista Viacheslav Vsevolodovich Ivanov
apresenta uma importante discussão sobre o entendimento semiótico do devir das grandes cidades. Segundo seu ponto de vista, por meio do
estudo dos modelos de crescimento e desenvolvimento da urbe ao longo dos séculos, seria possível
“investigar qué factores semióticos pueden contribuir a la conservación de las comunidades estables
o a su transformación” (Ivanov, 1993, p. 108).
Dentre os inúmeros modelos que se constituíram ao longo da história e que são elencados pelo
autor, um deles diz respeito ao “funcionamento
de la ciudad como una persona” (1993, p. 117).
Para o semioticista, tal fenômeno manifestou-se
de diferentes modos ao longo da história: pela
associação das cidades do Antigo Oriente a uma
mulher; pelos heróis da tragédia grega, que poderiam personificar o destino de uma cidade; pela
correlação estabelecida entre as cidades e um
personagem que tenha realizado grandes feitos
históricos e cujo nome, após sua morte, passava a
designar o nome de uma cidade.
Curiosamente, numa ação conjunta realizada
em 2018, a Asociación de Designers de Madrid
(DIMAD) e a prefeitura, com o apoio do Foro de
Empresas por Madrid, lançaram uma convocatória de cartazes para a exposição anual de design
gráfico cujo tema foi Ciudad Persona. Trata-se
da segunda edição do projeto intitulado Madrid
Gráfica, que organiza encontros e exposições
anuais na capital espanhola1.
Na chamada de 2018, foram inscritos 573 trabalhos de 55 países, que foram expostos entre outubro e novembro em La Nave, antiga fábrica onde
agora funciona um espaço para startups. Selecionado por um comitê composto por quatro desig1 Na primeira edição em 2017, foi realizada uma exposição com 524
cartazes cujo tema foi La Ciudad Ligera, que ocorreu a partir de 5 de
outubro no Centro Cultural Matadero.
ners gráficos reconhecidos internacionalmente, o
conjunto dos cem melhores cartazes também foi
exposto nas praças Oriente (fig.1) e Juan Goytisolo,
esta última localizada em frente ao Museo Reina
Sofia, como também no Centro Cultural Matadero
(fig.2), todos na capital espanhola.
A convocatória2 atenta para os processos de
desumanização cada vez mais crescentes nas
grandes cidades − acentuados pelas ondas migratórias e pelo aumento da xenofobia − e, paralelamente, a necessidade de torná-las mais humanas
e acolhedoras, o que, no âmbito da exposição, seria representado pela ideia de uma cidade que se
configura como uma pessoa.
Para além desse significado manifesto, neste artigo, interessa-nos discutir que outros sentidos tal
proposta suscita quando em diálogo com a perspectiva apontada por Ivanov e, sobretudo, como
2 Disponível em < http://madridgrafica.org/ciudad-persona/>. Acesso em 20/11/2018.
o modelo relativo à “cidade pessoa” foi ressignificado por um conjunto de cartazes que compõe a
referida exposição que, no âmbito desta análise,
serão entendidos como textos culturais.
Tal abordagem está amparada na perspectiva
epistemológica de estudo da cultura subjacente à semiosfera, definida pelo semioticista Iuri
Lotman (1996) − da Escola de Tártu-Moscou
(ETM), à qual Ivanov também esteve vinculado − como o espaço semiótico de relações,
trocas e tensionamentos estabelecidos entre
os mais distintos sistemas de linguagem que
formam a cultura. Desse movimento decorre a constituição de novos arranjos sígnicos,
também definidos por Lotman (1996) como
textos culturais, responsáveis por criar novos
sentidos ou ressignificar aqueles já existentes.
Como são produzidos por meio das relações
tradutórias estabelecidas entre diferentes linguagens e códigos, os textos definem-se essencialmente pela heterogeneidade semiótica. Tal
propriedade é a que permite ao texto funcionar
como um “generador informacional” da cultura (Lotman, 1996, p. 82), de modo que:
No sólo los elementos pertenecientes a diferentes tradiciones culturales históricas y étnicas,
sino también los constantes diálogos intratextuales entre géneros y ordenamientos estructurales de diversa orientación, forman ese juego
de recursos semióticos, que, manifestándose
con la mayor claridad en los textos artísticos,
resulta, en realidad, una propiedad de todo
texto complejo. (Lotman, 1996, p. 86).
Tal diversidade constitutiva, pela qual se torna
possível apreender a correlação entre diferentes temporalidades na materialidade do arranjo
textual, também é viabilizada pela atuação da
memória não hereditária inscrita nos próprios
sistemas de linguagem. Segundo Lotman (2000),
aliada à caracterização informacional, que tanto
possibilitaria reconstruir a história de uma coletividade quanto conjecturar sobre formas passadas
de organização da cultura, a memória também
seria dotada de uma função criativa, passível de
gerar a construção de novos textos culturais.
Para o semioticista, a memória não se limita
a ser um reservatório de informações passadas,
uma vez que ela também constitui um “mecanismo de regeneración de la misma” (Lotman, 1998,
p. 157). Isso seria possível graças aos intercâmbios e tensionamentos estabelecidos na fronteira
entre o símbolo mnemônico e alguma linguagem
contemporânea da cultura. No âmbito da memória, Lotman (1998, p. 156) define o símbolo,
sobretudo, pela sua capacidade “ressonante”, ou
seja, por ser uma estrutura sígnica capaz de não
apenas armazenar informações relativas a contextos culturais anteriores, como também de reconstruí-las e ressignificá-las quando em contato
com outros sistemas de linguagem.
Vista de acordo com tal perspectiva e, segundo
nossa conjectura, a cidade entendida como pessoa, conforme indica Ivanov, exerce essa função
“ressonante” apontada por Lotman no âmbito
da atuação da memória cultural, pela qual seria possível, por meio dos cartazes constitutivos
da exposição, apreender a ampliação dos sentidos passíveis de serem associados à ideia do que
seria(m) essa(s) “pessoa(s)” que, na atualidade,
representaria(m) a urbe.
Também cumpre ressaltar que, ainda de acordo com Lotman, é a diversidade de processos que
intervém na configuração dos referidos cartazes
que nos leva a situá-los como um objeto não apenas semiótico, como também comunicacional.
Para o semioticista, a comunicação implica “un
proceso de complicación progresiva” (Lotman,
1996, p. 67), decorrente da heterogeneidade que
codificações que constroem um texto cultural,
cuja função se volta para a produção de novos
sentidos na cultura, e não a mera transmissão de
um significado unívoco já conhecido.
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Como estratégia metodológica de análise, tomou-se por base o reconhecimento de um dominante (Jakobson, 1983) presente num conjunto
significativo de peças, 151 do total de 573, no qual
é possível perceber uma explícita relação entre o
“corpo da cidade” e o “corpo humano”. Porém, no
escopo da análise que será apresentada neste artigo,
serão observadas 11 peças desse conjunto de 151,
em que o “corpo da cidade” é representado de um
modo muito específico, ou seja, pelo seu sistema de
transporte ou pelo plano urbano da cidade, pelos
quais é estabelecida a correlação com a imagem do
corpo humano. Por meio do referido dominante,
reconhecemos assim a presença de um vetor de
organização para um conjunto significativo de cartazes que, como objetivamos examinar, nos oferece
um importante indicativo sobre a ressignificação da
ideia de “cidade pessoa” na atualidade.
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2. A cidade inserida no corpo estendido
Nosso encaminhamento investigativo acerca do
intercâmbio entre o “corpo humano” e o “corpo
da cidade”, tal como se irá observar nas peças selecionadas para a análise, toma por base aquilo que
os semioticistas da ETM entendem por modelo e
modelização. Ambos os conceitos são decorrentes
da cibernética, um dos muitos campos do conhecimento com os quais os teóricos da ETM mantiveram um estreito diálogo interdisciplinar. Para a
cibernética (Dupuy, 1996), a criação de modelos
pressupõe um exercício de metalinguagem voltado a explicitar o modo de funcionamento de um
fenômeno. Todo modelo é elaborado com base na
observação de um determinado objeto, pelo qual
se visa explicitar o conjunto de invariáveis e variáveis que asseguram o seu funcionamento como
um sistema ordenado. Como, para a cibernética,
nenhum sistema subsiste isolado, as invariáveis
reportam-se aos vínculos mais basilares que caracterizam a organização de um sistema, ao passo
que as variáveis decorrem dos intercâmbios estabelecidos com o entorno.
Nesse sentido, modelizar implica elaborar modelos que permitam explicitar como funciona
um determinado sistema, tendo em vista tanto
aquilo que garante a sua perenidade, quanto as
suas transformações. Nota-se que o modelo não
diz respeito a um padrão que deve ser imitado
como, muitas vezes, o senso comum dá a entender, mas a formas de inteligibilidade que permitem conhecer um objeto sem aprisioná-lo a qualquer esquema intelectivo dado a priori.
No conjunto de 11 peças selecionado para esta
análise, começamos com o trabalho de Pang Jie,
da China (fig.3), de Jovani de Jesús, do México
(fig.4) e de Samuel Peña Márquez, da Espanha (fig.5), em cujas obras se nota a presença do
processo de modelização por meio do uso do
modelo de organização do espaço de circulação
e transporte urbanos como forma visual do sistema nervoso ou do funcionamento do cérebro.
A metáfora estabelecida entre o corpo humano e a cidade como corpo está presente em cada
um dos três cartazes com estilos, propostas de
sentidos e nacionalidades diferentes. A malha
rodoviária no primeiro, o sistema de metrô da
cidade de Madri no segundo e o sistema estilizado de linhas de circulação no terceiro: todos são
variantes do modo visual de organizar racionalmente o entrecruzamento de ruas, estações,
zonas, áreas e funções, produzido pela lógica
do planejamento urbano e que foram utilizados
para representar o sistema nervoso e/ou a rede
de sinapses cerebrais.
Dessa maneira, há, nos três cartazes, a introjeção de um modelo de espacialização existente fora do sujeito para dentro da região do seu
próprio cérebro, como modo de tornar visível e,
portanto, inteligível, a sua sistematicidade. Nesses casos, o modelo funciona tanto como um signo, ao representar algo que não seja ele próprio,
quanto como instrumento de metalinguagem,
uma vez que, ao se ver uma coisa por meio de
outra, é possível também ler e compreender um
sistema por meio de outro, como ocorre no processo de modelização entre esferas distintas.
Com relação à produção de sentidos, no cartaz
de Pang Jie, há a frase “urban intelligent transport”, da qual, no diálogo com o desenho e com
a proposta da mostra, se pode inferir que é por
meio da inteligência humana que produzimos a
ideia de um sistema inteligente de transporte urbano e, talvez, com isso, ele seja mais eficiente e,
quem sabe, mais humano. Além disso, é possível
dizer que, na peça, a construção deste pensamento sobre o sistema de transporte só é possível se
houver uma rede de sinapses em pleno funcionamento para que ela seja organizada pela ação do
pensar. Fundidos em uma única imagem, mesclados por meio de um modelo visual, cérebro e
sistema de transportes se entrecruzam tanto no
nível da materialidade sígnica, quanto no nível
da produção de sentidos.
Em relação à proposta de Jovani de Jesús, nota-se que o designer insere o plano visual gráfico
dos cruzamentos das linhas de metrô de Madri na
forma de uma cabeça humana, levando-nos a ler
tal associação como uma rede interna de informações, traduções de sensações e pensamentos,
cujas linhas finalizam ou se iniciam no limiar de
um rosto sem contorno, permitindo o diálogo entre o interno e o externo por intermédio da pele,
da boca e de outros aparelhos sensórios. Com isso,
seria possível pensar que uma cidade modeliza o
modo de pensar do sujeito ao ser percebida por
ele? Talvez se trate de uma provável leitura que a
fusão dos signos na imagem nos permite inferir.
No cartaz de Samuel Peña Márquez, o sistema
nervoso central está constituído por meio de suas
partes: o cérebro, a medula espinhal e o cerebelo,
que foram redesenhadas e denominadas pelo autor como zonas “Miguel Yácer Ebro”, “El Espinhal”
e “María Cere Beloso”. Pelos nomes das zonas, é
possível perceber que cada nome incorporou o
nome da parte do sistema nervoso à qual se refere,
como ocorre, por exemplo, com a palavra “cerebelo” que está contida no nome “María Cere Beloso”
ou, ainda, com o vocábulo “cérebro”, que está na
escritura do nome da zona “Miguel Yácer Ebro”3.
Ao utilizar o modelo visual do sistema nervoso central para compor zonas de uma cidade e
3 No caso do nome da zona “Miguel Yácer Ebro”, fazendo um jogo lúdico
entre as palavras, é possível também ler a frase “Miguel hace cerebro”,
que permite estabelecer a relação do nome da zona com as hipóteses
sobre a existência da forma do cérebro em algumas figuras do artista
italiano Michelangelo (conhecido em espanhol como Miguel Ángel). É o
que afirmam, por exemplo, os médicos Ian Suk e o Dr. Rafael J. Tamargo,
da Johns Hopkins University School of Medicine, nos Estados Unidos, em
artigo publicado pela revista científica Neurosurgery, em sua edição de
maio de 2010. Eles defendem que há um desenho da parte inferior do
cérebro no pescoço de Deus no afresco “Separação da luz da escuridão”.
Em 1990, em seu artigo publicado na edição de novembro do Journal of
Medical Association, o médico Frank Lynn Meshberger também associou a imagem do cérebro com a forma do criador no afresco “A criação
de Adão”, localizado no teto da Capela Sistina.
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desenhar nele diversos percursos de locomoção e
tráfego por meio dos recursos gráficos utilizados
na visualidade de um plano de metrô, a proposta
de Márquez permite associar as funções cerebrais
com a rota subjetiva de cada pessoa, que, no caso
da mente representada, indica que a criatividade
foi alcançada pela rede de sinapses da linha amarela, que interliga várias “estações”, como, por
exemplo, o trecho constituído pelas estações “Da
Vinci”, “Croquis”, “Brainstorming” e “Escultura”.
A associação entre o corpo humano e a cidade,
presente nos três cartazes, também encontra ressonância nas teorias da comunicação por meio da
obra do teórico dos meios Marshall McLuhan, que
entende a cidade como uma extensão de todo o
sensório, pois, segundo ele, “nossas tecnologias simularam durante milhares de anos não o corpo,
mas fragmentos dele. Só na cidade é que a imagem
do corpo humano como uma unidade se tornou
manifesta” (McLUHAN, 2005, p. 80, grifo nosso).
Ao se constituir como uma distensão de um
ou mais órgãos sensoriais, todo meio igualmente prolonga a cognição diretamente relacionada
ao(s) sentido(s) distendido(s), o que faz com que
a aparição de qualquer meio acarrete profundas
mudanças nas mais variadas esferas da sociedade e da cultura. Para McLuhan (1969), são essas
transformações que constroem um ambiente
que, por sua vez, define o meio.
Já que se constitui como um prolongamento de
todo o sensório e, considerando o estreito vínculo existente entre percepção e cognição, não
se pode perder de vista que a cidade, entendida
como um meio e/ou tecnologia, consiste num
ambiente que tende a potencializar um desenvolvimento mais equilibrado da percepção, do qual
decorre, igualmente, a potenciação de diferentes
formas de raciocínio e pensamento, que tendem
a se tornar menos lineares. Pode-se dizer que,
pela perspectiva do teórico canadense, a cidade
tanto se constitui como uma extensão do sensório como contribui para redefini-lo.
Igualmente, nas peças mencionadas, nota-se
uma intensa relação entre a cidade e o corpo, de
modo que a primeira, uma vez distendida, posteriormente se insere no próprio indivíduo, elucidando assim um dos principais efeitos gerados
pela urbe entendida como meio comunicativo,
tendo em vista as transformações que ela ou
qualquer tecnologia provocam na dimensão perceptocognitiva humana. Trata-se, assim, de um
movimento ininterrupto, em que um se constrói
com base no outro e vice-versa.
3. A metáfora de diagramas entre sujeito e cidade
A metáfora entre o sistema de transporte, o sistema nervoso e a rede de sinapses e, portanto, entre o corpo da cidade e o corpo humano, além de
estar nas peças já analisadas e ter sido discutida
por McLuhan em sua teoria dos meios, também
está representada em outras peças da exposição,
como o cartaz proposto por Doğan Arslan, da
Turquia (fig. 6).
Nele, tendo como nexos principais a mente
(mind) e o coração (heart), o corpo humano é
constituído por meio dos vários entrecruzamentos de linhas de transporte e de circulação de
informações entre “estações” distintas. Diferentemente das três peças anteriores, esta, em sua
rede interna, destaca não apenas o cérebro, mas
enfoca o coração, como maneira de representar
não apenas uma cidade racionalizada em um sujeito inteligente, como também um sujeito-cidade mais emotivo. Para isso, a forma do sistema
de transporte aproxima-se não só da aparência
do sistema nervoso central, mas de outras formas
visuais dos sistemas que compõem o ser humano,
principalmente o cardiovascular.
Novamente, têm-se signos distintos que estabelecem entre si uma relação de continuidade
por meio da analogia proporcionada pela metáfora. No entanto, não se trata de uma metáfora feita apenas no nível dos significados, mas
construída, sobretudo, pela semelhança entre as
formas dos elementos analogizados. Refere-se,
portanto, à metáfora compreendida como um hipoícone, tal como é proposta por Peirce (1990, p.
64), pois ela funciona como uma imagem-síntese
das similaridades articuladas entre as materialidades sígnicas envolvidas. Além disso, no caso
em questão, o que torna a metáfora ainda mais
complexa é o fato de que os signos assemelhados
não funcionam apenas como símbolos, mas, sim,
como hipoícones tal como ela. São hipoícones de
segundo tipo, denominados por Peirce como diagramas (1990, p. 64)4, diferentes da metáfora, que
é um hipoícone de terceiro tipo.
As imagens dos sistemas nervoso central,
cardiovascular, de sinapses, do metrô, de transportes e de circulação das informações buscam,
principalmente, expressar o modo pelo qual se
articulam diferentes tipos de relações entre órgãos, funções, estações, etc. Dessa maneira, ao
se expressarem por meio de formas rizomáticas,
acabam por funcionar como um diagrama que
visa, acima de tudo, representar relações (Peirce,
1990), e não elementos isolados. A metáfora, ao
propor a síntese entre sistemas distintos por intermédio de seus diagramas, promove a sobreposição entre o conjunto de relações que cada um
representa, provocando, com isso, a mescla entre as suas estruturalidades, conexões e linhas de
composição. Estamos diante de uma metáfora de
diagramas, que sintetiza uma imagem por meio
da relação de sincronia entre imagens que representam relações.
O vínculo de analogia entre cidade e ser humano mediante seus diagramas, além de permi4 De acordo com Peirce, o signo icônico ou hipoícone classifica-se de acordo com “o modo de Primeiridade de que participem” (1990, p.64), e, por
isso, se apresenta de três formas: como imagem, diagrama ou metáfora.
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tir compô-los como se fossem uma única imagem, também viabiliza alterar e diversificar os
diagramas utilizados. Se, de um lado, se pode
fazer a relação com o sistema nervoso central
ou com o sistema cardiovascular, de outro, também é possível usar outros diagramas que representam a cidade, além do sistema de transporte.
É o que ocorre nos trabalhos de Diana Molina
Sánchez, da Espanha (fig.7), Ángel Galán, da
Espanha (fig. 8) e Matteo Boffini, da Itália (fig.
9), que igualmente empregam a metáfora de
diagramas, porém trazem o mapa, a carta ou
a planta topográfica-urbanas para comporem
suas Ciudades Personas.
Em seu cartaz, Diana representa o ser “Urbanita”, aquele que assume a sua paixão pela
“Urbes”, a cidade planificada e edificada pela
lógica do planejamento urbano que irrompe na
época da modernização das cidades. Por isso,
ele é composto pela visualidade de uma planta
urbana e, na posição do seu coração, está um
ícone de localização de onde saem duas setas
para as seguintes definições de um legítimo urbanita: “1 – [persona] Que ha nacido o vive en
una ciudad, 2 – [persona] Que vive en la gran
ciudad y prefiere la vida en ella a la vida en
campo o una ciudad pequena”.
Como Choay (1998) afirma, enquanto disciplina científica, o urbanismo surge no final
do século XIX e se “diferencia das artes urbanas anteriores” (1998, p. 02) por dois aspectos.
Primeiro, pela sua “pretensão de uma universalidade científica” (1998, p.02), tendo em vista seu caráter investigativo, analítico e crítico;
segundo, pelo seu propósito de solucionar os
graves problemas gerados pelo grande afluxo
populacional presente nos centros industriais
emergentes, mediante a elaboração de um programa voltado à organização e à racionalização
dos espaços do viver e que, a partir de então,
irá caracterizar aquilo que se entende por planejamento urbano.
Assim, incorporada pela urbanidade, na peça
proposta por Diana, a personagem estruturase da cabeça aos pés pelo desenho esquadrinhado do plano, restringindo as zonas verdes e
o percurso do rio, partes mais relacionadas à
natureza, para a região onde atuam os sistemas
mais viscerais e profundos do ser humano: digestivo, excretor, urinário e reprodutor. Também utilizando o plano urbano e a metáfora de
diagramas, o designer Ángel destaca a construção de sua “cidade pessoa” por um elemento
gráfico branco que representa tanto a coluna
vertebral do sujeito quanto uma grande via que
perpassa a cidade. Unidos, cidade e pessoa são,
de alguma forma, artifícios produzidos pela racionalidade técnica.
No entanto, o uso do plano urbano para a
construção da metáfora não permite apenas
representar o “ser cidade” orientado pela planificação e pelo planejamento da urbe, é possível produzir o sentido contrário como ocorre
com o cartaz de Matteo, no qual a imagem de
uma mulher surge por meio do plano urbano
de Madri. Apesar de também utilizar o plano
urbano como material de composição de sua
personagem, a face feminina só se mostra com
o redesenho do plano, diagramando, com isso,
outra cidade, aquela que evidencia suas diferentes praças e destaca a sua principal, a Plaza Mayor, que está justamente na posição da
mente da personagem, provavelmente em seus
pensamentos. A cidade racionalizada transforma-se na cidade do viver, apropriada pelos trejeitos, percursos, histórias, narrativas e afetos
dessa mulher.
4. Para além da cidade e da pessoa
Das nove peças até agora apresentadas, apenas uma, a de Ángel Galán, efetivamente representa o espaço para além dos limites do desenho do corpo humano, permitindo-nos perceber não apenas o intercâmbio entre a cidade e
o sujeito na construção de um corpo − como
também propõem os demais designers −, mas
que seus limites não se restringem aos limites
do corpo, sinalizando que existe também um
acolá, um fora ou um outro.
A presença do que está fora, do outro, do
além, de acordo com Lotman, é uma das marcas centrais da atividade exercida pelo ser
humano no processo de constituição das culturas e está relacionada com a elaboração de
modelos de divisão e classificação do espaço,
construídos com base na demarcação entre o
“próprio” e o “alheio” (1996, p. 83). Ainda segundo o semioticista (1996), é a partir da delimitação das relações espaciais que uma cultura
se define enquanto tal, da mesma forma que
demarca a sua “não cultura”, ou seja, o que seria a sua alteridade, pois, como o autor afirma,
“[...] la cultura nunca es un conjunto universal,
sino solamente un subconjunto organizado de
determinada manera [...] sobre el fondo de la
no-cultura” (Lotman, 2000, p. 169).
No âmbito do pensamento semiótico, a “não
cultura” deve ser entendida por meio de um
viés absolutamente relacional, uma vez que
ela é delineada segundo um prisma específico e não fixo, pois se reporta a uma cultura
que, quando vista através de outra, se consti-
tui como uma totalidade distinta, muitas vezes
desconhecida, estranha, inexplorada, oposta,
avessa e/ou periférica. Dessa forma, cria-se um
filtro específico que permite a uma coletividade demarcar a sua “não cultura”, o seu outro, de
modo que, no âmbito da urbe, ela “es la parte
del universo dotada de cultura. Pero, en su estructura interna, ella copia todo el universo, teniendo su espacio ‘propio’ y su espacio ‘ajeno’”
(Lotman, 1996, p. 84).
Nos cartazes de Gustavo Miñaca (fig.10), Javier Lerín Molinos (fig.11), ambos da Espanha,
e de Anton Strunge, da Rússia (fig. 12), a personagem constitui-se por meio da figura humana
composta pelos elementos gráficos do desenho
do plano urbano. Novamente, há a fusão entre
corpos em uma mesma imagem. Entretanto, há
também o alheio, delimitado nos dois cartazes
da Espanha pelo contorno do busto humano,
constituído por faixas de rodovias. O espaço
“de fora”, na proposta de Miñaca, é dominado
por zonas verdes e, na proposta de Molinos, é
constituído por partes da urbe que não pertencem aos circuitos da personagem representada.
Ao delimitarem a figura humana e, ao mesmo
tempo, representarem os espaços para além do limite, as duas peças promovem a discussão entre
a “pessoa” e as outras “pessoas”, entre o aqui e o
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acolá, entre o interno e o externo, entre o pessoal
e o impessoal, entre campo e cidade. E esse “entre” pode se tornar ainda mais complexo, quando
se caracteriza não tanto pelas demarcações dos
limites, mas, sobretudo, pela lógica das dominâncias. É o que ocorre na peça do designer Strunge, da Rússia, que desenha um rosto humano no
mapa urbano da cidade, no qual a testa, os olhos,
nariz e bochechas se expressam pela dominância das áreas construídas sob as áreas verdes e
o cabelo, a barba e a boca surgem com a predominância inversa.
Tanto a delimitação dos modos de organização
espacial quanto a porosidade entre eles possuem
uma importância central para o pensamento semiótico, pois, sem elas, não seria possível situar
os intercâmbios que conferem dinamismo à
cultura, dos quais decorre a produção de novos
sentidos, como também a atuação da memória
cultural. Nenhuma esfera cultural subsiste isolada, entretanto, apenas quando se reconhecem as
individualidades semióticas de cada uma é possível apreender os intercâmbios, confrontos e tensionamentos que ocorrem na fronteira semiótica.
Lotman (1996) define a fronteira como o conjunto dos filtros tradutores pertencentes a um
determinado sistema, pelos quais acontece a tradução de algo externo por meio de “uno de los
lenguajes de su espacio interno o semiotizar los
hechos no-semióticos” (Lotman, 1996, p. 24), ou
seja, pertencentes à “não cultura” e que, uma vez
traduzidos, passam a compor as variáveis constitutivas de um dado sistema. A fronteira consiste
numa posição funcional produzida com base no
encontro entre diferentes esferas, de modo que,
por mais que uma cultura estabeleça a delimitação daquilo que entende como “próprio” e “alheio”, tal demarcação nunca é estanque.
Na última peça selecionada para essa análise,
a de Kateryna Bortsova, da Ucrânia (fig. 13), é
possível perceber os traços principais levantados
na análise das demais propostas. O corpo huma-
no e a cidade como corpo por meio do seu plano
urbano se fundem numa só imagem; o modo de
organização dos espaços da cidade estabelecem
uma relação de semelhança com os sistemas internos do corpo humano, tornando possível, por
exemplo, que o coração pulse numa parte específica da cidade e a delimitação da figura humana
permite perceber o interno e o externo, ao mesmo tempo em que vias e ruas do plano urbano
estabelecem o intenso diálogo entre o espaço do
sujeito e os outros espaços. Dessa forma, a cidade personifica-se no sujeito e para além dele, ao
mesmo tempo em que ele se espacializa.
5. Considerações finais
O modelo semiótico da cidade entendida como
uma pessoa, tal como propõe Ivanov, visto em
consonância com a perspectiva das ressonâncias
que produz pela atuação da memória cultural
quando em contato com a linguagem do design
gráfico, nos permite levantar algumas conjecturas
sobre o(s) signo(s) de “pessoa(s)” que, na atualidade, melhor representaria(m) as grandes cidades.
Por meio da análise das peças selecionadas
para este estudo, um aspecto que nos parece patente diz respeito, como Simmel aponta, às transformações causadas nos “fundamentos sensoriais
da vida psíquica” (1973, p. 12) pelas grandes cidades, pois o “corpo humano”, tal como foi representado em algumas peças, centra-se no sistema
nervoso central. Porém, cumpre ressaltar que,
pelo processo de modelização, a correlação entre
ele e o “corpo da cidade” não implica a anulação
de um e outro, uma vez que, nos cartazes observados, é possível observar aquilo que, na materialidade do texto, pertence a cada uma das esferas
que foram colocadas em relação. Nesse sentido,
apesar da estreita correlação existente entre os indivíduos e a urbe, tal como McLuhan igualmente
explicita, mantém-se a alteridade entre eles, ao
passo que se nota que o “homem” é representado,
sobretudo, pela dimensão perceptocognitiva que
é ressignificada pela cidade.
Ao mesmo tempo, tal relação de alteridade torna-se indispensável para apreendermos o fato de que, ainda de acordo com Simmel
(1973), a cidade não se circunscreve ao seu es-
paço geográfico ou físico construído e, tampouco, o homem se limita à sua materialidade corpórea. Inclusive, somente porque há alteridade é
possível delinear as transformações que ressignificam ambos. Cumpre ressaltar que essa é uma
das funções centrais exercida pela fronteira, ou
seja, elucidar intercâmbios e tensionamentos semióticos que escapam à visualidade mais imediata dos fenômenos observados.
Dessa forma, pode-se dizer que, apesar de se
utilizar de signos gráficos relativos ao sistema de
transporte da urbe ou ao plano topográfico e urbano, a representação da cidade não se restringe
à sua delimitação enquanto espaço físico construído, mas diz respeito às reverberações que é
capaz de produzir no espaço semiótico. Afinal,
constrói-se um corpo (cidade) na relação com
outro corpo (humano) sem desconsiderar a alteridade que há entre eles, da mesma forma que se
reconhece que há algo para além do “corpo cidade”, sua “não cultura”, e que igualmente intervém
na sua constituição. Assim representada, a alteridade parece se colocar como um traço inescapável da “cidade pessoa” na atualidade.
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