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Atividade de estudo e desenvolvimento humano:
a metodologia do duplo movimento no ensino
Learning activity and human development:
the double movement methodology in teaching
Eliane Silva 1
José Carlos Libâneo2
RESUMO
O texto aborda as relações entre a atividade de
estudo e o desenvolvimento humano, conforme a
teoria do ensino desenvolvimental de V.
Davydov, e os estudos de M. Hedegaard e S.
Chaiklin sobre a metodologia do duplo
movimento no ensino entre conceitos científicos
e conceitos cotidianos no desenvolvimento do
pensamento teórico. Os três primeiros tópicos
trazem, por meio de pesquisa bibliográfica, o
posicionamento desses pesquisadores em relação
ao ensino desenvolvimental, à atividade de
estudo e à metodologia do duplo movimento. No
tópico final, é apresentada pesquisa empírica,
realizada na forma de experimento didáticoformativo, tendo em vista o desenvolvimento de
uma metodologia de ensino de ciências nos anos
iniciais do Ensino Fundamental na perspectiva
do ensino desenvolvimental. O estudo indica
correlação entre a revisão teórica e a análise dos
dados de observações feitas ao longo do
experimento didático-formativo mostrando a
efetividade do duplo movimento no ensino em
promover a aprendizagem e o desenvolvimento
humano nos alunos.
ABSTRACT
This article focuses on the relation between
learning activity and human development
based on V. Davydov's developmental
teaching theory, and M. Hedegaard and S.
Chaiklin's study about double movement
teaching between scientific concepts and daily
concepts in the development of theoretical
thought. The first three topics reported bring
us, by means of bibliography research, the
authors’ view about developmental teaching,
learning activity and double movement
methodology. The last item is about empirical
research, conducted by a formative-didactic
experiment, aiming to develop a methodology
to teach science to young school children, in
the perspective of developmental teaching.
The study indicates positive correlations
between the theoretical review and the
observations conducted in the classroom,
showing the effectiveness of the double
movement in teaching in promoting learning
and human development in students.
Palavras-chave: Atividade de estudo.
Ensino e desenvolvimento humano. Ensino
radical-local. Duplo movimento no ensino.
Experimento didático-formativo.
Keywords:
Learning
activity.
Human
development. Radical–local teaching. Double
movement in teaching. Formative-didactic
experiment.
Curso de Pedagogia da PUC Goiás. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7638-1722. E-mail:
elianepuc@gmail.com.
2 Programa de Pós-graduação em Educação, PUC Goiás, Brasil. ORCID: https://orcid.org/00000002-8105-2165. E-mail: libaneojc@uol.com.br.
1
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1 Introdução
O presente estudo se insere no conjunto das investigações, dentro da teoria
histórico-cultural, que buscam analisar a atuação da educação e do ensino no
desenvolvimento psíquico dos alunos. Neste texto, destaca-se a organização da
atividade de estudo, na modalidade proposta por V. Davydov na teoria do ensino
desenvolvimental, e o desenvolvimento de motivos e de capacidades individuais e
sociais dos alunos. A análise incorpora a abordagem do ensino radical-local de M.
Hedegaard na qual é formulado o procedimento pedagógico do duplo movimento
no ensino entre conceitos científicos e conceitos cotidianos gerados nas práticas
socioculturais e institucionais de que os alunos participam.
A questão posta à discussão é como desenvolver, na atividade de estudo, o
domínio de relações conceituais básicas de uma matéria de estudo em conexão
com as condições sociais, culturais e materiais de vida dos alunos de modo que os
conhecimentos científicos apropriados pelas crianças sejam utilizados nas
práticas da sua vida cotidiana na família e na comunidade. Desse modo, nosso
objetivo foi investigar relações entre a atividade de estudo e desenvolvimento
humano com o aporte teórico da teoria do ensino desenvolvimental de V. Davydov
e dos estudos de M. Hedegaard e S. Chaiklin em sua abordagem do Ensino
Radical-Local na qual introduzem a metodologia do duplo movimento no ensino,
ou seja, o movimento entre conceitos científicos e conceitos cotidianos no
desenvolvimento do pensamento teórico-dialético. O relato da pesquisa empírica
visa a mostrar, pela análise dos dados da observação, a efetividade da
metodologia
do
duplo
movimento
em
promover
a
aprendizagem
e
desenvolvimento humano dos alunos com sentido pessoal e social.
2 A teoria do ensino desenvolvimental de V. Davydov
A teoria do ensino desenvolvimental, formulada por V. Davydov, de base
materialista histórico-dialética, está fundamentada na teoria histórico-cultural
de L. Vigotski (2001), na teoria da atividade de A. Leontiev (1983) e nos estudos
de D. Elkonin (1987) e tem como conteúdo básico o estudo e a investigação da
relação entre o desenvolvimento psíquico e a atuação da educação e do ensino
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(DAVYDOV, 1988a, 1988b, 1988c). Dessa proposição, Davydov passou a conduzir
pesquisas sobre processos lógicos e psicológicos envolvidos na apropriação dos
saberes por parte dos alunos. Davídov e Márkova (1987) escrevem que o
desenvolvimento humano se realiza com a apropriação, pelo indivíduo, da
experiência histórico-social representada nos conhecimentos e habilidades, onde
estão condensadas as capacidades humanas e as formas gerais da atividade
psíquica. Desse modo, o ensino tem como função promover os meios que
assegurem a apropriação, pelo aluno, dessa experiência humana histórica e
socialmente
elaborada
de
modo
a
promover
avanços
qualitativos
no
desenvolvimento das capacidades humanas. Segundo Davydov, na escola “as
crianças assimilam os elementos básicos das formas mais desenvolvidas de
consciência social como a ciência, a arte, a moralidade e a lei” (DAVYDOV, 2008,
p. 115), realizando uma atividade adequada à atividade humana historicamente
incorporada, ou seja, a atividade de estudo. Na atividade de estudo, tem lugar a
assimilação dos conceitos científicos cujo objetivo é a transformação do aluno à
medida que ele vai adquirindo novas capacidades de pensar e agir por meio
desses conceitos. Assim, o conteúdo principal dessa atividade é o conhecimento
teórico pelo qual são assimilados conteúdos e procedimentos generalizados de
ação visando ao desenvolvimento psíquico.
As qualidades humanas desenvolvidas no processo histórico e social não
são assimiladas espontaneamente e nem fazem parte das características
individuais; elas são constituídas historicamente nas relações sociais. É assim
que a aprendizagem que promove o desenvolvimento do conhecimento teóricoconceitual não ocorre na relação direta do sujeito com o objeto, mas por um
processo de educação e ensino socialmente mediado. A pedagogia e a didática
formulam os princípios e as formas dessa mediação para que os alunos aprendam
e formem conceitos, desenvolvam capacidades e habilidades de pensamento,
formem atitudes e valores e se realizem como pessoas e profissionais-cidadãos,
por meio da atividade de estudo, em ligação direta com as práticas socioculturais
por eles vivenciadas (LIBÂNEO, 2004, 2012, 2015).
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Davydov fundamentou-se em Vygotsky para conceber um tipo de ensino
que impulsiona o desenvolvimento e, em Leontiev, para dar forma à estrutura da
atividade de estudo. Dando sequência ao método genético-causal empregado por
Vygotsky, introduziu o método genético-modelador para investigar as relações
entre o desenvolvimento psíquico das crianças e a educação e ensino dessas
crianças. Posto em ação em um experimento formativo, esse método consiste na
intervenção ativa do pesquisador nos processos psíquicos estudados na situação
pedagógica por meio de ações didáticas e tarefas de estudo.
Na concepção de Davidov (1999, p. 1), o processo de ensino na escola
precisa de uma nova “organização do aprendizado, por parte dos alunos, dos
conhecimentos e habilidades sob a forma de atividade de estudo”. Na atividade
de estudo, subjaz o conceito filosófico e pedagógico de atividade, ou seja, a
transformação criativa da realidade e de si próprias pelas pessoas por meio do
trabalho, do qual decorrem os demais tipos de realidade material e espiritua l.
Os elementos constitutivos da atividade foram designados por Leontiev como
sendo necessidades, motivos, objetivos, ações, operações, condições e meios
que, para Davydov, compõem, também, a estrutura da atividade de estudo,
incluindo o princípio criativo transformador a partir do conhecimento teórico.
O caminho de apropriação do conhecimento teórico requer a investigação
dialética de seus aspectos lógico-gnosiológicos (DAVYDOV, 1997). Um conceito
teórico contém um sistema, base genética ou célula, que oferece condições para
que, por ações intelectivas, possa ser deduzido seu processo total de
desenvolvimento. Dito de outro modo, o pensamento teórico emprega um
procedimento especial para compreender os fenômenos e os acontecimentos
refletindo sobre o seu desenvolvimento e as condições que os originaram. Esse
procedimento consiste no método de ascensão do pensamento abstrato ao
pensamento concreto em que o concreto pensado “necessita de um tipo especial
de abstrações com a ajuda das quais se acompanham realmente as conexões
internas (no fim das contas, o desenvolvimento) de determinado sistema
integral estudado” (DAVYDOV, 1988a, p. 143).
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As operações mentais que visam ao desenvolvimento de conexões internas
mobilizadoras da formação do pensamento teórico são impulsionadas pelas ações
didáticas e tarefas de estudo que constituem a forma adequada de organização do
ensino. Davidov (1999, p. 2) aponta dois requisitos da atividade estudo: primeiro,
a necessidade da aprendizagem, ou seja, a criança precisa ter uma necessidade
interna e motivação para a apropriação de conhecimento e habilidades;
segundo, a transformação ou experimentação de forma real ou mental de um
objeto de estudo da qual resulte um novo produto mental. Ele escreve:
[...] as necessidades e os motivos de estudo direcionam as crianças
para a apropriação de conhecimentos como resultado de
transformações de um dado material [...] no qual se revelam certas
relações internas ou essenciais, cuja consideração permite ao aluno
detectar a origem das manifestações externas (aparências) do
material que está sendo apropriado. (DAVIDOV, 1999, p. 2).
Precisamente, os conhecimentos obtidos da interligação entre aspectos
essenciais gerais e aspectos particulares são chamados de conhecimento
teórico, o conteúdo próprio da atividade de estudo.
3 A abordagem do Ensino Radical-local de M. Hedegaard e S. Chaiklin
A teoria do ensino desenvolvimental, como vimos, se alicerça no papel
desenvolvimental do ensino na formação da personalidade dos alunos e na busca de
meios psicológicos e pedagógicos que podem ajudar os alunos no desenvolvimento
psíquico e em suas potencialidades. Em consonância com essa proposição, M.
Hedegaard e S. Chaiklin acrescentam à teoria de Davydov resultados de suas
pesquisas sobre relações entre práticas institucionais, condições históricas e
culturais de vida e a atividade de estudo dos alunos (HEDEGAARD, 2004). Na
formulação desses pesquisadores, práticas culturais vivenciadas pelos alunos em
diferentes instituições da sociedade precisam ser consideradas nas atividades de
ensino-aprendizagem, uma vez que os alunos são, ao mesmo tempo, pessoas
individuais e participantes ativos de uma coletividade social (HEDEGAARD, 2008a).
Hedegaard (2002b, 2002c, 2002d, 2008b), Hedegaard e Chaiklin (2005) e
Chaiklin e Hedegaard (2013) propõem um modelo de desenvolvimento e
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aprendizagem de crianças a partir da participação em práticas institucionais em que
confluem perspectivas sociais, institucionais e pessoais. Na perspectiva societal, a
sociedade é considerada em suas tradições sociais e práticas culturais que vão
constituindo atribuições valorativas a posições, modos de vida, habitus, orientações
legais, normas. Na perspectiva institucional, as tradições e valores são conectados a
interações em diferentes instituições como a família, a creche, a escola, a
comunidade, o trabalho, das quais as crianças participam. Na perspectiva pessoal, a
pessoa
vivencia
cotidianamente
essas
diferentes
situações
sociais
de
desenvolvimento que podem promover ou inibir mudanças qualitativas nos seus
motivos e competências. A pesquisadora, assim, introduz na teoria desenvolvimental
o conceito de práticas institucionais em que são realçadas as relações entre práticas
socioculturais e o pensamento das pessoas. Para isso, se apropria de pesquisas no
âmbito da psicologia cultural e da antropologia, ampliando as ideias de Vygotsky
acerca da situação social de desenvolvimento (HEDEGAARD, 2004).
Ao aplicar esse modelo no processo de ensino-aprendizagem, Hedegaard
propõe articular os processos de apropriação do conhecimento teórico-dialético, na
perspectiva de Davydov, com a situação social de desenvolvimento, ou seja, com
as condições sociais, culturais, institucionais que permeiam a subjetividade dos
alunos na escola e que incidem nos seus motivos, na aprendizagem dos conteúdos,
nas mudanças em seus modelos conceituais, em síntese, no desenvolvimento de
competências individuais e sociais. Na prática escolar, isso significa promover
interfaces entre os conceitos científicos trabalhados na escola e os conceitos
cotidianos gerados nas condições históricas, sociais, culturais concretas da prática
cotidiana. Hedegaard e Chaiklin (2005, p. 40) denominam sua proposta
educacional de Ensino Radical-Local que visa a “criar uma integração entre o
conhecimento espontâneo da criança trazido de casa e da comunidade e o
conhecimento do conteúdo apresentado na escola tal como prescrito nas matérias
escolares e nos planos curriculares”. Os autores se embasaram nas ideias de
Vygotsky sobre os conceitos cotidianos e científicos e de Davydov sobre o
pensamento teórico e a atividade de estudo para introduzir sua própria proposta
de experimento formativo. Nessa proposta, a atividade de estudo é organizada
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por meio de intervenções instrucionais, mediante procedimentos investigativos
que promovam o desenvolvimento do pensamento teórico e instiguem o
desenvolvimento humano por meio de tarefas e ações em torno de problemas, em
íntima ligação com as práticas socioculturais dos alunos.
Depreende-se das influências teóricas assinaladas, três ideias-chave do
ensino e aprendizagem radical-local: primeira, a combinação das relações
conceituais básicas (conceito nuclear) do conteúdo com a situação de vida das
crianças; segunda, a integração do conhecimento acadêmico com o conhecimento
local de modo a transformar com qualidade os conceitos cotidianos das crianças e,
terceira, a possibilidade de o conhecimento acadêmico ser usado na prática local
das crianças. A partir dessas ideias-chave, o ensino-aprendizagem radical-local
combina os seguintes elementos: o modelo conceitual como expressão de relações
básicas, assim como forma de atuar nos motivos e na capacidade de formular
perguntas e despertar o interesse pela elaboração de respostas por parte do
aluno; o entendimento do escopo do conteúdo; a relação entre interesse e motivos
com problemas, conflitos e contrastes na aprendizagem de conceitos cotidianos e
científicos; o desenvolvimento de motivos combinado ao desenvolvimento e à
formação de capacidades nos alunos; por fim, o duplo movimento no ensino.
Uma vez que o ensino-aprendizagem radical-local se propõe a mobilizar os
motivos das crianças, formar sua capacidade de apreender contradições e conflitos,
estabelecer contrastes e solucionar problemas, o ensino precisa enfocar os conteúdos
que circundam a vida e o mundo da criança, orientando suas descobertas e servindolhe de motivação desde que ela tenha formas de explorar ativamente o conteúdo. Em
um processo dialético, o interesse da criança e os motivos em relação ao conceito
científico vão surgir à medida que ela conviver intelectualmente com contradições e
contrastes e lidar com procedimentos mentais que a conduzam a reflexões, mas
igualmente, participar da investigação ativa de problemas.
4 Atividade de estudo e a metodologia do duplo movimento no ensino
Na teoria do ensino desenvolvimental, a atividade de estudo é o meio
principal na apropriação do conhecimento teórico-conceitual e das capacidades
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humanas conexas a ele, como base para o desenvolvimento da personalidade. Na
abordagem do Ensino Radical-Local, conforme vimos, os conhecimentos e práticas
da vida cotidiana dos alunos dão o impulso inicial para os professores relacionálos aos conceitos científicos e às ações mentais que envolvem a matéria ensinada,
tendo em conta a formação do pensamento teórico conforme o método de ascensão
do pensamento abstrato ao pensamento concreto. A metodologia do duplo
movimento dos conceitos no ensino, isto é, entre os conceitos cotidianos e os
conceitos científicos, fica assim caracterizada:
O ponto principal no duplo movimento no ensino é criar tarefas de
aprendizagem que possam integrar o conhecimento local com as
relações conceituais nucleares de um conteúdo de modo que a
pessoa possa adquirir conhecimento teórico que pode ser usado nas
práticas locais da pessoa. (HEDEGAARD; CHAIKLIN, 2005, p. 69).
O duplo movimento no ensino constitui-se de uma proposta metodológica
de ensino planejada por Hedegaard (2002a, 2002b, 2008b, HEDEGAARD;
CHAIKLIN,
2005)
com
a
colaboração
de
Chaiklin
(2002,
CHAIKLIN;
HEDEGAARD, 2013), dentro da abordagem do Ensino Radical-Local no âmbito
da teoria do ensino desenvolvimental.
Considera-se, na metodologia do duplo movimento, a interligação entre
conteúdos de ensino e conhecimentos locais advindos das vivências do aluno
em suas práticas socioculturais, tal como formulam os autores: “os conceitos da
matéria e o conhecimento cotidiano da criança podem ser integrados utilizando
o conhecimento teórico como referência para as atividades de ensino e
aprendizagem” (HEDEGAARD; CHAIKLIN, 2005, p. 69). Desse modo, tarefas
de aprendizagem articulam conhecimento local
e relações conceituais
nucleares da matéria a fim de que os alunos adquiram o conhecimento teórico
que possa ser utilizado na prática local das pessoas.
Os procedimentos didáticos do duplo movimento se orientam por quatro
princípios: elaboração de um modelo nuclear do conteúdo em investigação para
orientar o ensino; emprego de procedimentos de pesquisa similares ao modo como
problemas são investigados pelos pesquisadores; realização de ações no processo
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de ensino que reflitam mudanças qualitativas na aprendizagem da criança;
formação dos motivos dos alunos por meio de tarefas de pesquisa e pelo incentivo
à comunicação e cooperação entre as crianças.
Elaboração de modelo nuclear do conteúdo como orientador do ensino
Nas ações didáticas da atividade de estudo indicadas por Davydov, a
primeira e mais importante consiste na transformação dos dados da tarefa de
aprendizagem para descobrir a relação geral inicial e universal visando a
formar o conceito científico do objeto. Na operação seguinte, os alunos observam
como esta relação universal se manifesta em outras relações particulares
referentes ao objeto. Hedegaard e Chaiklin realçam a importância de os alunos
discernirem as relações básicas que envolvem um objeto de estudo de modo a
chegar à formulação do que denominam modelo nuclear do conteúdo. Para eles,
a formação do pensamento teórico requer a utilização de princípios abstratos
tendo em vista a análise de situações concretas: “modelos conceituais expressam
relações básicas em um tema-problema e fornecem ferramenta analítica para
desenvolvimento
e
organização
de
conteúdo
substantivo”
(CHAIKLIN;
HEDEGAARD, 2013, p. 35). O uso de modelos conceituais como ferramenta no
ensino ajuda a criança na análise de fenômenos concretos e na resolução de
problemas. Mas os autores alertam que o modelo conceitual pode se tornar
inócuo se as crianças não tiverem sido motivadas para a formulação de
perguntas “ou, depois de formularem perguntas, não conhecerem procedimentos
específicos para buscar respostas” (CHAIKLIN; HEDEGAARD, 2013, p. 36).
Nesse modelo, que requer na sua formulação profundo conhecimento do
assunto estudado, o processo de ensino desencadeia a aprendizagem do conteúdo
pelos alunos, por meio de “tarefas, projetos, exercícios e questões que são
baseados nas relações gerais do modelo nuclear, incorporando ao mesmo tempo as
formas das crianças de formular questões e os seus interesses na substância
específica das atividades realizadas” (HEDEGAARD; CHAIKLIN, 2005, p. 71). A
atividade do professor requer, assim, o exame da temática de modo a basear o
ensino no modelo nuclear das relações conceituais do conteúdo, o conhecimento do
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contexto sociocultural e material dos alunos e a identificação de seus interesses e
motivos, e a proposição de tarefas e elaboração de problemas e perguntas que
esclareçam os conceitos nucleares.
Emprego de procedimento de pesquisa como reprodução do caminho percorrido
pelos cientistas
Na organização da atividade de ensino a partir do modelo das relações
conceituais e do núcleo do conteúdo, requer-se a atividade exploratória
baseada na solução de problemas e formulação de perguntas nas quais
transpareçam contradições, conflitos, contrastes. Segundo Rubtsov (2003, p.
131), nos processos de aprendizagem é necessário distinguir entre “a resolução
de um problema de aprendizagem e a de um problema concreto e prático”, pois
a primeira demanda não somente a aprendizagem de conteúdos, mas também
a de procedimentos mentais. “Propor um problema de aprendizagem a um
escolar é confrontá-lo com uma situação cuja solução em todas as variantes
concretas pede uma aplicação de método teórico geral” (RUBTSOV, 2003, p.
131). Concordando com a visão de Rubtsov, escreve Freitas (2012, p. 415):
O ensino desenvolvimental propicia uma [...] abordagem do ensino
por problemas que busca privilegiar a conexão entre o processo de
investigação de um conteúdo com o processo de sua aquisição como
um conceito, um procedimento mental, uma nova habilidade
mental. No ensino desenvolvimental, a busca da solução do
problema visa à criação de novas estruturas e procedimentos
mentais pelo aluno (e vice-versa). Tanto é importante o processo de
aprender como o resultado da aprendizagem do aluno, evidenciado
nas mudanças em sua personalidade.
De acordo com a autora, a inovação trazida pelo ensino por problemas na
abordagem histórico-cultural é seu foco na formação de um tipo de
pensamento: o pensamento por conceitos, ou seja, o pensamento teórico. A
autora realça a afirmação do próprio Davydov para quem o conhecimento “não
é transmitido aos alunos de maneira pré-formada, mas é adquirido por eles no
processo da atividade cognoscitiva autônoma, na presença da situação baseada
em problemas” (DAVYDOV, 1988b, p. 173).
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Para Aquino (2017, p. 171), “o uso adequado da pergunta no processo de
ensino-aprendizagem constitui uma ferramenta didática para a formação de
conceitos científicos na escola”. O autor adverte, no entanto, sobre a qualidade
da pergunta, pois ela precisa instigar o aluno à pesquisa na busca da resposta.
“A resposta não se acha nas aparências, nem se formula com a descrição
externa do objeto, vez que está oculta na multiplicidade de determinações e
nexos que configuram o objeto. O aluno precisa descobrir a qualidade
intrínseca do fenômeno” (AQUINO, 2017, p. 181).
Realização de ações de ensino que reflitam mudança na aprendizagem
Em consonância com as ações e tarefas de estudo propostas por Dayvdov
(1998b; 2008) e Hedegaard e Chaiklin (2005), são realçadas as condições que irão
facilitar a aquisição pelas crianças do modelo nuclear e os procedimentos para a
pesquisa. Desse modo, em consonância com Davydov, são propostas as seguintes
ações de estudo: formulação de tarefas que possibilitem a imaginação dos
objetivos e problemas de aprendizagem a serem investigados na área do conteúdo
em estudo; elaboração conjunta de tarefas que propiciem a formulação do modelo
nuclear das relações conceituais e a investigação dos problemas por meio de
procedimentos investigativos de pesquisa; execução de tarefas que suscitem a
atividade principal pela avaliação do modelo nuclear e a autoavaliação da
aprendizagem de conhecimentos e habilidades.
Com base nas indicações de Davydov, Hedegaard e Chaiklin, Libâneo
(2016) e Freitas (2016) reforçam o entendimento de que, no início das atividades,
é o professor que planeja e se responsabiliza pela organização e condução das
ações didáticas e tarefas de estudo. À medida que o trabalho vai se
desenvolvendo, as crianças vão sendo orientadas a se responsabilizar pelas
atividades relacionadas com a apreensão das relações conceituais do objeto de
estudo e a modelação do núcleo do conceito. Realçam, também, que o professor
precisa
sempre
reavaliar seu
planejamento
inicial
à
medida
que
vai
acompanhando o desempenho dos alunos em relação às tarefas e observando
mudanças qualitativas em suas operações mentais.
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Formação dos motivos dos alunos e incentivo à comunicação e cooperação entre
as crianças
Os motivos dos alunos para
aprender e adquirir habilidades e
conhecimentos se desenvolvem na relação direta com a atividade em que estão
inseridos. Segundo Hedegaard e Chaiklin (2005, p. 79), “motivos e conhecimento
estão dialeticamente ligados porque o conhecimento fornece conteúdo para
motivos e motivos determinam a apropriação do conhecimento”. Os autores
concordam com o entendimento de Elkonin (1987) de que, na idade escolar, a
aprendizagem é a atividade principal da criança e pode direcioná-la para o
conhecimento sobre o mundo em geral, a exploração de novas descobertas e para
a formação de habilidades valorizadas na comunidade a que pertence, mas
acrescentam que, neste estágio de desenvolvimento psicológico, também são
importantes os motivos sociais e os motivos de brincar. Desse modo, o
procedimento metodológico do duplo movimento para a consecução do ensinoaprendizagem radical-local enseja a reflexão sobre dois aspectos fundamentais: o
direcionamento do objetivo das atividades para a formação e valorização dos
motivos dos alunos; o incentivo à comunicação e cooperação entre as crianças.
Requer-se, pois, na metodologia do duplo movimento, a consideração dos
interesses, curiosidades e motivos das crianças, a responsabilização das
crianças pela pesquisa do conteúdo, de modo a se capacitarem a descobrir as
relações básicas do conteúdo e a elaborar o modelo nuclear. A par disso, é
imprescindível o trabalho colaborativo 3 para a consecução de tarefas
investigativas mediante formulação e solução de problemas.
Ainda acerca da motivação das crianças e do trabalho colaborativo, os
autores destacam que, por si só, os conteúdos do meio sociocultural não
A metodologia do duplo movimento combina a formação de motivos para a cognição com a capacidade
de os alunos desenvolverem a comunicação e a cooperação. Para isso, os autores afirmam que se, na sala
de aula, os alunos valorizam a opinião de seus pares, é importante aproveitar este “interesse para apoiar
o trabalho colaborativo em tarefas de investigação e formulação de problemas que exigem esforço
coletivo para a sua solução” (itálico no original). (HEDEGAARD; CHAIKLIN, 2005, p. 80).
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satisfazem como ferramenta teórico-metodológica para favorecer o entendimento
do conteúdo de ensino pela criança e tampouco esclarecer implicações e
possibilidades para as suas próprias vidas. Seu papel é assegurar uma ligação
mais próxima entre o conteúdo da educação escolar, os interesses e motivos dos
alunos, visando, por parte deles, à compreensão conceitual e à relação com o seu
desenvolvimento social. Eles assim sintetizam esse entendimento:
Embora seja útil, e até mesmo importante, usar material proveniente
do ambiente social cotidiano das crianças como uma forma de ativá-los
a se empenhar em atividades intelectuais e de alfabetização, não é
suficiente como um objetivo educacional. Serem ativadas não é a
mesma coisa de usar esse material de forma que ele desenvolva
relações disciplinares e críticas entre o material e a situação de vida de
uma pessoa. (HEDEGAARD; CHAIKLIN, 2005, p. 50).
A consideração dos motivos dos alunos e da situação social de
desenvolvimento em relação ao conhecimento vincula-se ao núcleo da perspectiva
radical-local no ensino, ou seja, à inter-relação entre os conteúdos do ensino, às
condições sociais e culturais da comunidade local e ao desenvolvimento pessoal do
aluno. Desse modo, recorrer a experiências da vida cotidiana não visa apenas a
mobilizar o interesse do aluno para a matéria, mas contrastá-la com os conceitos
científicos e, com isso, promover o desenvolvimento de capacidades específicas dos
alunos para suas vidas fora da escola.
5 Experimento didático-formativo no ensino de ciências pelo duplo
movimento
As bases teóricas formuladas por Davydov voltaram-se para a organização
da atividade de estudo e a estruturação das matérias escolares, tendo em vista
formas de organização do ensino suscetíveis de influenciar o desenvolvimento
psíquico das crianças. Foi este, precisamente, o propósito desse pesquisador ao
criar o método do experimento formativo cuja caraterística é investigar a relação
entre a
intervenção ativa
do pesquisador,
por meio do ensino,
e o
desenvolvimento dos processos psíquicos. Hedegaard, apropriando-se da teoria
histórico-cultural e da teoria do ensino desenvolvimental, propôs a intervenção
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experimental pela metodologia do duplo movimento no ensino radical-local.
Correspondendo à orientação epistemológica de Davydov e de Hedegaard, o
experimento que apresentamos partiu de dois pressupostos: que a formação e o
desenvolvimento do pensamento pela criança no âmbito escolar se efetivam pelo
conhecimento teórico e pelo método de pensamento dialético e que ambos
auxiliam na constituição do conhecimento pessoal (local) mediante a articulação
entre conhecimentos do conteúdo escolar e conhecimentos do cotidiano. Desse
modo, a intervenção pedagógica planejada ocorreu sob a forma de experimento
didático-formativo, conforme um microciclo, ou seja, com duração menor
(ZUCKERMAN, 2011), tendo como objetivo investigar a formação e o
desenvolvimento do pensamento teórico por alunos dos anos iniciais do Ensino
Fundamental, em uma atividade de estudo, conforme formulação da teoria do
ensino desenvolvimenal e do Ensino Radical-local. O planejamento e o
desenvolvimento do experimento focalizaram o conteúdo “água” na disciplina
ciências. O objetivo geral foi estudar as potencialidades do desenvolvimento de
crianças por meio da implementação de condições e formas de organização do
ensino visando a mudanças qualitativas nos processos psíquicos dos alunos.
O experimento didático-formativo decorreu de pesquisa teórica e empírica
aprovada pelo Comitê de Ética e Pesquisa da PUC Goiás (SILVA, 2020) e foi realizado
nos anos iniciais do Ensino Fundamental de uma Escola Pública Municipal em
Goiânia (Goiás), no Ciclo I, Turma C (3º ano). A turma se compunha de 31 alunos,
sendo 09 meninas e 22 meninos com idades entre 8 e 10 anos, a maioria com 9 anos.
Participaram da pesquisa 29 alunos. A escolha dos anos iniciais se justificou porque
nesta fase tem início o processo de escolarização, etapa também privilegiada nas
pesquisas de Davydov e outros, por corresponder ao período de desenvolvimento em
que a atividade principal é a atividade de estudo que contribui para o
desenvolvimento do pensamento teórico pelo ensino, estudo e aprendizagem dos
conteúdos por parte das crianças desde o início do processo de escolarização.
O período de duração do experimento transcorreu de agosto a dezembro de
2017. Os meses de agosto e setembro foram empregados para ambientação da
pesquisadora com a escola: participações de reuniões de planejamento de
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professores dos anos iniciais do Ensino Fundamental, visita à sala de aula da
professora; discussão e seleção, junto à professora, do conteúdo a ser planejado
para a atividade de estudo; efetivação de estudos tanto sobre a teoria da
atividade de estudo quanto sobre o objeto do experimento; elaboração do Plano de
ensino da atividade de estudo. Os meses de outubro a dezembro foram utilizados
para a efetivação do experimento na sala de aula, abrangendo 6 semanas com 12
dias, às segundas e terças feiras, das 13h às 16h, perfazendo 36 horas de aulas
observadas sistematicamente mediante anotações em um diário de campo e
filmagem. Inserido no processo de ensino-aprendizagem promovido pela
professora, o plano de ensino elaborado para o experimento contemplou, como
mencionamos acima, o conteúdo “água” no ensino de ciências.
No planejamento da intervenção, a pesquisadora e a professora trabalharam
em conjunto na realização do experimento. A professora manteve o seu lugar como
regente da sala de aula; a pesquisadora promoveu a formação da professora nas bases
teóricas e operacionais da teoria; elaborou o plano de ensino da atividade de estudo
junto com a professora; acompanhou e monitorou, por meio de observação sistemática
e assistência pedagógica, o desenvolvimento da intervenção didática e as atividades
visando a mudanças e avanços no desenvolvimento psíquico das crianças. À medida
que a professora realizava estudos sobre a teoria e o conteúdo do plano de ensino sob a
supervisão da pesquisadora, o experimento tornava-se um meio, ao mesmo tempo, de
pesquisa e formação, em situação real de trabalho (FREITAS, 2010). Pesquisadora e
professora mantiveram encontro semanal para replanejamento e avaliação do
experimento (ZUCKERMAN, 2011), discutindo mudanças planejadas e observadas
em sala de aula. Além de intervir nas aulas, a pesquisadora estabeleceu interlocução
constante com a professora para avaliação de procedimentos investigativos, tarefas de
estudo e ações didáticas, enfim, as atividades norteadas por problemas cognitivos e a
elaboração do modelo conceitual. Por sua vez, as atividades de sala também sugeriam
alterações necessárias às tarefas.
Davydov (1997) argumenta que o domínio do particular sobre o geral, do
concreto sobre o abstrato, é uma capacidade de desenvolvimento que se manifesta
nos conceitos cotidianos. Esta relação se inverte na aprendizagem dos conceitos
científicos em que o geral domina sobre o particular, ou seja, a generalização do
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pensamento domina sobre a generalização das coisas. Expondo o mesmo raciocínio
de outro modo, Hedegaard e Chaiklin (2005) explicam que “o plano de ensino do
professor deve avançar de características abstratas e leis gerais de um conteúdo
para a realidade concreta, em toda a sua complexidade. Inversamente, a
aprendizagem dos alunos deve ampliar-se de seu conhecimento pessoal cotidiano
para as leis gerais e conceitos abstratos de um conteúdo” (HEDEGAARD;
CHAIKLIN, 2005, p. 70). Esta é a compreensão deste experimento na perspectiva
do duplo movimento no ensino aliada aos motivos dos alunos para a cognição.
Desse modo, o conteúdo “água” foi selecionado pela professora como necessário à
aprendizagem dos alunos e passou a ser objeto do experimento didático-formativo
devido a alguns fatores inter-relacionados que concorreram para a formação do
conceito “água”: a prática institucional escolar observada pela professora de que as
crianças não apresentavam aprendizagem efetiva do conteúdo “água” porque não
conceituavam e nem distinguiam os elementos constitutivos do ciclo da água e não
demonstravam clareza sobre os seus usos sociais; o contexto sociocultural das
crianças ao tempo em que o experimento foi realizado na escola, quando houve um
período intermitente de escassez de água em diversificados bairros de Goiânia que
atingiu diretamente as crianças participantes da pesquisa; a motivação da
professora em relação ao assunto, decorrente de participações em minicursos e
palestra sobre a teoria do ensino desenvolvimental que familiarizaram sua
percepção sobre a possibilidade de o conteúdo “água” ser trabalhado a partir de
relações conceituais, diferente da forma prescritiva tradicional encontrada sobre o
assunto nos livros didáticos e, por fim, a reconhecida relevância biofísica, cultural e
político-social da água na relação com as interferências humanas e a negligência
social com a preservação da água potável no Planeta.
No plano, abordaram-se dois tópicos: o ciclo da água na natureza e os
usos sociais da água como criações culturais. Os alunos deveriam compreender
que a água é um elemento natural que passa por transformações produzidas
histórica e culturalmente pelos homens para ser usada socialmente. Desse
modo, a água é situada em um sistema de relações dialéticas que determinam
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a complexidade de seus usos no contexto histórico-social e produtivo
(PEREIRA; SANTOS; CARVALHO, 1993).
Perscrutando o caminho para a formação da relação geral básica do conceito
“água”, recorremos à pesquisa de Giest e Lompscher (2003) que operacionaliza a
abordagem teórica histórico-cultural e desenvolvimental na análise da pesquisa
empírica sobre fenômenos naturais. A água é um fenômeno natural combinado aos
fatores sociais que nela são intervenientes. Diversos fenômenos naturais podem ser
relacionados ao movimento da matéria. Para os autores, em um “sentido filosófico,
movimento significa mudança. Mudanças na natureza são chamadas processos
naturais. Processos naturais ocorrem sob condições definidas e causam mudanças
adicionais, processos naturais adicionais” (GIEST; LOMPSCHER, 2003, p. 275).
Assim, os alunos precisam compreender o sentido do movimento permanente no
desenvolvimento da natureza.
No experimento didático-formativo, enfocamos a água como fenômeno
natural influenciado por processos histórico-sociais e econômicos, permanecendo
em constante movimento. A relação geral do conceito “água” implica submetê-lo a
quatro características dos processos naturais: (a) é condição necessária para
processos naturais adicionais, a exemplo da chuva; (b) existe em diferentes
formas, estados - líquido, sólido e gasoso ou vaporoso; (c) passa por um constante
ciclo que mantém seu fluxo natural; (d) exerce um papel social determinado por
aspectos histórico-culturais, políticos e econômicos. Giest e Lompscher (2003)
afirmam que as descobertas precisam surgir das investigações dos alunos e para
isso a atividade de aprendizagem se faz necessária.
Com o objetivo de incentivar as descobertas nas investigações dos alunos
pela atividade de estudo, no experimento didático, colocou-se em foco, no plano de
ensino, o conceito, o núcleo do conceito e o problema de aprendizagem:
− Conceito “água”: elemento natural constitutivo da vida na Terra, vegetal,
animal e, em especial, dos homens em suas relações sociais.
− Núcleo
do
conceito
“água”:
substância
componente
da
natureza
indispensável à vida social.
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− Problema de aprendizagem: por que estamos vivenciando uma situação de falta
de água em nossa cidade? O que pode acontecer se a água não mais existir?
O experimento didático procurou desenvolver a metodologia do duplo
movimento no ensino, dentro da abordagem do ensino radical-local de
Hedegaard e Chaiklin (2005), por meio de três categorias que se determinaram
dialeticamente: o contexto sociocultural e institucional e seus impactos na
aprendizagem e desenvolvimento dos alunos; a atividade pedagógica da
professora e a atividade de aprendizagem dos alunos. Estas categorias foram
desenvolvidas e analisadas considerando a escola, a sala de aula e a relação
social entre professora e alunos, mediante o procedimento das tarefas de
estudo e ações didáticas (DAVYDOV, 1988b, 1988c).
Em seguida exporemos dois episódios4 destacados do experimento didáticoformativo em que se verificou a inter-relação entre o contexto sociocultural e
institucional e a atividade de estudo dos alunos por meio da tarefa de estudo no
desenvolvimento da ação didática que enfatizava a aprendizagem do núcleo do
conceito “água”, pelo ciclo da água e seus usos sociais, no ensino de ciências.
Episódio da 1ª ação didática: “transformação dos dados da tarefa com a
finalidade de descobrir a relação universal do objeto, que deverá ser refletida no
correspondente conceito teórico” (DAVYDOV, 1988b, p. 174). Os alunos foram
colocados em grupos para realizarem a tarefa; solicitamos que lessem e
discutissem um texto curto, adaptado da lição do livro didático, sobre o ciclo da
água e o seu uso social. Na exposição intergrupos, percebemos que as observações
sobre o assunto não versavam sobre o conteúdo do texto e sim sobre o que já
sabiam a respeito da necessidade da água para a vida e os usos que as pessoas
fazem dela: “a água é muito importante para a vida das pessoas”; “as pessoas
usam água para fazer tudo o que precisam”.
Os episódios de ensino não se definem por um conjunto de ações lineares, porém “são momentos que
evidenciam os traços importantes, as múltiplas determinações e as relações essenciais que possibilitam a
compreensão do fenômeno para além de sua aparência imediata”. (ZOCOLER e SFORNI, 2019, p. 210).
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Prosseguindo com da tarefa, projetamos um vídeo: “Evian Water Boy”. A
música do vídeo era “We Will Rock You”, da Banda Queen, interpretada por voz de
criança, em língua inglesa, mas sem legenda. A história tratava da saga de uma
gotinha de água que representava o movimento de transformação da água na
natureza e no meio social. As peripécias da gotinha evidenciavam que no processo
natural de transformações pelas quais passava, ao mesmo tempo em que se
modificava, a água permanecia o elemento natural água. As crianças pediram que o
vídeo fosse reproduzido mais duas vezes. Aproveitando a motivação que havia sido
gerada, os grupos foram orientados a lerem outro texto curto para, em seguida
relacioná-lo oralmente com figuras coloridas distribuídas entre eles que evocavam
imagens do ciclo da água, dos usos sociais e do desperdício da água pelas pessoas.
Mediante a leitura, a reflexão com base nas figuras, a discussão grupal e intergrupal,
os alunos deveriam fundamentar a atividade exploratória e a solução do seguinte
problema de estudo: se a água é um recurso que se renova, por que falta água?
Dentre os cinco grupos, três apresentaram depoimentos interessantes que
indicaram a formação de ações mentais na direção da descoberta da relação geral: “Eu
não sabia que o ciclo da água é a renovação da água que acontece todo dia em todo
lugar da Terra” (Aluna 2 - Grupo 1). “A renovação da água acontece quando a água da
chuva vem da nuvem, cai no rio e vira rio, depois o rio mistura com o mar. Eu vi a
chuva cair no rio lá no sítio do meu avô” (Aluna 1- Grupo 1). “As pessoas não sabem
como é difícil a renovação da água, então desperdiçam e aí falta água como está
acontecendo na minha casa. Eu acho que é preciso conscientizar as pessoas” (Aluna 5 Grupo 3). “A água de beber também é renovação, mas passou pela filtragem dos
homens na Saneago (Saneamento de Goiás)” (Aluno 15 - Grupo 4).
Na perspectiva dos procedimentos didáticos do duplo movimento no ensino,
para se chegar a estes resultados, foram necessários procedimentos investigativos
aproximados aos dos cientistas como a leitura, a discussão, a busca em novas
fontes como outras leituras, uso da linguagem imagética do vídeo, emprego de
figuras e o trabalho colaborativo. Houve a realização de ações de ensino que
refletissem em mudança na aprendizagem dos alunos e o incentivo à participação,
comunicação e cooperação entre eles que embasaram a formação de motivos para a
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cognição. Constatamos que as práticas socioculturais e institucionais que alicerçam
a aprendizagem de conceitos e as relações sociais estabelecidas pelos alunos na
escola puderam ser percebidas em alguns depoimentos: uma aluna atribuiu
sentido ao conceito de renovação da água com o que ela pôde presenciar no sítio do
avô; outra relacionou o desconhecimento do complexo processo de renovação da
água com o seu desperdício pelas pessoas, remeteu à escassez de água e usou como
exemplo a sua própria casa; vimos o interessante depoimento do aluno que
discerniu o conceito de renovação natural da água do conceito de filtragem da água
pela ação do trabalho de pessoas na empresa Saneamento de Goiás. Por fim, foi
possível conferir que houve duas descobertas importantes feitas pelos alunos: a
combinação do conceito de renovação com o ciclo da água como um movimento na
Terra e a necessidade de uma forma de conscientização das pessoas sobre o
desperdício de água ligada ao conhecimento do ciclo da água.
Episódio da 2ª ação didática: modelação da relação universal (DAVYDOV,
1988b). Os alunos assistiram a um vídeo: “Juca Pingo D’água” em que uma
criança era impedida de ir para a escola porque havia faltado água em sua casa e
adjacências. Do ponto de vista sociocultural, a história assistida foi conectada ao
problema de aprendizagem: “como podemos relacionar a experiência vivenciada
pela criança do vídeo com a falta de água em nossas casas?” No início, as
respostas foram emitidas no nível do conhecimento cotidiano: “não podemos
tomar banho; não podemos vir para a escola”. Posteriormente, os alunos foram
colocados em atividade conjunta e receberam duas sugestões de modelo de
relações conceituais para formularem o seu próprio modelo e problematizarem
motivos que poderiam gerar a escassez de água nos bairros em que residiam.
Após orientação, uso de material de apoio, leitura de textos curtos,
realização de atividade exploratória intermediada por questões-problema,
discussão grupal e intergrupal, em dois grupos surgiram questões importantes.
Por exemplo, em relação ao ciclo da água, um grupo respondeu que “no tempo da
seca não tem água suficiente debaixo da terra para subir e pressionar as nuvens
com o vapor para poder chover, quando chove é porque já vai começar outro ciclo
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da água” (Aluno 8 - Grupo 4). Em outro momento, em que eram abordados os usos
sociais da água, outro grupo afirmou que “quando na época da seca falta água,
alguns bairros a prefeitura tinha de atender com aqueles caminhões de água que
passa na televisão” (Aluna 5 - Grupo 3).
Por meio da comunicação, colaboração e interação entre os colegas, esses
grupos haviam conseguido formular reflexões que indicaram: 1) o entendimento de
que há interferência do período seco no movimento do ciclo da água e a percepção de
que a chuva é um processo natural de retomada do ciclo hidrológico; 2) a
compreensão de que deve haver responsabilidade social com a escassez de água em
bairros da cidade. O grupo identificou que havia escassez de água nos locais em que
a maioria de alunos residia e apresentou uma solução em relação ao problema.
Examinando o procedimento metodológico geral da teoria do ensino
desenvolvimental de Davydov, que se organiza de modo não linear pela reflexão,
a análise e o plano interior das ações, afirmamos, por meio desses episódios, que a
participação dos alunos no grupo e os motivos para a cognição gerados por meio
de perguntas, respostas e problematizações que os fizeram pensar, levaram esses
alunos a formarem ações mentais, e eles puderam fazer uma transição do
pensamento abstrato ao pensamento concreto na direção da formação da relação
geral do conceito “água” ou núcleo do conceito. A metodologia do duplo movimento
no ensino, ao valorizar o conhecimento cotidiano e local na aprendizagem do
conhecimento escolar, favoreceu o alcance da formação de relações conceituais.
6 Considerações Finais
Tendo como referências a teoria do ensino desenvolvimental de Davydov
(1988a, 1988b, 1988c) e os estudos de Hedegaard e Chaiklin (2005) e Chaiklin e
Hedegaard (2013) sobre a metodologia do duplo movimento no ensino, foi relatada
uma metodologia de ensino de ciências nos anos iniciais do Ensino Fundamental
posta em prática por meio de experimento didático-formativo. No experimento, foi
enfatizada a formação do pensamento teórico na atividade de estudo, em
articulação com práticas socioculturais, buscando explicitar como alunos dos anos
iniciais do Ensino Fundamental podem aprender conceitos no ensino de ciências,
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desenvolvendo ações de estudo e participando de tarefas de solução de problemas
que propiciam sua transformação e desenvolvimento psíquico.
A conquista de uma forma teórica de pensar não é tarefa simples, mas fruto
de um trabalho lógico-psicológico, dialético e investigativo do conhecimento.
Vygotsky e Davydov compreenderam que o patrimônio histórico e cultural
acumulado pela humanidade na Filosofia, na Ciência e nas Artes ao ser ensinado
na escola, poderia contribuir para o desenvolvimento humano por meio da
capacidade de pensar teoricamente desde o início da idade escolar. Foi este o
desafio posto pela abordagem do ensino radical-local de Mariane Hedegaard e Seth
Chaiklin na proposição da metodologia do duplo movimento no ensino. Neste texto,
pretendemos ter articulado a proposta desses autores com a teoria do ensino
desenvolvimental de Davydov e a teoria histórico-cultural de Vygotsky, para
realçar nossa compreensão da atividade de estudo desenvolvida no experimento
didático-formativo. Em síntese, a formação do pensamento teórico nas crianças
terá de destacar as atividades de descoberta e investigação dos conceitos
científicos, a partir da valorização de conteúdos cotidianos e locais, assim como as
práticas institucionais e socioculturais em que essas crianças estão inseridas.
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Recebido em dezembro 2020.
Aprovado em fevereiro 2021.
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