ARTIGOS
Psicologia & Sociedade, 29: e132334
LEVEL UP! DESENVOLVIMENTO COGNITIVO, APRENDIZAGEM
ENATIVA E VIDEOGAMES
LeveL UP! eL deSarroLLo cognitivo, eL aPrendizaje enactiva
y LoS videojUegoS
LeveL UP! cognitive deveLoPment, enactive Learning and
videogameS
http://dx.doi.org/10.1590/1807-0310/2017v29132334
Carlos Baum e Cleci Maraschin
Universidade Federal do rio grande do Sul, Porto alegre/rS, Brasil
RESUMO
Os videogames são frequentemente acusados de serem prejudiciais à saúde. Sua operatividade colocaria o
jogador em uma série de rotinas irracionais, muito próximas a uma relação estímulo-resposta. Sugerimos que
tal posição limita as possibilidades de relação entre o videogame e a aprendizagem e está baseada em uma
imagem teleológica do desenvolvimento da cognição que toma o aprender como uma caminhada em direção à
racionalidade lógica. O presente artigo parte da descrição do aprendizado de um dos autores analisada a partir
da retórica procedural com um jogo eletrônico para propor um modo de compreender a ação com o videogame,
que convoca a uma constante recomposição do sujeito que joga e do jogo. A teoria da enação, por sua vez,
apresenta proposições que sustentam uma modalidade de conhecimento operativo e incorporado, mais próximo
da experiência com os videogames.
Palavras-chave: cognição; videogame; enação; jogos eletrônicos; aprendizagem.
RESUMEN
Los videojuegos son a menudo acusados de ser perjudicial para la salud. Su operatividad poner al jugador en una
serie de rutinas irracionales, muy cerca de una relación estímulo-respuesta. Sugerimos que tal posición limita
las posibilidades de relación entre el juego y el aprendizaje y se basa en una imagen teleológica del desarrollo
de la cognición que se necesita para aprender a caminar hacia la racionalidad lógica. Este artículo es parte de la
descripción de aprendizaje de uno de los autores analizados de la retórica procedimental con un juego electrónico
para proponer una forma de entender la acción con el juego, lo que exige una constante recomposición del
sujeto y jugar el juego. La teoría de la promulgación, a su vez, presenta proposiciones que soportan un modo de
funcionamiento y el conocimiento corporativo, más cerca de la experiencia con los videojuegos.
Palabras clave: cognición; video juego; enaction; juegos electrónicos; el aprendizaje.
ABSTRACT
Video games are often accused of being harmful to health. Its operability would place the player in a series
of mindless routines, very close to a stimulus-response relationship. We suggest that such position limits the
possibilities of relationship between videogames and learning and is based on a teleological picture of cognition
that takes the learning as a walk toward the logical rationality. This article begins with the description of the
learning of one of the authors with an electronic game analyzed from the procedural rhetoric perspective. We
propose a way of understanding the action with the videogames that demands a constant rearrangement of the
subject playing and the game. The theory of enaction, in turn, presents propositions that support a modality of
knowledge operational embodied nearer from experience with videogames.
Keywords: cognition; video game; enaction; electronic games; learning.
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Baum, C. & Maraschin, C. (2017). Level up! Desenvolvimento cognitivo, aprendizagem enativa e videogames.
Introdução
Dois tipos de crítica dominam o senso comum
em relação aos videogames. A primeira se refere
a uma aparente natureza violenta dos jogos, e
ataca títulos específicos como doom (Id Software;
Activision (FIRM), 2003), gta (Rockstar Games,
2005) e counter-Strike (Ritual Entertainment (FIRM),
2003). A preocupação central de tal crítica é o suposto
comportamento que emerge da interação com imagens
brutais. A maioria dos estudos, entretanto, não mostra
nenhuma relação da interação com videogames e o
comportamento pós-jogo (Gee, 2007; Newman, 2004;
2008).
Existe um segundo tipo de crítica que, ao invés
de focar em um jogo em particular, trata o videogame
como uma massa disforme. Nessa abordagem,
os jogos eletrônicos aparecem como tecnológica
e experiencialmente idênticos (Newman, 2008),
figurando ora como sintoma, ora como causa de um
declínio cultural e educacional (Newman, 2008;
Squire, 2008).
Esse ponto de vista pode ser observado em uma
declaração de Charles, Príncipe de Gales:
Uma das grandes batalhas que enfrentamos hoje é
afastar nossas crianças dos jogos de computador na
direção do que só pode ser descrito como livros que
valem a pena … Nenhum de nós pode subestimar a
importância dos livros numa era dominada por telas
de computador e o desejo constante de gratificação
imediata (“Prince battlesvideo games”, 2001).
É possível perceber uma posição análoga na
fala do atual prefeito de Londres que torna as escolas
não só incompatíveis com a tecnologia, mas também
impotentes frente ao avanço dos jogos digitais:
Exigimos que os professores forneçam a nossas
crianças capacidade para a leitura; esperamos que
as escolas as preencham com amor aos livros; ainda
assim em casa as deixamos prostradas em frente aos
consoles. Continuamos com nossa vida hedonística
do século 21, enquanto uma outra sala pisca e brilha
com garotinhos em um êxtase sem palavras, seus
rostos passivos lavados em horror e sangue. Eles se
sentam por tanto tempo que suas almas parecem ter
sido sugadas para dentro do tubo de raios catódicos.
Elas se tornam como lagartos piscando, imóveis,
absorvidas, apenas o movimento das suas mãos
mostrando que ainda estão conscientes. Estas
máquinas não lhes ensinam nada. Elas não
estimulam nenhum raciocínio, descoberta ou
façanha de memória - embora algumas delas possam
astuciosamente fingir ser educativas. (Johnson,
2006; tradução nossa)
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Os videogames, reconhecidos por sua
interatividade, são acusados de reduzirem seus
jogadores a uma passividade alienante. A ideia do
jogador absorvido remete à imagem do obsessivo
ou do viciado (Suzuki, Matias, Silva, & Oliveira,
2009). Ao não dirigir a crítica a nenhum jogo em
particular, os críticos livram-se da tirania do detalhe e
da precisão, encontram-se, assim, livres para discutir
os jogos eletrônicos como um grupo homogêneo de
experiências que se desenvolvem ao redor da destruição
exacerbada de inimigos e colocam os jogadores em um
estado sonolento, em um transe quase “zumbi”. Aqui,
o problema não é exatamente a destruição, os barulhos
ou as luzes piscantes. O fato de o jogador matar
alguém em um ambiente virtual é menos importante
do que vê-lo engajado em uma atividade que toma
todo o seu ser, mas que não oferece nenhum benefício.
Os videogames tornam-se um todo indiferenciado que
ameaça sistematicamente a saúde mental dos jovens
através de produtos irremediavelmente malignos, sem
rosto e sem nome (Newman, 2008).
Tal abordagem obscurece e limita as possibilidades
de relacionar os videogames com a aprendizagem1,
tornando a jogabilidade uma série de rotinas irracionais,
muito próximas de uma relação estímulo-resposta de tipo
pavloviano. O que impulsiona essa abordagem é a ideia
de um desenvolvimento teleológico da cognição, que
aponta para uma compreensão do aprender como uma
caminhada na direção de uma estrutura lógico-formal.
No presente artigo, recorremos a uma
compressão enativa da aprendizagem que considera
a diversidade de possibilidades de acoplamentos com
os videogames. A partir da descrição do processo de
jogar, do primeiro autor deste texto, com um jogo
eletrônico busca-se visualizar o modo como a ação
com o videogame, longe de ser automática, convoca
uma constante recomposição do sujeito que joga e do
próprio jogo. Embora entendida como uma abordagem
global da cognição, a perspectiva enativa mostra uma
visão da aprendizagem que coloca em evidência a
participação do corpo. Nela, ovideogame se mostra
como um campo de fácil evidência. Traçamos esse
percurso na expectativa de apresentar o processo de
jogar videogame como uma aprendizagem inventiva,
contribuindo para a construção de conhecimento sobre
o tema de forma implicada, a partir da experiência de
um observador inserido.
Metodologia2
Com
o
objetivo
de
mapear
esses
acoplamentos3, exploramos a experiência de jogar
defenseoftheancients (DotA), um jogo online
Psicologia & Sociedade, 29: e132334
multiplayer de arena de combate. O cenário do game
foi criado com base no jogo de estratégia em tempo
real Warcraft iii (BlizzardEntertainment (Firm),
2002), inspirado, por sua vez, no mapa de outro
jogo, Starcraft (BlizzardEntertainment (Firm), 1998),
chamado aeonofStrife. No jogo DotA, cada equipe
com até cinco jogadores deve destruir uma estrutura
adversária chamada ancient. Cada uma dessas
estruturas se localiza em pontos opostos do mapa.
Os jogadores controlam personagens chamados de
“heróis” e são auxiliados por aliados controlados por
inteligência artificial, denominados creepers. Ao longo
das partidas, os jogadores melhoram seus personagens,
adquirindo novas habilidades e usam moedas de ouro
para comprar diferentes equipamentos.
O trabalho foi escrito a partir do diário de
campo registrando 32 partidas disputadas, totalizando
aproximadamente 80 horas de jogo. Abordamos
a experiência de jogar através do conceito de
Retórica Procedural (Bogost, 2008), que considera
os videogames como sistemas que, por meio do seu
conjunto de regras, criam modelos processuais que
abrem espaços para diferentes conjuntos de ações.
As regras criam simultaneamente o que é possível e
impossível na experiência do jogo, assim como dão
sentido a essa experiência. As imagens, os símbolos e o
combate descrevem apenas parcialmente a capacidade
expressiva do jogo. O significado se constrói mediante
a manipulação dos símbolos disponibilizados ao
jogador e das regras que regem o jogo. Encontramos
o significado de um jogo explorando as possibilidades
no próprio jogar, privilegiando as regras e interrogando
a narrativa e o discurso visual à medida que eles se
articulam a tal sistema de regras.
Contudo, nos aproximamos de Voorhees (2009)
que, ao contrário de compreender o processo totalmente
contido no interior da máquina, cujo papel do jogador
seria apenas disparar ou executar o que as regras definem;
tomamos o processo de um modo amplo, envolvendo
operações maquínicas, protocolos de software e ação do
jogador. Analisamos o jogo destacando a relação entre
a performance do jogador com os demais elementos do
jogo, compreendendo o jogo não somente como uma
coautoria entre designers, escritores e programadores,
mas fundamentalmente com o jogador. Esse jogo só
opera como jogo enquanto jogado.
Compreendemos a interação com os jogos
eletrônicos como de experiência projetada (Squire,
2006), como ambientes construídos que permitem
diferentes modos de exploração e de efeitos,
dependendo das ações do jogador. “Game designers
‘escrevem’ os parâmetros para a experiência dos
jogadores, e a experiência do jogo como tal é melhor
descrita como uma interação do game designer com o
jogador” (Squire, 2006, p. 21).
Os designers do jogo criam mundos imersivos
com regras embutidas e relações entre objetos que
permitem experiências dinâmicas. O jogo não é uma
reprodução em escala 1:1 da realidade, nem necessita
de verossimilhança, ele é a criação de um mundo
experiencial. O jogo utiliza elementos estéticos para
que o jogador consiga identificar os elementos que
constituem o desafio/problema e, a partir disso, possa
elaborar estratégias de solução.
Essa organização serve, em termos gerais, para
criar uma atmosfera que encoraje a performance
do jogador, a competitividade ou a colaboração, de
acordo com cada caso. As regras definem as condições
de possibilidade da experiência, sem determinar cada
um dos comportamentos esperados. Os designers do
jogo criam um campo de possíveis, mas, em última
instância, são os jogadores que decidem quais ações
serão realizadas.
Se jogos são ‘espaços de possibilidade’, então
pesquisadores precisam considerar como jogadores
habitam eles e os mecanismos pelos quais
significados são interpretados dessas experiências.
Para educadores criando jogos, isso muda a questão
de ‘passar conteúdo’ para ‘projetar experiências’.
(Squire, 2006, p. 20)
Com isso, não tomamos por elemento de análise
imagens ou símbolos do jogo, nem mesmo o conteúdo da
fala de outros jogadores, mas a experiência de participar
de uma disputa de DotA. É importante destacar que
a escrita do presente textoé feita a quatro mãos e
que o engajamento dos dois autores não é simétrico.
Ainda assim, ambos compartilham a experiência de
problematizar as formas de atualização da cognição.
Como este texto se constrói justamente no ponto de
encontro entre a experiência e o questionamento teórico,
optamos, inspirados por Alvarez e Passos (2010), por
não respeitar a regra acadêmica de uniformização
da pessoa narrativa. Com isso, ora escreveremos no
plural, problematizando a experiência, ora no singular,
recorrendo à experiência de jogar de um dos autores.
Por fim, as imagens, símbolos e falas, não parecem aqui
remetidos a outro sistema simbólico que lhes dá sentido,
mas exercem a função de compor a experiência do
jogador e são evocados ao longo do trabalho na medida
em que fazem fazer ou pensar.
Do progresso à deriva
A postura mais comum no que tange ao
aprendizado e ao conhecimento descreve a relação
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Baum, C. & Maraschin, C. (2017). Level up! Desenvolvimento cognitivo, aprendizagem enativa e videogames.
entre ambos como a capacidade de armazenar
(apreender) uma quantidade de informação, de modo
geral associada a domínios intelectuais ou acadêmicos,
como literatura, história ou física. Essa atividade
é geralmente desempenhada dentro dos muros da
escola. A demonstração de conhecimento se dá pela
capacidade de reproduzir corretamente tal informação.
Esse modelo de compreensão pode ser facilmente
relacionadoà dispersão das tecnologias ligadasà lógica
escrita e aos temas da acumulação e da racionalização
do conhecimento. Nesse cenário, o saber aparece
como uma imagem estática à qual podemos recorrer
quando for necessário. O trabalho da aprendizagem
seria imprimir internamente essa informação, tal como
a prensa imprime as letras no papel. Do mesmo modo,
os conhecimentos que ganham valor são aqueles que
se apoiam na leitura e na representação escrita. A
noção de procedimento analítico baseado na lógica,
por exemplo, só é comum em culturas que possuem a
escrita como tecnologia, pois é o repouso das palavras
no papel que permite a comparação e a percepção de
contradições. O mesmo pode ser dito sobre outros
desempenhos cognitivos considerados de “ordem
superior”, como a categorização por classe de palavras
e o silogismo (Levy, 2004).
As teorias cognitivas tratam o problema
das transformações da cognição sob a lógica do
desenvolvimento. Este, por sua vez, encontra-se
intimamente vinculado com a ideia de evolução, que
organiza a transformação das formas em linhagens, por
elos de filiação e descendência. A passagem do tempo
responde, desse modo, pela construção das estruturas
cognitivas numa dada ordem. Criança e adulto são
distintos por sua estrutura cognitiva específica na qual
o modo adulto se apresenta como horizonte possível
e definitivo ao desenvolvimento da cognição infantil.
Esse modo de comparação entre criança e adulto deixa
entrever a ideia de progresso, uma vez que a forma de
conhecer da criança passa a ser entendida a partir de
estágios menos desenvolvidos. Busca-se saber o que
falta à criança para que possa compreender como um
adulto.
O problema da transformação temporal da
cognição é posto a partir de um plano cartesiano
onde uma primeira linha é horizontal e diz respeito à
consideração de sua ocorrência no curso de um tempo
sequencial, e a segunda é vertical, referindo-se a uma
ordem de sucessão marcada pelo progresso (Kastrup,
2000). As estruturas cognitivas derivam, assim, umas
das outras, por filiação progressiva, estando então
todas relacionadasa estruturas lógico-matemáticas.
Poderíamos utilizar o exemplo da questão piagetiana4:
como alguém pode pensar como um cientista? De
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maneira que todas as formas de conhecer aparecem
como preparação para operações lógico-formais, elas
são consideradas então pré-lógicas, evidenciando
desequilíbrios a serem ultrapassados.
Desenvolver-se é, nesse cenário, superar
desequilíbrios, toda a transformação da cognição
é pensada com base noprogresso e de uma maior
capacidade de previsibilidade. Todavia, a meta é um
conjunto de proposições relacionadas ao acoplamento
com a escrita, como a capacidade de aplicar raciocínio
lógico a todas as classes de problemas. Não estamos
propondo que a marcha até uma operatividade lógicoformal não exista, o que sugerimos éque esse modo de
configuração cognitiva seria dependente de um certo
modo de associar tecnologias (como a da escrita) e
instituições (como a escola). O que o presente artigo
propõe é que estudar os videogames pode abrir a
questão para outras marchas cognitivas possíveis,
associadas a distintas tecnologias e práticas.
Jogar videogame envolve operar com um
conjunto de símbolos e padrões distintos da escrita que
podem eventualmente ser confundidos com gráficos
sem sentido. Ao mesmo tempo, os jogos digitais
privilegiam um conhecimento funcional em vez de um
conhecimento declarativo, causando, frequentemente,
a impressão de que não há aprendizado algum para
além de um refinamento da coordenação sensóriomotora.
De acordo com a Biologia do Conhecer, podemos
pensar o conhecimento – e, logo, a aprendizagem – não
como uma representação de informações do mundo,
mas como uma performance corporal. Ao executar um
cálculo matemático, não estamos apenas recuperando
as informações que possuímos armazenadas sobre a
matemática, mas operando-a e transformando aquilo
que sabemos. Nessa perspectiva, a aprendizagem é
pensada como um movimento de problematização,
de bifurcação do conhecer. Com isso, a dissociação
entre conhecimento declarativo e conhecimento
funcional torna-se pouco valiosa, assim, seria mais útil
pensarmos qual a organização que permite a expressão
de um determinado desempenho cognitivo (Maturana
& Varela, 2004).
A mudança estrutural, na teoria de Maturana
e Varela (2004), é pensada como deriva natural. Tal
concepção difere das teorias desenvolvimentistas,
principalmente, pela ausência de uma teleonomia. O
desenvolvimento cognitivo não se dá na direção de
um uso optimizado da mente, mas está submetido
à manutenção da autopoiese5 e é determinada
pelo histórico de acoplamentos que o sujeito foi
capaz de estabelecer. Na interação com o meio,
uma perturbação localizada dispara uma mudança
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estrutural global que conduz a uma compensação. A
recorrência da pertubação e da compensação pode
estabelecer um tipo de compatibilidade ou adaptação
entre o organismo e o meio. Tal efeito, contudo, não
éoptimizante, mas uma composição possível, ou
satisfatória, de funcionamento. O acoplamento resulta
das transformações mútuas que meio e organismo
sofrem no decorrer de suas interações.
conjunto dos acoplamentos disponíveis. É claro que o
pensar acoplado com a instituição acadêmica produz
um funcionamento que reconhecemos como científico,
porém, outros acoplamentos convocam regras diversas
de funcionamento. A segunda metade de nosso artigo
descreve o processo de aprendizagem de um dos
autores para que possamos refletir sobre a construção
desse acoplamento com o jogo.
Essa concepção de transformação pode ser
vislumbrada em uma analogia sugerida pelos autores
cuja clareza compensa a longa referência:
incorporando a ação
Imaginemos uma colina de cume agudo. Figuremos
que a partir desse pico jogamos encosta abaixo gotas
d’água, sempre na mesma direção, embora pela
mecânica do lançamento haja variações no seu modo
de cair. Imaginemos, por fim, que as gotas lançadas
deixem uma trilha sobre o terreno que constitui a
marca de sua descida.
Como é evidente, se repetirmos muitas vezes nosso
experimento, teremos resultados ligeiramente
diversos. Algumas gotas descerão diretamente para
a direção escolhida; outras encontrarão obstáculos,
que contornarão de maneiras diversas por causa de
suas pequenas diferenças de peso e impulso, e se
desviarão para um lado e para o outro; talvez haja
leves mudanças nas correntes de vento, que levem
outras por caminhos muito sinuosos, ou que as façam
distanciar-se bem mais da direção inicial. E assim
indefinidamente. (Maturana &Varela, 2004, p. 121)
Do acoplamento entre formas individuadas com
diferenças do mundo material surgem estabilizações
ou diversificações. No entanto, taltransformação se
dá por caminhos múltiplos e divergentes, em deriva,
sujeito a bifurcações diante de obstáculos. Esse feito
de acoplamento é,com o meio, uma composição ou
um coengendramento, e não uma acomodação. É
uma viabilização de continuidade,muito mais que um
aperfeiçoamento do uso (Kastrup, 1999). Desse modo,
pensar o processo cognitivo como uma marcha em
direção ao conhecimento lógico-formal seria tomar um
dos caminhos possíveis como se fosse o único.
Aprender não significa exclusivamente um
processo de acumulação de representações de um
meio independente. Mas um contínuo processo de
transformação de si e do mundo através de uma mudança
contínua na capacidade cognitiva de viver-fazer
com ele. A ação de lembrar não depende da retenção
indefinida de uma invariante estrutural que representa
uma entidade, como uma ideia ou um símbolo, mas a
capacidade funcional do sistema de criar, quando as
condições recorrentes são dadas, uma ação satisfatória
(Maturana & Varela, 1980). Não se trata mais somente
de pensar como um cientista, mas pensar com um
depois da instalação e configurações necessárias,
dou início ao meu primeiro jogo … Seleciono um
personagem aleatoriamente, entre as mais de cem
opções, ominiknighté o nome.
vejo meu personagem próximo a uma fonte azul,
cercado por outros personagens de jogadores do meu
time. Um som que se assemelha a um berrante marca o
início da partida. a partir de cliques no botão esquerdo
do mouse, meu personagem se desloca pelo cenário;
sigo pela direita, caminho que segue na horizontal.
o caminho é cercado por árvores e não muito largo,
aproximadamente 20% da tela. Passo por duas torres
aliadas, elas parecem grandes árvores com braços.
chego a uma curva, percorri toda a largura do cenário,
e começo a subir, mais uma torre aliada.
Quando me aproximo de um rio percebo um bando
de pequenas criaturas (os creeps) descendo em
direção ao meu campo. começo a atacá-los, minha
energia (uma barra verde sobre minha cabeça) cai
rapidamente. vejo um dos jogadores oponentes. ele
me ataca e me mata quase instantaneamente.
alguns segundos sem jogar e estou de volta à fonte,
faço o mesmo caminho. dessa vez, um pouco antes do
ponto onde morri, há uma massa indistinta de creeps
aliados e oponentes atacando uns aos outros. não
consigo diferenciá-los, então uso o cursor do mouse:
quando o mouse está sobre um deles, a respectiva
barra de energia é mostrada, uma barra verde para os
aliados, uma vermelha para os inimigos. o processo,
contudo, demora alguns segundos, e me matam de
novo.
volto para a fonte, percorro o caminho, massa de
criaturas, morte. esse processo é tão rápido que por
volta de cinco minutos de jogo já havia morrido várias
vezes. tantas que meu time decide encerrar a partida.
(Diário de campo, fev. de 2012)
O conceito de experiência planejada (Squire,
2006; 2011) nos permite descrever os jogos digitais,
entendendo-os mais como um contexto de atuação do
que como um roteiro a ser seguido. Diferentes de outras
experiências audiovisuais, o aprendizado do videogame
se dá de modo ativo, de forma diversa àquela dos
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Baum, C. & Maraschin, C. (2017). Level up! Desenvolvimento cognitivo, aprendizagem enativa e videogames.
filmes e programas de televisão. Apesar de já ter jogado
diversos jogos, observado algumas partidas, assistido
alguns vídeos de DotA e conversado sobre o jogo, essas
experiências pouco serviram ao jogador.
A situação remonta à célebre pesquisa em que
gatos divididos em dois grupos são criados com
exposição à luz controlada. Ao primeiro grupo era
permitido mover-se normalmente, entretanto cada
um deles carregava uma espécie de carroça com
um animal do segundo grupo. Ainda que expostos à
mesma experiência visual, algumas semanas depois,
quando foram libertos, os animais do segundo grupo
comportavam-se como se fossem cegos, esbarravam
contra objetos e caíam repetidamente (Varela,
Thompson, & Rosch, 2001).
Ambas as situações deixam claro que a
compreensão (e capacidade para ação) não se dá pela
extração visual de características do meio, sugerindo
que a cognição deve ser entendida como uma ação
corporalizada. Ou seja, na qual os processos sensóriomotores são inseparáveis da cognição vivida e a
própria experiência surge de um corpo com esses
processos. A ação não serve apenas para “calibrar” a
visão ou destituir ambigüidades, mas, ao contrário, as
ações corpóreas e visuais constroem-se mutuamente.
motoras adquiridas e do estabelecimento desse fundo
consensual acerca do modo de funcionamento de um
ambiente. Tal domínio não é nem subjetivo, ou seja,
não pertence a um sujeito em particular; tampouco é
objetivo, independente do sujeito (Winograd & Flores,
1986). Isso se explica facilmente quando relembramos
que o estado atual do organismo especifica o
domínio de perturbações. O sujeito não existe em
um espaço externo independente dele. O histórico
de acoplamentos gera um espaço continuamente
mutante de perturbações que selecionarão seus estados
(Maturana & Varela, 2004), tal como podemos ver em
uma entrada dez dias depois no diário de campo:
ainda escolho os personagens de forma aleatória,
mais pela imagem do que pelo que ele é capaz de
fazer. agora, porém, consigo jogar. aprendi que não
posso avançar em relação aos meus creeps. Sigo
a primeira onda até que ela se choque com a onda
inimiga. já consigo distinguir com mais clareza
os amigos dos inimigos, mesmo enquanto estão se
enfrentando. movo o mouse esperando encontrar
aquele com pouca energia. assim que acho, ataco-o.
Percebi que desferir o último golpe dá mais XP e
dinheiro. com essa estratégia básica, permaneço vivo
por mais tempo. ainda assim, sempre que encontro
um herói inimigo, sou morto quase instantaneamente.
aos vinte minutos, meu time parece estar ganhando,
já destruímos uma torre inimiga; um jogador diz “ah,
o Lion [eu / meu personagem] ainda não tem item”.
isso me diz que estou atrasado no jogo. Que já deveria
ter comprado itens. não sei onde se compram os itens,
nem quais existem, nem pra que servem. decido que,
antes de jogar novamente, tenho que ler sobre os
itens, onde e quais comprar e sobre os personagens,
para tomar uma decisão melhor. (Diário de campo,
março de 2012)
Na abordagem da enação, a percepção é uma
ação guiada perceptualmente, isto é, não se trata
do processamento de informações de um mundo
preestabelecido. Ao contrário, a questão é como o
sujeito perceptor guia suas ações numa situação local.
Uma vez que essa situação se altera constantemente
como resultado da atividade do sujeito que percebe,
o problema que se evidencia é: como a ação pode ser
guiada perceptualmente num mundo que depende da
ação do sujeito? O sujeito não pode ser considerado
um receptáculo dos estímulos externos; tampouco
afirmamos que as ações do sujeito e do meio se
encontram simplesmente misturadas, tais interações
constituem um acoplamento. A compreensão do
ambiente é inventada pelo conjunto de perturbações
que o organismo é capaz de compensar, tornando
organismo e meio ligados por especificação recíproca,
ou acoplamento estrutural. Ambos, sujeito e meio
associado, fabricam-se conjuntamente como enação.
É possível perceber na descrição que as formas
distinguidas emergem de um fundo processual,
mas continuam imersas nele, e redefinem-se
constantemente. E é através da ação-interação que é
possível perceber as configurações de transformações
do mundo. O conhecimento resulta da relação que se
produz no meio do caminho entre sujeito e objeto, um
ponto de indiferenciação e não de intercâmbio entre
duas formas dadas (Kastrup, 1999).
Nessa perspectiva, o conhecimento é o resultado
de uma contínua interpretação que emerge, ou se
destaca, de um fundo ou campo de entendimento,
esse, por sua vez, enraizado nas estruturas de nossa
corporalidade biológica, mas vivido e experienciado
dentro de um domínio de ações consensuais. Todas as
ações, incluindo aqui a fala, são realizadas em relação
a esse domínio, e só ganham sentido em relação a ele.
O êxito de uma ação depende, assim, de competências
O videogame não expõe simplesmente o jogador
a imagens que podem conter representações de ações
ou coisas. O jogador treina para modificar suas ações
diante das perturbações provocadas pelas operações do
jogo - que se traduzem em imagens na tela - e estas,
por sua vez, se reconfiguram em relação a tais ações.
A observação pode, de fato, ter efeitos sobre a ação do
jogador, mas a recorrência da ação transforma o campo
de observação.
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Quando comparamos o primeiro e o segundo
registro do diário de campo, podemos notar um
aumento da permanência, uma transformação da
compreensão dos símbolos e das regras. Os creeps
aliados e inimigos ficaram visualmente mais claros e
sua função mais definida,o que resultou em uma maior
clareza do papel do jogador durante a partida. Se no
princípio ele se lançava em direção ao campo inimigo,
procurando avançar o máximo possível, percebeu
que a melhor estratégia era seguir os creeps (que não
são controlados por nenhum jogador) e usá-los como
escudo, atacando apenas quando fosse vantajoso.
Esse efeito remete a uma pesquisa na qual os
sujeitos foram convidados a usar continuamente
óculos especiais com lentes que invertiam a imagem
do olho esquerdo para o olho direito (Kholer, 1964).
Tais óculos foram projetados de modo que a luz que
normalmente atinge o campo visual direito atingisse,
com a mesma inclinação, o campo visual esquerdo. O
objetivo original do pesquisador era investigar o tempo
de adaptação necessário para que o usuário agisse
normalmente com a imagem invertida. Sua hipótese
supunha que seria mais difícil para os participantes
cumprir tarefas cotidianas, já que tudo se pareceria
como se visto através de um espelho.
Os resultados, todavia, foram bem mais
imprevisíveis. Nos primeiros momentos de adaptação,
quando os sujeitos tentavam fixar um ponto, qualquer
movimento da cabeça provocava transformações
inesperadas nos objetos de seu campo visual. Formas
anteriormente familiares pareciam dissolver-se e
reintegrar-se de modos nunca antes vistos. Por vezes,
partes de figuras misturavam-se com o espaço e
desapareciam. Os participantes descreviam sentiremse enganados pelas distorções da imagem, ou serem
pegos de surpresa, quando, por exemplo, uma parede
parecia inclinar-se sobre a rua. Ou ainda, quando
um caminhão que era acompanhado com o olhar,
começava a dobrar-se e a própria estrada curvava-se
como uma onda (Kholer, 1964). Mais do que ver o
mundo de forma invertida, os sujeitos de Kohler foram
transportados para um espaço surreal. Com algum
tempo de uso dos óculos, o mundo começava a retomar
a forma conhecida e só então, em uma segunda fase,
podia ser visto como invertido.
O que a experiência com o videogame e a de
Kholer sugerem conjuntamente é que a percepção não é
auxiliada por nossa ação no mundo, mas construída por
ela, por nosso corpo e por nossas capacidades sensóriomotoras. Construímos ativamente as características do
mundo no qual vivemos e construímos nosso plano
a partir delas, o que nos permite falar da percepção
como uma ação.
Apesar da ênfase no saber-fazer, não significa
que jogar videogame descarte um saber-sobre, ou
seja, a reflexão lógico-proposicional. Essa prática,
no entanto, é mais comum no espaço entre partidas
(Squire, 2011). Se observarmos o transcorrer de
diversas partidas, podemos reconhecer um processo
de construção de hipóteses, definição de estratégias
de teste, reteste e reconsideração (Gee, 2007). Quando
eu nada sabia do jogo, simplesmente avancei clicando
com pouca preocupação, explorando o cenário. Após
várias derrotas em diversas partidas, percebi que vivia
por mais tempo quando ficava atrás da minha onda de
creeps. Essa hipótese se provou válida, o que fez com
que eu repensasse minha ação no jogo. Na verdade,
o próprio jogo se transformou para mim e começou a
durar mais. Com mais tempo, foi possível entrar em
contato com outros elementos, como a necessidade
de comprar itens; e essa transformação se segue
insistentemente.
A excelência em um jogo consiste em transformar
o saber-sobre em um saber-fazer adquirindo um corpo
capaz de uma ação efetiva em seu meio associado.
Isso possibilita entender intuitivamente os padrões
emergentes sem pensar neles, enfrentando desafios
constantes e monitorando as informações recebidas. O
que não significa dizer que se trata de uma ação sem
pensamento, visto que o pensamento foi incorporado à
própria ação, podendo agora ser enagido. A atividade
de jogar privilegia aquilo que o jogador é efetivamente
capaz de fazer, o conhecimento relevante é aquele
incorporado e performático. A repetição permite que
o jogador perceba os padrões que emergem da ação
e desenvolva as habilidades motoras necessárias
(Squire, 2005). Novamente, insistimos que isso não
implica ausência de reflexão ou impossibilidade de
o aprendizado ser parcialmente transformado em
descrições, opiniões e direcionamentos para outros
jogadores. De fato, muitos jogadores escrevem
milhares de walkthroughs, muitos deles com centenas
de páginas para orientar jogadores menos experientes.
Eles estão enraizados na cultura gamer, o que não
significa uma imersão somente no ato de jogar. Em
certo momento escrevi em meu diário de campo:
“já possuo uma ‘metodologia de trabalho’. Leio o
guia sobre o personagem. jogo contra os bots para
conhecer as habilidades. depois jogo um jogo de
verdade. Por fim, volto ao guia para reler coisas que
eventualmente tenha esquecido”. (Diário de campo,
março de 2012)
A leitura dos referidos textos, porém, não
faz sentido algum, a menos que o leitor já tenha
experienciado o jogo por algum tempo. Isso porque os
textos associados a jogos são construídos com base em
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Baum, C. & Maraschin, C. (2017). Level up! Desenvolvimento cognitivo, aprendizagem enativa e videogames.
uma epistemologia funcional (Squire, 2008), ou seja,
tudo é descrito em referência às ações possíveis no
jogo.
É importante notar que não é a leitura das
fórmulas e das regras que garante o sucesso no jogo. Na
verdade, tal leitura não é nem sequer obrigatória. Isso
porque a centralidade do sentido no videogame não é
um saber-sobre desconectado de um saber-fazer. Os
desempenhos de um jogador ganham significado através
da realização, essa sempre local e histórica. Os jogos
convocam um saber-fazer no qual ação-percepçãoreflexão encontram-se ligadas em ato. Esse ato não
é desconectado do contexto e da história corpórea e
não pode ser tratado como um resíduo que deve ser
progressivamente eliminado a favor de regras mais
sofisticadas e passíveis de generalização. Ele deve ser
tomado “como a própria essência da cognição criativa”
(Varela et al., 2001). Nessa última sessão, descrevemos
com mais precisão o desenvolvimento desse saberfazer e sua relação com o processo inventivo.
ação incorporada
joguei com os goblinstech’s. depois de ter aprendido
a função de cada magia, consegui pensar numa
estratégia. Plantava um campo de minas e atraía um
inimigo. era difícil acompanhar a energia do inimigo
pra saber se valia a pena atacar ou fugir. mas meu
aprendizado ficou mais claro. Comprar itens fez
toda a diferença. Porém, demorei muitos minutos
procurando os itens e fiquei numa desvantagem
muito grande contra meu oponente. a partida durou
cerca de meia hora. meu time venceu. ainda não
consigo acompanhar estratégias de time. acho difícil
lembrar da tecla de atalho de cada habilidade de meu
personagem, mas pelo ritmo que o jogo segue, me
parece que não há outro jeito de vencer. consegui,
porém, vencer alguns combates individuais, o que
deixou o jogo mais divertido. (Diário de campo, abril
de 2012).
Percebemos mais claramente como cada
símbolo que aparece na tela e cada habilidade que
aprendemos estão interconectados com tudo mais
que aprendemos e fazemos no jogo. Podemos, então,
compreender o jogo como um sistema ao invés de
um conjunto discreto de perícias (Gee, 2004). Por
exemplo, se esconder atrás dos aliados, identificar o
mais frágil, atacar, usar o dinheiro para comprar itens,
plantar bombas e atrair o oponente é um conjunto
integrado de desempenhos. O avanço só é possível
se o jogador conseguir interpretar os elementos
dispostos no cenário. Essa interpretação, contudo, só
pode ser feita através da compreensão do campo de
possibilidades de ação do personagem e de como tais
ações interagem com o espaço do jogo.
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Enquanto jogava com os goblins, precisava
simultaneamente acompanhar a posição e os
movimentos de seus oponentes por meio de mapa,
identificar quais habilidades podiam ser utilizadas
a cada situação e ser capaz de julgar a ordem de
prioridades adequada para utilizá-las. O que para um
espectador, em um primeiro momento, poderia parecer
somente uma cena de ação violenta que requer do
jogador uma disposição agressiva, se mostra uma ação
cognitiva complexa que exige constante classificação,
ordenação e configuração de ações coordenadas com a
disposição do sistema (Squire, 2005).
Os sons e as animações são sinais da condição
do jogo que precisam ser usados constantemente
para organizar a ação do jogador. Para alguém
não familiarizado, esses diversos sinais podem
ser incompreensíveis ou podem mesmo nem ser
reconhecidos como sinais que precisam de atenção.
Observar um sujeito enquanto joga, especialmente
jogos com muita ação, pode parecer uma tentativa
frenética de esmagar os botões do controle ou as teclas
do computador. Mas o que ocorre é, na verdade, uma
sofisticada prática que envolve o reconhecimento de
sinais e padrões. Tal refinamento de conhecimento é
alcançado através da interação de quatro processos
(Squire, 2005):
(a) aprender a “ler” o jogo como um sistema
semiótico, (b) aprendendo, dominando e entendendo
os efeitos e a gama de movimentos possíveis, (c)
entendendo a hierarquia de interação dessas regras
e (d) monitoramento e reflexão contínuos sobre os
objetivos e subobjetivos. (p. 8)
Por exemplo, para derrotar um oponente, o
jogador deve compreender o que é importante no
espaço do jogo. Para isso, precisa relacionar seus
movimentos com os do oponente e ajustar os objetivos
de acordo com cada momento. Jogadores experientes
veem as animações como sinais da situação do jogo que
são interpretados para determinar o curso da ação. Essa
experiência não pode ser totalmente transformada em
conhecimento declarativo e, se o for, deve conservar-se
como ato, isto é, incorporar o conhecimento declarativo
para performar o ato. Assim como na prática de um
instrumento, a experiência desempenha um importante
papel para se acomodar ao tempo dos eventos e perceber
os padrões de interação das variáveis. Jogadores mais
experientes, ao guiar os iniciantes, reduzem suas
explicações a: “Você sentirá o tempo do movimento
depois de vê-lo algumas vezes, assim como o som que
ele faz” (Baum & Maraschin, 2011).
A visão do jogador é, então, moldada pela
significância estratégica dos sinais e de sua ação no
mundo, de modo que as distinções e atribuições de
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significado emergem de padrões sensório-motores
recorrentes que permitem que a ação seja guiada
pela percepção em um determinado domínio. É
preciso construir uma sintonia com os movimentos
e possibilidades do jogo e, a partir disso, coordenar
os movimentos. Não basta que conheçamos os
movimentos possíveis através de uma descrição,
é necessário, ao longo do jogo, construir uma
competência corporal que gradualmente inclua as
possibilidades do avatar e as disposições do cenário,
alargando a percepção do jogador, que capta aspectos
cada vez mais finos e variáveis que vão tomando parte
na composição do seu campo cognitivo. É preciso que
o jogador permita que o personagem o habite ou, nas
palavras de Gee (2007), que se torne um híbrido com
o personagem. Essa multiplicação e esse refinamento
dos traços percebidos recorrem ao campo inventivo
da cognição, que passa a atualizar-se na criação de
soluções locais e inéditas.
Essa é uma disposição para a invenção na qual
é possível:
Entrar na espessura do problema é ... tocá-lo de
maneira não representativa, é problematizar-se
com ele ... A invenção depende, portanto, de uma
abertura para um campo de multiplicidades ou,
antes, para o que existe de diferencial no objeto,
para o que não foi codificado na representação.
(Kastrup, 1999, p. 80)
Apesar de não ser o caso de DotA, uma
característica muito importante nos videogames é,
justamente, impedir que o jogador torne rotineiro o uso
do aprendizado, pois a cada vez que uma solução foi
construída, um novo conjunto de problemas emerge,
mantendo o jogo sempre no limiar da competência
do jogador. Se, eventualmente, os desafios tornam-se
muito fáceis, o jogador fica entediado; se muito difíceis,
ele fica frustrado. Os game designers se utilizam de
diversas técnicas para construir uma sensação que pode
ser descrita como “difícil, mas justo” (Gee, 2009).
O que se produz nessa aprendizagem não é uma
repetição mecânica, mas uma atividade criadora que
elimina o determinismo do objeto. Aprende aquele
que cria permanentemente na relação, reinventandose também de maneira incessante. A cada partida
com os goblins, o campo de possibilidades do
jogador expandia-se, ele aprendia mais sobre seu
funcionamento e inventava novos usos para suas
habilidades. Os funcionamentos e as habilidades do
personagem ficavam cada vez mais definidos, o que
permitia uma constantemente redefinição do jogador.
Por isso é importante distinguir automatismo de ato
performático.
Não aprende melhor aquele que toca uma música
sempre da mesma forma, mas aquele que é capaz de
interpretá-la, aquele que, em suas repetições, é capaz
de um maior número de variações. E é justamente aí
que reside o lugar da repetição na aprendizagem, ela
serve para corporificar o conhecimento, incorporando
a análise e a representação como ato. Repetir não é
criar automatismos, hábitos mecânicos. A repetição
tem a função de produzir uma intimidade com o objeto,
até encarná-lo (Kastrup, 2008). Encarnar, enatuar,
distingue-se de introjetar, pois não existem interações
instrutivas. A aprendizagem resulta de uma mudança
estrutural que se agencia na convivência, que altera o
corpo e o mundo no qual o corpo se acopla.
É preciso, então, que o jogador se engaje em
um incessante processo de invenção de critérios de
pertinência e o abandono de regras gerais em favor
de táticas locais e imediatas. Esse processo diminui,
gradualmente, o papel exercido pelas representações
conscientes, com a progressiva corporificação do
conhecimento, mais rápido e imediato, resultando
em uma fluidez de movimentos e sincronia com o
ambiente que se dá através de um acoplamento direto,
sem a mediação da consciência, correspondendo a uma
imersão cada vez maior no domínio cognitivo de quem
opera. Para usar as palavras de Kastrup (2000):
no momento em que o dispositivo se acopla com a
inteligência, esta é colocada em um processo de
virtualização, acionando processos de criação e de
diferenciação em seu interior. Ao final, o uso dos
dispositivos técnicos responde, nesse sentido, por um
processo de transformação da forma de funcionamento
da cognição. (p. 41)
Essa aprendizagem não se limita em transformar
a desatenção em atenção ou a semiconsciência em
apreciação. Diferentemente do automatismo, ela
ensina o corpo a ser afetado pela influência dos sinais
do jogo, que anteriormente atingiam o jogador, mas
não o faziam agir, não o tornavam atento. Qualquer
conjunto de símbolos produzia o mesmo efeito geral e
indiferenciado. Com o acoplamento, cada signo na tela
gera uma diferença no jogador, que vai gradualmente
se articulando com o jogo e aprende a ser afetado por
ele. É por meio de novas configurações de conduta que
novos objetos podem surgir para o jogador, e assim
se constituem, concomitantemente, um domínio de
distinções e um domínio de ações coordenadas.
Enquanto o jogador move as mãos, os olhos e a
boca, o computador computa ações. Ambos respondem
um à ação do outro, construindo, em conjunto, uma
espécie de “gramática da ação” (Galloway, 2006) na
qual a ação humana é codificada para que o computador
a receba na forma de metáforas cinestésicas. Uma
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Baum, C. & Maraschin, C. (2017). Level up! Desenvolvimento cognitivo, aprendizagem enativa e videogames.
gramática particular em que o controle, o teclado e
o mouse fornecem os principais vocabulários físicos
para a pantomima do jogador nessa gramática gestual.
Considerações finais
A recorrência de padrões sensório-motores
permite a emergência e transformações de estruturas
cognitivas. Essas, por sua vez, permitem que a ação
seja guiada perceptualmente (Varela et al., 2001). Tais
estruturas, no entanto, não obedecem a uma lógica
teleológica, nem se deslocam inexoravelmente para
a lógica matemática, mas atuam mediante categorias
muito básicas, principalmente através dos usos
que o objeto permite à mente e ao corpo do sujeito
percebedor.
Da transformação estrutural resulta um maior
número de situações e objetos discrimináveis e um
maior número de respostas apropriadas. Desse modo,
apreender um videogame corresponde à criação de
uma conduta inventiva, que produz simultaneamente
o próprio território onde ela se estabelece. Enquanto o
jogador aprende e executa novos movimentos, também
constrói uma narrativa imagética pelasdecisões que
toma. Contudo, isso só pode ser feito a partir de
uma prática concreta naquele domínio cognitivo que
emerge da interação jogo e jogador.
É importante notar que o protótipo do aluno em
uma aprendizagem inventiva não é aquele somente
capaz de solucionar problemas adequadamente.
Seria mais adequado compará-lo a um estudante
de música, que pode começar seu aprendizado por
meio de instruções simbólicas, mas que consuma
sua aprendizagem quando a relação simbólica é
transformada em acoplamento direto do corpo
com o instrumento, eliminando o intermediário da
representação. Aprender não significa se adequar ao
instrumento, mas agenciar-se com ele. O acoplamento
não implica subordinação ou hierarquia, tampouco
opera por causalidade, e sim por uma implicação
recíproca de fluxos heterogêneos, por uma dupla
captura, resultando na diferenciação de todas as linhas
envolvidas (Kastrup, 2008).
Assim como aprender uma língua, a alfabetização
não se encerra na capacidade de decodificar as palavras
(como ler), mas espera-se também que o aprendiz
compreenda um certo conjunto de práticas e seja capaz
de produzir (como escrever) nesse meio. No caso dos
videogames, tais habilidades se encontram fortemente
interligadas: é sua própria prática que pode levar à
configuração de objetos diversos. Novas distinções
levam o jogador a construir outras questões no jogo,
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expandindo constantemente o domínio interativo e os
problemas possíveis dentro de um jogo. Assim, existe
uma experimentação de como a ação é produtora
de objetos. Podemos dizer que nos jogos temos
ferramentas para experimentar como a ação leva à
imagem num circuito de reciprocidade que produz
sentido.
Notas
1
2
3
4
5
Newman (2008) vai muito mais fundo em suas críticas e
descreve uma associação na mídia inglesa do videogame
com a junkfood e à competitividade capitalística, tornando
os jogos digitais supostamente nocivos para a mente, o
corpo e todo o conjunto da sociedade.
Artigo elaborado a partir da dissertação Baum, C. sobre
Video Games e Cognição Inventiva. Dissertação de
Mestrado, Programa de Pós-graduação em Psicologia
Social e Institucional, Universidade Federal do Rio Grande
do Sul, Porto Alegre, 2012.
Para Maturana e Varela (2004), acoplamentos estruturais
são o resultado de uma série de interações do organismo
vivo e seu meio criando uma estabilidade ou recorrência
entre as perturbações do meio e as respostas apresentadas
pelo organismo.
Embora não exista um consenso sobre o pertencimento
de Jean Piaget ao movimento cognitivo com teóricos
argumentando contra (Gardner, 1995; Miller, 2003) e a
favor (Astington & Olson, 1995); utilizamo-nos de sua
questão clássica como forma de ilustrar o problema do
tempo como evolução.
Autopoiese é o processo através do qual toda a unidade
viva produz seus elementos e distingue-se do meio
simultaneamente. É o processo pelo qual Maturana e Varela
(2004) distinguem os seres vivos dos não vivos.
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Submissão em: 22/03/2014
Revisão em: 16/09/2014
Aceite em: 24/02/2015
carlos Baum é psicólogo, doutor em Psicologia Social
e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande
do Sul (UFRGS) Professor de Psicologia do Instituto
Evangélico Novo Hamburgo.
Endereço: PPG Psicologia. UFRGS. Rua Ramiro
Barcelos, 2600. Santa Cecilia. Porto Alegre/RS. Brasil.
CEP 90035-003.
E-mail: baum.psico@gmail.com
cleci maraschin é professora associada do Depto. de
Psicologia Social e Institucional da UFRGS. Docente e
orientadora dos PPGs de Psicologia Social e Informática na
Educação. Pesquisadora CNPq. Coordenadora do Núcleo
de Ecologias e Políticas Cognitivas - NUCOGS.
E-mail: cleci.maraschin@gmail.com
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