Nuntius Antiquus, Belo Horizonte, v. 13, n. 1, p. 279-292, 2017
Retratos de heteras? Arquíloco de Paros, Fr. 30, 31, 33 IEG
Images of Hetairai? Archilochus of Paros Fr. 30, 31, 33 IEG
Paula da Cunha Correa
Universidade de São Paulo, São Paulo, São Paulo / Brasil
correa@usp.br
Resumo: Neste estudo são comentados os fragmentos 30, 31, 33 IEG
de Arquíloco e a sua fortuna crítica. Os fragmentos 30 e 31 IEG foram
reunidos por Bergk (1882,4 1915) em um só poema, e nisso vários
editores e comentadores o seguiram. Tal junção será discutida, assim
como as imagens que suscitaram interpretações distintas e, às vezes,
diametralmente opostas: alguns leram os versos em chave “romântica”
como uma comovente descrição da jovem Neobula, “noiva” do poeta;
ao passo que outros, desde Liebel (1812, 1818),2 supõem que o mirto e a
rosa (Fr. 30 IEG) tivessem conotações eróticas. Mais recentemente, Della
Corte (1940, p. 94, nota 3) e Lavagnini (1947, p. 102-103)3 sugeriram
que a descrição do sujeito nestes versos pode ter sido influenciada pelas
kórai da estatuária arcaica.
Palavras-chave: Arquíloco; Poesia Grega Arcaica; Jambos; Heteras
Abstract: This paper presents comments on fragments 30, 31, and 33
IEG of Archilochus, and their critical fortune. Fragments 30 and 31 IEG
were united in a single poem by Bergk (1882, 1915), in which he was
followed by many editors and critics. This joining of the fragments will be
discussed, as well as the images that gave rise to different, and sometimes
entirely opposite, interpretations: some read the verses “romantically” as
a moving description of the young Neoboule, the poet’s “fiancée”; while
others, since Liebel (1812, 1818), suppose the myrtle and rose (Fr. 30
eISSN: 1983-3636
DOI: 10.17851/1983-3636.13.1.279-292
280
Nuntius Antiquus, Belo Horizonte, v. 13, n. 1, p. 279-292, 2017
IEG) may bear erotic connotations. More recently, Della Corte (1940, p.
94, n.3) and Lavagnini (1947, p. 102-103) suggested that the description
in these verses might have been influenced by Archaic statues (kórai).
Keywords: Archilochus; Archaic Greek Poetry; Iambi; hetairai.
Recebido em: 31 de maio de 2017.
Aprovado em: 9 de junho de 2017.
Fr. 30: Pseudo-Amônio (de adfin. vocab. diff. 431, p. 111
Nickau)1 ῥόδον καὶ ῥοδωνιὰ καὶ ῥοδῆ διαφέρει. ῥόδον μὲν γὰρ
τὸ ἄνθος, ῥοδωνιὰ δὲ ὁ τόπος, ῥοδῆ δὲ τὸ φυτόν. Ἀρχίλοχος·
ἔχουσα θαλλὸν μυρσίνης2 ἐτέρπετο3
ῥοδῆς4 τε καλὸν ἄνθος.5
ródon, rodōniá e rodê diferem. Pois ródon (“rosa”) é a flor, rodōniá
(“roseiral”), o local, e rodê (“roseira”), a planta. Arquíloco:
com um talo de mirto alegrava-se
e, da roseira, a bela flor.
Fr. 31: Sinésio (laudatio calvitii 11 p. 75b, Op. p. 211.12 Terzaghi)
οὐκοῦν ἅπαντες οἴονταί τε καὶ λέγουσιν αὐτοφυὲς εἶναι σκιάδειον
τὴν κόμην· καὶ ὁ κάλλιστος ποιητῶν Ἀρχίλοχος ἐπαινέσας αὐτήν,
ἐπαινεῖ μὲν οὖσαν ἐν ἑταίρας σώματι, λέγει δὲ οὕτως·
Trata-se de um léxico de sinônimos ou homônimos tardios, atribuído a Amônio
(sucessor de Aristarco em Alexandria), mas era “provavelmente um léxico composto
por Herênio Filo”, início do séc. II a.C. (DICKEY, 2007, p. 94-96).
2
μυρσίνης Pseudo-Amônio (de adfin. vocab. diff. 431, p. 111 Nickau). A forma ática
μυρρίνης encontra-se no Escólio a Teócrito (4. 45, p. 147. 12 Wendel) e no Etimológico
Magno (s.v. θαλλόν, θάλλω); μυρίνης Etimológico Genuíno AB.
3
ἐτέρπετο Pseudo-Amônio (de adfin. vocab. diff. 431, p. 111 Nickau), Escólio a Teócrito
(4. 45, p. 147. 12 Wendel).
4
ῥοδέης Schneidewin (1838),Tarditi (1968).
5
Cf. Ateneu (Deipn. 52f), Panfilo (fr. I Schm.), Hesíquio (iv p. lxi), Herodiano (Lenz
i. 321.25), Eustácio (in Hom. p. 1963.48).
1
Nuntius Antiquus, Belo Horizonte, v. 13, n. 1, p. 279-292, 2017
281
ἡ δέ οἱ6 κόμη
ὤμους κατεσκίαζε7 καὶ μετάφρενα.
Portanto, todos julgam e dizem ser o cabelo um sombreiro
natural. O melhor dentre os poetas, Arquíloco, quando louva o
cabelo, louva-o no corpo de uma hetera dizendo assim:
e (mas?) seu cabelo
sombreava ombros e dorso.
Bergk (1882,4 1915) foi o primeiro a reunir esses dois fragmentos
(Fr. 30 e 31 IEG) em um só texto e, depois dele, todos os editores8 (e vários
comentadores)9 seguiram a sua sugestão, ou publicaram os versos em
fragmentos distintos, porém consecutivos, indicando como provável ou
possível tal junção.10 Os três versos assim reunidos comporiam, segundo
o editor, uma comovente descrição da jovem Neobula, “noiva” do poeta:11
ἔχουσα θαλλὸν μυρσίνης ἐτέρπετο
ῥοδῆς τε καλὸν ἄνθος. ἡ δέ οἱ κόμη
ὤμους κατεσκίαζε καὶ μετάφρενα.
Alegrava-se com um talo de mirto
e a bela flor da roseira. Seu cabelo
sombreava ombros e dorso.
δέ ϝοι, como em Homero. Cf. Arquíloco (Fr. 43.1 IEG).
κατεσκίαζε corr. Bentley; κατασκίαζει Sinésio.
8
Fick (1886; 1888), Hiller (1890), Hoffmann (1898), Diehl (1926;1 1936;2 19523),
Edmonds (1931), Lasserre (1950, Lasserre e Bonnard, 1968), Adrados (1956-1976,
19903), Treu (1959), West (1993).
9
Hauvette (1905), Fränkel (1975, p. 144), Campbell (1982, p. 148), Burnett (1983,
p. 81, nota 16).
10
Schneidewin (1838), Tarditi (1968), West (1971;1 19892), Gentili e Catenacci (2007,
p. 93-94).
11
Bergk, (1882,4 1915), Lasserre (1950, p. 151), Campbell (1983, p. 6).
6
7
282
Nuntius Antiquus, Belo Horizonte, v. 13, n. 1, p. 279-292, 2017
Há inclusive quem, antes ou depois de Bergk (1882,4 1915), não
reúna os versos, mas os associe com Neobula.12 O primeiro a se opor às
hipóteses de Bergk foi Costanza (1950), seguido por Marzullo (1957) e
Gerber (1970, p. 23).13 Em seu artigo, Costanza argumenta que as fontes
dos fragmentos são distintas e que não apenas a sua junção, assim como a
interpretação que supõe uma amorosa descrição de Neobula, são fantasiosas.
De fato, não há nexo necessário entre os versos, e Sinésio é explicito quanto
ao sujeito: trata-se de uma hetera. Para contornar tal evidência, alguns
sugeriram que Sinésio estivesse enganado14 ou que Arquíloco referia-se
a Neobula como se fosse uma cortesã, após o rompimento do acordo
nupcial.15 Um passo dos Amores de Pseudo-Luciano foi associado com
os fragmentos 30-31 IEG por alguns editores e comentadores a partir de
Bergk, contribuindo para a leitura romântica desses versos, pois julgavam
tratar-se de resumo prosaico do poema de Arquíloco:16
ἔναγχος γοῦν διηγουμένου σου τὸν πολὺν ὡς καὶ παρ᾿ Ἡσιόδῳ
κατάλογον ὧν ἀρχῆθεν ἠράσθης ἱλαραὶ μὲν τῶν ὀμμάτων αἱ
βολαὶ τακερῶς ἀνυγραίνοντο, τὴν φωνὴν δ᾿ ἴσην τῇ Λυκάμβου
θυγατρὶ λεπτὸν ἀφηδύνων ἀπ᾿ αὐτοῦ τοῦ σχήματος εὐθὺς δῆλος
ἦς οὐκ ἐκείνων μόνων ἀλλὰ καὶ τῆς ἐπ᾿ αὐτοῖς μνήμης ἐρῶν
(PSEUDO-LUCIANO, Amores 3 (iii. 86.24 Macleod), Fr. 33).
12
Liebel (1812, 18182) não reuniu os fragmentos e acreditava que, se fosse referência
a Neobula, tratava-se de um poema injurioso, já que “mulheres honestas não carregam
mirtos ou rosas”. Gaisford (1823) publicou os fragmentos distintamente, indicando,
porém, que o Fragmento 31 IEG poderia referir-se a Neobula. Para Schneidewin (1838),
o Fragmento 30 IEG faria parte de um epodo, enquanto o Fr. 31 IEG seria parte de um
poema em trímetros jâmbicos, “possivelmente uma ofensa a Neobula”.
13
Cf. Campbell (1982, p. 148): “caso Sinésio esteja correto, o poema não é sobre
Neobula”.
14
Lasserre e Bonnard (1958, p. 40), West (1971,1 19892: ἑταίρας v. ll. ἑτέρας, ἑτέρω.)
A edição de Brunck (1785) apenas inclui o Fragmento 30 IEG.
15
Hauvette (1905, p. 196), Adrados (1990,3 p. 54, nota 3): o poeta recorda-se de Neobula
“antes da perdição”. Cf. Rankin (1977, p. 67: “not likely Neobula, unless she is depicted
as a prostitute”) e Burnett (1983, p. 81: “a girl who was now common property had
once seemed as unstained as any pre-Raphaelite maid”).
16
Diehl (1926,1 1936,2 19523). Cf. Wilamowitz (1924, p. 271), que transforma a prosa
de Pseudo-Luciano em dísticos elegíacos. Constanza (1950, p. 159), porém, prefere
associar o fr. 48 ao 30 e ao 31 IEG, cf. infra.
Nuntius Antiquus, Belo Horizonte, v. 13, n. 1, p. 279-292, 2017
283
Justo agora, quando narravas – como em Hesíodo – o vasto
catálogo de teus amores desde o início, os alegres lances dos
olhos languidamente derretiam e adoçavas a voz, delicada,
semelhante à da filha de Licambes, a partir de sua própria
maneira era evidente que não apenas as amavas, mas amavas
também a memória delas.
Constanza (1950, p. 159) assinala a presença do vocabulário
erótico na descrição de Pseudo-Luciano (bolaí, takerôs, anugraínonto,
aphēdýnōn). Mas Fränkel (1975, p. 144) observava que “não se deve
esperar, no período arcaico, poesia amorosa no sentido moderno: moças
desposáveis não recebiam serenatas. Se Arquíloco louva moças, essas
são sempre, presumivelmente, heteras”.
Nada indica tratar-se de uma “serenata”. Os versos, tanto os do
fragmento 30 IEG, quanto os do 31 IEG, fazem descrição em terceira
pessoa. Há elementos que nos indiquem que os versos têm por objetivo
louvar ou denegrir as moças ou mulheres que retrata? Sequer sabemos
se são duas ou uma só.
O fragmento 30 IEG foi preservado por Pseudo-Amônio em virtude
de rodê (“roseira”), um termo poético raro.17 Na poesia grega, o emprego
de imagens do mundo vegetal para a sexualidade feminina é um lugar
comum, assim como o corpo feminino é frequentemente associado com
paisagens férteis. No mito de Perséfone, é ao colher flores em um prado
que ela, a chamada de Kóre (“moça”, “virgem”) é raptada por Hades; o
colher flores sendo associado com a defloração da virgem e as bodas.
Conforme Pausânias (6. 24. 7), a rosa é uma flor sagrada a
Afrodite, como o mirto. Essas duas plantas são símbolos eróticos,
originalmente associados à fecundidade e fertilidade,18 e eram elas que
A palavra é atestada em Asclepíades de Mirlea (FGrH 697 F 4 em Ateneu 2. 50e),
Panfílio (em Ateneu 2.52f) e em Apolônio de Rodes (3.1020). Bossi (1990,2 p. 114)
nota a glosa de Hesíquio, ignorado por todos menos Diehl (addenda, 1a ed.): Hesíquio ρ
394 Schm. ῥοδή· αὐτὸ τὸ δένδρον.
18
Constanza (1950, p. 155m, n.4).
17
284
Nuntius Antiquus, Belo Horizonte, v. 13, n. 1, p. 279-292, 2017
“davam prazer” (etérpeto) à moça ou mulher em Arquíloco 30 IEG.19
Quanto ao mirto, ele “era de origem oriental, e, antes da rosa, fazia parte
do culto orientalizante de Astarte-Afrodite” (CONSTANZA,1950, p.
155, nota 3), nomes associados ao mirto sendo comuns para cortesãs.20
Ateneu (Deipn. 682d-f) cita o autor da Cípria e, no poema, há
um verso cuja formulação é próxima ao de Arquíloco:
ἀνθῶν δὲ στεφανωτικῶν μέμηται ὁ μὲν τὰ Κύπρια ἔπη
πεποιηκὼς Ἡγησίας ἢ Στασῖνος <ἢ καὶ Κυπρίας>· Δημοδάμας
γὰρ ὁ Ἁλικαρνασσεὺς ἢ Μιλήσιος ἐν τῶι περὶ Ἁλικαρνασσοῦ
(FGrHist 428 F 1) Κυπρία Ἁλικαρνασσέως αὐτὰ εἶναί φησι
ποιήματα. λέγει δ᾿ οὖν ὅστις ἐστὶν ὁ ποιήσας αὐτὰ ἐν τῶι α΄
οὑτωσί· (Cípria Fr. 5 W).
εἵματα μὲν χροῒ ἕστο, τά οἱ Χάριτές τε καὶ Ὧραι
ποίησαν καὶ ἔβαψαν ἐν ἄνθεσιν εἰαρινοῖσιν
ὅσσα φέρουσ᾿ ὧραι, ἔν τε κρόκωι ἔν θ᾿ ὑακίνθωι
ἔν τε ἴωι θαλέθοντι ῥόδου τ᾿ ἐνὶ ἄνθεϊ καλῶι
ἡδέϊ νεκταρέωι ἔν τ᾿ ἀμβροσίαις καλύκεσσιν
†ἄνθεσι ναρκίσσου καλλιρρόου δ᾿ οια† Ἀφροδίτη
ὥραις παντοίαις τεθυωμένα εἵματα ἕστο.
O poeta da Cípria, Hegesia ou Stasino <ou Cípria>, menciona
flores de guirlandas, pois Demodama de Halicarnasso ou
Mileto, em obra sobre Halicarnasso, diz ser poema de Cípria de
Halicarnasso. Quem quer que seja o autor, diz assim no Livro 1:
Vestia sobre a pele vestes que as Graças e Horas lhe
[fizeram,
imergidas em flores primaveris,
quantas as estações trazem: em açafrão, jacinto,
violeta viçosa, e na bela flor da rosa,
Para a rosa e o mirto, sagradas a Afrodite, cf. Pausânias (6.24.7: ῥοδὸν μὲν καὶ μυρσίνη
Ἀφροδίτης τε ἱερὰ εἶναι καὶ οἰκεῖα τῶι ἐς Ἀδωνιν λόγωι), e Swift (2016, p. 257, n. 15)
cita ocorrências da rosa em cenários eróticos (locus amoenus: Hino Homérico a Deméter
6, Safo Fr. 2.6, 96.13 V) e associada a Afrodite ou a Eros (Cípria fr. 4, Íbico Fr. 288,
S257(a) fr. 1 PMGF, Baquílides 17.116, Anacreontea Fr. 6, 35, 44 e Eurípides, Med. 841).
20
Ateneu (Deipn. 13. 576f).
19
Nuntius Antiquus, Belo Horizonte, v. 13, n. 1, p. 279-292, 2017
285
doce, nectárea, e em botões ambrosíacos
do narciso em flor... assim Afrodite
vestia vestes que exalavam todas as estações.
Liebel (1812, 18182) foi o primeiro a sugerir que, em Arquíloco
Fr. 30 IEG, o fato de a moça segurar essas duas plantas emblemáticas
indica que não se trata de uma jovem virgem, mas de uma mulher
associada aos prazeres de Afrodite.21 De todo modo, a moça ou mulher
no fragmento 30 IEG “alegrava-se” (etérpeto). Que alegria é essa?22
Para quem aceita a união dos fragmentos 30 e 31 IEG, o sujeito
dos versos do fragmento 30 IEG, assim como no fragmento 31 IEG, seria
uma hetera. Um cenário verossímil para uma hetera é o banquete, que
era enfeitado com mirtos, e onde heteras tocavam o aulos, dançavam
e alegravam os convivas. Assim, uma leitura possível dos versos de
30 IEG é que eles descreviam uma hetera que “se alegrava” (etérpeto)
“com uma rosa e um talo de mirto nas mãos”. Mas se alegrava como? A
hetera poderia simplesmente alegrar-se por dançar com o mirto e a rosa
em mãos. Ou seria esse um trímetro jâmbico menos inocente em que a
hetera “alegrava-se” no sentido de ter prazer sexual, com o talo de mirto
e a rosa? Pois os poemas de erotismo mais explícito de Arquíloco são
compostos em trímetros jâmbicos (embora o corpus de poemas neste
metro não se restrinja a esse tema). Vale lembrar que a térpsis (termo
cognato a etérpeto), no Primeiro Epodo de Colônia, de Arquíloco (fr.
196ª.13 IEG), é um prazer sexual, e ainda há o fato de a rosa e o mirto,
na poesia grega, serem metáforas para órgãos sexuais.
Embora o termo thállos, traduzido aqui como “talo”, não seja
atestado por si só como metáfora para o órgão sexual masculino, nesse
sentido, Aristófanes emprega em Lisístrata (v. 735) amorgís (“haste de
malva”), e não é difícil imaginar um possível emprego metafórico de
thállos em Arquíloco, como o de órpaks (“broto”) em Safo 115 V:
Seguem-lhe Constanza (1950, p. 156) e Rankin (1977, p. 66).
Gerber (1970, p. 23) recorda um fragmento de Aléxis (Fr. 98.24 K), em que uma
hetera abre a boca “com um ramo de mirto” para aprender a sorrir.
21
22
286
Nuntius Antiquus, Belo Horizonte, v. 13, n. 1, p. 279-292, 2017
τίῳ σ᾿, ὦ φίλε γάμβρε, καλῶς ἐικάσδω;
ὄρπακι βραδίνῳ σε μάλιστ᾿ ἐικάσδω.
“Ao que de belo te comparo, ó caro noivo?
A um ramo esguio mais te comparo”23
O mirto é atestado como metáfora do órgão sexual feminino na
Lisístrata de Aristófanes (v. 1004) e no Platão cômico (188.12 KA), sendo
que alguns críticos interpretam o mirto presente no fragmento 32 IEG de
Arquíloco como uma metáfora para o órgão sexual feminino.24 Mas, na forma
neutra, murrínon (“mirto”), trata-se do pênis n’Os cavaleiros, de Aristófanes
(v. 964). A rosa, por sua vez, segundo Henderson (1991, p. 134-5), representa
pudenda muliebria em Ferécrates (113. 29) e Cratino (116.2 KA).
O fragmento 31 IEG de Arquíloco, transmitido de forma
independente por Sinésio em seu Elogio à calvice, descreve como o
cabelo da hetera faz sombra, “encobre” ombros e dorso.25 Swift (2016, p.
257, n. 13) lembra que a “sombra” ou os lugares “sombreados” ocorrem
em descrições de prados eróticos em Safo (Fr. 2.7 V), Íbico (286.5
PMGF), e na Teognideia (v. 1252), e que
Arquíloco inverte o lugar comum poético que
descreve a natureza em termos que evocam o erotismo
humano, pois, ao contrário, ele apresenta o corpo da
moça como representação da natureza, já que ela
providencia os aspectos de sombra e flores que são
gerados pela própria terra (SWIFT, 2016, p. 257).
Um paralelo para esse mesmo emprego do verbo skiázdo
(“sombrear”) encontra-se em Anacreonte (Fr. 347 PMG P. Oxy. 2322
Fr.1), poeta de meados do sexto século, sobre um rapaz:
23
Tradução de Giuliana Ragusa (2013).
Arquíloco (Fr. 32 IEG διὲξ τὸ μύρτον), em Gerber (1999) e Swift (2016, p. 257, nota 16).
25
Veja Marzullo (1957, p. 81; 1965, 67, p. 13) para metáphrena como “dorso”. A
combinação de “ombros e dorso” é convencional, encontrando-se na Odisseia (VIII,
528: μετάφρενον ἠδὲ καὶ ὤμους), Ilíada (II, 65: μετάφρενον ἠδὲ καὶ ὤμω): a ordem
inversa em Arquíloco deve-se à necessidade métrica. Veja kataskiáo em Homero
(Odisseia XII, 436), kateskíazde em Hesíodo (Teogonia, 716-7).
24
Nuntius Antiquus, Belo Horizonte, v. 13, n. 1, p. 279-292, 2017
5
287
καὶ κ[όμη]ς, ἥ τοι κατ᾿ ἁβρὸν
ἐσκία[ζ]εν αὐχένα·
νῦν δὲ δὴ σὺ μὲν στολοκρός,
ἡ δ᾿ ἐς αὐχμηρὰς πεσοῦσα
χεῖρας ἀθρόη μέλαιναν
ἐς κόνιν κατερρύη
τλημόν[ω]ς τομῆι σιδήρου
περιπεσο[ῦ]σ᾿·
...e do cabelo que sombreava teu
delicado pescoço;
mas agora tu estás calvo –
o cabelo, após cair aos chumaços em ásperas
mãos, rumo à negra
poeira escorreu,
desgraçadamente tendo encontrado
cortante lâmina de espada.26
Para rapazes e moças, o cabelo longo e solto possuía forte apelo
erótico, como nos testemunha também Semônides (Fr. 7. 57ss IEG) no
retrato de sua vaidosa mulher-potranca de crina longa:27
60
65
26
τὴν δ᾿ ἵππος ἁβρὴ χαιτέεσσ᾿ ἐγείνατο,
ἣ δούλι᾿ ἔργα καὶ δύην περιτρέπει,
κοὔτ᾿ ἂν μύλης ψαύσειεν, οὔτε κόσκινον
ἄρειεν, οὔτε κόπρον ἐξ οἴκου βάλοι,
οὔτε πρὸς ἰπνὸν ἀσβόλην ἀλεομένη
ἵζοιτ᾿. ἀνάγκῃ δ᾿ ἄνδρα ποιεῖται φίλον·
λοῦται δὲ πάσης ἡμέρης ἄπο ῥύπον
δίς, ἄλλοτε τρίς, καὶ μύροις ἀλείφεται,
αἰεὶ δὲ χαίτην ἐκτενισμένην φορεῖ
βαθεῖαν, ἀνθέμοισιν ἐσκιασμένην.
καλὸν μὲν ὦν θέημα τοιαύτη γυνὴ
Tradução de Giuliana Ragusa (2013).
Contanza (1950, p. 160) indica paralelos verbais entre esses versos e os de Arquíloco,
assinalando o que considera ser uma evidente influência de Arquíloco em Semônides.
27
288
Nuntius Antiquus, Belo Horizonte, v. 13, n. 1, p. 279-292, 2017
70
ἄλλοισι, τῷ δ᾿ ἔχοντι γίνεται κακόν,
ἢν μή τις ἢ τύραννος ἢ σκηπτοῦχος ᾖ,
ὅστις τοιούτοις θυμὸν ἀγλαΐζεται.
Outra, a caprichosa potranca fez:
tarefas e fadigas vis recusa.
Na mó não quer tocar, nem agitar
peneira, nem jogar dejetos fora,
nem quer ficar ao forno, evitando
breu; se interessar, faz do macho amigo.
Todos os dias lava o seu cascão
duas, três vezes; anda perfumada,
bem penteada, sempre traz a crina
comprida, com flores bem arrumada.
Essa mulher é um belo espetáculo
aos outros: ao marido é uma desgraça,
se não for mão-de-ferro ou sargentão
que disso bem no fundo tenha orgulho.28
Se em Arquíloco (Fr. 31 IEG) o cabelo “sombreava os ombros e o
dorso”, a leitura do verbo kateskíadze como “cobrir”29 – tendo em vista que
se trata de uma hetera, conforme observa Sinésio – pode sugerir que “os
ombros e o dorso” estivessem descobertos, total ou parcialmente, e não faltam
representações iconográficas de heteras nuas ou seminuas em simpósios.
Ao contrário da leitura dos versos como uma descrição de
uma hetera em atividades eróticas, Della Corte (1940, p. 94, nota 3) e
Lavagnini (1947,3 p. 102-103) associaram o gesto da moça que tem em
mãos uma rosa e um ramo de mirto, com cabelos soltos sobre ombros e
costas, e talvez sorrindo (pois é assim que interpretam o verbo etérpeto),
com as kórai da estatuária arcaica.30 A sugestão foi desenvolvida por
Constanza (1950, p. 156 ss), que cita as kórai encontradas em um recinto
sagrado (témenos) a Afrodite no Chipre: de pé, elas seguram uma flor ou
28
Tradução de Breno Sebastiani.
Cf. Marzullo (1965, 67, p. 12), Gerber (1970, p. 23, katà significa “completamente”).
Treu (1959) cita Ovídio (Met. 13.844: coma...umeros...obumbrat).
30
Veja também Rankin (1977, p. 123 n. 69).
29
Nuntius Antiquus, Belo Horizonte, v. 13, n. 1, p. 279-292, 2017
289
um pássaro contra o seio. Constanza (1950, p. 157) conclui que a moça
do fragmento 30 IEG de Arquíloco possuiria alguma relação com o culto
de Afrodite, entendendo “culto” no sentido mais amplo.31
As kórai são estatuas votivas, mas na maioria dos casos não é
claro se representam a deusa, uma sacerdotisa ou quem as oferece, e
eram dedicadas a várias divindades: Perséfone (a Kóre por excelência),
Ártemis, Hera, Atena, Deméter, Afrodite, e as ninfas (BOARDMAN,
1978, p. 24). Uma das kórai mais antigas é a de Nicandre. A estátua feita
em mármore pário data de c. 650 a.C. (sendo assim contemporânea de
Arquíloco) e foi encontrada no templo de Apolo em Delos. Esta kóre foi
dedicada a Ártemis por Nicandre, habitante de Naxos, a ilha mais próxima
à Páros de Arquíloco. Hoje, a kóre mais célebre é a de Phrasikleia, que
não é contemporânea a Arquíloco (pois data de c. 550 a.C.), mas é obra
de um conterrâneo do poeta, Ariston de Paros. É uma estátua funerária,
encontrada em ótimo estado de conservação ao lado de um kouros em
túmulo de cemitério de Mirrino na Ática. A kóre segura uma flor de lótus.32
A comparação do sujeito feminino em Arquíloco com as kórai
arcaicas é interessante. Pois é provável que o poeta conhecesse essas
estátuas e, embora seja difícil supor uma verdadeira ekphrásis nessa época,
resta a sugestão de que esse tipo na estatuária arcaica possa ter influenciado
o poeta na descrição de uma hetera.33 No entanto, embora a união dos
fragmentos produza um conjunto atraente, tal junção carece de provas
mais fortes, e a analogia com a estatuária arcaica apoia-se nessa hipótese.
Referências
ADRADOS, F. R. Líricos griegos I: elegiacos y yambógrafos arcaicos.
Barcelona: Alma Mater, 1956-1959.
Constanza (1950, p. 157, n. 1): “Alla parola culto bisogna dare um significato largo,
non limitandolo alle sole cerimonie rituale, ma estendendolo a tutte quelle pratiche
della vita pubblica e privata comunque collegate com la religione di uma divinità”.
32
A base da estátua traz a seguinte inscrição (IG I³ 1261 IG I³ 1260 IG I³ 1262 ):
“Túmulo de Phrasicleia. Serei sempre chamada de Kóre (= virgem); em vez de bodas,
tendo recebido dos deuses, por quinhão, esse nome. Aristion de Paros me fez”.
33
Cf. Swift (2016, p. 257).
31
290
Nuntius Antiquus, Belo Horizonte, v. 13, n. 1, p. 279-292, 2017
ADRADOS, F. R. Líricos griegos I: elegiacos y yambógrafos arcaicos.
3. ed., Madrid: Consejo Superior de Investigaciones Científicas, 1990.
BERGK, T. Poetae lyrici graeci. 4. ed. Leipzig: B. G. Teubner, 1915. v. II.
BOARDMAN, J. Greek Sculpture: the Archaic Period. A Handbook.
Nova Iorque; Oxford: Oxford University Press, 1978.
BOSSI, F. Studi su Archiloco. 2. ed. Bari: Adriatica, 1990.
BRUNCK, R. F. P. Analecta veterum poetarum graecorum. Estrasburgo:
Argentorati, 1772. v. I.
BURNETT, A. P. Three Archaic Poets: Archilochus, Alcaeus, Sappho.
Londres: Duckworth, 1983.
CAMPBELL, D. A. Greek Lyric Poetry: a Selection of Early Greek Lyric,
Elegiac and Iambic Poetry. 2. ed. Bristol: Bristol Classical Press, 1982.
CAMPBELL, D. A. The Golden Lyre: the Themes of the Greek Lyric
Poets. Londres: Duckworth, 1983.
CONSTANZA, S. Interpretazione del fr. 25 D di Archiloco. Univ. di
Messina Fac. di Lett. e Filos. v. 1, p. 151–61, 1950.
DELLA CORTE, F. Elegia e giambo in Archiloco. RFIC, v. 68, p. 90-8,
1940.
DICKEY, E. Ancient Greek Scholarship: a Guide to Finding, Reading,
and Understanding Scholia, Commentaries, Lexica and Grammatical
Treatises, from their Beginnings to the Byzantine Period. Londres; Nova
Iorque: Oxford University Press, 2007.
DIEHL, E. Anthologia lyrica graeca. Leipzig: B. G. Teubner: 1925.
DIEHL, E. Anthologia lyrica graeca. 2. ed. Leipzig: B. G. Teubner, 1936.
DIEHL, E. Anthologia lyrica graeca. 3. ed. Leipzig: B. G. Teubner, 1952.
EDMONDS, J. M. Greek Elegy and Iambus. Londres: Heinemann, 1931.
FICK, A. F. Die Sprachform der altionischen und altattischen Lyrik.
Beiträge zur Kunde der Indogermanischen Sprachen, v. 11, p. 242-72,
1886.
FICK, A. F. Die Sprachform der altionischen und altattischen Lyrik.
Beiträge zur Kunde der Indogermanischen Sprachen, v. 13, p. 173-221,
1888.
Nuntius Antiquus, Belo Horizonte, v. 13, n. 1, p. 279-292, 2017
291
FRÄNKEL, H. Early Greek Poetry and Philosophy: a History of Greek
Epic, Lyric, and Prose to the Middle of the Fifth Century. Translated by
M. Hadas e J. Willis. Oxford: Basil Blackwell, 1975.
GAISFORD, T. Poetae minores graeci. Leipzig: Kühn, 1823. v. I.
GENTILI, B.; CATENACCI, C. Polinnia: poesia greca arcaica. 3. ed.
Messina; Firenze: G. d’Anna Casa, 2007.
GERBER, D. E. Euterpe: An Anthology of Early Greek Lyric, Elegiac
and Iambic Poetry. Amsterdam: Adolf M. Hakkert, 1970.
GERBER, D. E. Greek Iambic Poetry From the Seventh to the Fifth
Centuries B.C. Cambridge, Mass.; Londres: Harvard University Press,
1999.
HAUVETTE, A. Archiloque, sa vie et ses poésies. Paris: Fontemoing,
1905.
HENDERSON, J. The Maculate Muse: Obscene Language in Attic
Comedy. 2. ed. Nova Iorque; Oxford: Oxford University Press, 1991.
HILLER, E. Anthologia lyrica graeca sive lyricorum graecorum veterum
praeter Pindarum. Leipzig: B. G. Teubner, 1890.
HOFFMANN, O. Die griechischen Dialekte in ihrem historischen
Zusammenhange (III): Der Ionische Dialekt. Göttingen: Vandenhoeck
& Ruprecht, 1898.
KURKE, L. Inventing the “Hetaira”: Sex, Politics, and Discursive
Conflict in Archaic Greece. Classical Antiquity, Califórnia, v. 16, n.1, p.
106-150, 1997. DOI: https://doi.org/10.2307/25011056.
LASSERRE, F. Les épodes d’ Archiloque. Paris: Belles Lettres, 1950.
LASSERRE, F.; BONNARD, A. Archiloque: Fragments. Paris: Belles
Lettres, 1958.
LAVAGNINI, B. Aglaia. Nuova antologia della lirica greca da Callino a
Bacchilide. Torino: Paravia, 1947.
LIEBEL, I. Archilochi Reliquiae. Leipzig: Sommer, 1812.
LIEBEL, I. Archilochi Reliquiae. 2. ed. Wien: Johann Bartholomäus
Zweck, 1818.
292
Nuntius Antiquus, Belo Horizonte, v. 13, n. 1, p. 279-292, 2017
MARZULLO, B. Frammenti della lirica greca. Florença: Sansoni,1965.
MARZULLO, B. La chioma di Neobule. Rheinisches Museum für
Philologie, Colônia, v. 100, p. 68-82, 1957.
RAGUSA, G. Lira grega: antologia de poesia arcaica. São Paulo: Hedra,
2013.
RANKIN, H. D. Archilochus of Paros. Park Ridge, N.J.: Noyes Press,
1977.
SCHNEIDEWIN, F. G. Delectus poesis graecorum elegiacae, iambicae,
melicae. Göttingen: Vandenhoeck et Ruprecht, 1838.
SNELL, B.; FRANYÓ, S. Frühgriechische Lyriker, II. Die Jambographen.
Berlim: Akademie Verlag, 1972.
SWIFT, L. Poetics and Precedents in Archilochus’ Erotic Imagery. In:
SWIFT, L.; CAREY, C. (Orgs.). Iambus and Elegy: New Approaches.
Oxford: Oxford University Press, 2016. p. 253 – 270. DOI: https://
doi.org/10.1093/acprof:oso/9780199689743.001.0001; https://doi.
org/10.1093/acprof:oso/9780199689743.003.0014.
TARDITI, G. Archiloco. Roma: dell’ Ateneo, 1968.
TREU, M. Archilochos. München: Ernst Heimeran, 1959.
WEST, M. L. Greek Lyric Poetry. Oxford: Oxford University Press, 1993.
WEST, M. L. Iambi et elegi graeci ante Alexandrum cantati I. Oxford:
Oxford University Press, 1971.
WEST, M. L. Iambi et elegi graeci ante Alexandrum cantati I. 2. ed.
Oxford: Oxford University Press,1989.
WILAMOWITZ-MÖLLENDORFF, U. Lesefrüchte. Hermes, v. 59, p.
249-73, 1924.