ISSN 2358-6060
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Newton de Souzai
Corpo, voz, palavra e poder:
A negação do negro no Teatro bra sileiro
Body, voice, word and power:
Th e de ni al of th e blac k in B razi li an Th e ate r
Newton de Souza – Corpo, voz, palavra e poder. A negação do negro no Teatro brasileiro.
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RESUMO
ABSTRACT
Artigo apresentando o resultado da
aplicação da descrição do discurso
proposta por Michel Foucault à análise de
uma obra sobre a História do Teatro
brasileiro, com atenção ao tratamento
oferecido à negritude. Os enunciados
apresentados pelo autor exaltam um
homem negro alforriado, como primeiro
ator brasileiro reconhecido como tal, na
mesma maneira que consideram que o
negro desaparece dos palcos, após o
século
XIX. Partindo
dos
mesmos
argumentos, mas pensando o Teatro para
além da dramaturgia, fomos capazes de
provar
o
contrário,
em
especial
considerando o corpo como elemento
central do fazer do teatral, ao invés da
palavra escrita.
This article presenting results of applying
the description of the discourse proposed
by Michel Foucault to the analysis of a work
on the History of Brazilian Theater, with
attention to the treatment offered to
blackness. The statements presented by the
author exalt a freed black man, as the first
Brazilian actor recognized as such, in the
same way that they consider that blacks
disappear from the stage after the 19th
century. Starting from the same arguments,
but thinking Theater beyond dramaturgy,
we were able to prove the opposite,
especially considering the body as a central
element of theatrical making, instead of the
written word.
Pa lavra s-cha ve:
Trabalho de ator;
Arqueologia do saber; História do Teatro;
Desempenho teatral no Brasil.
K eyw ord s: Actor's work; Archeology of
knowledge; Theater History; Theatrical
performance in Brazil.
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Toda gente sábia, sabe: a palavra tem poder. Deixo de lado
qualquer conotação metafísica na interpretação dessa frase. Prefiro me
ocupar com o efeito das palavras, ditas e escritas, sobre a relação entre
seres humanos. Ao longo da vida, com frequência ouvi essa frase saída
dos lábios de pessoas que habitavam, ou habitam meu ambiente
social de origem, a periferia. Sem grande esforço, sou capaz de ativar
na fibra dos músculos aquela realidade, onde a maior parte de quem lá
vivia, como eu, extraia do próprio corpo os elementos necessários para
existir. O corpo nos levava à escola, pois não havia rodas a substituir a
função de nossas pernas. Assim como, as mesmas pernas nos levavam
para trabalhar. Para a gente do pedaço de terra de onde vim, uma
questão central relativa ao “existir” sempre foi extrair do único
elemento que tínhamos como chamar de nosso, o corpo, um meio
para produzir dinheiro, ou seja, trabalho nas periferias significa colocar
o corpo à venda. Mercadoria barata, o que com o corpo se ganha, em
geral, não garante subsistência e, não raro, nem mesmo sobrevivência.
Minhas origens ensinaram que gente que trabalha, stricto sensu, não
renuncia ao refletir, contudo, o faz apoiada sobre as dimensões
práticas da vida. Em outras palavras, “a palavra tem poder”, dita na
polifonia comunitária, expressa como são estabelecidas formas
próprias de produzir saber. Quem pode falar daquilo que se passa em
nossos corpos, somos nós, que dele extraímos nossas condições de
existência.
Tomando como ponto de vista minha experiência como
ator, sou levado a pensar no crescimento de investigações de
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caráter autobiográfico ou, ancestrais e as relações de representação
estabelecidas nos espaços de convívio. Se volto a atenção sobre a
minha própria experiência, mensuro em que medida meu lugar de
fala passa pelo corpo, nas intersecções entre identidade de classe,
lugar de origem e ofício. Nesse sentido, sou trabalhador, da
periferia e pedagogo teatral e, do mergulho sobre mim, emerge,
ainda, a necessidade de problematizar a sobreposição dos
preconceitos de classe e de cor que atinge a séculos a gente negra.
Em síntese, parto de dois pressupostos: a) a raiz do trabalho
é a atividade corporal; b) quanto mais o corpo é instrumento de
trabalho,
menos
é
valorizado.
Seguindo
esse
raciocínio,
é
perfeitamente observável que o labor está contido na história das
pessoas pretas, bastando um breve recuo ancestral para que, mais
cedo, ou mais tarde, se chegue às contradições produzidas pela
mais cruel expressão do trabalho: a escravidão. Quando a negritude
diz: “A palavra tem poder” -, a afirmativa adquire formas próprias
de entrelaçar corpos, existências e um espaço de representação.
“A palavra tem poder” sintetiza o resultado da incursão no
labirinto dos campos discursivos, demonstrando como a produção
artística negra, em particular das Escolas de Samba, não figura entre
os conteúdos indispensáveis para a formação do artista cênico
brasileiro. Na luta contra a exclusão, nota-se como o discurso é
capaz de impor fronteiras claramente definidas. Não barreiras
concretas, como um vasto território atravessado por linhas de arame
farpado, ou, inóspitos muros de concreto: densos, opacos,
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depressivos. Intransponíveis. A palavra, com sua força simbólica,
atua sobre as mentalidades, capaz de incutir a crença de que a
dignidade humana é privilégio de poucos. De que o corpo e mente
são dissociáveis. Que o corpo, célula mater do trabalho, tem menor
valor e, portanto, não possui direito a voz. Porém, quando o corpo
ganha voz, a palavra tem ainda mais poder.
Agradeço à Prof.ª Dr.ª Renata Lima Silva pelo estímulo à
confecção desse artigo e, a Itamar Costa Neto, pesquisador de
Iniciação Científica, integrante da equipe do projeto “Corpos Atuantes,
Espaços Partilhados: multiculturalidade crítica no trabalho de ator”, no
tocante aos dados quantitativos presentes nessa reflexão.
A órbita de investigação gira entorno do diálogo entre o
Teatro de Rua e o espetáculo das Escolas de Samba, de Rio de
Janeiro e São Paulo. Numa das linhas de investigação, estamos a
coletar dados que demonstrem o tratamento dispensado ao negro
no Teatro Brasileiro a partir do que é aceito como sendo a sua
História. Denunciar as estratégias discursivas fez parte da tese
defendida na Universidade de Lisboa, empregando o conceito
operador “discurso ideológico lacunar” (SOUZA, 2019, p. 22-25)
para identificar a voz negra em meio aos silêncios históricos. Os
resultados permanecem válidos, mas analisar o mesmo objeto,
adotando a “descrição do discurso”, de Foucault (2009) destaca o
preconceito estrutural incrustrado na cultura brasileira, assim como,
comprova a resiliência da arte coletiva negra no Brasil.
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Com
relação
ao
procedimento
metodológico,
empreendemos a seleção de referências bibliográficas a respeito da
História do Teatro, com eleição da obra Teatro Brasileiro, de
Anchieta a Alencar (PRADO, 1993) como objeto. Determinamos
como termos de busca “índices identitários” da negritude, através
de palavras como “escravo”, “preto”, “mulato”, etc. identificados
no conjunto do texto. Realizado o mapeamento, os enunciados
foram analisados em seus contextos discursivos, para compreender
como a negritude foi apresentada especificamente nessa obra. Após
a descrição do discurso, revisitamos a mesma trajetória, mas fizemos
o percurso adotando como ponto de vista as intersecções entre
corpo e trabalho. Os resultados servirão de base para análise
semelhante em obras da mesma natureza.
Partindo do plano global, a análise permitiu compreender o
percurso de investigação adotado para a elaboração da obra. Fica
patente que o objetivo da pesquisa que resultou no livro foi
identificar as experiências teatrais realizadas no país, com marco
temporal impreciso, após a chegada dos portugueses à América. As
fontes
selecionadas,
organizadas,
tanto
majoritariamente
quanto
possível,
secundárias,
respeitando
à
foram
ordem
cronológica. Quando houve refinamento na busca, o foco passou a
ser “dramaturgia”, algo que permitiu que, ao redor de “literatura
dramática”, fossem identificados títulos, autores, testemunhos e
testemunhos com opinião.
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O mérito do trabalho reside em garimpar, entre os
documentos consultados, “índices autorais” como fatores decisivos
para classificar quais acontecimentos, poderiam ser considerados
Teatro, ou o que poderíamos chamar de “provas de teatro”. Apesar
de indiscutível que literatura dramática nunca deixará de oferecer
coordenadas coerentes e importantes para se conhecer a História
da Arte Teatral na Cultura de um país, o problema da seleção dos
objetos se manifesta em toda a sua força. A obra analisada
contribuiu, sem sombra de dúvidas, para a sustentação da ideia de
que “o Teatro” é dependente da “palavra escrita”. Tensionando
mais o debate, a fala do autor está situada numa mundividência, na
qual o escrever é privilegiado, pois a natureza teatral a ele estaria
ancorada. A inegável legitimidade dos estudos sobre a literatura
dramática no Brasil, no entanto, tem solicitado outros objetos, entre
eles, o corpo como semente do acontecimento teatral, como no
caso que ora analisaremos.
Em sentido quantitativo, a pesquisa contabilizou vinte e seis
termos correspondentes aos “índices identitários” atribuídos à
negritude, distribuídos em trinta e duas páginas dentre as trezentas
e quarenta e cinco que compõe a obra, correspondendo ao recorte
temporal entre os séculos XVIII e XIX.
No processo de análise, o primeiro índice identitário, a
palavra “escravo” (PRADO, 1993, p.61) será encontrada associada a
uma excêntrica festa a favor de São Gonçalo do Amarante, ao fim
da qual uma peça foi apresentada, sem que se saiba quem nela
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atuou, e possamos ler as palavras “negro” e “comédia medíocre”.
Poucas páginas adiante, encontraremos como citação, a opinião de
um militar de patente, em 1767, a respeito de uma récita baseada
no compositor italiano Metastasio:
Numa sala assaz bela – escreve Bougainville, oficial
graduado da marinha francesa que percorria o mundo
comandando uma fragata – pudemos ver as obras-primas
de Metastasio, representada por um elenco de mulatos; e
ouvir os trechos divinos dos mestres italianos, executados
por uma má orquestra, regida por um padre corcunda em
traje eclesiástico (SOUSA, 1971, Apud. PRADO, 1993,
p.65, grifos nossos).
As informações adicionais levam a compreender que se
registrou a existência de gente com descendência negra, “mulatos”,
fazendo trabalho de ator, no Rio de Janeiro, no século XVIII. Um
dado observável e perfeitamente quantificável refere-se à economia
com a qual essa informação é levada ao leitor: o espaço mínimo na
frase, laconicamente encerrada entre ponto e vírgula, perfeitamente
conhecido como “mudando de assunto, sobre o mesmo tema” o
que faz do termo “mulato” contingencial na frase.
A análise do discurso se estende para a forma, pois leitor
depositará, concretamente, menor atenção à composição do elenco,
composta com seis palavras, do que no juízo de valor, redigido com
vinte e um vocábulos. Impressas, as palavras compõem um desenho
e, como um marca-texto subliminar, produzem uma mancha sobre o
papel, cujo volume oferece melhor posicionamento da frase no
campo visual do leitor, quando comparada com a frase anterior. O
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número maior de palavras está inequivocamente justificado quando
inscrito naquele quadro de mentalidades, de tal modo, que seria
inquestionável a importância documental, cujo acesso permite refletir
como teria se formado a opinião de um oficial da Marinha francesa a
respeito da execução em cena de uma obra literária, escrita do outro
lado do Atlântico e montada com artistas disponíveis em solo
brasileiro, em 1767. Dissecando o enunciado, isolamos o conteúdo,
para constatar que a execução musical ocupou o maior espaço para
argumentação, diante do que o observador estrangeiro considerou
ultrajante o resultado alcançado. O termo “elenco de mulatos”,
apesar de não receber qualquer adjetivação, se encontra posicionado
ao lado de uma má avaliação.
Voltaremos a encontrar os “índices identitários” presentes
em relato a respeito do crescimento de títulos associados a autores
como Molière, Voltaire ou Goldoni, em sua maior parte, em “edições
de cordel”. Tais récitas fariam parte da programação de festivais
cívicos e religiosos, transcorridos em núcleos urbanos do Brasil
colônia. “Negros” e “mulatos” serão lembrados, uma vez mais,
presentes numa breve análise sociológica produzida pelo autor:
O nível social dos atores e cantores improvisados, de
acordo com o grupo em que atuavam, compreendia
desde negros alforriados e mulatos até estudantes,
professores de primeiras letras, funcionários públicos,
caixeiros de lojas, modestos comerciantes e militares
(PRADO, op. Cit. p.68, grifos nossos).
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A preocupação com o perfil dos elencos permanece associada
à dramaturgia, na medida em que a posição social era associada com a
provável dificuldade em lidar com o repertório estrangeiro.
Pela ordem, várias citações relacionadas a negritude são
encontradas com participação em eventos cívicos, em cuja
programação, são encontrados títulos de peças teatrais. Num
“festival rústico” realizado, em 1790, em Cuiabá, a autoridade
jurídica homenageada deixou registradas as seguintes observações:
Esta noite saiu a público a comédia Tamerlão na Pérsia,
representada pelos crioulos. Quem ouvir falar nesse nome
dirá que foi função de negros, inculcando neste dito a
ideia geral que justamente se tem que estes nunca fazem
coisa perfeita e antes dão muito que rir e criticar. Porém
não é assim a respeito de certo número de crioulos que
aqui há; bastava ver-se uma grande figura que eles têm;
esta é um preto que há pouco se libertou, chamado
Victoriano. Ele talvez seja inimitável neste teatro nos
papeis de caráter violento e altivo. Todos os mais
companheiros são bons e já tem merecido aplausos nos
anos passados. Eles, além da comédia, cantaram muitos
recitados, árias e duetos, que aprenderam com grande
trabalho, e como só o faziam por curiosidade causaram
muito gosto (MOURA, Apud. PRADO, op. Cit. p.71, grifos
nossos).
Mesmo com a indiscutível discriminação contra o negro, a
testemunha se inclinava com honestidade sobre o conjunto de
atores “crioulos”, acreditando ao elenco a versatilidade no
atendimento as exigências do canto, confirmadas em razão do
reconhecimento do público. Mas, a referência a Victoriano contém o
primeiro tratamento satisfatório dirigido a um ator brasileiro, o que,
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por sinal, leva a que Prado volte a convocá-lo no texto, desta feita,
para que, ao lado de seu nome seja erigido um epiteto:
Nada mais justo, então, até a título de símbolo cultural, do
que reconhecer em Victoriano, negro, ex-escravo,
intérprete de Bajazet em Tarmelão na Pérsia, “talvez
inimitável neste teatro nos papéis de caráter violento e
altivo”, a primeira vocação dramática brasileira
reconhecida e nomeada por escrito como tal. Um
primitivo, sem dúvida – mas já aprendemos
modernamente a não desprezar em arte o primitivismo
(PRADO, op. Cit., p.73, grifos nossos).
O enunciado estabelece contraste entre a proposição de
elevar um ator negro ao patamar de “primeira vocação dramática
brasileira”, e atribuir-lhe a condição de “primitivo”, visto que nela
está contida a hipótese de que exista algum tipo de superioridade
entre seres humanos. Para além disso, torna-se mais útil, depositar
atenção para a recomendação imprensa em tintas: a opinião
deixada pela atuação de Victoriano dá direito a que a experiência
figure como um marco histórico, no qual pela primeira vez, a
qualidade de um ator brasileiro tenha sido reconhecida.
Portanto, em relação ao desempenho, a História do Teatro
Brasileiro começa com Victoriano da Costa Viana, primeiro ator
reconhecido atuando em solo nacional. Partindo do verbo
“reconhecer”, como “acreditar”, “avalizar”, “submeter à uma
opinião credenciada”, o nome de Viana está associado à outorga
dada por um comentarista, identificado como o Ouvidor D. Diogo
de Toledo Lara Ordenhes
ii
, que acompanhou e identificou
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qualidades dramáticas no desempenho do ator, diretamente
relacionado com o teatro literário.
Interpelar os enunciados, também leva a indagar como seria
o alcance ao texto dramático numa época em que a leitura estava
fora das possibilidades da maior parte dos brancos, e praticamente
inalcançável para os negros. Levando em conta o momento histórico
no qual a sociedade era esmagadoramente iletrada, é altamente
relevante sabermos que um cidadão brasileiro tivesse sido capaz de
sustentar o desempenho dramático com competência. Mesmo
colocando sobre a balança a subjetividade do Ouvidor, a prática
teatral autoriza elencar ao menos três dentre os domínios necessários
no palco, que não escapariam a qualquer pessoa com o mínimo de
exercício para a apreciação: voz, expressão e movimento.
Como a peça foi baseada em literatura, o texto dramático,
dito pelo ator, teve que ser ouvido e compreendido, o que indica
competência para adaptar as qualidades vocais à acústica do
ambiente. Tratando-se de personagem em um texto estrangeiro, a
ação transcorreu de forma coerente em relação aos padrões gestuais
situados no quadro de referências do público teatral, sem o que, D.
Diogo não teria se impressionado, ao menos, não favoravelmente.
Por fim, por menor que tenha sido a complexidade da montagem,
era preciso possuir conhecimentos sobre a mobilidade na área de
representação, afinal, além das marcas ensaiadas com o elenco, o
posicionamento dos objetos em cena, também exige atenção. Assim,
no deslocamento, seria previsível que a inexperiência levasse a erros
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flagrantes, que não escapariam ao olhar atento. Resta supor, sem
poder afirmar, que, atuando na Ópera “Tamerlão na Pérsia”, o canto
fizesse parte do repertório de Viana.
Por fim, é conveniente recuperar que, para expressar
satisfação, a autoridade empregou as palavras “grande figura” e
“inimitável em papéis de caráter violento e altivo”; o que assegura
que Victoriano, no mínimo, não cometeu gafes diante da plateia.
Portanto, apesar dos estudos relacionados à dramaturgia europeia
encontrados no Brasil terem revelado que o primeiro ator brasileiro
reconhecido era um homem negro, praticamente nenhuma atenção
tem sido dada a esse fato, quanto menos, a sua exaltação como
personagem histórica. Victoriano Costa Viana é desconhecido no
meio teatral brasileiro.
Trilhando a narrativa, o “pardo Leandro Joaquim” mereceu
ser lembrado dado seu reconhecimento como artista plástico, que
atuou com esmero como cenógrafo na Casa de Ópera do Rio de
Janeiro. Em 1818, dois viajantes alemães enxergam “possibilidades”
no trabalho do “conjunto de atores, pretos ou de cor”, numa opereta
francesa levada ao palco em São Paulo, onde igualmente, o francês
Saint-Hilaire assistiu artesãos, “em sua maioria mulatos”, cuja
performance em O Avarento era comparada, pejorativamente, à do
elenco feminino, composto por prostitutas. O observador estrangeiro
incluiu em suas reminiscências, o fato de “atores mulatos” terem
subido ao palco com os rostos enfarinhados para disfarçar a cor da
pele, enrijecidos e inexpressivos (PRADO, op. Cit., p.78).
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Diante das recorrentes referências, coube ao autor ensaiar
uma análise sociológica sobre a presença negra nos palcos, cujo
teor merece transcrição:
Quanto à participação de mulatos, ou pardos, ou homens
de cor, conforme as versões, o fato pode explicar-se tanto
por uma propensão natural da raça ou da cultura negra,
sobretudo em relação à música, quanto pelo descrédito
que envolvia a profissão de ator. Na primeira metade do
século XVIII, época em que o teatro ainda se concebia
como festa coletiva, os negros não se negavam a dar o
seu quinhão, comparecendo, embora marginalmente,
com seus cantos, os seus instrumentos musicais, as suas
danças africanas (...), que mais tarde se integrariam na arte
e na consciência nacional. (...) Agora, na virada do século,
quando o teatro tentava a todo o custo profissionalizar-se,
oferecia-se a ocasião para que os seus descendentes
mestiçados subissem ao palco, aproveitando-se das
interdições morais que pesavam sobre ele. (...) A verdade
é que os brancos desciam e os mulatos subiam
socialmente ao tornarem-se atores (PRADO, op. Cit.,
pp.79-80, grifos nossos).
Fica claro que a ausência de prestígio social, naquele
contexto histórico, afastava o branco da prática teatral, mas a
discriminação racial se mantinha ativa, pois o termo “mulato” ou
“pardo”, corresponde, em sua quase totalidade, aos filhos
bastardos do sistema escravocrata, enquanto “homens de cor”, na
maior parte das vezes, se referia a todo aquele que não era
considerado branco. A inserção efetiva da palavra “negro”
associada ao termo “teatro”, seguido do adverbio “ainda”, exerce
efeito preventivo ao estabelecer distinção em relação à palavra
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“festa”, sugerindo uma espécie de estágio larval, no qual, portanto,
a participação do negro teria sido mais frequente.
Por essa lógica, a inclinação do “mulato, pardo ou homem
de cor” para o palco, viria das “propensões naturais da raça ou da
cultura negra”, manifestadas na música e na dança. Defasado frente
às exigências da profissionalização associada à literatura dramática,
as referidas qualidades expressivas teriam oferecido contribuição
para alguma forma de arte que, dada a sua indeterminação, não
poderia ser classificada como Teatro. Ao longo do estudo a respeito
do período aurífero, no qual se concentram os índices identitários,
“os mulatos eram também, em sua maior parte, os músicos, os
compositores, os pintores, os escultores de Vila Rica” (op. Cit. p.
85), capazes de produzir um trabalho satisfatórios nesses domínios,
mas permanecendo irrelevantes enquanto intérpretes.
A opinião dos comentadores leva Prado ao seguinte
balanço: “a má qualidade das representações, reafirmada por todos
eles, e, já na passagem do século XVIII para o XIX, a presença
constante de mulatos dentre os atores” (PRADO, op. Cit., p.79). O
autor argumenta que apesar do Teatro se apresentar como
possibilidade para uma ligeira ascensão social, visto que prevalecia
a atividade amadora, “o predomínio cênico de mulatos, que não
duraria muito, desaparecendo com a chegada de profissionais do
palco portugueses” (PRADO, op. Cit., p.80). A conclusão,
compatível com o objeto eleito na composição da obra, priorizando
a literatura dramática europeia como critério para pensar o Teatro,
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torna razoável que o desempenho da maior parte dos atores negros
e pardos do Brasil fosse considerado ruim, razão pela qual, com a
chegada
de
Companhias
portuguesas,
os
negros
e
afrodescendentes tivessem perdido lugar nos palcos.
Importante, agora, será dirigir aos enunciados a seguinte
indagação: ao não ter acesso a atuação no Teatro Dramático, a
negritude abandonou ao Teatro? Afinal, o que poderia ser o Teatro
Dramático, do ponto de vista do trabalho de ator? Uma forma de
fazer teatro, na qual, na essência, uma única mente faz com que
múltiplos corpos deem voz às suas palavras. Não temos a
necessidade de entrar em conflito contra os enunciados, mas ser
honesto em analisá-los, para perceber que, no mesmo Barroco, de
Inconfidentes e dramaturgos românticos, havia outra forma de fazer
Teatro, no qual muitos corpos se reuniam e das suas mentes,
trabalhando em conjunto eram encontrados meios para que a voz
coletiva fosse ouvida.
Se adotarmos a performance cultural como modelo de
análise para compreensão do pensamento dos colonizadores,
veremos que o teatro correspondia à mentalidade da aristocracia
europeia, fundamentada na individualidade, do rei ou nobre. Nada
mais coerente do que haver, entre letrados, nos séculos XVII ao XVIII
e meados do sec. XIX, ambiente propício para a composição e
preservação de documentos escritos, dentre os quais, aqueles
pensados para o palco. A dramaturgia, nesse sentido, emerge como
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resultado do exercício mental de intelectuais. Tomemos, doravante,
o ponto de vista de quem sobrevive exclusivamente do trabalho.
Para chegar ao resultado da revisão dos enunciados,
“objeto” e “modelo analítico” foram mantidos, mas entre os
“procedimentos de pesquisa” substituímos os “índices identitários”
pelos termos: “festa” e “raça”. Selecionando tais palavras, portanto,
no mesmo conteúdo encontramos relevantes conexões entre corpo,
trabalho e desempenho teatral, fazendo ver um outro discurso,
simplesmente,
negligenciado.
O
resultado,
assombrosamente
óbvio, leva a conclusões diametralmente opostas sobre as posições
históricas ocupadas pela negritude no Teatro no Brasil.
A palavra “festa”, aparece fazendo referência à inusitada
homenagem a São Gonçalo do Amarante na qual a presença negra
é testemunhada (PRADO, op. Cit., p.61), podendo ser também
assinalada, a seguir, quando o autor discorre sobre a natureza desse
tipo de eventos, em cuja programação, títulos teatrais europeus
puderam ser encontrados:
Promovidos pela Igreja e bem organizados, encaixam-se
sem dificuldades, em proporções relativas aos recursos
locais, dentro do perfil das grandes festas ibéricas. A
apresentação de peças completas nesses casos uma
programação ambiciosa, que empenha toda a
comunidade, comportando, eventualmente, além do
teatro, cavalhadas, touradas, combates simulados,
mascaradas, execuções musicais, fogos de artifício, desfile
de carros alegóricos e triunfais (PRADO, op. Cit. p.62,
grifos nossos).
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A palavra “festival”, derivada de “festa”, foi empregada na
citação na qual o trabalho do ator Victoriano da Costa Viana é
mencionado. Por fim, “festa” serve para sustentar a argumentação
quanto à condição pré-estética que teria permitido a inserção do
negro nos acontecimentos teatrais brasileiros do período Barroco
(PRADO, op. Cit., p.79).
A menção feita à programação das festas religiosas de
inspiração ibérica, é incompatível com o índice redutivo oferecido à
unidade teatro-festa. São palavras do próprio autor que descrevem
a complexidade e grau de teatralidade contidos em tais eventos,
entre os quais incluem-se montagens baseadas em literatura
dramática. Apesar de estarem fora das perspectivas do autor, tornase
muito
relevante
compreender
que
interesse
tinham
os
colonizadores e os escravocratas sobre a festa religiosa católica. O
que significava a autorização para que as pessoas escravizadas e
seus descendentes participassem do “teatro concebido como festa
coletiva”?
De forma semelhante ao que ocorrera na Europa durante a
Idade Média, quando as autoridades permitiam “interrupções
estratégicas” com “festas de compensação” (BAKHTIN, 1997), com
temor calculista diante das revoltas contra a escravidão, os senhores
enxergaram na religião uma possibilidade de controle eficaz iii .
Recorrendo à Roger Bastide (1989), compreendemos que no centro
do interesse de base material, o escravo deveria manter-se
domesticado, em particular, porque, o seu uso como mão-de-obra
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era necessário, não só na lavoura e no engenho, mas, também
como empregado doméstico, na Casa-grande.
No sistema da sociedade patriarcal, a firmeza cabia ao chefe
da família, mas houve senhores que optaram por desdobrar a figura
paterna em “pai bom”, protetor da família e dos seus escravos,
deixando o seu duplo, o “pai severo”, ser encarnado através de
capatazes. A religião era utilizada, nesse caso, como instrumento de
legitimação da autoridade patriarcal sobre o escravo, como um fator
positivo. Nas terras em que os senhores adotaram essa forma de
controle, a “base gestual cotidiana” afirmava a hierarquia: pela
manhã, antes do início do trabalho e após o retorno, o escravo que
passava, cabisbaixo e em tom de clemência, pedia bençãos e
proferia palavras de louvor, tanto às divindades católicas, quanto ao
próprio senhor.
Ao negro era necessário e conveniente reproduzir aqueles
gestos, pois quanto mais o patriarca se sentisse atendido, menos
mal para o cativo. Sem tentar minimizar o estatuto da escravidão, as
relações sociais passam por processos de acomodação e, num
desses movimentos, terminava por ser permitido que o negro
pudesse dar vazão a suas formas próprias de celebrar, nos
momentos festivos, orientados pelo calendário cristão.
No cenário das terras de engenho podíamos encontrar a
participação do negro na religião do senhor em dois momentos: a
bênção diária e a participação na missa. O terceiro momento,
quando predominava a pregação por capelães, havia os dias
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reservados para as festividades religiosas, dedicados aos santos
padroeiros da família. À medida que as estruturas da Igreja Católica
se alicerçavam no território colonial, os dias santificados se
ampliavam, inclusive com celebrações ofertadas aos santos negros,
como São Benedito e Santa Efigénia, além dos ciclos mais
tradicionais do catolicismo, como as festas marianas, Assunção,
Natividade, Conceição, Purificação e Anunciação, assim como os
ciclos da Páscoa, Natal e Epifania.
Com o deslocamento dos interesses económicos para o
complexo
da
mineração,
uma
parcela
da
população
afrodescendente conquistou maior grau de autonomia. Nesse
cenário,
ao
negro,
se
oferecia
maiores
oportunidades
de
intercâmbios proporcionados pela redução do seu confinamento.
Entre os séculos XVII e XVIII, de pouco em pouco e sempre com
precauções, alguns negros, conquistavam a liberdade e mesmo
aqueles que permaneceram no cativeiro, por força das demandas
servis, tinham acesso à rua. Isso remete diretamente à menção aos
ofícios dos trabalhadores, onde se nota que os mulatos, além de
atores, exerciam outros ofícios ligados à arte (PRADO, op. Cit. p.85).
Para o negro, a religião católica, como os demais aspectos
da cultura branca, se sobrepunha à africana, não configurando como
fator de integração, algo que manteve vivas as tradições ancestrais
calcadas no ritmo e no movimento, e não obstruiu o envolvimento
com as festas populares e, particularmente, com as procissões. No
entanto, o colorido da festa não eliminava a distinção racial,
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separando brancos, pardos e negros que, para participarem dos
festejos, precisaram se organizar coletivamente. A existência de
corporações de ofício, nessa etapa do período colonial, reunindo
brancos pobres e negros libertos, à semelhança das guildas
medievais, eram responsáveis, também pela composição de
representações nas festas de celebração. A distinção racial ainda
assim se mantinha presente, de modo que, mesmo pertencendo a
uma mesma corporação, nos festejos públicos, a ordem de
apresentação nos cortejos era estabelecida de acordo com a cor da
pele, distinção assumida com a passagem para as confrarias.
Mais importante ainda que a corporação é a confraria
urbana. Ocupou ela lugar preponderante sobretudo na
religião das Minas Gerais. Enquanto no Nordeste dos
engenhos do século XVII a religião é a religião doméstica,
nas minas do século XVIII a religião é uma religião de
confraria. Confrarias extremamente numerosas, ciumentas
umas das outras, em concorrência mútua, para ver qual
ornaria melhor a sua capela, qual teria mais poder, qual
seria mais rica. Os homens de cor se contagiaram por esse
movimento; organizaram também confrarias calcadas no
modelo das dos brancos e, assim, o conflito racial vai se
dissimular sob o manto da religião e a oposição étnica vai
tomar aspecto de uma luta de sociedade religiosas
(BASTIDE, 1989, p.164).
A disputa entre as confrarias transformou-se em intensa
rivalidade fazendo das festas religiosas, sobretudo em Minas Gerais,
um campo de rivalidades relativo à qualidade dos elementos visuais
levados para as procissões. Os negros tinham lugar cativo no
trabalho minucioso de decoração, seja nas humildes capelas das
confrarias de Nossa Senhora do Rosário, São Benedito ou, outro
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santo negro católico, como também, oferecendo seus serviços às
ricas confrarias de brancos. Prestemos a atenção sobre uma
descrição, cujo objeto era a hierarquia das confrarias, mas que fazia
notar claramente a imagem do cortejo, na qual o negro conquistava
lugar para a sua performance.
Desta maneira, na procissão de Corpus Christi em São
Paulo, depois do Santo Sacramento, vem São Jorge em
seu cavalo curveteando; atrás, as confrarias de negros,
depois a dos mestiços de Santo Elesbão, da Misericórdia
e do Carmo; em seguida, frades e sacerdotes; as
corporações de ofícios desfilavam depois, numa ordem
determinada, que começava pelas escravas padeiras
terminando por outras escravas vendedoras de legumes
(BASTIDE, op. Cit., p.169).
O incremento de maior número de representações e o nível
de complexidade nas caracterizações pôde ser observado em outra
descrição:
A procissão de Cinzas era aberta por três mulatos em
dominó cinza, um trazendo a cruz e os dois outros um
grande bastão encimado por uma lanterna; atrás, um
mascarado, disfarçado de esqueleto, surpreendendo os
espectadores com uma foice de papelão; depois um
grupo de brancos representando Adão e Eva, Caim e
Abel; os membros da confraria de São Francisco traziam
nos ombros os andores dos santos, vindo, depois de tudo,
a música e o Santo Sacramento (BASTIDE, idem, ibidem).
Retomando
ao
nosso
objeto,
mesmo
a
perseguir
incansavelmente a literatura dramática, fiel ao seu procedimento de
pesquisa, observa-se que Prado não omitiu o caráter espetacular
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das procissões religiosas, ao citar um dos mais recorrentes exemplos
do período Barroco:
Foi assim que Vila Rica, a atual Ouro Preto, que fazia
então jus ao nome, festejou em 1733 a translação do
Sacramento Eucarístico de uma igreja a outra, celebrando
ao mesmo tempo, com satisfação provavelmente não
menor, a sua recém-adquirida condição econômica de “a
pérola preciosa do Brasil”. O padre português que
descreveu em linguagem eufórica o acontecimento,
Simão Ferreira Machado, num opúsculo intitulado Triunfo
Eucarístico, saído dos prelos de Lisboa em 1734, relata
que o tablado “das comédias se fez junto da Igreja,
custoso na fábrica, no ornato, e aparência de vários
bastidores (ou seja, cenários): viram neles insignes figuras
(ou seja, personagens): foram as comédias El Secreto e
vozes; El Príncipe Prodigioso pertencente ao repertório
espanhol, de autor desconhecido” (PRADO, op. Cit.
pp.62-63).
A participação da negritude na festa religiosa católica, já foi
problematizada em parte do meu trabalho de investigação, onde
cartografei sistemas de aproximação entre os Quicumbis, levados
para as procissões religiosas, posteriormente descritos em meio às
brincadeiras do entrudo, no século XIX. Na rede de conexões,
acontecimentos com características semelhantes deram origem aos
primeiros cordões e blocos carnavalescos e, por conseguinte, às
Escolas de Samba. No bojo das argumentações, faço coro aos que
se debruçam sobre os espetáculos de Carnaval, em particular, no
Rio de Janeiro e em São Paulo. Trata-se de produções modernas,
inseridas num círculo de cultura na qual a oralidade prevalecia sobre
a escrita. Nele, as inquietações da vida das comunidades, em sua
totalidade periféricas, eram traduzidas na forma do canto. O samba
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que dá suporte às criações espetaculares obedece a um concurso
organizado
pelas
próprias
Escolas,
enquanto
associações
comunitárias. Os sambas-enredo figuram como “dramaturgia
musical” que oferece corpo à palavra proferida em uníssono por,
em média 3.000 componentes de cada uma das agremiações que
participam do concurso. O processo criativo se opera numa
perspectiva infinitamente mais coletiva quando comparada com o
da literatura dramática.
Por que Prado não consegue mais enxergar a negritude no
Teatro após o século XIX? Tratando-se de uma obra de 1993, ainda
seria possível considerar que Teatro seria sinônimo de “literatura
dramática” iv ? A capacidade das comunidades periféricas, em sua
maioria composta por afrodescendentes, em elaborar complexas e
gigantescas representações plástico-visuais na forma de alegorias e
fantasias inspiradas nos enredos não deve ser levada em
consideração como referência para o fazer teatral que se constituiu
no Brasil? Lançadas tais provocações, passemos, pois a rever os
enunciados com relação ao termo “raça”.
A palavra aparece uma única vez, em reflexão relacionada
ao volume expressivo de referências ao negro encontradas entre os
documentos selecionados por Prado. Como já descrevemos, há
claro empenho do estudioso em dar relevo ao nome de Victoriano
da Costa Viana, inclusive por se tratar de um homem negro
alforriado. No entanto, entre os enunciados encontraremos
armadilhas produzidas pelo preconceito estrutural. O contexto
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discursivo envolve as palavras “música”, “cantos”, “instrumentos
musicais” e “danças africanas” para assinalar campos privilegiados
para o desempenho de afrodescendentes devido à “cultura” e à
“raça”. Com relação ao termo, me limito a convocar Achille
Mbembe para deixar claro que “raça” é uma invenção do
colonizador, para justificar a escravidãov.
Uma vez que não existe raça, resta-nos a cultura, em relação
à qual nos perguntamos como deveria a mesma levar a que o negro
fosse considerado mais propenso ao trabalho de atuação? A
principal argumentação trazida pelos enunciados, diz respeito ao
prestígio social, mas haveria um outro caminho possível, com a
negritude observada a partir do seu trabalho.
Uma hipótese razoável para a vitalidade da música,
sobretudo percussiva entre os afrodescendentes, diz respeito, uma
vez mais, à relação com a visão utilitária dos senhores sobre a
religiosidade. Somando-se ao panorama apresentado sobre a
inserção dos escravos na religiosidade dos senhores, encontraremos
os conselhos oferecidos pelo jesuíta Antonil sobre os efeitos da
permissão
para
que
o
escravo
cantasse
e
dançasse
em
determinados períodos, alcançando maior produtividade do cativo
devido à redução da sua melancolia. Outro aspecto considerado
pelos escravagistas, era a associação da dança e da música sobre a
excitação sexual e a procriação, como possibilidade de aumento do
contingente de escravos. Esse interesse sobre o corpo de trabalho
do negro, permitiu a liberdade para que os escravos cultuassem à
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sua maneira, fazendo com que, ocultas sob o manto do catolicismo,
as crenças ancestrais fossem dinamizadas (BASTIDE, op. Cit., p.72).
O outro aspecto relacionado ao trabalho diz respeito à
distinção entre arte e ofício, que prevaleceu na cultura colonial e
dava oportunidade aos negros como artesãos das confrarias. A arte
tinha ligação direta com a devoção, tanto no culto aos santos
católicos, quanto às divindades ancestrais, ainda que só fosse
possível exteriorizar a fé, com a participação nas procissões. O
pensar com o corpo, em meio ao qual a lembrança do Aleijadinho é
constante, engloba um duplo papel, de quem prepara o espetáculo
no qual irá atuar.
Essa forma de produzir é fruto de uma cultura movida pela
solidariedade. Seja o mutirão para a construção de uma casa, a
dedicação da confraria para preparar a procissão do santo
padroeiro, ou a associação da comunidade para construir as
visualidades do desfile de uma Escola de Samba. No mesmo
momento histórico no qual encontramos grande participação da
negritude no teatro dramático no Brasil, o primeiro ator reconhecido
é negro. Nesse mesmo período, há condições de emergência para
que a negritude seja protagonista de grandes eventos espetaculares
sob o abrigo da religião.
Nesse instante, os mesmos escravos ou afrodescendentes
que empregam seu corpo como instrumento de trabalho, são
aqueles que fazem do corpo um meio de celebração. Existir inclui
encontrar sentido para e com o corpo. São os herdeiros desses
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corpos de trabalho que ocuparam as avenidas das grandes capitais
criando formas singulares de Teatro, no Brasil, mas que se
desenvolveram
em
sentido
oposto
àquele
percorrido
pela
mentalidade colonizadora centralizada em poucos indivíduos.
A palavra tem poder, a sabedoria nos ensina. Logo, é pelo
uso das palavras que libertamos os corpos, negros, trabalhadores e
periféricos do silêncio e da invisibilidade. Nossos corpos têm voz. E
como falam juntos, nossas palavras têm mais poder.
REFERÊNCIAS
BASTIDE, R. As religiões africanas no Brasil. Contribuição a
uma sociologia das interpenetrações das civilizações. Tradução
[Capellato, M.E., Krähenbühl] São Paulo: Livraria Pioneira Editora,
1989.
BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no
Renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução [Vieira,
Y. F.] São Paulo: Hucitec/Editora da Universidade de Brasília, 1987.
CARLSON, M. Performances de cultura. In. Performance: uma
introdução crítica. Trad. [Thais Flores Nogueira Diniz, Maria
Antonieta Pereira]. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2010, pp. 2244).
FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. [Trad. Luiz Felipe
Baeta Neves]. 7ed. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária,
2009.
MBEMBE, A. Crítica da Razão Negra. Trad. [Marta Lança].
Lisboa: Antígona, 2014.
PRADO, Décio de Almeida. Teatro de Anchieta a Alencar. São
Paulo: Perspectiva, 1993.
Newton de Souza – Corpo, voz, palavra e poder. A negação do negro no Teatro brasileiro.
Revista Arte da Cena, v.7, n.2, ago-dez/2021.
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SOUZA, Newton. A. de. Teatro de Rua na Cadência do
Samba. O processo de montagem de “O nome do Negro”, em
São Paulo. Lisboa: Faculdade de Letras, Universidade de Lisboa,
Programa de Estudos em Teatro, 2019 (Tese de doutorado).
NOTAS
i
Professor de Montagem de Espetáculos e Pedagogia do Teatro da Escola de Música
e Artes Cênicas da Universidade Federal de Goias. Especialista em Teatro e Dança
pelo Centro de Artes Cênicas da Universidade de São Paulo (USP), Mestre em Artes
pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”
(UNESP) e Doutor em Estudos de Teatro pela Faculdade de Letras da Universidade
de Lisboa. Professor Colaborador do Programa de Pós Graduação em Artes da Cena
(EMAC/UFG).
ii
Para mais informações sobre as festividades em homenagem à nomeação do
Ouvidor, ver: SILVA, M.J. 2015. Mato Grosso: palco da primeira crítica teatral no
Brasil. Diário da Manhã: Goiânia, 15.dez.2015. Disponível em:
https://www.dm.jor.br/opiniao/2015/12/mato-grosso-palco-da-primeira-criticateatral-no-brasil/ Acesso em:
iii
Sobre os aspectos relacionados a religiosidade e escravidão, ver: SOUZA, N. A. de.
“Religiosidade e agregação”. In. Teatro de Rua na Cadência do Samba. O
processo de montagem do espectáculo “O nome do Negro”, em São Paulo. Lisboa:
Faculdade de Letras, Universidade de Lisboa, Programa de Estudos de Teatro, 2019,
pp.96-177. (Tese de Doutorado)
iv
Sobre a performance cultural, ver: CARLSON, M. Performances de cultura. In.
Performance: uma introdução crítica. Trad. [Thais Flores Nogueira Diniz, Maria
Antonieta Pereira]. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2010, pp. 22-44).
v
Cf. MBEMBE, A. Crítica da Razão Negra. Trad. [Marta Lança]. Lisboa: Antígona,
2014.
SUBMISSÃO: 15 de outubro de 2021
ACEITE: 10 de dezembro de 2021
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