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Corpo, voz, palavra e poder

Arte da Cena (Art on Stage)

Artigo apresentando o resultado da aplicação da descrição do discurso proposta por Michel Foucault à análise de uma obra sobre a História do Teatro brasileiro, com atenção ao tratamento oferecido à negritude. Os enunciados apresentados pelo autor exaltam um homem negro alforriado, como primeiro ator brasileiro reconhecido como tal, na mesma maneira que consideram que o negro desaparece dos palcos, após o século XIX. Partindo dos mesmos argumentos, mas pensando o Teatro para além da dramaturgia, fomos capazes de provar o contrário, em especial considerando o corpo como elemento central do fazer do teatral, ao invés da palavra escrita.

ISSN 2358-6060 DOI: https://doi.org/ 10.5216/ac.v7i2.70461 Newton de Souzai Corpo, voz, palavra e poder: A negação do negro no Teatro bra sileiro Body, voice, word and power: Th e de ni al of th e blac k in B razi li an Th e ate r Newton de Souza – Corpo, voz, palavra e poder. A negação do negro no Teatro brasileiro. Revista Arte da Cena, v.7, n.2, ago-dez/2021. Disponível em http://www.revistas.ufg.br/index.php/artce 221 ISSN 2358-6060 DOI: https://doi.org/ 10.5216/ac.v7i2.70461 RESUMO ABSTRACT Artigo apresentando o resultado da aplicação da descrição do discurso proposta por Michel Foucault à análise de uma obra sobre a História do Teatro brasileiro, com atenção ao tratamento oferecido à negritude. Os enunciados apresentados pelo autor exaltam um homem negro alforriado, como primeiro ator brasileiro reconhecido como tal, na mesma maneira que consideram que o negro desaparece dos palcos, após o século XIX. Partindo dos mesmos argumentos, mas pensando o Teatro para além da dramaturgia, fomos capazes de provar o contrário, em especial considerando o corpo como elemento central do fazer do teatral, ao invés da palavra escrita. This article presenting results of applying the description of the discourse proposed by Michel Foucault to the analysis of a work on the History of Brazilian Theater, with attention to the treatment offered to blackness. The statements presented by the author exalt a freed black man, as the first Brazilian actor recognized as such, in the same way that they consider that blacks disappear from the stage after the 19th century. Starting from the same arguments, but thinking Theater beyond dramaturgy, we were able to prove the opposite, especially considering the body as a central element of theatrical making, instead of the written word. Pa lavra s-cha ve: Trabalho de ator; Arqueologia do saber; História do Teatro; Desempenho teatral no Brasil. K eyw ord s: Actor's work; Archeology of knowledge; Theater History; Theatrical performance in Brazil. Newton de Souza – Corpo, voz, palavra e poder. A negação do negro no Teatro brasileiro. Revista Arte da Cena, v.7, n.2, ago-dez/2021. Disponível em http://www.revistas.ufg.br/index.php/artce 222 ISSN 2358-6060 DOI: https://doi.org/ 10.5216/ac.v7i2.70461 Toda gente sábia, sabe: a palavra tem poder. Deixo de lado qualquer conotação metafísica na interpretação dessa frase. Prefiro me ocupar com o efeito das palavras, ditas e escritas, sobre a relação entre seres humanos. Ao longo da vida, com frequência ouvi essa frase saída dos lábios de pessoas que habitavam, ou habitam meu ambiente social de origem, a periferia. Sem grande esforço, sou capaz de ativar na fibra dos músculos aquela realidade, onde a maior parte de quem lá vivia, como eu, extraia do próprio corpo os elementos necessários para existir. O corpo nos levava à escola, pois não havia rodas a substituir a função de nossas pernas. Assim como, as mesmas pernas nos levavam para trabalhar. Para a gente do pedaço de terra de onde vim, uma questão central relativa ao “existir” sempre foi extrair do único elemento que tínhamos como chamar de nosso, o corpo, um meio para produzir dinheiro, ou seja, trabalho nas periferias significa colocar o corpo à venda. Mercadoria barata, o que com o corpo se ganha, em geral, não garante subsistência e, não raro, nem mesmo sobrevivência. Minhas origens ensinaram que gente que trabalha, stricto sensu, não renuncia ao refletir, contudo, o faz apoiada sobre as dimensões práticas da vida. Em outras palavras, “a palavra tem poder”, dita na polifonia comunitária, expressa como são estabelecidas formas próprias de produzir saber. Quem pode falar daquilo que se passa em nossos corpos, somos nós, que dele extraímos nossas condições de existência. Tomando como ponto de vista minha experiência como ator, sou levado a pensar no crescimento de investigações de Newton de Souza – Corpo, voz, palavra e poder. A negação do negro no Teatro brasileiro. Revista Arte da Cena, v.7, n.2, ago-dez/2021. Disponível em http://www.revistas.ufg.br/index.php/artce 223 ISSN 2358-6060 DOI: https://doi.org/ 10.5216/ac.v7i2.70461 caráter autobiográfico ou, ancestrais e as relações de representação estabelecidas nos espaços de convívio. Se volto a atenção sobre a minha própria experiência, mensuro em que medida meu lugar de fala passa pelo corpo, nas intersecções entre identidade de classe, lugar de origem e ofício. Nesse sentido, sou trabalhador, da periferia e pedagogo teatral e, do mergulho sobre mim, emerge, ainda, a necessidade de problematizar a sobreposição dos preconceitos de classe e de cor que atinge a séculos a gente negra. Em síntese, parto de dois pressupostos: a) a raiz do trabalho é a atividade corporal; b) quanto mais o corpo é instrumento de trabalho, menos é valorizado. Seguindo esse raciocínio, é perfeitamente observável que o labor está contido na história das pessoas pretas, bastando um breve recuo ancestral para que, mais cedo, ou mais tarde, se chegue às contradições produzidas pela mais cruel expressão do trabalho: a escravidão. Quando a negritude diz: “A palavra tem poder” -, a afirmativa adquire formas próprias de entrelaçar corpos, existências e um espaço de representação. “A palavra tem poder” sintetiza o resultado da incursão no labirinto dos campos discursivos, demonstrando como a produção artística negra, em particular das Escolas de Samba, não figura entre os conteúdos indispensáveis para a formação do artista cênico brasileiro. Na luta contra a exclusão, nota-se como o discurso é capaz de impor fronteiras claramente definidas. Não barreiras concretas, como um vasto território atravessado por linhas de arame farpado, ou, inóspitos muros de concreto: densos, opacos, Newton de Souza – Corpo, voz, palavra e poder. A negação do negro no Teatro brasileiro. Revista Arte da Cena, v.7, n.2, ago-dez/2021. Disponível em http://www.revistas.ufg.br/index.php/artce 224 ISSN 2358-6060 DOI: https://doi.org/ 10.5216/ac.v7i2.70461 depressivos. Intransponíveis. A palavra, com sua força simbólica, atua sobre as mentalidades, capaz de incutir a crença de que a dignidade humana é privilégio de poucos. De que o corpo e mente são dissociáveis. Que o corpo, célula mater do trabalho, tem menor valor e, portanto, não possui direito a voz. Porém, quando o corpo ganha voz, a palavra tem ainda mais poder. Agradeço à Prof.ª Dr.ª Renata Lima Silva pelo estímulo à confecção desse artigo e, a Itamar Costa Neto, pesquisador de Iniciação Científica, integrante da equipe do projeto “Corpos Atuantes, Espaços Partilhados: multiculturalidade crítica no trabalho de ator”, no tocante aos dados quantitativos presentes nessa reflexão. A órbita de investigação gira entorno do diálogo entre o Teatro de Rua e o espetáculo das Escolas de Samba, de Rio de Janeiro e São Paulo. Numa das linhas de investigação, estamos a coletar dados que demonstrem o tratamento dispensado ao negro no Teatro Brasileiro a partir do que é aceito como sendo a sua História. Denunciar as estratégias discursivas fez parte da tese defendida na Universidade de Lisboa, empregando o conceito operador “discurso ideológico lacunar” (SOUZA, 2019, p. 22-25) para identificar a voz negra em meio aos silêncios históricos. Os resultados permanecem válidos, mas analisar o mesmo objeto, adotando a “descrição do discurso”, de Foucault (2009) destaca o preconceito estrutural incrustrado na cultura brasileira, assim como, comprova a resiliência da arte coletiva negra no Brasil. Newton de Souza – Corpo, voz, palavra e poder. A negação do negro no Teatro brasileiro. Revista Arte da Cena, v.7, n.2, ago-dez/2021. Disponível em http://www.revistas.ufg.br/index.php/artce 225 ISSN 2358-6060 DOI: https://doi.org/ 10.5216/ac.v7i2.70461 Com relação ao procedimento metodológico, empreendemos a seleção de referências bibliográficas a respeito da História do Teatro, com eleição da obra Teatro Brasileiro, de Anchieta a Alencar (PRADO, 1993) como objeto. Determinamos como termos de busca “índices identitários” da negritude, através de palavras como “escravo”, “preto”, “mulato”, etc. identificados no conjunto do texto. Realizado o mapeamento, os enunciados foram analisados em seus contextos discursivos, para compreender como a negritude foi apresentada especificamente nessa obra. Após a descrição do discurso, revisitamos a mesma trajetória, mas fizemos o percurso adotando como ponto de vista as intersecções entre corpo e trabalho. Os resultados servirão de base para análise semelhante em obras da mesma natureza. Partindo do plano global, a análise permitiu compreender o percurso de investigação adotado para a elaboração da obra. Fica patente que o objetivo da pesquisa que resultou no livro foi identificar as experiências teatrais realizadas no país, com marco temporal impreciso, após a chegada dos portugueses à América. As fontes selecionadas, organizadas, tanto majoritariamente quanto possível, secundárias, respeitando à foram ordem cronológica. Quando houve refinamento na busca, o foco passou a ser “dramaturgia”, algo que permitiu que, ao redor de “literatura dramática”, fossem identificados títulos, autores, testemunhos e testemunhos com opinião. Newton de Souza – Corpo, voz, palavra e poder. A negação do negro no Teatro brasileiro. Revista Arte da Cena, v.7, n.2, ago-dez/2021. Disponível em http://www.revistas.ufg.br/index.php/artce 226 ISSN 2358-6060 DOI: https://doi.org/ 10.5216/ac.v7i2.70461 O mérito do trabalho reside em garimpar, entre os documentos consultados, “índices autorais” como fatores decisivos para classificar quais acontecimentos, poderiam ser considerados Teatro, ou o que poderíamos chamar de “provas de teatro”. Apesar de indiscutível que literatura dramática nunca deixará de oferecer coordenadas coerentes e importantes para se conhecer a História da Arte Teatral na Cultura de um país, o problema da seleção dos objetos se manifesta em toda a sua força. A obra analisada contribuiu, sem sombra de dúvidas, para a sustentação da ideia de que “o Teatro” é dependente da “palavra escrita”. Tensionando mais o debate, a fala do autor está situada numa mundividência, na qual o escrever é privilegiado, pois a natureza teatral a ele estaria ancorada. A inegável legitimidade dos estudos sobre a literatura dramática no Brasil, no entanto, tem solicitado outros objetos, entre eles, o corpo como semente do acontecimento teatral, como no caso que ora analisaremos. Em sentido quantitativo, a pesquisa contabilizou vinte e seis termos correspondentes aos “índices identitários” atribuídos à negritude, distribuídos em trinta e duas páginas dentre as trezentas e quarenta e cinco que compõe a obra, correspondendo ao recorte temporal entre os séculos XVIII e XIX. No processo de análise, o primeiro índice identitário, a palavra “escravo” (PRADO, 1993, p.61) será encontrada associada a uma excêntrica festa a favor de São Gonçalo do Amarante, ao fim da qual uma peça foi apresentada, sem que se saiba quem nela Newton de Souza – Corpo, voz, palavra e poder. A negação do negro no Teatro brasileiro. Revista Arte da Cena, v.7, n.2, ago-dez/2021. Disponível em http://www.revistas.ufg.br/index.php/artce 227 ISSN 2358-6060 DOI: https://doi.org/ 10.5216/ac.v7i2.70461 atuou, e possamos ler as palavras “negro” e “comédia medíocre”. Poucas páginas adiante, encontraremos como citação, a opinião de um militar de patente, em 1767, a respeito de uma récita baseada no compositor italiano Metastasio: Numa sala assaz bela – escreve Bougainville, oficial graduado da marinha francesa que percorria o mundo comandando uma fragata – pudemos ver as obras-primas de Metastasio, representada por um elenco de mulatos; e ouvir os trechos divinos dos mestres italianos, executados por uma má orquestra, regida por um padre corcunda em traje eclesiástico (SOUSA, 1971, Apud. PRADO, 1993, p.65, grifos nossos). As informações adicionais levam a compreender que se registrou a existência de gente com descendência negra, “mulatos”, fazendo trabalho de ator, no Rio de Janeiro, no século XVIII. Um dado observável e perfeitamente quantificável refere-se à economia com a qual essa informação é levada ao leitor: o espaço mínimo na frase, laconicamente encerrada entre ponto e vírgula, perfeitamente conhecido como “mudando de assunto, sobre o mesmo tema” o que faz do termo “mulato” contingencial na frase. A análise do discurso se estende para a forma, pois leitor depositará, concretamente, menor atenção à composição do elenco, composta com seis palavras, do que no juízo de valor, redigido com vinte e um vocábulos. Impressas, as palavras compõem um desenho e, como um marca-texto subliminar, produzem uma mancha sobre o papel, cujo volume oferece melhor posicionamento da frase no campo visual do leitor, quando comparada com a frase anterior. O Newton de Souza – Corpo, voz, palavra e poder. A negação do negro no Teatro brasileiro. Revista Arte da Cena, v.7, n.2, ago-dez/2021. Disponível em http://www.revistas.ufg.br/index.php/artce 228 ISSN 2358-6060 DOI: https://doi.org/ 10.5216/ac.v7i2.70461 número maior de palavras está inequivocamente justificado quando inscrito naquele quadro de mentalidades, de tal modo, que seria inquestionável a importância documental, cujo acesso permite refletir como teria se formado a opinião de um oficial da Marinha francesa a respeito da execução em cena de uma obra literária, escrita do outro lado do Atlântico e montada com artistas disponíveis em solo brasileiro, em 1767. Dissecando o enunciado, isolamos o conteúdo, para constatar que a execução musical ocupou o maior espaço para argumentação, diante do que o observador estrangeiro considerou ultrajante o resultado alcançado. O termo “elenco de mulatos”, apesar de não receber qualquer adjetivação, se encontra posicionado ao lado de uma má avaliação. Voltaremos a encontrar os “índices identitários” presentes em relato a respeito do crescimento de títulos associados a autores como Molière, Voltaire ou Goldoni, em sua maior parte, em “edições de cordel”. Tais récitas fariam parte da programação de festivais cívicos e religiosos, transcorridos em núcleos urbanos do Brasil colônia. “Negros” e “mulatos” serão lembrados, uma vez mais, presentes numa breve análise sociológica produzida pelo autor: O nível social dos atores e cantores improvisados, de acordo com o grupo em que atuavam, compreendia desde negros alforriados e mulatos até estudantes, professores de primeiras letras, funcionários públicos, caixeiros de lojas, modestos comerciantes e militares (PRADO, op. Cit. p.68, grifos nossos). Newton de Souza – Corpo, voz, palavra e poder. A negação do negro no Teatro brasileiro. Revista Arte da Cena, v.7, n.2, ago-dez/2021. Disponível em http://www.revistas.ufg.br/index.php/artce 229 ISSN 2358-6060 DOI: https://doi.org/ 10.5216/ac.v7i2.70461 A preocupação com o perfil dos elencos permanece associada à dramaturgia, na medida em que a posição social era associada com a provável dificuldade em lidar com o repertório estrangeiro. Pela ordem, várias citações relacionadas a negritude são encontradas com participação em eventos cívicos, em cuja programação, são encontrados títulos de peças teatrais. Num “festival rústico” realizado, em 1790, em Cuiabá, a autoridade jurídica homenageada deixou registradas as seguintes observações: Esta noite saiu a público a comédia Tamerlão na Pérsia, representada pelos crioulos. Quem ouvir falar nesse nome dirá que foi função de negros, inculcando neste dito a ideia geral que justamente se tem que estes nunca fazem coisa perfeita e antes dão muito que rir e criticar. Porém não é assim a respeito de certo número de crioulos que aqui há; bastava ver-se uma grande figura que eles têm; esta é um preto que há pouco se libertou, chamado Victoriano. Ele talvez seja inimitável neste teatro nos papeis de caráter violento e altivo. Todos os mais companheiros são bons e já tem merecido aplausos nos anos passados. Eles, além da comédia, cantaram muitos recitados, árias e duetos, que aprenderam com grande trabalho, e como só o faziam por curiosidade causaram muito gosto (MOURA, Apud. PRADO, op. Cit. p.71, grifos nossos). Mesmo com a indiscutível discriminação contra o negro, a testemunha se inclinava com honestidade sobre o conjunto de atores “crioulos”, acreditando ao elenco a versatilidade no atendimento as exigências do canto, confirmadas em razão do reconhecimento do público. Mas, a referência a Victoriano contém o primeiro tratamento satisfatório dirigido a um ator brasileiro, o que, Newton de Souza – Corpo, voz, palavra e poder. A negação do negro no Teatro brasileiro. Revista Arte da Cena, v.7, n.2, ago-dez/2021. Disponível em http://www.revistas.ufg.br/index.php/artce 230 ISSN 2358-6060 DOI: https://doi.org/ 10.5216/ac.v7i2.70461 por sinal, leva a que Prado volte a convocá-lo no texto, desta feita, para que, ao lado de seu nome seja erigido um epiteto: Nada mais justo, então, até a título de símbolo cultural, do que reconhecer em Victoriano, negro, ex-escravo, intérprete de Bajazet em Tarmelão na Pérsia, “talvez inimitável neste teatro nos papéis de caráter violento e altivo”, a primeira vocação dramática brasileira reconhecida e nomeada por escrito como tal. Um primitivo, sem dúvida – mas já aprendemos modernamente a não desprezar em arte o primitivismo (PRADO, op. Cit., p.73, grifos nossos). O enunciado estabelece contraste entre a proposição de elevar um ator negro ao patamar de “primeira vocação dramática brasileira”, e atribuir-lhe a condição de “primitivo”, visto que nela está contida a hipótese de que exista algum tipo de superioridade entre seres humanos. Para além disso, torna-se mais útil, depositar atenção para a recomendação imprensa em tintas: a opinião deixada pela atuação de Victoriano dá direito a que a experiência figure como um marco histórico, no qual pela primeira vez, a qualidade de um ator brasileiro tenha sido reconhecida. Portanto, em relação ao desempenho, a História do Teatro Brasileiro começa com Victoriano da Costa Viana, primeiro ator reconhecido atuando em solo nacional. Partindo do verbo “reconhecer”, como “acreditar”, “avalizar”, “submeter à uma opinião credenciada”, o nome de Viana está associado à outorga dada por um comentarista, identificado como o Ouvidor D. Diogo de Toledo Lara Ordenhes ii , que acompanhou e identificou Newton de Souza – Corpo, voz, palavra e poder. A negação do negro no Teatro brasileiro. Revista Arte da Cena, v.7, n.2, ago-dez/2021. Disponível em http://www.revistas.ufg.br/index.php/artce 231 ISSN 2358-6060 DOI: https://doi.org/ 10.5216/ac.v7i2.70461 qualidades dramáticas no desempenho do ator, diretamente relacionado com o teatro literário. Interpelar os enunciados, também leva a indagar como seria o alcance ao texto dramático numa época em que a leitura estava fora das possibilidades da maior parte dos brancos, e praticamente inalcançável para os negros. Levando em conta o momento histórico no qual a sociedade era esmagadoramente iletrada, é altamente relevante sabermos que um cidadão brasileiro tivesse sido capaz de sustentar o desempenho dramático com competência. Mesmo colocando sobre a balança a subjetividade do Ouvidor, a prática teatral autoriza elencar ao menos três dentre os domínios necessários no palco, que não escapariam a qualquer pessoa com o mínimo de exercício para a apreciação: voz, expressão e movimento. Como a peça foi baseada em literatura, o texto dramático, dito pelo ator, teve que ser ouvido e compreendido, o que indica competência para adaptar as qualidades vocais à acústica do ambiente. Tratando-se de personagem em um texto estrangeiro, a ação transcorreu de forma coerente em relação aos padrões gestuais situados no quadro de referências do público teatral, sem o que, D. Diogo não teria se impressionado, ao menos, não favoravelmente. Por fim, por menor que tenha sido a complexidade da montagem, era preciso possuir conhecimentos sobre a mobilidade na área de representação, afinal, além das marcas ensaiadas com o elenco, o posicionamento dos objetos em cena, também exige atenção. Assim, no deslocamento, seria previsível que a inexperiência levasse a erros Newton de Souza – Corpo, voz, palavra e poder. A negação do negro no Teatro brasileiro. Revista Arte da Cena, v.7, n.2, ago-dez/2021. Disponível em http://www.revistas.ufg.br/index.php/artce 232 ISSN 2358-6060 DOI: https://doi.org/ 10.5216/ac.v7i2.70461 flagrantes, que não escapariam ao olhar atento. Resta supor, sem poder afirmar, que, atuando na Ópera “Tamerlão na Pérsia”, o canto fizesse parte do repertório de Viana. Por fim, é conveniente recuperar que, para expressar satisfação, a autoridade empregou as palavras “grande figura” e “inimitável em papéis de caráter violento e altivo”; o que assegura que Victoriano, no mínimo, não cometeu gafes diante da plateia. Portanto, apesar dos estudos relacionados à dramaturgia europeia encontrados no Brasil terem revelado que o primeiro ator brasileiro reconhecido era um homem negro, praticamente nenhuma atenção tem sido dada a esse fato, quanto menos, a sua exaltação como personagem histórica. Victoriano Costa Viana é desconhecido no meio teatral brasileiro. Trilhando a narrativa, o “pardo Leandro Joaquim” mereceu ser lembrado dado seu reconhecimento como artista plástico, que atuou com esmero como cenógrafo na Casa de Ópera do Rio de Janeiro. Em 1818, dois viajantes alemães enxergam “possibilidades” no trabalho do “conjunto de atores, pretos ou de cor”, numa opereta francesa levada ao palco em São Paulo, onde igualmente, o francês Saint-Hilaire assistiu artesãos, “em sua maioria mulatos”, cuja performance em O Avarento era comparada, pejorativamente, à do elenco feminino, composto por prostitutas. O observador estrangeiro incluiu em suas reminiscências, o fato de “atores mulatos” terem subido ao palco com os rostos enfarinhados para disfarçar a cor da pele, enrijecidos e inexpressivos (PRADO, op. Cit., p.78). Newton de Souza – Corpo, voz, palavra e poder. A negação do negro no Teatro brasileiro. Revista Arte da Cena, v.7, n.2, ago-dez/2021. Disponível em http://www.revistas.ufg.br/index.php/artce 233 ISSN 2358-6060 DOI: https://doi.org/ 10.5216/ac.v7i2.70461 Diante das recorrentes referências, coube ao autor ensaiar uma análise sociológica sobre a presença negra nos palcos, cujo teor merece transcrição: Quanto à participação de mulatos, ou pardos, ou homens de cor, conforme as versões, o fato pode explicar-se tanto por uma propensão natural da raça ou da cultura negra, sobretudo em relação à música, quanto pelo descrédito que envolvia a profissão de ator. Na primeira metade do século XVIII, época em que o teatro ainda se concebia como festa coletiva, os negros não se negavam a dar o seu quinhão, comparecendo, embora marginalmente, com seus cantos, os seus instrumentos musicais, as suas danças africanas (...), que mais tarde se integrariam na arte e na consciência nacional. (...) Agora, na virada do século, quando o teatro tentava a todo o custo profissionalizar-se, oferecia-se a ocasião para que os seus descendentes mestiçados subissem ao palco, aproveitando-se das interdições morais que pesavam sobre ele. (...) A verdade é que os brancos desciam e os mulatos subiam socialmente ao tornarem-se atores (PRADO, op. Cit., pp.79-80, grifos nossos). Fica claro que a ausência de prestígio social, naquele contexto histórico, afastava o branco da prática teatral, mas a discriminação racial se mantinha ativa, pois o termo “mulato” ou “pardo”, corresponde, em sua quase totalidade, aos filhos bastardos do sistema escravocrata, enquanto “homens de cor”, na maior parte das vezes, se referia a todo aquele que não era considerado branco. A inserção efetiva da palavra “negro” associada ao termo “teatro”, seguido do adverbio “ainda”, exerce efeito preventivo ao estabelecer distinção em relação à palavra Newton de Souza – Corpo, voz, palavra e poder. A negação do negro no Teatro brasileiro. Revista Arte da Cena, v.7, n.2, ago-dez/2021. Disponível em http://www.revistas.ufg.br/index.php/artce 234 ISSN 2358-6060 DOI: https://doi.org/ 10.5216/ac.v7i2.70461 “festa”, sugerindo uma espécie de estágio larval, no qual, portanto, a participação do negro teria sido mais frequente. Por essa lógica, a inclinação do “mulato, pardo ou homem de cor” para o palco, viria das “propensões naturais da raça ou da cultura negra”, manifestadas na música e na dança. Defasado frente às exigências da profissionalização associada à literatura dramática, as referidas qualidades expressivas teriam oferecido contribuição para alguma forma de arte que, dada a sua indeterminação, não poderia ser classificada como Teatro. Ao longo do estudo a respeito do período aurífero, no qual se concentram os índices identitários, “os mulatos eram também, em sua maior parte, os músicos, os compositores, os pintores, os escultores de Vila Rica” (op. Cit. p. 85), capazes de produzir um trabalho satisfatórios nesses domínios, mas permanecendo irrelevantes enquanto intérpretes. A opinião dos comentadores leva Prado ao seguinte balanço: “a má qualidade das representações, reafirmada por todos eles, e, já na passagem do século XVIII para o XIX, a presença constante de mulatos dentre os atores” (PRADO, op. Cit., p.79). O autor argumenta que apesar do Teatro se apresentar como possibilidade para uma ligeira ascensão social, visto que prevalecia a atividade amadora, “o predomínio cênico de mulatos, que não duraria muito, desaparecendo com a chegada de profissionais do palco portugueses” (PRADO, op. Cit., p.80). A conclusão, compatível com o objeto eleito na composição da obra, priorizando a literatura dramática europeia como critério para pensar o Teatro, Newton de Souza – Corpo, voz, palavra e poder. A negação do negro no Teatro brasileiro. Revista Arte da Cena, v.7, n.2, ago-dez/2021. Disponível em http://www.revistas.ufg.br/index.php/artce 235 ISSN 2358-6060 DOI: https://doi.org/ 10.5216/ac.v7i2.70461 torna razoável que o desempenho da maior parte dos atores negros e pardos do Brasil fosse considerado ruim, razão pela qual, com a chegada de Companhias portuguesas, os negros e afrodescendentes tivessem perdido lugar nos palcos. Importante, agora, será dirigir aos enunciados a seguinte indagação: ao não ter acesso a atuação no Teatro Dramático, a negritude abandonou ao Teatro? Afinal, o que poderia ser o Teatro Dramático, do ponto de vista do trabalho de ator? Uma forma de fazer teatro, na qual, na essência, uma única mente faz com que múltiplos corpos deem voz às suas palavras. Não temos a necessidade de entrar em conflito contra os enunciados, mas ser honesto em analisá-los, para perceber que, no mesmo Barroco, de Inconfidentes e dramaturgos românticos, havia outra forma de fazer Teatro, no qual muitos corpos se reuniam e das suas mentes, trabalhando em conjunto eram encontrados meios para que a voz coletiva fosse ouvida. Se adotarmos a performance cultural como modelo de análise para compreensão do pensamento dos colonizadores, veremos que o teatro correspondia à mentalidade da aristocracia europeia, fundamentada na individualidade, do rei ou nobre. Nada mais coerente do que haver, entre letrados, nos séculos XVII ao XVIII e meados do sec. XIX, ambiente propício para a composição e preservação de documentos escritos, dentre os quais, aqueles pensados para o palco. A dramaturgia, nesse sentido, emerge como Newton de Souza – Corpo, voz, palavra e poder. A negação do negro no Teatro brasileiro. Revista Arte da Cena, v.7, n.2, ago-dez/2021. Disponível em http://www.revistas.ufg.br/index.php/artce 236 ISSN 2358-6060 DOI: https://doi.org/ 10.5216/ac.v7i2.70461 resultado do exercício mental de intelectuais. Tomemos, doravante, o ponto de vista de quem sobrevive exclusivamente do trabalho. Para chegar ao resultado da revisão dos enunciados, “objeto” e “modelo analítico” foram mantidos, mas entre os “procedimentos de pesquisa” substituímos os “índices identitários” pelos termos: “festa” e “raça”. Selecionando tais palavras, portanto, no mesmo conteúdo encontramos relevantes conexões entre corpo, trabalho e desempenho teatral, fazendo ver um outro discurso, simplesmente, negligenciado. O resultado, assombrosamente óbvio, leva a conclusões diametralmente opostas sobre as posições históricas ocupadas pela negritude no Teatro no Brasil. A palavra “festa”, aparece fazendo referência à inusitada homenagem a São Gonçalo do Amarante na qual a presença negra é testemunhada (PRADO, op. Cit., p.61), podendo ser também assinalada, a seguir, quando o autor discorre sobre a natureza desse tipo de eventos, em cuja programação, títulos teatrais europeus puderam ser encontrados: Promovidos pela Igreja e bem organizados, encaixam-se sem dificuldades, em proporções relativas aos recursos locais, dentro do perfil das grandes festas ibéricas. A apresentação de peças completas nesses casos uma programação ambiciosa, que empenha toda a comunidade, comportando, eventualmente, além do teatro, cavalhadas, touradas, combates simulados, mascaradas, execuções musicais, fogos de artifício, desfile de carros alegóricos e triunfais (PRADO, op. Cit. p.62, grifos nossos). Newton de Souza – Corpo, voz, palavra e poder. A negação do negro no Teatro brasileiro. Revista Arte da Cena, v.7, n.2, ago-dez/2021. Disponível em http://www.revistas.ufg.br/index.php/artce 237 ISSN 2358-6060 DOI: https://doi.org/ 10.5216/ac.v7i2.70461 A palavra “festival”, derivada de “festa”, foi empregada na citação na qual o trabalho do ator Victoriano da Costa Viana é mencionado. Por fim, “festa” serve para sustentar a argumentação quanto à condição pré-estética que teria permitido a inserção do negro nos acontecimentos teatrais brasileiros do período Barroco (PRADO, op. Cit., p.79). A menção feita à programação das festas religiosas de inspiração ibérica, é incompatível com o índice redutivo oferecido à unidade teatro-festa. São palavras do próprio autor que descrevem a complexidade e grau de teatralidade contidos em tais eventos, entre os quais incluem-se montagens baseadas em literatura dramática. Apesar de estarem fora das perspectivas do autor, tornase muito relevante compreender que interesse tinham os colonizadores e os escravocratas sobre a festa religiosa católica. O que significava a autorização para que as pessoas escravizadas e seus descendentes participassem do “teatro concebido como festa coletiva”? De forma semelhante ao que ocorrera na Europa durante a Idade Média, quando as autoridades permitiam “interrupções estratégicas” com “festas de compensação” (BAKHTIN, 1997), com temor calculista diante das revoltas contra a escravidão, os senhores enxergaram na religião uma possibilidade de controle eficaz iii . Recorrendo à Roger Bastide (1989), compreendemos que no centro do interesse de base material, o escravo deveria manter-se domesticado, em particular, porque, o seu uso como mão-de-obra Newton de Souza – Corpo, voz, palavra e poder. A negação do negro no Teatro brasileiro. Revista Arte da Cena, v.7, n.2, ago-dez/2021. Disponível em http://www.revistas.ufg.br/index.php/artce 238 ISSN 2358-6060 DOI: https://doi.org/ 10.5216/ac.v7i2.70461 era necessário, não só na lavoura e no engenho, mas, também como empregado doméstico, na Casa-grande. No sistema da sociedade patriarcal, a firmeza cabia ao chefe da família, mas houve senhores que optaram por desdobrar a figura paterna em “pai bom”, protetor da família e dos seus escravos, deixando o seu duplo, o “pai severo”, ser encarnado através de capatazes. A religião era utilizada, nesse caso, como instrumento de legitimação da autoridade patriarcal sobre o escravo, como um fator positivo. Nas terras em que os senhores adotaram essa forma de controle, a “base gestual cotidiana” afirmava a hierarquia: pela manhã, antes do início do trabalho e após o retorno, o escravo que passava, cabisbaixo e em tom de clemência, pedia bençãos e proferia palavras de louvor, tanto às divindades católicas, quanto ao próprio senhor. Ao negro era necessário e conveniente reproduzir aqueles gestos, pois quanto mais o patriarca se sentisse atendido, menos mal para o cativo. Sem tentar minimizar o estatuto da escravidão, as relações sociais passam por processos de acomodação e, num desses movimentos, terminava por ser permitido que o negro pudesse dar vazão a suas formas próprias de celebrar, nos momentos festivos, orientados pelo calendário cristão. No cenário das terras de engenho podíamos encontrar a participação do negro na religião do senhor em dois momentos: a bênção diária e a participação na missa. O terceiro momento, quando predominava a pregação por capelães, havia os dias Newton de Souza – Corpo, voz, palavra e poder. A negação do negro no Teatro brasileiro. Revista Arte da Cena, v.7, n.2, ago-dez/2021. Disponível em http://www.revistas.ufg.br/index.php/artce 239 ISSN 2358-6060 DOI: https://doi.org/ 10.5216/ac.v7i2.70461 reservados para as festividades religiosas, dedicados aos santos padroeiros da família. À medida que as estruturas da Igreja Católica se alicerçavam no território colonial, os dias santificados se ampliavam, inclusive com celebrações ofertadas aos santos negros, como São Benedito e Santa Efigénia, além dos ciclos mais tradicionais do catolicismo, como as festas marianas, Assunção, Natividade, Conceição, Purificação e Anunciação, assim como os ciclos da Páscoa, Natal e Epifania. Com o deslocamento dos interesses económicos para o complexo da mineração, uma parcela da população afrodescendente conquistou maior grau de autonomia. Nesse cenário, ao negro, se oferecia maiores oportunidades de intercâmbios proporcionados pela redução do seu confinamento. Entre os séculos XVII e XVIII, de pouco em pouco e sempre com precauções, alguns negros, conquistavam a liberdade e mesmo aqueles que permaneceram no cativeiro, por força das demandas servis, tinham acesso à rua. Isso remete diretamente à menção aos ofícios dos trabalhadores, onde se nota que os mulatos, além de atores, exerciam outros ofícios ligados à arte (PRADO, op. Cit. p.85). Para o negro, a religião católica, como os demais aspectos da cultura branca, se sobrepunha à africana, não configurando como fator de integração, algo que manteve vivas as tradições ancestrais calcadas no ritmo e no movimento, e não obstruiu o envolvimento com as festas populares e, particularmente, com as procissões. No entanto, o colorido da festa não eliminava a distinção racial, Newton de Souza – Corpo, voz, palavra e poder. A negação do negro no Teatro brasileiro. Revista Arte da Cena, v.7, n.2, ago-dez/2021. Disponível em http://www.revistas.ufg.br/index.php/artce 240 ISSN 2358-6060 DOI: https://doi.org/ 10.5216/ac.v7i2.70461 separando brancos, pardos e negros que, para participarem dos festejos, precisaram se organizar coletivamente. A existência de corporações de ofício, nessa etapa do período colonial, reunindo brancos pobres e negros libertos, à semelhança das guildas medievais, eram responsáveis, também pela composição de representações nas festas de celebração. A distinção racial ainda assim se mantinha presente, de modo que, mesmo pertencendo a uma mesma corporação, nos festejos públicos, a ordem de apresentação nos cortejos era estabelecida de acordo com a cor da pele, distinção assumida com a passagem para as confrarias. Mais importante ainda que a corporação é a confraria urbana. Ocupou ela lugar preponderante sobretudo na religião das Minas Gerais. Enquanto no Nordeste dos engenhos do século XVII a religião é a religião doméstica, nas minas do século XVIII a religião é uma religião de confraria. Confrarias extremamente numerosas, ciumentas umas das outras, em concorrência mútua, para ver qual ornaria melhor a sua capela, qual teria mais poder, qual seria mais rica. Os homens de cor se contagiaram por esse movimento; organizaram também confrarias calcadas no modelo das dos brancos e, assim, o conflito racial vai se dissimular sob o manto da religião e a oposição étnica vai tomar aspecto de uma luta de sociedade religiosas (BASTIDE, 1989, p.164). A disputa entre as confrarias transformou-se em intensa rivalidade fazendo das festas religiosas, sobretudo em Minas Gerais, um campo de rivalidades relativo à qualidade dos elementos visuais levados para as procissões. Os negros tinham lugar cativo no trabalho minucioso de decoração, seja nas humildes capelas das confrarias de Nossa Senhora do Rosário, São Benedito ou, outro Newton de Souza – Corpo, voz, palavra e poder. A negação do negro no Teatro brasileiro. Revista Arte da Cena, v.7, n.2, ago-dez/2021. Disponível em http://www.revistas.ufg.br/index.php/artce 241 ISSN 2358-6060 DOI: https://doi.org/ 10.5216/ac.v7i2.70461 santo negro católico, como também, oferecendo seus serviços às ricas confrarias de brancos. Prestemos a atenção sobre uma descrição, cujo objeto era a hierarquia das confrarias, mas que fazia notar claramente a imagem do cortejo, na qual o negro conquistava lugar para a sua performance. Desta maneira, na procissão de Corpus Christi em São Paulo, depois do Santo Sacramento, vem São Jorge em seu cavalo curveteando; atrás, as confrarias de negros, depois a dos mestiços de Santo Elesbão, da Misericórdia e do Carmo; em seguida, frades e sacerdotes; as corporações de ofícios desfilavam depois, numa ordem determinada, que começava pelas escravas padeiras terminando por outras escravas vendedoras de legumes (BASTIDE, op. Cit., p.169). O incremento de maior número de representações e o nível de complexidade nas caracterizações pôde ser observado em outra descrição: A procissão de Cinzas era aberta por três mulatos em dominó cinza, um trazendo a cruz e os dois outros um grande bastão encimado por uma lanterna; atrás, um mascarado, disfarçado de esqueleto, surpreendendo os espectadores com uma foice de papelão; depois um grupo de brancos representando Adão e Eva, Caim e Abel; os membros da confraria de São Francisco traziam nos ombros os andores dos santos, vindo, depois de tudo, a música e o Santo Sacramento (BASTIDE, idem, ibidem). Retomando ao nosso objeto, mesmo a perseguir incansavelmente a literatura dramática, fiel ao seu procedimento de pesquisa, observa-se que Prado não omitiu o caráter espetacular Newton de Souza – Corpo, voz, palavra e poder. A negação do negro no Teatro brasileiro. Revista Arte da Cena, v.7, n.2, ago-dez/2021. Disponível em http://www.revistas.ufg.br/index.php/artce 242 ISSN 2358-6060 DOI: https://doi.org/ 10.5216/ac.v7i2.70461 das procissões religiosas, ao citar um dos mais recorrentes exemplos do período Barroco: Foi assim que Vila Rica, a atual Ouro Preto, que fazia então jus ao nome, festejou em 1733 a translação do Sacramento Eucarístico de uma igreja a outra, celebrando ao mesmo tempo, com satisfação provavelmente não menor, a sua recém-adquirida condição econômica de “a pérola preciosa do Brasil”. O padre português que descreveu em linguagem eufórica o acontecimento, Simão Ferreira Machado, num opúsculo intitulado Triunfo Eucarístico, saído dos prelos de Lisboa em 1734, relata que o tablado “das comédias se fez junto da Igreja, custoso na fábrica, no ornato, e aparência de vários bastidores (ou seja, cenários): viram neles insignes figuras (ou seja, personagens): foram as comédias El Secreto e vozes; El Príncipe Prodigioso pertencente ao repertório espanhol, de autor desconhecido” (PRADO, op. Cit. pp.62-63). A participação da negritude na festa religiosa católica, já foi problematizada em parte do meu trabalho de investigação, onde cartografei sistemas de aproximação entre os Quicumbis, levados para as procissões religiosas, posteriormente descritos em meio às brincadeiras do entrudo, no século XIX. Na rede de conexões, acontecimentos com características semelhantes deram origem aos primeiros cordões e blocos carnavalescos e, por conseguinte, às Escolas de Samba. No bojo das argumentações, faço coro aos que se debruçam sobre os espetáculos de Carnaval, em particular, no Rio de Janeiro e em São Paulo. Trata-se de produções modernas, inseridas num círculo de cultura na qual a oralidade prevalecia sobre a escrita. Nele, as inquietações da vida das comunidades, em sua totalidade periféricas, eram traduzidas na forma do canto. O samba Newton de Souza – Corpo, voz, palavra e poder. A negação do negro no Teatro brasileiro. Revista Arte da Cena, v.7, n.2, ago-dez/2021. Disponível em http://www.revistas.ufg.br/index.php/artce 243 ISSN 2358-6060 DOI: https://doi.org/ 10.5216/ac.v7i2.70461 que dá suporte às criações espetaculares obedece a um concurso organizado pelas próprias Escolas, enquanto associações comunitárias. Os sambas-enredo figuram como “dramaturgia musical” que oferece corpo à palavra proferida em uníssono por, em média 3.000 componentes de cada uma das agremiações que participam do concurso. O processo criativo se opera numa perspectiva infinitamente mais coletiva quando comparada com o da literatura dramática. Por que Prado não consegue mais enxergar a negritude no Teatro após o século XIX? Tratando-se de uma obra de 1993, ainda seria possível considerar que Teatro seria sinônimo de “literatura dramática” iv ? A capacidade das comunidades periféricas, em sua maioria composta por afrodescendentes, em elaborar complexas e gigantescas representações plástico-visuais na forma de alegorias e fantasias inspiradas nos enredos não deve ser levada em consideração como referência para o fazer teatral que se constituiu no Brasil? Lançadas tais provocações, passemos, pois a rever os enunciados com relação ao termo “raça”. A palavra aparece uma única vez, em reflexão relacionada ao volume expressivo de referências ao negro encontradas entre os documentos selecionados por Prado. Como já descrevemos, há claro empenho do estudioso em dar relevo ao nome de Victoriano da Costa Viana, inclusive por se tratar de um homem negro alforriado. No entanto, entre os enunciados encontraremos armadilhas produzidas pelo preconceito estrutural. O contexto Newton de Souza – Corpo, voz, palavra e poder. A negação do negro no Teatro brasileiro. Revista Arte da Cena, v.7, n.2, ago-dez/2021. Disponível em http://www.revistas.ufg.br/index.php/artce 244 ISSN 2358-6060 DOI: https://doi.org/ 10.5216/ac.v7i2.70461 discursivo envolve as palavras “música”, “cantos”, “instrumentos musicais” e “danças africanas” para assinalar campos privilegiados para o desempenho de afrodescendentes devido à “cultura” e à “raça”. Com relação ao termo, me limito a convocar Achille Mbembe para deixar claro que “raça” é uma invenção do colonizador, para justificar a escravidãov. Uma vez que não existe raça, resta-nos a cultura, em relação à qual nos perguntamos como deveria a mesma levar a que o negro fosse considerado mais propenso ao trabalho de atuação? A principal argumentação trazida pelos enunciados, diz respeito ao prestígio social, mas haveria um outro caminho possível, com a negritude observada a partir do seu trabalho. Uma hipótese razoável para a vitalidade da música, sobretudo percussiva entre os afrodescendentes, diz respeito, uma vez mais, à relação com a visão utilitária dos senhores sobre a religiosidade. Somando-se ao panorama apresentado sobre a inserção dos escravos na religiosidade dos senhores, encontraremos os conselhos oferecidos pelo jesuíta Antonil sobre os efeitos da permissão para que o escravo cantasse e dançasse em determinados períodos, alcançando maior produtividade do cativo devido à redução da sua melancolia. Outro aspecto considerado pelos escravagistas, era a associação da dança e da música sobre a excitação sexual e a procriação, como possibilidade de aumento do contingente de escravos. Esse interesse sobre o corpo de trabalho do negro, permitiu a liberdade para que os escravos cultuassem à Newton de Souza – Corpo, voz, palavra e poder. A negação do negro no Teatro brasileiro. Revista Arte da Cena, v.7, n.2, ago-dez/2021. Disponível em http://www.revistas.ufg.br/index.php/artce 245 ISSN 2358-6060 DOI: https://doi.org/ 10.5216/ac.v7i2.70461 sua maneira, fazendo com que, ocultas sob o manto do catolicismo, as crenças ancestrais fossem dinamizadas (BASTIDE, op. Cit., p.72). O outro aspecto relacionado ao trabalho diz respeito à distinção entre arte e ofício, que prevaleceu na cultura colonial e dava oportunidade aos negros como artesãos das confrarias. A arte tinha ligação direta com a devoção, tanto no culto aos santos católicos, quanto às divindades ancestrais, ainda que só fosse possível exteriorizar a fé, com a participação nas procissões. O pensar com o corpo, em meio ao qual a lembrança do Aleijadinho é constante, engloba um duplo papel, de quem prepara o espetáculo no qual irá atuar. Essa forma de produzir é fruto de uma cultura movida pela solidariedade. Seja o mutirão para a construção de uma casa, a dedicação da confraria para preparar a procissão do santo padroeiro, ou a associação da comunidade para construir as visualidades do desfile de uma Escola de Samba. No mesmo momento histórico no qual encontramos grande participação da negritude no teatro dramático no Brasil, o primeiro ator reconhecido é negro. Nesse mesmo período, há condições de emergência para que a negritude seja protagonista de grandes eventos espetaculares sob o abrigo da religião. Nesse instante, os mesmos escravos ou afrodescendentes que empregam seu corpo como instrumento de trabalho, são aqueles que fazem do corpo um meio de celebração. Existir inclui encontrar sentido para e com o corpo. São os herdeiros desses Newton de Souza – Corpo, voz, palavra e poder. A negação do negro no Teatro brasileiro. Revista Arte da Cena, v.7, n.2, ago-dez/2021. Disponível em http://www.revistas.ufg.br/index.php/artce 246 ISSN 2358-6060 DOI: https://doi.org/ 10.5216/ac.v7i2.70461 corpos de trabalho que ocuparam as avenidas das grandes capitais criando formas singulares de Teatro, no Brasil, mas que se desenvolveram em sentido oposto àquele percorrido pela mentalidade colonizadora centralizada em poucos indivíduos. A palavra tem poder, a sabedoria nos ensina. Logo, é pelo uso das palavras que libertamos os corpos, negros, trabalhadores e periféricos do silêncio e da invisibilidade. Nossos corpos têm voz. E como falam juntos, nossas palavras têm mais poder. REFERÊNCIAS BASTIDE, R. As religiões africanas no Brasil. Contribuição a uma sociologia das interpenetrações das civilizações. Tradução [Capellato, M.E., Krähenbühl] São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1989. BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução [Vieira, Y. F.] São Paulo: Hucitec/Editora da Universidade de Brasília, 1987. CARLSON, M. Performances de cultura. In. Performance: uma introdução crítica. Trad. [Thais Flores Nogueira Diniz, Maria Antonieta Pereira]. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2010, pp. 2244). FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. [Trad. Luiz Felipe Baeta Neves]. 7ed. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária, 2009. MBEMBE, A. Crítica da Razão Negra. Trad. [Marta Lança]. Lisboa: Antígona, 2014. PRADO, Décio de Almeida. Teatro de Anchieta a Alencar. São Paulo: Perspectiva, 1993. Newton de Souza – Corpo, voz, palavra e poder. A negação do negro no Teatro brasileiro. Revista Arte da Cena, v.7, n.2, ago-dez/2021. Disponível em http://www.revistas.ufg.br/index.php/artce 247 ISSN 2358-6060 DOI: https://doi.org/ 10.5216/ac.v7i2.70461 SOUZA, Newton. A. de. Teatro de Rua na Cadência do Samba. O processo de montagem de “O nome do Negro”, em São Paulo. Lisboa: Faculdade de Letras, Universidade de Lisboa, Programa de Estudos em Teatro, 2019 (Tese de doutorado). NOTAS i Professor de Montagem de Espetáculos e Pedagogia do Teatro da Escola de Música e Artes Cênicas da Universidade Federal de Goias. Especialista em Teatro e Dança pelo Centro de Artes Cênicas da Universidade de São Paulo (USP), Mestre em Artes pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP) e Doutor em Estudos de Teatro pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor Colaborador do Programa de Pós Graduação em Artes da Cena (EMAC/UFG). ii Para mais informações sobre as festividades em homenagem à nomeação do Ouvidor, ver: SILVA, M.J. 2015. Mato Grosso: palco da primeira crítica teatral no Brasil. Diário da Manhã: Goiânia, 15.dez.2015. Disponível em: https://www.dm.jor.br/opiniao/2015/12/mato-grosso-palco-da-primeira-criticateatral-no-brasil/ Acesso em: iii Sobre os aspectos relacionados a religiosidade e escravidão, ver: SOUZA, N. A. de. “Religiosidade e agregação”. In. Teatro de Rua na Cadência do Samba. O processo de montagem do espectáculo “O nome do Negro”, em São Paulo. Lisboa: Faculdade de Letras, Universidade de Lisboa, Programa de Estudos de Teatro, 2019, pp.96-177. (Tese de Doutorado) iv Sobre a performance cultural, ver: CARLSON, M. Performances de cultura. In. Performance: uma introdução crítica. Trad. [Thais Flores Nogueira Diniz, Maria Antonieta Pereira]. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2010, pp. 22-44). v Cf. MBEMBE, A. Crítica da Razão Negra. Trad. [Marta Lança]. Lisboa: Antígona, 2014. SUBMISSÃO: 15 de outubro de 2021 ACEITE: 10 de dezembro de 2021 Newton de Souza – Corpo, voz, palavra e poder. A negação do negro no Teatro brasileiro. Revista Arte da Cena, v.7, n.2, ago-dez/2021. Disponível em http://www.revistas.ufg.br/index.php/artce 248