n. 25
o
Pessoa Plural
A Journal of Fernando Pessoa Studies
issn: 2212-4179
GUEST EDITOR
Marcelo Mello
EDITOR-IN-CHIEF
Jerónimo Pizarro
CO-EDITORS
Onésimo Almeida
Paulo de Medeiros
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Table of Contents
Issue 25, Spring 2024
Número 25, Primavera de 2024
[PART 1: SPECIAL ISSUE / NÚMERO ESPECIAL]
Como o cinema descobriu Fernando Pessoa .................................................................................. 1
[How cinema discovered Fernando Pessoa]
Marcelo Cordeiro de Mello
[ARTICLES / ARTIGOS]
Lisboa, a cidade mítico-poética de Pessoa ................................................................................ 11
[Lisbon, Pessoa’s mythical-poetic city]
Leonardo de Atayde Pereira / José Eduardo Leão Franchi Ferreira
Eugène Green encontra Fernando Pessoa ................................................................................ 35
[Eugène Green meets Fernando Pessoa]
Sabrina Sedlmayer
Cadernos diários de Edgar Pêra: uma leitura pessoana ......................................................... 56
[Edgar Pêra’s daily notebooks: a Pessoan reading]
Teresa Lima
Não Sou Nada (2023): Uma análise das representações mediáticas ..................................... 78
[Não Sou Nada (2023): An analysis of media representations]
Teresa Lima
Imaginar, especular, subverter (através de sonhos, visões, alucinações)
Fernando Pessoa, Edgar Pêra e a inteligência artificial ......................................................... 97
[Imagining, Speculating, Subverting (through dreams, visions, hallucinations)
Fernando Pessoa, Edgar Pêra, and artificial intelligence]
Bruno Ministro
Quaresma, realizador: Sobre uma adaptação cinematográfica
dos contos policiais de Pessoa realizada por Luísa Costa Gomes ..................................... 116
[Quaresma, filmmaker: On a cinematic adaptation of Pessoa’s
detective stories by Luísa Costa Gomes]
Simone Celani
Pessoa transfictionnel : À propos de Não Sou Nada, scénario inédit de Luísa Costa Gomes 129
[Transfictional Pessoa: About Não Sou Nada, unpublished screenplay by Luísa Costa Gomes]
Régis Salado
A pluralidade de Pessoa em filmes de animação e histórias em quadrinhos ................. 159
[The plurality of Pessoa in animated films and comic books]
Pedro Moura
O mistério da Boca do Inferno: O encontro curioso entre Pessoa e Crowley .................. 189
[The Mystery of the Mouth of Hell: The curious encounter between Pessoa and Crowley]
Steffen Dix
Victor Belém y sus foto-ficciones: Fernando Pessoa vs. Aleister Crowley ...................... 202
[Victor Belém and his photo-fictions: Fernando Pessoa vs. Aleister Crowley]
Catalina María Gutiérrez-Giraldo
O Mistério da Boca do Inferno: O filme de José de Pina que opõe Pessoa a Crowley ... 223
[O Mistério da Boca do Inferno: The film by José de Pina that contrasts Pessoa with Crowley]
João Céu e Silva
Boca do Inferno: Adaptação cinematográfica da novela policial
que Fernando Pessoa não escreveu .......................................................................................... 249
[Boca de Inferno: Film adaptation of the detective novel
that Fernando Pessoa didn’t write]
Gianluca Miraglia
Fernando Pessoa na Boca do Inferno: Dá a surpresa de ver um filme erótico detetivesco . 278
[Fernando Pessoa in Hell’s Mouth: The astonishment of watching a detective erotic movie]
Ana Clara Magalhães de Medeiros
Um Jantar Muito Original: Recontextualização e amplificação ......................................... 312
[A Very Original Dinner: Recontextualization and amplification]
Maria de Lurdes Sampaio
O Ídolo à luz das novelas policiarias de Fernando Pessoa .................................................. 328
[O Ídolo in the light of Fernando Pessoa’s detective fiction]
Marcelo Schincariol
[DOCUMENTS / DOCUMENTOS]
Vestígios de ninguém: As referências pessoanas na obra do cineasta Julio Bressane ........ 376
[Traces of nobody: References to Pessoa in the work of filmmaker Julio Bressane]
Ruy Gardnier
Dossier Ophiussa: Materiais de um filme com Pessoa ........................................................ 392
[Dossier Ophiussa: Materials from a Film with Pessoa]
Ida Alves
À propos de Le songe de B. Soares ............................................................................................ 428
[About Le songe de B. Soares]
Thibault Chollet
Paisagem-Pessoa: Apresentação de uma paixão em processo ............................................ 449
[Paisagem-Pessoa: Presentation of a Passion in Progress]
Susana Ventura
A Confissão de Laerte: Uma leitura da história em quadrinhos “O Poeta” .................... 461
[Laerte’s Confession: A reading of the comic book “O Poeta”]
Ermelinda Maria Araújo Ferreira
Pessoa e o Cinema? ..................................................................................................................... 476
[Pessoa and cinema?]
José-Manuel Xavier
Unas notas sobre Perplejidad .................................................................................................... 492
[Some notes on Perplejidad]
Carlos Atanes
Um Jantar Muito Original: O guião do filme de Ferreira e Simal ..................................... 504
[Um Jantar Muito Original: The film script by Ferreira and Simal]
Maria de Lurdes Sampaio / André Almeida
[FILM REVIEWS / CRÍTICAS]
O estranho caso do assassino de heterónimos ....................................................................... 545
[The Strange Case of the Killer of Heteronyms]
Recensão do filme Não Sou Nada – The Nothingness Club (2023)
Manuel Halpern
Cinema oculto sem filmar ......................................................................................................... 550
[Unfilmed hidden cinema]
Recensão de Aleister Crowley en la Boca del Infierno: El guión nunca filmado (2013)
Diego Giménez
Pessoa e a cidade, em rigor ........................................................................................................ 556
[Pessoa and the city, in rigor]
Recensão do filme Ophiussa – Uma Cidade de Fernando Pessoa (2012)
João Macdonald
Da escrita de imagens do filme Au bord du monde ............................................................... 562
[On the image writing of the film Au bord du monde]
Recensão do filme Au bord du monde – Fernando Pessoa (1992)
Joanise Levy
[PART 2: REGULAR ISSUE / NÚMERO REGULAR]
[ARTICLES / ARTIGOS]
Um Husserl heterónimo de Pessoa: entre a atitude poética e a atitude fenomenológica .... 584
[A Husserl heteronym of Pessoa: Between poetic attitude and phenomenological attitude]
Emanuele Mariani
[DOCUMENTS / DOCUMENTOS]
“Diário na Sombra”: A edição crítica que faltava ................................................................. 611
[“Diário na Sombra”: The critical edition that was missing]
Gianluca Miraglia
[BOOK REVIEWS / CRÍTICAS]
O homem dos sonhos ................................................................................................................. 623
[The man of dreams]
Recensão do livro Pessoa, el hombre de los sueños, 2023
Fernando Évora
“The aesthetic tie that binds me to the outside world”: From intervals to episodes ..... 628
[“Vosso seja o laço que me une ao exterior pela estética”: De intervalos a episódios]
Recensão do livro The Complete Works of Álvaro de Campos, 2023
Inês Forjaz de Lacerda
Um estudo que não cessa de não se estudar .......................................................................... 634
[A study that never ceases not to be studied]
Bruno Ministro
Recensão do livro Fernando Pessoa: irrealidad, escritura y desasosiego, 2023
Um opus magnum ........................................................................................................................ 640
[An opus magnum]
Recensão do livro Fernando Pessoa: O Ser Verbal, 2023
Isabel Ponce de Leão
Aspects of a literary legacy ........................................................................................................ 646
[Aspectos de um legado literário]
Recensão do livro Aspectos do Legado Pessoano, 2022
Pauly Ellen Bothe
A segunda vida de Fernando Pessoa ........................................................................................ 650
[Fernando Pessoa’s second life]
Recensão do livro A Segunda Vida de Fernando Pessoa, 2020
Sara Rodi
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Mello
Como o cinema descobriu Fernando Pessoa
Fernando Pessoa demonstrou pelo cinema um interesse multifacetado: concebeu
projetos de uso do cinema como ferramenta de propaganda nacionalista, escreveu
argumentos cinematográficos de ficção, além de ter tratado do cinema em textos ensaísticos (PESSOA, 2011). Essa produção diversa, escrita há um século, compõe a evidência
do interesse – difuso, porém persistente – do escritor português pelo cinema.
Agradeço aos editores da revista Pessoa Plural pelo convite para a organização
deste número especial. Ele é resultado de um trabalho iniciado em 2011 com minha
dissertação de Mestrado, em que estudei a relação entre Pessoa e o cinema (MELLO,
2011). Faltava inverter a ordem e investigar o interesse do cinema por Pessoa, ou
seja, recensear os filmes e cineastas que se inspiraram em sua vida e obra. Desde
2023, meu trabalho tomou forma numa pesquisa pós-doutoral – financiada pelo
CNPq, e realizada na Universidade de São Paulo, sob a supervisão do professor Caio
Gagliardi. Mais recentemente, a partir de 2024, também com financiamento do
CNPq, e sob supervisão da professora Ana Clara Magalhães de Medeiros, da Universidade de Brasília, iniciei uma pesquisa sobre o mesmo tema que terá períodos de
investigação na Brown University (EUA), na Universidade do Algarve (Portugal) e
na Universidad de los Andes (Colômbia).
Ao longo desta pesquisa, o corpus fílmico mais que triplicou de tamanho. Ao
todo já são mais de cinquenta filmes relacionados com Fernando Pessoa na lista que
tenho em construção1. Neste dossiê especial, é dado a conhecer um recorte amostral
desse corpus, com o intuito de discutir e suscitar a pesquisa sobre essa produção.
É surpreendente que, dentro de um panorama tão vasto como o da crítica
pessoana, o tema do cinema tenha ocupado um lugar tão marginal. A proposta desta
edição especial da revista Pessoa Plural é suprir essa lacuna e dar a conhecer ao
público e à crítica acadêmica uma produção desconhecida de filmes inspirados na
vida e na obra de Fernando Pessoa. Existe um cinema pessoano?
Já há muitos estudos a respeito da influência pessoana dentro da própria
literatura, especialmente na prosa (cujo mais notável expoente é o escritor Antonio
Tabucchi). Há também trabalhos sobre a imagética da figura de Pessoa nas artes visuais
(por exemplo: LOURENÇO, 1986 ou FERREIRA, 2007). Faltava um estudo longo – ou uma
coletânea de estudos, como é o caso aqui – sobre as obras audiovisuais relacionadas
a Pessoa: à sua vida, sua figura e, muito especialmente, à sua obra: seja à metaficção
do “drama em gente” heteronímico, seja à obra poética que o imortalizou, ou, ainda,
à produção marginal ao cânone dos quatro heterônimos mais conhecidos, categoria em
que podem ser incluídos seus escritos em prosa e seus argumentos para filmes.
A lista abrange muitas décadas e vários países. Apresentei uma visão panorâmica dela no curso
“Cinema Pessoano: os filmes inspirados na vida e na obra de Fernando Pessoa”, oferecido no Cinema
da Universidade de São Paulo (CINUSP), entre 9 e 21 de novembro de 2023.
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Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
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Como o cinema descobriu Fernando Pessoa
Diante do diagnóstico a respeito da crítica2 sobre esses filmes pessoanos,
surgiu a necessidade de se criar um volume que inaugurasse o desbravamento do
campo de estudo, convidando estudiosos a refletir sobre certas obras audiovisuais.
Foi surgindo, colateralmente aos filmes propriamente ditos, uma miríade de outros
documentos cinematográficos: roteiros (ou guiões) de filmes (já realizados ou ainda
a ser realizados), storyboards e outros tipos de estudos visuais, fotografias de set, (e
outros tipos de fotografia de viés cinematográfico) e alguns documentos inclassificáveis
(até então). Este amplo e inédito material ajudou a formar, ao lado dos filmes, a
matéria-prima sobre a qual mais de vinte estudiosos se debruçaram, tendo por
resultado este dossiê com quase 30 contributos.
Os documentos de texto, imagem e som ora incluídos suscitaram uma ampla
gama de questões que refletem as mil faces do poeta da multiplicidade. Algumas
dessas questões são: É possível adaptar a poesia? Que tipo de pensamento audiovisual
deriva de uma obra como a de Pessoa? Como autores cinematográficos atenderam
ao desafio de responder a Pessoa? E qual foi o Pessoa que cada diretor criou? De que
maneira a imagem exterior do poeta – o fantasma de chapéu, óculos e bigode – ronda
certos filmes? Como cada cineasta interpreta a opinião do próprio Pessoa sobre o
cinema – dispersa em sua obra menos conhecida, mas também aludida em sua
poesia? Quais são as potências intertextuais da obra de Pessoa para além do espaço
literário? Como a produção cinematográfica pessoana tratou, especificamente, o seu
interesse por gêneros como o policial – tão ligado ao cinema?
Além do gênero policial e de mistério, foi dedicada aqui atenção especial aos
desenhos animados pessoanos. Este dossiê especial procurou acolher a diversidade
do cinema pessoano, incluindo filmes e outros materiais que podem ser enquadrados
nas mais diferentes categorias e subcategorias, e dão ao leitor uma amostra do vasto
panorama que compõe o cinema pessoano. Este material, é claro, foi tratado sob uma
grande pluralidade de abordagens, entre as quais pode se dizer que existe certa
complementaridade, e possibilidades de diálogos férteis. A abundância presente
tanto no corpus fílmico quanto nos textos críticos impõe a consideração de um novo
campo de estudo.
Os filmes e documentos fílmicos inspiraram textos críticos, cada qual
ocupando sua respectiva seção. Um arquipélago de documentos cinematográficos e
textos críticos é apresentado a seguir. Esta apresentação procura traçar pontes entre
esses textos, convidando o leitor a mergulhar nesse universo caleidoscópico. Esta é
a filmografia que este dossiê esmiúça:
Parcial, ainda assim, com bons estudos sobre filmes pessoanos, por exemplo: MARTINHO (2015),
MATTOS-CRUZ (2017), MEDEIROS (2001), PETERLE (2005), SANTANA (2008), SEDLMAYER (2023) e SOARES
(2021), para referir apenas alguns. Cito, ainda, dois dos meus trabalhos: MELLO (2021a) e MELLO (2021b).
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O Mistério da boca do inferno (1989), de José Pina
Au bord du monde (1992), de Valérie Upscheid
28 (2009), de José-Manuel Xavier
O batuque dos astros (2012), de Júlio Bressane
Eu, Fernando Pessoa (2013), de Eloar Guazzelli
Ophiussa (2013), de Fernando Carrilho
Pessoas (2015), de José-Manuel Xavier
A cidade dos piratas (2018), de Opo Guerra e Laerte Coutinho
Como Fernando Pessoa salvou Portugal (2018), Eugène Green
Desassossego (2018), de José-Manuel Xavier
Le Songe de B. Soares (2019), de Thibault Chollet
Boca do Inferno (2019), de Luís Porto
O ídolo (2021), de Pedro Varela
Um jantar muito original (2021), de Leandro Ferreira
A seguir são sugeridos alguns caminhos possíveis para guiar o seu olhar.
Luzes, câmera… Ação!
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Como o cinema descobriu Fernando Pessoa
Figs. 1 a 14. Filmografia do número especial.
Embora já tenha sido considerado um “poeta sem biografia”, o fato é que a
vida concreta e real de Pessoa inspirou muitas obras cinematográficas, que exploram
o gênero fílmico do biopic. Em Ophiussa, quatro atores diferentes interpretam Pessoa
em diferentes períodos de sua vida, da infância à maturidade. O filme explora particularmente a relação do poeta com a cidade de Lisboa. Neste dossiê especial, quatro
autores analisam diferentes aspectos de Ophiussa em três textos: João Macdonald
insere o filme no panorama do cinema pessoano biográfico, enquanto Leonardo Pereira
e José Eduardo Ferreira exploram o aspecto urbano. Já o texto de Ida Alves apresenta
e discute alguns documentos ligados ao filme, como o roteiro integral (orientando a
filmagem a partir da passagem das quatro estações) e uma nota de intenções do diretor
Fernando Carrilho.
Outros filmes biográficos exploram acontecimentos inusitados (porém factuais)
da vida de Pessoa, frequentemente tida como banal, como se sabe. É o caso de Como
Fernando Pessoa salvou Portugal, de Eugène Green, que conta a história real do slogan
publicitário criado por Pessoa para a Coca-Cola em pleno salazarismo, e suas implicações políticas e morais. Estes e outros pontos são analisados no artigo de Sabrina
Sedlmayer, que traz em anexo o roteiro integral e o cartaz que aparece no filme.
Um outro acontecimento biográfico insólito teve grandes repercussões cinematográficas3: refiro-me ao encontro do poeta com o mago Aleister Crowley em 1930, e
a simulação de suicídio de Crowley. Este bizarro episódio é apresentado ao leitor
neste número especial pelo texto de Steffen Dix. Observe-se, de passagem, que a história
carrega em si certo caráter próprio do cinema: a figura de Crowley remete ao Mabuse
de Friw Lang, ou ainda a The Magician (1958) de Bergman. O cadáver “desaparecido”
no mar, por sua vez, é elemento de histórias policiais como Rebecca (1940) de Hitchcock.
Note-se, ainda, que os filmes listados a seguir adaptam tanto o fato histórico do encontro entre Crowley e Pessoa quanto The Mouth of Hell (PESSOA, 2019), novela “policiária”
escrita por Pessoa, baseada no desaparecimento de Crowley: há nela elementos
típicos do gênero policial (como um falso-Crowley e um falso-Pessoa) que, curiosamente, também remetem à obra poética de Pessoa.
O primeiro filme pessoano a tratar do encontro com Crowley foi O mistério da
Boca do Inferno, que é apresentado aqui por João Céu e Silva a partir de uma entrevista
Além das obras citadas no corpo do texto, mencione-se ainda a existência de Hino a Pã – O Último
Sortilégio, filme dirigido por António Cunha.
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Como o cinema descobriu Fernando Pessoa
com o diretor José Pina, num texto acompanhado de trechos do roteiro e do
storyboard originais, além de fotografias de estúdio inéditas. Alguns anos antes, o
encontro Crowley-Pessoa já havia sido tema da série de fotografias Fernando Pessoa
versus Aleister Crowley do artista visual Victor Belém: essas imagens estáticas (que
dialogam com o cinema) são tema de um artigo de Catalina Gutiérrez. O episódio
continuaria inspirando cineastas: Boca do Inferno, de Luís Porto, reencena o encontro,
numa cinematografia repleta de elementos teatrais. O filme é abordado em artigos
de Gianluca Miraglia e Ana Clara Medeiros, e é também Medeiros quem apresenta
uma série de depoimentos dados pela equipe do filme. O encontro com Crowley
também foi tema de dois textos cinematográficos do diretor Carlos Atanes: o roteiro
Aleister Crowley en la Boca del Infierno, analisado aqui por Diego Giménez, e Perplejidad,
uma versão romanceada da mesma história (escrita pelo diretor em resposta à provocação ensejada pela organização deste número especial), da qual é publicado aqui
um trecho, com apresentação do próprio cineasta.
O gênero policial está representado também por outro roteiro cinematográfico
(ainda) não-filmado: O Decifrador, escrito por Luísa Costa Gomes, baseado nas histórias
pessoanas do personagem (ou autor fictício?) do detetive Quaresma. O roteiro é
analisado aqui por Simone Celani. Já o thriller policial O ídolo, de Pedro Varela, é
objeto de um longo ensaio de Marcelo Schincariol, que analisa o filme tendo por base
o argumento cinematográfico pessoano no qual ele se baseia.
O gênero de mistério, correlato ao policial, está aqui representado pelo filme
Um jantar muito original, de Leandro Ferreira, adaptado a partir do conto homônimo
escrito por Fernando Pessoa. Um artigo de Maria de Lurdes Sampaio disseca o filme,
e o respectivo roteiro é apresentado também por Sampaio, desta vez acompanhada
por André Almeida.
No extremo oposto, em um registro mais ameno e caricatural, a presença de
Pessoa no gênero dos desenhos animados é tratada em vários textos críticos deste
dossiê. Um biógrafo descreveu Pessoa como “um senhor de bigode chaplinesco e
óculos redondos” e o comparou a um personagem de Jacques Tati (ZENITH, 2022: 925
e 705): como se vê, não é disparatado atribuir-lhe uma imagem cômica. O texto crítico
mais abrangente sobre esses desenhos animados pessoanos é o artigo de Pedro
Moura, em que são analisados: um booktrailer de curtíssima-metragem de Eloar
Guazzelli (Eu, Fernando Pessoa) e um storyboard inédito do mesmo artista, três curtas
pessoanos de José-Manuel Xavier (28, Desassossego e Pessoas), um curta de Thibault
Chollet (Le songe de B. Soares) e o longa-metragem A cidade dos piratas, dirigido por
Opo Guerra a partir da história em quadrinhos (ou banda desenhada) de Laerte
Coutinho.
A revista apresenta documentos inéditos desses realizadores: a história em
quadrinhos “O Poeta” de Laerte Coutinho, protagonizada por um Fernando Pessoa
caricatural, é publicada aqui na íntegra, com apresentação de Ermelinda Ferreira.
O storyboard inédito (sem título) de Guazzelli é apresentado por Susana Ventura.
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Como o cinema descobriu Fernando Pessoa
O próprio diretor Thibault Chollet apresenta materiais de produção de seu curta,
enquanto José-Manuel Xavier publica um texto inédito sobre a relação de sua obra
com Pessoa.
O recorte histórico deste dossiê atravessa cinco décadas, e contempla filmes
bastante recentes, como Não sou nada de Edgar Pêra, objeto de uma resenha (ou recensão) de Manuel Halpern. A repercussão do filme na imprensa é analisada por um
artigo de Teresa Lima. A mesma autora, noutro artigo, se debruça sobre os cadernos de
trabalho do mesmo diretor. Régis Salado analisa a versão original (e significativamente diferente) do roteiro de Não sou nada, de autoria de Luísa Costa Gomes.
Concebido em meio ao salto tecnológico da geração de imagens apoiada por
inteligência artificial, este número especial não poderia deixar de abordar essa nova
faceta da criação artística e cinematográfica, que desperta tanto admiração quanto
preocupação. Um ensaio de Bruno Ministro analisa as imagens geradas pelo diretor
Edgar Pêra para seu futuro filme, Cartas telepáticas, que imagina um encontro entre
Fernando Pessoa e H. P. Lovecraft.
Joanise Levy analisa e apresenta o roteiro cinematográfico que deu origem a
Au bord du monde, curta-metragem pessoano onírico. O crítico Ruy Gardnier analisa
O Batuque dos Astros de Júlio Bressane, documentário que repassa, numa colagem de
autocitações, as inúmeras referências a Pessoa nos filmes de Bressane (especialmente
das décadas de setenta e oitenta): essas citações de Bressane-Pessoa foram transcritas
e são apresentadas em anexo acompanhadas de imagens still dos filmes.
Como o leitor pode constatar, embora este dossiê privilegie os filmes, também
há espaço para vários tipos de documentos intermediários. São contemplados aqui
desde roteiros cinematográficos – textos feitos para gerar imagens e som –, sejam
eles filmados (como Au bord du monde, Como Fernando Pessoa salvou Portugal, Um
jantar muito original e Ophiussa) ou não filmados (O Decifrador, Aleister Crowley en la
Boca del Infierno e Perplejidad), bem como um roteiro em estágio intermediário: a
versão de Gomes de Não sou nada, que remete parcialmente ao resultado fílmico.
Ainda no universo das imagens, há fotografias de filmagens, storyboards de
filmes realizados (Eu, Fernando Pessoa e O mistério da Boca do Inferno) e não realizados
(o projeto sem título de Guazzelli); há imagens geradas por inteligência artificial a
partir de prompts textuais (Cartas telepáticas), e também uma série de fotografias
(Fernando Pessoa versus Aleister Crowley do artista Victor Belém). Há, ainda, objetos
híbridos como os cadernos de trabalho de Edgar Pêra ou a história em quadrinhos
“O Poeta” de Laerte Coutinho. Isso sem falar em entrevistas, depoimentos, notas de
intenções e outros tipos de documentos de trabalho.
O mosaico cinematográfico aqui explorado suscita muitas formas de diálogos
entre filmes. Propositadamente, não foi imposta aqui uma diferenciação tão estrita entre
filmes produzidos e lançados comercialmente (por exemplo, Não sou nada e A cidade
dos piratas) e outros apenas veiculados em festivais (Au bord du monde e Boca do
inferno), filmes de viés publicitário (O ídolo e o booktrailer Eu, Fernando Pessoa), um
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Como o cinema descobriu Fernando Pessoa
filme para a televisão (Um jantar muito original), um filme-ensaio (Ophiussa), entre
outros exemplos. Há aqui desde filmes realizados por equipes grandes (Não sou nada
e Boca do inferno) até projetos realizados quase totalmente por um só indivíduo (como
os de Xavier e de Chollet). Há referência aos mais diversos heterônimos, bem como
ao ortônimo, tanto em poesia quanto em prosa.
A renovação do olhar concebida por Alberto Caeiro pode dialogar com muitos
cineastas e teorias cinematográficas. Álvaro de Campos fantasiou com uma “loura
falsa” com “gestos de distinção cinematográfica” (PESSOA, 2014: 275). No Livro do desassossego lê-se que “o sonho tem grandes cinemas” (PESSOA, 2017: 325), e seu autor considerava que, mesmo se “fosse actor prolongado de cinema […], ficaria longe de
saber o que sou do lado de lá” (PESSOA, 2017: 277). Mas, afinal, de que maneira aquilo
que Pessoa escreveu ressoou no cinema?
As luzes se apagam e a sessão vai começar. Boa leitura!
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Mello
Como o cinema descobriu Fernando Pessoa
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Mello
Como o cinema descobriu Fernando Pessoa
MARCELO CORDEIRO DE MELLO é professor e pesquisador das áreas de literatura e cinema.
Atualmente é pesquisador de Pós-Doutorado no Exterior (CNPq / Universidade de Brasília) com
o projeto “Pessoa Intercontinental”. Publicou artigos no Brasil, em Portugal, na França e nos
Estados Unidos. Doutor em Estudos Literários pela Universidade Federal de Minas Gerais, com
a tese “Espetáculo e resistência no roteiro cinematográfico inédito de ‘A hora dos ruminantes’”,
defendida em 2019 (Bolsa CAPES / PROEX e Bolsa Doutorado Sanduíche no Exterior – University
of Texas at Austin). Mestre em Línguas, Literaturas e Civilizações Estrangeiras pela Université
Paris IV, Sorbonne, com a dissertação “Fernando Pessoa et le cinéma”, defendida em 2011. É
pesquisador dos grupos: Cartografias de roteiros (FAP/DF), Estudos Pessoanos (USP) e Crítica
Polifônica (UnB). Colaborou como consultor de roteiro em obras audiovisuais.
MARCELO CORDEIRO DE MELLO is a professor and researcher in the fields of literature and
cinema. Currently, he is a Post-Doctoral Researcher Abroad (CNPq/University of Brasília) with
the project “Intercontinental Pessoa”. He has published articles in Brazil, Portugal, France, and
the United States. He holds a PhD in Literary Studies from the Federal University of Minas
Gerais, with the thesis “Spectacle and resistance in the unpublished screenplay of ‘A hora dos
ruminantes’”, defended in 2019 (CAPES/PROEX Scholarship and Doctoral Exchange Scholarship –
University of Texas at Austin). He holds a Master’s degree in Foreign Languages, Literatures,
and Civilizations from Université Paris IV, Sorbonne, with the dissertation “Fernando Pessoa et
le cinéma”, defended in 2011. He is a researcher in the groups: Cartographies of Screenplays
(FAP/DF), Pessoan Studies (USP), and Polyphonic Criticism (UnB). He has collaborated as a
screenplay consultant on audiovisual works.
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Pereira & Ferreira
Lisboa, a cidade mítico-poética
O filme Ophiussa – Uma Cidade de Fernando Pessoa, do diretor Fernando Carrilho1, tem
a intenção de ser uma viagem pela cidade de Lisboa a partir de textos e de poemas
de Fernando Pessoa, de seus heterônimos e semi-heterônimos. Além disso, são
apresentados no filme tanto locais concretos de passagem e permanência do autor
quanto a Lisboa poética de seu imaginário. O presente artigo pretende, pois,
acompanhar esse percurso por Lisboa proposto pelo diretor, relacionando-o com
alguns textos do poeta – de sua produção em prosa do Livro do Desassossego e de sua
poesia ortônima e heterônima –, no que diz respeito a duas possíveis dimensões
oferecidas pela cidade para o viajante que embarca no filme e nos textos pessoanos:
a mítica e a geográfica.
Antes, no entanto, de explorar a “cidade mítico-geográfica” de Lisboa, cabe
tecer algumas considerações gerais a respeito do filme de Carrilho. Adotar-se-á, no
presente estudo, uma junção do termo pasoliniano “cinema de poesia” ao termo
“filme-ensaio” para definirmos a obra Ophiussa. Para Pasolini, há o “cinema de
prosa” e o “cinema de poesia”. A diferença entre ambos consiste em:
O cinema de prosa é um cinema no qual o estilo tem um valor não primário, não tão à vista,
não clamoroso, enquanto o estilo no cinema de poesia é o elemento central, fundamental. Em
poucas palavras, no cinema de prosa não se percebe a câmera e não se sente a montagem,
isto é, não se sente a língua, a língua transparece no seu conteúdo, e o que importa é o que
está sendo narrado. No cinema de poesia, ao contrário, sente-se a câmera, sente-se a montagem,
e muito.
(PASOLINI, 1986a: 104)
Em Ophiussa – Uma Cidade de Fernando Pessoa, câmera, montagem, trilha sonora e
fotografia se fazem sentir como a linguagem poética em que Lisboa, ou, mais
especificamente, a Lisboa de Pessoa, aparece em cena.
Não se trata, portanto, no filme (construído de modo que os planos-sequência
são sempre acompanhados de fragmentos da obra pessoana, na maioria das vezes,
do Livro do Desassossego) de a câmera ser uma mera ilustração, ou legenda às avessas
dos trechos recitados, mas, sobretudo, de realizar um esforço estilístico de colocar o
espectador em presença da Lisboa poética de Pessoa. Segundo Pasolini,
[...] o cinema é muito mais ambíguo do que se pode imaginar. Eis o porquê: o cinema é um
plano-sequência infinito que exprime a realidade com a realidade. Existe sempre na frente de
cada um de nós uma eventual e virtual câmera de cinema, com um chassis inesgotável, que
registra a nossa vida desde que nascemos até morrermos. Porque a nossa linguagem PRIMEIRA
E PURA é a nossa presença, realidade na realidade.
(PASOLINI, 1986b: 107)
A emissora pública RTP tornou disponível uma versão reduzida do filme em seu site. Cf. Ophiussa
– Uma Cidade de Fernando Pessoa; RTP: https://arquivos.rtp.pt/conteudos/ophiussa-uma-cidade-defernando-pessoa/
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Pereira & Ferreira
Lisboa, a cidade mítico-poética
Afinal, pôr em presença a Lisboa de Pessoa, por meio de um ensaio poético-fílmico,
não é documentar de maneira arqueológica a cidade, ou filológica o texto, mas
atualizar os sentidos neles imbricados, multiplicando-os.
De fato, Gadamer, em um ensaio sobre a poesia de Ernst Meier e, por extensão,
sobre a poesia lírica contemporânea, estabelece algumas semelhanças entre poesia e
diálogo (GADAMER, 2010: 379-381). Para o filósofo alemão:
Ser atualização do sentido parece-me ser a formulação mais sucinta do milagre e do enigma
da linguagem [...]. Se a linguagem é sempre a tal ponto atualização do sentido – qual é afinal
a diversidade da linguagem do diálogo, qual é a diversidade do modo cristalino da aparição
da linguagem no poema? Neles, não acontece apenas a atualização de um sentido duradouro
na palavra que se volatiza. Ao contrário, é a presença sensível da palavra que conquista duração
[...]. Tenho em vista aqui a palavra “tom” [...] no sentido de “tensão”, tal como a tensão da
corda estendida a partir da qual soa o som harmônico. O fato de os versos possuírem um
“tom” é a distinção incomparável do real poema. É o tom que se sustém que leva a termo o
milagre, que faz com que o poema “se assente sobre si”, para falar como Hölderlin, em suma:
que haja algo que se mantém no momento fugidio.
(GADAMER, 2010: 381)
Daí que se possa afirmar, em linhas gerais, que Ophiussa – Uma Cidade de Fernando
Pessoa se enquadra no termo “cinema de poesia”, assim chamado por Pasolini, pois
o “tom”, a “tensão” de que Gadamer fala, própria da “atualização de sentido” que
“conquista sua duração”, está presente nas escolhas estilísticas do diretor para além
da preocupação em documentar a Lisboa de Pessoa, propondo atualização dialógica.
Feita de modo que as escolhas de planos, de fotografia, das trilhas sonoras significam
muito e, portanto, não podem ser trocadas por outras, a obra se abre para que a Lisboa
de Pessoa e a poética de Pessoa mantenham-se múltiplas em atualizar sentidos.
No que diz respeito ao “filme-ensaio”, um de seus principais teóricos, Timothy
Corrigan, atesta que uma de suas principais características é a presença de uma
“subjetividade expressiva” (CORRIGAN, 2015: 33). Essa “subjetividade expressiva”
pode tanto ser percebida através da presença e da voz do cineasta como pelas de um
substituto (CORRIGAN, 2015: 33). Segue o teórico:
Assim como a presença da primeira pessoa muitas vezes se origina de uma voz e perspectivas
pessoais, os filmes-ensaio caracteristicamente destacam uma persona real ou ficcional cujas
buscas e questionamentos moldam e dirigem o filme no lugar de uma narrativa tradicional e
frequentemente complicam a aparência documentária do filme com a presença de uma
subjetividade ou posição enunciativa pronunciada.
(CORRIGAN, 2015: 33)
Uma “posição enunciativa pronunciada” pode, justamente, ser analisada no caso de
Ophiussa.
Ora, para a análise que proporemos neste ensaio, é importante destacar que
as nuances significativas propostas por Fernando Carrilho, desde o nome pelo qual
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Pereira & Ferreira
Lisboa, a cidade mítico-poética
identifica a cidade, se faz por caminhos sinuosos, como o feito pela serpente (tendo
em vista que o nome “Ophiussa” significa “terra das serpentes”), recusando – e,
assim, dialogando com a estrutura do Livro do Desassossego – linearidades totalizantes.
Para Corrigan:
O pensamento ensaístico, assim, torna-se uma refeitura conceitual, figural, fenomenológica e
representacional de um eu enquanto ele encontra, testa e experimenta alguma versão do real
como “outro lugar” público. O pensamento ensaístico se torna a exteriorização da expressão
pessoal, determinada e circunscrita por um tipo, qualidade e número sempre variáveis de
contextos materiais em que pensar é multiplicar os eus.
(CORRIGAN, 2015: 39)
Se no filme-ensaio e no ensaísmo em geral “pensar é multiplicar os eus”, a obra de
Fernando Carrilho realiza – com a adoção da perspectiva de um eu, o do poeta
Fernando Pessoa, cuja experiência radical dessa multiplicação não tem paralelo na
história da Literatura – retrato fiel, porquanto não de escola realista, da Lisboa de
Pessoa. Por isso, sem deixar de ser o que é, a saber, uma cidade concreta e com
tessituras sociais construídas e tensionadas historicamente, Lisboa é Ophiussa,
cidade oculta em que tudo, de certa forma, é símbolo e realidade outra, é vida no
pulsar cotidiano, mas é transubstanciação artística do real.
A cena inicial de Ophiussa nos dá uma breve amostra de como Fernando
Carrilho constrói seu filme-ensaio: um pequeno Pessoa observa da janela o Teatro
São Carlos, em Lisboa, e, de lá, ouve o som de uma ópera, O Holandês Voador, de
Wagner. De seu quarto, vê a burguesia que entra no teatro. Depois de um tempo,
afasta-se da janela e, ainda ao som de Wagner, deita, olhando, como se sonhasse
acordado, para o teto escuro. Nessa tomada, pode-se contemplar os movimentos
interiores do menino Pessoa e os exteriores da cidade em atividade cosmopolita.
Sem precisar que um dos narradores do filme faça, neste ponto, qualquer inserção,
a cena evoca trecho do poema “Tabacaria” – não mais pela lente do engenheiro
Álvaro de Campos, mas pela contemplação do menino – em que se diz: “Janelas do
meu quarto, | Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem
é” (PESSOA, 1990: 362) (ver: Fig. 1).
Partindo de sua metáfora, como no poema “Tabacaria”, a janela que o filme
abre, na cena inicial, nos dá acesso tanto a dados biográficos (Pessoa morou, na
infância, em frente ao Teatro São Carlos, e seu pai foi crítico de ópera e entusiasta de
Wagner), como também à formação do artista e de seus motivos e temas. De Wagner,
temos o motivo da vida como obra de arte, a arte total, a preferência decadentista
pelo sonho e o acastelamento do eu.
Fernando Pessoa e sua cidade, Lisboa-Ophiussa, no filme, são todas essas
coisas multiplicadas e amalgamadas. Como será argumentado ao longo deste artigo,
a “cidade de Fernando Pessoa” é, ao mesmo tempo, a da decadência explorada pela
figura do flâneur, a das relações cotidianas banais e, além disso, a que se ergue
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Pereira & Ferreira
Lisboa, a cidade mítico-poética
miticamente como propiciadora do sonho. Dito isso, sigamos às dimensões de
Lisboa no filme e ao diálogo com a obra pessoana.
Fig. 1. Pessoa olhando na janela (cena de perfil).
Lisboa de geografia íntima e urbana
O filme de Fernando Carrilho, da mesma maneira que apresenta a cidade de Lisboa
“mítico-poética”, também revela a imagem particular de Fernando Pessoa como
alguém que é, ao mesmo tempo, observador do pulsar urbano e integrante dele, já
que também faz parte desse espaço real e imaginário de Lisboa. Na obra, todas as
tomadas da cidade, sejam de suas construções, do seu povo ou do rio Tejo, têm uma
intenção oculta: captar o olhar poético pessoano. Através desse exercício interpretativo,
procura-se desvendar o pensamento íntimo do cidadão lisbonense que foi Pessoa.
Por meio da imagem de um poeta reflexivo que percorre os espaços do seu
quarto, deitado na cama ou em pé, observando seus escritos em construção, Carrilho
também faz com que Pessoa percorra, naquele instante, os inúmeros espaços
urbanos de Lisboa. Então surge, poeticamente, uma cidade diferente.
A Lisboa pessoana não é apenas fruto da observação diária, dos momentos
em que o poeta passa em cafés e em restaurantes, mas também de um exercício de
reflexão intelectual e de construção emocional. Essa nova cidade está presente tanto
no poema “Tabacaria” de Álvaro de Campos quanto nos fragmentos de prosa
poética presentes no Livro do Desassossego, de Vicente Guedes e Bernardo Soares,
ambos os escritos mencionados ao longo da película de Fernando Carrilho (Fig. 2).
Como homem de seu tempo, Fernando Pessoa vivenciou uma mudança
paradigmática na organização dos espaços urbanos das sociedades europeias do
final do XIX e início do século XX. Com o avanço do desenvolvimento técnicocientífico, atrelado à lógica de produção econômica capitalista, novas dinâmicas
sociais e um novo modo de encarar a realidade eclodem nos grandes centros
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Pereira & Ferreira
Lisboa, a cidade mítico-poética
europeus, transformações que foram captadas e analisadas nas produções literárias
dos autores finisseculares. Em alguns trechos do Livro do Desassossego, há impressões
e reflexões sobre a existência urbana lisboeta, que partem de um simples observar
de transeuntes e de ambientes que emolduram a cidade, até a construção de uma
Lisboa poética captada por um olhar interno e particular.
Fig. 2. Pessoa olhando a janela no quarto escuro (plano americano).
Esse duplo movimento de observação urbana, muito bem captado no filme
de Fernando Carrilho, faz lembrar tanto o flâneur baudelairiano – uma espécie de
cúmplice dos diversos espaços urbanos e integrado ao cotidiano da multidão como
observador diário – quanto uma espécie de personagem “antimoderna”, que habita
e almeja um ambiente diverso daquele como alvo dos seus olhares e reflexões.
O flaneurismo em relação à Lisboa salta aos olhos do leitor do Livro do
Desassossego e do espectador do filme Ophiussa, mas também revela uma sintonia
com a leitura social oriunda da experiência simbolista e decadentista francesa. Essa
espécie de percepção da realidade, fragmentada em tendências estéticas finisseculares,
aparentemente independentes, grosso modo, revelavam, tanto o entusiasmo ante as
possibilidades oferecidas pela modernidade, quanto um latente sentimento de crise
social e de inadequação do citadino dentro da dinâmica metropolitana europeia do
final do século XIX.
Essa relação entre Pessoa e essas correntes literárias foi muito bem pontuada
pelo crítico Robert Bréchon, em sua biografia sobre o autor de Mensagem:
Toda essa literatura decadente do início da década de 1880 foi para o jovem Pessoa de 19081910 um espelho de sua própria alma, mergulhada nas contradições e nos jogos estéreis de
uma poesia pós-romântica em que já não acredita absolutamente. É nesse clima de fim de
civilização que em 1912 se vai dar seu encontro com os amigos do Orpheu, [...]. As analogias
entre Bernardo Soares, o narrador do Livro do Desassossego, começado em 1908 ou 1909, e o
herói de Huysmans, Des Esseintes são evidentes. Soares parece o duplo plebeu do aristocrata
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Pereira & Ferreira
Lisboa, a cidade mítico-poética
Des Esseintes cujo modelo é, entre outros Robert de Montesquiou, em quem também Proust
se inspirou para criar a personagem do barão de Charlus. Seu programa de vida é o mesmo:
sonhar a vida, viver o sonho, requintar as sensações, “quintessenciá-las”; pensar as sensações
e sentir os pensamentos etc.
(BRÉCHON, 1998: 130-131)
O protagonista da obra À rebours, de 1884, do escritor Huysmans, Jean des Esseintes,
assim como os semi-heterônimos pessoanos que escrevem o Livro do Desassossego,
vive uma existência de recusa da realidade observada, “vive pelo e para o espírito,
de modo que a realidade passe a ser aquilo que ele cria pela imaginação” (GOMES,
2016: 15). Homens enfastiados pelo fim do século e que, à maneira deles, criam
paraísos artificiais particulares, ativados seja pela experiência das sensações ou por
meio da atividade incessante do sonhar.
Fig. 3. Pessoa sentado em sua escrivaninha de trabalho de olhos fechados.
Tanto Vicente Guedes quanto Bernardo Soares pontuam a importância do
sonho como medida julgadora da realidade por vários trechos do Livro do Desassossego.
O sonho só surge porque revela ausência, estranhamento, perda, melancolia e saudade
resultantes da experiência de observar o quadro da vida moderna lisboeta. O sonho
é a salvação para o indivíduo que vive em Lisboa e almeja construir, mesmo por
devaneios, uma nova cidade.
Na minha alma ignóbil e profunda registro, dia a dia, as impressões que formam a substância
externa da minha consciência de mim. [...] Quando escrevo, visito-me solenemente. Tenho
salas especiais, recordadas por outrem em interstícios da figuração, onde me deleito
analisando o que não sinto, e me examino como a um quadro na sombra. Perdi, antes de
nascer, o meu castelo antigo. Foram vendidas, antes que eu fosse, as tapeçarias do meu
palácio ancestral. O meu solar de antes da vida caiu em ruína, e só em certos momentos,
quando o luar nasce em mim de sobre os juncos do rio, me esfria a saudade [...].
(PESSOA, 2023: 363)
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Lisboa, a cidade mítico-poética
O devaneio, como norteador crítico da realidade, aparece muito mais arraigado
dentro do cotidiano lisboeta a partir do estabelecimento de uma maior proximidade
com a poesia de Cesário Verde. A partir do fragmento 169,2 o texto de Bernardo
Soares passa por uma espécie de “reajuste estético” (PIZARRO, 2020: 144) e adquire
um estilo mais claro, mundano e objetivo, se afastando da tonalidade vaga,
atemporal e até mesmo exótica dos fragmentos decadentistas de Vicente Guedes e
de Barão de Teive.
Essa relação de intimidade estética com Cesário Verde proporciona ao Livro
do Desassossego um novo olhar para a Lisboa de Fernando Pessoa. A quimérica cidade
do passado ganha um contorno mais real e pulsante com a presença das dinâmicas
sociais advindas das novas vivências da modernidade lisboeta e entram em sintonia
com a poesia de um Álvaro de Campos tardio (PIZARRO, 2020: 146).
Em Fernando Pessoa, a melancolia transmuta-se na reconstrução poética do
passado português no livro Mensagem e no sentimento de tédio que ronda o olhar
perscrutador da modernidade presente no Livro do Desassossego, principalmente com
o texto renovador de Bernardo Soares e no poema “Tabacaria” de Álvaro de Campos.
Exemplos da obra pessoana que devem ser lidos em conjunto para o completo
entendimento do corpus poético em torno da Lisboa “mítico-poética”.
Sua Lisboa é um labirinto espiritual, mágico e maldito, por onde ele erra em busca de
sensações, de impressões, de verdades, de encantamentos e de metamorfoses. A única saída
que poderá revelar-se é o mito. A Lisboa de Pessoa é a de Ulisses, lendário fundador epônimo
da cidade [...]. É a de Vasco da Gama e dos demais navegadores da época dos Descobrimentos,
os quais partiam do porto de Belém; a de D. Sebastião, o rei “encoberto” à espera do momento
em que irá reaparecer, numa manhã de nevoeiro, no estuário do Tejo, para reatar o destino
português interrompido e fundar o “Quinto Império”, que é a reconquista do sentido da vida.
(BRÉCHON, 1998: 18)
Para o poeta, a construção de uma nova Lisboa a partir de uma leitura pessoal –
herdeira de uma tradição poética que perpassa Camões, os românticos oitocentistas,
a Geração de 1870, Teixeira de Pascoaes e Cesário Verde –, e da observação da
“matéria do mundo tangível” (PIZARRO, 2020: 147), é, na verdade, o sonho de
reconstrução mítica do destino português. Essa Lisboa “mítico-poética” representa:
[...] a mitologia portuguesa no seu conjunto – desde Ulisses a Viriato, de Nunes Álvares a D.
Sebastião, de Bandarra a Vieira – que deve despertar da sua ‘falsa morte’, abandonar a sua
pequena casa lusitana e fundir-se, como outrora o fizera em nome de um Cristo conquistador,
“Aceitemos esse fragmento, ‘Amo, pelas tardes demoradas de verão’, como um convite para entrar
no segundo ‘Livro’, um conjunto de textos mais pobres em princesas, cisnes e bosques, porém mais
ricos em ruas, provedores e moços de cargas. Nesta segunda parte, a palavra Lisboa não está muito
presente, mas não precisa de estar, porque tudo indica em que cidade é que o leitor de repente se
instalou” (PIZARRO, 2020, p. 142).
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travestido pelo fanatismo e a ignorância, num Império que não pode morrer, o da ‘guerra
sem guerra’, no qual conheceremos, por fim, o nosso verdadeiro nome.
(LOURENÇO, 1999: 147)
A cidade mítica Lisboa-Pessoa
A epopeia sui generis que é Mensagem renova, na chave messiânica própria do
sebastianismo pessoano, o mito da fundação de Lisboa por Ulisses:
II. Os Castelos
Primeiro | Ulysses
O mytho é o nada que é tudo.
O mesmo sol que abre os céus
É um mytho brilhante e mudo –
O corpo morto de Deus,
Vivo e desnudo.
Este, que aqui aportou,
Foi por não ser existindo.
Sem existir nos bastou.
Por não ter vindo foi vindo
E nos criou.
Assim a lenda se escorre
A entrar na realidade.
E a fecundá-la decorre.
Em baixo, a vida, metade
De nada, morre.
(PESSOA, 1990: 72)
A reconstituição do mito de Ulisses na pena de Pessoa se assenta na ideia de que,
para a história e constituição de um império, contribuem tanto ou mais que os feitos
militares, políticos e de empresa, os seus mitos fundadores, fonte de sentido para o
qual o destino imperial aponta e busca se realizar.
Assim, tanto na obra pessoana como em diferentes momentos históricos e
com diferentes intencionalidades, foi erguida, com maior ou menor penetrabilidade
naquilo que se costuma chamar de imaginário coletivo, a tese de que a cidade de
Lisboa teria sido fundada por Ulisses. Uma das legendas da General Estoria, feita sob
encomenda por Alfonso X, o Sábio, por exemplo, ensina que:
Y Ulixes andudo por aquella tierra y víola muy buena y muy complida de aguas y de montes
y de frutas y de heredades, y que serié abondada de todos bienes si poblada fuese, ca tierra
de Portogal non era aun estonces poblada. Y cató el mejor lugar y más guisado y pobló en la
ribera de la mar una cibdat. E porque le semejó aquel lugar mejor que él fasta allí avía fallado
tomó d'este su nombre Ulixes y este otro bona y ayuntólos y fizo dende uno, y púsole aquella
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cibdad que fazié y llamóla Ulixbona, y mandóla así llamar a todos de'allí adelanté, y así la
llamaron, y este nombre á oy en día, y éste á ella, maguer que el común de gente le dizen Lixbona.
(ALFONSO X, 2009: III, 259-260)
[E Ulisses andou por aquela terra e a achou muito boa e muito farta de águas, montes, frutas e fazendas,
e que seria repleta de muitos bens se estivesse povoada, pois a terra de Portugal não era povoada então.
E, então, escolheu o melhor e mais ajeitado lugar e povoou em sua ribeira uma cidade. E porque lhe
pareceu aquele lugar melhor que outros pelos quais havia perambulado, tomou de seu próprio nome,
“Ulisses” e este outro “bona” e os juntou, fazendo-os um só, e pondo o nome àquela cidade que
construía, chamando-a de “Ulixbona”, mandou que, dali para a frente todos assim também a chamassem.
E, assim, chamaram-na, e este nome ainda existe hoje em dia, embora as pessoas comuns a pronunciem
como “Lixbona”.]
(Tradução livre feita pelos autores do artigo)
Derivando e fabulando etimologicamente sobre o nome de Lisboa como “Ulixbona”,
isto é, “Boa Ulisses”, esta lenda, assim como outras narrativas fundacionais a
respeito da vinda, permanência e ação criadora do povo português feita pelo herói
grego, “[...] escorre | a entrar na realidade, | e a fecundá-la decorre”, restando à vida
comum e à História que não é símbolo ou figura de o Encoberto serem menos que o
nada: “Em baixo, a vida, metade | De nada, morre” (PESSOA, 1990: 72). Vale lembrar
que a vida para Pessoa, nos seus desdobramentos íntimos e dramáticos, é absurda e
sem sentido caso não esteja tomada pela visão de Gênio (da qual trataremos adiante).
Cabe ao “mytho”, portanto, que é “nada”, “ser tudo” (PESSOA, 1990: 72).
Diante disso, é mais que compreensível uma viagem à Lisboa de Pessoa, como
pretende ser o ensaio-poético-cinematográfico que é o filme Ophiussa, nomear a
cidade com um de seus títulos míticos, como “Ulixbona”, ou mesmo, “A boa Ulysses”.
Tal nomeação poderia, de antemão, acenar para um diálogo direto com o famoso
poema de Pessoa e, ainda mais, ratificar a grandiosidade mítica lisboeta e, por fim,
intensificar as relações do filme com o imaginário criado pela arte e literatura.
Fernando Carrilho, no entanto, opta por nomear seu filme como “Ophiussa”.
Por si só, o título da obra mantém a “aura mítica” de Lisboa, mas sob outro aspecto.
Referida pelo seu nome pretérito (cf. MANUEL, 2007: 28-53) por ser anterior ao do
domínio romano, Lisboa como Ophiussa não só evoca etnografias antigas e de forma
paulatina redescobertas, mas também, pela simbologia serpentina apresentada em si,
registra outra Lisboa: oculta e de caminhos sinuosos. É pelo “caminho da serpente”,
pois, que o ensaio-poético-documental de Ophiussa nos convida a visitar Lisboa.
Fazendo eco a um dos fragmentos ocultistas de Fernando Pessoa, o “cinema
de poesia” de Carrilho pretende pôr em presença a Lisboa que – no entrecruzar de
sua imagem concreta das relações humanas e de suas paisagens deslumbrantes
chamativas para o turista, de sua cotidianidade banal e de mítica imperial, de lar e
de lugar impossível, irrealizável, “inacessível a todos os pensamentos” (PESSOA,
1990: 362), de degradação, de degenerescência, mas virtualmente prenhe de poder
evocativo criador – dialoga com diferentes realidades promovidas pelas sensações,
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sem, no entanto, aderir a ilusões falsas que uma exaltação ufanista da cidade poderia
acarretar. O filme, portanto, escolhe um caminho difícil, assim como o é o da serpente
no fragmento a que nos referimos:
A ilusão é a substância do mundo, e, segundo a Regra, tanto no mundo superior como no
mundo inferior, no oculto como no patente. Assim, quando fugimos do mundo inferior, por
ele ser ilusório, o mundo superior, onde nos refugiamos, não é menos ilusório; é ilusório de
outra, da sua, maneira. Só a Serpente, contornando os infinitos abertos – ou os círculos
“incompletos” – dos dois mundos foge à ilusão e conhece o princípio da verdade.
(PESSOA, 1986: 215)
Sobre o “simbolismo da serpente”, Gaston Bachelard afirma o seguinte:
A serpente é, em nós, um símbolo motor, um ser que não tem “nadadeiras, nem pés, nem
asas”, um ser que não confiou suas capacidades motoras a órgãos externos, a meios artificiais,
mas que se fez o móvel íntimo de todo o seu movimento. Se acrescentamos que esse
movimento fura a terra, perceberemos que, tanto para a imaginação dinâmica como para a
imaginação material, a serpente se mostra um arquétipo terrestre.
(BACHELARD, 2003: 203)
Aplicado ao filme o que Pessoa considera ser o “caminho da Serpente”, pode-se
dizer que as diferentes formas de composição das cenas contornam “infinitos
abertos”, ou “círculos incompletos”, duma Lisboa que se fragmenta multiplicando-se. Esta fragmentação multiplicadora, em refrações da estética sensacionista,
acompanha, além da cidade, a construção da persona-Pessoa ao longo do filme. Antes
de seguirmos com a cidade, vale, num breve interregno, acompanhar o filme sob este
processo de construção.
As cenas 3 e 4 do filme trazem a narração, com as vozes do intérprete de
Bernardo Soares na primeira e do intérprete de Vicente Guedes na segunda, dos
seguintes trechos do Livro do Desassossego. Cena 3, voz de Bernardo Soares, Pessoa
no interior do quarto:
O patrão Vasques, o guarda-livros Moreira, o caixa Borges, os bons rapazes todos, o garoto
alegre que leva as cartas ao correio, o moço de todos os fretes, o gato meigo – tudo isso se
tornou parte da minha vida; não poderia deixar tudo isso sem chorar, sem compreender que,
por mau que me parecesse, era parte de mim que ficava com eles todos, que o separar-me
d’eles era uma metade e semelhança da morte.
Aliás, se amanhã me apartasse de eles todos, e despisse este trajo da Rua dos Douradores, a
que outra coisa me chegaria – por que a outra me haveria de chegar? de que outro trajo me
vestiria – por que de outro me haveria de vestir?
(PESSOA, 2023: 251-252)
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Na Cena 4, na voz de Vicente Guedes, os trechos narrados, com Pessoa no interior
do quarto, são: “Cada pessoa é apenas o seu sonho de si próprio. Eu nem isso sou.
[...] Sou bocados de personagens de dramas meus” (PESSOA, 2023: 98-99).
Fig. 4. Pessoa sentado escrevendo.
Ao som da Abertura 1812, de Tchaikovski, iniciada na cena anterior, a câmera
se abre trazendo à cena um Fernando Pessoa jovem, mas adulto, sentado à
escrivaninha. A câmera o vê de costas. Entra uma fraca luz amarelada pela janela,
posicionada na lateral de Pessoa, deixando metade do quarto na penumbra. A
narração do trecho “O patrão Vasques” começa neste momento. A leitura vai até
“parte da minha vida”. Numa breve pausa na narração, escutam-se os ruídos do
quarto de Pessoa, mas também o som de passos na rua. Retoma-se a narração e a
câmera avança lentamente pela metade em penumbra do quarto em direção ao
poeta, já sem a trilha sonora. Pessoa olha em direção à janela e os barulhos externos,
de uma carroça em movimento, insinuam-se para dentro do quarto turbando sua
escrita. A câmera, paulatinamente, vem se acercando pela parte mais escura do
quarto, da lateral do poeta, que está em oposição à janela, e para em seu perfil no
exato momento em que a narração diz “por que outro me haveria de vestir?”.
A cena é cortada e, de imediato, temos a cena 4, ainda captando Fernando
Pessoa lateralmente, mas com este, agora, de pé em frente à janela. Os barulhos
externos permanecem, Pessoa bruscamente sai de cena, a trilha volta e sua sombra é
insinuada na parede ao fundo enquanto veste seu paletó. Inicia-se a narração de
“cada pessoa é apenas seu sonho de si própria” e, com a sombra no fundo se
multiplicando em três, lê-se justamente o fragmento “sou bocados de personagens
de dramas meus”.
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Fig. 5. Três sombras de Pessoa.
O primeiro ponto a ressaltar da cena é a escolha da trilha sonora. A Abertura
1812, de Tchaikovski, trata, em linhas gerais, da expulsão das tropas napoleônicas
do território russo. Caso não se considere a escolha da trilha como mera gratuidade,
pode-se especular que o leitmotiv napoleônico, migrando do contexto original da
obra de Tchaikovski para um fragmento de diálogo com a obra de Fernando Pessoa,
apresenta uma tensão entre a realidade construída pela ação e a realidade sonhada.
Para Pessoa, Napoleão, mais que um homem estritamente de ação, é um sonhador.
No poema “Tabacaria”, por exemplo, é ele o modelo de sonhador contrastado pelo
eu lírico “Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez” (PESSOA, 1990: 363). Além
disso, Pessoa, à maneira milenarista e interpretando as profecias de Bandarra,
muitas vezes localizou em Napoleão pontos de referência de datas para a realização
do que “o sapateiro de Trancoso” profetizou:
A “águia imperial”, no primeiro caso é Napoleão, pois que A às avessas e com a perna do
meio tirada e posta atrás dá N, inicial daquele nome. No segundo caso é D. Pedro IV, que
fundou o Império do Brasil, e o A às avessas dá V, e pondo atrás a perna do meio dá IV. Os
“seus filhos” no caso de Napoleão são as consequências da invasão — as ideias liberais, que
se espalharam então aqui. No caso de D. Pedro IV, e 1.° do Brasil, [...].
(PESSOA, 1979)
A música nos traz, portanto, a figura do Napoleão sonhador de Pessoa, figura que
é, de certa maneira e pela interpretação hermética do poeta, anúncio para o
Encoberto, mas, ao mesmo tempo, é a derrota de Napoleão que a música celebra.
Derrotado ou não, é pela grandeza dos sonhos que sonha a medida última de
valorização da vida humana, pois “sem a loucura que é o homem | mais que a besta
sadia | cadáver adiado que procria?” (PESSOA, 1990: 76).
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Em “Tabacaria”, por exemplo, feitas as negações que contrariam os elementos
próprios da ordem do ser na metafísica clássica de matriz aristotélico-tomista – “Não
sou nada” (PESSOA, 1990: 362), negação do ser como tal; “Nunca serei nada” (PESSOA,
1990: 362), negação da potência; “Não posso querer ser nada” (PESSOA, 1990: 362),
negação da vontade (elemento que, na metafísica tradicional, permite ao livrearbítrio fazer a passagem da potência para o ato) – resta ao que não é, não será e não
tem vontade para realização do movimento da potência para o ato, o sonho como
habitação desconfortável do ser, “À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do
mundo” (PESSOA, 1990: 362), mas que, como diz o fragmento do “Caminho da
serpente”, também é ilusão a seu modo.
Voltando às cenas 3 e 4, percebemos que o movimento da câmera para se
aproximar de Pessoa busca, aos poucos e pela penumbra, captar, na intimidade do
quarto fechado, o movimento interior de Pessoa. A rua, lá fora, dá seus sinais de
vida corrente e, perturbando o poeta, mistura-se aos seus sonhos. Daí surgem pela
narração os tipos humanos banais, concretos e, de certa forma, correlativos-objetivos
para a dispersão do eu em direção ao sonho. “O patrão Vasques”, “o guarda-livros
Moreira”, o “caixa Borges” etc., exemplos de gente comum e, portanto, em parte
contrastantes com o modelo sonhador que é Napoleão, são, contudo, parte da
inexorabilidade que é, para o poeta, o correr da vida cotidiana.
Fig. 6. Cena do cotidiano.
O que resta, e assim o filme constrói a cena 4, é vestir os trajes da vida e se
perder nos labirintos por ela oferecidos. É possível, no entanto, realizar a vida?
Como se habita um “eu” que já se sabe a priori resultado de ficções e máscaras?
Enquanto o Pessoa do filme veste seu paletó, a narração diz “Cada pessoa é apenas
o seu sonho de si próprio. Eu nem isso sou” (PESSOA, 2023: 98). E, ao sair de cena,
quando se projetam três sombras no fundo do quarto, “Sou bocados de personagens
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de dramas meus” (PESSOA, 2023: 98-99). Em outro fragmento do Livro do Desassossego,
não presente no trecho do filme que vimos comentando, Bernardo Soares diz:
“Escrever é esquecer. A literatura é a maneira mais agradável de ignorar a vida”
(PESSOA, 2023: 488).
Do que foi posto até agora, poder-se-ia concluir que a obra de Fernando
Pessoa e o filme de Fernando Carrilho retratam a cidade de modo a haver uma cisão
entre ela e o artista, acastelado em sua imaginação como se esta fosse uma Torre de
Marfim, incontornável e irredimível. É de se notar, no entanto, que parte da crítica
pessoana tem apontado para o contrário disso.
O ensaísta Fernando Guimarães, comparando o entendimento de Teixeira de
Pascoaes a respeito do Saudosismo ao de Pessoa, afirma que:
Pascoaes, em Verbo Escuro, dirá: “poetas, cantai fantasmas; quero eu dizer, o que é eterno...
Cantai o que não existe”. Mas esta ausência foi assumida por Fernando Pessoa duma maneira
diferente: não enquanto canto fantasmático do que não existe, mas enquanto voz que, mesmo
pelo insistente recurso à negação, se torna reveladora da própria ficção que há na existência
humana quando ela se desdobra mediante uma linguagem criadora. O homem [...]
transforma-se nas múltiplas consciências que criam os seus mundos de linguagem e que se
desvelarão através da fragmentação do poeta em seus heterônimos.
(GUIMARÃES, 1988: 33)
Já Pizarro, para quem Lisboa é a personagem principal da segunda parte do Livro do
Desassossego, diz:
Em síntese, Lisboa é a localização-chave do Livro; é um miradouro donde se vê o mundo [...];
é uma harmonia entre o natural e o artificial; é o cenário de uma epopeia sem grandes feitos,
ou até mesmo sem eles; é a cidade e o campo, pois as praças assemelham-se a clareiras no
bosque de casas multicolores; é uma certa luz, uma série de sons, determinados cheiros e, por
fim, todo um microcosmos que faltava ao Livro, na sua primeira fase.
(PIZARRO, 2023: 155)
A conciliação entre a vida concreta da cidade e o poeta passa por aquilo que Pessoa
chamou, em carta a Armando Cortês-Rodrigues (PESSOA, 1986: 43-48), de sua “vocação
religiosa”. Por ora, retomaremos o Livro do Desassossego:
Reparo subitamente que o ruído é muito maior, que muito mais gente existe. Os passos dos
mais transeuntes são menos apressados. Aparece, a quebrar a sua ausência e a menor pressa
dos outros, o correr andado das varinas, a oscilação dos padeiros, monstruosos de cesto, e a
igualdade divergente das vendedeiras de tudo mais desmonotoniza-se no conteúdo das cestas,
onde as cores divergem mais que as coisas. Os leiteiros chocalham, como chaves ocas e absurdas,
as latas desiguais do seu ofício andante. Os polícias estagnam nos cruzamentos, desmentido
fardado da civilização ao movimento invisível da subida do dia.
(PESSOA, 2023: 357)
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O excerto supracitado aparece no fragmento 298 da edição do Livro do Desassossego
organizada por Jerónimo Pizarro (PESSOA, 2023: 356-358). Antes do excerto, presente
no quinto parágrafo do fragmento, Bernardo Soares acompanha o amanhecer do
bairro da Baixa com seus ruídos e, como de costume para o semi-heterônimo, os sons
e imagens da vida cotidiana ao redor acabam por servir de transporte para a análise
minuciosa das sensações do próprio Bernardo Soares.
Duas palavras, no entanto, parecem, senão quebrar, ao menos tensionar a
contemplação íntima do sujeito: “reparo” e “subitamente”. Perdido, até então, embora
à maneira interseccionista, no seu mundo interior, escapava a Bernardo Soares que
o ruído da vida era talvez mais intenso que o de suas próprias sensações. Com a
violência do “reparar” que o toma “de súbito”, formas, sons, cores, relações humanas
etc., se impõem, perturbando a consciência-sensação desse eu que, por conta dessa
mesma perturbação, se abrirá, na continuação do fragmento, para uma nova série
de sensações e transformações do “eu” desencadeadas por essa primeira violência
do “reparar subitamente”.
No fragmento em questão, a violência da visão súbita de Soares e o desfile de
personagens concretas, às vezes “monstruosas”, mas sempre dignas de simpatia,
remetem a dois poetas finisseculares que impactam, em certa medida, a produção
do Livro: António Nobre e Cesário Verde.
Do primeiro, e de maneira indireta, a passagem remete ao “Lusitânia no
bairro Latino”. No poema, o sujeito poético tem como interlocutor um francês
de nome Georges, a quem, suplicante, apela: “Georges! Anda ver meu país de
Marinheiros, | O meu país das Naus, de esquadras e de frotas!” (NOBRE, 2009: 78).
Mais adiante, o texto enumera enfermidades sociais e conclama os pintores
de seu país a representá-las:
Tísicos! Doidos! Nus! Velhos a ler a sina!
Etnas de carne! Jós! Flores! Lázaros! Cristos!
Mártires! Cães! Dálias de pus! Olhos-fechados!
Reumáticos! Anões! Deliriuns-Tremens! Quistos!
Monstros, fenômenos, aflitos, aleijados,
Talvez lá dentro com perfeitos corações:
Todos, a uma mugem roucas ladainhas,
Trágicos, uivam “uma esmola p’las alminhas
Das suas obrigações!”
Pelo nariz corre-lhes pus, gangrena, ranho!
E, coitadinhos! Fedem tanto: é de arrasar...
Qu’é dos Pintores do meu país estranho,
Onde estão eles que não vêm pintar?
(NOBRE, 2009: 84)
Embora se deva reconhecer que o que segue é conjectural, é possível que Fernando
Pessoa, não só sob a pena de Bernardo Soares, tenha arrogado para si a missão de
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responder ao apelo de Nobre de ser o “pintor de seu país”3. O modo de fazer isso no
Livro do Desassossego, particularmente no trecho 298, e a maneira como Carrilho
representa esse modo no filme passam, necessariamente, por Cesário Verde.
De Cesário, o trecho nos remete aos poemas “Contrariedades” e “Num bairro
moderno”. Em “Contrariedades”, são interseccionadas às sensações do sujeito poético
imagens banais e grotescas da população mais pobre da cidade: “Deu meia-noite; e
em paz pela calçada abaixo, | Soluça um sol-e-dó. Chuvisca. O populacho | Diverte-se
na lama” (VERDE, 1983: 62); mais especificamente, à visão de uma moça jovem e tísica
que, para sobreviver, trabalha como engomadeira:
Sentei-me à secretária. Ali defronte mora
Uma infeliz, sem peito, os dois pulmões doentes;
Sofre de faltas de ar, morreram-lhe os parentes
E engoma para fora.
Pobre esqueleto branco entre as nevadas roupas!
Tão lívida! O doutor deixou-a. Mortifica.
Lidando sempre! E deve a conta na botica!
Mal ganha para sopas...
(VERDE, 1983: 61)
No poema, enquanto o eu lírico contempla o espetáculo deplorável da situação da
jovem tísica, a lembrança de que certo jornal lhe negara a publicação de uns versos
perturba sua sensibilidade de duas formas. Levando-se em consideração o título do
poema, “Contrariedades”, há entre o poeta ressentido e a jovem doente uma cisão
profunda no que tange ao tipo de miséria que cada um sofre. A dele, a princípio,
vaidosa e fútil; a dela, miséria social. Por outro lado, e é isso que provoca o furor do
eu lírico, a indigência intelectual da imprensa que lhe recusa os versos – “a crítica
segundo o método de Taine | Ignoram-na” – desloca o verdadeiro artista para a
condição de outsider. Se, portanto, no poema, para a jovem não parece haver remédio,
para o artista autêntico não há possibilidade alguma de reconhecimento.
Em “Num bairro moderno”, também o artista comparece ao poema, porém
não mais representado como o sujeito, um tanto prático, preocupado com o destino
de suas publicações e carreira. É, pois, representado em ato criador e transfigurador
do universo que o cerca:
Vale a ressalva de que tanto para Nobre quanto para Pessoa, o “retrato do país” não pretende ser
“o espelho do real” à maneira realista-naturalista nem o retrato autobiográfico do sujeito empírico na
nação. Para os autores deste artigo, a “lição” de Nobre, que Pessoa parece seguir, é a de que o artista
transforma o real com sua visão única e, por vezes, irônica (cf. ALVES, 2001: 103-115). Há, portanto, a
possibilidade de estendermos alguns paralelos entre a poesia de Nobre e a estética do fingimento de
Pessoa. Por conta, no entanto, das semelhanças, inclusive lexicais, de trechos do Livro do Desassossego
com a poesia de Cesário, preferimos nos deter mais demoradamente nas relações do Livro com alguns
poemas de Cesário Verde.
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Subitamente – que visão de artista! –
Se eu transformasse os simples vegetais,
À luz do Sol, o intenso colorista,
Num ser humano que se mova e exista
Cheio de belas proporções carnais?!
[...]
E eu recompunha, por anatomia,
Um novo corpo orgânico, aos bocados.
Achava os tons e as formas. Descobria
Uma cabeça numa melancia,
E nuns repolhos seios injetados.
(VERDE, 1983: 68)
Não nos parece coincidência que a visão iluminadora do artista, tanto no fragmento
298 do Livro do Desassossego como no trecho citado de “Num bairro Moderno”,
aconteça “subitamente”, como se tal visão obsediasse o poeta de gênio e dele
tomasse conta, impondo-se. O êxtase visionário que, em Cesário, parece recompor o
universo e seus sentidos, em Bernardo Soares, raciocinador melancólico, é feito de
dicotomias aparentemente insolúveis: o artista pode ver, tomado pela figura
impessoal do gênio, nas pessoas comuns, um transporte para um mundo de sonho
que lhe propicia um Além; este Além, no entanto, é ainda um Aquém, pois não é a
visão imediata de Deus, visão última e despida de todas as máscaras.
No parágrafo posterior ao excerto do fragmento 298 citado acima, Bernardo
Soares lamenta:
Quem me dera, neste momento o sinto, ser alguém que pudesse ver isto como se não tivesse
com ele mais relação que o vê-lo – contemplar tudo como se fora o viajante adulto chegado
hoje à superfície da vida! Não ter aprendido, da nascença em diante, a dar sentidos dados a
estas coisas todas, poder vê-las na expressão que têm separadamente da expressão que lhes
foi imposta. Poder conhecer na varina a sua realidade humana independentemente de se lhe
chamar varina, e de saber que existe e que vende. Ver o polícia como Deus o vê. Reparar em
tudo pela primeira vez, não apocalipticamente, como revelações do Mistério, mas diretamente
como florações da Realidade.
(PESSOA, 2023: 357-358)
Veja-se o tom melancólico de aparente fracasso expresso por Soares.
Antes de prosseguirmos com este assunto, vale analisar um pouco o modo
como Carrilho constitui a cena em que o trecho do fragmento 298, que começa com
“Reparo subitamente”, é construída. Na tela, vemos fotografias de arquivo de varinas,
padeiros, leiteiros, lojas, restaurantes da Baixa etc., sucedendo-se vagarosamente.
Os sons da cidade, no entanto, permanecem ininterruptos, marcando o fluir da
passagem do tempo.
Assim, temos dois planos significantes construídos pela montagem: o visual,
caracterizado pela “objetividade essencial da fotografia” (BAZIN, 1991: 22); e o sonoro,
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Lisboa, a cidade mítico-poética
registro da fluidez. Entre ambos se opera uma coexistência de divergência e identidade.
Se o tempo da fotografia é o da captação do instante e do registro histórico, o dos
sons urbanos na cena é o da expansão e do prolongamento. Por outro lado, suspensas
do tempo pelo registro histórico da objetividade fotográfica, as pessoas retratadas,
libertas de seus afazeres cotidianos, erguem-se em estatuária totêmica de LisboaOphiussa, como corpos substitutos de corpos já extintos; enquanto o som, no seu
dinamismo de registros, torna-se dispersivo e fugaz.
Essa mistura de planos multiplicadora de perspectivas – própria, aliás, do
ensaístico no cinema –, na obra de Carrilho, corresponde à maneira como a vida
lisboeta vai se desdobrando aos olhos do desiludido sonhador Bernardo Soares que,
por sua vez, aprendeu a ver com Cesário Verde. Assim, tudo ao redor pode até ser
fugaz ou estagnação, banalidade ou obra de gênio, preconceito ou iluminação
íntima, mas é, mais do que qualquer compreensão possível, vida: “Isto agora não é
já a Realidade: é simplesmente a Vida” (PESSOA, 2023: 358).
Não obstante ao que foi posto, é de referir que a certeza do fracasso não é, em
Pessoa, o mesmo que ausência de grandeza. Em carta a Armando Cortês-Rodrigues,
de 19 de janeiro de 1915, confessava Pessoa ao amigo que “você é, como eu,
fundamentalmente um espírito religioso” (PESSOA, 1985: 43). O “espírito religioso”
não é algo buscado, mas recebido, e tal concessão divina indica a “missão” que o
homem de gênio deve exercer no mundo: “[...] à minha sensibilidade cada vez mais
profunda, e à minha consciência cada vez maior da terrível e religiosa missão que
todo o homem de gênio recebe de Deus com o seu gênio” (PESSOA, 1985: 44). Ter
diante de si a clareza da missão é, por sua vez, “uma consequência de encarar a sério
a arte e a vida” (PESSOA, 1985: 45) e, por fim, “outra atitude não pode ter para com a
sua própria noção-do-dever quem olha religiosamente para o espetáculo triste e
misterioso do Mundo” (PESSOA, 1985: 45). Para Eliade, o homem religioso
[...] assume uma humanidade que tem um modelo transumano, transcendente. Ele só se
reconhece verdadeiramente homem quando imita os deuses, os Heróis civilizadores ou os
Antepassados míticos. Em resumo, o homem religioso se quer diferente do que ele acha que é
na sua existência profana. O homem religioso não é dado: faz-se a si próprio ao aproximar-se
dos modelos divinos. Estes modelos, como dissemos, são conservados pelos mitos, pela
história das gestas divinas. Por conseguinte, o homem religioso também se considera feito pela
História, tal qual o homem profano. Mas a única História que interessa a ele é a História
sagrada revelada pelos mitos, quer dizer, a história dos deuses, ao passo que o homem
profano se pretende constituído unicamente pela História humana – portanto, justamente
pela soma de atos que, para o homem religioso, não apresentam nenhum interesse, visto lhes
faltarem os modelos divinos. É preciso sublinhar que, desde o início, o homem religioso
estabelece seu próprio modelo a atingir no plano transumano: aquele revelado pelos mitos.
O homem só se torna verdadeiro homem conformando-se ao ensinamento dos mitos, imitando os deuses.
(ELIADE, 2011: 88-89)
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Lisboa, a cidade mítico-poética
Ser receptáculo, condutor e propagador da história “revelada pelos mitos”, uma
maldição reservada ao “homem de gênio”, é captar o que à alma nacional está
encoberto. Para Pessoa, “os homens de gênio são os representantes d’essa alma
íntima dos povos; falam alto o que a si mesma a dispersa alma nacional segreda no
divino silêncio do ser” (LOPES, 1990: II, 72).
Em Ophiussa, ao adotar, nos termos de Timothy Corringan presentes no
Preâmbulo deste artigo, a “subjetividade pronunciada” de Pessoa, num projeto de
filme-ensaio “em que pensar é multiplicar os eus”, para representar LisboaOphiussa, Carrilho – sem subverter a perspectiva pessoana, mas desdobrando-a em
releituras possíveis – dá à cidade um tom em que ela se transubstancia em outro
projeto, ao modo heteronímico, de Pessoa ser. Empregam--se, para esse fim,
variadas composições de cena, que podem se dar na representação de Pessoa em
ambientes fechados, em planos panorâmicos da cidade, na câmera na mão em
atitude flâneur pelas ruas, em imagens de fotografias de arquivo, na contemplação
estática de paisagens melancólicas, no captar o movimento da cidade de dentro do
bonde, da dispersão de um close de câmera que nos leva ao mundo feminino do
trabalho, em suma, em fragmentos do real que, ao modo da serpente, penetram o
solo da deusa Ophiussa.
Considerações finais
O filme Ophiussa – Uma Cidade Fernando Pessoa, está disponível, conforme já informado
em nota neste artigo, gratuitamente no site da emissora RTP, pois também é uma
obra feita para difusão da cultura portuguesa e da obra pessoana. É louvável,
portanto, que o diretor tenha optado, em vez do tom didático e laudatório, apresentar
a Lisboa de Pessoa percorrendo os caminhos da obra do poeta atualizando os
sentidos de uma obra que se caracteriza, sobretudo, pela multiplicidade.
O filme-ensaio poético de Fernando Carrilho, assim, presta homenagem à
cidade e ao poeta por tornar presente e, por isso, viva, a experiência da relação com
Pessoa, em vez de cair nas armadilhas de cinebiografias que tendem a direcionar
excessivamente o olhar do espectador. José Gil considera que, ao fim e ao cabo, é
esta a lição de Pessoa:
Uma coisa é certa: toda a investigação e experimentação de Pessoa (expressa e descrita,
sobretudo por Bernardo Soares) visam produzir Vida – mesmo que seja necessário passar
pela aparente negação ou, mais exatamente, pelo “pôr entre parênteses” da vida comum e da
ação. [...]
Tantas experiências extraordinárias sobre si próprio, tantas vidas vividas em tão pouco
tempo [...], tantas regiões incríveis da alma visitadas, tanta inteligência consagrada à criação
de dispositivos geradores de fluxos de vida, tanta arte na construção de todos os tipos de
sensações – de plenitude e de vazio, de vida e de ausência de vida, de amor e de desertificação
de si [...], da ternura mais pungente ou da mais extrema ausência de ternura e de humanidade
no seu formidável devir-inumano – tanta atividade, tanta produtividade, um tão incessante
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Lisboa, a cidade mítico-poética
trabalho concentrado numa obra, não puderam realizar-se sem uma enorme capacidade de
sentir, de pensar, de assimilar a vida para a preservar, a aumentar e a recriar.
(GIL, 2020: 234)
Há na obra poética-visual do cineasta Fernando Carrilho uma pluralidade de versões
da cidade de Lisboa. Essa multiplicidade permanece em contínuo movimento nas
imagens captadas pelo olhar do espectador ao longo do filme e ganham uma dimensão
própria a partir da interiorização dessa variedade de significados ontológicos em
torno da realidade viva e pulsante da cidade.
No filme, Lisboa é Ophiussa, a entidade mítica fundadora do fado ou destino
marítimo português, a detentora das glórias e da decadência de todo um povo, e o
espaço das relações prosaicas da modernidade. Contudo, essa miríade de vivências
da cidade adquire uma unidade simbólica a partir do olhar pessoano, ao mesmo
tempo perscrutador da realidade urbana, do passado histórico e das possibilidades
oníricas da construção poética.
Fig. 7. Pessoa debruçado no parapeito da janela.
Fig. 8. Rio Tejo.
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Lisboa, a cidade mítico-poética
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Pereira & Ferreira
Lisboa, a cidade mítico-poética
LEONARDO de ATAYDE PEREIRA é Licenciado em História pela Universidade de São Paulo (USP),
Mestre em História Social pela USP, Doutor em Estudos Comparados de Literaturas de Língua
Portuguesa pela USP. Atualmente desenvolve pesquisa pós-doutoral na UNIFESP (Universidade
Federal de São Paulo) na área de Literatura Portuguesa. Sua produção acadêmica concentra-se
nos seguintes temas: Romantismo Português; Historiografia Portuguesa; Romance Histórico;
Literatura Gótica, Cinema e Modernidade.
LEONARDO de ATAYDE PEREIRA holds a Bachelor’s degree in History from the University of São
Paulo (USP), a Master’s degree in Social History from USP, and a Ph.D. in Comparative Studies
of Portuguese Language Literatures from USP. Currently, he is conducting post-doctoral
research at UNIFESP (Federal University of São Paulo) in the field of Portuguese Literature. His
academic work focuses on the following themes: Portuguese Romanticism, Portuguese
Historiography, Historical Novel, Gothic Literature, Cinema, and Modernity.
–––
JOSÉ EDUARDO LEÃO FRANCHI FERREIRA é Mestre em Literatura Portuguesa pela Universidade
de São Paulo (USP), Professor de Português e Literatura para o Ensino Básico e presta serviços
de revisão para diferentes editoras. É autor do capítulo “Uma poética da Biblioteca em Marco
Lucchesi”, publicado no livro Marco Lucchesi: Estética do Interdisciplinar.
JOSÉ EDUARDO LEÃO FRANCHI FERREIRA holds a Master’s degree in Portuguese Literature from
the University of São Paulo (USP) and works as a Portuguese and Literature teacher for Basic
Education. Additionally, he provides editing services for various publishing houses. He is the
author of the chapter “A Poetics of the Library in Marco Lucchesi,” published in the book Marco
Lucchesi: Aesthetics of Interdisciplinarity.
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Sedlmayer
Eugène Green encontra Fernando Pessoa
O curta Como Fernando Pessoa salvou Portugal (2018), do diretor franco-americano
Eugène Green, tem menos de 30 minutos, mas, como observa Inácio ARAÚJO (2018),
“tem mais cinema do que em quase todos os longas metragens que se tem visto nos
últimos tempos. Há mais comédia do que em muita comédia. Há mais drama do que
em muito drama”.
A história do filme pode sucintamente ser descrita assim: no final de 1920, o
escritor Fernando Pessoa foi incumbido de criar um slogan para a campanha
publicitária de lançamento da Coca-Cola em Portugal. Com o dístico criado, conseguiu
a proeza de interditar a oferta do refrigerante por quase meio século em todo o
território nacional.
Se o resumo deste fato histórico é relativamente simples e soa como uma
espécie de chiste, a leitura do filme é mais engenhosa e demanda uma exegese atenta.
Em parte, porque o filme segue uma escolha estética apoiada na recuperação de
signos intrinsecamente relacionados à identidade portuguesa e à obra pessoana,
principalmente no que tange à heteronímia (ou “heteronimismo”, como escreveu
Pessoa). Mas também porque Green, cujo trajeto anterior era o teatro, com interesse
particular pelas tragédias do século XVII, é um estudioso declarado de literatura, com
graduação no Curso de Letras, inclusive. Flaubert já tinha sido evocado e trabalhado
por ele anteriormente. Já no filme aqui considerado, é Pessoa que surge como espécie
de loser capaz de profanar a religião chamada capitalismo. Se sabíamos que, além (e
sobretudo) poeta, o escritor português fazia bicos como tradutor, crítico literário,
editor, jornalista, astrólogo e comentarista, aqui conhecemos a faceta de publicitário.
E nesta seara, a noção de erro, de fracasso – num universo em que a publicidade
começava a devorar a cultura – adquire outros contornos. Talvez aí resida um dos
pontos cruciais desta breve e bem-sucedida narrativa: com o slogan, Pessoa conseguiu
profanar o improfanável.
Sabe-se que na primeira agência de publicidade de Portugal, a “Agência
Hora”, Fernando Pessoa havia sido contratado como responsável pela correspondência
em inglês e francês, idiomas que dominava de forma excepcional. E que, ao longo
das tarefas de tradução, foi que surgiu o convite para que inventasse frases objetivas,
sintéticas e eficazes, capazes de atiçar a venda de certos produtos. A peça criada para
a Coca-Cola não foi a sua primeira empreitada como redator publicitário. Antes já
havia bolado um anúncio para um verniz norte-americano, específico para automóveis,
como também textos para a venda de espartilhos e cintas destinadas às raparigas
portuguesas. Porém, no caso da propaganda do refrigerante, que fora aprovada
inclusive pelo cofundador da agência, Sr. Manuel Martins da Hora, ocorreu tudo
completamente diferente em termos de receção: o slogan criou uma azáfama tão
poderosa que, pouco tempo após ser lançada, a bebida foi totalmente embargada
pelo governo português.
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Sedlmayer
Eugène Green encontra Fernando Pessoa
Para melhor nos aproximarmos do filme do Green, proponho primeiramente
indagar em que medida o uso do advérbio “como”, no título do curta, promete a
explicação das circunstâncias, dos motivos e razões que fizeram com que a bebida
americana não fosse consumida em Portugal e de como Pessoa se tornou uma
espécie de hacker que minou tal disseminação. Questionar depois como a
ambiguidade do primeiro anúncio lusitano do refrigerante lança o expectador num
intricado novelo de aporias: Fernando Pessoa salvou Portugal de quê? De quem?
Porquê? A abertura à experiência do gosto, o livre comércio de uma bebida
estrangeira relaciona-se, no filme, à liberdade política? O que seria vitória e o que
seria derrota neste país que, na altura, também colonizava parte da África,
mantendo, hipocritamente, a velha ideologia seiscentista da propagação da
civilização e da fé cristã? O encoberto, a referência direta ao Sebastianismo, é lido
como luz ou treva neste filme? A interdição da bebida é uma negativa ao
imperialismo norte-americano?
Fig. 1. A rua do Desassossego.
Ler os sinais
As imagens do início do filme (cf. Fig. 1), cuidadosamente enquadradas, demonstram
não só um forte apego à fotografia, como também o fato de Green distribuir vestígios
que remetem tanto à poesia de Fernando Pessoa quanto à identidade portuguesa. É
como se solicitasse ao espectador que se tornasse um leitor e encontrasse pistas. Que
lesse bem de-vagar (como propôs décadas depois, como método de leitura, Herberto
HELDER, 1973: 148) as imagens.
As cenas de abertura convidam, desta forma, o espectador a revisitar a “ilha
saudade” Portugal (LOURENÇO, 1999: 14) e a conhecer as condições e a produção do
anúncio do refrigerante. As badaladas do sino da Igreja dos Mártires, no Chiado, as
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Sedlmayer
Eugène Green encontra Fernando Pessoa
suas pancadas, são ritmicamente acompanhados pela leitura em off de “Ó sino da
minha aldeia”, atribuído ao ortônimo. Neste poema simples (que teve por título “O
Aldeão”), metricamente rimado em redondilha maior, o sujeito lírico se dirige ao
sino para dizer que quanto mais longe está o passado, mais perto está a saudade.
Ó sino da minha aldeia,
Dolente na tarde calma,
Cada tua badalada
Soa dentro da minha alma.
E é tão lento o teu soar,
Tão como triste da vida,
Que já a primeira pancada
Tem o som de repetida.
Por mais que me tanjas perto,
Quando passo, sempre errante,
És para mim como um sonho,
Soas-me na alma distante.
A cada pancada tua,
Vibrante no céu aberto,
Sinto mais longe o passado,
Sinto a saudade mais perto.1
Eis a primeira tese lançada sub-repticiamente no filme: o sino (como o mar de
Vigo), canta um tempo imóvel, canta a repetição. O ir e vir das ondas do mar,
presente na lírica trovadoresca que chora a falta do amigo são similares às suas
pancadas. O passado, muito longe e para sempre perdido, é trazido, com nostalgia
e melancolia, pelas batidas ritmadas deste som.
Sino, no latim signum, quer dizer sinal. Se é o objeto que marca a passagem
do tempo, também alerta e chama. Não parece ser à toa que logo depois do poema
declamado segue o fado “Sopra demais o vento”, na voz de Camané, cuja letra são
também conhecidos versos de autoria pessoana.
Poema de 8 de abril de 1911, publicado em 1914 e 1924 em vida de Pessoa, sobre o qual Jerónimo
Pizarro indica o seguinte, em Antologia Mínima – Poesia (PESSOA, 2018: 311): “Num apontamento
manuscrito, junto à última estrofe do poema e ao seu primeiro verso, lê-se: ‘Da m[inha] aldeia é como
quem diz, isto é, como quem mente. Nasci num 4.° andar do Largo de S. Carlos, em Lisboa, dois
andares acima de onde o C[entro] E[leitoral] R[epublicano] ainda não estava. Teve este aldeismo o
meu nascimento’ (119-11ar). Veja-se também uma carta de 11 de dezembro de 1931 para João Gaspar
Simões a este respeito”.
1
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Sedlmayer
Eugène Green encontra Fernando Pessoa
Sopra de mais o vento
Para eu poder descansar...
Há no meu pensamento
Qualquer cousa que vai parar...
Talvez esta cousa da alma
Que acha real a vida...
Talvez esta cousa calma
Que me faz a alma vivida...
Sopra um vento excessivo...
Tenho medo de pensar...
O meu mistério eu avivo
Se me perco a meditar.
Fig. 1. Poema de 5-11-1914, enviado em
carta de 19-1-1915 (PESSOA, 2009: 353 et seq.)
Vento que passa e esquece,
Poeira que se ergue e cai...
Ai de mim se eu pudesse
Saber o que em mim vai!
Os créditos vão surgindo lentamente e as imagens adquirem a imobilidade da
fotografia. Planos estanques. Tudo à primeira vista parece estar afinado com as
imagens identitárias da nação: Portugal, país preso ao passado que não passa, que
não se moderniza e nem é seduzido pela novidade da técnica. Nação que espera o
retorno de D. Sebastião, imóvel no tempo.
Enquanto dura a música, enquanto duram os letreiros, surgem outras
imagens para a caracterização da identidade portuguesa: uma oliveira ancestral
(árvore que fornece matéria-prima para os azeites, mas também com forte valor
simbólico nas religiões monoteístas) a placa indicativa da Rua dos Douradores (onde
viveu e trabalhou o ajudante de guarda-livros Bernardo Soares); os azulejos brancos
e azuis (herança mourisca e que ironicamente identificam o revestimento da casa
portuguesa); as abóbodas do restaurante Martinho da Arcada (local onde Pessoa
tomou muitos copos de aguardente e se encontrou com os companheiros de
Orpheu); o interior art noveau do Café A Brazileira (hoje cartão postal de Lisboa, com
a estátua do poeta junto a um banco convidativo para os turistas de Smartphone, a
frente do hospital São Luís dos Franceses (local onde Pessoa morreu em 29-11-1935);
os óculos redondos similares ao do escritor (segundo os biógrafos, a última fala dele
foi “Dá-me os óculos” e, em seguida, escreveu “I know not what to-morrow will
bring”), o bondinho amarelo com seus transeuntes habituais (transporte que
também virou “patrimônio turístico”), a máquina datilográfica Royal (exatamente a
marca que o poeta usava)... (cf. Fig. 2) enfim, uma fileira de decalques que acentuam
a dimensão de certos índices que são materiais e, ao mesmo tempo, abstratos.
Significantes que se tornaram, após a sua morte, como os livros, patrimônio
nacional, ou seja, mercadoria (cf. Fig. 3).
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Eugène Green encontra Fernando Pessoa
Fig. 2. Pessoa, com sua habitual máquina datilográfica Royal.
Fig. 3. O Café A Brazileira, local de encontro da geração Orpheu.
Sentir tudo de todas as maneiras
Primeiro estranha-se. Depois entranha-se, tal como a poesia, poderíamos emendar. O
slogan pessoano provoca ruído, embaraça, carrega Eros como o bom poema que nada
quer comunicar. Segundo Carlos Pittella e Jerónimo Pizarro, ocorreu o seguinte:
O famoso refrigerante chegaria a Portugal em 1929 – se não fosse Fernando Pessoa. Em fins
da década de 1920, o poeta trabalhava com Manuel Martins da Hora, fundador da primeira
agência de publicitária portuguesa, e com Carlos Moitinho de Almeida, encarregado de
representar a Coca-Cola em Portugal. Segundo Luís Moitinho de Almeida, filho de Carlos,
cabia a Pessoa criar o slogan português. [...] Segundo Almeida, Pessoa concebeu: “Primeiro
estranha-se. Depois entranha-se”. Ao tomar conhecimento do slogan, o celebrado cientista
Ricardo Jorge, então diretor de Saúde de Lisboa, teria decretado a proibição do produto...”
(PITTELLA e PIZARRO, 2016: 72)
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
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Sedlmayer
Eugène Green encontra Fernando Pessoa
Na mais recente biografia de Fernando Pessoa, Richard Zenith esclarece que antes
de criar o anúncio para a Coca-Cola, Pessoa já havia escrito outros textos
publicitários, e havia obtido sucesso, por exemplo, na propaganda de cintas e
espartilhos, mas, apesar disso, ao lançar uma outra peça de propaganda para uma
cera de automóveis, “o texto que escreveu é tão literário que um de seus editores
póstumos o publicou como conto” (ZENITH, 2022: 757).
No caso do refrigerante, o biógrafo pontua duas diferenças em relação às
informações anteriores: primeiro, que a “célebre bebida americana” chegou a
Portugal em 1927 (e não 1929); e, segundo, que o slogan foi: “No primeiro dia:
Estranha-se. No quinto dia: Entranha-se” (ZENITH, 2022: 758). E completa:
A campanha publicitária continuou, e a bebida vendeu a bom ritmo até que, poucos meses
depois de ser lançada, sua importação foi abruptamente embargada. É provável que se
tratasse de uma medida protecionista, para incentivar as indústrias nacionais e ajudar a
conter o déficit comercial do país, mas, quando as autoridades norte-americanas pediram ao
governo português uma justificativa para a proibição, apontando que os próprios testes do
produto feitos em Portugal haviam mostrado que ele não continha cocaína, foi o ministro da
Saúde que apresentou um argumento irrefutável: ou continha vestígios difíceis de detectar
de cocaína, a qual era uma substância ilegal, ou não continha nenhuma cocaína e era culpada
de propaganda enganosa. O ministro citava o slogan de Pessoa, chamando-o de um
inaceitável “convite ao vício”.
(ZENITH, 2022: 758)
A diferença entre os dois anúncios é que a versão de Zenith parece acentuar a
passagem do tempo para que haja a assimilação viciante do gosto da bebida. Já a
que Eugène Green adota (aquela que era conhecida na altura), além de ser mais
concisa, tem mais ritmo.
Fig. 4. Álvaro de Campos, elegantemente trajado.
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
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Sedlmayer
Eugène Green encontra Fernando Pessoa
No filme, Green traz, para ilustrar a criação do anúncio, o heterônimo Álvaro
de Campos (cf. Fig. 4). A essência do processo heteronímico é performada nessa
cena: a experiência em travar um diálogo com alguém que não sente como aquele
que escreve. O ator Carloto Cotta é irrepreensível em ambos os papéis: guarda o
silêncio tímido de Pessoa, solta a arrogância do engenheiro vanguardista que anda
sempre em luta com a metafísica.
No diálogo com Pessoa, o engenheiro naval, que sentia tudo de todas as
maneiras, que amava meninos e meninas e se jogara há tempos no ópio e na errância
é, em tudo, diverso do ortônimo. Contradição, paradoxo e diversidade são motores
para entender a obra de um autor que, parodicamente, deixou mais de cem
assinaturas, com nomes próprios diferentes, com estilos diferentes, com obras
diferentes, pois fingir é conhecer-se, disse um dia.2 Com misto de escárnio e
proteção, Campos lembra a seu duplo que ele nunca terá lucro nem fortuna, que o
sucesso não faz parte do seu destino. Mas o aconselha a prosseguir com o anúncio.
Quando publicado o slogan, através da estampa mulher + bebida (cf. Fig. 5), o
Governo localiza ameaça contra a moral e a saúde dos portugueses. Uma
obscenidade, uma possessão capaz de invadir o território imperial português, dizem
os funcionários e o hilário padre jesuíta, encarregado de exorcizar (cf. Fig. 6) o
poderio do refrigerante. Pessoa havia conseguido inserir o Unheimilch na bebida
destinada à mesa portuguesa.
Fig. 5. A modelo com a garrafa da Coca-Louca (making-of da propaganda).
Assim termina “Ambiente”, texto em prosa atribuído a Álvaro de Campos e publicado na revista
Presença, n.º 5, em junho de 1927.
2
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
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Sedlmayer
Eugène Green encontra Fernando Pessoa
Fig. 6. O poder político e o religioso, juntos, exorcizando os demônios gasosos.
Sinta quem lê!
Primeiro estranha-se. Depois entranha-se. No filme de Green, o refrigerante se chama
“Coca Louca”. A alteração do produto Coca-Cola para Coca-Louca parece ter relação
com outro episódio europeu: a vaca-louca. A aglutinação nos faz lembrar do surto
de contaminação que ocorreu no final do século XX e o medo da transmissão da
doença nos seres humanos. A carne de vaca parou de ser consumida por tempos
como modo de impedir a contaminação, ou seja, o entranhamento da doença
degenerativa
Outro ponto importante no filme é o que acerta o acordo da tarefa de criação
do anúncio entre o poeta e o empresário. O dono da agência de publicidade
(chamado respeitosamente por “senhor patrão” pelo poeta-funcionário) conta como
o refrigerante é um produto muito bem-sucedido na América do Norte. Pessoa
indaga se se trata de uma aguardente, ao que o distribuidor da bebida responde
resolutamente que não, já que os americanos são um povo puro, e que álcool lá é
pecado; trata-se, assim, “de uma bebida com o efeito do álcool, mas sem pecado”.
Sabemos que, na altura, nos EUA, a lei seca vigorava, mas não em Portugal, o que
explica em parte o forte tremor das mãos do patrão ao entregar o copo de CocaLouca ao poeta (que também amava as bebidas etílicas!). Ambos pecadores e
criminosos, na visão norte-americana, mas em Lisboa, “a publicidade encontrara seu
poeta”, diz contente o empresário. Pessoa, entretanto, não apreciou o gosto. E
reconheceu, ali, o traço cultural de quem a produziu. O adjetivo “infecta” é utilizado
pelo poeta para caracterizar a experiência, a degustação do refrigerante.
Importa lembrar que a política, que mudaria o destino de Portugal por quase
um século se instalava na mesma época da tentativa da entrada da bebida norteamericana: o Estado Novo. Salazar, na altura da criação do anúncio, já tinha sido
ministro das Finanças por um tempo e o clima de austeridade se instalara no país.
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Sedlmayer
Eugène Green encontra Fernando Pessoa
Pessoa se ressentia com a limitação da liberdade e, apesar de ter morrido em 1935,
percebeu o cerco fascista e fez, inclusive, inúmeros poemas contra o “sal-azar” (como
fez referência ao ditador num poema do último ano de vida).
Logo depois da proibição do anúncio, na década de 1930, veio Salazar e a
política do Estado Novo. O moralismo, a ditadura e a repressão só aumentaram.
Antes do texto de Pessoa, os anúncios do refrigerante nunca tiveram nenhuma
menção à sensualidade. Relacionavam à natureza, à amizade, à família, à sede na
tentativa de atrelar o gosto à liberdade e à felicidade (não é idêntica à promessa feita
pelo capitalismo?) pessoal, econômica e política.
Se há pouco ficamos sabendo desta história portuguesa, o filme de Eugène
Green ironicamente, com humor e linguagem técnica assombrosa, vai muito além
da anedota. Com planos frontais equilibrados, claros, harmônicos, imagens com
pouquíssimo movimento, quase retratos, vem para nos fazer lembrar que um dístico
é poderoso e às vezes capaz de solapar o “é isto aí”. A fotografia impressiona e
emociona. A fotografia entranha. Instala a força do erro, do ruído e do fracasso.
Portugal, no filme de Green, é retratado como um lugar cheio de contradições.
Uno e diverso, paradoxal e contraditório, inerte e ativo, cômico e trágico, religioso e
profano, como Fernando Pessoa. E a cena final (cf. Fig. 7) nos faz ver o mar português
não para endossarmos a espera do encoberto que irá trazer novamente o esplendor
do império perdido, mas muito mais para nos lembrar que os impérios um dia
acabam, mesmo que demorem a cair. A bebida infecta, a vaca louca, nada saudável,
nada nutritiva, teve uma pausa refrescante nas terras lusitanas. No neoliberalismo
atual, que vende toda a ilha saudade como mercadoria, Coca-Cola acompanha lado
a lado os pastéis de Belém. Mas o que o pequeno filme de Green nos faz enxergar é
como, mesmo no nevoeiro, há luz quando acontece certa afinidade eletiva entre a
poesia e a história. Um raro curto-circuito.
Fig. 7. Fernando Pessoa e o além-mar.
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
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Sedlmayer
Eugène Green encontra Fernando Pessoa
ANEXO
Eugène Green, Como Fernando Pessoa salvou Portugal
Guião e projecto de mini-filme
G5 – Ext. dia; portão do hospital de São Luís
dos Franceses
De face, o portão do hospital de São Luís dos Franceses no Bairro Alto, onde Pessoa faleceu.
G6 – Int, dia; mesa com um par de óculos
Visto de cima e de perto, a parte de cima de uma
mesa, com um par de óculos cuja armação é fina e
de metal, como os que Pessoa pedira mesmo antes
de morrer.
cartão: COMO FERNANDO PESSOA SALVOU PORTUGAL
cartão: 1927
S1 – Ext. dia; paragem do eléctrico 28, perto
da Basílica da Estrela
Perto da Basílica da Estrela, vê-se Fernando
Pessoa, com trinta e oito anos de idade, que aguarda
o eléctrico, de pé, na paragem. O veículo chega, ele
sobe, e o eléctrico volta a partir.
GENÉRICO
G1 – Ext. dia; Largo de São Carlos
A partir do lado da rua dos Duques de Bragança,
vemos a fachada do Teatro de São Carlos. O nosso
olhar roda e sobe para enquadrar o sino da igreja de
Nossa Senhora dos Mártires.
G2 – Int. dia; café A Brasileira no Chiado
A partir da porta, vista da sala do café A Brasileira
no Chiado, vazia.
G3 – Ext. dia; Terreiro do Paço
A partir da rua Augusta, vista sobre as arcadas do
Terreiro do Paço em direcção à rua da Alfândega.
G4 – Int. dia; o Martinho da Arcada
Vista da sala do restaurante Martinho da Arcada,
vazio, em direcção ao muro com o relógio, com, se
possível, uma pequena mesa de café ao meio, como
era o caso na época de Pessoa.
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
S2 – Ext. dia; placa sobre um prédio da Baixa
Vê-se de perto uma placa num prédio da Baixa:
Moitinho de Almeida Ltda.
S3 – Int dia; escritório no Moitinho de
Almeida Ltda.
1. Visto de cima, Fernando, de frente e enquadrado
a partir da cintura, debruçado sobre uma máquina
de escrever. Sobre a mesa do escritório, uma folha
para onde lança de vez em quando um olhar, à
medida que carrega nas teclas. Por trás de nós,
ouve-se uma voz masculina.
VOZ
Sr. Fernando.
Fernando levanta o olhar.
FERNANDO
Sr. patrão.
45
Sedlmayer
Eugène Green encontra Fernando Pessoa
Veremos, em alternância, Fernando, visto de cima,
e o seu patrão, Sr. Moitinho de Almeida, visto de
baixo, os dois em face um do outro, enquadrados a
partir da cintura. O homem que está de pé tem nas
mãos um copo cheio de um líquido escuro.
5. Vêem-se ambos de perfil, Moitinho a partir da
cintura, Fernando a partir do peito.
2. MOITINHO DE ALMEIDA
Sr. Fernando, ocupa-se muito bem da nossa
correspondência em língua estrangeira, mas
eu sei que tem outros dons.
Fernando levanta-se, e o seu patrão estende-lhe o
copo por cima da mesa do escritório. Ele pega nele,
prova, faz uma careta, depois devolve o copo a
Moitinho.
1. FERNANDO
É então uma das raras pessoas em Portugal a
deter essa informação. Mas creio que se engana.
FERNANDO
É infecto.
MOITINHO DE ALMEIDA
Prove, se não se importa.
MOITINHO DE ALMEIDA
O gosto cultural forma-se.
2. MOITINHO DE ALMEIDA
Eu nunca me engano: foi por isso que fui bem
sucedido. Neste momento, tenho precisamente
em mãos um negócio importante.
FERNANDO
No caso presente, seria preciso deformá-lo.
1. FERNANDO
Qual?
MOITINHO DE ALMEIDA
Os Estadunidenses adoram.
2. MOITINHO DE ALMEIDA
Negociei um monopólio para importar para
Portugal a Coca-Louca, bebida nacional dos
Estadunidenses.
FERNANDO
Não creio que esta bebida possa ter sucesso
em Portugal.
Em alternância, cada um de face, e enquadrados a
partir dos ombros.
3. FERNANDO
Trata-se de uma aguardente?
4. MOITINHO DE ALMEIDA
Não. Os Estadunidenses, que é um povo
muito puro, condenam o álcool como sendo
um pecado. No país deles, é até proibido agora.
3. FERNANDO
No país deles eu seria então um grande
pecador, e até mesmo um grande criminoso.
4. MOITINHO DE ALMEIDA
Dizem, no entanto, que esta bebida pode
produzir os mesmos efeitos que o álcool, sem
pecado.
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
4A. De face, e a partir dos ombros, Moitinho.
MOITINHO DE ALMEIDA
Ignora o poder da publicidade, meu amigo. É
o caminho do futuro. Já não se conquistarão
impérios pela força das armas, mas através
de campanhas publicitárias.
5A. Voltamos a vê-los ambos de perfil e a partir da
cintura.
FERNANDO
Certamente tem razão, Sr. patrão.
MOITINHO DE ALMEIDA
Eu tenho sempre razão. Mas é pena que esta
bebida não lhe agrade.
FERNANDO
Porquê, Sr. patrão?
46
Sedlmayer
Eugène Green encontra Fernando Pessoa
Em alternância, cada um de face e a partir do peito.
6. MOITINHO DE ALMEIDA
Disseram-me que era poeta.
7. FERNANDO
Faço rimas… como muitas senhoras devotas
e muitos senhores reformados.
6. MOITINHO DE ALMEIDA
É demasiado modesto, meu caro amigo.
7. FERNANDO
Qual a relação com este seu negócio?
Cada um de face e a partir dos ombros.
4B. MOITINHO DE ALMEIDA
A meu ver, para dar à publicidade a sua
inteira potência, é preciso casá-la com a
poesia.
3A. FERNANDO
A meu ver, esse casamento não seria muito
católico, e não poderia ser celebrado na
Igreja.
4B. MOITINHO DE ALMEIDA
Sendo de espírito muito aberto, admito a
união livre.
3A. FERNANDO
E então?
4B. MOITINHO DE ALMEIDA
Gostaria de lhe propor pôr em prática os seus
dons de poeta concebendo um anúncio
publicitário para esta bebida. Mas se ela não
lhe agrada…
Em alternância, os rostos de ambos, de face.
8. FERNANDO
Seria isso, justamente, que me permitiria
conceber algo de bom.
9. MOITINHO DE ALMEIDA
Ora explique-se.
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
8. FERNANDO
Um poeta é por natureza um fingidor: só
consegue algo quando finge acreditar no que
diz.
9. MOITINHO DE ALMEIDA
Então aceita?
8. FERNANDO
Com muito gosto.
9. MOITINHO DE ALMEIDA
Será bem remunerado… Não de imediato,
claro, mas terá uma percentagem nas vendas.
8. Fernando responde com um sorriso irónico.
S4 – Ext. dia; jardim São Pedro de Alcântara
1. Sob uma luz de fim de tarde, no jardim de São
Pedro de Alcântara, Fernando, de face e partir do
peito, contempla a cidade em baixo.
2. Por cima do seu ombro, o pôr-do-sol sobre o Tejo.
S5 – Int. noite; quarto de Pessoa
1. Visto de cima, e de três quartos de costas, a partir
da cintura, Fernando, de pé, em frente a uma cómoda,
sobre a qual se encontra uma folha branca. Tem uma
caneta na mão, como se estivesse prestes a escrever,
mas não faz senão reflectir. Por trás dele ouve-se uma
voz masculina.
VOZ
Se tem tanta dificuldade em escrever, é sem
dúvida porque é você mesmo.
Fernando pousa a sua caneta e volta-se, de maneira
que o vemos de três quartos, ainda a partir da cintura.
FERNANDO
Por vezes de facto sou eu próprio, acontece
que esta noite o sou. Mas não estou a tentar
escrever um poema.
Vemo-lo em alternância com outro homem, ambos
de face e a partir da cintura. O seu interlocutor está
vestido de forma elegante, e usa um monóculo. Não
obstante a diferença indumentária, assemelham-se
muito.
47
Sedlmayer
Eugène Green encontra Fernando Pessoa
2. HOMEM
Parece admirado de me ver.
5. ÁLVARO
O sucesso não faz parte do seu destino.
1. FERNANDO
Pensava que estava na Escócia, Álvaro.
6. FERNANDO
Aconselha-me então a desistir.
2. ÁLVARO
E estava. Em breve estarei lá de novo. Mas
esta noite, sentia que precisava de mim.
5. ÁLVARO
Pelo contrário, é absolutamente necessário ir
até ao fim.
1. FERNANDO
Não sei se essa intuição era justa.
6. FERNANDO
Nunca teve receio de se contradizer.
2. ÁLVARO
O que faz, se não está a tentar escrever um
poema?
Em alternância, cada um de face e a partir do peito.
3. FERNANDO
Encontrei finalmente uma actividade lucrativa.
Vou fazer fortuna.
4. ÁLVARO
Muito me admiraria.
3. FERNANDO
E porquê?
Em alternância, ambos os rostos de face.
7. ÁLVARO
Sabe-o melhor do que eu. Quando o
Encoberto regressa, ele não é reconhecido.
Mas das suas derrotas nasce a luz de Portugal.
8. O rosto de Fernando ilumina-se.
FERNANDO
Descobri!
7. ÁLVARO
O quê?
8. FERNANDO
O anúncio.
4. ÁLVARO
Nenhum dos seus negócios jamais teve
sucesso.
Fecha os olhos, depois volta a abri-los antes de falar.
3. FERNANDO
Há sempre uma primeira vez.
FERNANDO
“Primeiro, estranha-se, depois, entranha-se”.
Em alternância, cada um de face e a partir dos ombros.
9. Os dois homens, ainda face a face, de perfil, só
dos pés até a cintura.
5. ÁLVARO
Qual é o seu projecto?
6. FERNANDO
Vou conceber um anúncio publicitário.
5. Álvaro ri.
6. FERNANDO
Porque é que eu não haveria de ter sucesso ?
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
FERNANDO (do qual não se vê o rosto)
Este achado, é obra sua.
ÁLVARO (do qual não se vê o rosto)
Espero então que ele seja reconhecido como
tal.
FERNANDO (do qual não se vê o rosto)
Evidentemente.
48
Sedlmayer
Eugène Green encontra Fernando Pessoa
ÁLVARO (do qual não se vê o rosto)
Eu tinha totalmente razão.
3. MOITINHO DE ALMEIDA
Mas quem, então, é o autor genial?
Em alternância, cada um de face e a partir da cintura.
2. FERNANDO
Um amigo, o engenheiro naval Álvaro de
Campos, que nas suas horas vagas é também
poeta.
1A. FERNANDO
Em relação a quê?
2A. ÁLVARO
É graças a si que Portugal será salvo.
1A. Fernando, que volta-se e debruça-se sobre a
cómoda para escrever.
10. Por cima da sua cabeça, vemos o quarto na sua
totalidade. Fernando encontra-se agora sozinho.
S6 – Ext. dia; paragem do eléctrico 28 na Baixa
1. Numa paragem do eléctrico 28 na Baixa. Visto
de cima, o veículo chega e pára. Temos no nosso
campo de visão a porta traseira. Esta abre-se e, por
entre os pés dos passageiros que descem,
reconhecem-se os de Fernando, que usa polainas.
S7 – Int. dia; escritório pessoal do Sr.
Moitinho de Almeida
1. No escritório do Sr. Moitinho de Almeida,
descobrimos, a partir da cintura e de três quartos
de costas, Fernando e, diante dele, visível de três
quatros de face e a partir do peito, o seu patrão, que
está a examinar um papel que tem na mão. De
seguida, ergue a cabeça.
MOITINHO DE ALMEIDA
Com toda a evidência, Sr. Fernando, eu tinha
razão: a publicidade encontrou o seu poeta!
Em alternância, cada um de face e a partir dos ombros.
2. FERNANDO
Para dizer a verdade, Sr. patrão, não sou eu o
autor deste…
Hesita.
3. MOITINHO DE ALMEIDA
Deste poema, Sr. Fernando.
2. FERNANDO
É como diz, Sr. patrão.
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
Em alternância, ambos os rostos de face.
4. MOITINHO DE ALMEIDA
Poeta é, com efeito. Este texto é magnífico!
Poderia propor-lhe um lugar permanente de
publicista.
5. FERNANDO
Não creio que o possa interessar. Prefere
viver na Escócia.
4. MOITINHO DE ALMEIDA
Mas, neste momento, está em Lisboa?
5. FERNANDO
Estava, ontem à noite.
4. MOITINHO DE ALMEIDA
Então, porque é que não foi ele próprio a vir
apresentar-me o seu trabalho?
5. FERNANDO
Sou eu que trato dos seus interesses em
Portugal.
S8 – Int. dia; atelier d’artista
1. Num atelier, vemos um cavalete e, de três quartos
de costas, a partir da cintura, um pintor que está a
realizar o cartaz publicitário para a Coca-Louca.
Um pouco mais longe, visível de três quartos de
face e a partir da cintura, encontra-se a sua modelo,
uma jovem mulher com um decote vermelho, que
tem na mão um copo cheio da bebida em questão.
PINTOR
Está possuída! Possuída!
2. De três quartos de face e a partir dos ombros, a
modelo, que lança ao pintor um olhar de
incompreensão.
49
Sedlmayer
Eugène Green encontra Fernando Pessoa
PINTOR (hors champ)
Deite a cabeça para trás, como uma bacante
em transe.
Ela obedece.
PINTOR (hors champ)
Esplêndido!
S9 – Ext. dia; painel para cartazes
1. Num painel para cartazes, vemos o cartaz terminado. Em torno da imagem do modelo com a cabeça
atirada para trás, e os olhos revirados, lê-se: “Primeiro, estranha-se, depois, entranha-se”. Por
cima, “Beba Coca-Louca”.
S10 – Ext. dia; entrada do Ministério da Saúde
1. Na entrada do edifício, vemos a placa “Ministério da Saúde”.
S11 – Int. dia; escritório do ministro da saúde
1. Por cima do ombro de um homem sentado num
escritório imponente, vemos de face e a partir da
cintura um outro homem, que traz debaixo do braço
uma grande folha enrolada. A sua expressão é a de
um funcionário que se encontra numa situação grave.
HOMEM SENTADO (do qual não se vê o rosto)
O que há, Mourinho?
MOURINHO
Sr. ministro, trata-se de uma ameaça muito
grave que pesa sobre a saúde e a moral da
nação e, por consequência, sobre a sua posição no mundo, e sobre a sua capacidade para
defender o território sagrado do império.
MINISTRO (do qual não se vê o rosto)
Qual é essa ameaça?
Mourinho desenrola a grande folha, que é um exemplar do cartaz.
MINISTRO
Mas o que é esta obscenidade?
1A. Descobrimos, por cima do ombro do ministro,
Mourinho, de face e a partir da cintura. Ele volta a
enrolar o cartaz, mas sem deixar de olhar para o seu
chefe.
MOURINHO
Trata-se da campanha publicitária de uma
bebida estadunidense, que contém uma
droga poderosa, e que um tal Sr. Moitinho de
Almeida começou a importar para Portugal.
A Liga moral dos estudantes ameaça
depositar uma queixa.
Em alternância, ambos de face, e a partir do peito.
3. MINISTRO
Não será necessário. Saberemos cumprir o
nosso dever. A possessão, contudo, não é
uma questão de droga, mas de maus
espíritos. É, pois, necessário consultar um
exorcista.
4. MOURINHO
Devo pedir às autoridades eclesiásticas que
nos ponham em contacto com a pessoa
adequada?
3. MINISTRO
Não vale a pena. Conheço o maior dos
exorcistas, o P. Marinheiro Bicha da Horta.
Ele fornecer-nos-á a prova necessária de que
esta bebida induz a possessão, e justificará
deste modo a sua proibição.
4. MOURINHO
Mas e se o P. Marinheiro Bicha da Horta não
encontrar maus espíritos?
MINISTRO (do qual não se vê o rosto)
“Primeiro, estranha-se, depois entranha-se”.
3. MINISTRO
Não tema. Sou eu que lhe faço o pedido, e ele
é jesuíta.
2. Descobrimos o ministro de face e enquadrado a
partir dos ombros, os olhos arregalados, que contempla ainda o cartaz.
S12 – Ext. dia; entrada do centro de exorcismo
1. Na entrada de um edifício, vemos de perto uma
placa: “Centro Santo-Inácio de purificação espiritual”.
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
50
Sedlmayer
S13 – Int. dia; no exorcista
1. Num salão de um certo aparato, vemos de face e
a partir da cintura, o P. Marinheiro Bicha da Horta,
ladeado pelo ministro da Saúde e por Mourinho,
visíveis, estes, de três quartos de face. Sobre uma
mesa estilo “guéridon”, diante do exorcista, encontra-se uma garrafa de Coca-Louca e uma cruz. O
jesuíta estende as mãos por cima da garrafa.
P. MARINHEIRO BICHA DA HORTA
Sinto que está preso nesta garrafa o espírito
de um poderoso jansenista, que tenta arrastar
Portugal para uma espiral de heresia, procurando assim afastá-lo da via do Senhor. Mas o
demónio, que renunciou à graça suficiente,
seria incapaz de resistir à força das armas dos
grandes santos da nossa Companhia.
Levanta a garrafa, afastando-a de si, e recita a sua
encantação.
Eugène Green encontra Fernando Pessoa
poderei exorcizar uma a uma cada garrafa
desta bebida infame.
3. MINISTRO
Evidentemente que não. Mourinho! Redija
um decreto ministerial que eu assinarei.
4. MOURINHO
Diga-me o texto, Sr. ministro, e é como se já
estivesse feito.
3. MINISTRO
“Em nome da saúde pública, física e moral de
Portugal, toda a garrafa de Coca-Louca encontrando-se no solo da pátria, continental, marítima e do ultramar, deve ser imediatamente
destruída, sem compensação financeira para o
possessor, ao que acresce a proibição de importação futura, os infractores ficando sujeitos
a uma pena de prisão não inferior a três anos.”
P. MARINHEIRO BICHA DA HORTA
Demónio jansenista, infame espírito que
renunciaste à graça suficiente, e que te condenaste a ti mesmo ao inferno, em nome de Santo
Inácio de Loyola, de São Francisco Xavier, e
de São Luís de Gonzaga, sai desta garrafa, sai
de Portugal, e volta para o teu mestre!
4. MOURINHO
O decreto aguardará assinatura em cima da
mesa do escritório do Sr. ministro, e será
adoptado hoje mesmo.
Abana a garrafa em todos os sentidos, como se
lutasse contra um espírito resistente, acabando
finalmente por pousá-la em cima da mesa “guéridon”
e, agarrando na cruz, cuja parte de trás tem, na
junção dos braços, um abre-garrafas, solta a
cápsula. A espuma transborda por todo o lado.
4. MOURINHO
Já me informei, Sr. ministro. Trata-se de um
tal Álvaro de Campos, poeta decadente e
pederasta, educado nos jesuítas.
P. MARINHEIRO BICHA DA HORTA
O demónio desfez-se num último acto de
fornicação, e foi vencido.
Volta-se para o ministro da Saúde.
Veremos cada um dos três homens a partir dos
ombros, e mais ou menos de face, a cabeça orientada
em direcção da pessoa a quem se dirige.
2. P. MARINHEIRO BICHA DA HORTA
Como é evidente, com tantos outros
demónios que sou obrigado a perseguir, não
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
3. MINISTRO
Quem é o autor deste infame anúncio?
2. P. MARINHEIRO BICHA DA HORTA
Não foi certamente connosco que apanhou
tais vícios.
3. MINISTRO
Certamente que não, padre.
1A. Voltamos a ver os três homens a partir da cintura.
MINISTRO
Que esse tal Campos seja preso.
MOURINHO
Amanhã o mais tardar, a sua carreira de
publicista estará terminada.
51
Sedlmayer
O P. Marinheiro levanta os olhos ao céu.
P. MARINHEIRO BICHA DA HORTA
Para maior glória de Deus.
Os três homens fazem o sinal da cruz.
S14 – Ext. dia; painel para cartazes
1. Vemos de perto o cartaz colado num painel.
Surge uma mão, que o arranca.
S15 – Ext. dia; uma floresta
1. Vista geral de uma bela e verde floresta.
2. De perto, mãos que esvaziam garrafas de CocaLouca sob as árvores.
3. De novo uma vista geral da floresta: todas as
árvores estão mortas e secas.
S16 – Int. dia; escritório pessoal do Sr. Moitinho de Almeida
1. De pé, atrás da mesa do escritório, visível de três
quartos de face e a partir da cintura, o Sr. Moitinho
de Almeida. Fernando entra no nosso campo de
visão pelo lado oposto do móvel, onde o vemos de
três quartos de costas e a partir da cintura.
Eugène Green encontra Fernando Pessoa
3. MOITINHO DE ALMEIDA
Então sou sobretudo eu que tenho de me
queixar.
2. FERNANDO
Lamento muito. Mas permita-me, Sr. patrão,
perguntar-lhe o que aconteceu?
3. MOITINHO DE ALMEIDA
O ministro da saúde confiscou e destruiu
todo o meu stock de Coca-Louca, sem
compensação financeira.
2. FERNANDO
E com que motivo?
3. MOITINHO DE ALMEIDA
Alegando que esta bebida conteria maus
espíritos, ou uma droga, ou ambos, que
induziria a um estado de possessão quem a
consumisse.
2. FERNANDO
O nosso anúncio publicitário podia dar
origem a essa interpretação.
FERNANDO
Queria falar comigo, Sr. patrão?
3. MOITINHO DE ALMEIDA
Nesse caso, foi notavelmente eficaz.
MOITINHO DE ALMEIDA
Permito-me informá-lo, Sr. Fernando, que o
Sr., ou o seu amigo o engenheiro Álvaro de
Campos, arruinaram-me.
2. FERNANDO
A eficácia, em princípio, é o objetivo de um
anúncio publicitário.
FERNANDO
Não era nosso intuito, Sr. patrão.
MOITINHO DE ALMEIDA
Eu sei. É por isso que conservo por si a minha
amizade. Quanto ao Sr. Campos, é procurado
pela polícia.
Em alternância, cada um de face e a partir do
peito.
2. FERNANDO
Não corre qualquer risco, pois já voltou para
a Escócia.
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
Cada um de face e a partir dos ombros.
4. MOITINHO DE ALMEIDA
Enganei-me pois.
5. FERNANDO
É algo que lhe acontece, Sr. patrão?
4. MOITINHO DE ALMEIDA
Foi a primeira vez.
5. FERNANDO
Qual foi o erro?
52
Sedlmayer
4. MOITINHO DE ALMEIDA
Casar a poesia com a publicidade: são
inimigos irreconciliáveis.
5. FERNANDO
É talvez a razão pela qual eu não sou capaz
fazer fortuna, Sr. patrão.
S17 – Ext. dia; passeio diante do prédio dos
escritórios de Moitinho de Almeida Ltda
1. Sob uma luz de fim de tarde, vemos a parte de
baixo da porta do prédio onde se encontram os
escritórios de Moitinho de Almeida Ltda, assim
como o passeio que a precede. A porta abre-se, os
pés de Fernando saem e partem, depois a porta volta
a fechar-se.
S18 – Ext. dia; cais do Terreiro do Paço
Eugène Green encontra Fernando Pessoa
1. Por cima dos ombros de Fernando, que está no
cais do Terreiro do Paço, o que ele contempla: o Tejo
sob a luz de fim de dia.
2. De face e a partir dos ombros, Fernando.
FERNANDO
É verdade que era uma bebida infecta. Então
salvei Portugal. Mas porque é que nunca
reconhecem o Encoberto?
Faz um pequeno sorriso triste, suspira, e responde
à sua própria questão.
FERNANDO
Porque está escondido.
Ele sai do nosso campo de visão.
3. Descobrimos o cais vazio e, mais longe, o rio e a
costa em frente, sobre os quais em breve cairá a
noite.
Fim
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
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Sedlmayer
Eugène Green encontra Fernando Pessoa
Bibliografia
ARAÚJO, Inácio (2018). “Como Fernando Pessoa salvou Portugal” apresenta poesia e história. Folha de
São Paulo, 17 de outubro. https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2018/10/como-fernandopessoa-salvou-portugal-apresenta-poesia-e-historia.shtml
HELDER, Herberto (1973). Poesia Toda. Lisboa: Plátano.
LOURENÇO, Eduardo (1999). Mitologia da saudade: seguido de Portugal como destino. São Paulo: Companhia
das Letras.
PESSOA, Fernando (2018). Antologia Mínima – Poesia. Edição de Jerónimo Pizarro. Lisboa: Tinta-dachina. Coleção Pessoa.
_____ (2009). Sensacionismo e Outros Ismos. Edição crítica de Jerónimo Pizarro. Lisboa: Imprensa
Nacional-Casa da Moeda.
_____ (1974). Obra poética. Organização, introdução e notas de Maria Aliete Galhoz. Rio de Janeiro:
José Aguilar Editora. Volume único.
PITTELLA, Carlos; PIZARRO, Jerónimo (2016). Como Fernando Pessoa pode mudar a sua vida. Rio de Janeiro:
Tinta-da-China Brasil.
ZENITH, Richard (2022). Pessoa, uma biografia. Tradução de Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia
das Letras.
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Sedlmayer
Eugène Green encontra Fernando Pessoa
SABRINA SEDLMAYER é professora titular da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas
Gerais (UFMG) e bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq. As suas pesquisas situam-se no
campo da literatura comparada, com ênfase nas literaturas de língua portuguesa e na teoria das
culturas de língua portuguesa, atuando principalmente na linha de pesquisa “Políticas do Contemporâneo”.
É autora de diversos livros nas interfaces literatura & filosofia e literatura & alimentação.
SABRINA SEDLMAYER is a full professor at the Faculty of Letters of the University of Minas Gerais
(UFMG) and a research fellow at the National Council for Scientific and Technological Development
(CNPq). Her research is in the field of comparative literature, with emphasis on Portuguese-language
literatures and the theory of Portuguese-language cultures, particularly in the research line “Politics
of the Contemporary”. She has authored several books at the intersection of literature & philosophy
and literature & food.
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Lima
Cadernos diários de Edgar Pêra
Entre o fim da adolescência e o início da vida adulta, o realizador português Edgar
Pêra (1960) iniciou uma rotina diarística regular, que ainda hoje mantém. Esta
atividade (materializada em objetos que passarei a designar genericamente como
cadernos, não excluindo outras possibilidades, como cadernos de notas, livros de
artista ou diários) adquire especial relevância por espelhar o processo criativo do
autor. Além de, como defenderei, se afirmarem autonomamente como manifestações
artísticas identitárias. De entre as dezenas de diários que constam do arquivo pessoal
do realizador, focamos a nossa atenção em dois subtipos: nas referências que, ao
longo dos anos, Edgar Pêra foi fazendo a Fernando Pessoa e nos cadernos do filme
Não Sou Nada. A análise irá começar por detalhar as características formais dos
objetos, para se deter no conteúdo dos mesmos. Sem negar a essência ontológica (o
que são), proponho percorrer com o nosso olhar uma abordagem pragmática – como
SHUSTERMAN (2000) e HEINICH (1998) – e dialógica (BAKHTIN, 1986), tentando recriar,
por essa via, um renovado ponto de vista sobre os documentos disponíveis, isto é,
sobre as representações que nos oferecem ou que lhes fornecemos.
Unidades fragmentadas
Fig. 1. Coleção de cadernos Não Sou Nada (2014-2022).
Convém, antes de mais, situar as circunstâncias da existência da amostra em análise,
que tem duas origens. Por um lado, resulta de consultas regulares ao arquivo pessoal
do realizador, efetuadas entre novembro de 2021 e julho de 2023, no âmbito de uma
tese de doutoramento, em curso, sobre arte, comunicação e história de vida, a partir
do caso de Edgar Pêra. Simultaneamente, para efeito da mesma investigação, foram
sendo selecionados e enviados, ao longo deste tempo, pelo próprio autor, blocos
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Cadernos diários de Edgar Pêra
completos de cadernos digitalizados ou páginas avulsas, desde os primeiros anos de
atividade (1977) até ao presente. Os excertos referentes a Fernando Pessoa, assim
como aos cadernos Não Sou Nada, integraram essas remessas regulares, que se
destinavam a informar a tese. Temos, pois, como ponto de partida, um corpus quase
integralmente escolhido pelo produtor. O que poderia ser considerado um obstáculo
metodológico à análise e consequente redação deste artigo passou a assumir-se
como um desafio interpretativo. Explicando: tal como foi recolhido, este material
acentua o caráter fragmentário dos documentos, permitindo recriar um meta-discurso
(no duplo sentido do autor, que os reordena por força destas seleções, e de quem os
interpreta) em cima da produção original integral. Sem prejuízo de um muito
necessário trabalho de inventariação sistemática de toda a documentação em causa,
optei, para os propósitos deste artigo, por assumir estes pedaços algo desconexos de
informação, por vezes descontextualizada, como um revelador e intencional elemento
discursivo. Tomar esta opção metodológica implica aceitar o “emaranhado” (KIFFER,
2018: 99) que os originou e perpetua, limita-nos a capacidade interpretativa, remetendonos para a justa medida da complexidade intrínseca e inextricável com que se
travestem estas mensagens. Adicionalmente, posiciona estes documentos como um
processo dialogante em constante mutação, afastando-nos da ilusão fácil de os
aceitarmos tão só como uma fabulosa e estanque fonte de informação sobre uma
obra, que, não obstante, o são.
Fig. 2. Carantonhas ou Egos. Fonte: Caderno 035, 2000.
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Cadernos diários de Edgar Pêra
Fig. 3. Carantonhas ou Egos. Fonte: Caderno 035, 2000.
Foram também integradas na análise anotações que não se relacionam
diretamente com nenhum dos dois tópicos enunciados, mas que remetem de forma
indireta para estes, como sejam as temáticas da fragmentação, da loucura ou do
abismo ou outro tipo de dados que nos ajudam a situar esta produção diarística.
Uma vez que nem sempre os objetos digitais foram acompanhados de elementos
contextuais (como uma data precisa), foi elaborada uma descrição individual de
cada uma das imagens, procurando reconstituir a ordem pré-existente. A tarefa
compôs-se como uma estranha arqueologia do presente, já que nada impede a
verificação in loco entre o existente e o recriado ou pós-selecionado. Arqueologia
implica reconstituição, com a certeza de que nada se configura como na origem.
Encontrei-me, posto isto, perante imagens total ou parcialmente repetidas, súmulas
de cadernos organizadas pelo autor, páginas isoladas cujo teor (após visualizações
insistentes e registos identificadores) se recuperam em cadernos completos, numa
conjugação de pedaços, como num vaso quebrado. Também acontece amiúde Edgar
Pêra selecionar apenas uma parte da página, destacando uma frase ou imagem, o
que suscita curiosas interpretações divergentes entre a parte e o todo revelado. Vale
a pena realizar um pequeno desvio para exemplificar. Nos Diários Cine-Tese (uma
das súmulas de cadernos diários não publicados, com textos reflexivos sobre o cinema),
surge uma digitalização de uma folha, com a frase: “Não penso no futuro destes
cadernos, mas não filmo desta forma os meus pensamentos” (p. 207). Noutro ponto
do documento, consta a mesma página, com uma percentagem maior da folha, pelo
que é possível ler toda a frase redigida: “O que não quer dizer que não penso no
futuro destes cadernos, mas não filmo desta forma os meus pensamentos” (p. 210).
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Cadernos diários de Edgar Pêra
Fig. 4. “Poderes ácydos”. O início de Artur Cyaneto.
Fonte: Caderno 035, 2000.
É neste ponto que estes assincronismos aparentemente estéreis nos conduzem
à crença de que haverá um qualquer ângulo de análise a defender. Que pode ser
este: receber os cadernos como objetos encontrados confirma que estes mais não são
do que infinitos mapas mentais caracterizados pelas centenas de hipóteses combinatórias
que os ligam entre si. Mais ainda quando o próprio autor faz por torná-los perdidos,
para deles se apropriar, ampliando as múltiplas possibilidades simbólicas neles
contidos. Assim sendo, temos que a lenta e fria recolha científica, unidade a unidade,
ajuda certamente a construir a preciosa ordem original, mas poderá diluir o caos que
os torna, ainda hoje, vivos testemunhos inacabados. Prossigamos, pois, nessa via
mais dispersiva.
O universo de onde foi extraído o corpus de análise tem como limite temporal
os anos de 1977 a 2022 e compõe-se dos seguintes núcleos documentais: um conjunto
de objetos digitais enviados por Edgar Pêra entre julho e agosto de 2022, agregando
referências a Fernando Pessoa, elementos biográficos e os cadernos do filme Não Sou
Nada; o já referido ficheiro intitulado Diários Cine-Tese [2016?]; um ficheiro intitulado
Fotos Cadernos Ego – NSN (2018-2021); um ficheiro designado Cadernos Ego Junho 2019
a Maio de 2020; além de 44 cadernos digitalizados na totalidade. Resulta que, desta
seleção, foram identificados 110 registos alusivos a Fernando Pessoa, que foram
classificados como “influências prévias”, constituindo-se por um friso cronológico
que começa em 1988 e se estende até 2013. Quanto aos cadernos Não Sou Nada, o seu
registo começa em 2014 e prolonga-se até 2022, tendo sido registadas 460 entradas.
A identificação destes conteúdos foi auxiliada por um documento de trabalho em
progresso, correspondendo a um inventário dos cadernos de Edgar Pêra.
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Cadernos diários de Edgar Pêra
Cadernos, diários, livros de artista?
Mas, afinal, como poderemos classificar estes objetos? São diários, são rascunhos de
projetos, são obras de arte? São documentos de arquivo? Conjugando a banalidade
e a singularidade (KIFFER, 2018), que características formais lhes podem ser apontadas?
Iniciados como diários exclusivamente pessoais, no início da vida adulta, os cadernos
de Edgar Pêra começaram a ser progressivamente utilizados como dispositivos
mentais ou organizadores de pensamentos, direcionados para a atividade intelectual
e artística. Como é próprio deste tipo de registos (REIS, 2021), a volatilidade da sua
natureza torna difícil qualquer intuito de definição. Também no caso dos cadernos
de Pêra, vários elementos se combinam para a construção de uma amálgama de
forma e de conteúdo. Se, no início da produção, obedeciam a um modelo mais
formatado (caderno A4 pautado, com apontamentos escritos), ao longo dos anos
evoluíram para um evidente estado de hibridismo. Neles, passaram a marcar
presença desenhos (bonecos Ego, focados adiante neste texto), grafismos, esquemas,
colagens (etiquetas com preços, autocolantes de super-heróis, avisos de receção dos
correios), apêndices (bilhetes de cinema, talões de multibanco, faturas), como é
visível na Fig. 5.
Fig. 5. “NSN shoping”. Colagens misturadas com grafismos.
Fonte: Caderno 080, 2018.
Ao mesmo tempo, cruzam-se ideias para filmes, com notas do quotidiano,
lembretes de tarefas ou contactos telefónicos. Para aumentar a confusão, também se
misturam, frequentemente, sequências temporais, uma vez que Edgar Pêra volta a
estes registos de forma constante, introduzindo novos comentários, anotando ou
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Cadernos diários de Edgar Pêra
sublinhando apontamentos ou colorindo os cadernos. Esta singularidade confere,
mesmo aos registos iniciais, um estatuto de arquivo aberto, o que corrompe
inteiramente a ideia comum do arquivo como conjunto cuja produção é fixada
temporalmente, propiciando, por vezes mesmo ainda em vida do produtor, a
consulta do investigador. Uma vez mais, o que poderia ser encarado como um
engulho (não só a documentação não está controlada em termos de descrição, como
muda constantemente de lugar físico e de conteúdo), apresenta-se como uma
riqueza informacional. Isto porque nos dá a oportunidade de apreender os fluxos
presentes, registando dinâmicas que esperamos valiosas para os vindouros. Se, por
norma, as consultas aos arquivos são realizadas numa fase intermédia ou definitiva
(quando o uso é escasso), tal não significa que o estatuto de documento (resultado
da produção de uma entidade, independente do seu suporte, que serve de registo e
prova às atividades realizadas) possa ser negado a estes cadernos. Sendo, em termos
genéricos, um documento de arquivo, os diários identificam-se com outras tipologias,
que tentarei designar. Embora se possam enquadrar no crescente individualismo
que surgiu com a modernidade e teve continuidade para a pós-modernidade
(MACEDO, 2014), favorecendo a escrita pessoal, não podemos reduzi-los a diários
íntimos ou egodocumentos, isto é, a registos do quotidiano, que refletem o eu e a
comunidade, sem qualquer objetivo literário ou artístico. Surgindo, portanto, na
complementaridade de uma obra, tornam-se, como esta, objetos de mediação entre
o individual e o universal. Esse lado mediador e polissémico dos livros de artista,
como assinala Isabel Baraona em entrevista à ROMANA (2017a), faz com que a sua
apreensão se estenda por distintas sequências temporais, auxiliada pela própria
manipulação tátil e visual do objeto, a que se refere o curador Delfim Sardo, também
em entrevista à ROMANA (2017a). O que encaminha estes exemplares para a definição
(igualmente difusa) de livros de artista.
Os cadernos de Edgar Pêra encaixam no conceito de múltiplos de arte
(ROMANA, 2017b), já que são abordagens diferenciadas (não obstante complementares)
prévias ou simultâneas a uma obra, na sua maioria, fílmica, mas não apenas.
Recorde-se que, além de realizar filmes, Edgar Pêra também pinta (os quadros do
consultório psiquiátrico do Não Sou Nada são da sua autoria), sendo que algumas
das suas pinturas são sucedâneos dos bonecos Ego dos cadernos. Essa vertente da
multiplicidade é própria, de resto, dos livros de artista. Uma característica, convém
sublinhar, que é igualmente relevada por ROMANA (2017b), ao tipificar (entre outros
fatores) o livro de artista como intermédia, isto é, como um objeto que surge na
interdependência de outras expressões artísticas. É verdade que, no caso do
realizador, não há uma reprodução das obras em publicações com tiragens limitadas
em edições alternativas, como acontece com muitos livros de artista. No entanto,
outros sinais direcionam estes objetos para esta categorização. Sardo (a Romana)
aponta a dimensão dialógica como um elemento identificativo do livro de artista
que, segundo o autor “tem sempre embebido em si uma compulsão participativa”.
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Cadernos diários de Edgar Pêra
Isto, mesmo se (como acontece, inegavelmente, com os cadernos em análise) essa
compulsão é “normalmente remetida para uma relação de intimidade, não para a
relação coletiva” (ROMANA, 2017a: 8). Intimidade do produtor e do leitor, que acede
a estes objetos como se entrando num espaço privado. No que é confirmado por
Romana, que afirma: “na relação com o livro de artista somos leitores e espectadores
em simultâneo, assistimos ao desenvolver de uma obra de arte no tempo e no
espaço” (ROMANA, 2017b: 34).
Porque se prestam, na maior parte das vezes, a auxiliar a atividade criativa,
não há propriamente regras para os livros de artista, que roubam o conceito de livro
tradicional (um objeto tridimensional com fólios) para criar algo que está muito para
lá desta padronização editorial. Há, ainda assim e mesmo levando em conta a faceta
algo imprevisível dos cadernos de Edgar Pêra, algumas linhas facilmente identificáveis.
Por exemplo, a partir de certa altura, o formato A4 foi sendo substituído por
pequenos cadernos de folhas brancas de encadernação rígida, embora se encontrem
exceções, como cadernos de maiores dimensões para o filme A Janela (Maryalva Mix)
(PÊRA, 2001), ou cadernos de argolas, de capas metálicas; quase todos têm um menu
de abertura (ver Fig. 6), que funciona como índice do conteúdo; e estão redigidos,
maioritariamente, a tinta preta (com canetas sakura graphic 3), ainda que haja
exceções à regra (verde, azul ou vermelho).
Fig. 6. Menu de caderno de Edgar Pêra. Fonte: Caderno 091, 2019.
É curioso verificar que também a caligrafia sofre mutações, não só temporais
(letra mais desenhada e legível no início da produção), mas também ocasionais,
parecendo que, o autor se posiciona em distintos papéis, incorporados no grafismo
da escrita. Ou são simplesmente resultados prosaicos do tempo e do lugar do registo,
já que aparecem anotações no metro, no comboio, em esplanadas, nas viagens de
avião. Habitualmente, os cadernos de Edgar Pêra pouco se assemelham a livros, no
sentido editorial do termo, exceto num caso. Em 2020, o realizador imergiu no
espírito pessoano, escrevendo à máquina citações datilografadas de textos de Pessoa.
Dessas investidas, surgiu um caderno em formato de livro, misturando estes excertos
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Cadernos diários de Edgar Pêra
com os bonecos Egos dialogantes. Este é, talvez, o exemplar que mais se aproxima
do formato dos livros de artista, enquanto objeto físico.
Ao integrarmos os cadernos de Edgar Pêra na categoria de livros de artista,
estamos a considerá-los como obras de arte, na aceção destas como objetos cujo
suporte é o seu próprio sentido como os define a artista Isabel Baraona em entrevista
à Romana (Baraona em entrevista a ROMANA, 2017a). Adicionalmente, tal como
acontece com uma obra de arte, podem descrever-se como extensões físicas de uma
atividade mental de relação com o mundo. Se considerarmos o corpo (soma) como
uma ferramenta estética (SHUSTERMAN, 2012), temos que, efetivamente, estes cadernos
(e os filmes que lhes sucedem) resultam de um prolongamento indesmentível de um
olho-máquina (cinema), de uma manualidade artística (desenhos dos cadernos) e de
uma concetualização estética. Resumindo: estamos perante documentos de arquivo
pessoal, que encaixam, genericamente, no tipo diário, mas que também podem ser
considerados documentos de apoio de projetos (maioritariamente filmes) e, em
simultâneo, artefactos artísticos, pela dimensão visual que registam, mas também
pelos pensamentos (uma teorização sem intuitos científicos, que se experimenta e
valida em obras) que neles se inscrevem.
Falam para quem? – diálogo em espiral
Fig. 7. “A importância d’ OS CADERNOS”. Fonte: Caderno 048, 2016.
Porventura, tentar decifrar que mensagens veiculam estes cadernos, cristalizando as
suas intenções primordiais, pode ser um erro com vários graus de equívocos. Logo
a começar pelo facto de, como referido, as inscrições não se esgotarem no momento
do primeiro registo, mas serem um objeto de transformação periódica. A 22 de julho
de 2022, Edgar Pêra voltou a um caderno de 1991, anunciando-se com um dos
bonecos Ego: “I’m back!”. Se há fator a sublinhar nesta torrente de pendor diarístico
é a sua natureza dialógica, sendo este o argumento mais consistente na defesa de
que qualquer tentativa de fixação poderá ser enganosa ou, quando muito, restritiva.
O diálogo é estabelecido, em primeiro lugar, entre o realizador e si próprio ou as
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Cadernos diários de Edgar Pêra
múltiplas personas por ele criadas. No volume Fotos Cadernos Ego, na p. 53, surgem
vários bonecos e a frase: “Tenho de dar nomes aos meus bonecos”. Figuram neste
desfile Cyaneto (alter-ego musical de Edgar Pêra, referido na fig. 4), Eduardo (há um
entrevistador fictício de Edgar Pêra nomeado Eduardo Ego) e Duas Tolas, um boneco
bicéfalo. Também há espaço (muito espaço mesmo) para diferentes figurações de
Fernando Pessoa (ver Fig. 8).
Um dos elementos mais persistentes dos cadernos Não Sou Nada são os diálogos
de dois ou mais Egos à esquina (ver Figs. 9 e 17), trocando ideias sobre o filme.
Também pode acontecer serem dois monólogos disfarçados de conversa, com um
deles a falar de Pessoa e outro a responder com uma banalidade do quotidiano ou
um outro projeto em curso, sem relação aparente com o mote instigador da conversa.
Fig. 8. “He that loves must not love truth also, for truth kills love”.
Figurações pessoanas. Fonte: Caderno 081, 2021.
A partir de dado momento (pelo menos, desde 2015, altura em que aparecem
registos que aludem diretamente aos cadernos), Edgar Pêra começou a elaborar um
meta-discurso sobre os mesmos, refletindo (como se de fora) acerca desta produção,
o que confere um segundo nível dialógico. A 6 de junho de 2015, o autor compara
estes registos a livros de receitas, “diários de ideias que excluem o eu”. A anotação foi
realizada 23 anos depois, já que o caderno é datado de 1992. Já em 2016, os cadernos
são associados a “trampolins de ideias” (ver Fig. 7), coincidindo com o ano em que os
cadernos de Edgar Pêra saíram do anonimato, numa retrospetiva sobre o realizador,
na Fundação de Serralves1, que incluía uma exposição documental. Há uma ligação
óbvia entre este fator e a crescente autorreflexão que se lhe seguiu. Apenas podemos
especular sobre o que terá mudado na produção diarística. Embora seja seguro
afirmar que a maior consciência sobre esta prática foi incorporada por Edgar Pêra
nos seus próprios registos, numa estratégia auto-devoradora que caracteriza, de
resto, a praxis artística.
1
Ver: https://www.serralves.pt/arquivo-evento/edgar-pera-uma-retrospetiva/
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Fig. 9. “Escrevendo assim… | Desta forma fragmentada | (mas) quase lapidar |
Faz-me pensar de outra maneira | Nem distingo bem entre as palavras |
E as imagens…”. Meta-discurso. Fonte: Caderno 046, outubro de 2016.
Fig. 10. “Serão | poemas ilustrados | ou BDs poéticas? | Ou…”.
Meta-discurso. Fonte: Caderno 046, outubro de 2016.
Fig. 11. Caderno da pandemia. Fonte: Caderno 078, 2020.
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No caderno 053, datado de dezembro de 2016, o autor escreve: “Até há pouco
escrevia de forma a ocultar os meus pensamentos, hoje escrevo e desenho nestes
cadernos a pensar num outro a quem decifro esses mesmos pensamentos”. Antes
disso, em outubro de 2016 (caderno 046), reflete: “Começo a escrever sobre a minha
vida e páro. Olho para trás e está alguém no meu ombro. Invisível, mas sei que lá
está”. E continua: “Essa consciência altera profundamente a natureza destes cadernos?
Acho que não”. É inevitável concluir, portanto, que a disseminação deste material
não só é suscetível de criar novos sentidos mediante a interpretação de quem a eles
acede (introduzindo outro nível dialógico), como suscita uma reação do produtor,
que se descobre acompanhado na até então solitária tarefa de verter pensamentos
para páginas em branco.
Fig. 12. ”Koka-drink ou Koka-Tola ou Coca-Tola?”.
Monólogo de um Ego. Fonte: 078, 2020.
Por fim, dizia que fixar uma única linha interpretativa para os cadernos nos
pode induzir a um caminho erróneo, o que se explica nos inúmeros diálogos que
neles pululam. Falta acrescentar (e este é um argumento com um peso considerável)
que os caminhos interpretativos deste material são tantos (como, aliás, o prova o
corpus em análise) que dificilmente conseguiremos atingir, pela limitação de um
sentido original, uma linha coerente, nem talvez seja desejável que assim aconteça.
Uma leitura transversal de toda a produção diarística, independentemente das
oscilações temáticas ou de conteúdo, permite aferir os cadernos como externalizações
do vozerio interior. Como se tanta coisa não coubesse dentro de um armário, que é
urgente esvaziar e organizar. Essa (de)organização em forma de livros de notas
adquire uma feição quase exclusivamente visual, mesmo na sua escrita.
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Oráculos visuais
É por demais notório que a primeira década e meia de registos se aproxima do
monólogo e do tipo diário íntimo, o que coincide com os anos prévios à atividade
artística. Desde os primeiros projetos (crónicas semanais que o realizador escreveu
no jornal semanário O Independente, entre 1989-1994, com interregnos esporádicos
entre 1992 e 1993), que o fluxo registador começou a aumentar, sempre com a função
de servir a organização das ideias, criando um rascunho do projetado, quando todas
as possibilidades estão em cima da mesa. Nesta fase, as anotações escritas eram
predominantes, ainda que pontuadas por grafismos (setas, por exemplo) ou esquemas
concetuais, como aconteceu com o “mapa” (ver fig. 15) do filme Zombietown 23 (PÊRA,
1998). Nestes exemplos, o dialogismo está implícito na própria rotina de escrita, que
é, maioritariamente, como refere Ana Maria da Costa MACEDO, “afirmação de uma
individualidade que se assume como autoexame permanente” (2014: 51). À medida
que as formas visuais foram ganhando espaço, o diálogo (que continua, na prática,
a ser interior) projeta-se desta forma gráfica, personificando-se nos Egos, que como
que incorporam os pensamentos. É curioso estabelecer aqui um paralelismo entre
estes desenhos (que falam com balões que saem da boca ou com balões que podem
ser toda a cabeça ou o seu corpo todo) e a Banda Desenhada, uma forma de arte a
que Edgar Pêra se dedicou desde os primeiros anos de vida, enquanto leitor, e que tem
levado para o cinema, como o prova o exemplo expressivo do projeto CINEKOMIX!!!,
uma série de 13 episódios, a autores de Banda Desenhada. De resto, REIS (2021) alude
justamente à relação entre a BD e os livros de artista, salientando os espaços vazios
entre imagens ou textos como um elemento comum, expressivo da componente
fragmentária de ambos.
Fig. 13. “A vida é devorar”. Egos e Homens-Kâmara. Fonte: Caderno 090, 2020.
Podemos identificar dois tipos de bonecos: os Egos e os Homens-Kâmara. Os
bonecos Ego, que transitaram para a pintura e que fazem parte dos cadernos de
Edgar Pêra, surgem como mestres-sala do processo criativo do Não Sou Nada, já que
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são eles que verbalizam grande parte dos pensamentos, ideias, hesitações e
exploração de caminhos do realizador. Posicionando-se frente a frente, num diálogo
à esquina, com frases encaixadas em balões, estas figuras de perfil são Pessoa (em
versão vermelho ou azul ou preto ou laranja), Álvaro de Campos, Ego (vulgo Edgar
Pêra), personagens anónimas, com formato tosco e inconfundível. Quando não estão
à esquina, podem apresentar-se alinhadas em fila ou como que caminhando, cada
uma para seu lado. Parecem sempre inquietas, assomadas pelos milhares de projetos
que por elas transitam. São o canal de comunicação.
Quase sempre com uma cabeça oval, duas pernas e dois braços, os bonecos
Ego são, na verdade e em rigor, multiformes. Acontece serem só uma boca ou uma
cabeça cheia de frases, há imagens de Egos com a cabeça afunilada ou muitas cabeças
e bocas malformadas vociferando. Também aqui, Edgar Pêra usa o material para
vazar um discurso autorreflexivo. Vejamos os Homens-Kâmara (ver Fig. 19). Há
desenhos que expressam a tirania do H-K (“Marxe!”), ou o sorvedouro visual que
ele representa “Don’t shoot me!”. Como não poderia deixar de ser, há momentos em
que Egos e Homens-Kâmara se cruzam nas esquinas e o resultado pode resultar
puramente visual (mesmo se indiciando um referente literário), como quando trocam
apenas “!!” e “??”. Os registos veiculados pelos Egos podem ir do mais genérico ao
mais pormenorizado. A reescrita do guião do Não Sou Nada com os seus imensos
caminhos narrativos, passa pela voz da bonecada, que não se cansa de enumerar
diversas hipóteses.
Fig. 14. “Esquecer o guião. Concentrar nos pormenores que desejo desenvolver”.
Cine-receita, notas para um projeto inacabado. Março de 2008.
Pelos bonecos também transitam os perfis dos distintos personagens, anotações de
pormenores a aperfeiçoar ou múltiplas intenções, algumas das quais abandonadas
na concretização do projeto. Os Egos estão sempre ao serviço do Sr. Ego, sendo
escassas as páginas deste período de concetualização e realização do Não Sou Nada,
em que eles não se apresentem para regurgitar uma ideia.
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Antes de Pessoa: Pessoa, claro está!
Descobrir o universo de Fernando Pessoa nos cadernos de Edgar Pêra durante os
anos do Não Sou Nada (cujo projeto foi apresentado formalmente a concurso em 2014)
é fascinante, mas não surpreendente. Buscar, nos cadernos, as influências de
Fernando Pessoa ao longo dos anos e antes de Não Sou Nada, é revelador. As
primeiras referências encontradas ocorrem no início dos anos 90, mas é possível que
outras venham a ser descobertas, num levantamento mais apurado dos cadernos
produzidos. Nestes primeiros apontamentos, Fernando Pessoa surge misturado com
projetos em curso ou em idealização, nem sempre sendo coerente a relação (se é que
existe) entre estas notas do quotidiano e as invocações de Pessoa. Certo é que o poeta
se torna omnipresente, ao ponto de não ser necessário explicar porque é que aparece.
Ele está lá. No início dos anos 90, Edgar Pêra dedicou-se a transcrever pedaços de
textos de Pessoa sobre Portugal. Estas citações juntam-se, nos cadernos da época, aos
projetos em que se desdobrava: festival de cinema Fantasporto, documentário sobre
o Rock, a rubrica Ficção & Realidade para o semanário O Independente. Nas notas deste
período, também aparece o Português Sohniko, um sistema linguístico inventado
por Pêra e que o leva, ainda hoje, a escrever peculiarmente com k, y ou grafismos
sonoros como o ph em vez do f ou o x em vez do ch. Podemos identificar em Pêra a
influência das vanguardas russas do início do século XX (CARLOS, 1998) que é
presumida no caso do Português Sohniko – uma ortografia sonora e sinestésica
nascida da intuição cujo referente é muito semelhante aos poemas sonoros russos –
e absolutamente evidente no Homem-Kâmara, primeiro dos alter egos de Edgar Pêra
(em meados da década de 80 do século XX), que assim mimetizava o Homem da
Câmara de Filmar, de Vertov. De resto, observamos esta mesma atração pela fixação
de sons ou de ideias através da corrupção dos seus grafismos, no também realizador
Glauber Rocha (JUNIOR, 2011).
Mas, o que é que o Português Sohniko tem a ver com Fernando Pessoa? Nada,
supostamente. O facto é que as anotações sobre Portugal e “O Pessoalismo” andam
a par das reflexões sobre o sónico. A ortografia sónica é descrita como “paganismo
superior; politeísmo supremo; Invisionahvel”. Algumas páginas à frente, no mesmo
caderno, a “Ortugrafia sohnika” conjuga-se como uma variação do português (“Latim
+ Árabe), confirmando-se como um “Imperialismo de Puetas”. Mais recentemente,
Pêra recuperou (comparando com o seu sónico) palavras de Soares/Pessoa, com k e
y, como “Kaleidoscópio” e “apocalyptico” (janeiro 2020). E não será demais anotar
que Fernando Pessoa não embarcou nas alterações ao acordo ortográfico de 1911 e
que é sua a grafia de “desassocego” que aparece no genérico de Não Sou Nada.
Quanto a Edgar Pêra, mantém-se fiel à sua idiossincrasia ortográfica, deixando-se
influenciar por Pessoa, mas gerando os seus próprios símbolos, já que desassossego
surge, por vezes, grafada como “dezassossego” (ver Fig. 15).
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Fig. 15. Esquema Zombie Town 23 (1998?).
As leituras dos cadernos encaminham-nos, igualmente, na convicção de que
Não Sou Nada é uma passagem concentrada de um estudo obsessivo e aprofundado
da obra pessoana com reverberações temporais justapostas, que desaguam de forma
ora direta ora subliminar num filme. O realizador estabelece teias onde poucos
veriam ligações lógicas, unindo um poeta do modernismo com um xamã de fim de
século XX. Em janeiro de 2000 (caderno 019), anota: “Fernando Pessoa enkontra
Aleister Crowley Terence McKenna encontra Bernando Soares”. Pêra junta-os em
Zombietown 23, explorando as temáticas da realidade sensorial, da perceção e dos
mundos paralelos e do tempo tão presentes no seu cinema, antes e depois de
Zombietown 23.
Outros fragmentos são estonteantemente premonitórios. Como a personagem
Beth (figura de um projeto nunca concretizado, de 2007, intitulado Peregrino, que
associa Pessoa a Bosch), que é descrita por Edgar Pêra como “o feminino em Pessoa”,
uma mulher com instintos assassinos, pairando num projeto de filme em que
também entra Quaresma e no qual Pessoa é padre. Pondo de parte a faceta homicida
da personagem feminina (que, no Não Sou Nada, é direcionada para Álvaro de
Campos, embora também possa existir, num sentido metafórico, em Ofélia), vemos
que a indefinição sexual de Pessoa foi pensada em 2007 e concretizada quase década
e meia depois. Em 2016, já com a cabeça no Não Sou Nada, Edgar Pêra anota: “Mas o
co-protagonista também poderia ser uma mulher vestida de homem. Pessoa
invertido. O negativo de Pessoa”. As anotações de projetos inacabados dir-se-iam
ensaios abandonados e esquecidos, cujas raízes se ramificam cronologicamente. Sem
falar nos projetos realizados – Lisbon Revisited (2014), o já nomeado Zombietown 23,
Caminhos Magnétykos (2018) – por onde Pessoa se passeia.
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Fig. 16. The angry director (1991-1993).
Em 2007, Edgar Pêra dedicou-se a fazer uma lista de influências literárias por
décadas. Os primeiros anos (década de 60) foram marcados pela BD (Stan Lee, a
quem Pêra foi buscar a ideia de um escritor que recorre a um exército de criativos a
trabalhar anonimamente). Nos anos 70, Álvaro de Campos surge em lugar cimeiro,
junto com Mário de Sá-Carneiro. Na década seguinte, era publicado, pela primeira
vez, o Livro do Desassossego e Bernardo Soares encabeça a lista, que fecha com outra
grande influência em Edgar Pêra: Howard Phillips Lovecraft. Soares transita para os
anos 90 e 2000, juntamente com Agostinho da Silva, Branquinho da Fonseca e
Alberto Pimenta. Todos eles estimularam um ou mais filmes de Edgar Pêra.
Pré-conclusão – busca da identidade
Fig. 17. Egos. Fonte: Caderno 046. Outubro de 2016.
A manipulação tátil dos cadernos, assim como a sua leitura repetida, confirma o seu
produtor como um artista e estes livros como objetos estéticos. A constatação não é
tão simplista como se possa pensar à partida. Com isto, queremos significar que Pêra
não se limitou a investir com intuitos académicos ou didáticos na leitura sistemática
de Fernando Pessoa, durante quase meio século, que é a maioria substancial da sua
vida, até ao momento. O autor incorporou Fernando Pessoa no seu sistema de sonhos,
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desenhando imaginários, pela arte. O resultado é transformador ao ponto de Pêra se
sobrepor a Pessoa ou de Pessoa se apoderar postumamente de Pêra, numa infusão
onde já pouco importa o que é de quem ou mesmo quem é quem. Uma vez que os
cadernos são, como os filmes, materializações visuais e poéticas dessa relação artística,
defendemo-los como declarações estéticas autónomas e também como fabricações
identitárias. Com ou sem Pessoa por perto (isto é, sabemos que paira, mas por vezes
apenas se adivinha a sua presença), Edgar Pêra ressoa-o, espelhando-se.
Assomamos a interpretação destes cadernos, orientados pelas sensações
estéticas que eles nos convocam. Não procuramos explicar, nem compreender na
totalidade, até porque não são unos. Como acontece com a fruição de qualquer
objeto estético, aceitamos as distintas camadas temporais que os revestem, enquanto
acrescentamos significados a cada leitura e em sucessivas contextualizações, por
vezes desfasadas nas suas intenções. Comecemos por traçar o fio destas linhas
identitárias, com os primeiros anos de registos. A 6 de janeiro de 1978, Edgar Pêra
questiona-se: “Será possível viver noutra realidade que não esta?” Os universos
paralelos e o tempo são tópicos que passaram a ocupar muitos dos filmes do
realizador (exemplo: Manual de Evasão Lx 94), que em 1978 ainda não realizava filmes,
mas já se apresentava dúvidas que explorou ciclicamente ao longo dos anos e em
variados materiais. “Eu sou estas páginas ou cada página é um eu?”, pergunta-se a
7 de julho de 1978, abeirando-se do conceito de fragmentação do eu, que pontua
inúmeras anotações dos cadernos além de tomar por completo conta de filmes, como
acontece com A Janela (Maryalva Mix) (PÊRA, 2001) e Não Sou Nada. É nos anos de A
Janela (Maryalva Mix), no caderno 019, datado de janeiro de 2000, que regista “um
espelho que tomba” e “um espelho estilhaçado”, antecipando um objeto simbólico
do Não Sou Nada.
Fig. 18. Ego: “As vozes ensurdecyam os seus pensamentos”.
Fonte: Caderno 015 (1999, colorido em 2015)
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A inquietação é permanente, produzindo resultados que têm tanto de centrífugo
(disparando para vários sentidos, na tentativa de abarcar o todo ou as imensas
hipóteses nele contidas), como de concentrado e imutável, pela repetição obstinada
de ideias. Afinal, “a vida é devorar” (28-1-2020), é necessário extravasar as limitações
físicas do corpo, do espaço e do tempo. A voragem é tão avassaladora que, às tantas,
se desemboca no precipício. A 19 de março de 2019, desenha várias sequências com
a palavra “abysmo”. Quer nos cadernos, quer nas pinturas, surgem espirais, que
tanto parecem atrair, como repelir. “O que procuro é invisível e está em todo o lado”
(25 de fevereiro de 2021). Mas é preciso “sonhar com os olhos abertos, lúcido,
fascinado” (25 de fevereiro de 2021). Abrir os olhos para o incomunicável, ver o que
outros ignoram, insistir num sistema onírico (transracional?) ou simplesmente
inverter a ordem das variáveis, por puro tédio da arrumação pré-existente. “Apaziguar
os deuses da insatisfação” (29-1-2020) e voltar repetidamente ao início, uma vez que
as respostas nunca são dadas todas de uma vez e, ao acabar, descobre-se que esse é
um novo ponto de partida. Até porque parte deste método implica o teste a cada
uma das revelações do caminho. No caderno de outubro de 2019, registou um trecho
do Livro do Desassossego: “Tenho sido sempre um sonhador yróniko ynfiel às
promessas interiores”.
Da filmografia de Edgar Pêra constam adaptações literárias, totais ou parciais,
algumas delas de pendor biográfico, sempre de fronteira entre o real e o ficcionado.
Assim aconteceu com Amadeo de Souza Cardoso (Crime Abismo Azul Remorso Físico,
2007), Almada Negreiros (SWK4, 1993), António Pedro (O Homem-Teatro, 2001), H. P.
Lovecraft (Kinorama, 2019), Branquinho da Fonseca, como Rio Turvo (2007), O Barão
(2011), Caminhos Magnétykos (2018). Em todos os projetos, o autor aborda a obra de
outros evitando a reprodução mimética, procurando mergulhar nas peças literárias
com um olhar que tem tanto de questionador e aberto à diferença, como de
antropofágico, já que produz, invariavelmente, visões que ampliam as suas próprias
reflexões. Fernando Pessoa é, sem dúvida, o autor que mais estruturalmente influenciou
Edgar Pêra. A identificação é profunda e estende-se a gradações que aglutinam o
estético, o artístico e o pessoal. Se é que é possível distinguir os diferentes campos.
Em Fernando Pessoa, como em Edgar Pêra, a fusão é de tal ordem, que a arte se
confunde com a vida, suplantando-a quando esta não devolve as respostas
necessárias. Assim se explica a obediência a mestres? Evitemos os psicologismos,
contornando-os, para tropeçar noutra temática que atravessa estes cadernos: a
loucura. Trata-se de um conceito que povoa os registos de Edgar Pêra desde as
primeiras anotações e, não surpreendentemente, muitas das anotações do Não Sou
Nada. Em dezembro de 2019, regista: “Apenas sigo a sua loucura e os seus sonhos”.
A 20 de janeiro de 2020, continua neste universo: “Ao ler Pessoa escrever sobre a sua
loukura, o seu medo da loukura, a sua definição da sua própria loukura, komeço
também a tentar entender melhor a minha loukura. Procurar uma typologia”.
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Nesta tentativa de interpretação dos cadernos de Edgar Pêra como
manifestações artísticas e identitárias, arriscamos a defini-los como passos de um
caminho cujo rasto se descobre percorrendo-o. Pegadas que criam uma linha, ténue,
a princípio, e sucessivamente definida pelo calcorrear original e alheio.
Fig. 19. Homens-Kâmara. Fonte: Caderno 065. Janeiro de 2017.
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(2007b). Crime Abismo Azul Remorso Físico. Bando À Parte.
hlps://www.youtube.com/watch?v=uQ8Wx52MmIc
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(1998). Zombietown 23. hlps://www.youtube.com/watch?v=WMIrBBCDwDU
(1994). Manual de Evasão Lx94. hlps://www.youtube.com/watch?v=GWYbMfsaGO4
(1993). SWK4. Companhia dos Filmes do Príncipe Real.
https://www.youtube.com/watch?v=1JH1BFVHOu8
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TERESA LIMA integra o grupo de investigadores doutorandos do CECS/UMinho, estando a
realizar o Doutoramento em Ciências da Comunicação. Com uma Licenciatura em
Comunicação Social pela Universidade do Minho, fez uma incursão pelo jornalismo (Público)
e obteve o Diploma em Estudos Avançados em História Contemporânea, na Universidade
de Santiago de Compostela. Profissionalmente, tem exercido atividade nas Ciências da
Informação. Atualmente, estuda a relação entre biografia, discurso e comunicação, partindo
da história de vida do realizador Edgar Pêra. Integra, igualmente, o grupo de investigadores
da Passeio – Plataforma de Arte e Cultura Urbana (www.passeio.pt), do Centro de Estudos
de Comunicação e Sociedade (CECS), da UMinho.
TERESA LIMA is a member of the group of doctoral researchers at CECS/UMinho, currently
studying for her PhD in Communication Sciences. She has a degree in Social Communication
from the University of Minho, a career in journalism (Público) and a Diploma in Advanced
Studies in Contemporary History from the University of Santiago de Compostela. Professionally,
she has worked in the Information Sciences. She is currently studying the relationship between
biography, discourse, and communication, based on the life story of film director Edgar Pêra.
She is also a member of the Passeio – Plataforma de Arte e Cultura Urbana (www.passeio.pt)
group of researchers at UMinho’s Centre for Communication and Society Studies (CECS).
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Não Sou Nada (2023)
Percorremos, nesta recensão, as publicações surgidas nos média entre 2020 e 2024,
referentes ao filme Não Sou Nada – The Nothingness Club, do realizador português
Edgar Pêra. O artigo surge da intenção de identificar que tipo de entidades (órgãos
de comunicação social, instituições, blogues ou sites culturais) deram cobertura ao
filme e a que fontes de informação recorreram para o fazer. Procurámos, em simultâneo,
indagar qual o pretexto para a divulgação e a abordagem seguida na mesma.
Adicionalmente, o presente artigo tem, ainda, os seguintes objetivos: identificar os
principais temas enunciados a propósito de Não Sou Nada; apurar se são focadas
questões identitárias e quais na crítica ao filme; avaliar como é representado
Fernando Pessoa a partir de Não Sou Nada; aferir se há comparações entre The
Nothingness Club e outros filmes do realizador; perceber se as críticas incidem mais
nos comentários sobre a técnica cinematográfica ou na estrutura narrativa do filme.
Além destes objetivos, também queremos questionar a relação entre a obra de arte e
o significado da sua receção junto da esfera pública, tendo como mediação os órgãos
de comunicação social.
Comecemos por identificar os critérios de recolha. A seleção dos dados partiu
de uma pesquisa realizada no Google, entre 2 de novembro e 22 de dezembro de
2023, com as seguintes palavras-chave: Não Sou Nada filme; Não Sou Nada estreia; The
Nothingness Club; Não Sou Nada Edgar Pêra. Para o efeito desta recensão, foram
selecionadas todas as publicações referentes ao filme, provenientes das seguintes
fontes: sites culturais, plataformas especializadas em cinema, sites de festivais de
cinema, agendas culturais, notícias de rádio, TV, programas de entretenimento,
jornais e revistas generalistas, jornais ou outros órgãos locais, blogues. De forma
simultânea, foram solicitados ao realizador (assistentes e equipa de produção) os
seguintes elementos: dossier de imprensa distribuído aos média ou nos festivais de
cinema, dossiers de imprensa dos festivais de cinema ou outros clippings, a existir.
Para além do limite temporal identificado, foram sendo colhidas, de uma forma
avulsa, notícias sobre o filme, tendo a recolha sido concluída em janeiro de 2024. No
final, foram registadas 112 entradas, entre 27 de julho de 2020 e 15 de abril de 2024.
Com esta delimitação temporal, pretendemos abarcar o primeiro momento em que
o filme foi referido nos média (ainda numa fase de pré-rodagem), passando pelo
impacto da estreia, o circuito dos festivais de cinema e, por fim, as sessões especiais
realizadas um pouco por todo o país. É importante referir que foram excluídos desta
amostra os registos que se referiam apenas a uma informação de agenda (cartaz de
cinema ou agenda cultural cumprindo somente essa mesma função, por exemplo).
De acordo com os objetivos enunciados anteriormente, procurámos perceber
que tipo de fontes noticiavam Não Sou Nada, tendo concluído que 40 registos dizem
respeito a órgãos de informação no sentido mais tradicional do termo, como jornais
(Público, Expresso, Observador), rádios (Rádio Vizela, Antena 3), televisões (RTP, SIC,
Santo Tirso TV). Outros (dez registos), referem-se a publicações especializadas, como
a Sight & Sound, Cineuropa, C7nema. Há, paralelamente, menções ao filme em sites
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Não Sou Nada (2023)
institucionais (Município de Santo Tirso) e até mesmo em contexto de divulgação literária, como a página da internet da Bertrand. Quatro publicações destacam o momento
preparatório da rodagem do filme. Entre estas, duas referem-se a notícias de origem
local (site Free Pass [1] e o jornal Vila Nova [2]) e outras duas da imprensa especializada
(Cinema7arte [3] e Portal Cinema [4]), com os dois primeiros casos a darem relevância
à questão geográfica (um filme sobre Fernando Pessoa rodado em Santo Tirso) e os
seguintes enfatizando a adaptação da obra pessoana. O tipo de divulgação selecionada
divide-se entre a informação telegráfica (nome do filme, sinopse, realizador, produtor),
a notícia, entrevista e a crítica.
Do todo recolhido, 13 publicações têm como pretexto o Festival Internacional
de Cinema de Roterdão, na Holanda, onde o filme estreou em janeiro de 2023.
Foram, ainda, identificados mais 12 registos relacionados com festivais de cinema,
entre os quais, Caminhos do Cinema Português, DocLisboa, Cork Film Fest, Festival
de Cinema de Valência, de Moscovo, Mostra Internacional de Cinema de São Paulo
e Festival Internacional de Cinema de Oldemburgo. Há, também, a assinalar 10
entrevistas, a que se juntam 18 críticas e quatro notícias referentes a sessões com o
realizador. O momento da estreia condensou o maior volume de notícias, com 22
publicações.
Um olhar transversal a todos os registos selecionados permite traçar os fluxos
informativos que rodearam o filme, no corte temporal definido. Há uma primeira
fase, relativa à pré-rodagem e rodagem, a que se segue a presença nos Países Baixos,
para logo depois quase toda a atividade noticiosa se concentrar na estreia. O principal
dado a reter destes movimentos relaciona-se com a origem das notícias. Ou seja,
claramente, as oscilações na cobertura mediática refletem estratégias de divulgação,
quer da produtora, quer da distribuidora, anunciando o lançamento de um novo
filme em preparação, fazendo publicidade da presença em Roterdão ou criando um
acontecimento mediático com a estreia.
A estreia – imprensa local e nacional
As notícias relativas à estreia do filme (que foi apresentado a 25 de outubro no
DocLisboa e estreou comercialmente a 26 de outubro), estendem-se aos jornais
nacionais generalistas (Jornal de Notícias, Diário de Notícias, Observador, Público), aos
jornais locais (situados em Santo Tirso, Leiria, Caldas da Rainha, Faro, Funchal),
passando pelas rádios (Antena 3, enquanto rádio promotora do filme), pela televisão
(SIC, RTP) e por sites direcionados para informações de agenda, como itmustbegood,
Time Out ou Unimado. Nestas publicações, são facilmente identificados dois textostipo: um referindo a estreia do filme nas salas de cinema e outro abarcando os
eventos promocionais do mesmo, nomeadamente as sessões com o realizador e o
evento que consistiu na circulação de atores representando múltiplos Fernandos
Pessoa no Chiado (Figs. 1 e 2). A maioria das notícias consiste numa replicação da
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Não Sou Nada (2023)
sinopse e press release divulgados, pelo que são comuns a quase todos os textos
palavras ou frases como “thriller”, “cinenigma”, “cabeça de Pessoa”, “manancial
cinematográfico” para descrever o filme. Também surge, com frequência, uma
citação de Edgar Pêra (em declarações à Agência Lusa), referindo tratar-se do filme
em que mais se projetou, assim como a chamada de atenção para o elenco “de luxo”.
Os títulos destacam a figura de Fernando Pessoa (o facto de haver um novo filme
sobre o escritor), sendo que, assiduamente, Pessoa e Edgar Pêra surgem combinados,
chamando-se para o título a autoria do filme, assim como a sua denominação. Em
sequência, surgem formulações tais como “Cinema sobre Fernando Pessoa” (Jornal
das Caldas [5]), “Não Sou Nada: já estreou o filme português sobre Fernando Pessoa e
os seus heterónimos” (NIT [6]), “Edgar Pêra leva-nos a uma visita guiada ao interior
da mente de Fernando Pessoa” (JN [7]). Também a circulação de inúmeros falsos
Fernandos Pessoa pela Baixa (Figs. 3 e 4) induzindo a ideia de heteronímia ou
heteronimismo, pareceu cativar os média, que assinalam “Fernando Pessoa passeia
pela Baixa de Lisboa no dia de estreia de Não Sou Nada” (Sapo [8]), sendo a mesma
ideia (com o mesmo tipo de alocuções), constante da rubrica cultural Domínio Público
[9], na Antena 3.
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Não Sou Nada (2023)
Figs. 1-4. Múltiplos Fernandos Pessoa na Baixa de Lisboa, out., 2023. Créditos: Ana Soares.
Surgem, igualmente, referências (se bem que menos consistentes e quase
nunca na abertura dos textos noticiosos) ao facto da maioria dos diálogos se apoiar
em textos do próprio Fernando Pessoa. Excecionalmente, a SIC Notícias publicou, a
13 de junho de 2023, uma notícia, onde essa anotação é destacada logo a abrir o texto
[10]. É interessante, além do mais, registar a dimensão local do projeto que, tendo
sido filmado numa antiga fábrica em Vila das Aves (Santo Tirso) chegou a suscitar
a curiosidade da imprensa e levou a uma maior cobertura, não só em termos de
número de notícias, como também na proliferação do tipo de média. Repare-se que
a exibição de Não Sou Nada no Centro Cultural Municipal de Vila das Aves saiu (com
textos muito semelhantes) no jornal Entre Margens [11], no site oficial da Câmara de
Santo Tirso [12] e na Santo Tirso TV [13].
Ressalta, desde logo, um tom monocórdico e repetitivo na maioria das
publicações, resultado de uma reprodução acrítica de comunicados de agências
noticiosas (como a Lusa) ou de uma cópia dos comunicados distribuídos. Contudo,
as principais ideias subjacentes à promoção de Não Sou Nada são, efetivamente,
veiculadas, incluindo os conceitos de thriller, cinenigma, mente de Pessoa e ainda
heteronimismo.
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Não Sou Nada (2023)
Festivais de cinema
Outro subtipo de cobertura que é incontornável destacar no domínio dos média é o
dos festivais de cinema. Neste ponto, há distintos níveis de análise. Um deles advém
da própria divulgação que os festivais realizam dos seus eventos e outro da
disseminação destas notas na imprensa generalista ou especializada. Alguns meses
antes da estreia nas salas comerciais, The Nothingness Club apresentou-se no Festival
Internacional de Cinema de Roterdão, que decorreu entre 25 de janeiro e 4 de
fevereiro de 2023. A presença na mostra (onde o filme integrou a Big Screen Competion)
foi veiculada no Observador [14], no Público [15], Bom Dia Europa [16], Rádio Vizela [17]
e RTP [18], a partir de uma nota da Agência Lusa. O conteúdo das notícias enfatiza a
presença em Roterdão, focando a heteronímia expressa “nos múltiplos universos de
Fernando Pessoa”. Para lá destas notícias, de caráter puramente informativo (à semelhança do já ocorrido com notas da estreia), destacamos a reportagem/crítica do
Público, intitulada “Fernando Pessoa joga matraquilhos com os heterónimos” [14].
Roterdão, de resto, é um evento em relevo neste jornal que, em dezembro de 2022,
antecipava a presença portuguesa na Holanda [19]. A 30 de janeiro de 2023, o Público
(através do jornalista e crítico de cinema Jorge Mourinha) dá conta do filme néo noir,
direcionando o olhar para a personagem de Ofélia, fornecendo detalhes sobre a
narrativa do filme e construindo uma interpretação individual sobre o mesmo, ao
estabelecer ilações entre o escritor Pessoa e o realizador: “E Pêra mergulha de tal modo
a fundo na multiplicidade de Pessoa que o resultado faz jus à célebre frase ‘o poeta
é um fingidor’ – e, no caso, o cineasta é um fingidor” [14]. O impacto da presença em
Roterdão estendeu-se, adicionalmente, à televisão. A 8 de fevereiro de 2023, o realizador
deu uma entrevista ao Jornal 2 [20], na qual apresentou o filme como uma viagem à
mente de Fernando Pessoa.
Tentemos, agora, avaliar de que forma Não Sou Nada foi tratado pela organização do festival e como esta abordagem se repercutiu na imprensa generalista ou
especializada. Descrito, por Callum McLean, como um “um surreal thriller psicológico
para nos perdermos” [21], o filme ecoou na Sight and Sound [22], Cineuropa [23], The
Film Verdict [24] e Filmuforia [25]. O site Cineuropa, por exemplo, dedica uma entrevista
[26] (em análise mais abaixo nesta recensão) e um artigo/crítica [27], que destaca os
“paradoxos”, que impedem a “plenitude”. O jornal Svoboda [28] elege The Nothingness
Club como um dos melhores de Roterdão, assinalando que “o grande escritor português
Fernando Pessoa entra numa relação confusa com os seus heterónimos, figuras
literárias imaginárias morrem tragicamente e uma máquina de escrever parte
espetacularmente um espelho”. Os textos provenientes de um tipo de público /
jornalista especializado (e, ainda para mais, supõe-se, com um maior grau de
distanciamento em relação ao percurso do autor) resultam em interpretações mais
ricas, como acontece com este artigo, que exprime curiosidade sobre as questões
identitárias presentes em Não Sou Nada, bem como sobre a história do poeta
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Não Sou Nada (2023)
português. Já na Sight and Sound [29], por exemplo, é dada relevância a Fernando
Pessoa (apresentando o poeta como um gigante da literatura, com diversos
heterónimos), enquanto sublinha a “adaptação noir luminosa” de Edgar Pêra.
Estreado em Roterdão, Não Sou Nada passou, ainda, pelo Doc Lisboa e pelos
Caminhos do Cinema Português, em Coimbra. No caso do Doc Lisboa, o realizador
voltou a concorrer na secção Riscos, o mesmo tendo ocorrido em 2021, com Kinorama
(2019). No site do evento, Não Sou Nada é apresentado reproduzindo ideias e frases
da sinopse: “Um ‘cinenigma’ de Edgar Pêra, protagonizado pelo mais complexo
‘artista de palavras’ do seu tempo, Fernando Pessoa” [30]. A passagem pelo festival
suscitou uma crítica do blogue de cinema Cineblog [31] (cujos comentários reproduzimos mais à frente neste artigo), um destaque na já referida rubrica cultural Domínio
Público [9] e a presença do realizador (junto com a atriz Victória Guerra e o diretor
do Doc Lisboa, Miguel Ribeiro) no programa de entretenimento Alô Portugal [32], da
SIC. Também presente no festival Caminhos do Cinema Português, em Coimbra, Não
Sou Nada teve dois momentos de divulgação, da parte da organização. Um primeiro,
assinalando a apresentação do filme, com a presença do realizador [33]. Numa
segunda vez, o festival anuncia (e os média acompanham a novidade) que o filme
ganhou o Prémio do Público e de melhor direção artística, atribuída a Ricardo Preto.
A notícia foi publicada pelo jornal Notícias de Coimbra [34], pelo Observador [35],
Filmspot [36] e Público/Lusa [37].
Entrevistas
Tendo-se desdobrado em declarações e sessões de apresentação cujos conteúdos
foram parcialmente integrados nas notícias dos jornais, Edgar Pêra também realizou,
durante este período, diversas entrevistas. Ao contrário da informação noticiosa
pura e dura, verifica-se que a entrevista acabou por funcionar como um espaço de
contextualização não só do filme (as suas intenções e processo de produção), como
também da obra do realizador. É o que acontece, por exemplo, com a entrevista ao
site Cineuropa [25], na qual Edgar Pêra tem terreno para falar sobre o processo criativo
do Não Sou Nada, alargando-se a conversa à experiência fílmica antecedente,
nomeadamente, com o 3D. As entrevistas permitem, além disso, ir de encontro ao
potencial público leitor, convergindo nos seus interesses e necessidades informacionais.
Veja-se que, se no Cineuropa o enfoque está no meio cinema, já no Jornal das Letras
[38], que publicou uma entrevista na edição de 18 a 31 de outubro de 2023, Pessoa (a
sua dimensão literária) está no centro da entrevista. Tanto numa publicação como
noutra, as entrevistas beneficiam do facto de serem realizadas por jornalistas que
demonstram conhecer a obra de Edgar Pêra, conduzindo a conversa num sentido
mais lato e de enquadramento da informação produzida. É o que sucede com a
nomeação do filme A Janela (Maryalva Mix) (2001), que é introduzido por Edgar Pêra
nas entrevistas do JL, do blogue Esquerda.net [39], do Jornal de Notícias [40], nalgumas
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notícias de jornais e ainda no podcast Os Cinéfilos que Ninguém Pediu [41]. Neste
último em particular, que juntou a entrevista à crítica ao filme, o realizador teve
oportunidade para falar sobre outros projetos em curso (como o filme Cartas
Telepáticas), enquanto os entrevistadores (João Torgal e Daniel Mota), estabeleceram
comentários comparativos com outros trabalhos de Edgar Pêra, nomeadamente o
documentário biográfico Movimentos Perpétuos (2006), que consistiu num tributo a
Carlos Paredes. Neste âmbito das entrevistas, talvez aquela em que Edgar Pêra teve
mais margem para se desviar do habitual modelo de perguntas, foi a realizada ao
Diário de Notícias [42], a propósito do Screenings Funchal, onde o autor é presença
habitual. O maior interesse desta entrevista prende-se com a alusão direta à questão
da identidade, tendo partido da jornalista a iniciativa de remeter para o filme A Janela
(Mayalva Mix) – que também passou pelo Screenings – a propósito da fragmentação
do eu. A referência deu mais abertura ao entrevistado para se referir explicitamente
à identidade, como uma busca centrada na multiplicidade do eu.
Pode-se concluir, deste modo, que a atenção dada a um fenómeno (particularmente, um filme sobre Fernando Pessoa) através da entrevista, provoca efeitos
colaterais no discurso mediático do realizador, que dispõe do espaço concedido para
se expressar, bem como à sua obra.
As críticas ao filme
Consideramos críticas ao filme as publicações explicitamente designadas como tal e
os textos aprofundados, distintos das notícias no tamanho e na abordagem, mais
subjetiva. Identificámos, no âmbito das críticas, uma maior preocupação em tipificar
Não Sou Nada, inscrevendo-o no género noir ou neo-noir. Por norma, a crítica de
cinema ocupa-se não apenas do efeito dos filmes sobre o espectador, mas também
sobre a técnica que lhe está implícita. Por isso, não surpreende que, muitos dos
comentários se dirijam a esses aspetos, questionando a estética do cinema de Edgar
Pêra. Deste modo, o Jornal Referência [43] destaca a “paleta de cores vibrantes”,
enquanto o Cineblog [29], do Instituto de Filosofia da Universidade Nova, regista
“um cinema criador de dimensões imaginárias a partir de dimensões técnicas”. Mas,
para além dos aspetos formais do filme, a relação (quase tête-à-tête) entre Fernando
Pessoa e Edgar Pêra é o principal tema esmiuçado pela crítica. Francisco Ferreira, no
Expresso [44], assinala que “a ideia que se quer sublinhar é a de que há, se calhar
sempre houve, uma coerência entre escritor e cineasta, ‘Não Sou Nada’... tem sobre
este aspeto várias cartas a pôr na mesa.”. No mesmo sentido, João Lopes (DN [45])
refere: “São encarnações vivas das palavras que foram escritas, ao mesmo tempo que
circulam como fantasmas de uma narrativa que o poeta lançou e o cineasta
transfigurou”. Manuel Halpern, na Visão [46], vai um pouco mais longe na analogia,
descrevendo o filme como um caminho para chegar à cabeça de Fernando Pessoa,
mas também de Pêra. “O objetivo inalcançável do filme é mesmo transportar-nos
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para o interior da cabeça de Fernando Pessoa e encontrar uma multidão de heterónimos. Mas sabemos à partida que, quando muito, seremos transportados para a
cabeça do próprio realizador”, conclui.
Outras leituras são, efetivamente, curiosas na forma como fazem coincidir um
olhar externo com o percurso do realizador. Elisa Andrade Buzzo, no Digestivo
Cultural [47] afirma que “bem ou mal, lembro do Fernando Pessoa em cenário
encarnado de Almada Negreiros”. Não denunciando se esta foi uma observação
condicionada pelo conhecimento prévio da obra de Edgar Pêra, certo é que a autora
fixou na crítica publicada uma similitude coincidente com os interesses intelectuais
do realizador. É preciso não esquecer que Pêra é autor de SWK4 (1993), um documentário sobre Almada Negreiros, algo, aliás, que é recordado por Francisco Ferreira, na
crítica já citada no Expresso [48]. Analisando as críticas publicadas, descobrem-se
outras afinidades. Catarina Gerardo descreve a “embriaguez alucinogénia” (Cineblog
[49]). Em contrapartida, Jorge Mourinha, enuncia “o sistema de filtros psicotrópicos
de Pêra” [50]. Ambos os textos encaminham The Nothingness Club para o domínio do
filme que toma conta da mente do espectador, como se de uma droga de tratasse.
“Psicadélico” e “psicotrópico” foram adjetivos também usados pela dupla Torgal /
Mota [39]. O que emenda, de certo modo, com o tópico da loucura que Eurico de
Barros (Time Out [51]) considera excessivo, no filme: “Pêra dá demasiado tempo de
antena ao tema da loucura associada a Pessoa, com sequências a mais, e muito
prolongadas, no hospício”. Por sua vez, Sebastião Maia (Jornal Referência [52]) entende
que o filme “catapulta o espectador para a loucura da mente de um homem”.
Uma leitura da colisão
Identificámos, na leitura do material selecionado, cinco questões principais: o filme
como uma incursão na mente de Fernando Pessoa; a relação, indiciada através de
Não Sou Nada, entre Pessoa e Pêra; o efeito psicadélico do filme; o tema da loucura; o
modo como o cinema é perspetivado a partir de Não Sou Nada.
Cabe, no âmbito desta recensão e antes mesmo de avaliarmos teoricamente as
sugestões deixadas por esta recolha, inserir uma constatação. Refiro-me a uma
espécie de fenómeno de inbreeding encontrado em parte das publicações selecionadas.
Esta clonagem pode verificar-se por via do conteúdo (veja-se a crítica de João Lopes
no DN [43], que foi também publicada no blogue Sound Vision [47]) ou da autoria.
Voltando a João Lopes, além da crítica, o jornalista assina uma entrevista a Edgar
Pêra, no DN [48]. Da mesma forma, Rodrigo Fonseca publica duas entrevistas ao
realizador, uma no Correio da Manhã [49] e outro no site C7nema [50]. Já Eurico de
Barros assina três críticas, uma no Observador [51]e outra na Time Out [46] e O Jornal
Económico [52]. Quanto a Paulo Portugal, escreve uma crítica para o site Insider Film
[51] e faz uma entrevista (já referida) para o blogue Esquerda.net [37]. Por fim, Manuel
Halpern publica a já nomeada entrevista no Jornal de Letras [36] e assina uma crítica
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Não Sou Nada (2023)
na Visão [53]. A menção fica registada neste artigo, como um valor referencial, que
nos faz lembrar que as publicações dos média não são só condicionadas por critérios
editoriais. Quando se analisa, como é o caso, um universo temporal e temático, é
possível detetar que dimensões como o contexto restrito dos profissionais do jornalismo no país, ainda mais numa crítica a uma forma artística específica como é o
cinema, redunda, por vezes, num falso fenómeno de pulverização da receção.
Tratando-se esta de uma recolha sobre a receção ao filme Não Sou Nada nos
média e derivados, privilegiámos uma abordagem que assenta na construção do
valor social do mesmo. Significando isto que tencionámos inscrever Não Sou Nada
como um espaço de (re)simbolização, colisão e disputa. Sendo um produto que
resulta de um investimento financeiro considerável – o projeto foi aprovado pelo
Instituto de Cinema e Audiovisual em 2014, com uma verba de 30.000 euros (ICA,
2014) –, quer na fase de produção e realização quer no momento da distribuição, será
interessante pensar no filme como uma brecha, criada porque todas as condições de
possibilidade se juntaram para a concretização do conceito de “affordance”. Uma
convergência, em suma, de “modos de ser e de fazer” (DENORA, 2003: 170), em que
a experiência individual e social se encontram. Não está aqui tanto em causa o valor
intrínseco de uma obra, mas antes o valor social que esta conquista.
Deste modo, colocámo-nos no terreno da Sociologia da Arte, no entendimento
de que dela fazem GUERRA e FIGUEIREDO (2023). Isto é, não procuramos na obra de
arte o seu valor dado e exclusivamente o seu consequente reconhecimento social,
mas antes os processos identitários, simbólicos e de ressignificação que esta instiga.
Estamos a falar, pois, de embate e não tanto de consenso. Neste sentido, as obras
(como os média) são fontes de mediação, através dos quais estes processos de
disputa (de comunicação) se jogam, revitalizando a comunidade e forçando a
existência de fissuras grupais.
Em outubro de 2023, a Mostra de Valência dedicou uma retrospetiva à obra
de Edgar Pêra [54]. Para lá do ciclo que caracteriza eventos deste género (uma
amplificação de um trajeto no momento preciso em que o festival decorreu, para se
desvanecer nos meses subsequentes), será talvez proveitoso realizar um exercício de
análise posterior, já distante do clímax que estas iniciativas sempre suscitam. Num
texto retrospetivo publicado na revista Caiman [55], Fran Benavente y Glòria Salvadó
Corretger sinalizam o cinema de Edgar Pêra como underground. Colada com a
contracultura, a arte de Pêra constituirá “outro modo de pensar, entender, perceber
e sentir a realidade”. Não Sou Nada foi, inevitavelmente, motivo de análise neste
texto, que (à semelhança de outras críticas aqui referidas) estende o imaginário
pessoano a um sentir pereano. Um modo de ver e fazer que será ensaístico na criação
artística. Seguindo nesta ordem de ideias, tudo se encaminha para confirmar a tese
da obra como colisão, dado que, no entender dos autores, Pêra se mantém como um
criador contra-corrente, ao mesmo que (acrescentamos nós) apresenta comercialmente
um filme cuja divulgação aposta no alargamento de públicos. Mas antes de
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Não Sou Nada (2023)
assentirmos apressadamente numa conclusão tão óbvia, ponhamos outras premissas
em cima da mesa. Não Sou Nada será, no conjunto do percurso de Edgar Pêra, um
filme mais alinhado e, por isso, mais propício ao reconhecimento social? Ou, pelo
contrário, a crítica estaria mais recetiva a um filme com estas características?
A reflexão anterior leva-nos a introduzir as estatísticas oficiais de receção de
Não Sou Nada, esclarecendo outro dos objetivos apresentados. Reportamo-nos aos
dados divulgados pelo Instituto do Cinema e do Audiovisual (ICA), registando que,
até ao final de dezembro de 2023, Não Sou Nada foi exibido em 38 salas (ICA, 2023a).
As estatísticas publicadas pelo ICA demonstram que o filme percorreu diversas zonas
geográficas, incluindo Setúbal, Penafiel, Viseu, Montemor-O-Novo, Seia, Oliveira do
Bairro ou Coimbra, tendo ocorrido (pela informação colhida nos média) nove
sessões especiais de apresentação com o realizador, que foram desde o Porto, a Santo
Tirso, ao Algarve, passando pelo Funchal. Em 2023, The Nothingness Club foi visto
por 7.254 espectadores, que se dividiram por 435 sessões (ICA, 2023a). Comparativamente a outros filmes do realizador, excetuando o êxito comercial Virados do Avesso
(2014) – que chegou aos 106.736 espectadores –, esta foi, até agora, a obra mais vista
de Edgar Pêra. Uma nota adicional para os dados de A Janela (Maryalva Mix),
reveladores de algumas incongruências, já que os números disponibilizados no ICA
(2023a), referem uma exibição, com 40 espectadores, enquanto que CAMPOS (2022),
baseado na mesma fonte, indica 9900 espectadores, sem referir número de exibições
ou explicitamente remeter para a origem dos dados. Sublinhe-se que, no universo
da produção nacional, The Nothingness Club ocupa o oitavo lugar do ranking 2023
(ICA, 2023b). Nestes dados, não entram os números dos festivais internacionais de
cinema, dos cineclubes, nem as exibições posteriores a 2023.
Interligando o impacto mediático de Não Sou Nada com os números da receção
disponíveis até ao momento, facilmente depreendemos que estamos, sem dúvida,
perante uma confluência de fatores: investimento financeiro, investimento criativo e
pessoal (a presença de Pessoa em Pêra radica nos anos de formação entre o fim da
adolescência e o início da idade adulta), investimento de marketing e divulgação e
receção positiva na esfera pública.
Conclusão
Propusemo-nos, neste artigo, analisar o impacto mediático do filme Não Sou Nada,
num limite temporal que antecedeu as rodagens (2020) e se estendeu até janeiro de
2024. Neste trabalho, desviamo-nos da tentação de julgar The Nothingness Club em si
mesmo, enquanto objeto estético, para nos centrarmos nas representações mediáticas
do mesmo. Nesse sentido, concluímos que, genericamente, as notícias repetem as
temáticas relativas ao género (thriller, neo-noir), à biografia (cabeça de Pessoa), ao
cinenigma (enigma na forma de filme) e à personalidade (heteronimismo e multiplicidade do ser).
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Não Sou Nada (2023)
A análise foi surpreendida por alguns aspetos, que é relevante indicar. Desde
logo, a reprodução inquestionada de textos inteiros (via agência noticiosa ou comunicados de imprensa), disfarçada, a mais das vezes, por elos estilísticos cuja finalidade
será fugir da estrita informação noticiosa, tentando uma via mais apelativa e expressiva
de um certo sentido crítico. De resto, não só identificámos, em quase todas as notícias
da estreia, uma cópia zelosa de comunicados de imprensa, como, em alguns casos,
foi disseminada (e repetidamente reafirmada) a informação errónea de que Paulo
Furtado (Legendary Tyger Man, Oswald Kent no filme) seria o autor da banda
sonora, que, na realidade, coube a Jorge Prendas e Artur Cyaneto, com montagem
de som e misturas de Pedro Góis. Para além disto, a já citada endogamia da crítica
de cinema no país foi outro dos pontos que se manifestou na análise.
Tanto uma como outra evidência levou-nos a refletir sobre a importância dos
média como uma voz dialogante, não necessariamente consonante. Num cenário
pouco curioso acerca do que, na comunidade, se faz e de como se faz, que território
resta para a diversidade e a rutura? E o que é que estes contextos deixam transparecer sobre a possibilidade de atualização cíclica das comunidades imaginadas de
ANDERSON ([1983] 2016), bem como sobre a emergência de contra-culturas? Será a
cobertura mediática dispensável a essas correntes marginais? Ou apenas o que
aparece mediaticamente existe? Que papel jogam os agentes culturais na formação
de públicos e qual a dimensão dos média (excluindo redes sociais, que não foram
aqui levadas em conta) na cadeia de promoção, divulgação e criação de um fenómeno?
Se é de disputa que estamos a falar (e não de hábito, legitimação ou reconhecimento),
é expectável que este embate se processe por aglutinação ou por auto-exclusão? As
perguntas surgem em catadupa, estimuladas pelos dados recolhidos e a análise
realizada. Mesmo que sobre elas não repousem teorias suficientemente esclarecedoras
ou respostas de sentido único, será bom que não fujam da linha do nosso horizonte
teórico e observacional. A este propósito, valerá a pena remeter para a argumentação
de Américo Santos, da Nitrato Filmes e Cinema Trindade (Porto). Em declarações ao
Público, este agente cultural lembra que o investimento na programação atual terá
efeitos, previsivelmente, no futuro já que, se de momento o público é ainda muito
conservador, a insistência num modelo de programação poderá ter resultados a
longo prazo: “Daqui a dez anos, os distribuidores poderão apostar em filmes
arriscados” [55]. O promotor valoriza a dimensão social do cinema (da cultura, em
sentido lato), que é, justamente, o que há a relevar na troca dialogante entre média,
consumidores, artistas e outros agentes culturais. “Vejo, o que há muito não via,
pessoas a falarem sobre os filmes no átrio do cinema com velhos amigos que reencontraram”, assinala Américo Santos. [56]
Dando continuidade à análise, nomeadamente, na identificação de conceitos
para qualificar Não Sou Nada, vimos que os mesmos ressoam à ideia principal
transmitida pelas estratégias de divulgação do filme ou surgem de tentativas de
categorizar, quer do produto final, quer do seu autor. A sinalização destes tópicos
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encaminha-nos no sentido das representações identitárias que lhes estão subjacentes,
uma vez que: o género (sobretudo as apreciações ao neo-noir, que constam tanto da
crítica nacional como internacional) tem a função de tentar encaixar o realizador
numa classificação estética; a explicação do que Pessoa terá sido (por via do filme,
incluindo a loucura, a mente tortuosa e torturada, a imaginação delirante) surge, na
maioria das vezes, como um canal para também perceber a mente de Edgar Pêra; o
cinema é encarado, na avaliação crítica ao filme, como uma personagem implícita e
simultânea à poesia e à prosa pessoanas e, por fim, os desvios de personalidade
atribuídos a Fernando Pessoa fazem ricochete para o espectador (crítico) suscitando
uma reflexão sobre o heteronimismo, que dificilmente caberia fora do contexto de
uma obra de arte. Um pouco surpreendentemente, as críticas ao filme parecem fazer
tábua rasa de possíveis pré-definições acerca de Fernando Pessoa, para embarcar na
aventura heteronímica proposta em Não Sou Nada. Será isto suficiente para
transmutar os pré-conceitos acerca da obra pessoana? Será, sequer, aceitável pedirse a uma obra que tenha esta função pedagógica? A recolha realizada permite
concluir que a interpretação de Fernando Pessoa por Edgar Pêra se sobrepõe a
qualquer tipo de generalização acerca da vida e obra do poeta, pelo que esta perspetiva quase não é questionada ou sujeita a validação. Jorge Mourinha, no Público,
comenta que o filme é “profundamente respeitador da obra pessoana, mesmo
quando a trai abertamente” [15]. Quisemos, igualmente, indagar se há comparações
entre Não Sou Nada e outros filmes do realizador. A resposta é afirmativa e surge por
diferentes vias. Por vezes, as experiências fílmicas passadas são explicitamente
referidas pelos críticos ou jornalistas, noutras situações, estas relações são introduzidas pelo próprio autor. Finalmente, considerámos relevante compreender se as
críticas se dirigem mais à técnica ou preferencialmente à narrativa, sendo que não
há uma resposta exclusiva para esta demanda. Se é certo que há atributos técnicos
(como a luz, a cor, a banda sonora) que são focados, genericamente, nos textos
analisados, também é verdade que a narrativa (isto é, o enquadramento da ficção,
desde a existência de um clube em forma de editora, até ao hospício e o papel de
elementos narrativos mais fortes, como a figura de Ofélia e Álvaro de Campos)
contrabalança com esta apreciação técnica. O que é sintomático é a forma como Não
Sou Nada é dissecado como um todo, que abriga a complexidade de um poeta, se
pressupõe como um espelho do seu autor e se embrulha numa peculiar estética
imbuída de minucioso trabalho técnico.
Não dispondo, de momento, de dados que permitam compreender o efeito
de longo prazo de Não Sou Nada na esfera pública (só pela futurologia podemos
conjeturar o que irá acontecer a este objeto artístico), podemos, isso sim, refletir sobre
a ação do artista (e da obra) como um produto coletivo que, por vezes, rompe na
comunidade, criando (pelo diálogo que estimula) novos processos simbólicos. Em
abril, Não Sou Nada teve 15 nomeações para os Prémios Sophia 2024, da Academia
Portuguesa de Cinema (“Nomeados Prémios Sophia 2024”, s.d.). O anúncio colocou
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o filme na liderança das nomeações, reforçando a ideia de completude da obra, já
que estas abarcam as distintas peças que o constituem: melhor realização, melhor
argumento original, melhor montagem ou melhor direção de arte, melhor banda
sonora, entre outras. As nomeações, independentemente do resultado, sinalizam Não
Sou Nada como um produto que, diferentemente de outros filmes do autor, conquista
um espaço nos meios mais institucionalizados. Não sabemos, por enquanto, o que isso
significa no jogo das forças de poder que caracterizam a sociedade e a indústria
cultural. Nem é intenção deste artigo apurar se se trata de maior adequação ou
mainstream ou, inversamente, uma absorção deste pelos produtos ‘alternativos’.
No sistema sócio-cultural descrito, os média prestam-se a serem uma voz a
mais, uma voz com um lugar de fala privilegiado, sem dúvida. Em vez de tentarmos
supor o poder que se julga que têm, talvez seja interessante encará-los como um
interlocutor, entre outros na sociedade, que ajuda a construir novas realidades e não
apenas a representá-las. Seguindo esta ordem de ideias, outros agentes poderiam ser
considerados na avaliação da receção de Não Sou Nada. Por exemplo, os comentários
do público que participou nas sessões com o realizador, nas apresentações nos
festivais de cinema ou nas sessões direcionadas para o público escolar. Em resumo,
podemos concluir que a consistência do trabalho de divulgação materializa-se,
fundamentalmente, no impacto mediático deste filme, embora outros estudos
comparativos (e uma maior distância temporal) sejam necessários para extrapolar
no sentido de perceber que lugar este ocupa no universo cinematográfico nacional e
na carreira artística de Edgar Pêra.
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FONSECA, Rodrigo (2023, outubro, 25). “Precisamos de ideias ‘out of the box-office’ em
Portugal”, diz Edgar Pêra. C7nema. hfps://c7nema.net/entrevistas/item/123332-precisamosde-ideias-out-of-the-box-office-portugal-diz-edgar-pera.html
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BARROS, Eurico de (2023, outubro, 29). “Fernando em Pessoas”. O Jornal Económico.
hfps://jornaleconomico.sapo.pt/noticias/fernando-em-pessoas/
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hfps://insider.pt/2023/10/27/the-nothingness-club-nao-sou-nada/
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BENAVENTE, Fran; SALVADÓ CORRETGER, Glória (2023). “Edgar Pêra, Kino Sapiens”. Caiman, n.º
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CÂMARA, Vasco (2024, fevereiro, 5). “Cinema Trindade: no caminho do novo público da
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[49]
[50]
[51]
[52]
[53]
[54]
[55]
[56]
Filmografia de Edgar Pêra
(2023).
(2019).
(2014).
(2006).
Não Sou Nada. Bando À Parte. hfps://www.youtube.com/watch?v=__LuO4umRiQ
Kinorama. Bando À Parte. hfps://www.youtube.com/watch?v=KFVUYnxI5SY
Virados do Avesso. Cinemate. hfps://www.youtube.com/watch?v=g0eySTgwa8U
Movimentos Perpétuos – Cine-Tributo a Carlos Paredes.
hfps://www.youtube.com/watch?v=MdZoizp2sSI
(2001). A Janela (Maryalva Mix). Paulo Branco. hfps://www.youtube.com/watch?v=w8W0XIdMo40
(1993). SWK4. Companhia dos Filmes do Príncipe Real.
https://www.youtube.com/watch?v=1JH1BFVHOu8
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
95
Lima
Não Sou Nada (2023)
TERESA LIMA integra o grupo de investigadores doutorandos do CECS/UMinho, estando a
realizar o Doutoramento em Ciências da Comunicação. Com uma Licenciatura em
Comunicação Social pela Universidade do Minho, fez uma incursão pelo jornalismo (Público)
e obteve o Diploma em Estudos Avançados em História Contemporânea, na Universidade
de Santiago de Compostela. Profissionalmente, tem exercido atividade nas Ciências da
Informação. Atualmente, estuda a relação entre biografia, discurso e comunicação, partindo
da história de vida do realizador Edgar Pêra. Integra, igualmente, o grupo de investigadores
da Passeio – Plataforma de Arte e Cultura Urbana (www.passeio.pt), do Centro de Estudos
de Comunicação e Sociedade (CECS), da UMinho.
TERESA LIMA is a member of the group of doctoral researchers at CECS/UMinho, currently
studying for her PhD in Communication Sciences. She has a degree in Social Communication
from the University of Minho, a career in journalism (Público) and a Diploma in Advanced
Studies in Contemporary History from the University of Santiago de Compostela. Professionally,
she has worked in the Information Sciences. She is currently studying the relationship between
biography, discourse, and communication, based on the life story of film director Edgar Pêra.
She is also a member of the Passeio – Plataforma de Arte e Cultura Urbana (www.passeio.pt)
group of researchers at UMinho’s Centre for Communication and Society Studies (CECS).
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
96
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Ministro
Imaginar, especular, subverter
O aparelho faz tudo isto automaticamente.
Tudo que o imaginador precisa fazer é imaginar
as imagens e obrigar o aparelho a produzi-las.
Vilém Flusser, O Universo das Imagens Técnicas
Como imagina a máquina? Como podemos imaginar com ela?
É sabido que Edgar Pêra, “Homem-Kâmara”, tem respondido a estas perguntas pela
prática com uma máquina muito concreta: a câmara. Na sua produção cinematográfica,
prolífica e diversificada, essa máquina tem-se ligado com frequência a outras máquinas,
assim como a vários meios, suportes, ferramentas e técnicas, de que é exemplo mais
visível a sua exploração do formato estereoscópico. Como o próprio tem afirmado
em entrevistas e noutros testemunhos, há no seu cinema um interesse por todo o
tipo de ferramentas e formatos que possam ser usados para a criação de imagens
que estimulem a perceção dos espectadores. No formato estereoscópico, por exemplo,
Pêra tem mexido com o córtex do espectador através da sua retina, mas tem também
deixado muito espaço para a imaginação. Em boa verdade, o segundo decorre de
facto do primeiro. De resto, podemos aplicar tudo isto também às mais recentes
criações de imagens com recurso a inteligência artificial que, sob o título Variety, se
publicam pela primeira vez neste número da Pessoa Plural—A Journal of Fernando
Pessoa Studies.
Pessoa é um excelente exemplo de escritor que merece ser pensado hoje na
ligação com a inteligência artificial (ILIEVSKA, 2023; GIMÉNEZ, 2023). É-o, desde logo,
pelas ligações que podemos ver com a heteronímia (ou heteronimismo, como ele
escreveu), a fragmentariedade do pensamento, a multiplicação de vozes e pontos de
vista, o fingimento, a simulação, a dissimulação, e poderíamos continuar. Por exemplo,
poderíamos falar da multiplicidade de personas em Pessoa num paralelo com a
capacidade da inteligência artificial de simular diferentes estilos ou “identidades”
ao gerar textos, imagens e vídeos. Estes sistemas não sabem semântica, não conseguem
ver, nem são sencientes – mas conseguem fingir.
Na base da inspiração de Pêra em Variety está uma fulminante citação-recorte
de Pessoa, que escreve em Erostratus: “Variety is the only excuse for abundance. No
man should leave twenty different books unless he can write like twenty different
men. [...] If he can write like twenty men, he is twenty different men” (PESSOA, 1967:
208-209; cf. 258, em tradução). Partindo também eu deste mote para alguns
comentários a Variety, de Pêra, quero desde logo perguntar: quantos Pessoas há na
inteligência artificial?
Além do meu prazer pessoal em poder ver em primeira mão algumas dessas
criações – que ilustram o presente ensaio – parece-me particularmente feliz o timing
que me é dado para escrever algumas linhas sobre os trabalhos que Pêra tem em
curso depois de The Nothingness Club – Eu Não Sou Nada (2023) e ainda antes de Cartas
Telepáticas (em preparação, mas do qual se conhece um “projecto de livro-filme”;
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
98
Ministro
Imaginar, especular, subverter
PÊRA, 2022). Ora, se o primeiro é um “cinenigma” que imagina como seria juntar
todos os heterónimos pessoanos num clube / editora como assalariados do ortónimo,
já o segundo é um livro-filme assente num conjunto de cartas imaginárias entre Pessoa
e Howard Philips Lovecraft. Entre o enigma e as cartas, há também muito espaço para
outras formas de gerar o mistério e usar a imaginação.
Figs. 1-8. Variety, de Edgar Pêra.
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
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Ministro
Imaginar, especular, subverter
A este respeito, uma das motivações de Pêra para criar o livro-filme Cartas
Telepáticas, igualmente com recurso a inteligência artificial, reside no facto de tanto
Pessoa como Lovecraft explorarem o mundo dos sonhos, das visões, da psique, isto
é, do mundo dentro do pensamento – ou mesmo do mundo dentro do pensamento
do mundo. Por isso, Pêra questiona: “O que seria do pensamento de Pessoa e Lovecraft
se tivessem trocado essa correspondência imaginária?” (PÊRA, 2022: 447). Aguardemos
pela estreia de Cartas Telepáticas, seguros de que a resposta a esta pergunta virá
sobretudo da imaginação dos espectadores.
Tal como as cartas, as imagens que, por agora, Edgar Pêra nos apresenta em
Variety são imagens impossíveis (cf. Figs. 1-8). Num certo sentido, lembram o que
nos disse Abraham Moles acerca das imagens geradas por computador muito antes
do advento da inteligência artificial ou, pelo menos, antes da sua emergência como
hoje a conhecemos. Segundo Moles, a imagem computada resulta, na sua génese, de
uma interrupção fundamental na cadeia que liga o objeto ao referente. Assim, a imagem
sintética produzida pelo computador “sugere um escândalo ontológico, pois ela é
susceptível de pré-existir ao objecto que representa” (MOLES, 1990: 144).
Em que ponto estamos, porém, com as formas emergentes de produção de
imagens computacionais por via de sistemas de inteligência artificial? Em rigor,
estas imagens são mais o resultado de uma gigante acumulação de bancos de
imagens e seu processamento computacional do que propriamente a criação de algo
inteiramente novo ou previamente inexistente em termos absolutos. Por exemplo,
Pessoa existiu, nada há mais empírico que isso, e um prompt explícito o suficiente
pode ativar a procura nos datasets do modelo por retratos seus que sirvam de base à
nova imagem. O que isto quer dizer é que, como se diz, foi “treinado” com imagens
de Pessoa mesmo que não abundem os seus registos fotográficos. Por outras palavras,
há, também sob esse ponto de vista, algo de “escandaloso” na multiplicação das
imagens que Edgar Pêra nos apresenta.
Embora possa parecer vir a despropósito, vale a pena fazer um ligeiro desvio
para algumas palavras sobre o conceito de “cine-koncerto”, criado e praticado por
Pêra desde os anos 1990. Este é um formato de cinema improvisado em palco no qual
a captação e manipulação ao vivo se (re)mistura com filme de arquivo. Não é por
norma uma prática individual, resultando antes de colaborações que incluem música
e outras linguagens produzidas no próprio momento e que, nesse sentido, também
integram os espectadores como participantes. Por tudo isto, um “cine-koncerto” é
irrepetível, como qualquer performance experimental. Neste caso, o que é interessante
e justifica estes parênteses, é que o “cine-koncerto” assenta em processos que podemos
aproximar de algum modo à geração de imagem ou texto com recurso a inteligência
artificial: multiplicação, improvisação, jogo permutativo, recombinação, remistura,
aleatoriedade; de onde decorre que tudo nesses processos e nos objetos resultantes
é marcado mais pela variação do que pela repetição.
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
100
Ministro
Imaginar, especular, subverter
A inteligência artificial na sua configuração atual apresenta-se como uma
novidade com enorme impacto sobre várias esferas da produção cultural. Embora
seja de facto uma novidade a vários níveis, a verdade é que ela é também o resultado
de um longo percurso técnico, social e discursivo que vem pelo menos desde a
primeira vaga da cibernética dos anos 1940. Mesmo com a cautela que um olhar
retrospetivo nos exige que não treslamos esta história de forma simplista, não é
despiciendo lembrar o subtítulo de um texto fundacional da cibernética de Norbert
Wiener, dedicado ao “estudo científico do controlo e comunicação no animal e na
máquina” (1948).
A formalização da linguagem como modo de controlo da comunicação está
na base do projeto da cibernética tal como está nas suas atualizações sucessivas nas
diversas vagas da inteligência artificial. Um workshop realizado no Dartmouth
College em 1956 é hoje considerado por muitos como o evento fundacional no campo
da inteligência artificial. Contribui para isso o facto de ter sido nessa ocasião que o
organizador do evento, John McCarthy, criou o termo e correspondente orientação
conceptual para o desenvolvimento do campo. Os principais objetivos do grupo, que
também incluía por exemplo Claude Shannon, são descritos na proposta do workshop
nos seguintes termos: “An attempt will be made to find how to make machines use
language, form abstractions and concepts, solve kinds of problems now reserved for
humans, and improve themselves.” (MCCARTHY et al., 1955: 2). Inicialmente previa-se
que estas atividades ocupassem dez indivíduos durante dois meses no verão de
1956. Dado o objetivo exigente, como comenta Hannes Bajohr com humor, quase 70
anos volvidos, os progressos não foram assim tantos: “even today Dartmouth’s goal
has not been achieved – for all their successes, GPT-4 et al. do not operate on a
human level. Such fantasies are part of the hype around AI, which ultimately serves
the companies that develop it.” (BAJOHR, 2023: par. 4).
Por maior que seja a sua novidade e impacto na década de 2020, a inteligência
artificial, como sempre acontece com todas as tecnologias e ferramentas, tem uma
história que não responde apenas a desenvolvimentos de natureza estritamente
técnica. Neste caso, como sublinha Matteo PASQUINELLI (2023), olhar em perspetiva
para a história social da inteligência artificial implica compreender como os
algoritmos (computacionais ou não) sempre imitaram, através das suas formalizações
técnicas específicas, as relações sociais e do trabalho. Segundo Pasquinelli, isto torna-se
particularmente patente se tivermos em conta os contributos de Charles Babbage
para a invenção da computação informática, que justamente propunha automatizar
e disciplinar o trabalho nas plantações industriais do século XIX. A este respeito,
Meredith Whittaker lembra também as teorias económicas de Adam Smith sobre a
divisão do trabalho para afirmar que “Babbage didn’t invent the theories that shaped
his engines, nor did Smith. They were prefigured on the plantation, developed first as
technologies to control enslaved people.” (WHITTAKER, 2023: par. 2).
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
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Ministro
Imaginar, especular, subverter
Mas como imagina a máquina? E como podemos imaginar com ela?
/imagine
Fig. 9. Variety, de Edgar Pêra.
/describe
1. many faces of a man in glasses and hats, in the
style of film noir-inspired, 8k resolution, colorized,
escher-inspired, mamiya 7 ii, surrealistic poses,
photo-realistic techniques --ar 128:71
2. six hats and glasses the eyes of the human face,
in the style of hugh kretschmer, film noir-esque,
manjit bawa, colorized, pensive poses, 8k
resolution, dod procter --ar 128:71
3. a man wears a hat and other various glasses, in
the style of dark and dramatic chiaroscuro
portraits, 8k resolution, sliman mansour, photo
montage, orderly symmetry, sacha goldberger,
group f/64 --ar 128:71
4. a collage of multiple portraits with one man in a
wide brimmed hat, in the style of realistic
chiaroscuro lighting, 8k resolution, escherinspired, nabis, vintage lens, optical, rendered in
cinema4d --ar 128:71
A imagem de Edgar Pêra reproduzida acima é acompanhada por quatro descrições
dessa mesma imagem geradas por mim através do que podemos denominar como
visão da máquina ou visão computacional (machine / computer vision). Neste caso
muito concreto, tomam a forma de reverse prompt. No fundo, um prompt é a instrução
linguística dada ao software de inteligência artificial para que ele gere uma imagem
num sistema de “texto-para-imagem”; por seu turno, um reverse prompt reflete a
capacidade de alguns desses softwares gerarem uma descrição de uma dada imagem
sob a forma de um novo prompt. O que isto significa é que, idealmente, esse descritivo
poderia ser depois usado como novo comando para a geração de uma imagem igual
ou pelo menos semelhante. Não é de todo isso que acontece, mas já lá iremos.
Algo que os reverse prompts atrás reproduzidos não revelam, mas que outras
experiências e testes me mostraram foi que, como antes dizia, o modelo conhece a
figura de Pessoa sem ser pela via da especificação direta dos seus traços
fisionómicos. Por exemplo, é o que acontece se dermos ao programa um prompt que
lhe peça para imaginar “the Portuguese poet Fernando Pessoa” nesta ou naquela
situação. Não quer isto dizer que assim terão sido os prompts originais de Pêra. Como
tive oportunidade para saber pelo próprio, em certos dias de intensa geração de
imagens para Variety bastava apenas incluir “man” no prompt e lá surgia Pessoa. Isto
por si só representa um outro tipo de “escândalo”, mas aqui estamos à margem dos
termos de Moles como os referi antes e mais no domínio da arquitetura sórdida do
algoritmo preditivo.
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
102
Ministro
Imaginar, especular, subverter
O mesmo se pode aplicar às várias referências explícitas em que os reverse
prompts assentam: é curioso, mas não surpreendente, verificar a preponderância das
referências a estilos de artistas e movimentos, assim como a técnicas fotográficas e
cinematográficas. De resto, este aspeto tem gerado um intenso debate na esfera pública,
uma vez que este tipo de parâmetros comprova que os modelos de inteligência
artificial foram treinados com recurso a muitas imagens cuja apropriação levanta
questões legais e éticas.
Retomando o nosso exercício: se fizermos de facto o teste de introduzir no
sistema as descrições geradas por reverse prompt como um novo prompt, constatamos
que as imagens são muito diferentes daquela de Pêra. Podemos talvez afirmar que o
exercício de reverse prompt é escusado e até espúrio neste caso. No entanto, o que
com ele quero demonstrar de maneira muito clara é que o input que é dado à
máquina para que ela imagine um output tem ele mesmo de ser imaginativo, por um
lado, e altamente conceptualizado, por outro. Sem a imaginação do humano – e como
podemos depreender daquelas quatro descrições – de pouco nos vale a imaginação
da máquina.
De um ponto de vista técnico-medial, o que este exercício também permite
comentar é que há uma especificidade diagramática na raiz destes sistemas que os
influencia em toda a escala dos possíveis campos de geração de imagem. Em termos
concretos, nos modelos de difusão (diffusion models), a criação de uma nova imagem
parte de um quadro de ruído geral para o desenho progressivo da imagem até
chegar ao resultado final. É sobretudo por isto que todas as imagens produzidas a
partir de um mesmo prompt são sempre diferentes. O caminho do “caos” da
informação até à formação de uma imagem é “limpo” de maneira diferente a cada
iteração algorítmica.
Assim, o que pretendo destacar é que é a própria ecologia dos programas de
geração de texto-para-imagem que assenta em estratégias de repetição e de variação.
Isto acontece ao nível algorítmico do funcionamento dos programas difusores, mas
também nas próprias interfaces desses programas. Por exemplo, o software usado
por mim para a descrição da imagem (que é o mesmo usado por Pêra) gera por
defeito quatro possibilidades de reverse prompt. Por sua vez, qualquer prompt que seja
declarado pelo utilizador dá por defeito origem a quatro imagens, variantes essas
que dispõem, ainda, de um parâmetro direto, sob a forma de botão, para produzir
automaticamente novas variações. O que isto nos mostra é não só que os próprios
programas são desenhados a partir de uma ideia de repetição / variação enquanto meio
de experimentação exploratória ao dispor daquele que com eles experimenta, mas
também – e em sentido contrário a certas opiniões curiosamente arreigadas em noções
de originalidade essencialistas – que a inteligência artificial tem botões e comandos
para imaginar, mas verdadeiramente não pode imaginar sozinha.
Imaginemos um pouco mais com ela. Falamos, nestas e em todas as outras
imagens de Variety, de um Pessoa múltiplo porque multiplicado na sucessão das várias
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
103
Ministro
Imaginar, especular, subverter
imagens da série, mas também na moldura de cada uma das imagens. Pensamos no
heteronimismo, mas fazemo-lo com a certeza de que Edgar Pêra não recorre à conhecida
descrição física dos heterónimos. Não é disso que aqui se trata. Há, de qualquer dos
modos, uma estratégia frequente, certamente por indicação do autor das imagens,
de colocar em primeiro plano uma figura central acompanhada por várias outras,
diríamos miniaturizadas, em pano de fundo. No conjunto da série não é raro ver este
efeito repetido entre várias imagens (cf. Figs. 2, 4, 5 e 10), ainda que todas elas sejam
bastante distintas entre si. Diríamos, por isso, que há uma serialidade coconstituinte
que guia o processo de geração das imagens. Repare-se que isto não deixa de se aplicar
a algumas das imagens reproduzidas abaixo (Figs. 11-13) e que, por comparação,
poderiam ser tidas como fora de série na sua diferença.
Figs. 10-13. Variety, de Edgar Pêra.
Com efeito, se pensarmos em Variety enquanto série, notamos que há um
efeito de transformação contínua das semelhanças que abre caminho para a produção
das diferenças. Em inúmeros casos, essa transformação dá mesmo lugar à deformação.
São linhas que fogem ao esperado, traços que se desagregam, rostos que se dissolvem,
mãos que se esboroam ou aparecem onde não é o seu lugar, há óculos sobre óculos,
olhos que apontam em diferentes direções ou simplesmente desaparecem (cf. Figs. 8,
10 neste ensaio, assim como várias apensadas no final). Com isto, explora-se o erro
da imaginação da máquina de maneira criativa na imaginação humana.
O uso expressivo da distorção nada tem de novo na história das artes.
Todavia, aquilo que, por exemplo, para as vanguardas do início do século XX era
uma exploração consciente da deformação, nomeadamente por oposição ao traço
figurativo, configura, hoje e neste caso em particular, um aproveitamento criativo
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
104
Ministro
Imaginar, especular, subverter
de um erro da máquina. Por outras palavras, os sistemas de inteligência artificial
não produzem lapsos, erros e alucinações propositadamente. Já o utilizador humano
que não descarta os erros da máquina e os inclui nos processos e resultados, isso
sim, fá-lo de forma deliberada.
Nas imagens de Edgar Pêra salta ainda à vista o facto de haver heterónimos
identificados por cores mais vivas que Pessoa em primeiro plano (cf. Figs. 1 e 3). Mas
será mesmo que se trata de um jogo de ortónimo / heterónimos? Porquê o ortónimo
ao centro e os restantes atrás? Não podia ser ao contrário? Por que é que a máquina
há de ver como eu vejo? Conhecerá a máquina o drama em gente pessoano? Foi
treinada nele, processou-o, acumulou-se, explorou-o, esgotou-o e está a reproduzi-lo?
Fá-lo com conhecimento ou desconhecendo o questionamento de que essa teoria tem
sido alvo por parte dos estudos pessoanos? Adiciona alguma coisa às discussões?
Embora esta formulação seja francamente incorreta, torna-se difícil que a
minha linguagem não se refira a “Pessoas”, no plural, para descrever aquilo que os
meus olhos veem. Já me repetindo, pergunto novamente: quantos Pessoas há na
inteligência artificial?
A pergunta é retórica, no entanto poderia responder: muitos e de todas as
formas; ou “vinte homens diferentes” já que “a variedade é a única desculpa para a
abundância”, se quisermos relembrar Erostratus. Em Variety, além das imagens de
aspeto mais realista que apresentam pequenas deformações, há também um conjunto
de imagens cuja estética assenta sobretudo na exploração criativa de um certo deslize
do figurativo. Algumas dessas imagens imaginam traços desenhados, montagens
impossíveis, figurações surrealizantes. Poderíamos dizer que são as imagens deste tipo
que mais se aproximam do sonho, do onírico, da alucinação. Todavia, a verdade é que
em todas elas, mais ou menos realistas, há um desvio de cisão do real trabalhado pela
imaginação da máquina e do humano. Como tem sido profusamente demonstrado
desde o chamado “boom da inteligência artificial” da nossa década, a máquina produz
com frequência alucinações do texto e da imagem. Cabe-nos a nós alucinar com ela.
Edgar Pêra ajuda-nos a alucinar: alguns Pessoas parecem ter ido ao cinema, outros a
um photobooth. Todos foram captados pela “lente”. Esta é, em rigor, uma lente simulada
na simulação que simula os Pessoas simulados na imaginação da máquina.
Simulação é um termo-chave no estudo recente que Manuel Portela dedicou
à modelação computacional do Livro do Desassossego. De forma muito sucinta, para
Manuel Portela, a “simulação literária” agenciada pelo Arquivo LdoD está ligada à
performatividade literária e editorial daquela obra. Como especifica: “Once we
began to model the relation between those two perspectives, our focus shifted from
representing the actuality of those relations as documented in the work’s authorial
and editorial archive to simulating the processes through which a work becomes a
work.” (PORTELA, 2022: 3). No contexto do livro de Portela, estas são algumas das
condições que permitem equacionar novos cenários imaginativos para as abordagens
técnico-humanísticas do campo de estudos das humanidades digitais.
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Embora numa outra perspetiva e contexto, também Pedro Barbosa se reportou a
questões de simulação e imaginação nas práticas de leitura e escrita mediadas por
computador. Além de ter traduzido e comentado o texto que já citei de Abraham
Moles, com quem de resto trabalhou em Estrasburgo, Barbosa foi sobretudo criador
e teorizador do que chamou de literatura cibernética, nos anos 1970, e que mais tarde
viria a apelidar de ciberliteratura. Para Barbosa, a criação assistida por computador
– seja ela literária ou artística em geral – funciona através da conjugação de reportórios
de sinais e regras acionados pelo algoritmo enquanto “simulador da Imaginação”
(BARBOSA, 2002: 227). Se o algoritmo não é a imaginação, ele pode, ainda, atuar
enquanto simulação dessa imaginação no sentido em que prolonga a imaginação da
máquina e do humano. Dito de outro modo, para usar uma expressão do próprio
Barbosa, o computador é sempre um “amplificador das capacidades do cérebro
humano”, não um seu substituto. É claro que o que isto também implica é que os
meios e os programas, mesmo tendo um grande reportório de cenários potenciais,
tendencialmente infinitos, à disposição do seu output, em rigor só podem “imaginar”
aquilo que estão à partida desenhados para “imaginar”.
Com isto, retomo um ponto anterior. Mencionei antes a possibilidade de usar
as quatro descrições por mim geradas de forma automática a partir de uma das
imagens de Edgar Pêra como novos prompts para outras imagens. Vou, no entanto,
poupar o leitor às imagens geradas por mim nesta experiência, deixando-o apenas
com as estimulantes criações de Pêra. Quero, ainda assim, comentar de seguida com
maior detalhe algumas das implicações que tudo isto tem.
Num primeiro momento, um pensamento ingénuo levar-nos-ia a pensar que
é possível a replicação da mesma imagem a partir da descrição submetida como
novo prompt. Ora, isto aconteceria só e apenas se a linguagem, seja ela verbal ou
visual, não fosse algo que nos foge sempre debaixo dos pés. Ou se quisermos usar
outra analogia, ainda rente ao chão, se a linguagem não nos tirasse sempre o tapete.
Fazendo esse exercício de introduzir a descrição como comando para a geração de
uma nova imagem, o que nos surge diante dos olhos é uma imagem completamente
diferente. Constatamos então, pela prática, que as imagens são produtos de certas
engrenagens dentro da imaginação aleatória da máquina. Chamar-lhe imaginação é
um ato abusado de linguagem. Mas como não o fazer se é ela quem abusa da própria
aleatoriedade do output-imagem perante o meu input-linguagem?
Como não imagina a máquina? Como podemos imaginar contra ela?
O teórico e filósofo dos média Vilém Flusser bem viu o que estava para vir. E viu-o
no seu tempo, que para todos os efeitos é um tempo fora de tempo. Há na sua
imaginação dos futuros mediáticos uma clarividência atemporal, sobretudo porque
Vilém Flusser não podia efetivamente antever a inteligência artificial. Ainda assim,
o seu exercício de imaginação teórica é muito mais certeiro e menos aleatório que a
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imaginação da máquina que hoje nos é dada. Isto obviamente deve-se ao conhecimento
profundo que Flusser detinha das evoluções das teorias da informação, da cibernética
e dos sistemas computacionais, nomeadamente nas propostas de Wiener, McCarty,
Shannon e Moles, todos eles já comentados antes neste ensaio.
Para Flusser, o “futuro da escrita” assentaria numa relação intrincada, mas
problemática, entre textos e imagens técnicas:
The easiest way to imagine the future of writing [...] is to imagine culture as a gigantic
transcoder from text into image. It will be a sort of black box that has texts for input and
images for output. All texts will flow into that box […], and they will come out again as
images […] which is to say that history will flow into the box, and that it will come out of it
under the form of myth and magic.
(FLUSSER, 2002: 67)
Um dos aspetos que mais me interessa na filosofia da “caixa negra” de
Flusser, tanto como no exercício de reverse prompt, é o paradoxo e correspondente
colapso. O paradoxo é fácil de explicar: tudo é replicação de textos e de imagens
acumuladas, combinadas e recombinadas, transformadas; mas a replicação, sabemos,
é impossível. Daí o paradoxo, precisamente porque a repetição transforma o igual
em semelhante e o semelhante em diferente. Já o colapso é mais difícil entender. De
todos os modos, e como já afirmei, talvez só seja difícil compreender ao nosso olhar
desavisado ou, se quisermos, àquele olhar que ignora a potência ambígua da
linguagem e a sua queda para a falha da própria comunicação e colapso dos seus
sistemas. Afinal, a linguagem é a não comunicação e, para todos os efeitos, é a
linguagem (verbal) que está sempre na raiz de ferramentas de geração de imagens,
tanto estáticas como em movimento.
Quem, no entanto, evita estas últimas conclusões e prefere focar-se em
promessas de modelação perfeita, transparência e funcionalismo são os gatekeepers
da linguagem do século XXI (KAK e WEST, 2023; BAJOHR, 2023). Isto é, as cinco ou seis
companhias multinacionais que, diretamente ou através de empresas subsidiárias,
controlam o desenvolvimento tecnológico de alto investimento representado pelos
últimos avanços na inteligência artificial, exemplificado pelos grandes modelos da
linguagem (LLMs, na sigla em inglês), e, para todos os efeitos, também pelos programas
similares focados na geração automática de imagens.
Qualquer bom prompt pode gerar imagens fascinantes. Em Variety, a diferença
está na capacidade de Edgar Pêra para produzir imagens críticas (especulares e não
“espetaculares”, no sentido debordiano) que permitem questionar até os próprios
mecanismos e discursos tecnológicos de criação dessas mesmas imagens. No fim de
contas, talvez especular através da imaginação da máquina e da nossa própria
imaginação seja a única forma de subverter o mundo voraz das inteligências mais
ou menos artificiais.
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Anexo
Apresentação
Variety é o título dado por Edgar Pêra a um conjunto de imagens concebidas com
recurso a inteligência artificial que, segundo o autor, funcionam como heterónimos
visuais de Fernando Pessoa. Inclui-se aqui apenas uma seleção desse corpo de
trabalho mais vasto, realizado entre 2023 e 2024, ainda que se procure oferecer uma
mostra ampla e o mais diversificada possível no que respeita às abordagens visuais.
Para o seu trabalho, Pêra partiu de um mote dado por Pessoa em Erostratus: “Variety
is the only excuse for abundance. No man should leave twenty different books
unless he can write like twenty different men. [...] If he can write like twenty men,
he is twenty different men” (PESSOA, 1967: 208-209; cf. 258, em tradução). A partir desse
mote, podemos também perguntar: Quantos Pessoas há na inteligência artificial?
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NOTA
Este ensaio foi escrito no âmbito da investigação desenvolvida no Instituto de Literatura
Comparada Margarida Losa, Unidade I&D financiada por fundos nacionais através da FCT –
Fundação para a Ciência e a Tecnologia (https://doi.org/10.54499/UIDB/00500/2020).
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Ministro
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BRUNO MINISTRO é investigador no Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa (U.
Porto). É doutorado em Materialidades da Literatura (U. Coimbra). A sua investigação tem sido
dedicada às múltiplas intersecções entre os estudos literários, a teoria dos meios e os estudos
culturais, com ênfase na intermedialidade e nos estudos comparados dos média. Nestes contextos,
tem trabalhado sobretudo com objetos híbridos da poesia experimental, copy art e literatura
eletrónica. O principal objetivo da sua investigação tem sido gerar um entendimento abrangente
e interdisciplinar do modo como as formas literárias se ligam a aspetos materiais e tecnológicas
dos meios em que se inscrevem.
BRUNO MINISTRO is a researcher at the Institute for Comparative Literature (University of Porto).
He holds a Ph.D. in Materialities of Literature (University of Coimbra). His research has been
dedicated to the multiple intersections between literary studies, media thery, and cultural
studies, with an emphasis on intermediality and comparative media studies. In these contexts,
he has primarily worked with hybrid objects of experimental poetry, copy art, and electronic
literature. The main objective of his research has been to develop a comprehensive and interdisciplinary
understanding of how literary forms engage with the material and technological aspects of the
media in which they are situated.
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Celani
Quaresma, realizador
Não é por acaso que, dos textos fílmicos de Pessoa publicados há alguns anos por
Patricio Ferrari e Claudia J. Fischer (PESSOA, 2011), os mais extensos e desenvolvidos
se referem ao género thriller ou crime. De facto, o crescimento paralelo da popularidade
do género nas esferas cinematográfica e literária não lhe deve ter escapado, e dado
que grande parte da sua produção narrativa fragmentária está ligada ao género
“policiário”, é fácil compreender por que razão escolheu precisamente esses temas
para as suas experiências esporádicas no campo da sétima arte.
O cinema é, por outro lado, um exercício de storytelling e, embora Pessoa seja
geralmente considerado um contador de histórias falhado, é famoso por ter dedicado
muito tempo, tinta e papel à arte de contar histórias. Por contraste, se sairmos dos
limites das obras consideradas propriamente narrativas, apercebemo-nos de que a
capacidade de Pessoa para contar uma história não era assim tão limitada. Basta
pensar, para dar um exemplo óbvio, no vasto corpus de escritos dedicados às muitas
vicissitudes dos heterónimos, que, embora sejam um fenómeno mais amplo, partilham
vários aspetos com as personagens de um romance ou de um conto: um contexto,
uma biografia, uma descrição física e psicológica, os acontecimentos que os envolvem,
as interações mútuas, os diálogos.
No caso da produção narrativa propriamente dita, nota-se, porém, um certo
desequilíbrio a favor das secções relacionadas com a reflexão ou a teorização, como
já acontece em Um Jantar Muito Original, ou em O Banqueiro Anarquista, ou ainda nas
novelas da série Quaresma, Decifrador, a começar pela obra maior, “O caso Vargas”,
que contém numerosos fragmentos dedicados a uma extensa teorização do protagonista
sobre a “psychologia patológica” do criminoso (PESSOA, 2008: 90-124).
Além disso, o interesse de Pessoa pela produção de histórias não é, obviamente,
mais do que um reflexo da sua paixão por obras de ficção, que lia constante e
avidamente, começando precisamente pelas detective stories. A mesma paixão que o
terá levado a aproximar-se, ainda que de forma esporádica e muitas vezes também
crítica, do cinema.
Para além dos já citados textos editados por Patrício Ferrari e Cláudia Fischer,
referências à relação entre Pessoa e o cinema podem ser encontradas na biografia de
Richard Zenith, que escreve: “Sensível aos novos desenvolvimentos nas tecnologias
da comunicação, Pessoa também pensou em enveredar pela actividade cinematográfica,
por via de uma empresa titulada ECCE film […] mas a ECCE film nunca passou de um
esboço para um logótipo perdido num conjunto de documentos [leia-se: o espólio
pessoano]” (ZENITH, 2022: 703-704).
Se a relação de Pessoa com o cinema foi ocasional, mas ainda assim presente,
a relação do cinema com Pessoa também foi, por muitos anos, episódica, embora
crescentemente mais forte. Agora existem produções cinematográficas e de banda
desenhada feitas a partir das suas criações narrativas, e, sobretudo, a partir das histórias
policiais, um dos géneros fundadores da arte do cinema, como, por exemplo, Não
Sou Nada – The Nothingness Club, de Edgar Pêra. Este filme não é propriamente policial,
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Celani
Quaresma, realizador
mas se insere largamente no género thriller e explora as potencialidades narrativas
presentes no drama-em-gente, acima referidas.
Na escrita do guião do filme colaborou também a escritora Luísa Costa
Gomes, que já tinha estado envolvida em projetos audiovisuais relacionados com a
obra de Pessoa, embora (ainda) não concluídos. Em particular, tal como o refere
numa entrevista de 2008, falou numa adaptação televisiva da série policial Quaresma,
Decifrador1, originalmente produzida na RTP. O projeto não se concretizou, mas
graças ao contacto direto com a autora, foi possível ter acesso a alguns pequenos
excertos do guião. O que nos interessa aqui não é fazer uma análise global do projeto,
que está incompleto (embora pareça estar em vias de ser renegociado), mas partir
dos fragmentos que a autora disponibilizou para fazer uma primeira reflexão sobre
o processo criativo que permitiu a reelaboração da obra de Pessoa no sentido da sua
tradução intersemiótica.
Antes de entrar na análise do processo de adaptação levado a cabo por Luísa
Costa Gomes (ver o ANEXO), vale a pena dar uma breve informação sobre a relação de
Pessoa com a literatura policial e as séries narrativas ligadas à figura de Quaresma.
Sobre a questão do valor que as detective stories tinham para Pessoa talvez não
seja necessário voltar em pormenor; basta aqui recordar que o seu interesse pelo
género tem raízes profundas e remonta, como o próprio admite, à infância (FREITAS,
2016: 119-120). Evidências de uma continuidade de leitura e de frequentação podem
também ser encontradas em livros do género ainda conservados na Biblioteca
Particular, entre os quais figuram obras de Chesterton, van Dine, Conan Doyle,
Fielding, Morrison e o muito amado Poe, para citar apenas alguns (PESSOA, 2006: 1516; FREITAS, 2016: 122-124). Também do ponto de vista produtivo, a diacronia é
muito ampla, indo desde os primeiros esboços de contos datados de 1903 ou 1904
(FREITAS, 2016: 169) até 1935 quando, como se sabe, Pessoa escreve a Adolfo Casais
Monteiro, na carta em que trata da génese dos heterónimos:
Quando às vezes pensava na ordem de uma futura publicação de obras minhas, nunca um livro
do género de Mensagem figurava em número um. Hesitava entre se deveria começar por um
livro de versos grande — um livro de umas 350 páginas —, englobando as várias subpersonalidades
de Fernando Pessoa ele-mesmo, ou se deveria abrir com uma novela policiária, que ainda
não consegui completar.
(PESSOA, 1999: 338)
É muito provável que o texto referido seja um dos atribuídos à série Quaresma,
Decifrador, quase certamente “O caso Vargas”.
Cf. “Congresso/Pessoa: Luísa Costa Gomes adapta novelas policiárias de Quaresma, Decifrador para
televisão”. (28-11-2008; Jornal de Notícias): https://www.jn.pt/feeds/lusa/congressopessoa-luisa-costagomes-adapta-novelas-policiarias-de-quaresma-decifrador-para-televisao-1051249.html/.
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A série representa o esforço mais extenso e continuado de Fernando Pessoa
na escrita de histórias policiais. No espólio pessoano encontramos referências a nada
menos do que catorze títulos (FREITAS, 2016: 205), de treze dos quais dispomos de
fragmentos mais ou menos extensos, a que se juntam os pertencentes a esse texto
introdutório intitulado “Prefácio a Quaresma” (PESSOA, 2008: 31-38). Trata-se, pois,
de um corpus quantitativamente muito vasto, que representa provavelmente a maior
evidência de escrita explícita ou diretamente narrativa produzida por Pessoa.
Finalmente, no que diz respeito à adaptação audiovisual, contactada por e-mail,
quando questionada especificamente sobre a sua abordagem ao argumento, Luísa
Costa Gomes respondeu:
Sei que na altura falei bastante com a Ana Maria Freitas, que pesquisou e organizou a edição
das novelas policiárias de Pessoa. E também tive a colaboração do Victor Calvete, que foi
comigo conversando, sobretudo no que diz respeito às questões lógicas, “raciocinadoras”, de
cruzadismo e enigmas detectivescos em geral. […] Se bem me lembro, usei no guião material de
quatro das novelas, que são ou incipientes ou incompletas. A mais completa é uma tematização
do “quarto fechado” do Poe, e esse é um fio condutor do guião – o quarto fechado onde
Quaresma vive a raciocinar, o quarto fechado onde acontece o crime, o quarto fechado onde os
vizinhos existem misteriosamente.
O conto explicitamente mencionado é “O caso do quarto fechado”, cujo ponto de
partida é “The murders in the Rue Morgue”, de Edgar Allan Poe. Por outro lado, não
há referências diretas às outras três novelas, a não ser a de que são “incipientes ou
incompletas”; tendo em conta que esta última é uma caraterística comum a todas as
novelas da série, talvez possamos inferir que se refere a algumas das menos extensas,
ou mais em fase de esboço, elemento que pode ter favorecido uma maior liberdade
criativa, bem como um desafio mais interessante.
A autora disponibilizou generosamente algumas páginas do guião, das quais
se podem extrair mais reflexões sobre o trabalho de reformulação ou, se preferir, de
tradução que realizou.
Falo de tradução referindo-me, naturalmente, àquilo a que Jakobson chamou
“intersemiotic translation or transmutation”, que consiste numa “interpretation of
verbal signs by means of signs of nonverbal sign system” (JAKOBSON, 1966: 233). O
caso da transição do livro para o filme, através da intermediação híbrida do guião,
enquadra-se nesta definição, uma vez que envolve uma mudança de fronteira
intersemiótica entre uma linguagem exclusivamente verbal e um sistema de signos
mais complexo, que combina língua, imagem e música. Peeter Torop chama também
à tradução intersemiótica extratextual ou deverbalizante:
[...] legata alla trasmissione di un testo in linguaggio naturale mediante codici diversi, verbali
e non verbali. Il testo esce da sé stesso, per poi scorrere lungo vari canali, e la comparazione
di prototesto e metatesto (per esempio, di un romanzo e della sua traduzione filmica) esige
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un’introduzione di parametri diversi per innalzare il livello di raffrontabilità. Nella
traduzione deverbalizzante cambia non solo il testo, ma anche la sua natura.
(TOROP, 2010: 12)
Trata-se, portanto, de uma “passagem de estado” extremamente delicada, que exige,
sem dúvida, um nível de interpretação crítica e criativa muito avançado. Num caso
como este, a passagem de uma linguagem (verbal) para outra (audiovisual) implica
uma mudança estilística, mas também de fruição, que influencia fortemente o resultado
final. Daí a necessidade, expressa por Luísa Costa Gomes, de usar livremente os
materiais disponíveis, para recriar não só uma história, mas também uma rede de
referências intra e intertextuais.
Um exemplo concreto pode ser encontrado na primeira das cenas da
adaptação disponibilizada pela autora. Quaresma está em casa, sentado, a ler. Ao
seu lado está Eduarda, uma rapariga de dezoito anos, personagem de que não há
vestígios nas histórias de Pessoa, embora, juntamente com a mãe que aparece pouco
depois, seja provavelmente um reflexo da filha da dona da casa do protagonista, que
aparece no conto “A carta mágica” (PESSOA, 2008: 231). Eduarda está a ler um livro
em inglês, que não é outro senão The Murders in the Rue Morgue, de Poe. O seguinte
diálogo tem lugar entre as duas personagens:
QUARESMA: Então?
EDUARDA: Muito bom.
QUARESMA: Quantos erros detectou?
EDUARDA: Dois. Grandes.
QUARESMA: Primeiro.
EDUARDA: A coincidência. Quando se dão os crimes na Rua Morgue, vão a passar nada
menos do que cinco estrangeiros de países diferentes!
QUARESMA: E cada um deles interpreta o que ouviu à sua maneira, de acordo com a sua
própria língua. Cinco estrangeiro é de facto muita coincidência.
EDUARDA: (com ironia) Seria algum congresso, porventura.
QUARESMA sorri. Tem orgulho na sua discípula.
QUARESMA: Segundo erro?
EDUARDA: A mola na janela!
QUARESMA bate com a mão na perna, satisfeito.
QUARESMA: A mola na janela! Isso mesmo, Maria Eduarda! Quando o bicho foge depois de
ter assassinado as duas mulheres, a janela fecha-se por dentro em virtude de uma mola,
dando a ilusão de que não há saída! A mola na janela é um truque indigno do nosso
grande Edgar Allan Poe!
EDUARDA: (sorri, satisfeita, baixa os olhos).
Quem procurar este diálogo num dos contos da série ficará desiludido; a fonte direta
é, de facto, outra e coincide com alguns fragmentos do ensaio pessoano Detective
Story, também editado por Ana Maria de Freitas e, mais tarde, por Gianluca
MIRAGLIA (2018). No texto, Pessoa afirma que “A perfect detective story has not yet
been written, though the Murder in the Rue Morgue of Poe comes very near the ideal”
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(PESSOA, 2012: 252); no entanto, identifica uma série de erros na obra, que coincidem
precisamente com os identificados por Eduarda.
O primeiro erro é assim identificado por Pessoa:
Coincidence is always disastrous, but it is peculiarly irritating when, as indeed sometimes
happens, it is unnecessary. The classic lapse in this respect is in Poe’s Murders in the Rue
Morgue, where a unique assortment of foreigners happens to be passing the house where the
crime is committed. And mere Frenchmen, each supposing a different language to be
muttered, would have amply and naturally served the author’s purpose. One foreigner,
perhaps, would not have been scandalous.
(PESSOA, 2012: 239; BNP/E3, 100-30r)
Num outro trecho do mesmo ensaio, o segundo erro é igualmente detetável:
Edgar Allan Poe himself, great as was his imagination, failed overcome this obstacle. He
ought to have reasoned that, if he could not overcome this obstacle, he would not create it at
all. In the Murders in the Rue Morgue, he very lamely attempts to make the crime obscure by
the introduction of a spring in a window, when such a spring was not necessary.
(PESSOA, 2012: 246; BNP/E3, 146-53r)
O mesmo conceito é também reiterado noutra passagem: “The Murders in the Rue
Morgue, strong and original as it is, has nevertheless a few faults. One of these is the
introduction of a spring in a window, a mechanical device, palpably violating our
third rule” (PESSOA, 2012: 251; BNP/E3, 146-78r).
O tema da coincidência, como vimos o alvo polémico de Pessoa (e de Quaresma),
regressa também na segunda cena fornecida por Luísa Costa Gomes, que de facto,
mais uma vez por e-mail, escreveu: “As cenas não são muito características, mas têm
em comum o tema da coincidência na investigação, um assunto eminentemente
literário na construção da narrativa policial” (comunicação pessoal).
Esta segunda cena apresenta outra personagem recorrente na série, o chefe
Manuel Guedes:
CHEFE GUEDES: O senhor esteve ontem nas Picoas, junto à casa do malogrado Jorge Branco.
MÁRIO: Ia a passar! Foi um acaso!
CHEFE GUEDES: Encontrou o telefone que foi atirado pela janela.
MÁRIO: Encontrei! Isso é crime?
CHEFE GUEDES: Não, de modo nenhum. Já o facto de irem a passar exactamente naquele
momento... é uma coincidência que deve ser tirada a limpo!
MÁRIO: Apenas uma coincidência que é uma coincidência.
CHEFE GUEDES: Não conhecia a vítima?
MÁRIO (quase a chorar): Não! Claro que não!
A circunstância do telefone atirado pela janela remete-nos imediatamente para uma
história específica, que na edição de Ana Maria de Freitas tem o duplo título de “Tale
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X / A morte de D. João” (PESSOA, 2008: 189-213). O conto começa com um objeto a
voar de uma janela do segundo andar, partindo o vidro:
Um dos rapazes, ou mais atrevido ou mais bêbado, metera-se dentro do jardim, e, talvez com
aquele instinto especial que os bêbados possuem, estava remexendo ao pé da grade que
separava a casa da rua. De repente teve uma exclamação:
– E-na pai, olha pr’a isto! Ó sr. guarda, aqui está a máquina que estoirou a janela! E ergueu,
com certo cuidado, qualquer coisa de entre a base dos arbustos apertados que se encostavam
ao gradeamento. Todos se aproximaram, e, a princípio, não se via na cara de ninguém que
percebesse, através do escuro, que objecto era o que o achador erguia.
Mas de perto havia luz bastante para todos verem, e pasmaram todos.
– Essa é boa, disse o guarda. – Um telefone!
(PESSOA, 2008: 192; BNP/E3, 274 P-3r)
Figs. 1 e 2. Trecho de Quaresma, “Tale X” (BNP/E3, 274 P-2r e 3r).
A personagem do rapaz não tem nome no conto, mas é evidente que coincide com o
Mário Louro do guião. Por outro lado, a vítima também tem um nome no texto de
Pessoa, que nalguns fragmentos é Valle e noutros precisamente Branco, enquanto o
crime se passa em Picoas. A cena do interrogatório de Mário não está presente no
conto, mas é relevante por outra razão, nomeadamente a presença do chefe Guedes,
o companheiro de Quaresma, o seu Dr. Watson. Da cena, depreendemos algo do seu
carácter, dos seus modos diretos, “bruscos e frontais”, que lhe valeram a alcunha de
“O Guedes bruto” (PESSOA, 2008: 220; FREITAS, 2016: 259); trata-se de uma figura que
é o contrapeso ao magro, esquelético e pálido Quaresma:
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As duas personagens são opostas física e psicologicamente, mas, como em muita aliança de
opostos, completam-se, pois a actividade física de Guedes permite a actividade mental de
Quaresma, a sua qualidade estática. Se um personifica a actividade intelectual, em que o
corpo físico fica esquecido, o outro personifica o material, a acção, a emoção e o impulso.
Manuel Guedes é o Sancho Pança do D. Quixote Abílio Quaresma. Dá-lhe humanidade e
puxa-o para o plano terreno, fornece ao leitor episódios cómicos que suavizam a frieza das
longas exposições.
(FREITAS, 2016: 259)
É muito provável que seja esse o papel que a personagem adquire na adaptação de
Luísa Costa Gomes.
Guedes é também o protagonista da última cena proporcionada pela autora,
em que a ação se desloca para o Palácio do Governo Civil, onde está instalada a
Segunda Secção de Investigação Criminal, de que é membro. E aqui é convocado
pelo Diretor Geral, numa cena que nos faz compreender, através da sua atitude
recalcitrante, algo mais do seu carácter:
O CHEFE GUEDES entra e sobe ao primeiro andar. Quando vai a entrar no Gabinete, o AGENTE
NORONHA aborda-o, com alguma urgência.
AGENTE NORONHA: O senhor director...
CHEFE GUEDES: O que é que ele quer?
O AGENTE NORONHA faz uma expressão que significa que não sabe.
CHEFE GUEDES: Diz que já lá vou.
O AGENTE NORONHA não arreda pé.
CHEFE GUEDES: Tem de ser agora?
O AGENTE NORONHA faz-lhe sinal para que o acompanhe.
A breve conversa entre Guedes e o Diretor Gomes é a cena clássica em que um
superior pede ao subordinado respostas sobre os resultados da investigação, que
evidentemente não são satisfatórios:
DIRECTOR GOMES: Vestígios? Nenhum. Indícios? Nenhum. Pistas? Nada. Digo bem?
CHEFE GUEDES: Já tenho lá uma equipa a trabalhar. Antes do mais, quis tirar a limpo o
Cabo Reis. Não seria o único oficial de polícia a cair fora da lei.
Este pequeno fragmento retoma, de forma concisa, o capítulo II da novela, embora
aqui o chefe não se chame Guedes, mas Tavares. Mais uma vez, a investigação parece
ter-se centrado inicialmente no cabo Reis, ou seja, no polícia que se encontrava no
local do crime quando o telefone foi atirado, mas que parece estar acima de qualquer
suspeita. Serão as subsequentes investigações inconclusivas que levarão ao envolvimento
de Quaresma, que resolverá o mistério, mas por puro gozo, já que, numa reviravolta
final, não entregará o culpado à justiça.
Em conclusão, as cenas fornecidas por Luísa Costa Gomes, embora breves e
aparentemente desconexas, lançam luz sobre um processo específico de tradução
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intersemiótica, que parte de uma análise cuidada dos textos literários, mas também
dos textos críticos, bem como de um intercâmbio com especialistas, para chegar a
uma reelaboração que cria segmentos não presentes nos textos originais sem trair o
seu espírito, mas procurando levá-los a um grau de completude que esses textos não
possuem. A inclusão de elementos não só das novelas da série Quaresma, Decifrador,
mas também do ensaio Detective Story permite-nos vislumbrar uma leitura aprofundada,
competente e conhecedora da personagem e do seu autor, sugerindo plasticamente
a ideia de que, ouvindo e vendo Quaresma, estamos, no entanto, perante uma outra
“variante” de Pessoa. Como escreveu Ana Maria de Freitas, “A figura de Quaresma
e o modo como é mais do que personagem e menos do que heterónimo é reveladora
do processo pessoano de construção da obra. A ficção das personagens e a realidade
do autor interpenetram-se e renegam convenções” (FREITAS, 2016: 324).
Se Quaresma representa assim mais uma faceta da arte criativa de Pessoa, a
tradução para a linguagem audiovisual da série representa uma nova maneira de
entrar em diálogo com a sua inesgotável obra, bem como uma forma de concretizar
de algum modo um dos muitos projetos falhados de Pessoa, nomeadamente o de
escrever para cinema.
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ANEXO
Nota de intenções
(Luísa Costa Gomes)
As treze “novelas policiárias” da série Quaresma, de Fernando Pessoa, foram
finalmente publicadas em 2008 pela Assírio & Alvim com texto fixado por Ana
Maria Freitas. Embora na sua grande maioria fragmentárias e inacabadas, as novelas
são um desafio demasiado provocador e interessante para ser ignorado. Primeiro
ponto de interesse: é óbvio, ao ler as elaborações de Abílio Quaresma, o Decifrador,
que Pessoa procurava escrever não apenas mais um policial, mas inventar ab ovo o
Grande Policial Português e estabelecer os fundamentos da “requalificação” literária
de um género considerado menor. É aparente que a sua maneira de fazer policial
procura a convenção do género, lugares comuns como “crime no quarto fechado”,
“o documento roubado”, etc.; mas, por outro lado, e porque se trata de um escritor
maior, com o talento da inovação permanente, Pessoa procura a fuga à convenção.
Do ponto de vista da escrita, temos por um lado um registo coloquial, com diálogos
rápidos e credíveis, e por outro, passagens cujo valor literário mais ambicioso é
indiscutível. Segundo ponto de interesse: a personagem criada por Fernando Pessoa,
Abílio Quaresma, é um original. Não é simpático, não é sociável, não faz compromissos.
Mas também não é um intelectual, não é um artista. É um charadista que conhece
bem as regras dos enigmas e das adivinhas. A sua força é esse tipo de inteligência
minuciosa e paciente, que ele aplica na “construção do facto essencial” à investigação.
O Chefe Guedes, o “Guedes Bruto” é a força primária que faz o contraponto ao
depuramento mental de Quaresma. Terceiro ponto: embora pertencendo à família
dos raciocinadores como Dupin e Holmes, Quaresma é absolutamente português e
é absolutamente da Baixa lisboeta. Ninguém escrevia policiais desta maneira em
Portugal e durante muito tempo, não escreveu. Fazer género, mas adaptando-o às
condições humanas e até judiciais existentes no Portugal dos anos dez e vinte era o
intento de Pessoa. Mas a série Quaresma é também uma homenagem à Idade de
Ouro do policial e a um género que na altura tinha pouco mais de cinquenta anos.
Arthur Conan Doyle, Arthur Morrison, Austin Freeman, Agatha Christie, entre muitos
outros, estabeleciam então os cânones de um dos géneros mais populares de sempre.
Das treze novelas escolhi três (fragmentárias) que poderão ligar-se entre si e
constituir uma longa-metragem. A primeira, Tale X – A Morte de D. João, já serviu de
base ao episódio-piloto de uma série televisiva cujo projecto nunca chegou sequer a
ver a luz de uma sala de reuniões em qualquer dos canais estatais. É um enredo de
típico “quarto fechado” e começa de forma espectacular com um telefone a ser atirado
da janela de um primeiro andar. Gira em volta do inexplicável e brutal homicídio do
dono da casa. A segunda novela é O Desaparecimento do Dr. Reis Gomes, caso intrigante
em que Quaresma tem uma prestação raciocinante quase delirante, mas afinal
absolutamente adequada. A terceira é a novela com o título Crime, que põe em cena
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o suicídio / homicídio involuntário de Augusto Monteiro, das Juventudes Católicas,
conhecido de bairro de Quaresma; a novela alude a um Portugal raras vezes tematizado,
dividido em livres-pensadores e jesuítas, e em que se adivinha a confrontação política,
através de uma personagem obscura que será um emigrado político em Espanha.
Talvez seja possível ainda ligar com esta o fragmento relativo ao Assassinato de
Sidónio Pais. As três novelas apontam para algumas das áreas temáticas menos
celebradas em Pessoa e que nos dão dele, através de Quaresma, uma imagem nova
e positiva: o interesse pelo policial puro e duro, do raciocínio abdutivo, da construção
do facto e a luta pedagógica contra o obscurantismo, o clericalismo, as grandes
evidências morais que se reduzem, afinal, a preconceitos – é o Pessoa racional,
pensador, quase professor de lógica e anti-ocultista; na segunda novela temos a
desmistificação do secretismo e do obscurantismo, a atenção ao subterrâneo das
aparências, ao inimaginável que se passa no andar ao lado, em casa do vizinho de
vida dupla – é uma reflexão sobre a moralidade dúplice e os códigos sociais vigentes.
E a terceira novela permite-nos ver o seu interesse pela luta política, pondo em cena
duas famílias de quadrantes opostos, e a influência imensa da Igreja nas consciências.
Na terceira novela o crime não é propriamente um crime, mas é antes um pecado.
Do ponto de vista da escrita do argumento, constituirá um desafio interessante a
integração no enredo destes três fios condutores, que aliás são desencadeados em
momentos diferentes. O objectivo é construir uma história bem estruturada, ancorada
na vida do protagonista, a quem o Chefe Guedes recorre, em cujo prédio se dá um
desaparecimento, cujo conhecido aparece morto no rio. É Quaresma a força do filme
como personagem e como motor do argumento.
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Quaresma, realizador
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SIMONE CELANI é Professor Catedrático de Língua e Tradução Portuguesa e Brasileira na
Universidade de Roma La Sapienza. As suas principais áreas de investigação estão relacionadas
com historiografia linguística, a tradução, a linguística literária, a filologia de obras
contemporâneas (em particular Fernando Pessoa), a África lusófona. Tem mais de uma centena
de publicações a seu crédito; entre as mais recentes, O Espólio Pessoa (INCM, 2020) e, em
colaboração, Culture di lingua portoghese (Hoepli, 2023).
SIMONE CELANI is Full Professor of Portuguese and Brazilian Language and Translation at the
University of Rome La Sapienza. His main areas of research are related to linguistic historiography,
translation, literary linguistics, philology of contemporary works (particularly Fernando
Pessoa), and Lusophone Africa. He has more than a hundred publications to his credit; among
the most recent ones are O Espólio Pessoa (INCM, 2020) and, in collaboration, Culture di lingua
portoghese (Hoepli, 2023).
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Salado
Pessoa transfictionnel
Palavras-chave
Fernando Pessoa, Transficcionalidade, Luísa Costa Gomes, Roteiro, Reescrita, Jogo literário.
Resumo
A partir da noção de transficcionalidade (SAINT-GELAIS, 2011), propomo-nos a analisar Não
Sou Nada, um guião inédito de Luísa Costa Gomes, preparatório para o filme de Edgar Pêra
Não Sou Nada. The Nothingness Club (2023). Concebido como uma ficção secundária elaborada
em referência à ficção primária que constitui a heteronímia de Pessoa, o guião é primeiro
analisado na sua dimensão narrativa, caracterizada tanto por desvios espetaculares em relação
ao universo pessoano, quanto por uma série de pontes diegéticas que ligam os dois mundos
ficcionais. Em segundo lugar, estabelecemos como a escrita de Não Sou Nada se baseia em
um trabalho altamente concertado de empréstimos, edição e subversão a partir do material
textual de Pessoa, o que determina a dimensão intrinsecamente textual da relação transficcional
implementada por Luísa Costa Gomes.
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Salado
Pessoa transfictionnel
Un singulier devenir fictionnel caractérise l’œuvre plurielle de Fernando Pessoa.
Les écrits de Pessoa ont en effet engendré un nombre considérable de fictions qui
développent, prolongent, transposent, visitent et revisitent ce vaste corpus, contribuant à lui conférer un dynamisme propre, que ce soit sur le plan de la création
littéraire ou cinématographique1. Ce phénomène, qui s’inscrit globalement dans le
domaine de la « transfictionnalité » étudié par Richard Saint-Gelais dans son essai
Fictions transfuges2, peut certes s’observer à propos de nombreuses œuvres littéraires
ou filmiques, mais il rencontre des conditions spécifiques, et assurément favorables,
dans le cas de l’œuvre pessoenne, du fait de deux de ses caractéristiques fondamentales : d’une part la démultiplication des figures d’auteurs fictifs, qui permet de
considérer le dispositif hétéronymique comme une fiction en soi, d’autre part
l’inachèvement constitutif de cette œuvre.
L’hétéronymie, surtout quand on l’envisage dans son extension maximale3,
place toute l’œuvre pessoenne sous le signe de la fictionnalité, dès lors que cette
œuvre se présente pour une grande part comme la production de personnages
d’auteurs fictifs. Dotés d’un certain nombre des attributs typiques du personnage
de fiction, à commencer par le nom propre, les auteurs inventés par Pessoa composent
un vaste répertoire de personnages potentiellement disponibles pour des développements fictionnels ultérieurs 4. Développements qui sont d’autant plus suscités
par le dispositif hétéronymique que celui-ci contient déjà, au-delà de la nature
fictive des auteurs, des éléments fictionnels, comme le suggère la formule « drama
em gente » à laquelle recourt Pessoa pour présenter ce dispositif dans la « Tábua
bibliográfica » qu’il donne à la revue Presença en 19285. La mise en place de tout un
système relationnel entre les trois hétéronymes « de plein droit » que sont Caeiro,
Reis et Campos, de même que l’implication de Pessoa en personne dans ce système
de relations où il apparaît au même degré de réalité, c’est-à-dire de fictionnalité,
que les autres protagonistes, fondent en fiction l’hétéronymie, dont le déploiement
En témoignent, pour s’en tenir à des exemples canoniques, le roman O Ano da morte de Ricardo Reis
(1984) de José Saramago ou le récit Requiem (1991) d’António Tabucchi et leurs adaptations
cinématographiques respectives par João Botelho (2022) et Alain Tanner (1998).
1
Dans l’introduction de cet essai, Richard Saint-Gelais propose la définition suivante : « Par
‘transfictionnalité’, j’entends le phénomène par lequel au moins deux textes, du même auteur ou
non, se rapportent conjointement à une même fiction, que ce soit par reprise de personnages,
prolongement d’une intrigue préalable ou partage d’univers fictionnel » (SAINT-GELAIS, 2011: 7).
2
Selon cette conception étendue de l’hétéronymie, on considérera l’ensemble des auteurs fictifs
comme faisant partie de la fiction hétéronymique pessoenne, y compris Fernando Pessoa lui-même
quand il est mentionné dans le discours d’un de ses hétéronymes, comme c’est le cas par exemple
dans les Notas para a recordação do meu mestre Caeiro (algumas delas) signées du nom de Álvaro de
Campos et publiées dans Presença, n.º 30, Jan.-Fev. 1931 (PRESENÇA, tomo II, 1993).
3
4
Ce répertoire est disponible dans PESSOA (2013a).
« Tábua bibliográfica » paraît dans le numéro 17, Dez. 1928, de la revue publiée à Coimbra (PRESENÇA,
tomo I, 1993: 10).
5
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Pessoa transfictionnel
s’effectue non seulement par le jeu des attributions textuelles aux différents
auteurs fictifs, mais aussi par les textes qui développent la fiction du « drama em
gente »6. À cet égard, on peut tenir l’invention hétéronymique et les développements
diégétiques que lui a donnés Pessoa comme la fiction première à partir de laquelle
des fictions secondes sont susceptibles d’entrer en relation transfictionnelle, selon
le principe de « migration » des personnages et des données diégétiques d’un monde
fictionnel à un autre.7
Outre sa nature fictionnelle liée à l’hétéronymie, l’œuvre de Pessoa est
marquée par sa condition d’inachèvement, autre caractéristique propice à des
prolongements transfictionnels. L’abondant personnel fictif pessoen nous est en
effet parvenu sous la forme d’un work-in-progress marqué à la fois par l’incomplétude
et l’instabilité : incomplétude des données diégétiques associées aux personnages
d’auteurs fictifs, dont certains ont à peine été esquissés par leur créateur, instabilité
de ces données elles-mêmes, comme l’attestent par exemple les variations dans les
attributions d’autorité des textes. Autrement dit, pour qui s’empare de ces personnages afin d’en « faire fiction » à son tour, les possibilités de redistribution des
cartes sont sans doute plus ouvertes que si le point de départ du jeu transfictionnel
était une œuvre close présentant un univers diégétique cohérent et achevé.8
Ce sont ces possibilités qu’explorent deux œuvres qui ont récemment enrichi le
corpus des fictions « post-pessoennes » : le film d’Edgar Pêra, Não Sou Nada. The
Nothingness Club (2023) et le scénario inédit de Luísa Costa Gomes qui a précédé ce
Les Notas d’Álvaro de Campos précédemment mentionnées sont tout à fait représentatives de la
façon dont s’est déployée la fiction pessoenne de l’hétéronymie : elles donnent consistance aux
personnages d’auteurs fictifs en rapportant des éléments concernant leur vie, les circonstances dans
lesquelles ils se sont fréquentés, et les échanges auxquels leurs rencontres ont donné lieu. Dans ce
texte, Pessoa vu par Campos apparaît bien avec le même statut ontologique que les autres hétéronymes mentionnés – Caeiro, Reis, ou Mora –, il est un personnage parmi d’autres. Que le Pessoa qui
apparaît dans la fiction hétéronymique ne soit ni plus ni moins réel que les hétéronymes est
d’ailleurs suggéré dans la « Tábua bibliográfica » publiée quelques mois avant les Notas dans la
même revue Presença : « (Se estas tres individualidades são mais ou menos reais que o próprio Fernando
Pessoa — é problema metafísico, que este, ausente do segredo dos Deuses, e ignorando portanto o
que seja realidade, nunca poderá resolver.) » (PRESENÇA, tomo I, 1993: 10).
6
C’est par le terme de « migration » que Richard Saint-Gelais spécifie le phénomène de transfictionnalité par rapport au phénomène d’hypertextualité analysé par Gérard Genette dans Palimpsestes.
La littérature au second degré (GENETTE, 1982) : « L’hypertextualité est une relation d’imitation et de
transformation entre textes ; la transfictionnalité est une relation de migration (avec la modification
qui en résulte presque immanquablement) de données diégétiques » (SAINT-GELAIS, 2011: 10-11).
7
Il va de soi que les notions d’œuvre « close » ou d’univers diégétique achevé sont à nuancer : tout
monde fictionnel est affecté d’une part d’incomplétude, aucune description exhaustive de monde
n’étant possible. Toutefois, le haut degré de fragmentation de l’œuvre plurielle de Pessoa la rend
plus disponible que d’autres à des opérations transfictionnelles, dans la mesure où les contraintes
liées à la fiction première sont moindres qu’elles ne le sont dans le cas d’un roman publié de Flaubert ou
de Zola par exemple, où le caractère achevé de la diégèse conditionne davantage ces opérations.
8
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Salado
Pessoa transfictionnel
film, Não Sou Nada, daté octobre 2015 / Juillet 20189. Considérant que ce texte constitue
une œuvre en soi, indépendamment de l’usage partiel qui a pu en être fait pour le
film ensuite, on se propose ici d’interroger les formes que prend le processus transfictionnel dans le seul scénario de Luísa Costa Gomes. Après un premier temps
consacré à la diégèse, aux écarts mais aussi aux liens que celle-ci manifeste par
rapport aux données de la fiction hétéronymique pessoenne, on verra ensuite comment Luísa Costa Gomes manipule les écrits de « Fernando Pessoa & Companhia
Heterónima »10 dans son propre texte, examen qui nous permettra de caractériser
la transfictionnalité mise en œuvre dans le scénario comme un jeu littéraire d’une
grande sophistication, fondé sur des opérations d’emprunts, de montage, et parfois
de détournement du matériau textuel mobilisé par l’écrivaine.11
Mise en intrigue : Campos revisité
Au commencement était Campos : les mots du titre, Não Sou Nada, inscrivent au
seuil du texte la prépondérance de l’hétéronyme dont l’un des plus célèbres poèmes,
« Tabacaria », s’ouvre précisément par ces trois mots. Le caractère principiel de
Campos est confirmé par la première séquence du scénario, qui montre l’élégant
Ingénieur débarquant le premier du Lusitânia-Sud Express à la gare du Rossio,
suivi de près par Charles Anon et Alexander Search (COSTA GOMES, 2015-2018:
scènes 2-3). C’est avec l’arrivée de Campos que va s’enclencher la diégèse, que
diverses indications du scénario permettent de situer au début des années vingt12.
A cet égard, un sous-titre possible pour le récit imaginé par Luísa Costa Gomes
Le générique du film porte l’indication suivante : « Argumento. Luísa Costa Gomes & Edgar
Pêra ». Cette présentation corrobore l’hypothèse que le scénario original a été remanié pour le film,
qui, de fait, présente des différences très sensibles, sur le plan narratif et dans les dialogues, avec le
texte de Não Sou Nada. L’analyse de ces différences mériterait une étude spécifique qu’on ne mènera
pas dans le cadre de cet article exclusivement consacré au scénario.
9
On reprend ici la didascalie de la scène 7 : « Plano da porta da casa de FERNANDO PESSOA. É uma porta
de cariz comercial. As letras negras sobre o vidro branco fosco dizem: FERNANDO PESSOA & COMPANHIA
HETERÓNIMA » (COSTA GOMES, 2015-2018).
10
Plusieurs scénarios de Pêra ont été écrits à partir du scénario de Gomes. Il faut également avoir à
l’esprit que le film résulte d’un important travail de montage effectué à partir d’un nombre
d’heures de tournage très supérieur à la durée du film lui-même.
11
On reprend ici la didascalie de la scène 2 qui précise que Campos a « trinta e poucos anos », ce qui
permet de situer la scène au début des années vingt, si l’on tient compte de la date de naissance
attribuée par Pessoa à son hétéronyme, qui a vu le jour à Tavira le 15 octobre 1890 ; cette hypothèse
est confirmée à la fois par la didascalie qui ouvre la scène 7, où il est également précisé que « PESSOA
vai nos trinta e poucos anos », et par l’échange qui suit entre Campos et Pessoa, quand ce dernier
déclare, en référence à la première Guerre Mondiale : « A guerra já veio et já foi ». En situant dans
son scénario le retour de Campos à Lisbonne au début des années vingt, Luísa Costa Gomes a donc
repris une donnée de la fiction hétéronymique pessoenne, fiction seconde et fiction première
coïncident sur ce point.
12
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Salado
Pessoa transfictionnel
serait « Álvaro de Campos : The Return », formule qui entre évidemment en résonance avec les données de la fiction hétéronymique élaborée par Pessoa, qui voit
Campos faire son retour sur la scène publique en poésie, après plusieurs années de
silence, par le poème « Lisbon Revisited (1923) »13. Il est d’ailleurs fait explicitement
allusion au titre de ce poème un peu plus avant dans le scénario, dans l’échange
entre Campos, Search et Anon qui voyageaient dans le même train :
CAMPOS:
– Is this your first time in Lisbon?
ANON: – Yes.
SEARCH: – I was born here. I am visiting…
CAMPOS (corta): – Lisbon is never to be visited, always revisited! 14
(COSTA GOMES, 2015-2018: scène 6)
La fiction du retour dont il s’agit dans Não Sou Nada est toutefois bien différente de
ce qui se joue dans la fiction hétéronymique telle qu’elle se présente chez Pessoa,
où, revenant à Lisbonne, Campos apparaît lassé de l’existence et dépourvu de la
rugissante énergie comme de l’ambition démesurée qui caractérisaient l’écriture
torrentielle des Grandes Odes15. Selon la fiction pessoenne, « O Engenheiro sensacionista » a cédé la place au « Engenheiro metafísico »16, qui se présente comme un
sujet en retrait du monde, livré au désœuvrement et dominé par des affects
mélancoliques où l’on perçoit d’évidentes affinités avec la production poétique de
Fernando Pessoa « en personne », le poète orthonyme, mais aussi avec certains
fragments en prose du Livro do Desassossego. Or, dans le scénario élaboré par Luísa
Costa Gomes, une spectaculaire bifurcation intervient par rapport à cette évolution.
Dans Não Sou Nada, le Campos qui revient à Lisbonne, plus batailleur que jamais,
Publié dans Contemporânea, 8, Fevr. 1923, soit près de huit ans après la publication de « Ode
Marítima » dans Orpheu, 2, Abril-Maio-Junho 1915. Campos a certes écrit des poèmes entre ces deux
dates, mais ils n’ont pas été publiés par Pessoa, ce qui accrédite la fiction du retour de Campos
après des années de silence.
13
Avant même cet échange, l’adresse de Caeiro abordant Campos à la sortie de la gare – « Então, já
cá estás outra vez ? » (scène 5) – avait fait résonner discrètement le poème « Lisbon Revisited (1926) »,
dont toute la partie finale est scandée par l’anaphore « Outra vez te revejo ». Cette partie finale du
poème sera ensuite reprise sous la forme d’un monologue de Campos à la scène 16.
14
Ce changement de disposition du « Je » poétique de Campos est bien figuré par la mise en regard
d’une part de « A Passagem das Horas », ode inachevée des années 1915-1916 qui s’avance sous le
signe inaugural de l’exaltant programme « Sentir tudo de todas as maneiras », et d’autre part des
premiers vers d’un poème daté d’avril 1923 qui se présente comme un fragment tardif de cette ode,
mais où l’on perçoit d’emblée la retombée de l’élan initial: « Nada me prende, a nada me ligo, a nada
pertenço. | Todas as sensações me tomam e nenhuma fica » (PESSOA, 2013b: 191 et 273 respectivement).
« Lisbon Revisited (1926) » s’ouvre également par les mots du fragment d’ode non publié : « Nada
me prende a nada » (PESSOA, 2013b: 300).
15
« O Engenheiro sensacionista (1914-1922) » et « O Engenheiro metafísico (1923-1930) » sont les titres
des 2ème et 3ème sections qui organisent le volume Poesia de Álvaro de Campos (PESSOA, 2013b: 79 et 269).
16
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débarque dans la capitale pour prendre sa revanche et régler ses comptes, suivant
en cela une topique narrative bien connue, celle qui associe la figure du « revenant »
à celle du vengeur17. La mise en intrigue va donc se faire dans la fiction seconde en
référence à un « scénario type » que ne laissaient guère prévoir les éléments concernant le personnage de Campos dans la fiction première de l’hétéronymie. En effet,
nulle part dans les écrits de Pessoa relatifs aux hétéronymes il n’est indiqué que
l’auteur sensationniste, une fois revenu à Lisbonne, persécute son créateur pour
obtenir que lui soit attribuée l’exclusivité de sa production littéraire, puis se lance
dans une entreprise d’élimination systématique de ses confrères en hétéronymie,
considérés comme des rivaux à écarter par tous les moyens. C’est pourtant bien
cette ligne narrative que développe Luísa Costa Gomes dans son scénario, en suivant
pour cela une progression parfaitement claire, et, on va le voir par le résumé simplifié
qui suit, tout à fait radicale.
Exigeant de Pessoa qu’il lui consacre l’essentiel, voire l’intégralité de son
activité créatrice, afin que soit achevée l’œuvre qui lui revient – « Quero o meu
Arco do Triunfo […] Quero o meu livro, com o meu nome na capa ! […] Não quero
ser só o primeiro, quero ser o único » (scène 7) –, maladivement jaloux des autres
hétéronymes, et singulièrement de Caeiro auquel il se heurte à la sortie de la gare
dès la scène 5, Campos harcèle Pessoa pour qu’il l’écrive – « escreve-me » (scène 21) –,
et qu’il l’écrive lui seul18. Le personnage de Campos créé par Luísa Costa Gomes
apparaît ici, selon un paradoxe piquant, comme l’hétéronyme qui veut en finir
avec l’hétéronymie et en revenir à une œuvre unitaire dont il serait l’unique
auteur. À cet égard, le conflit fondamental qui sous-tend toute l’intrigue de Não
Sou Nada oppose deux forces irréconciliables : celle, égocentrique et
monomaniaque, dont le personnage de Campos est le vecteur, et celle,
Entre autres exemples archétypiques de la figure du vengeur, on peut penser au personnage
d’Edmond Dantès, le héros du Comte de Monte Christo (1844-1846) d’Alexandre Dumas.
17
Cette réplique pourrait évoquer la pièce de théâtre de Luigi Pirandello, Six personnages en quête
d’auteur (1921), où le début du drame voit arriver sur la scène d’un théâtre où doit se tenir la
répétition d’une autre pièce les six membres d’une famille en quête d’un auteur qui pourrait écrire
leur histoire. C’est toutefois un autre texte qui nous paraît éclairer la situation fictionnelle de Não
Sou Nada où l’on voit Campos « réclamer son dû » à son créateur. En effet, cette situation n’est pas
sans rappeler, mutatis mutandis, celle qui est mise en place dans le roman de Mary Shelley, Frankenstein, or the Modern Prometheus (1818), grand roman de la vengeance. Dans Frankenstein, la
créature vient exiger de son créateur qu’il lui donne une compagne, puis, face au refus de ce dernier
qui craint l’engendrement d’une « lignée de monstres », entreprend de se venger en assassinant
systématiquement les proches du Docteur Frankenstein. Or on perçoit bien à l’arrière-plan du
scénario de Luísa Costa Gomes à la fois la prégnance du schéma narratif du récit de vengeance et le
motif plus spécifique de la créature se retournant contre son créateur. Le mot « Criador » apparaît
d’ailleurs dans une didascalie de la scène 65, dernière scène où Campos et Pessoa sont réunis peu
avant la fin de Não Sou Nada : « Debruça-se sobre PESSOA, por trás, passa-lhe os braços pelo pescoço,
abraça-o ternamente. CAMPOS está muito fraco, magoado da queda, quase a render a alma ao Criador », Dans
le contexte de cette indication scénique, le terme renvoie aussi au « Créateur » qu’est Pessoa.
18
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polycentrique et plurielle, dont le personnage de Pessoa est l’instance. Et l’enjeu de
cet affrontement n’est ni plus ni moins que l’existence de l’hétéronymie elle-même.
La confrontation Campos-Pessoa se poursuit dans la seconde partie du récit,
après l’ellipse temporelle indiquée à la scène 24 : « Passaram dez anos, estamos no
princípio dos anos 30 ». Loin d’avoir apaisé la soif de reconnaissance de Campos, le
« passage des années » l’a encore avivée. Redoublant ses persécutions, et
constatant que Pessoa persiste, en dépit des avertissements chaque fois plus
menaçants qu’il lui adresse, à écrire pour d’autres que lui et singulièrement pour
Caeiro, Campos décide de passer à l’action. À la récrimination vont alors succéder
les crimes, gradation où se creuse encore davantage l’écart entre le personnage
construit par la scénariste et le Campos que la fiction pessoenne nous a légué, en
particulier le dernier Campos, « O Engenheiro aposentado »19 du début des années
trente. Dès lors, ce sont les meurtres successifs perpétrés par Campos sur ses rivaux
hétéronymes qui vont donner le tempo narratif de Não Sou Nada.
Dans sa quête éperdue de l’exclusivité, Campos assassine d’abord Reis et
Caeiro dans la maison de ce dernier à la campagne (le crime intervient entre les
scènes 31 et 32), avant de les démembrer et de brûler leurs corps dans la cheminée
(scène 32). Un peu plus loin, on déduit des indications de la scène 38 que Search et
Anon, dont les urnes funéraires sont alignées sur la cheminée de Campos aux côtés
de celles de Caeiro et Reis, ont subi le même sort20. Suit à la scène 55 la mort par
pendaison du Baron de Teive, que Campos assiste activement en passant lui-même
la corde au cou du Baron suicidaire, avant de retirer le tabouret qui le soutenait
encore. Pour accomplir ce nouveau forfait, Campos s’est rendu exprès en automobile
dans la quinta du Baron à Macieiras au nord du Portugal, d’où il revient à Lisbonne
pour brûler les manuscrits qu’il a arrachés de force à Pessoa plus tôt dans le récit21,
la destruction des textes suivant logiquement la série des homicides perpétrés sur
ceux à qui ces écrits avaient été attribués. Enfin, un ultime assassinat semble venir
couronner l’épopée meurtrière de Campos, quand ce dernier, qu’on a vu guettant
« O Engenheiro aposentado (1931-1935) » est le titre de la 4ème et dernière section de l’édition citée
Poesia de Álvaro de Campos (PESSOA 2013b: 437).
19
Les détails particulièrement sinistres de ces mises à mort font de l’auteur de « Tabacaria » un avatar
inattendu de deux criminels célèbres du XXème siècle, Landru et le Docteur Petiot, entrés dans la
légende noire du crime pour avoir démembré et brûlé leurs victimes. Plus tôt dans le scénario, avant
que ne commence la série des meurtres, une didascalie décrivant Campos dans sa salle de bain nous
mettait d’ailleurs sur la voie de ce qui allait suivre : « Depois abre a gaveta de um armário branco. Lá
dentro reluz uma colecção de facas, bisturis e complicados objectos pontiagudos e cortantes » (scène 13). Le
texte de Luísa Costa Gomes fait signe ici vers une mémoire culturelle et un imaginaire qui se situent
bien au-delà des références propres à la communauté des Pessoens.
20
A la fin de la longue scène 7 où se produit la première confrontation entre les deux personnages,
Campos s’empare des écrits sur le bureau de Pessoa et menace de les garder en otage jusqu’à ce que
son œuvre à lui soit prête : « CAMPOS: – Retenho as obras dos outros até a minha estar pronta. Por
precaução, para não te dispersares » (COSTA GOMES, 2015-2018: scène 7).
21
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Soares à la scène 64, annonce à Pessoa la chute mortelle de l’auteur le plus connu du
Livro do desassosego dans les escaliers de l’immeuble où il vit :
PESSOA:
– O Bernardo Soares, é dele que falas?
– Caiu pela escada abaixo, coitado.
PESSOA: – Já? Esperava que fosse um pouco mais tarde…
CAMPOS: – Ainda tentei deitar-lhe a mão, mas…
PESSOA: – Não foste a tempo. Já o esperava.
CAMPOS: – Plantaste-o no meu caminho. Porque me escondes alguma coisa. Mas sabes que
não podes, nós dois somos um e o mesmo.
PESSOA: – Mataste os companheiros do meu espírito.
(COSTA GOMES, 2015-2018: scène 65)
CAMPOS:
C’est une fin annoncée que celle de Soares, qui avait en quelque sorte été jeté en
pâture à Campos par Pessoa, sur les conseils de Quaresma qu’il était allé consulter,
étant inquiet pour lui-même du comportement de sa créature. Au terme de son
équipée sanglante, Campos se tient seul face à Pessoa, dans un tête-à-tête qui
figure visuellement, et où se dit par la parole, le désir de fusion de l’hétéronyme
avec son créateur :
avança para PESSOA e ficam frente a frente no quarto.
aproxima-se muito de PESSOA. De repente, junta a cabeça à cabeça dele, testa com testa. São
dois perfis que se misturam.
CAMPOS (querendo entrar todo na cabeça de PESSOA) : - Quero isso tudo que aí está dentro! Tu
és eu. O meu eu.
(COSTA GOMES, 2015-2018: scène 65)
CAMPOS
CAMPOS
Face à la demande impérieuse de Campos, Pessoa répond alors en désignant la
feuille où il vient d’écrire les premiers vers de « Tabacaria » signés de son propre nom,
d’où s’ensuit un ultime affrontement qui se termine sur l’image symbolique des
deux personnages luttant pour se libérer l’un de l’autre sans parvenir à se séparer :
pega na folha.
CAMPOS: – « Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada ». Fernando
Pessoa. Vem assinado por ti. Tabacaria, de Fernando Pessoa.
PESSOA: – Esse sou eu, é meu, inteiramente meu.
CAMPOS: – Não! Não tens esse direito!
CAMPOS atira-se sobre PESSOA em silêncio, lutam sem lutar, ambos no escuro. São duas figuras
abraçadas que se querem libertar uma da outra e continuam agarradas, cada uma, à vez,
rechaçando e enlaçando a outra.
(COSTA GOMES, 2015-2018: fin de la scène 65)
CAMPOS
Une ultime péripétie intervient toutefois dans le récit à la scène 68, qui introduit un
renversement final puisque c’est Soares que l’on y voit précipiter Campos dans les
escaliers, suite à une habile « rasteira » sur laquelle on reviendra. La toute dernière
scène, affectée d’un fort degré d’irréalité, montre alors Pessoa déambulant à la fin
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du jour dans les rues de Lisbonne, de la Baixa jusqu’à la Brasileira au Chiado, tandis
que d’innombrables Pessoas circulent autour de lui et le saluent. Apercevant, incrédule, Soares tournant au coin de la rue, Pessoa s’engage sur les traces de celui qui,
selon cette fin alternative, l’aurait libéré de son persécuteur (scène 70 et dernière).
Ainsi résumée à grands traits, la diégèse de Não Sou Nada semble très éloignée de la fiction hétéronymique élaborée par Pessoa. Si l’on excepte la donnée
initiale du retour de Campos à Lisbonne, les principaux événements narratifs qui
donnent la ligne directrice du scénario de Luisa Costa Gomes, à savoir les meurtres
successifs perpétrés par Campos, sont absents de l’univers fictif conçu par Pessoa,
voire contradictoires avec ce que l’on sait de ce monde que son auteur a désigné
par l’expression de « coterie inexistente »22. En particulier, la violence exercée par
Campos à l’encontre de Caeiro paraît contrevenir aux sentiments exprimés dans
cette pièce maîtresse de la fiction hétéronymique pessoenne, les Notas para a recordação
do meu mestre Caeiro (algumas delas). Dans ce texte, l’admiration et l’affection pour le
« mestre » sont partout sensibles, de même qu’est évident le caractère initiant, et
bouleversant, de la rencontre avec celui que Campos définit comme incarnant à lui
seul « [um] outro universo ». Et dans le dernier fragment publié des Notas, on
trouve cette confidence : « foi uma das angústias da minha vida — das angústias
reais em meio de tantas que têm sido fictícias — que Caeiro morresse sem eu estar
ao pé dêle 23» (PRESENÇA, 1993, tomo II, nº 30, Jan.-Fev. 1931: 15). Compte tenu du
fait que, selon le scénario de Luísa Costa Gomes, c’est bien parce qu’il est « ao pé
dêle » que Caeiro meurt des propres mains de Campos, on pourrait conclure à un
complet renversement par rapport à la fiction hétéronymique élaborée par Pessoa.
Or il n’en est rien, car dans Não Sou Nada, comme dans les Notas, Campos dit son
admiration pour Caeiro et on le voit pleurer sa mort puis prononcer les paroles
mêmes qui sont consignées dans le texte des Notas para a recordação do meu mestre
Caeiro (algumas delas) :24
CAMPOS:
– É o nosso Mestre. De todos nós. Teu, e meu, e do Reis. O que ele escreveu, é
admirável e eu admiro-o. Mas não escreve mais nada, ou terei de tomar medidas.
PESSOA: – Medidas?
CAMPOS: – Não me faças perder a paciência. Agora somos só tu e eu.
(COSTA GOMES, 2015-2018: scène 25)
L’expression apparaît dans la fameuse lettre à Adolfo Casais Monteiro du 13 janvier 1935, dans
laquelle Pessoa écrit, tout de suite après avoir rapporté la façon dont sont successivement apparus
Caeiro, Reis puis Campos : « Criei então uma coterie inexistente » (PESSOA, 1999: 343).
22
Les Notas ainsi que les différentes versions préparatoires et variantes de ce texte, composent un
important ensemble présenté dans PESSOA (2014 : 451-488).
23
24
Le passage repris dans Não Sou Nada appartient à la première section des Notas (PESSOA, 2014: 454).
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CAMPOS,
de joelhos a um canto da sala, chora convulsiva e descontroladamente. CAEIRO, caído a seu
lado, muito pálido, tem na cara uma expressão de grande serenidade. CAMPOS põe-lhe a mão
sobre a cara e fecha-lhe os olhos claros. […]
CAMPOS: – Meu mestre, meu mestre querido! Meu mestre perdido tão cedo! Foi durante a
nossa primeira conversa, ele disse: “tudo é diferente de nós, é por isso que tudo existe”.
Esta frase seduziu-me com um abalo, como o de todas as primeiras posses, que me
entrou nos alicerces da alma.
CAMPOS levanta-se, tenta controlar a emoção terrível.
(COSTA GOMES, 2015-2018: scène 32)
Dans le scénario de Luísa Costa Gomes, la mise à mort de Caeiro par Campos n’est
donc pas le fait d’un psychopathe agissant de sang-froid, elle suscite une émotion
comparable à celle que manifeste l’auteur des Notas. La reprise du texte des Notas
dans cette scène instaure alors une forme de continuité entre le Campos de la
fiction hétéronymique et son avatar transfictionnel, tous deux éperdus d’admiration
pour leur jeune « maître ». En dépit de l’écart majeur produit par la métamorphose
de l’Ingénieur en serial killer, le protagoniste de Não Sou Nada ne se sépare donc pas
complètement de son modèle pessoen, y compris dans le moment qui paraît l’en
éloigner le plus, celui du meurtre. De même, sur le plan du récit, un certain nombre
de « passerelles diégétiques »25 établissent des passages d’un monde fictionnel à
l’autre, qui contribuent à réduire la distance créée par la mise en place dans la
fiction seconde d’une intrigue absente de la fiction première.
La plus repérable de ces passerelles concerne la relation entre Ofélia et
Pessoa, que Campos vient perturber à plusieurs reprises dans Não Sou Nada, où son
intromission dans le « namoro » est explicitement motivée par le désir que Pessoa
se consacre exclusivement à le doter d’une œuvre : « CAMPOS: – Andas outra vez
distraído com a Ofelinha! » (COSTA GOMES, 2015-2018: scène 25). Le harcèlement
auquel se livre Campos, qu’on voit poursuivre le couple dans la rue et menacer
Pessoa – « CAMPOS (ameaçador, indicando OFELIA) – Quando eu digo pára, nunca
continues » (COSTA GOMES, 2015-2018: scène 37) – semble d’ailleurs avoir atteint
son but, puisque Ofélia, qu’on a aperçue seule sur un banc du Jardim da Estrela où
elle se lamente du silence de son bien-aimé Nininho (scène 44), disparaît ensuite de
la scène pour n’être plus mentionnée que dans cette réplique laconique de Pessoa
venu trouver Quaresma et lui faire part des persécutions que lui inflige Campos :
« PESSOA : – Proibiu-me a Ofélia » (COSTA GOMES, 2015-2018: scène 58). Parfaitement
cohérente, dans le scénario, par rapport au personnage de Campos et à son programme narratif qui consiste à éliminer tout obstacle s’interposant entre lui et Pessoa,
l’éviction d’Ofélia par Campos, loin de contrevenir aux données de la fiction
première, semble ici les prolonger. Dans Não Sou Nada, les menaces de Campos
font en effet écho au rôle de perturbateur joué par l’encombrant Ingénieur dans la
Richard Saint-Gelais forge cette expression pour désigner les éléments diégétiques qui, repris dans
l’univers fictionnel second, font le lien avec l’univers fictionnel de départ (SAINT-GELAIS, 2011: 23)
25
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relation entre Ofélia Queiroz et Fernando Pessoa, telle que leur correspondance
nous la donne à lire. Nombreuses en effet sont les lettres où Ofélia se plaint à
« Nininho » des intrusions dans leur intimité de « o tal senhor Álvaro de Campos »,
et l’on peut même inférer des deux dernières lettres adressées à Ofélia par Pessoa
lors du premier épisode de leur « namoro », que Campos a été partie prenante
dans le dénouement de leur relation26. Selon cette hypothèse, le scénario élaboré
par Luísa Costa Gomes s’inscrirait dans le droit fil de la fiction hétéronymique
pessoenne, conférant à Campos la même fonction actancielle que Pessoa lui a fait
jouer en l’instrumentalisant au moment de sa rupture avec Ofélia. Certes, on
pourra objecter qu’ici il ne s’agit pas véritablement d’une relation transfictionnelle,
puisque ce type de relation ne saurait s’établir qu’entre deux fictions, alors que les
lettres ont été échangées entre les deux personnes réelles qu’étaient Ofélia Queiroz
et Fernando Pessoa. Toutefois, la présence insistante de Campos au sein de ces
échanges, dès la première phase du « namoro » en 1920 et de manière plus accentuée
encore dans sa seconde phase entre la fin de l’année 1929 et le début de l’année
1930, permet de considérer que cette correspondance a partie liée avec la fiction
hétéronymique27. Plus précisément, les lettres portent la trace de la façon dont la
relation entre Fernando et Ofélia s’est trouvée prise par moments dans la fiction
hétéronymique, les interventions de Campos venant alors fictionnaliser le texte des
lettres et ratifier la capacité de la fiction hétéronymique à contaminer la réalité28.
C’est pourquoi il est légitime de parler de passerelle diégétique et de relation
transfictionnelle entre d’une part le texte des lettres échangées entre Ofélia Queiroz
et Fernando Pessoa, et d’autre part le monde fictionnel de Não Sou Nada, où le
La lettre pénultième, qui précède d’un peu plus d’un mois la rupture, en constitue bien la
préfiguration si on considère que l’échange d’identité entre Campos et lui qu’invoque Pessoa vaut
déjà comme un avertissement de ce qui va suivre : « Afinal o que foi ? Trocaram-me pelo Álvaro de
Campos ! » (Lettre du 15-10-1920, PESSOA, 2023: 88). Quant à la dernière lettre, il n’est pas aberrant
d’y reconnaître, parmi les redoutables « Maîtres qui n’autorisent ni ne pardonnent », la présence
invisible du tyrannique Ingénieur : « O meu destino pertence a outra Lei, de cuja existência a Ophelinha
nem sabe, e está subordinado cada vez mais á obediencia a Mestres que não permitten nem perdoam »
(Lettre du 29-11-2020, PESSOA, 2023: 90).
26
Une autre façon, plus radicale, d’intégrer la correspondance à la fiction hétéronymique, serait de
considérer que les lettres adressées par Pessoa à Ofélia sont elles-mêmes dues à un auteur fictif,
Pessoa-Nininho, ou Pessoa-Ibis, hypothèse que conforteraient à la fois la signature « Ibis » utilisée
par Pessoa dans plusieurs de ses lettres, et son identification au nom de Nininho, dont les occurrences
sont très nombreuses dans les lettres, en particulier dans la première phase du « namoro ».
27
Que la fiction hétéronymique vienne contaminer la réalité est encore attesté par le fait que Campos
écrive « en personne » une lettre à Ofélia, ce qui amène très logiquement les responsables de
l’édition des œuvres de Pessoa chez Tinta-da-China à inclure cette lettre à la fois dans le volume des
œuvres complètes de Álvaro de Campos et dans celui des lettres de Pessoa à Ofélia (la lettre de
Campos-Pessoa à Ofélia, datée du 25-9-1929, figure dans PESSOA (2014: 550-551) et dans PESSOA
(2023: 52). Ofélia répond d’ailleurs à cette lettre par une courte missive adressée le lendemain à
« Ex.mo Senhor Engenheiro Álvaro de Campos » (lettre du 26-9-1929, QUEIROZ, 1996: 208).
28
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comportement de Campos confirme, en l’explicitant, le rôle que Pessoa lui aurait
attribué dans le cadre de sa relation avec Ofélia.
Un autre passage, plus secret, relie souterrainement la fiction hétéronymique
pessoenne à la diégèse de Não Sou Nada. En indiquant précédemment que rien ne
prédisposait l’auteur des Grandes Odes à se faire le meurtrier de son maître admiré,
on se référait aux Notas, pièce majeure par laquelle Pessoa a conféré une existence
en quelque sorte officielle à la « coterie inexistente », puisque ce texte a été publié de
son vivant dans la revue Presença. Dans ce texte, la reconnaissance par Campos du
statut de « mestre » de Caeiro, la dévotion qu’il manifeste à l’égard de l’auteur du
Guardador de Rebanhos, semblent a priori exclure une relation de rivalité entre les
deux hétéronymes. Or, à un niveau demeuré occulté de la fiction hétéronymique,
on peut repérer des éléments qui contiennent les ferments d’une relation de concurrence entre les deux hétéronymes. En effet, selon un document daté de mai 1914 dans
lequel Pessoa projette la carrière poétique d’Alberto Caeiro, celle-ci devait s’ordonner
en trois phases successives, dont la deuxième recouvrirait exactement la production
poétique qui sera finalement attribuée à Campos : 1. O Guardador de Rebanhos 19111912 ; 2. Cinco Odes Futuristas (1913)-1914 ; 3. Chuva Oblíqua (Poemas Inters.) 1914.
Fig. 1. BNP/E3, 48-27r (détail) ; disponible en ligne :
https://purl.pt/1000/1/alberto-caeiro/indice/galeria-04.html
Selon ce document de 1914, il a donc existé un état de la fiction hétéronymique où
c’est Caeiro, et non Campos, qui se serait fait le hérault du Futurisme au Portugal.
Et il y a fort à parier que c’est cet élément peu connu de l’histoire mouvante de la
fiction hétéronymique qui est exploité dans Não Sou Nada, où immédiatement
après l’arrivée de Campos à la gare du Rossio, une première confrontation
l’oppose à Alberto Caeiro qui est présenté dans la didascalie introductive comme le
« poeta futurista ALBERTO CAEIRO ». Les deux scènes concernées méritent d’être
citées in extenso car elles éclairent parfaitement le processus transfictionnel mis en
œuvre par Luísa Costa Gomes :
Cena 4. Ext. Noite. Lisboa. Restauradores.
Nos Restauradores, um grupo de cinco rapazes encaminha-se para o Rossio, encabeçado pelo poeta
futurista ALBERTO CAEIRO. […] Têm todos um ar marcial. Marcham atrás de CAEIRO.
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(da Ode Marcial) :
Clarins na noite. Clarins na noite. Clariiiins.
É de cavalgada. É de cavalgada, de cavalgada,
É de cavalgada, de cavalgada, de cavalgada
O ruído, ruído, ruído agora já nítido.
Vejo-os no coração e no horror que há em mim…
CAEIRO
Cena 5. Ext. Noite. Porta da estação do Rossio.
CAMPOS ouve primeiro o clamor, depois vê CAEIRO, que vê CAMPOS. Olha o grupo com ar trocista.
CAEIRO pára diante de CAMPOS altivo, agressivo.
CAEIRO: – Então, já cá estás outra vez?
CAMPOS: – E tu, ainda cá estás?
CAEIRO: – E estarei.
CAMPOS: – Veremos. E continuas todo futurista…
CAEIRO: – Pelos vistos já somos dois.
CAMPOS: – Não te cansa seres o poeta futurista Alberto Caeiro? Sempre futurista, adiante e
parado no tempo? Olha que é bem caricato esse colete! Mas passa pelo meu alfaiate…
CAEIRO: (cortando) – Ficas muito tempo?
CAMPOS: – O que for preciso.
CAMPOS e CAEIRO, frente a frente, olham-se com inimizade. CAEIRO faz um sinal à sua trupe e
afasta-se sem se despedir.
CAMPOS (extremamente raivoso, para si próprio): – Que nenhum filho da puta se me atravesse
ao caminho! O meu caminho é pelo infinito fora até chegar ao fim!
(COSTA GOMES, 2015-2018 : scènes 4 et 5)
On voit ici comment s’élabore dans toute sa subtile complexité la fiction seconde
proposée par Luísa Costa Gomes. Prenant appui sur une variante demeurée sans
suite de la fiction hétéronymique, l’écrivaine fait surgir au seuil de son récit un
Alberto Caeiro paré de tous les attributs du poète futuriste que fut Campos, à
commencer bien sûr par ses attributs textuels, puisque Caeiro entre en scène en
citant des vers de « Ode Marcial », que le lecteur familier de l’œuvre de Pessoa &
Companhia identifie spontanément comme appartenant à Álvaro de Campos 29 .
C’est donc bien un rival de Campos en Futurisme (« Pelos vistos já somos dois »)
qui apparaît sous les traits de Caeiro dans ces scènes liminaires. Ce faisant, la scénariste invente un Caeiro inédit et opère une manipulation des attributions, puisque
c’est bien à Campos et non à Caeiro qu’est attribué le poème « Ode Marcial » selon
la fiction hétéronymique qui fait autorité, si bien que le lecteur familier de l’univers
pessoen peut conclure à une imposture de la part de Caeiro, imposture imputable à
l’imagination de la scénariste. Or cette invention-manipulation, véritable coup de
force au début du récit, est à la fois nécessaire et motivée : nécessaire sur le plan
diégétique car elle permet d’amorcer l’intrigue de Não Sou Nada, dont le moteur est
bien un conflit pour l’autorité qui amène Campos à éliminer ses concurrents, et
motivée par rapport à la relative instabilité de la fiction hétéronymique, dont au
29
Il s’agit des vers 1-2 puis 8-13 de « Ode Marcial » (PESSOA, 2013b: 147).
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moins un document atteste l’hypothèse d’un Caeiro auteur des « Odes futuristes »
en lieu et place de Campos. En actualisant cette hypothèse dans son scénario, et en
montrant d’emblée un Caeiro futuriste s’appropriant les vers et la posture provocante de Campos, Luísa Costa Gomes donne de la consistance à son parti pris
narratif, qui fait de l’Ingénieur un avatar de la figure du vengeur revenu à Lisbonne
pour régler ses comptes et restaurer30 son « autorité », terme à entendre ici au sens
de statut d’auteur. Cette interprétation induite par la lecture des premières pages du
scénario va toutefois se trouver compliquée quand on apprendra, à la faveur d’un
échange ultérieur entre Pessoa et Campos, que ce serait en fait Campos l’usurpateur
qui se serait indûment arrogé le rôle que Pessoa destinait à Caeiro :
CAMPOS: – O Caeiro…coitado…eu sei que gostas dele… Mas a verdade é que ele já te passou.
PESSOA:
– Criei-lhe outra poesia, uma nova, que vai numa direcção inteiramente nova, para
não te achares de novo em rota de colisão com ele!
CAMPOS: – E a mim, o que me dás? Fico sem nada!
PESSOA: – Usurpaste a identidade que era a dele! E agora parece que não queres tê-la.
(COSTA GOMES, 2015-2018: scène 23)
Selon cette version des faits, qu’on peut dire « autorisée » à l’intérieur de la fiction
seconde, puisqu’elle émane du personnage de Pessoa lui-même, c’est bien Campos
et non Caeiro qui aurait commis l’appropriation abusive, amenant Pessoa à créer
pour Caeiro une poésie toute différente de celle des Grandes Odes futuristes, afin
de désamorcer un potentiel conflit entre les deux hétéronymes. Ici, la scénariste
complète la version, restée à l’état de pure virtualité dans la fiction hétéronymique
pessoenne, selon laquelle Caeiro était destiné par Pessoa à être l’auteur des « Cinco
Odes Futuristas », en extrapolant que s’il n’en a pas été ainsi, c’est en raison d’une
usurpation de Campos. Cet élément diégétique supplémentaire développe le personnage de Campos dans le sens du scénario, qui fait de l’hétéronyme une créature
insatiable, dominée par une irrépressible pulsion d’omnipotence poétique. Ce développement s’inscrit d’ailleurs de manière cohérente dans le prolongement du
programme qui a été assigné par Pessoa à Campos dans la fiction hétéronymique :
« tout sentir de toutes les manières ». En imaginant que Campos revient à Lisbonne
pour réclamer l’exclusivité de la création littéraire dont Pessoa est l’auteur, Luísa
Costa Gomes a mis en relief la dimension totalitaire de ce programme mis à
l’enseigne du « todo », en prenant en quelque sorte « au pied de la lettre » le mot
d’ordre sensationniste de Campos. La suite de l’échange confirme les prétentions
de Campos, qui ne saurait se satisfaire du partage des autorités que lui propose
Pessoa. Pour celui qui revient à Lisbonne animé par un désir de réparation, il n’est
pas question d’être seulement le poète sensationniste mis en vedette quelques
années auparavant par la revue Orpheu. Et afin de légitimer sa demande d’être
30
Est-ce un hasard si la confrontation liminaire entre Caeiro et Campos a lieu à Praça dos Restauradores ?
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davantage que l’auteur des Grandes Odes, il invoque la loi naturelle du changement, qu’il rappelle en ces termes à son créateur : « Eu vou mudando, o natural é
que mude assim » (scène 23). Revenu à Lisbonne et revenu de sa période sensationniste31, Campos revendique son droit à une nouvelle existence poétique mais, à
l’évidence, la création poétique de ce qui serait un « second Campos » ne fait pas
partie des priorités de Pessoa. La protestation de l’hétéronyme – « Fico sem
nada ! » –, réitérée plus loin dans le scénario (« E eu sem nada ! », scène 49), résonne alors en écho au Não Sou Nada qui donne son titre au texte dont il est le
protagoniste. Négligé par Pessoa qui n’a pas tenu sa promesse d’achever Arco do
Triunfo où son œuvre devait être recueillie et magnifiée, absent des projets qui
mobilisent son créateur, poétiquement dés-œuvré quand il revient à Lisbonne,
Campos, le poète du « tout », pourrait en effet à bon droit reprendre pour luimême les mots du titre : « Je ne suis rien ».
Comme on peut le constater, la variante inédite de la fiction hétéronymique
pessoenne, selon laquelle c’est à Caeiro que serait revenue la paternité de l’œuvre
futuriste, trouve divers prolongements dans Não Sou Nada. Avec d’autres éléments,
cette passerelle diégétique concourt à tisser des liens entre la fiction élaborée par
Luísa Costa Gomes et le monde fictionnel inventé par Pessoa. Hétéronymicide
multirécidiviste, le Campos revisité que nous propose l’écrivaine n’en est donc pas
moins fortement relié au monde fictionnel dont il est issu, en dépit de cette
déviation inédite sur laquelle repose toute l’intrigue mise en place dans le scénario.
Toutefois, si le récit second de Luísa Costa Gomes s’avère éminemment pessoen,
c’est moins par les événements qu’il rapporte que par le matériau textuel dont il est
composé. En effet, dans Não Sou Nada, la transfictionnalité est d’abord une affaire
de textualité, qui se joue dans les mots eux-mêmes.
Jeux textuels : emprunts, montages, détournements.
A l’intérieur du cadre narratif d’ensemble qu’elle s’est donné, Luísa Costa Gomes
déploie une écriture fondée essentiellement sur la reprise d’éléments préexistants
empruntés aux écrits de Pessoa. Ces éléments, en provenance de poèmes aussi bien
que de textes en prose, forment la matière première du texte de Não Sou Nada, de
telle sorte que le processus transfictionnel prend ici la forme singulière d’une migration textuelle entre le corpus des écrits pessoens et la fiction seconde imaginée par
Si Campos raille le côté obsolète des élans futuristes de Caeiro qu’il considère « parado no
tempo », la dernière réplique de la scène amène à nuancer l’idée que l’Ingénieur aurait lui-même
dépassé cette phase de sa production, puisqu’il parle encore le langage des Grandes Odes en
reprenant « à son propre compte » deux vers de « Saudação a Walt Whitman » : « Que nenhum
filho da puta se me atravesse ao caminho! | O meu caminho é pelo infinito fora até chegar ao fim!
(vers 82-83, PESSOA, 2013b: 164). Du reste, débarquant du train à la scène 2, il déclamait déjà des
vers de « Ode Triunfal » avant sa rencontre avec Caeiro.
31
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l’écrivaine. Ce phénomène, qui sature pratiquement tout l’espace scriptural du scénario, manifeste à la fois une connaissance très intime du matériau pessoen, une
attitude ludique parfaitement assumée, et une singulière inventivité dans l’art
d’intégrer les éléments prélevés à la trame narrative mise en place. Un premier
exemple nous en donne la mesure, qui se présente dès l’ouverture du texte.
Débarquant à la gare du Rossio, Campos reconnaît le porteur de bagages, un
certain Carlos Otto, qui le salue à son tour, s’empresse de charger les nombreux
bagages du voyageur sur un chariot et entame un dialogue animé avec « o
Engenheiro Campos » qui se lance dans une déclamation de « Ode Triunfal »,
qu’Otto poursuit à l’unisson avec lui, à la grande surprise du poète : « CAMPOS: –
Ah, conheces isto ?! OTTO: – A Ode Triunfal ! Foi aí um escândalo ! » (scène 2) Suit, à
la demande de Campos qui l’interroge sur l’état d’avancement de son Tratado de
Luta Livre, une explication détaillée de la technique de la « rasteira » par Carlos
Otto, qui, joignant le geste à la parole, entreprend de faire sur Campos une démonstration de ladite technique mais se retrouve promptement mis au sol par ce
dernier, « enquanto CAMPOS ri com gosto, triunfante » (scène 2) 32. Grâce au précieux
volume qui répertorie et présente les 136 auteurs fictifs inventés par Pessoa, le
lecteur de Não Sou Nada aura pu reconnaître dans cette scène qui marque l’arrivée
de Campos à Lisbonne un passage presque inchangé du Tratado de luta livre, traité
attribué par Pessoa à Carlos Otto et reproduit dans Eu sou uma antologia33. On a
donc affaire ici à une première migration textuelle depuis la sphère des écrits
pessoens jusqu’au scénario, migration qui s’opère indépendamment des rapports
qui existent, ou pas, entre les personnages qui peuplent la fiction hétéronymique
d’origine. En l’occurrence, s’il n’existe aucune relation entre Álvaro de Campos et
Carlos Otto dans les écrits de Pessoa, on comprend néanmoins très bien comment
la rencontre entre ces deux personnages peut faire sens dans le cadre de la fiction
imaginée par Luísa Costa Gomes. Outre l’élément d’exposition concernant Ode
Triunfal, qui renvoie au scandale provoqué par la publication du premier numéro
de la revue Orpheu où le poème de Campos a paru en mars 1915, la saynète de la
« rasteira » permet de situer immédiatement le personnage de Campos et de
Le terme « triunfante » n’est pas là par hasard, il fait un écho en forme de clin d’œil au poème « Ode
Triunfal » cité par Campos quelques instants auparavant dans la même scène. Le jeu transfictionnel
déborde ainsi à plusieurs reprises de l’espace du dialogue pour s’étendre aux didascalies, et cela dès
l’entrée en scène de Campos qui est présenté comme « alto, seco e elástico », ce dernier adjectif
faisant signe en direction du vers final de « A Passagem das horas » : « Meu ser elástico, mola, agulha,
trepidação… » (version du texte datée du 22-5-1916, PESSOA, 2013b: 205).
32
Carlos Otto, qui outre son traité de lutte libre est l’auteur de trois sonnets, aurait été inventé par
Pessoa vers 1909 dans le contexte des années de l’entreprise Íbis, en vue d’une collaboration aux
journaux O Phosphoro et O Iconoclasta dont Pessoa avait projeté la publication. Il était également
prévu qu’Otto contribue aux publications de Íbis comme traducteur d’un ouvrage de langue anglaise.
Aucun des textes ou fragments de textes attribués à Carlos Otto n’a été publié par Pessoa (PESSOA,
2013a: 319-327, 324-325 pour le passage sur la « rasteira » repris du Tratado de lucta livre).
33
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préparer sa trajectoire narrative à venir34. L’interaction avec Carlos Otto, auteur du
Tratado de luta livre, établit en effet la prédisposition de Campos au combat, que la
suite du récit va confirmer. Façon plaisante et efficace pour la scénariste de montrer
que c’est un lutteur qui revient à Lisbonne, et non le personnage désenchanté et
« revenu de tout » construit par la fiction hétéronymique pessoenne. Ce faisant, la
scénariste restaure une forme de continuité temporelle entre le poète sensationniste
des années héroïques d’Orpheu et le Campos qui « revisite Lisbonne » des années
plus tard, là où Pessoa avait marqué une césure. Quelque chose de l’énergie et de
l’agressivité dont l’auteur des Grandes Odes était porteur se retrouve dès l’apparition
de Campos dans Não Sou Nada, disposition qui va trouver ensuite à s’actualiser, en
s’exacerbant, dans la série des meurtres. C’est donc par les moyens proprement
littéraires d’un montage textuel de citations – prélèvement de fragments inédits
d’un auteur fictif méconnu (le Tratado d’Otto), déclamation par Campos des vers
de « Ode Triunfal » –, que l’écrivaine met en œuvre la transfictionnalité dans le
texte du scénario, et cela dès son ouverture.
En progressant dans la lecture de Não Sou Nada, on s’aperçoit que la plupart
des répliques du dialogue, et même certaines indications contenues dans les
didascalies, proviennent des écrits de Pessoa. À cet égard, la méthode d’écriture
suivie par Luísa Costa Gomes, qui consiste à emprunter des fragments de textes de
Pessoa pour les monter selon un ordre nouveau de façon à produire une œuvre
originale, n’est pas sans rappeler le genre littéraire ou musical du centon35. Dans le
centon littéraire, dont les intentions peuvent varier entre l’éloge du modèle repris
et le détournement satirique, la matière première est en effet intégralement empruntée
à des textes-sources, parfois de différents auteurs. Toute la valeur du centon réside
alors dans l’art de choisir les morceaux à prélever, qu’il s’agisse de vers ou de
prose, et de les agencer de manière surprenante et créatrice au sein d’une œuvre
dont la nature rhapsodique n'empêche pas la cohérence du propos. C’est précisément ce travail de prélèvement et de réarrangement au service d’une fiction
nouvelle qu’on peut observer tout au long de Não Sou Nada. Compte tenu du grand
nombre d’exemples disponibles, on se contentera d’indiquer quelques occurrences
représentatives des différentes modalités que prennent ces opérations d’emprunts
et de montage, en prêtant attention aux effets de sens qui peuvent résulter du
La « rasteira » qui marque l’entrée en scène « triunfante » de Campos fera retour à la toute fin du
récit, quand il tentera de précipiter Soares dans les escaliers, mais la manœuvre se retournera alors
contre l’impétueux Ingénieur, entrainant sa chute mortelle : « SOARES, que é nitidamente o mais fraco,
o mais franzino, usa a força de CAMPOS para uma última rasteira de jiu-jitsu. CAMPOS cai de costas
desamparado pela escada. O seu corpo retorcido aterra no patamar e ele não se mexe mais. » (scène 68) D’une
« rasteira » à une autre, fatale celle-là, la boucle est bouclée dans le scénario de Luísa Costa Gomes.
34
Essentiellement pratiqué depuis l’Antiquité jusqu’au 17e siècle, le genre du centon trouve des
prolongements dans la littérature contemporaine, notamment chez des écrivains liés à l’Oulipo, tels
Georges Perec, Italo Calvino, Jacques Roubaud.
35
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changement de contexte, lorsque des énoncés migrent de la fiction hétéronymique
pessoenne à la fiction seconde élaborée par Luísa Costa Gomes.
Une première modalité de reprise du texte pessoen, majoritaire dans Não
Sou Nada, consiste à attribuer des énoncés au personnage qui en est déjà l’auteur
dans la fiction hétéronymique de référence. Les reprises textuelles sans changement
d’auteur sont évidemment facilitées dans le cas du personnage de Pessoa, dans la
mesure où le matériau disponible est très abondant. En particulier, les nombreux
textes en prose écrits par Pessoa « en personne » constituent une réserve immense
dans laquelle Luísa Costa Gomes peut puiser librement selon les besoins du
scénario. Ainsi, à la scène 22, où l’on voit Pessoa déambuler passablement alcoolisé
dans les rues de Campo de Ourique la nuit, son monologue reprend d’abord le
début du texte « Plano de vida »36, puis se poursuit à la fin de la scène avec un
passage de son journal de 1915 37 , tandis que dans l’intervalle intervient un
dialogue avec un hétéronyme peu connu, le Dr Nabos, échange pour lequel une
partie des répliques de Pessoa provient également de ses écrits intimes38. La scène
résulte donc d’un montage de différents textes-sources pessoens, auxquels ont été
apportés quelques ajouts qui permettent de les actualiser par rapport à leur
nouveau contexte. Ainsi, une référence à Ofélia est « greffée » par la scénariste à la fin
de la citation du « Plano de vida » – « Mas isto é para mim, homem solteiro… a
viver com a mãe e a irmã… mas agora com a Ofélia… » (COSTA GOMES, 2015-2018:
scène 22) –, ajout qui infléchit le sens des propos cités, en les donnant à entendre
par rapport à la relation entre « Nininho » et Ofélia telle qu’elle est évoquée dans
Não Sou Nada.
Si l’emprunt se trouve dans l’exemple précédent assorti d’un ajout textuel,
la scénariste n’a pas toujours à recourir à ce subterfuge pour que s’opère une
réactualisation du sens des énoncés prélevés dans les écrits pessoens. Le contexte
de la fiction seconde peut en effet suffire à donner aux énoncés empruntés un sens
potentiellement différent de celui qu’ils pouvaient avoir dans leur contexte initial.
C’est le cas par exemple à la scène 16, lorsque Campos regarde Lisbonne à sa
fenêtre au lever du jour et prononce des vers de « Lisbon Revisited (1926) », tandis
qu’à l’arrière-plan, on aperçoit les corps endormis de Charles Anon et Alexander
Search, que Campos avait invités à passer la soirée chez lui, où il les avait fait boire
Le monologue de la scène 22 s’ouvre par « Precisas de um plano, um plano para a tua vida… » et
reprend à partir de là, sous une forme légèrement modifiée, le premier paragraphe du texte « Plano
de vida », traduction du « Plan of Life » recueilli dans PESSOA (2003: 178-179).
36
37
Il s’agit du début du paragraphe « Se eu pudesse dedicar-me a qualquer coisa » (PESSOA, 2003: 155).
Voir par exemple cette réplique insérée dans le dialogue entre Pessoa et le Dr Nabos : « Sou como
um quarto com inúmeros espelhos fantásticos … » (PESSOA, 1966 : 93). Concernant le Dr Nabos,
hétéronyme dont la création remonte aux années d’adolescence à Durban, voir la présentation qui
lui est consacrée dans PESSOA (2013a: 180-182).
38
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avant d’entraîner Search dans sa chambre (COSTA GOMES, 2015-2018: scènes 12 à 14).
La scène étant très courte, on peut la citer dans son intégralité :
CENA 16. INT. NOITE CASA DE ÁLVARO DE CAMPOS
Rompe o dia. CAMPOS está à janela do quarto a olhar Lisboa. Atrás, na grande cama branca, dormem
os dois rapazes em seu estado comatoso.
CAMPOS
Outra vez te revejo – Lisboa e Tejo e tudo –,
Transeunte inútil de ti e de mim.
Estrangeiro aqui e em toda a parte.
Outra vez te revejo
Mas ai, a mim não me revejo!
Partiu-se o espelho mágico em que me revia idêntico
E em cada fragmento fatídico vejo só um bocado de mim –
(COSTA GOMES, 2015-2018: scène 16)
La citation des vers de la partie finale de « Lisbon Revisited (1926) »39, cohérente
par rapport à la donnée diégétique du retour de Campos à Lisbonne, intervient ici
dans un contexte fictionnel spécifique : le petit matin qui suit une nuit de débauche
avec les deux jeunes Anglais que Campos a « rabattus » chez lui40. Ce que dit le
poème – l’impossible coïncidence avec soi-même, la fragmentation du moi – s’éclaire
alors d’une façon nouvelle à la lumière de la situation diégétique particulière que
constitue ce moment de retombée qui suit celui des plaisirs de la chair. On vérifie
ainsi que l’opération transfictionnelle, même lorsqu’elle se limite à une reprise
d’énoncés sans changement de locuteur ni ajout textuel, modifie nécessairement la
signification des énoncés cités et les donne à lire d’une manière différente.41
Sont cités les vers 42-44 du poème, puis les vers de la fin du poème, 54-57, le dernier vers – « Um
bocado de ti e de mim !... » – étant toutefois omis. On relève également une petite modification du
vers 44, « Estrangeiro aqui e em toda a parte » au lieu de « Estrangeiro aqui como em toda a parte »
dans le poème publié.
39
L’homosexualité de Campos est bien plus explicite dans le scénario de Luísa Costa Gomes que
dans la fiction hétéronymique pessoenne où les tendances homoérotiques de l’auteur de « Ode
Marítima » s’expriment essentiellement à travers des images poétiques sado-masochistes, ou bien
affleurent furtivement dans la mention faite entre parenthèses à un certain Freddie, que Campos dit
avoir aimé dans « A Passagem das Horas » : « (Freddie, eu chamava-te Baby, porque tu eras louro,
branco e eu amava-te […] » (PESSOA, 1993b: 198). Sur l’imaginaire homosexuel dans les poèmes de
Campos, voir ZENITH (2021: 631).
40
Un autre exemple, parmi d’autres possibles, de cette reconfiguration du sens liée au contexte
intervient à la scène 14, quand Anon reprend le début du texte « Excommunications » : « CHARLES
ANON: – I, Charles Robert Anon, being, animal, mammal, tetrapod, primate, placental, ape…
eighteen years of age, not married (except at odd moments) (Atira-se para a cama, deita-se ao lado de
SEARCH) …megalomaniac, with touches of dipsomania, degeneré supérieur, poet, with pretensions
to written humour, citizen of the world, idealistic philosopher CAMPOS sorri-lhe, convida-o a deitar-se.
ANON (em off): etc. etc. etc. » (COSTA GOMES, 2015-2018: scène 14). Dans le contexte d’une soirée où
les jeunes gens ont bu plus que de raison, le caractère fantaisiste de l’énumération apparaît ici
41
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Dans l’exemple précédent, le supplément de sens apporté aux vers cités de
« Lisbon Revisited (1926) » demeure relativement discret, du fait que la situation
énonciative monologique du poème est préservée dans le contexte de sa reprise :
Campos contemple Lisbonne à sa fenêtre et dit ces vers pour lui-même, comme on
peut les entendre en lisant le poème42. Il en va tout autrement quand un poème est
repris dans un contexte dialogique, ce qui se produit très fréquemment dans Não
Sou Nada où le dialogue l’emporte largement sur les passages monologués. Dans ce
cas, même si l’attribution ne change pas et que les vers cités le sont sans modification,
l’opération transfictionnelle implique un changement générique, puisque ce qui
était poème, ou le plus souvent partie d’un poème, est transformé en réplique dans
le cadre d’un échange verbal entre personnages. Remis en jeu dans ce cadre énonciatif
différent, pris dans l’économie du dialogue, les énoncés du poème font alors sens
par rapport aux enjeux pragmatiques d’une interlocution où la parole est agissante
et vise à produire un effet sur l’interlocuteur. Un bon exemple de cette remise en
jeu se trouve à la scène 21, quand Campos surgit de nulle part pour aborder Pessoa
qui chemine sous la pluie dans une rue de la Baixa :
EXT. DIA. RUA DA BAIXA DE LISBOA
Chove. FERNANDO PESSOA abre o guarda-chuva, segue rente à parede. ALVARO DE CAMPOS surge, de
lado nenhum, instantaneamente está a seu lado, conversando. CAMPOS gosta de ir à chuva. De
vez em quando PESSOA quer abrangê-lo no guarda-chuva e ele recusa, afasta-se, depois
aproxima-se de novo.
CAMPOS: – Meu pobre amigo, não tenho compaixão que te dar.
A compaixão custa, sobretudo sincera, e em dias de chuva.
Quero dizer: custa sentir em dias de chuva.
Sintamos a chuva e deixemos a psicologia para outra espécie de céu.
(COSTA GOMES, 2015-2018: scène 21)
La réplique de Campos correspond exactement aux quatre premiers vers d’un poème
daté du 9/7/193043, dans lequel il n’est guère possible d’identifier l’interlocuteur
imaginaire auquel s’adresse le poète, interlocuteur qui pourrait aussi bien être
Campos lui-même. Or, tels qu’ils sont repris pour être insérés dans le dialogue, les
motivé par l’ébriété du personnage. De surcroît, l’insertion de la didascalie montrant Anon
s’allongeant aux côtés de Search, juste après la mention « not married (except at odd moments) »,
confère à cette précision une connotation spécifique, induite par le contexte qui renvoie explicitement à
l’homosexualité.
Cette situation de diction du poème en contexte de monologue se répète à plusieurs reprises pour
Campos, par exemple à la scène 57 où Campos brûle dans sa cheminée les poèmes qu’il a dérobés à
Pessoa – dont un qui lui est attribué ! – puis soupire en disant deux vers d’un poème non daté mais
postérieur à 1923 (PESSOA, 1993b: 489) : « Estou vazio como um poço seco | Não tenho verdadeiramente realidade nenhuma » (COSTA GOMES, 2015-2018: scène 57), ou encore à la scène 66 dans la
fumerie d’opium, où sont cités des vers de « Tabacaria » puis du poème « Insomnia » qui sont particulièrement appropriés au contexte.
42
43
Ce poème sans titre, non publié du vivant de Pessoa, se trouve dans PESSOA (1993b: 419-420).
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vers cités fonctionnent très différemment. Dès lors que c’est le personnage de
Pessoa qui est destinataire du discours de Campos, ces vers sont assimilables à une
forme d’interpellation de l’écrivain par son persécuteur. Plus loin, la scène se poursuit
selon le même principe, avec toutefois un procédé de montage plus complexe :
Pela montra,
CAMPOS e PESSOA vêem OFELIA, à secretária, a escrever à máquina, concentrada.
pára a olhar para ela pelo vidro. Depois bate na montra com os nós dos dedos, OFELIA
olha, sorri-lhe, faz-lhe um gesto para que espere um bocadinho.
CAMPOS (dá-lhe um pequeno encontrão malandreco): – Com que então, problema sexual?
Mas isso depois dos quinze anos é uma indecência.
Preocupação com o sexo oposto (suponhamos) e a sua psicologia –
PESSOA: – Mas é engraçada ela, olha lá…
CAMPOS: – Muito bem olhada. Agora, ouve: o sexo oposto existe para ser procurado e não
para ser compreendido. Compreender é ser impotente.
PESSOA: – Não me venhas com teorias. Faz-se o que se pode.
(COSTA GOMES, 2015-2018: scène 21)
PESSOA
Dans ce passage, les répliques de Campos correspondent bien à la suite du poème
de 1930 précédemment cité, mais une réplique de Pessoa vient défaire la continuité
de la citation, tandis que deux petites modifications sont apportées au texte
d’origine afin de mieux l’intégrer au dialogue44. Ainsi « recyclés » dans l’échange
verbal entre les deux protagonistes, les vers empruntés au poème gagnent une
signification plus précise que celle qu’ils pouvaient avoir dans le poème d’origine.
Les considérations de l’Ingénieur sur le « problème sexuel », de l’ordre de la
généralité dans le poème, prennent ici le sens d’une réprobation visant à détourner
Pessoa d’Ofélia, conformément au projet d’accaparement poursuivi par Campos
dans Não Sou Nada. En migrant du poème au dialogue, et donc en se dialogisant,
les énoncés poétiques sont devenus des actes de langage motivés par rapport au
programme narratif assigné à Campos dans le scénario.
On vérifie par cet exemple que les opérations de prélèvement et de montage
des citations donnent clairement une portée nouvelle au matériau textuel pessoen,
en lien avec le cadre diégétique dans lequel ce matériau est réagencé. De surcroît,
du fait de leur insertion dans le dialogue, les vers originaux sont moins repérables
en tant qu’énoncé poétique, le travail de la scénariste aboutissant alors à un quasieffacement de l’hétérogénéité générique entre le texte poétique de départ et le texte
dramatique dans lequel les énoncés du poème se trouvent insérés. À ce degré
d’intégration dans le dialogue, l’emprunt devient alors moins perceptible, ce qui
Dans le poème, les vers se présentent ainsi : « Com que então, problema sexual? | Mas isso depois
dos quinze anos é uma indecência. | Preocupação com o sexo oposto (suponhamos) e a sua
psicologia – | Mas isso é estúpido, filho. | O sexo oposto existe para ser procurado e não para ser
compreendido. | Compreender é ser impotente » (PESSOA, 1993b: 419, vers 5-11). Luísa Costa Gomes
a apporté deux petites modifications au poème : ajout d’une virgule après « então », suppression de
la majuscule marquant le début du vers « O sexo », du fait de l’insertion de « Agora ouve : ».
44
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contribue à rendre plus incertaine la distinction entre les textes d’origine pessoenne
et les parties du texte rédigées par l’écrivaine pour les besoins du scénario45. Ce
brouillage quant à l’origine des énoncés produit un trouble qui augmente encore
quand le procédé de l’emprunt se complique d’un changement d’attribution, variations qui s’inscrivent tout à fait dans la logique mouvante de l’hétéronymie pessoenne,
dont Luísa Costa Gomes joue avec habileté à plusieurs reprises dans son scénario.
Le plus souvent, la migration textuelle s’opère dans Não Sou Nada sans
changement d’attribution, mais il peut se produire qu’un fragment de texte emprunté
à tel ou tel hétéronyme de la fiction pessoenne soit attribué à un autre personnage
dans le scénario. L’emprunt équivaut dans ce cas à un détournement du texte source,
manipulation qui prend évidemment tout son sens par rapport à la situation
narrative dans laquelle elle intervient. C’est ce type de détournement qui a lieu à la
scène 37, quand on voit Campos s’immiscer à nouveau entre Ofélia et Pessoa et
tenter ce dernier en faisant miroiter le mirage d’une initiation sexuelle prochaine :
ri-se. De repente, está ao lado de PESSOA, como um diabo tentador.
– É um pouco tontinha, a Ofelinha. Devota e tão devota de santos e santas. Mas eu
acho que ela gosta é de mim.
PESSOA: – Acaba com a brincadeira. Deixa-me!
CAMPOS: – Agora estás aborrecido. Bem, a verdade é esta. Agora és casto. Deixarás de o ser
dentro de um mês ou um mês e três dias.
PESSOA olha-o, interessado. À medida que ele vai falando, PESSOA pára e olha-o, hipnotizado como
que por um espírito tentador e maléfico.
CAMPOS (cont.): – E a mulher que te iniciará no sexo é uma rapariga que ainda não conheces.
É uma poetisa amadora e assumida.
OFELIA: – O senhor Engenheiro está para ficar?
PESSOA: – Ele vai já embora, está com pressa.
PESSOA agarra OFELIA por um braço. Afastam-se de CAMPOS que os persegue, fleumático, como um
vendedor que sabe que tem um produto irresistível.
(COSTA GOMES, 2015-2018: scène 37)
CAMPOS
CAMPOS:
Les deux dernières répliques de Campos (à partir de « Agora estás aborrecido »),
reprennent mot pour mot le texte de la première des communications médiumniques
que Pessoa a consignées en 1916-1917, textes qui portent essentiellement sur son
initiation sexuelle à venir46 et dont les différents auteurs sont assimilables à des
Le terme « dramatique » appliqué au texte de Não Sou Nada est justifié dans la mesure où le
scénario revêt bien pour l’essentiel les caractéristiques d’un texte théâtral : découpage en scènes,
indications scéniques, dialogue.
45
Les communications médiumniques constituent une section autonome des Escritos autobiográficos,
automáticos e de reflexão pessoal (PESSOA, 2003: 212-331). La plupart des 80 communications recueillies
dans ce volume se présentent en anglais, une traduction en portugais étant proposée sur la page de
droite. Les citations que Luísa Costa Gomes fait de ces textes reprennent sans la modifier la traduction
en portugais de Manuela Rocha (p. 213 pour le passage cité qui correspond à la 1ère communication,
46
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hétéronymes 47 . La manipulation textuelle est donc ici plus complexe puisque
l’emprunt se double d’un changement d’attribution, l’Ingénieur se substituant aux
auteurs des communications médiumniques pour se faire le porte-parole du
discours de la tentation. Comme dans les exemples précédents, l’emprunt fait sens
par rapport au contexte, qui donne aux fragments textuels prélevés une portée
différente de celle qu’ils pouvaient avoir dans leur contexte d’origine : en 1916,
Ofélia Queiroz n’existe pas encore dans la vie de Fernando Pessoa, alors que dans
cette scène, c’est bien elle qui devient la cible des propos de Campos annonçant à
son « namorado » qu’il sera initié sexuellement par une autre jeune femme qu’il ne
connaît pas encore. Mais au-delà de cette actualisation du sens en lien avec le
contexte de la fiction seconde, le changement d’attribution revêt une signification
supplémentaire, dans la mesure où il établit un lien entre les personnages qui, dans
chacune des deux sphères fictionnelles, ont en partage un même texte. En
l’occurrence, le fait que Campos reprenne ici la parole médiumnique des « esprits »
concourt à le caractériser lui-même comme spectre démoniaque venu tenter Pessoa,
association que confirment les didascalies : « diabo tentador », « espírito tentador e
maléfico »48. Or il se trouve que cette association, qui fait sens par rapport à la fiction
élaborée par Luísa Costa Gomes dans laquelle Campos revêt les attributs d’un
double persécuteur, est en quelque sorte programmée par la fiction hétéronymique
pessoenne. En effet, seul à être ainsi distingué parmi tous les autres hétéronymes,
Campos est cité dans une des communications médiumniques de Henry More,
message qui met en garde Pessoa contre sa tendance à se soumettre aux caprices de
son hétéronyme : « Were you to work in your own way, you would waste less
time. Were you to work in your own way you would waste less ardour. By this I
mean to work in your way of thinking without pandering to ‘Álvaro de Campos’
whims. See ? You are in a period of life when a good woman is dawning » (PESSOA,
2003: 280, communication n.° 41). C’est donc par un juste retour des choses que
dans le scénario élaboré par Luísa Costa Gomes, Campos détourne à son propre
profit les paroles de celui qui tentait de l’évincer dans la fiction hétéronymique
pessoenne. Le détournement mis en œuvre par la scénariste trouve une motivation
non signée mais que le contexte permet d’attribuer à Henry More, l’un des principaux correspondants
médiumniques de Pessoa).
Les différents personnages auteurs des communications médiumniques ont un statut particulier
dans la fiction hétéronymique pessoenne, leur fictionnalité étant en quelque sorte redoublée par
leur nature « immatérielle » puisqu’ils ne se manifestent que sous la forme de voix. Des deux correspondants médiumniques les plus prolifiques, Henry More et Wardour, le premier se distingue aussi
en raison du fait qu’il renvoie à un personnage historique, Henry More (1614-1687), philosophe
anglais d’obédience platonicienne. Quant à Wardour, c’est sa femme, Margaret Maunsel qui est
censée aller à la rencontre de Pessoa pour l’initier sexuellement. More, Wardour et les autres auteurs
des communications médiumniques sont présentés dans PESSOA (2013a: 508-541).
47
Le rapprochement entre les deux sphères est d’ailleurs scellé par le terme « espírito » qui fait de
Campos un équivalent littéral des « spirits » auteurs des communications médiumniques.
48
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supplémentaire du fait qu’existe bien une passerelle diégétique, certes discrète, qui
mène de l’univers fictionnel pessoen où Campos apparaît comme un personnage
rival des esprits médiumniques, à la fiction seconde de Não Sou Nada où Campos
usurpe la parole de More, un des plus éminents correspondants médiumniques de
Pessoa. La suite de la scène va toutefois redonner la parole aux « esprits », qui
surgissent, ainsi que d’autres hétéronymes, pour former un chœur avec Campos,
tandis que Pessoa, « alucinado », finit par s’enfuir avec Ofélia qu’il entraîne dans
une entrée d’immeuble où il l’embrasse fougueusement. Dans cette scène de
tentation aux allures d’hallucination, pas moins de quatre nouveaux personnages49
font leur apparition pour harceler Pessoa de leurs injonctions à renoncer à la
chasteté et à « ir a cama com a OUTRA 50 ». Toutes les répliques de ce quatuor
proviennent d’une même communication médiumique mais seuls les deux
premiers personnages, Henry More et « O homem da frutaria, ou seja, Voodoista »,
sont des auteurs des communications médiumniques, tandis que les deux autres,
« O Galego da água, ou seja, Rafael Baldaya » et « A peixeira, Maria José, a coxa »,
proviennent d’autres « régions » de la fiction hétéronymique pessoenne 51 . Le
changement d’attribution est donc ici élevé à la puissance 3, puisque ce qui
appartient au seul Henry More dans les communications médiumniques se trouve
dans cette scène chorale réparti entre lui et trois autres personnages
hétéronymiques. Un cinquième personnage, « Jean Seul de Méluret, o amoralista »,
qui s’exprime en français, complète le chœur avec des propos qui proviennent d’un
autre texte, « La France en 1950 »52, avant que Campos ne reprenne la citation du
texte des communications médiumniques.
La didascalie précise que « todos eles são heterónimos de Pessoa […] todos personagems de Pessoa »,
précision motivée par le fait qu’il s’agit de protagonistes moins connus de la fiction hétéronymique.
49
Le terme « OUTRA » mis en majuscules est un ajout de Luísa Costa Gomes motivé par le contexte
de Não Sou Nada, où les injonctions des esprits deviennent des actes de paroles visant explicitement
à détourner Pessoa d’Ofélia en faveur de cette « OUTRA rapariga ». Dans la communication médiumnique de Henry More, il est seulement dit ceci : « Decide-te a ir para a cama com a rapariga que vai
entrar na tua vida » (PESSOA, 2003: 227, communication médiumnique n.° 9).
50
La notoriété de ces personnages qui font une apparition furtive dans le texte de Luísa Costa
Gomes est très inégale au regard de la fiction hétéronymique pessoenne : si Baldaya l’astrologue
apparu dès 1915, auteur de deux traités, le « Tratado de Astrologia » et le « Tratado da Negação » ,
est une figure bien connue des Pessoens, Maria José, autrice tardive d’une unique lettre, est un
personnage tout à fait méconnu de la constellation pessoenne, la 136ème et dernière des étoiles
apparues au firmament du poète, d’après les éditeurs de Eu sou uma antologia.
51
« La France en 1950 » (PESSOA, 2006: 62-68, 65 pour le passage repris dans Não Sou nada). On relève
une petite incongruité à propos de ce passage en français dans le scénario : s’il conserve le sens de
l’original français écrit par Pessoa, il en diffère sur de nombreux points par sa formulation, altération qui pourrait résulter du fait que la scénariste a eu recours à une traduction en français de la
traduction portugaise qu’on trouve dans Eu sou uma antologia, où le texte est présenté dans les deux
langues (PESSOA, 2013a: 279-281). Parfaitement compréhensible en revanche est le choix de recourir
52
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Un autre exemple de changement d’attribution en lien avec la relation triangulaire Ofélia-Pessoa-Campos se produit à la scène 45, lorsque Pessoa, seul chez lui
la nuit, entend la voix d’Ofélia évoquant leur vie commune à venir (« Se o Nininho
está em condições de alugar uma casa »53), évocation à laquelle il réagit en prononçant
ces vers de « Lisbon Revisited (1923) » :54
(com a voz de CAMPOS) :
– Não me macem, por amor de Deus !
Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável ?
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-vos a todos a vontade!
(COSTA GOMES, 2015-2018: scène 45)
PESSOA
Le changement d’attribution, souligné par la didascalie « (com a voz de CAMPOS) »,
confirme l’emprise de Campos sur Pessoa, qui devient ici le medium (ou le ventriloque) à travers qui parle son hétéronyme. Le montage textuel de Luísa Costa Gomes
dans cette scène acousmatique est à la fois très efficace sur le plan dramatique – la
juxtaposition du rêve de vie domestique d’Ofélia et de la réplique cinglante de
Pessoa-Campos produit un effet de choc –, parfaitement cohérent par rapport au
rôle de perturbateur joué par Campos dans le « namoro » – le scénario s’inscrit sur
ce point dans le prolongement de la correspondance –, mais aussi tout à fait
suggestif, par la relecture des vers de « Lisbon Revisited (1923) » que ce montage
induit. Ainsi réagencés dans le contexte de cette scène, les vers du poème de 1923
prennent le sens d’une réaction différée, mais violente, au désir de vie conjugale
exprimé dans les lettres d’Ofélia Queiroz, établissant ainsi une relation entre la
production poétique de Campos et la correspondance entre Fernando Pessoa et
Ofélia Queiroz. Cette voie ouverte entre le poème et les lettres confirme que la
transfictionnalité mise en œuvre dans Não Sou Nada se fonde essentiellement sur la
migration textuelle. C’est bien en effet la reprise des vers de « Lisbon Revisited
(1923) » qui « performe » le programme narratif qui soutient toute l’intrigue du
scénario, à savoir la tentative de vampirisation par Campos de son créateur55. La
relation duelle entre Pessoa et son hétéronyme repose ainsi sur une porosité
textuelle qui s’actualise à d’autres moments du scénario, notamment à propos des
dans cette scène de tentation érotique à Jean Seul de Méluret, dont la production est dominée par la
thématique sexuelle.
Le monologue d’Ofélia se poursuit plus loin dans la scène – « OFELIA (em off): – Eu não sou
exigente e contentar-me-ei com tudo que esteja dentro das posses do meu querido Nininho » –,
passage emprunté à la lettre adressée par Ofélia Queiroz à Fernando Pessoa le 29 mars 1931
(QUEIROZ, 1996: 331).
53
54
Il s’agit des vers 16-19 de « Lisbon Revisited (1923) » (PESSOA, 1993b: 271-272)
Cette tentative se marque notamment dans la réplique précédemment citée : « Tu és eu. O meu eu »
(COSTA GOMES, 2015-2018: scène 65).
55
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premiers vers de « Tabacaria », que le lecteur connaît comme étant un poème
d’Álvaro de Campos mais que le scénario présente d’abord comme des réflexions à
haute voix que se fait Pessoa en présence de Quaresma :
CENA 58.
INT. NOITE. CASA DE ABÍLIO QUARESMA
PESSOA está de pé, junto à janela que dá para um pátio interior. Tudo são paredes. Abre a janela e
expele o fumo do cigarro para a noite fria. O fumo do cigarro confunde-se com o ar que respira e
que se vê também materializado. QUARESMA, sentado no seu cadeirão, de manta sobre os joelhos,
copo de aguardente na mão, fuma também.
PESSOA: – Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada.
QUARESMA (assertivo): – Não podes querer ser nada! Não podes fraquejar agora. Ele destrói e
tu crias.
PESSOA: – Sem eles eu não sou nada.
(COSTA GOMES, 2015-2018: scène 58)
Le changement d’attribution qui voit des vers de Campos devenir des paroles de
Pessoa concourt à conférer du crédit à la revendication d’identité portée par
l’hétéronyme – « Tu és eu. O meu eu » (COSTA GOMES, 2015-2018: scène 65) –, exemple
où se vérifie à nouveau que c’est par un travail serré de reprise et de redistribution
du matériau textuel que Luísa Costa Gomes donne substance à son intrigue. Un
autre cas d’emprunt avec changement d’attribution d’un énoncé mérite d’être cité
pour illustrer le travail de la scénariste, détournement textuel et retournement
diégétique allant de pair dans cet exemple qui intervient à la fin du scénario.
Le parcours de Campos dans Não Sou Nada s’achève sur un ultime rebondissement, quand par une « rasteira » inattendue Soares provoque la chute de son
agresseur dans les escaliers, manœuvre qui opère comme on l’a vu un renversement
de la fin précédemment annoncée. Ce retournement scénaristique coïncide avec un
détournement textuel, qui se joue dans cette ultime réplique de Soares : « SOARES
(escarninho): – Subiste à gloria pela escada abaixo ! » (COSTA GOMES, 2015-2018: scène
69). C’est en effet par une image métaphorique empruntée au poème « Apontamento »,
celle de la chute de l’âme dans l’escalier, que Soares scelle l’issue victorieuse de son
combat avec Campos, retournant ainsi contre lui non seulement la force physique
de son adversaire (« SOARES […] usa a força de CAMPOS para uma última rasteira de jiujitsu »), mais aussi les mots du poème : « A minha alma partiu-se como um vaso
vazio. | Caiu pela escada excessivamente abaixo » (PESSOA, 1993b: 358). La « rasteira »
verbale de Soares, où s’inscrit le motif de l’inversion par le retournement du
mouvement ascensionnel en chute (« Subiste […] abaixo »), vient ainsi confirmer à
la toute fin du texte le principe ludique qui est au cœur même de l’écriture
transfictionnelle mise en œuvre par Luísa Costa Gomes.
La propension de l’écrivaine à jouer avec la fiction hétéronymique prend
une tournure particulièrement malicieuse, et jubilatoire, lorsqu’elle intègre à son
texte des éléments qui questionnent la cohérence de la fiction hétéronymique
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pessoenne, ou qui pointent les contradictions de sa propre fiction au regard de
celle dont elle procède. C’est au « raciocinador » Quaresma qu’il revient de porter
ce questionnement réflexif, comme on le voit dans l’échange qui intervient à la
scène 58, dans laquelle Pessoa, qui vient de lui faire part des meurtres commis par
Campos sur les personnes de Caeiro, Reis et des poètes anglais, sollicite
l’enquêteur pour qu’il active ses contacts dans la police :
QUARESMA:
– E queres metê-los nesta embrulhada? Como é que descreverias exactamente a
situação? O poeta Álvaro de Campos matou o poeta Alberto Caeiro, que está morto desde
1915, embora continue a escrever poemas em 1931, depois de morto, olha que conveniente!
E o Reis não terá ido mesmo para o Brasil? Tens alguma prova, a não ser nessa tua imaginação terrível…
(COSTA GOMES, 2015-2018: scène 58)
La réflexivité et l’ironie sont à leur comble dans cette réplique où Quaresma
dénonce à la fois l’incohérence interne à la fiction hétéronymique pessoenne qui
attribue à Caeiro une production poétique post-mortem, et les écarts de la fiction
seconde par rapport aux données contenues dans la fiction première qui lui sert de
référence. Au regard de la fiction hétéronymique « orthodoxe », il est en effet
absurde d’imaginer que Campos puisse être l’assassin d’un homme mort il y a des
années, et d’un autre qui s’est exilé depuis longtemps au Brésil. À travers le personnage de « Quaresma, decifrador », observateur plus qu’acteur du récit, et par
là-même figure possible du lecteur dans le texte, Luísa Costa Gomes attire donc
elle-même l’attention sur les libertés qu’elle prend dans Não Sou Nada à l’égard de
la doxa hétéronymique, effectuant ainsi un geste ironique qui désamorce plaisamment les reproches qu’on pourrait faire à sa propre « imaginação terrível ».
Virtuose, joueuse, et volontiers provocante, Luísa Costa Gomes parcourt librement la fiction hétéronymique pessoenne pour y puiser la matière de son texte,
explorant au fil de son écriture des recoins peu fréquentés de cet univers en expansion
que représentent les écrits de Pessoa. C’est en lectrice subtile et savante qu’elle se
déplace dans le vaste « playground » de ces écrits, et c’est en dramaturge inspirée
qu’elle se livre à toutes sortes de manipulations pour produire, in fine, une fiction
dont l’intrigue comme la matière langagière qui la porte s’avèrent éminemment
pessoens, pour le plus grand plaisir de ses lecteurs.
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Bibliographie
GENETTE, Gérard (1982). Palimpsestes. La littérature au second degré. Paris : Éditions du Seuil.
Collection Poétique.
GOMES, Luísa Costa (2015-2018). Não Sou Nada. Scénario inédit.
PESSOA, Fernando (2023). Cartas de amor. Edição de Jerónimo Pizarro. Lisboa: Tinta-da-china.
_____ (2014). Obra completa de Álvaro de Campos,. Edição de Jerónimo Pizarro e Antonio Cardiello ;
colaboração de Jorge Uribe e Filipa Freitas. Lisboa: Tinta-da-china.
_____ (2013a). Eu sou uma antologia: 136 autores fictícios. Edição de Jerónimo Pizarro e Patricio
Ferrari. Lisboa: Tinta-da-china.
_____ (2013b). Poesia de Álvaro de Campos. Edição de Teresa Rita Lopes. Lisboa: Assírio & Alvim.
_____ (2006). Obras de Jean Seul de Méluret. Edição e estudo de Rita Patrício e Jerónimo Pizarro.
Edição crítica de Fernando Pessoa, Série Maior, volume VIII. Lisboa: Imprensa NacionalCasa da Moeda.
_____ (2003). Escritos autobiográficos, automáticos e de reflexão pessoal. Edição de Richard Zenith.
Lisboa: Assírio & Alvim.
_____ (1999). Correspondência 1923-1935. Edição de Manuela Parreira da Silva. Lisboa: Assírio &
Alvim.
_____ (1966). Páginas íntimas e de auto-interpretação. Textos estabelecidos e prefaciados por Georg
Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho. Lisboa: Ática.
PRESENÇA (1993). Edição facsimilada compacta. Tomos I e II. Lisboa: Contexto editora.
QUEIROZ, Ofélia (1996). Cartas de amor de Ofélia a Fernando Pessoa. Organização de Manuela Nogueira
e Maria da Conceição Azevedo. Lisboa: Assírio & Alvim.
SAINT-GELAIS, Richard (2011). Fictions transfuges. La transfictionnalité et ses enjeux. Paris : Éditions du
Seuil. Collection Poétique.
ZENITH, Richard (2021). Pessoa. A Biography. New York: Liveright.
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REGIS SALADO est Maître de conférences en littérature comparée à Université Paris Cité. Ses
travaux, qui ont donné lieu à de nombreux articles et à plusieurs volumes collectifs dont il a
assuré la co-direction, portent sur les modernités littéraires dans les domaines anglophone,
lusophone et francophone, avec un intérêt particulier pour les questions liées aux esthétiques
modernistes et à leur réception dans une perspective interculturelle. Dans ce cadre, il a publié
entre autres des études sur les œuvres de Joyce, Larbaud, Pessoa, Faulkner, Mário de Andrade,
Beckett. Il a également exploré les relations d’intermédialité entre littérature et cinéma, notamment à propos de l’œuvre de Manoel de Oliveira. Parallèlement à son activité de chercheur,
Salado est engagé depuis longtemps dans l’enseignement universitaire en milieu carcéral. Il codirige le séminaire interdisciplinaire “Enseignement, Recherche, Création en Milieu Carcéral”
à Université Paris Cité.
RÉGIS SALADO is an Associate Professor of Comparative Literature at Université Paris Cité. His
work, which has resulted in numerous articles and several edited volumes which he codirected, focuses on literary modernities in Anglophone, Lusophone, and Francophone
contexts, with a particular interest in issues related to modernist aesthetics and their reception
from an intercultural perspective. In this context, he has published studies on the works of
Joyce, Larbaud, Pessoa, Faulkner, Mário de Andrade, and Beckett, among others. He has also
explored intermedial relations between literature and cinema, particularly in the works of
Manoel de Oliveira. Alongside his research activities, Salado has long been involved in university teaching in carceral environments. He co-directs the interdisciplinary seminar “Teaching,
Research, Creation in Carceral Environments” at Université Paris Cité.
RÉGIS SALADO é Professor Associado de Literatura Comparada na Université Paris Cité. O seu
trabalho, bem representado em numerosos artigos e vários volumes editados que co-dirigiu,
concentra-se nas modernidades literárias nos contextos anglófono, lusófono e francófono, com
um interesse particular em questões relacionadas à estética modernista e a sua recepção numa
perspectiva intercultural. Neste contexto, publicou estudos sobre as obras de Joyce, Larbaud,
Pessoa, Faulkner, Mário de Andrade e Beckett, entre outros. Também explorou as relações intermediais entre literatura e cinema, nomeadamente nas obras de Manoel de Oliveira. Junto às
suas atividades de pesquisa, Salado está há muito comprometido com o ensino universitário
em ambientes prisionais. Ele co-dirige o seminário interdisciplinar “Ensino, Pesquisa, Criação
em Ambientes Carcerários” na Université Paris Cité.
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Moura
A pluralidade de Pessoa em filmes de animação
Átrio
Mais do que referência, Fernando Pessoa é uma presença na cultura da língua portuguesa.
Transfigurado como pessoa, passe o trocadilho, levado à apoteose enquanto poeta,
tão maior é o fascínio pela sua figura e obra quanto menos se o ancora na realidade
histórica e necessária da sua vida, e nas circunstâncias prosaicas da pouca publicação
em vida dos seus poemas. É dessa forma que se pode assim transformar, para além
dos seus heterónimos (o “drama em gente”), espelhos de variações de vozes poéticas
na sua própria lavra, em figuras prontas a serem empregues nas fantasias e desejos
de outros autores.
As adaptações dos escritos ou episódios da vida biográfica e intelectual de
Fernando Pessoa, ou empregos da figura, a outros meios (romance, filme, quadrinhos
[banda desenhada], teatro, artes visuais, etc.) são demasiados para sequer aqui
elencar. Desde adaptações mais didácticas da sua vida e obra, à transformação numa
personagem de narrativas fantásticas, há uma suficiente plasticidade nelas (vida e
obra) para permitir uma grande latitude. De certa forma, isso foi tornado possível
não-tanto ou somente pelo próprio papel preponderante que viria a assumir na
cultura portuguesa como até na forma como os portugueses, em primeiro lugar, mas
igualmente os falantes do português, o assumem como símbolo transfigurado de
uma identidade móvel e inconstante. Como Eduardo Lourenço identificou em Pessoa
Revisitado, “o objecto primeiro da exegese de Pessoa não foi a sua poesia múltipla,
mas a relação dessa múltipla poesia com os seus míticos (e reais) autores, o que mergulhou
toda a crítica numa miragem criadora de miragens” (LOURENÇO, 1974: 29; itálicos no
original). E se a crítica académica se presta a miragens, quanto mais a recriação artística.
Teresa Sobral Cunha, no seu ensaio introdutório ao roteiro do filme-vídeo
realizado por Margarida Gil, Fausto, descreve uma flutuação de identidades. Como
o semi-heterónimo Bernardo Soares “intersectou a personalidade ortonímica” de
Pessoa. Ou como a personagem Fausto “foi feito aparecer como protagonista do
exercício da razão abstracta”. De tal maneira que surgiriam esses “dois protagonismos
não só como decisivos no aprofundamento da consciência humana [...] mas também
decisivos na identificação do autor real com o herói da tragédia subjectiva” (CUNHA,
1994: 9; itálicos no original). A “tragédia” a que a autora se refere é Fausto, mas
queremos neste artigo auscultar outros dramas subjectivos nos quais protagonizam,
intersectam e multiplicam as figuras e personalidades de Fernando Pessoa.
Referir-me-ei, vezes sem conta, a “Fernando Pessoa” como participando em
narrativas fictícias ou adaptativas. Essa é uma facilidade do discurso, uma vez que
não estaremos a referir-nos ao poeta empírico lisboeta que viveu na primeira metade
do século XX, mas antes às figuras desenhadas e animadas destes outros novos
textos, no Pessoa convertido em “fantasma”, “assombração”, em “objecto de criação
em toda a esfera do simbólico” (LOURENÇO, 1988: 11). Todavia, a sua iconicidade
reconhecida e a sua consequente transformação criam de imediato e em constância
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Moura
A pluralidade de Pessoa em filmes de animação
elos de intertextualidade inevitáveis. Os pontos de partida são quatro filmes de animação,
três curtos e um longo, mas também arregimentaremos alguns quadrinhos, com os
quais essas animações se relacionam de modo directo, de três autores brasileiros, a
saber, Eloar Guazzelli, Otto Guerra e Laerte Coutinho, um português radicado em
França, José-Manuel Barata Xavier e um francês, Thibault Chollet.
“Piratas, amai-me e odiai-me!”
Álvaro de Campos, Ode marítima
A Cidade dos Piratas, longa-metragem de animação de Otto Guerra, segue uma estrutura
de vários níveis textuais e que empregam tropos já antigos da própria história da
animação, as quais são promissoras pistas de interpretação na forma como integram
as dimensões pessoanas.
O filme tem esse título, pois irá tecer uma estrutura em torno sobretudo da
cidade de São Paulo, “tomada conta” pelo caos existencial das personagens de Laerte
Coutinho, com óbvio destaque para os Piratas do Tietê. Estes se estrearam nas páginas
da revista Chiclete com Banana, número 4, em 1986, logo de seguida na Circo (na qual
é publicado o capítulo que terá a nossa maior atenção neste estudo), na homónima
Piratas do Tietê e, finalmente, no diário Folha de S. Paulo.
Figs. 1 e 2. Pessoa navega o rio Tietê em A cidade dos piratas.
Não podemos somente dizer que Cidade é uma adaptação de alguns materiais
quadrinísticos de Laerte. Se originalmente se previa uma adaptação tout court, e
somente, com ou sem aditamentos originais, das histórias dos Piratas, a mudança da
disponibilidade da autora para lhe dar continuidade jogou em crise esse caminho
mais “fácil”, por assim dizer. Essa crise acaba por informar todo o projecto, que se
fragmenta então em várias direcções.
Por um lado, continuará a adaptar matéria textual de Laerte Coutinho, mas
lançando mão igualmente de tiras da série Manual do Minotauro, o blogue de tiras
que tem alimentado quase diariamente desde finais de Novembro de 2008, e outras
histórias curtas de várias publicações. É também a crónica da crise do próprio
director e o seu filme, projectando-se este como participante no mundo diegético.
Um dos primeiros tropos constituintes do cinema de animação ele mesmo, e
logo incluídos, é tematizado, e recorrentemente, nas dúbias relações entre criador e
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Moura
A pluralidade de Pessoa em filmes de animação
criatura, criador e criação. Numa cena, Laerte, enquanto personagem participativa
da parte documental do filme, capturada fotograficamente a cores, joga fora uma
tira no lixo, da qual se anima o Capitão a preto-e-branco, escapando não apenas do
seu mundo diegético (as aventuras com os piratas) mas para o mundo do filme e do
director. Este último, na história do filme, está sempre se questionando sobre a
natureza do projecto, sobre as possibilidades de trabalho, de controlo, e de relação
com a matéria adaptada.
Portanto, a relação entre o director e o seu filme, que se poderia considerar o
nível diegético (ou principal), espelha-se na “matéria trabalhada”, isto é, um primeiro
grau hipodiegético da autora Laerte e das suas próprias obras. Por seu lado, estes
dois níveis se reflectem num segundo e múltiplo nível hipodiegético, nas “histórias”
adaptadas: a relação do escultor e a sua peça, a expressão da identidade sexual de
travesti, a “novela” do Minotauro, a narrativa do político, não apenas cruzando uma
história com a outra, criando oportunidades de interacção entre as personagens
numa mesma situação diegética, mas confundindo uma com a outra, apontando
como uma pode ser o “interior” ou “desdobramento” da outra (minotauro fantasia
explorada pelo político para a psicanalista, travesti como musa do corpo do minotauro
esculpido...), ou revelando ligações através das técnicas específicas ao cinema da
animação, com as transições de planos, mutações de personagens, etc. Mais adiante,
falaremos desta travessia “ilícita” de níveis diegéticos.
Interessa notar, neste ponto, como Guerra está recuperando aquela figura da
“máquina desobediente”, metáfora que o académico norte-americano Scott Bukatman
cunhou a partir do poema “O aprendiz de feiticeiro”, de Goethe (de 1797). Foi muito
cedo que este funcionamento ocupou um papel preponderante no cinema de
animação, como nos exemplos inaugurais de Gertie de McCay (1914) ou o do palhaço
Ko-Ko de Max Fleischer na série Out of the Inkwell, a qual teve início em 1918.
Bukatman acentua como estas interacções entre animador (criador), que participa na
diegese como personagem de pleno direito, e animado (criatura) tomavam um “certo
tom adversativo”, na recusa das personagens animadas seguirem as instruções ou
vontades dos seus criadores. Todavia, essa mesma “natureza rebelde pode ser lida
como um sinal adicional da sua vitalidade” (BUKATMAN, 2021: 6; minha tradução).
Figs. 3 e 4. A máquina desobediente em Gertie e Out of the inkwell.
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A pluralidade de Pessoa em filmes de animação
Verificaremos, no cômputo final, que quer os filmes de Guerra-Laerte, de
Guazzelli e Chollet quer as HQ de Guazzelli vivem numa ontologia complexa entre
a ficção e a não-ficção: pela inclusão de material documental, a adaptação de poemas
de Pessoa, troca de correspondência, notícias, a voz off de Laerte, a autoficção do
director Guerra, a projecção de Chollet, o reemprego de matéria desenhada para um
filme, e as materialidades opacas, visíveis e texturadas (para uma possível discussão
da história do cinema não-ficcional / documental e suas implicações ontológicas, v.
ROE, 2013). Estas camadas de pré-textos e materialidade diversa, assim como, em
Cidade, os excertos das entrevistas televisivas e as palavras de Laerte Coutinho em
off – sobre a negociação ao longo da vida da sua identidade de género, considerações
sobre a sua obra, interpretações do Minotauro, etc. – oferecem ainda níveis adicionais
de metatextualidade.
Desta forma, os episódios de Fernando Pessoa pertencem a um complexo
diálogo entre os vários níveis. Por um lado, poder-se-á considerar tão-somente um
nível hipodiegético cristalino: trata-se da adaptação do episódio dos Piratas, “O
Poeta”, que surgiu em doze páginas na Circo, número 5 (1987) (cf. Fig. 1). Mas por
outro também pode ser visto como uma mise-en-abyme da intrincada rede dialogal
entre criador (poeta) e criações (poemas), cuja variedade (heterónimos em Pessoa,
tons e humores e tempos para Laerte) se transforma em matéria disponível para ser
remoldada (todos elementos passíveis de entrar no filme de Guerra).
Na HQ citam-se versos, soltos e misturados, advindos do Pessoa ortónimo e
dos heterónimos Álvaro de Campos e Alberto Caeiro, transformando-se num só
discurso escorreito e incessante – não obstante as tentativas dos piratas de o
aniquilarem, mas apenas mostrando a impossibilidade do movimento maquínico e
físico deles impedirem o espírito do poeta – um pouco como o coiote ao Papa-Léguas
nos filmes de Chuck Jones. Em A Cidade dos Piratas, os versos citados são outros,
havendo uma predilecção expectável pela “Ode Marítima” de Álvaro de Campos,
mas o mecanismo de re-textualização é o mesmo.
Figs. 5 e 6. Pessoa prisioneiro em A cidade dos piratas.
Há, porém, outra estratégia. O personagem de Pessoa que participa no filme,
a dado momento (sensivelmente ao minuto 30) não é mais aquele intrépido baluarte
avançando nas águas do Tietê, mas mero prisioneiro e agora escriba-escravo do
Capitão. Se na HQ a figura de Pessoa mantém um papel heróico e triunfante – no
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A pluralidade de Pessoa em filmes de animação
final da história, todos os poetas se sentem liberados para tomar acção –, em Cidade
ele acaba subsumido a um papel mais passivo e subserviente. Nesse episódio, as
palavras aparentemente grandíloquas e poéticas que tenta anotar no papel dão
depressa lugar a meras tarefas quotidianas, que ele cumpre de seguida, interrompendo
sua função ontológica: “beber água”, “desentupir a privada”, “aparar o hibisco”...
Mas que função será essa, afinal?
Figs. 7 e 8. Pessoa escrevendo em A cidade dos piratas.
Quase no fecho do filme, Laerte – numa entrevista a um podcast de Rafucko –
assina a bandeira brasileira com o início de um soneto, “Ora (direis)”, primeiras
palavras do poema “Ora (direis) ouvir estrelas”, que é imediatamente escutado em
voz alta pela personagem de Fernando Pessoa, encerrando o filme antes dos créditos.
Mas o poema é de Olavo Bilac, não de Pessoa. A deslocação do poema – ou apropriação,
talvez –, não pode ser vista como estranha, pois não há tampouco estranheza no acto
de “ouvir estrelas” do poema, já que essa sinestesia – mescla, travessia, de sentidos –
está patente no próprio filme.
O texto fílmico explora parte dessa diversidade de materiais narrativos e de
variação da materialidade na sua própria tessitura, ainda que nunca de uma forma
tão radical que o colocasse, por hipótese, num território considerado “experimental”.
Regra geral, o desenho e técnica de A Cidade dos Piratas é límpido, legível, claro
nas acções, e são poucos os momentos em que se busca algum tipo de disrupção
visual. Não estamos no campo da experimentação radical dessa vertente. Utilizando
abordagens tradicionais de animação 2D, ainda assim existem divergências, como o
uso do preto-e-branco para o capitão dos piratas quando este deambula pelo mundo
do director, ou as interrupções ou separadores que imitam as distorções visuais de
um zapping em televisores antigos.
É natural que, baseando-se numa obra de um chargista, humorista, quadrinista,
poeta gráfico, e alguém cada vez mais interventivo política e socialmente, e com uma
capacidade de ironia extravasante, que a crise recaia sobretudo na textura da intriga,
da organização dos eventos. O filme ainda explora outros assuntos que adensam
esta trama: a situação política recente brasileira, os crimes (de sangue ou sociais ou
de preconceito) anti-trans, o câncer do director, todos eles sempre alimentando
aquele trânsito de níveis diegéticos indicado. Não há praticamente frase dita por
uma personagem, uma confissão, memória ou desejo que não seja transponível para
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A pluralidade de Pessoa em filmes de animação
uma outra, e todas elas alimentando um único texto multifacetado que se torna, não
apenas desobediente, mas uma máquina de desejo.
Fig. 9. Estudo do diretor Otto Guerra para a animação
do personagem de Pessoa em A cidade dos piratas.
“O homem e a família dele são reais do lado de lá da janela.
Eu estou do lado de cá, a uma grande distância.
A luz apagou-se.
Que me importa que o homem continue a existir?”
Alberto Caeiro, Poemas Inconjuntos
Figs. 10 e 11. Capas das duas histórias em quadrinhos de Guazzelli sobre Pessoa:
Fernando Pessoa e Outros Pessoas e Eu, Fernando Pessoa.
Eloar Guazzelli lançou em 2011 um livro intitulado Fernando Pessoa e Outros Pessoas
(doravante FPOP), com um roteiro [guião] de Davi Fazzolari. Nele, os autores adaptam
vários poemas às estruturas tipificadas dos quadrinhos (diagramações de vários
quadrinhos numa página, a busca por composições significativas, um arranjo dos
textos – em legendas, sobretudo – que submete os poemas originais a novos ritmos
e haustos). Dois anos passados, sairia Eu, Fernando Pessoa – em quadrinhos, (doravante
EFPQ), este com roteiro de Susana Ventura (Peirópolis, 2013), e mais concentrado
em termos das fontes textuais. Num tom mais elegíaco (aberto com uma sequência
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A pluralidade de Pessoa em filmes de animação
de Pessoa mexendo em papéis e revelando um poema de Bocage, “Ó retrato da
morte, ó noite amiga!”), este segundo livro amalgama a famosa carta de Pessoa a
Casais Monteiro, que tanto serviria de base para a análise e teoria heteronímica como
de auto-mitificação do próprio poeta, a notícia de óbito escrita por Luís de Montalvor,
compagnon de route de Pessoa em Orpheu e outras aventuras na poesia, e poemas ou
excertos de composições que servem para “ilustrar” os pontos abordados na carta.
Quando um heterónimo é apresentado na carta, a parte seguinte adapta um poema
desse mesmo heterónimo, por exemplo.
Quero acreditar que existirão estratégias bem diferentes do trabalho de
Fazzolari e de Ventura, demonstradas desde já pelas diferentes abordagens e modos
de uso dos escritos de Pessoa. Porém, as características do trabalho artístico de
Guazzelli acabam por ganhar uma proeminência bem vincada, com seus costumeiros
enquadramentos apertados, uma predilecção pela ausência do corpo humano, ou no
caso da sua aparição, uma qualidade hierática do mesmo, e uma certa qualidade de
achatamento entre figura e fundo, buscando menos a ilusão naturalista do que uma
presença gráfica.
Figs. 12 e 13. O uso dos textos em duas histórias em quadrinhos pessoanas de Guazzelli.
Parte dessa estratégia é visível ao nível da legendagem. Em FPOP, os textos
têm uma presença sob a forma de legendas, relegadas para as extremidades dos
quadrinhos, as mais das vezes no cimo. Em “A tabacaria fora de mim”, apenas um
balão de fala é usado, e só em “O desassossego de Bernardo” é que se institui a ilusão
de diálogos falados entre personagens diferentes, e mesmo assim apenas no fim
desse encontro. Já em EFPQ, mais balões de fala são empregues, mas continuaremos
na mesma abordagem, em que são menos intervenções directas das personagens no
seu mundo diegético, do que uma passageira delegação do transporte dos textos que
constituem uma faixa ininterrupta.
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A pluralidade de Pessoa em filmes de animação
Podemos então dizer que o balão pode estar atribuído a uma personagem, mas
sem que esta assuma um raio de agência destacado da narrativa visual construída pela
progressão da sequência. Mais, essas frases em balões não criam uma distinção de
nível clara em relação ao resto do texto, como uma voz, aparte, comentário, marca
de oralidade, ou outra estratégia. Não estarão ali por mero acaso, claro, mas não
assumem uma função subsumida a expectativas normativas. É como se ganhassem
somente forma, mas não a função dessa forma (legenda para nível do narrador, balão
para nível da personagem no mundo diegético), mas fluíssem na mesma lisura. Uma
influente HQ de poucas páginas de Chris Ware, “I guess” (1991), segue também essa
estratégia de “esmagamento” entre nível diegético e nível da narração.
Mais influente no mundo literário ainda é a nota que Stéphane Mallarmé
indicou na introdução de Un coup des dés jamais n'abolira le hasard (1897): “On évite
le récit”. A produção poética de Fernando Pessoa é por demais variada e vasta para
se poder considerá-la como pertencente a uma mesma valorização, vontade e vigor,
mas se temos alguns poemas onde se descrevem pequenas vinhetas narrativas mais
claras (“O menino de sua mãe”, “O mostrengo” e talvez “A noite” de Mensagem,
entre outros), a lírica promete menos pistas decisivas a uma subsunção a uma intriga
ou teatro de personagens. Guazzelli pode lançar pistas de ancoramento espacial,
recorrer a personagens, mas evita a narrativa tout court, compreendendo que, se
narrativa houver, ela é “uma máquina de produzir uma identidade narrativa” (BABO,
2011: 11; minha tradução).
Há outra faceta ainda de tornar a matéria verbal, escrita, como parte da lisura.
Toda uma série de objectos voláteis em FPOP, como o fumo das chaminés e dos
barcos, e as nuvens, são compostas por formas livres preenchidas por linhas semirabiscadas, imitando um qualquer sistema de escrita, em “letra de médico”, ou
assémica, e têm origem num primeiro balão de fala, também ilegível, de Pessoa (na
página 14). Poder-se-ia dizer, então, que é como se fosse a matéria oral do poeta,
tornada primeiro em signo vazio (significante sem significado) se transforma em
marca gráfica móvel que poderá compor o mundo em torno.
Ora, o mundo, ou os mundos, das obras de Guazzelli têm sempre uma
qualidade de circunscritos à sua existência gráfica. Um contraste imediatamente
visível entre a abordagem de Laerte-Guerra e de Guazzelli tem que ver com a
“deslocação” da figura do seu usual contexto. Como é sabido, o poeta português,
para além sua infância em Durban, África do Sul, pouco ou nada viajou,
conhecendo-se poucas saídas de Lisboa, e sempre para uns poucos quilómetros de
perto. Sem abuso de psicologizar a escrita para arrancar falsas pistas biográficas, no
Livro do Desassossego (trecho utilizado por Guazzelli em FPOP), está escrito: “Quem
nunca saiu de Lisboa viaja ao infinito no carro até Benfica, e, se um dia vai a Sintra,
sente que viajou até Marte” (cf. https://ldod.uc.pt/search/simple). Todavia, a sua
poesia, prosa, ensaio, breve nota, a sua escrita enfim, lançava-se, fantasiosa, às mais
díspares dérives, fossem elas citadinas e nocturnas, fossem de épicas navegações ou
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A pluralidade de Pessoa em filmes de animação
aventurosas revisitas a matérias literárias (episódios históricos, o ciclo arturiano ou
o locus amoenus clássico).
Guazzelli ancora o poeta na sua Lisboa nativa, muitas vezes populada por
uma troupe de tropos, clichés encarrilados que configuram reconhecimentos quase
imediatos: os telhados laranjas contrastando com o azul do Tejo, as paredes cobertas
por azulejos de tapete, o Cais das Colunas como ponto de partida de um olhar
melancólico, os candeeiros anciãos, as portas buriladas, os eléctricos, os cafés-bebida
e os cafés-estabelecimento... Sobretudo no livro com Fazzolari. Já com Ventura, as
aguadas parecem também liquefazer as paisagens e fundos em lugares mais fluidos e
ambivalentes. Em FPOP, inclusive, algumas páginas se consubstanciam como que
arrancadas de um diário de viagem, um caderno de um desenho lavrado à vista, em
frente aos objectos de atenção.
Não deixa de ser contrastivo que tanto Guazzelli como Laerte (e também seus
colaboradores) utilizem o poema “Tabacaria” como ponto de partida, ainda que o
primeiro o cite quase integralmente numa longa e aturada panorâmica de Lisboa
(abrindo-se aos seus pormenores, e depois vogando até ao “indefinido”), e o segundo
o torne em breves trechos, remisturados com outros tantos, de um contínuo discurso
triunfante enquanto o poeta desce o Tietê, desafiando os piratas.
O artista riograndense emprega diversas técnicas de desenho, de grande
variegação de linha, composição, escolha cromática. Em FPOP há uma primeira
predilecção por cores vivas, sobrepostas em manchas, por vezes em composições
soltas e livres, a letra manuscrita em cursivo; noutras páginas, a composição dos
quadrinhos se arregimenta, colocando o texto em maiúsculas organizadas, as cores
contidas nos seus limites do traço; e na sequência “O desassossego de Bernardo”, e
o preto-e-branco que impera, com as linhas e as sombras e o contraste num patente
equilíbrio entre o estilizado e o naturalismo, surge uma ilusão ainda maior da
convencionalidade narrativa da HQ, mas falsa, já que é a intensidade do pensamento
interno do protagonista (ainda que desenhado com a iconicidade do Pessoa real) que
impera sobre a intriga. Já em EFPQ, as escolhas abrem-se com o que parecem ser
linhas de esferográfica e marcador, riscadas nervosamente (“quase sem esboço”,
escreve o artista no posfácio desse livro), em cores azuis e escuras, num apontamento
biográfico, que introduz a cena, depois com mais cores, ainda que limitadas, em
enquadramentos apertados de objectos e lugares, para acompanhar as palavras
observadoras e descritoras de “Lisboa com suas casas”, logo depois empregando
aguadas castanho-avermelhadas, sublinhando a melancolia dos assuntos do poema,
e depois alterando as cores, de uma maneira menos ou mais simbólica, menos ou
mais claramente associadas aos poemas e poetas adaptados. Esta mudança, confessa
o artista na nota final de FPOP, é ele “algumas vezes ‘brincando’ de ser outro
desenhista” (p. 80).
Em FPOP há um trabalho de edição textual, com pequenos cortes, alterações.
Uma operação substancial está na reconstrução dos poemas d’O Pastor Amoroso, de
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A pluralidade de Pessoa em filmes de animação
Alberto Caeiro, numa espécie de ciclo contínuo dos poemas, tornados fundo do que
parece ser uma dérive psicogeográfica do personagem-pastor por paisagens urbanas
e rurais, ruínas cambiantes, mas que se revelam nível hipodiegético da escrita do
poeta, que irrompe na acção, dando espaço a uma abordagem onírica de Lisboa. Em
EFPQ também, temos essas passagens criadas de modo subtil. A capa mostra a
secretária de Pessoa coberta dos mapas astrológicos que ele criava para si e seus
heterónimos. Uma caixa aberta revela um coração flutuando. A primeira sequência
“real” mostra Pessoa preparando uma mala e a sair de casa para, na sequência
seguinte, já no interior da adaptação do poema interseccionista “Chuva oblíqua”,
dar-lhe continuidade dos movimentos, quando do seu internamento no Hospital de
São Luís dos Franceses (ainda que depois de tomar boleia de uma caravela e um
eléctrico flutuante). O livro, apesar de entrar e sair da carta a Casais Monteiro,
mostrar poemas distintos, etc., cria ao nível das imagens uma continuidade, cada
vez mais fantasiosa, senão mesmo surreal (as referências visuais e literárias são
muitas e sempre apropriadas; a intertextualidade é quase obrigatória na abordagem
a Pessoa), até terminar numa sequência mágica do coração flutuando sobre Lisboa,
convidando à única forma de conhecer possível: lê-lo. Pois, lendo-o, “Começará a
amá-lo” (p. 65).
O autor também cruza muitas das suas preocupações recorrentes na pesquisa
para Fernando Pessoa. Os seus enquadramentos apertados, sobretudo de edifícios,
seus pormenores, seus letreiros, e sobretudo a adaptação de “No entardecer da
terra” (v. à frente, sobre Paisagem Pessoa), recorda toda a sequência de Velhos Hotéis
Passam Cinema Mudo (Cachalote, 2012), que apresenta, como escrevi noutra ocasião,
“agregação de cenas urbanas modernas e abandonadas” (MOURA, 2015), a qual procura
menos “a sequência e a organização das imagens numa inclinação narrativa” do que
“uma lógica de acumulação de identidade”, uma descrição que parece agora aplicável,
com justeza, à construção de Pessoa ele-mesmo nestes livros e filmes.
Figs. 14 e 15. Velhos Hotéis Passam Cinema Mudo.
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A pluralidade de Pessoa em filmes de animação
Já que falamos sobre a influência de trabalhos anteriores de Guazzelli sobre
estas adaptações, atentemos igualmente às suas consequências, pois estas abordagens
tornar-se-iam ainda mais marcadas nos trabalhos futuros do autor. Se em O Relógio
Insano (Grafitti, 2007) o autor já experimentava a polifonia, a fragmentação, a nãolinearidade, uma profunda e intrincada fusão entre as imagens na sua estruturação
livresca e a matéria verbal que a acompanha, e em Velhos Hotéis, ele próprio livro
“mudo”, estilhaça a perspectiva central em uma deambulação incessante por espaços
distintos, os livros que se seguiriam às experiências de diálogo com os poemas
pessoanos, como Apocalipse Nau (Editora Nós, 2016) e a dilogia Porto Alegre (Porto
Alegre – Guia inútil de lugares improváveis e A Casa Azul; Faria e Silva, 2020), Guazzelli
entrega-se a tons mais melancólicos, advindos da sua decisão em envolver-se em
matérias autobiográficas, ou pelo menos auto-ficcionais, já que a qualidade de uma
fluidez onírica toma conta da narratividade. Sobretudo Porto Alegre assume um tom
elegíaco, o qual questiona a identidade do autor – enquanto criador, sobretudo, mas
também homem, marido, pai. Os textos verbais inclusos transformam cada momento
abordado num poema em si.
Para este segundo livro de adaptações de Pessoa, EFPQ, Guazzelli resolveu
criar, numa colaboração com Adriana Pinto, uma espécie de booktrailer, num filme
de animação de muito curta duração (1’32’’; mas a matéria animada tem somente
1’05’’) que reaproveita esse ímpeto e lavra. Intitula-se Eu, Fernando Pessoa. Como reza
no descritivo do vídeo no canal Youtube da editora, a feitura desse livro “encorajou
[Guazzelli] a transportar as imagens que garimpou nesses trabalhos para sua outra
profissão: a de diretor de curta-metragem”.
Figs. 16 e 17. O coração flutuante no filme Eu, Fernando Pessoa.
O filme assume muito mais uma qualidade elegíaca, assinalando-se a última
partida do poeta após a morte. As imagens que emprega são decalcadas de forma
directa do livro. Vaticinado o destino pelos mapas astrológicos abandonados na
mesa, acabamos por observar a última viagem de Pessoa. Primeiro, sob a forma do
seu coração flutuante (apetece dizer, o coração “delator” da sua morte), escapando
do que parece ser o hotel Orpheu, associando essa cena mais uma vez a Velhos Hotéis
Passam Cinema Mudo. Depois, já em corpo do Pessoa, atravessando um rio – será o
Tejo ou o Estige, ou ambos? – numa barca, conduzida por uma mescla de Caronte e
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A pluralidade de Pessoa em filmes de animação
da morte d’O Sétimo Selo, de Bergman. Esta última ideia é corroborada pelo facto
dessa “cena” surgir ela mesma como um excerto de um filme, passado num cinema
populado por inúmeros Pessoas com óculos 3D, permitindo ainda outra mescla,
confusão, passagem de níveis e dimensões, exploradas visual e tematicamente no
filminho. Termina num eléctrico submarino na direcção da Graça-Prazeres, o bairro
onde se encontra o cemitério em que Pessoa está (estava, até 1985) sepultado, mas
que aqui, isolando-se as palavras, parece querer aceder ao seu significado mais
imediato, irónico, de algo atingido pelo poeta: um estado de graça no imaginário
vindouro dos seus herdeiros, o prazer múltiplo da sua poesia múltipla.
Fig. 18. O bondinho submarino no trajeto Graça-Prazeres.
Num documento inédito a que tivemos acesso, e que faz parte deste mesmo
Pessoa Plural, vimos toda uma série de estudos e esboços para um novo futuro
projecto de animação de Guazzelli em torno de Fernando Pessoa, cujo título é Paisagem
Pessoa. Esse projecto repesca elementos idênticos ao livro e respectivo booktrailer (Eu,
Fernando Pessoa), em que o protagonista atravessará várias paisagens de Lisboa nos
mais díspares transportes, e explorará aspectos mesclados da sua infância à sua
morte. Mais uma vez, vários poemas serão suturados num contínuo de fragmentos,
e o autor revela em algumas notas associações à sua vida pessoal. É nesta adaptação
que encontramos o poema “Ao entardecer da terra”, cujos versos se transformam
então em letreiros de aeroportos, portagens, outdoors, sinais na auto-estrada, graffiti.
Fig. 19. Os versos de “Ao entardecer da terra”
no storyboard inédito de Pessoa Paisagem de Guazzelli.
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A pluralidade de Pessoa em filmes de animação
Como vemos, a invasão do texto como faixa contínua sobre todo e qualquer
“capítulo” ou “parte”, num jogo de cesura-sutura, é constante, e a tal técnica ou
mecanismo voltaremos.
“Triunfo meta, início, clarão
Que talvez não acabe”.
Álvaro de Campos, Tramway
O trabalho de Barata Xavier tem encontrado em Fernando Pessoa uma presença
recorrente, basilar, senão mesmo fundadora do seu trabalho, mesmo que os traços
exteriormente visíveis do poeta, isto é, as frases, a sua efígie ou os elementos das
“histórias” emergentes da poesia não se encontrem neste ou naquele projecto do
mestre português de animação. Mas existem alguns filmes que têm essa presença de
modo visível, marcado na fita que se desenrola ao nosso olhar, e é um desses
exemplos, mais narrativo (como discutiremos), que se constitui no filme curto 28.
Possivelmente estaremos aqui a operar uma “redução narrativa”, isto é, a
enfrentar um projecto não-narrativo, experimental, mas sublinhando o facto de que
são propostos um espaço, uma série de objectos e intervenientes reconhecíveis,
recorrentes e em relações interdependentes, as variações instituem alguma possibilidade
de descrever sinopticamente acontecimentos. Mesmo que esta opção simplifique de
forma drástica o que ocorre plasticamente no filme em termos de metamorfoses e
transições visuais, contínuas e atomizadas, e não necessariamente tecendo certos
elos lógico-causais entre si, sentimos poder descrever o filme como “Fernando Pessoa
apanha o 28”.
Para ser esclarecedor, é preciso ter em mente que o 28 se refere à carreira do
bondinho [eléctrico] da companhia pública Carris, carros de transporte que se movem
sobretudo pelas zonas da Baixa pombalina e circundantes, caracterizadas por ruas
íngremes, apertadas e curvas. Os carros originais eram de tracção animal, mas a
partir da passagem do século XIX para o XX, foram sendo substituídos por carros num
sistema de tracção eléctrica, energia esta conduzida pela fiação eléctrica aérea. Não
são apenas os carris que acabam por tipificar as ruas de Lisboa em que o eléctrico
ainda funciona (ou nos locais em que, não funcionando, se deixaram ficar), mas
igualmente esses fios e ilhoses, tal como os carros (antigos, mas ainda em uso) são
recordados pela sua característica cor amarela, e também as suas portas dobráveis,
as janelas de correr verticais, os assentos basculantes, e as altas catenárias. Foi apenas
entre a segunda metade dos anos 1920 e os meados da década seguinte que o
percurso dos eléctricos foi englobando os bairros da Graça, a leste da Baixa, a subida
íngreme até ao Chiado e depois até aos Prazeres, no tempo de vida de Pessoa, da
freguesia de Alcântara, hoje da Estrela. Já havíamos notado, a propósito do projecto
de Guazelli, como as paragens extremas “Graça-Prazeres”, ainda que designem
locais reais de Lisboa, e com alguma relação história à vida de Fernando Pessoa,
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A pluralidade de Pessoa em filmes de animação
ganhava nesse isolamento simbólico um significado mais poético, das próprias
palavras enquanto vocábulos. Nos nossos dias, a sua designação é “28E”, sendo o
seu percurso, da praça do Martim Moniz a Campo de Ourique a rota mais procurada
pelos turistas, por ser um passeio “pitoresco” pela Lisboa mais tradicional. O seu
valor simbólico, a sua sobrevivência face aos novos transportes e decisões políticas
do urbanismo na cidade, e a sua vida no coração de Lisboa – por onde Pessoa terá
frequentado os seus dias – torna-o um natural objecto de atenção, transformado no
filme de Barata Xavier num protagonista risonho, simpático e acolhedor.
Fig. 20. Pessoa e o bondinho em 28 de José-Manuel Xavier.
Mas se podemos então considerar que o filme mostra uma viagem de Pessoa
no 28, não apenas as paisagens e locais que ela atravessa não são “naturais” nem
“reais”, como a materialidade desses espaços se estilhaça e nos levará a atravessar
vários planos de existência visual: o storyworld do filme, mas além e acima dele,
como o do animador-criador, as paisagens míticas da história portuguesa (como em
Mensagem, e, antes dessa obra, de Os Lusíadas) ou da lavra de Pessoa (os campos de
Caeiro, a tabacaria). Na esteira das suas pesquisas de animação, o director procura
navegações múltiplas. Sobretudo e várias vezes a “confissão” da bidimensionalidade
do projecto, sobretudo com os movimentos das “molduras” e a sua redistribuição
no espaço do plano do filme. Esmagando, digamos assim, toda a possibilidade de
ver o plano de composição fílmico como um espaço tridimensional (a janela de
Alberti) e antes numa pura superfície bidimensional. O eléctrico, enquanto transporte,
também assume outras possibilidades de locomoção: nave voadora, nau nos oceanos,
nos quais se debatem monstros de tinta, mãos-ondas que o tentam capturar, sem
sucesso. E, no final, como veremos, assumirá ainda mais funções.
Mas a principal é a de proporcionar “travessias” experimentais entre os níveis
de representação. Assim, seguem-se ainda mais explorações da dimensionalidade
das personagens (os Pessoas, o eléctrico, e outras), fusões, entradas e saídas, redução
de formas corpóreas a letras, uma negociação constante entre os níveis simbólicos
de “imagem” e “escrita”, ainda que advenham daí todos os paradoxos de uma
análise mais profunda: afinal de contas, os sistemas de escrita não são mais do que
parte e parcela de sistemas de notação visuais maiores, e da iconicidade poderá
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A pluralidade de Pessoa em filmes de animação
emergir um sistema articulado como uma escrita, questões prementes na obra e
reflexões ensaísticas de Barata Xavier.
As metamorfoses do personagem Pessoa, neste filme, passam por reflexos nos
vidros do eléctrico, variações de si mesmo, a assunção das sombras em corpo e este
em sombra, os seus usos e desvios. Nos segundos entre 0’55’’ e 1’00’’, por exemplo,
mais de 10 rostos se substituem na cabeça do poeta, enquanto escreve, corroborado
esse gesto pelo som da máquina de escrever, em acção, dimensão à qual
regressaremos... Não analisámos, nos outros projectos, a dimensão sonora, pelo que
haverá algum desequilíbrio de análise, mas os sons em 28 ganham uma proeminência
particular, precisamente porque, mesmo sendo passíveis de serem descritos como
“diegéticos”, acabam por contribuir para a sua “própria desconstrução”, tal qual
como o famoso filme comercial mas usando técnicas experimentais Duck Amuck, de
Chuck Jones (1953), que o animador Richard Thompson descreveu como “ensaio,
pela demonstração, da natureza e condições do filme animado (a partir de dentro) e
as mecânicas do cinema em geral” (apud WELLS, 1998: 39-40). Apetece chamar, só
com a faixa de som proporcionada pelo director e seus colaboradores, vasculhando
os sons de uma máquina de escrever, o quase incessante som de um antigo projector
de película fílmica, o som do eléctrico, sobretudo o sino e os sons da cidade, apetece
chamar a isso, dizíamos, uma sinfonia. E a razão dessa palavra é querer associá-lo ao
famoso projecto de Walter Ruttmann, Wochende (1928), cuja inclusão na história do
cinema se torna possível pela inscrição social do seu autor, um “cineasta”, mas
também pela sua criação técnica, o som tendo sido gravado numa faixa de som de
uma película fílmica. Tal como neste outro marco do cinema experimental, também
28 torna os sons, paisagens, juntando-se às paisagens tornadas a partir do próprio
desdobramento das palavras.
Fig. 21. O uso de dactiloscritos de Pessoa no filme Pessoas de José-Manuel Xavier.
Barata Xavier é profícuo em criar sequências brevíssimas de metamorfoses
dos objectos e/ou personagens. São relâmpagos de imagens cuja descrição, como
neste texto, são bem menos estimulantes e mais morosas que a maravilha dessa
dança de linhas. No canal de Youtube deste autor, é possível encontrar muitos dos
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A pluralidade de Pessoa em filmes de animação
seus “ensaios” e exercícios. Um deles, Pessoas, utiliza como matéria manuscritos e
dactiloscritos de Fernando Pessoa – não apenas como cenários, mas também como
participantes das metamorfoses em rápida sucessão e parceiros da personagem que
se vai formando e desfazendo em ciclos frenéticos. Ainda um outro filme breve do
realizador, intitulado Desassossego, emprega três ciclos de animação baseados na
figura de Pessoa (um deles protagonizado por Pessoa e o nosso eléctrico). O ciclo
inferior, no plano, mostra Pessoa retirando e colocando uma máscara teatral que se
assemelha a ele mesmo. O “drama em gente” é apresentado de forma absolutamente
sumária e destilada. Regressando a 28, um dos trechos do passeio do eléctrico leva
Pessoa a vislumbrar paisagens rurais onde se passeiam ovelhas-Pessoa e ainda um
pastor-Pessoa (ou será antes pastor-Caeiro?). Já antes, Pessoa tinha trocado de reflexo
com um segundo Pessoa que surge depois de vermos na paisagem as palavras
“Pessoas”, “Reis”, “Campos” (note-se no jogo multifacetado) e “Caeiro”, cada qual
com certas características formais e de movimento próprias... Todas estas metamorfoses
em si mesmo parecem ecoar aqueles versos de “Tramway”, que citámos como
epígrafe desta secção: “O resto, o que aqui está sentado, sou eu”...
Não cessam as mudanças de máscaras. Sensivelmente a meio do filme (2’13’’),
“saímos” do nível diegético para chegarmos ao nível do “narrador” (no caso, do
criador do filme – agora personagem da própria ficção), e observamos um animadorPessoa-marinheiro procurando quais novas ideias desenhar e animar. À falta delas,
acaba por se deitar sobre a mesa de desenho. Uma nova transformação tem lugar,
mas como entendê-la? O animador acorda, mas desta vez transformado em Camões?
Ou será antes um sonho do animador dormindo? Essa pergunta não terá resposta,
mas abordaremos estas desorientações ontológicas na última secção do artigo presente.
A relação intertextual e poética entre Pessoa e Camões é por demais complexa, nem
teríamos competências para a abordar, mas não deixa de ser significativo que,
dormindo Pessoa (a personagem), acorde, num plano superior, com vontade e até
capacidade de animar, um Camões, um supra-Camões, o qual revela um projector de
cinema de animação sob a sua pala, e cujo filme, até ali interno, acaba por ocupar
todo o plano, e se constitui na segunda metade do filme que vemos.
Figs. 22. Pessoa metamorfoseado em Camões diante de uma mesa de animação.
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A pluralidade de Pessoa em filmes de animação
Numa relação transformada de escalas, quase já no final, Pessoa manipula o
eléctrico transformando-o numa série de objectos: um pequeno palco, uma espécie
de kamishibai (uma tradição de um teatrinho de papel do Japão do pós-guerra), uma
caixa, ou melhor, a arca dos papéis de Pessoa, voltando finalmente ao eléctrico
antropomorfizado... que, sonolento, talvez demonstre o “sono” de tantos escritos de
Pessoa, só tão mais tarde (e ainda hoje!) redescobertos e trazidos a lume?
Esta dança constante de multimedialidades está presente uma e outra vez,
havendo momentos de integração de dança, de fotografias (reais de Pessoa, mesmo
que apenas em silhueta), do teatro de marionetas, mas acima de tudo há as passagens
intermediais que se consubstanciam quando vemos os planos tornando-se páginas,
estas em pranchas de HQ, as vinhetas destas em carris do eléctrico, numa permanente
magia de substituições e ecos formais (e que terá um importante eco intertextual com
o filme de Chollet).
É como se existisse em 28 (ou na produção de animação “pessoana” do autor)
uma bateria de imagens, ideias, referências, citações, palavras, cenas distintas, rostos
e máscaras em permanente potencialidade na “obra” de Fernando Pessoa, enfim, um
arquivo, que Barata Xavier transforma num campo do qual colhe os elementos que
elege como necessários a uma combinação em sequência: a “narrativa fantasmática”
do seu filme. Todos os outros autores têm também acesso a este arquivo, regra geral,
mas procuram antes reterritorializar esses elementos numa organização narrativa
ora mais clássica (Pessoa descendo o Tietê, enfrentando os piratas, servindo de
secretário, no projecto de Laerte e Guerra) ora mais poética e transfigurada (Pessoa
atravessando o Estige em Guazzelli, o passeante de Chollet atravessando paisagens).
Por seu turno, Barata Xavier emprega essa potencialidade para relançar novas formas,
novas combinatórias, tirando partido da materialidade das linhas e possibilidades
das estratégias próprias da animação para ter algo quase circular: não apenas o
eléctrico volta a dormir, como havia acordado no início do filme, como os elementos
que tinham composto Pessoa (uma onda transformando-se em folhas volantes, estas
compondo o corpo do poeta) se atomizam no final do filme, a “consciência dividida”
do poema citado.
É possível que, se já o pequeno filme de Guazzelli, e todas as suas pesquisas
nas HQ, procuram construir uma compreensão da volubilidade identitária explorada
pelo poeta, se procuram criar uma síntese a partir da “consciência dividida”, e
sempre numa lógica de movimento (que notaremos igualmente em Chollet), Barata
Xavier vai mais longe na liberdade dessa plasticidade. Ele deixa viva sempre a
pergunta final do poema Tramway, que nos ajudou nesta secção: “De que lado é que
é a vida?”
“...a noite do abismo incógnito e o choro de nada se compreender...”
Bernardo Soares, O Livro do Desassossego.
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A pluralidade de Pessoa em filmes de animação
O filme de Thibault Chollet, Le Songe de B. Soares, parece também permitir esta leitura
de vários níveis porosos entre si. Trata-de de uma espécie de sonho inspirado por
uma colagem de fragmentos do Livro do Desassossego, com um grau de independência
em relação à sua matéria de partida maior do que o booktrailer de Guazzelli. Aliás,
abdicando de uma narrativa mais arregimentada como A Cidade dos Piratas, e mais
curto, claro, acaba por se tornar mais concentrado na sua capacidade sugestiva.
Como vemos, intitulando-se “O sonho de B. Soares”, remete para o semiheterónimo de Bernardo Soares, a quem é atribuído o fragmentário e inacabado
Desassossego. Chollet, nos materiais de produção, inclusive sinopse e roteiro, a que
tivemos acesso privilegiado, nomeia o protagonista como “F.” e “escritor”, numa
espécie de redução à letra mínima, tanto prevista no título (“B.”) como na obra de
Kafka, que é citado obliquamente, uma vez que o director menciona como influência
a adaptação de Koji Yamamura do conto “Um médico de aldeia” do escritor checo,
o qual deixou, como é sabido, várias obras longas truncadas e inacabadas, cujo
nachlass é tão impactante e transformador quando o do escritor português, e o seu
mítico baú (recordemos que Desassossego só veio a lume público, numa primeira
abordagem, em 1982).
Figs. 23 e 24. O protagonista de Le songe de B. Soares desenhando.
No filme, essa personagem parece um homem, esguio, de chapéu pontiagudo, e
do que vislumbramos do rosto, escanhoado. Vemo-lo à secretária de costas, a trabalhar,
mas apercebemo-nos não estar a escrever, mas a desenhar, e o que desenha é a paisagem
de fundo, o cenário, na verdade o plano fílmico seguinte no qual mergulhamos logo
a seguir. Será o protagonista, portanto, uma mescla entre escritor e animador, num
novo exercício de auto-ficção e desdobramento? Numa cena adicional, em que o
protagonista parece atravessar uma galeria de arte, e na cena apoteótica final, a
variabilidade das imagens apresentadas parece querer sublinhar acima de tudo o
plano visual, a um só tempo feérico e presente, sólido e mutante, numa transposição
mais materializada da “coisa literária” em “coisa do pensamento” primeiro, e depois
esta em “coisa do desenho” e, para mais, “desenho animado”. Se Otto Guerra participa
no seu próprio filme, como personagem equiparável aos demais, inclusive aqueles
que representam os seus autores-fontes (o primário, Laerte, ainda que esta surja em
imagem fotográfica, em “imagem real”, e o secundário, Pessoa, como personagem
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A pluralidade de Pessoa em filmes de animação
animada), Chollet exercerá um outro poder de amálgama alegórica, com menos peso
associativo à pessoa empírica.
O texto escutado sob a forma de uma voz off em francês bebe de fragmentos
de Le livre de l'intranquilité (em outras traduções, l'inquiétude), no qual se lê, “Nous
vivons dans le clair-obscur de la conscience, sans jamais nous trouver en accord avec
ce que sous sommes, ou suppossons être” [Vivemos, num lusco-fusco de consciência, nunca
certos com o que somos ou com o que nos supomos ser]. No filme, porém, os pronomes
passam à primeira pessoa: “je”. Do plural textual, passa-se ao singular, mas no
figural, o plural mantém-se. Logo numa cena seguinte, aquela mesma personagem
desdobra-se em múltiplas instâncias atravessando um certo espaço. Não só esta
multiplicidade se repetirá noutros momentos, multiplicidade “do mesmo”, como numa
passagem (entre 2’12’’ e 2’31’’) fazemos um varrimento lateral por três personagens
muito distintas a todos os níveis, mas que poderão ser consideradas tentativas de
representar o “je me subis comme l’enveloppe de moi-même”.
Figs. 25 e 26. Influências de Le songe de B. Soares: Volavérunt, (dos Caprichos)
de Goya e Je vis dessus le contour vaporeux d'une forme humaine de Odilon Redon.
Num primeiro momento, acreditámos existir alguma afinidade com o
imaginário gráfico de Edward Gorey, até pelo uso de tramas e linhas “excessivas”,
mas o acesso aos materiais de produção deste filme revela a fonte dessas figuras
distintas. Chollet referencia as gravuras de Goya e também os desenhos de Malcolm
McKesson. Mas naquele varrimento citado, a silhueta fumarenta e negra, com apenas
olhos identificando-a como próxima do humano e a figura feminina envolta num
manto, como um fantasma cartoonesco são decalcadas de uma litografia criada por
Odilon Redon intitulada “Je vis dessus le countour vaporeux d'une forme humaine”,
criada em 1896 para La Maison Hantée, álbum de 6 pranchas litográficas associadas a
um conto de Edward Bulwer-Lytton, cujo título original é The Haunted and the
Haunters: Or the House and the Brain (de 1859). A obra de Redon, em larga medida
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A pluralidade de Pessoa em filmes de animação
proto-surrealista, cria ambientes evocativos e ambíguos, mesclando vistas oníricas e
elementos simbólicos que incitam os espectadores a se deixarem abandonar nas
paisagens do inconsciente e, assim, questionarem as fronteiras da identidade. Mesmo
que a imagem de Redon tenha exercido tão-somente um fascínio superficial sobre
Chollet para a sua inclusão imagética, não deixa de ser particularmente significativo
que isso aconteça com um artista que tenha explorado o modo como a quietude
nocturna, a sua atmosfera ambivalente, abertura a paisagens por cartografar, se abre a
uma viagem introspectiva e existencial imprevisível. Regressando ao texto do livro
em francês, que fica truncado no filme, “Le monde entier est confus, comme des
voix perdues dans la nuit” [leia-se: Todo o mundo é confuso, como vozes na noite].
A “casa assombrada” não significa somente um contentor com conteúdos
fantasmáticos, mas também fantasmar o próprio contentor, diluir suas fronteiras,
delir seus limites e passagens. Se num primeiro plano do filme vemos a personagem
principal num baloiço, rapidamente recuamos num zoom out dramático para o
interior de um quarto dentro do qual outra personagem idêntica observa a primeira.
Na transição desses espaços, todavia (aos 00’38’’), a janela, cuja armação apresenta 6
vidros quadrados, dispostos numa grelha de 2 x 3, pode subitamente parecer uma
página de quadrinhos, pronta a receber os desenhos de uma narrativa, de que
acabámos de ver uma cena. Se essa possibilidade se aventa brevemente em 28, ela é
aqui tematizada de forma mais clara. De novo, notamos a inconstância do ser, de se
ser, de até mesmo saber quem se é ou saber ser. Recordemos, com Eduardo Lourenço,
que a “questão de identidade é permanente e se confunde com a da sua experiência,
a qual não é nunca puro dado, adquirido de uma vez por todas, mas o ato de querer
e poder permanecer conforme ao ser ou ao projeto de ser aquilo que se é” (LOURENÇO,
1994: 9; itálicos no original).
O “claro-obscuro” explorado por Chollet apresenta todos os binómios por
resolver, sejam entre oposições espaciais (dentro e fora), lumínicas (dia e noite),
metafísicas (espírito e corpo), ou texto-materiais (janela de passagem transparentepágina de superfície opaca).
“Anda no intervalo,
Como na descida,
Vácuo do desvão,
Sombra dividida,
A minha atenção...”
Wardour, Crepúsculo em Deus
Se repetimos esta ideia de que os filmes procuram sempre uma passagem entre os
vários níveis de diegese e de representação, não procurando sínteses nem uniões,
mas mantendo a estranheza das suturas, a sua textura rugosa, a sua porosidade, é
porque queremos colocá-los sob o signo da metalepse.
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A pluralidade de Pessoa em filmes de animação
A metalepse, antiga figura da retórica, foi estudada modernamente por
Gérard Genette (no Figures III), e teorizada como uma transgressão narratológica
entre os níveis diegéticos: por hipótese, num romance clássico e aristotélico, o nível
do narrador e o do personagem, que se relacionavam numa clara hierarquia
estrutural (designados hoje por nível diegético e nível hipodiegético, respectivamente).
Qualquer travessia seria vista como ilícita, e destruidora da ilusão naturalista dos
mundos diegéticos que nos estariam a ser apresentados.
Num outro passo do desenvolvimento narratológico, Marie-Laure Ryan
distinguiria, em “Metaleptic machines” (e noutros trabalhos subsequentes), duas
naturezas da metalepse. Aquela que se alinhou atrás, de Genette, é por ela chamada
de retórica e, mesmo que haja uma mensagem trocada entre elas, “mantém os níveis
da hierarquia distintos um do outro”. Mas Ryan considera que, quando se “abre uma
passagem entre níveis que resultam na sua interpenetração, ou contaminação mútua”,
mesclando dessa forma “dois mundos radicalmente distintos, a saber, ‘o real’ e ‘o
imaginário’, ou o mundo de uma actividade mental ‘normal’ (ou lúcida) e os mundos
dos sonhos ou das alucinações”, então surge uma metalepse ontológica (RYAN, 2004:
442). Seja uma personagem, seja o narrador seja o autor (empírico), se estes se
encontram deslocados para um nível diferente do mundo ficcional, então dá-se essa
metalepse ontológica.
Notámos como em todos os filmes há sempre uma travessia “ilícita” dos
níveis que, à partida, deveriam estar separados: o filme dentro do filme de Eu,
Fernando Pessoa, as várias linhas narrativas de Cidade misturando-se, as identidades
de Le Songe desvanecendo-se. Para o espectador, extradiegético, toda a matéria
fílmica é um fluxo contínuo, fragmentos que, de longe, se encaixam num texto de
suave transição, mas para as personagens (sejam estas diegéticas, interdiegéticas,
hipodiegéticas, etc.), a textura rugosa, diferenciadora, é sempre sentida de modos
distintos. O director empírico está representado por uma personagem animada no
filme, “Otto Guerra”, com algum grau de auto-derisão. Laerte Coutinho surge sob a
forma de imagens cinematográficas de “Laerte”. Mas a natureza não é idêntica.
Ela é, na verdade, problematizada de forma clara e explícita nesse filme. Aos
58'19'' de Cidade, a ex-produtora pergunta: “Quem é o autor do filme? O director? O
roteirista? O criador dos personagens?”. Em termos empíricos, esta frase diria respeito
a, respectivamente, Otto Guerra, Rodrigo John e Laerte (sem bem que todos assinem
oficialmente o roteiro do filme), mas é curioso que, nesse mesmo momento, o filme
revela que o roteirista é, visual e interdiegeticamente, a personagem de Pessoa. Essa
pergunta também poderia ter sido colocada aos filmes 28 e Songe: Pessoa ou Camões
(voltando a Duck Amuck, Camões teria aqui o papel do Bugs Bunny, não demiurgo,
mas deus do mundo proteico da animação que é sofrido por Pessoa/Patolino)?
Pessoa ou avatar de Chollet?
Mas este jogo de identidades é incessante e quase universal na intriga de
Cidade, ao ponto mesmo em que, quando o político finalmente se confronta com o
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A pluralidade de Pessoa em filmes de animação
Minotauro e dá o passo decisivo à sua eliminação, se confundem entre si e a própria
Laerte é arrastada para essa equação, num segmento fílmico inédito em que se a vê
coberta de sangue. Mas de quem é este sangue, exactamente? Do minotauro alvejado?
Do político como reflexo revelado do Minotauro? Ou daquela Laerte-autora-tornadapersonagem-no-filme, carne da carne e sangue do sangue da personagem-Minotauro?
Estes níveis não surgem como meros exercícios formais de “confusão textual”,
como prova de um qualquer tipo de virtuosismo técnico. Eles servem antes para
complexificar e colocar em crise dimensões éticas e ontológicas. Afinal, uma pergunta
que deve sempre imperar quando pensamos a adaptação de textos literários é: qual
o propósito epistemológico da sua inclusão? Qual é a “autoridade” do autor original
sobre a possibilidade da reapropriação sobre textos seus? A partir do momento em
que se tornam textos públicos, lidos e passíveis de serem reimaginados pelos leitores
– alguns dos quais se tornam activos e novos produtores, autores, de novos textos –
como se poderá exercer limitações das suas transformações e recombinações? E se
um autor resolve criar um avatar seu no interior do seu projecto, como poderá impedir
que se façam leituras interpretativas do que sucede a essa figura como uma espécie
de comentário, desejo ou confissão sobre o próprio trabalho artístico que estamos a
testemunhar? Nesse sentido, todos estes directores, de modos bem distintos, acabam
por nutrir os seus filmes de camadas extradiegéticas e de multiplicação de identidades.
Esse, no fundo, é o papel e a consequência do uso da metalepse, pois a sua
operação, “seja qual for a categoria a que pertençam [é] a concidência do que em
princípio não deveria coincidir” (BAETENS, 2001: 178; minha tradução).
No artigo citado, Jan Baetens discute La Jetée de Chris Marker (1963), quer na
sua forma fílmica, quer na sua forma de livro de fotografia, mas as passagens
metalépticas “pessoanas” no interior dos filmes de animação discutidos no presente
trabalho são comparáveis ao filme e ao livro de fotografia de Marker discutidas pelo
teórico belga no sentido em que neles identificamos igualmente “cesuras” dos planos
diegéticos e as consequentes “suturas”. Desse modo, poderemos compreender as
palavras de Baetens como válidas no nosso contexto, quando ele escreve: “Pois neste
filme a dialéctica da cesura e da sutura está de tal forma omnipresente que ela talvez
force a vislumbrar uma lógica que faz depender a sutura da cesura, e vice-versa”
(BAETENS, 2001: 178).
Uma das dimensões dessa sutura é a presença da figura de Fernando Pessoa
precisamente nessa sua qualidade figural, de uma plasticidade própria, icónica, de
uma forma-sentido vincada, assinalável e reconhecida. Mas que no cinema de animação
ganha uma particular natureza. Nenhum dos autores coloca em causa a integralidade
física do poeta enquanto figura, e somente Guazzelli joga com variações físicas que
podem imitar uma corporalidade dos heterónimos e, obviamente, torna o coração
de Pessoa em parte actuante independente.
O corpo das personagens animadas possui uma qualidade, desde logo, sempreem-metamorfose, uma vez que se tratam de desenhos múltiplos rapidamente passados
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em sucessão num mesmo plano de maneira a que, graças ao fenómeno da persistência
da visão, se crie a ilusão de movimento (AUMONT, 1997: 18 e ss). Permitam-me usar
esta descrição genérica, mesmo sabendo existirem casos em que possam existir
técnicas relativamente díspares, como na animação de volumes, técnicas automáticas
assistidas por algoritmos, ou outras abordagens mais ou menos experimentais. Nem
todo o cinema é feito de 24 imagens por segundo, mas essa é uma base válida de
discussão mais universal. Uma vez que esses corpos animáticos estão num constante
processo de emergência e apagamento (os frames), o corpo não tem uma existência
cabal, mas antes virtual, o que leva Schaffer a falar de um corpo “an-ontológico”.
Informado pelo brevíssimo comentário que Deleuze dedica à animação em
Cinéma 1: L'image-mouvement, William Schaffer indica como diferença fundamental
entre os dispositivos cinemáticos e animáticos o seguinte. No cinema, o tempo da
captura e o tempo da projecção coincidem, mas na animação, a temporalidade da
produção não é a mesma que a da projecção (SCHAFFER, 2007; LEVITT, 2014), pois os
planos, os desenhos, têm um tempo de feitura mais dilatado, dependendo da técnica,
menos ou mais moroso. Schaffer escreve: “No cinema, como argumenta Deleuze, o
intervalo automático permite às câmaras extrair movimento dos corpos, mesmo que
acabe por descentrar o movimento elevando-o a um plano de imanência, o qual se
encontra aberto a efeitos de falsa continuidade. Na animação, o intervalo automatizado
engendra movimento” (apud LEVITT, 2014: 131; minha tradução).
Mesmo que parcialmente, esse engendramento ou emergência de sentido já
existe na natureza do próprio desenho – compreendido aqui, em contraste com a
animação, como plano ou objecto singular, isolado. O desenho, então, seja ele impresso
numa página (de HQ, no caso) ou agenciado para a animação, possuirá sempre uma
materialidade não-transparente, antes acentuada e trazida para primeiro plano. Criando
a possibilidade de poder ver a imagem que representa e ver a imagem representando,
surge a “incerteza” celebrada por Hannah Frank: “Em vez de resolver o cabo-de-guerra
entre a materialidade própria da fotografia e o objecto material que representa, entre
o mundo da imagem e o mundo que tornou possível que a imagem existisse,
entramos na imagem” (FRANK, 2019: 47; minha tradução, sublinhado no original).
Porém, estes quatro filmes utilizam uma composição geral relativamente clássica
de um perspectivismo cartesiano, como se a câmara capturasse os movimentos das
personagens à sua frente. No filme de Guazzelli, apesar dos primeiros segundos
mostrarem o coração flutuante atravessando espaços, a escolha é dada a ter 4 planos
estáticos – apenas o quarto tem um ligeiro zoom in – e vermos o coração se movendo
através deles (com outros efeitos de iluminação, cor e movimento de objectos
secundários, aumentando a ilusão, mesmo no interior de um filme com mais
limitações técnicas, e cujos movimentos são menos fluidos). Naturalmente, os
valores de produção deste curtíssimo filme não são idênticos à longa de Otto Guerra,
mas a questão aqui não é criar, de forma alguma, uma hierarquia de valorização
estética cega às circunstâncias de produção. Tão-somente queremos sublinhar, no
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caso de Guazzelli, a predilecção por uma certa vista estática, que se compreende
igualmente no trabalho quadrinístico, afinal, em contraste com a mais convencional
dramatização de Laerte, mesmo quando a empregando para conteúdos mais livres,
poéticos ou surrealistas. Esta qualidade estática ganha ainda mais corpo se se reparar
na escolha que este filme faz em revelar matéria verbal a ler – palavras, frases – ao
passo que no projecto de Laerte e Guerra, os poemas ganham outro corpo nos balões
de fala e faixa áudio.
Desse jeito, e por força das acções mais dinâmicas, as cenas em que Fernando
Pessoa “participa” em A Cidade dos Piratas, as escolhas dos planos é também clássica.
Existem composições menos simétricas e centradas, desviando lateralmente o ponto
de fuga; o uso de técnicas de paralaxe, e uso de camadas digitais para o movimento
de certos objectos, como a caravela e gôndola, insuflam alguma fluidez notória; e o
estilo de alto contraste, com linhas de contorno negras e grossas, trazem uma presença
sólida das personagens e seu entorno. Mas as transições, movimentos, ângulos, estão
dentro de uma abordagem expectável. Este Pessoa vai declamando poesia com
gestos largos e expressões sentidas. É uma personagem igual às demais.
No caso do filme de Thibault Chollet, encontramos uma negociação intermédia.
Os movimentos da “câmara” – zooms, varrimentos horizontais e verticais, dollys –
mimam a existência de um espaço cartesiano, e as travessias entre níveis são mais
fluídas, mas o texto, lido de modo tranquilo, numa voz suave, quase baixa, mantêmse sempre à distância, como comentário, não agente, na “intriga” visível. As acções
físicas do protagonista, e as “vistas”, criam sempre elos específicos com os textos
lidos, o que faz imaginar tratar-se do pensamento contínuo dele, mas nada disso
impede o trânsito entre os níveis: o que ele faz e o feito, a criação e o criado.
“So many philosophies, so many theories,
all of them how strange in the light of day”.
Charles Robert Anon (fragmento)
Como uma espécie de conclusão, permitam-me uma nota mais pessoal, artística até.
Por altura da publicação deste artigo, a editora portuguesa Levoir lançou uma
nova colecção intitulada Clássicos da Literatura Portuguesa em BD, uma série de
adaptações à, como dizemos em Portugal, banda desenhada (ou BD), partindo de
várias obras nacionais e adaptadas por, maioritariamente, autores portugueses. O
primeiro volume é precisamente de Fernando Pessoa, Mensagem. Foi co-criado pela
magnífica artista Susa Monteiro, comigo, tendo escrito eu o roteiro. As convergências
de interesses foram por puro acaso – os editores desta mesma publicação não estavam
informados deste projecto quando do momento do convite, e mesmo durante a
redacção do artigo não estava publicado –, mas são uma coincidência que me
permite abrir aqui, esperando não ser abuso, algumas das estratégias verbo-visuais
que optámos para esta adaptação.
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Fig. 27. Fernando Pessoa, Mensagem (editora Levoir).
O facto de Fernando Pessoa ter lançado as pistas do seu “drama em gente” da
multiplicação heteronímica na carta a Casais Monteiro, e que subsequentes estudos
e descobertas a partir da arca, e disponibilização de múltiplas edições, interpretações,
etc. foram multiplicando ainda mais – num movimento de diástole literária, para
recuperar uma expressão de Cleonice Berardinelli e Vítor Manuel de Aguiar e Silva
sobre Camões, metaforicamente aplicável a Pessoa, e cuja origem técnica associada
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a cardiologia ajudará a recuperar o coração flutuante de Guazzelli – incita desde
logo à criação de variações do Pessoa. O seu nome, mesmo, convida também aos
desdobramentos possíveis na multiplicidade plural – Pessoa, pessoas – ou ficções /
dramatizações – pessoa, de persona, a máscara teatral grega.
Nesse sentido, e apesar de nos atermos ao texto integral dos poemas de
Mensagem, optou-se por enquadrá-los em brevíssimos episódios ficcionais da sua
feitura e posterior recepção pública. Tematizou-se, nesses mesmos momentos, o
desdobramento heteronímico de Pessoa, numa breve sequência de variação visual
da sua figura (roupa, corte de cabelo, postura). A transfiguração de Lisboa em
espaços mutáveis e abertos a toda a simbologia contida em Mensagem aplica-se desde
logo: o Pessoa-funcionário encontra-se a trabalhar num edifício com o letreiro
“Sossego”, as águas do Tejo / Mar invadem a calçada, as letras e papéis de Pessoa
ganham agência plástica própria. Durante todo o poema, transformando cada parte
em capítulos, e cada poema numa HQ de uma página, procurámos formas de
regressar a símbolos recorrentemente, tecendo toda a matéria numa coerência
interna, mas que superficialmente – em termos de composição das páginas, registo
cromático, colocação do texto sob a forma de legendas, balões de fala atribuídas às
personagens citadas ou filacteras mais simbólicas e icónicas, etc. – explora também
uma grande variabilidade estilística.
Um quase-heterónimo de Pessoa, a que Luís Filipe B. TEIXEIRA associa a um
“núcleo sanatorial” (1997: 227-237), António Mora, possui um fragmento que nos
parece particularmente explícito sobre como o trabalho da adaptação, isto é, uma
abertura a um “mundo de imaginação”, vai permitir estratégias bem distintas das
“ficções da memória” (histórica, documental):
As ficções da memória seguem as características do mundo externo, de que são a reprodução
mais ou menos exacta. Caracteriza o mundo externo a exterioridade espacial e temporal, a
pluralidade do conteúdo, e a sujeição a uma lei. [...] Caracteriza o mundo da imaginação a
exterioridade não-espacial e apenas conscientemente temporal, o indefinismo unificado no
conteúdo, e a ausência de lei aparente. Caracteriza o mundo da abstracção a não-exterioridade de
seus conceitos, a pluralidade abstracta do seu conteúdo, e a sujeição a uma lei racional porque
imanente (raciocínio) nos conceitos em que impera.
(PESSOA, 1968: II, 209)
Neste trabalho autoral, tal qual se verifica no de Laerte, Guerra, Barata Xavier,
Guazzelli e Chollet, admite-se uma exploração de um “indefinismo unificado”, a
primeira palavra remetendo à cesura dos materiais, dos estilos, das variações
temáticas e representativas, e a segunda à oferta de um texto, a descobrir pelos
leitores-espetadores. Apenas na aparência existe uma “ausência de lei”, já que o que
impera é uma clara presença plural.
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Agradecimentos
Quero agradecer aos editores, pelo convite, condução e acesso a tantos materiais. Aos directores Otto
Guerra, Eloar Guazzelli e Thibault Chollet, pela generosa partilha dos seus filmes e documentação
de produção. E Dário Duarte, pela caça à referência certa.
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Bibliografia
Fontes primárias (fílmicas e quadrinísticas)
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FAZZOLARI, Davi; GUAZZELLI, Eloar (2011). Fernando Pessoa e Outros Pessoas. São Paulo: Saraiva.
GUERRA, Otto (2018). A cidade dos piratas. Otto Desenhos Animados. Filme de animação, 6’. Acessado
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PINTO, Adriana. (2013). Eu, Fernando Pessoa. Booktrailer de Eu, Fernando Pessoa, de Ventura e Guazzelli.
Auto-produzido. Filme de animação, 1’32’’. Via https://www.youtube.com/watch?v=StyRLiVYDjs
VENTURA, Susana; GUAZZELLI, Eloar (2013). Eu, Fernando Pessoa. Em quadrinhos. São Paulo: Peirópolis.
XAVIER, José-Manuel Barata (2009). 28. Auto-produzido. Filme de animação, 4’40’’. Acessado via
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Fontes secundárias
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BUKATMAN, Scott (2021). The Poetics of Slumberland. Animated Spirits and the Animating Spirit. Berkeley,
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FRANK, Hannah (2019). Frame by Frame. A Materialist Aesthetics of Animated Cartoons. Oakland, CA:
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LEVITT, Deborah (2014). “Animation and the Medium of Life: Media Ethology, An-Ontology, Ethics”.
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LOURENÇO, Eduardo (1994). Nós e a Europa ou as duas razões. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda.
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MOURA, Pedro (2015). [Resenha a vários títulos da Cachalote]. Lerbd, 6 de outubro. Veja-se:
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WELLS, Paul (1998). Understanding Animation. London: Routledge.
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PEDRO MOURA é um investigador de Lisboa, com um doutoramento em Literatura Comparada
da Universidade Católica de Leuven e da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
(FLUL). Publicou em 2022 Visualing Small Traumas. Contemporary Portuguese Comics at the
Intersection of Everyday Trauma pela Leuven University Press, e em 2023 Fazer Isto & Asignar,
dedicado à obra de banda desenhada de Rafael Bordalo Pinheiro, pelo Museu deste artista, em
Lisboa. Foi editor de Ilan Manouach in Review (Routledge, 2023). Enquanto argumentista para
banda desenhada, publicou muitas histórias curtas, uma novela e tiras online. Mais recentemente
publicou com o artista João Sequeira Como Flutuam as Pedras (A Seita, 2023) e com Susa Monteiro,
a adaptação de Mensagem, de Fernando Pessoa (Levoir, 2024). Moura lecciona história, teoria e
redacção de roteiros para quadrinhos, ilustração e animação desde 2003 em várias instituições
portuguesas, e também adquiriu experiência internacional. Actualmente, lecciona na ESADCaldas da Rainha, na Universidade do Algarve, na Escola Superior Artística do Porto e no Ar.Co
em Lisboa. Dentro do campo dos quadrinhos, ele é muito activo como curador, documentarista
de TV, podcaster, proprietário de livraria/galeria e crítico. Escreve regularmente para seus blogs
em português e inglês, além de participar das redes sociais.
PEDRO MOURA is a researcher from Lisbon, holding a Ph.D. in Comparative Literature from the
Catholic University of Leuven and the School of Arts and Humanities at the University of Lisbon
(FLUL). In 2022, he published Visualing Small Traumas: Contemporary Portuguese Comics at the
Intersection of Everyday Trauma, through Leuven University Press. In 2023, he released Fazer Isto
& Asignar, dedicated to the comic book work of Rafael Bordalo Pinheiro, published by the artist's
museum in Lisbon. He served as the editor for Ilan Manouach in Review (Routledge, 2023). As a
comic book writer, Moura has published numerous short stories, a novella, and online comic
strips. Recently, he collaborated with artist João Sequeira on Como Flutuam as Pedras (A Seita,
2023) and with Susa Monteiro on the adaptation of Fernando Pessoa’s Mensagem (Levoir, 2024).
Moura has been teaching history, theory, and scriptwriting for comics, illustration, and
animation since 2003 in various Portuguese institutions, and he has also gained international
experience. Presently, he teaches at ESAD-Caldas da Rainha, the University of Algarve, Escola
Superior Artística do Porto, and Ar.Co in Lisbon. Within the field of comics, he is highly active
as a curator, TV documentarian, podcaster, bookstore/gallery owner, and critic. He writes often
for his Portuguese- and English-language blogs, as well as for social media.
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Dix
O mistério da Boca do Inferno
A obra de Fernando Pessoa tem gerado e vai gerar ainda uma vastíssima variedade de
interpretações; daí uma das muitas fascinações que é capaz de criar. Muitas descrições
paisagísticas do Livro do Desassossego, por exemplo, a maior parte delas datadas da
década de 1930, podem ser mais bem compreendidas como uma meditação calma
ou como uma observação tranquila da realidade do sol, dos pingos da chuva, das
sombras, das nuvens, ou do belo jogo entre tais realidades. Porém, sabemos que a
vida de Pessoa não se limitou a uma meditação calma das condições meteorológicas.
Tal como anunciado já no título, o Livro é sobretudo um conjunto de inquietações
metafísicas e religiosas, mas também um testemunho de turbulências pessoais ou
sociais, relatadas, na maior parte das vezes, de uma forma tácita, subentendida.
Em termos pessoais, Pessoa viveu um dos momentos mais agitados da sua
vida em 1930 e a primeira indicação dessa agitação encontra-se num trecho do Livro
do Desassossego, escrito já nas últimas semanas de 1929. A famosa referência a uma
“autobiografia sem factos”, ou a determinadas “Confissões” em que nada há para
dizer (PESSOA, 2013: 283), é uma alusão a um livro que Pessoa tinha encomendado
no dia 18 de Novembro de 1929 à editora londrina The Mandrake Press. O livro
chegou poucos dias depois, tinha o título The Confessions of Aleister Crowley: An
Autohagiography (Fig. 1), e o autor era Aleister Crowley, na altura também conhecido
como um mago excêntrico que gostava de ser conhecido como “the wickedest man of
the world”. As páginas das “confissões” crowleyianas estão repletas de factos, alguns
verídicos, outros inventados. Tal tipo de obra não se podia esperar de Pessoa, até
porque ele não se considerava – como Crowley – um santo, ou um santo malvado.
Ora, o ideal pessoano de uma “autobiografia sem factos” pode ler-se como uma
reacção a essas páginas confessionais (e a outras afins), escritas por que acreditasse
em alguma espécie de confissão e ainda no auto-elogio, narrando praticamente apenas
conquistas, triunfos ou sucessos.
A chegada do livro do ocultista inglês coincidiu com uma fase literariamente
fértil e pessoalmente turbulenta na vida do escritor português, que ainda, de forma
esporádica, se dedicava à astrologia. Este interesse pelos astros explica o motivo pelo
qual Pessoa, que já tinha calculado muitos mapas astrais com anterioridade (de
Shakespeare, de Baudelaire, de Mussolini, etc.; cf. PESSOA, 2011), decidiu estudar um
horóscopo que encontrou nas primeiras páginas de Confessions, encontrando, para
espanto posterior de Crowley, uma pequena imprecisão no Medium Coeli (MC).
Pessoa enviou então uma carta à Mandrake Press, requerendo que o autor do livro
fosse informado sobre um erro no seu próprio horóscopo, que talvez conviesse
rectificar no futuro. Crowley teve conhecimento da carta, ficou impressionado com
a observação atenta e minuciosa do remitente lisboeta, agradeceu vivamente a mesma
e propôs, pouco depois, um encontro pessoal. Assim, a partir do dia 11 de Dezembro
de 1929, Pessoa iniciou uma correspondência relativamente irregular com o mago
britânico e um dos assuntos principais da troca epistolar foi a discussão referente à
data mais apropriada para tal encontro.
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O mistério da Boca do Inferno
Fig. 1. The Confessions of Aleister Crowley, vol. I (CFP, 8-131).
Todavia, uma leitura atenta das cartas de Pessoa e o conhecimento de alguns
pormenores da vida conjugal de Crowley revelam que nenhum dos dois jogava com
as cartas abertas. Pessoa afirmou que gostaria de conhecer o seu interlocutor, mas
referiu várias vezes constelações astrológicas desfavoráveis a uma eventual viagem
de Crowley a Lisboa. Este último, por seu lado, escondeu os seus graves problemas
conjugais, e nunca esclareceu os seus planos paralelos: viajar pelo mundo com uma
jovem amante que tinha conhecido recentemente em Berlim. Para Crowley, a viagem
não era tanto ou apenas motivada por Pessoa, mas pela vaga ideia de uma espécie
de lua de mel com a amante alemã. De facto, há várias indicações que sugerem que
Crowley nunca teve a intenção de se deslocar a Lisboa para fundar uma espécie de
filial de uma das suas ordens secretas na capital de Portugal, embora esse pudesse
ser a justificação mais “oficial”. Até certo ponto, Crowley queria, nesta viagem, como
também quis noutras, juntar o útil ao agradável.
Pessoa não só nunca manifestou um grande entusiasmo com a provável vinda
de Crowley a Lisboa, como talvez tivesse assumido que esse plano já não se
concretizaria, após uma longa interrupção da correspondência durante o Verão de 1930.
Porém, no dia 28 de Agosto de 1930, recebeu um telegrama completamente
inesperado, indicando “Crowley chega no Alcântara – por favor encontrar”. Pessoa
terá ficado perplexo, com a sensação de ficar relativamente preso pelas circunstâncias
intempestivas. Ora, uns dias mais tarde, a 4 de setembro, por causa do clima,
Crowley chegou ao porto de Lisboa, acompanhado pela jovem artista Hanni Jaeger.
Pessoa estava à espera. Ao que parece, o primeiro contacto foi bastante cordial;
Crowley descreveu Pessoa como um “very nice man” [homem muito agradável].
Depois de partilharem uma mesa de jantar juntos, Crowley e Hanni, que era 30 anos
mais nova mais do que ele, passaram uma noite no Hotel de l’Europe, antigamente
situado na Praça Luís de Camões. O mago inglês não dissimulou o facto de não gostar
de Lisboa e descreveu a cidade como “Squalid, ill-paved, dirty, narrow, dull”
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O mistério da Boca do Inferno
[esquálida, mal pavimentada, suja, estreita, enfadonha]. Logo no dia seguinte, fugiu do
“hell of noise” [inferno de barulho] olisiponense e alojou-se no Hotel Paris, no Estoril.
Celebrou, com outro estado de espírito, que esse hotel ficasse à frente de uma
“perfect plage” [praia perfeita] (sempre apud PASI, 2012: 264). Pelo que se sabe, os
primeiros dias do casal no Estoril correram muito bem e eles divertiram-se, dividindo
o tempo entre a praia, a magia sexual, algumas bebidas espirituosas e boas refeições.
Fig. 2. Telegrama de 28 de agosto de 1930 (BNP/E3, 208r).
PESSOA ACARTADO 147 LISBOA | CROWLEY ARRIVING BY ALCANTARA PLEASE MEET.
A partir da deslocação para o Estoril encetaram, de facto, duas histórias quase
paralelas, cada uma com actores diferentes.
Na primeira, Pessoa visitou, a 7 de Setembro, o casal no novo hotel, passou uma
tarde inteira com ambos e podemos imaginar que falou, com Crowley, sobre diversos
assuntos ligados à astrologia, às ordens secretas e ao ocultismo. Presumivelmente,
os dois também falaram sobre a hipótese da publicação de algumas obras de Pessoa
e de autores portugueses na Mandrake Press. E nesse dia terão marcado, para o dia
9 de Setembro, em Lisboa, um encontro com Raul Leal, com o intuito de “iniciar”
Leal, talvez a figura mais excêntrica do modernismo português. Sabemos, pelo diário
de Crowley, que voltou a Lisboa no dia combinado, almoçou na capital e encontrou
pela primeira vez na vida Raul Leal, com quem manifestamente não simpatizou
muito. Crowley refere-se a uma “iniciação” de Leal durante a noite desse dia, mas
nunca chega a acrescentar que Pessoa fosse outro candidato à “iniciação”. Isto é
fulcral, porque permite insistir num ponto decisivo: não há prova nenhuma de
iniciação mágica em que Pessoa tenha participado e talvez Pessoa derivou para Leal
a iniciação que Crowley lhe sugeriu.
Contudo, os acontecimentos exactos dessa noite podem provocar uma certa
volúpia, um certo interesse voyeurístico, tendo em conta que Pessoa escreveu, no dia
seguinte, o seu único poema ligeiramente erótico:
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Seus seios altos parecem
(Se ella estivesse deitada)
Dois montinhos que amanhecem
Sem ter que haver madrugada.
(BNP/E3, 117-49r)
Este poema poderia ser lido como um indício: conteria os sinais de que Pessoa viu
nua a Hanni Jaeger durante o ritual magico da “iniciação” de Raul Leal. Mas esta é
apenas uma hipótese não verificável, uma vez que não se conserva nenhuma descrição
detalhada sobre aquilo que aconteceu nessa noite (9 de Setembro) no apartamento
de Leal na Rua das Salgadeiras.
O que temos é alguma informação escassa referente a outros dias. Sabemos,
por exemplo, que dia 12 Crowley foi visitar a Boca do Inferno, levando consigo
alguns pincéis e uma tela para captar esse impressionante espetáculo natural de uma
forma pitoresca. Ele e Hanni convidaram, depois, Pessoa para os visitar novamente
no Estoril, mas este apresentou desculpas através de uma estranha nota em que
declina o convite por causa de um “tratamento”. No dia 17 de Setembro, Pessoa
voltou a receber uma carta de Crowley, em que este revelou uma certa preocupação,
já que a Hanni tinha fugido depois de um violento ataque de histeria (“Last night
Miss Jaeger had a violent aqack of hysteria, and upset the whole hotel”; PESSOA,
2019: 335). Crowley estava muito aflito e pedia um telefonema à volta do correio. É
plausível que Pessoa tenha ligado. O certo é que passaram mais uns dias e o jornalista
Augusto Ferreira Gomes disse ter encontrado, sob uma cigarreira com desenhos
egípcios supostamente pertencente a Crowley, na Boca do Inferno, uma carta
misteriosa de 21 de Setembro em que se lia: “I cannot live without you. The other
“Boca do Infierno” will get me — it will not be as hot as yours” (PESSOA, 2019: 337).
Ferreira Gomes entregou a carta à polícia, a mesma foi identificada como a carta de
despedida de um suposto suicídio e o inspetor Albuquerque, em diálogo com o
jornalista amigo de Pessoa, chegou rapidamente à conclusão de que o autor da
missiva era Aleister Crowley.
Fig. 3. Pintura de Crowley, intitulada “Boca Do Inferno”.
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Ora, dado que Pessoa era o contacto local de Crowley em Portugal, este foi
chamado à esquadra da polícia de investigação criminal no Jardim de Torel, com a
esperança de que pudesse dar informações sobre o paradeiro do mago inglês. Crowley
tinha desaparecido sem deixar rasto e a polícia viu-se de repente confrontada com a
questão de saber se se tratava, de facto, de um suicídio, ou até de um assassinato, que
podia ter sido cometido pela Igreja Católica, como algumas pessoas em Inglaterra
chegaram a suspeitar. A morte ou o desaparecimento (mortal?) de Crowley tornouse num caso público, muito noticiado, tanto em jornais de Portugal, como de França e
da Inglaterra. Nessa altura, Crowley já era uma pessoa bastante conhecida e afamada
em toda a Europa. Pessoa, fazendo jus ao seu amor pelo mistério, não foi de grande
ajuda para a polícia, pois tornou a investigação mais complexa, acrescentando, por
exemplo, explicações astrológicas sobre a data exacta do desaparecimento. A
investigação acabou por ser declarada inconclusiva e abandonada, e a história
desapareceu da memória pública com a mesma rapidez com que desapareceu dos
jornais.
Fig. 4. Páginas de Détective, n.º 105, de 30 de outubro de 1930.
Esta é a primeira história. Mas há uma segunda história, menos oficial e com
alguns pormenores interessantes, sobretudo em relação ao paradeiro de Aleister
Crowley e de Hanni Jaeger.
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Como já indicámos, Pessoa não procurou multiplicar os contactos pessoais
com Crowley e chegou a referir um “tratamento”, verdadeiro ou fictício, para não se
deslocar novamente ao Estoril. Na noite de 16 para 17 de Setembro, Hanni Jaeger
teve um suposto ataque de histeria que “incomodou o hotel inteiro”, como Crowley
escreveu numa carta a Pessoa. A jovem alemã acabou por desaparecer, no dia 17 de
Setembro, em direcção a Lisboa, e contactou o cônsul americano Lawrence Sheppard
Armstrong. Aproveitando que tinha duas nacionalidades, tanto a alemã como a
norte-americana, Hanni Jaeger pediu ajuda financeira no consulado americano para
comprar um bilhete de navio. Com essa ajuda, no dia 20 de setembro embarcou para
a Alemanha. Pelo seu diário, sabe-se que Crowley voltou a encontrar-se com Hanni
Jaeger em Lisboa, antes do embarque, e que ambos aproveitaram a oportunidade
para celebrar, de forma animada, mais novo ritual de magia sexual. É quase certo
que, entre os dias 18 e 20 de Setembro, em Lisboa, tiveram lugar ainda alguns
encontros entre o casal e Pessoa, e que nessa altura terão discutido melhor a partida
que queriam pregar à polícia e aos jornais. Nos trechos destinados a uma novela
policial, intitulada The Mouth of Hell, Pessoa indica várias vezes que o desaparecimento
de Crowley poderia ter sido um “prank” (partida) ou um “hoax” (embuste). Basta
lembrar que no dia 20 de Setembro, à tarde, Crowley foi de Lisboa para Sintra, onde
se encontrou com Eduardo Maldonado Pellen (Pessoa tinha arranjado este contacto)
para jogar xadrez. No dia 21 de Setembro, ainda em Sintra, cujos encantos apreciou
bastante, Crowley anotou no seu diário o seguinte: “Developed plan to utilize local
scenery [...] Wrote: I cannot live without you. The other ‘Boca do Infierno’ will get
me – it will not be as hot as yours” (cf. PASI, 2012: 269) [Fiz planos de utilizar um cenário
local (...). Escrevi: Não posso viver sem ti. A outra ‘Boca do Infierno’ apanhar-me-á – não
será tão quente como a tua]. No dia 22 de Setembro, o ocultista inglês, já de volta a
Lisboa, conheceu, na companhia do porteiro do Hôtel de l’Europe, os recantos do
Bairro Alto. No dia seguinte, saiu do Hotel, indicando que ia novamente para Sintra.
Contudo, nesse dia, às 11h30, Crowley apanhou o Sud-Express e passou a fronteira
de Portugal com a Espanha, em Vilar Formoso, às 19h00, já em direção a França.
Após uma curta paragem em Paris, chegou no dia 25 de Setembro a Berlim, onde
reencontrou a Hanni e retomou, com ela, certos rituais sexuais. Enquanto Crowley
permanecia fora de Portugal, Fernando Pessoa e Augusto Ferreira Gomes aproveitaram
para tornar mais misteriosa a sua retirada de cena e criar, perturbando a polícia e com
a ajuda de alguns jornais de Portugal, França e Inglaterra, uma imensa confusão. No
fim de contas, ninguém sabia ao certo se se tratava de um suicídio, um assassínio ou
uma brincadeira de mau gosto? Mas sem dúvida Pessoa e Ferreira Gomes gozaram
colossalmente com o enredo falso que o desaparecimento de Crowley facilitou; e
também Crowley, através das notícias que podia receber.
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Fig. 5. Texto de Pessoa publicado na revista Girasol de 16 de Dezembro de 1930.
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Se contemplarmos bem os acontecimentos, a relação entre Fernando Pessoa e
Aleister Crowley foi do dia 18 de Novembro de 1929 (quando Pessoa contactou pela
primeira vez a Mandrake Press) até ao dia 21 de Março de 1932 (quando Pessoa
recebeu uma circular enigmática da A∴A∴, uma ordem ocultista fundada por
Aleister Crowley e George Cecil Jones em 1906). Essa relação e os dias em que ambos
coincidiram parcialmente em Portugal, têm suscitado as mais diversas especulações.
Se nos basearmos apenas nos factos, podemos pelo menos arriscar algumas afirmações
em relação a três aspetos.
Primeiro, os dois actores principais desta peça enigmática tinham formas de
ser e de agir completamente diferentes. Pessoa sempre foi uma figura bastante
introvertida, com uma vida monótona numa cidade pacata e provinciana, que se
sentia mais confortável quando estava sozinho numa mesa de café com poucos
livros, um lápis e um bloco de notas, ou quando estava em casa, com os “2-8-6!” do
Senhor Trindade (dois tostões para os fósforos, oito tostões para cigarros, e seis
tostões para a garrafa atestada de bagaço). Contrariando este estilo de vida
reservado, Crowley procurava a maior agitação possível, adorava ser o centro das
atenções e passou grande parte da sua vida a viajar pelo mundo e por lugares
remotos, utilizando os seus companheiros, e sobretudo as suas companheiras,
apenas para benefício próprio. No entanto, Pessoa e Crowley, sendo tão diferentes,
também tinham algumas semelhanças. Um era um grande sentido de humor; outro,
um imenso gosto pela criação de histórias de mistério. Por isso, a estranha história
da Boca do Inferno pode entender-se como um divertimento lúdico de dois irónicos
com um notável sentido do humor
Segundo, o encontro tinha também uma motivação literária, tendo em conta
que Pessoa tentou, através da editora inglesa que publicava as obras de Crowley, a
divulgação cultural de alguma literatura portuguesa. Assim, enquanto Crowley
estava com Hanni Jaeger na praia do Estoril, por exemplo, Pessoa procurava negociar a
tradução de algumas obras portuguesas com a Mandrake Press, dos antigos
Cancioneiros e Romances de Cavalaria Portugueses, até a O Mandarim, de Eça de
Queirós, passando por O Barão de Lavos, de Abel Botelho, e sem esquecer a sua
produção inglesa, isto é, Antinous e Epithalamium. Estas propostas foram combinadas
com Crowley, o que não deixa de ser surpreendente – nem de revelar um aspecto
pouco amável da personagem mágica –, porque não era muito honesto alimentar
expectativas editoriais, tendo conhecimento da situação económica da Mandrake
Press, que estava prestes a falir. Daí que fosse expectável a resposta da Mandrake,
que, de forma muito educada, disse a Pessoa que a única opção passava por ele
próprio financiar tais publicações de obras portuguesas, e que ainda deveria
contribuir para a capitalização da editora através da compra, nada despiciente, de
2000 acções preferenciais. Neste ponto da história, não nos custa imaginar que Pessoa,
cingindo-se à sua boa educação inglesa, ignorou elegantemente a proposta sem
mostrar o menor sinal de indignação.
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Terceiro, existindo antes da viagem de Crowley uma inclinação de Pessoa
pelos fenómenos esotéricos, e sendo esta partilhada por ambos, é natural que a obra
e as ideias do inglês tenham deixado a sua marca, ou várias, na obra pessoana.
Porém, não há a mais mínima prova de que Pessoa tenha estado, alguma vez,
envolvido formalmente em qualquer das ordens secretas de Crowley. O simples
facto de Pessoa ter recebido uma circular da A∴A∴ no dia 21 de Março de 1932 não
demonstra um envolvimento, atendendo a que tal carta – um documento algo patético,
aliás – foi a última do conjunto epistolar. Qualquer afirmação sobre a integração de
Pessoa numa sociedade secreta não é mais do que uma especulação. Custa imaginar
que um escritor como Pessoa, tão individualista, se tivesse unido a um grupo
obscuro sob a liderança de um mago que também tinha a reputação de charlatão, tal
como foi descrito Crowley através da figura literária Oliver Haddo, por exemplo, no
romance The Magician, de W. Somerset Maugham. Ou seja, não há dúvida de que
Crowley avivou os interesses de Pessoa pela magia e a iniciação, exercendo alguma
influência sobre certas ideias de natureza esotérica. Contudo, em termos da
cosmovisão que Pessoa tinha da vida e do universo, Crowley nunca foi fulcral;
Pessoa teve apenas um Mestre e este foi Alberto Caeiro. Aliás, quando a turbulenta
visita de Aleister Crowley passou, Pessoa voltou a entregar-se às suas contemplações
calmas dos fenómenos meteorológicos da cidade de Lisboa, o seu querido lar.
Algumas considerações finais antes de concluir este breve contributo, em
memória do tempo em que alguns leitores de revistas e jornais imaginaram que
Crowley tinha mesmo caído na Boca do Inferno.
Depois do desaparecimento de Crowley, Pessoa começou a escrever uma novela
policial intitulada The Mouth of Hell, estilisticamente influenciada por Freeman Wills
Crofts, um dos membros mais apreciados da Golden Age of Detective Fiction. Como
quase toda a obra pessoana, mormente aquela em prosa, esta novela ficou inacabada.
Daí que seja necessário imaginar a forma final que não existe a partir de múltiplos
rascunhos, planos e textos não isentos de repetições. Por isso, a reconstrução da linha
narrativa deve considerar-se fundada em conjecturas. Mas Crowley, que não sabia
do modo em que Pessoa escrevia, e que vivia preocupado pela sua (má) reputação,
pressionou Pessoa várias vezes – queria ver a novela concluída – e foi ficando mais
e mais irritado com os silêncios, demoras e adiamentos do autor português, que
nunca chegou a remeter nenhuma página para o falso suicida. Se pensarmos em
Crowley como uma inspiração literária ou artística para Pessoa, temos de invocar
também o poema “O Último Sortilégio”, escrito no dia 15 de Outubro de 1930, cerca
de três semanas depois do desaparecimento do mago. Pessoa designou essa
composição como um simples “poema a respeito de magia”, ao invés do “poema
mágico” “Hymn to Pan”, do qual fez uma tradução (Hino a Pã) e atribuiu ao Mestre
Therion. Ironicamente, quando a tradução foi publicada, Pessoa viu-se obrigado a
esclarecer que o tal Mestre Therion não era um dos seus heterónimos: “O Mestre
Therion não é heterónimo meu; é simplesmente o ‘nome supremo’ do poeta, mago,
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astrólogo e ‘mistério’ inglês que em vulgar se chama (ou chamava) Aleister Crowley,
que também se designava por ‘A Besta 666’” (PESSOA, 1998: 147), como se lê na carta
de 4 de Janeiro de 1931 a João Gaspar Simões. Ao utilizar o pretérito imperfeito em
dois verbos (‘designar’ e ‘chamar’), Pessoa continuou o seu jogo de ocultações para
não determinar se Crowley ainda estava vivo ou não.
Fig. 6. Tradução de “Hymn To Pan” (BNP/E3, 16A-68r e 69r).
Por último, assinalemos que, em termos da ascendência artística que Crowley
exerceu sobre algumas das pessoas mais criativas da segunda metade do século XX,
Pessoa figura acompanhado de famosas estrelas do rock dos anos de 1960 e 1970.
Crowley, por exemplo, aparece na capa do álbum Sgt Pepper’s Lonely Hearts Club
Band, dos Beatles, e é evocado em “Misery Machine”, de Marilyn Manson. Jimmy
Page, o guitarrista dos Led Zeppelin, viveu bastante obcecado com Aleister Crowley
e chegou a adquiriu várias memorabília ligadas ao mago, entre elas diferentes obras
de arte e a célebre Boleskine House no sudeste do Loch Ness, que foi de Crowley entre
1899 e 1913. Ozzy Osbourne cantou uma canção sobre a vida de Aleister Crowley e
foi acusado de ser satanista, embora a canção, “Mr. Crowley”, diga o contrário: “You
fooled all the people with magic | Yeah, you waited on Satan’s call”. Ao que parece,
Mick Jagger leu vários livros sobre ocultismo durante a produção do álbum His
Satanic Majesties, e esta produção inclui uma das canções mais famosas dos Rolling
Stones: “Sympathy for the Devil”. Também há várias referências a Crowley em várias
canções de David Bowie, que se sentiu atraído pela Besta 666, ou melhor, pelo seu
estilo de vida e pelo seu destemor quando tinha de transgredir tabus sexuais e
sociais. Pode presumir-se que Pessoa também se sentiu atraído por Crowley por
razões semelhantes. Assim, o encontro curioso entre Pessoa e Crowley poderá abrir
as portas para a redescoberta de outros encontros afins.
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Bibliografia
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Colecção “Estudos”, vol. II.
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STEFFEN DIX frequentou a Universidade de Tübingen, a Universidade Católica Portuguesa e a
Freie Universität Berlin. De 2005 a 2013, foi investigador de pós-doutoramento no Instituto de
Ciências Sociais de Lisboa. Desde o início de 2013, é investigador no Centro de Estudos de
Comunicação e Cultura da Universidade Católica Portuguesa. De 2015 a 2019, foi professor
auxiliar convidado na Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa. Desde 2019,
é coordenador do Grupo de Investigação “Religião, Globalização e Dinâmicas Locais” do Centro
de Investigação em Estudos Globais da Universidade Aberta (UAb), em Lisboa. Atualmente, é
professor auxiliar e coordenador do curso de Estudos Europeus da UAb. Publicou ou editou
vários livros, números especiais, capítulos de livros e artigos em revistas científicas
internacionais. Os seus interesses de investigação são a história religiosa e a secularização na
Europa e o modernismo europeu.
STEFFEN DIX a`ended the University of Tübingen, the Portuguese Catholic University and Freie
Universität Berlin. From 2005 until 2013, he was a postdoctoral researcher at the Institute for
Social Sciences in Lisbon. Since early 2013, he has been a research fellow at the Centre for the
Study of Communication and Culture of the Portuguese Catholic University. From 2015 until
2019, he was invited assistant professor at the Faculty for Theology at the Catholic University in
Lisbon. Since 2019, he has been the coordinator for the Research Group “Religion, Globalization
and Local Dynamics” at the Research Centre for Global Studies at the Universidade Aberta
(UAb) in Lisbon. Currently, he is assistant professor and course coordinator for European
Studies at the UAb. He has published or edited several books, special issues, book chapters and
articles in international scientific journals. His research interests are religious history and
secularization in Europe and European modernism.
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Gutiérrez-Giraldo
Victor Belém y sus foto-ficciones
Victor Belém (1938-2015) fue un artista tardovanguardista de Cascais, conocido por
sus audaces propuestas estéticas y por una versatilidad plástica bastante notable.
Belém, un gran entusiasta la obra pessoana, presentó el “diaporama” Fernando Pessoa
versus Aleister Crowley por primera vez en 1986, en la Facultad de Letras de la
Universidad de Lisboa (BELÉM, 2018: 65).1 Tal denominación, “diaporama”, al
parecer se desvaneció con el tiempo, a juzgar por los catálogos publicados una
década más tarde por la Casa Fernando Pessoa y en la Casa Museo Condes de Castro
Guimarães. De hecho, hacia 1996, cambió por otras, tales como “foto-ficções” o
“foto-colagens”.
Fig. 1. Catálogo. Museo Condes de Castro Guimarães (1996).
Fig. 2. Catálogo. Casa Fernando Pessoa (1996).
Esta exposición se puede vincular a un proyecto más amplio, ya que como
explican Helena Garret y Mário Belém, a partir de la década de 1980, Belém “começa
a explorar outras linguagens estéticas (foto-ficções) como O Ciclo dos Poetas, primeiro
com Mário de Sá-Carneiro, seguido de Fernando Pessoa, e, por fim, [de] Camilo
Pessanha”2 [comienza a explorar otros lenguajes estéticos (foto-ficciones) como El Ciclo de
los Poetas, primero con Mário de Sá-Carneiro3, luego con Fernando Pessoa y, por fin, con
En el texto introductorio, Belém señala haber comenzado la obra en 1985, es decir, en el marco del
cincuentenario de la muerte de Pessoa, pero no indica cuándo la terminó (BELÉM, 2018: 46). Podría
asumirse que lo hizo en 1986, cuando la presentó al público.
1
2
Ver: https://gripedasaves.wordpress.com/2015/10/29/em-memoria-de-victor-belem/
Del proyecto Só-tão – Diaporama sobre Mário de Sá-Carneiro, existe la información del catálogo dedicado
a Camilo Pessanha. Helena Garrett y Mário Belém nos señalan lo siguiente “O diaporama em questão
fez parte de uma exposição coletiva no âmbito da qual foi apresentado o poster ‘anti-herói maldito
marginal’ a anunciar a projeção de slides ‘so-tão’, realizada em 1984, no espaço TEC, em Cascais.
Desconhecemos a existência física deste material. [El diaporama en cuestión formó parte de una exposición
colectiva en la que se presentó el póster "anti-héroe maldito marginal" anunciando la proyección de diapositivas
"sotão", realizada en 1984, en el espacio TEC en Cascais. Desconocemos la existencia física de este material.]
Fuente: “Victor Belém 1958-1988”, de Graça Garcia.
3
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
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Gutiérrez-Giraldo
Victor Belém y sus foto-ficciones
Camilo Pessanha.]. O incluso antes, porque a propósito de las foto-ficções figuran estas
líneas en la página legal del catálogo de la exposición dedicada a Camilo Pessanha:
“Embora tenha ao longo da sua carreira utilizado sempre a fotografia como registro
das suas intervenções, a partir de 1975 passa a construir situações sequenciais com
modelos para serem fotografadas e apresentadas como tal (foto-ficções)” (PINHEIRO
y BELÉM, 1996) [Aunque a lo largo de su carrera siempre haya utilizado la fotografía como
registro de sus intervenciones, a partir de 1975 comienza a construir situaciones secuenciales
con modelos para ser fotografiadas y presentadas como tales (foto-ficciones)]. Y tras estas
líneas, este listado:
1995
1994
1987
1986
1977
1976
Conversas com Camillo Pessanha – em Macau e Lisboa em 1996
Labirinto –Vila Nova de Cerveira 1995 e Galeria Gilde-Guimarães 1996
Só-tão – Diaporama sobre Mário de Sá-Carneiro – Fundação Gulbenkian
Fernando Pessoa versus Aleister Crowley – Diaporama – Faculdade de Letras
Alexandre Vivo ou Morto (O Bobo e A Dama-Pé de Cabra) – Diaporama – Teatro Exp. Cascais
Os sonhos da Pátria Prenha – Diaporama – Galeria Opinião
(PINHEIRO y BELÉM, 1996)
Pessoa y Sá-Carneiro fueron lectores-oyentes devotos de la poesía de Pessanha; y
Belém supo formar con ellos una suerte de triángulo o de triangulación. A esto se
suma, que Belém se refiere a una faceta ocultista de Pessanha, que incluiría: “A
incursão pelos rituais libertários e crípticos da maçonaria, a recusa dos valores
estereotipados duma sociedade anémica, a automarginalização e a sua afirmação
irrecusável pela diferença e por uma sensibilidade dorida, a aproximação, que se
entrevê, aos princípios budistas” [La incursión en los rituales libertarios y crípticos de la
masonería, el rechazo de los valores estereotipados de una sociedad anémica, la automarginación y su afirmación irrefutable a través de la diferencia y una sensibilidad dolorida,
la aproximación, que se vislumbra, a los principios budistas] (Daniel Pires, en PINHEIRO y
BELÉM, 1996).
Figs. 3 y 4. Foto-ficções Camilo Pessanha (1996); cf. Anexo 2.
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Victor Belém y sus foto-ficciones
Fernando Pessoa versus Aleister Crowley es un trabajo artístico que consta de 56
foto-ficções y 25 foto-colagens. Al final de 2023, la Fundación Don Luís I amablemente
nos remitió 43 digitalizaciones de las foto-ficções, correspondientes a aquellas localizadas
por Victor Belém cuando este las donó a la Alcaldía o Cámara Municipal de Cascais.
Con las foto-colagens sucede algo similar: de un total de 25, en la Casa Fernando
Pessoa se encuentran solo 19 (aquellas que fueron ubicadas y, por lo tanto, donadas).
De acuerdo con la información prestada por la institución lisboeta, ninguna de las
19 piezas se encuentra en exposición y no existe, por ahora, una forma práctica de
digitalizarlas sin riesgo de detrimento material.
La creación de foto-ficções fue motivada por un hecho histórico: el encuentro
entre Fernando Pessoa y Aleister Crowley en Lisboa, en septiembre de 1930, un
acontecimiento que también ha fascinado a muchos otros artistas e investigadores al
menos en los últimos cuarenta años.4 Además de crear esas foto-ficções, a principios
de la década de 1990 Victor Belém acompañó los esfuerzos por publicar y divulgar
los textos pessoanos referentes al encuentro Pessoa-Crowley y la novela policíaca
que Pessoa concibió alrededor del falso suicidio del ocultista inglés. Así, por
ejemplo, reunió ensayos de reconocidos estudiosos del asunto y los publicó en el
libro O Mistério da Boca do Inferno – O Encontro entre o Poeta Fernando Pessoa e o Mago
Aleister Crowley (1996).
Fig. 5. Compilación. Casa Fernando Pessoa (1996).
Pienso en cineastas, como José de Pina y Luís Porto, y en investigadores como Yvette Centeno, Teresa
Rita Lopes, Pedro Teixeira da Mota y Luísa Alves, solo por nombrar algunos. Estudios recientes han
sacado a la luz información muy importante para conocer el verdadero trasfondo del encuentro entre
Pessoa y Crowley, que fue, desde cierto punto de vista, mucho menos épico y mágico de lo que se
llegó a creer. Ver, al respecto: BARBAS (2006), PASI (2014) y PESSOA (2019; que contiene textos críticos
de Steffen Dix).
4
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
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Gutiérrez-Giraldo
Victor Belém y sus foto-ficciones
Belém era un lector fervoroso de los escritos esotéricos de Fernando Pessoa.
En el ya citado artículo de la página web A Gripe das Aves, Mário Belém y Helena
Garrett escriben: “Nos finais da década de 90, o artista cria a Associação Fernando
Pessoa, com o propósito de revelar a obra menos conhecida do poeta. Mário Máximo
e Paulo Cardoso são importantes colaboradores desse período, que termina em
2012” [A finales de los años 90, el artista creó la Asociación Fernando Pessoa, con el propósito
de dar a conocer la obra menos conocida del poeta. Mário Máximo y Paulo Cardoso son
importantes colaboradores de este período, que finaliza en 2012].5 Estas líneas corroboran
que Belém mantuvo ciertas lecturas e intereses a lo largo de casi tres décadas. Ahora
bien, su trabajo artístico ha tenido poca visibilidad y es mal y poco conocido.
En mi opinión, es fácil comprobar que Victor Belém consideraba el esoterismo
una de las claves para entender la vida y la obra de Fernando Pessoa. Belém fue un
artista informado y un creador competente, que tenía muy claro lo que le interesaba
de lo ocurrido en 1930:
A história que me fascinou resume-se em poucas palavras:
No dia 2 de Setembro de 1930 chega a Lisboa, no navio “Alcântara”, o Mago Negro Aleister
Crowley, acompanhado da sua “mulher escarlate”, companheira das cerimónias satânicas,
Hanni Jaeger.
O Mago vinha a Lisboa no seguimento de correspondência mantida com o Poeta Fernando
Pessoa, que o foi esperar ao cais.
Segundo os dados conhecidos, F. P e A. C. encontraram-se, pelo menos, três vezes durante a
estadia do Mago, até à simulação do suicídio deste na Boca-do-inferno, em Cascais.
(BELÉM, 1996b: 3-4)
[La historia que me fascinó se puede resumir en pocas palabras:
El 2 de septiembre de 1930, el mago negro Aleister Crowley llegó a Lisboa, en el barco “Alcântara”,
acompañado de su “mujer escarlata”, compañera de ceremonias satánicas, Hanni Jaeger.
El Mago llegó a Lisboa tras mantener correspondencia con el poeta Fernando Pessoa, quien fue a
esperarlo al muelle.
Según los datos conocidos, F. P. y A. C. se encontraron al menos tres veces durante la estancia del
Mago, hasta su suicidio simulado en Boca-do-Inferno, en Cascais.]
Como se hace más claro en otros pasajes, también de índole factual, pero permeados
por la mirada de Belém, Crowley, caracterizado como “mago negro”, no despertó
grandes simpatías en quien entonces lo retrataba.
Pero antes de entrar en materia y ver las foto-ficções, falta recordar un punto:
Pessoa denominó la novela policial – el montaje detectivesco del supuesto suicidio –
The Mouth of Hell [La boca del infierno]. Esta nunca se publicó y, pese a la insistencia
de Crowley en conocerla (PESSOA, 2019: 186 y 195), Pessoa jamás la compartió (al fin
y al cabo, nunca la concluyó). Eso sí, esbozó un prólogo en el que sugiere que todo
La Asociación Fernando Pessoa también contó, en la Dirección, con la colaboración permanente de los
sobrinos de Fernando Pessoa, Manuela Nogueira y Miguel Rosa Dias.
5
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Victor Belém y sus foto-ficciones
fue real, que se basa en hechos reales: “Creio ter dado emoções ao leitor. Acho que
as forneci com lógica. Além disso, transmiti-lhe seguramente o relato directo da vida
real” (PESSOA, 2019: 215) [Creo que le proporcioné emociones al lector. Creo que le
suministré lógica. Además, le he transmitido ciertamente un relato directo de la vida real];
“Este livro foi escrito como um exemplo de investigação na vida real; esperamos que
o seu interesse resulte de se tratar tanto de vida real, como de investigação” (PESSOA,
2019: 218) [Este libro fue escrito como un ejemplo de investigación de la vida real; esperamos
que su interés devenga de tratarse a la vez de la vida real y de la investigación]. A partir de
todo lo que sucedió o no sucedió en septiembre de 1930, Belém se tomó la licencia
poética de recrear algunos días, de forma casi paralela; en su imaginación, en las
instantáneas de su ficción, Pessoa y Crowley se convierten en antagonistas.
El análisis de las foto-ficções amerita dos abordajes: uno, dedicado a las
palabras; otro, a las imágenes. Como se podrá ver, a cada una de las fotos Belém le
añadió, en la parte inferior, una frase, y luego, con el corpus de todas las oraciones
compuso un poema-collage (véase el Anexo 1, al final). Cada verso tiene a su lado, entre
paréntesis, al supuesto autor; a veces Pessoa, a veces Crowley, a veces un heterónimo
alegadamente “ocultista”. Ciertos versos provienen de la traducción del “Hino a Pã”
[Himno a Pan], hecha por Pessoa, a partir del poema de Crowley que se encuentra en
Magick in Theory and Practice (1929).6 En principio, Belém no estudió en qué medida
la traducción de Pessoa traicionaba, o no, la posición de Crowley frente al ritual
mágico y el lugar del dios Pan en tal ritual.7 Finalmente, Belém se limitó a tomar
prestados algunos versos traducidos y a construir una narrativa poética; quiso imaginar
un palco en el que movieran con relativa soltura dioses y hombres.
Veamos las imágenes y tratemos de reconstruir la narrativa ideada por Victor
Belém. En la primera parte, denominada “Partida para el viaje al espejo”, Belém
enfatiza la posición combativa desde la cual Pessoa hará sus movimientos. El punto
de partida, el campo de batalla no podría ser otro que la escritura y el teatro: el arte.
Desde el inicio, Belém establece un tono vívido y cinematográfico, tejiendo una
narrativa que va más allá de la biografía tradicional. Erige, así, la premisa del “versus”:
una invitación directa a explorar, ante todo, las diferencias entre dos personajes
presentados como antagonistas. Este sería el principio:
Del libro de Magick in Theory and Practice (1929) de Aleister Crowley, quien se presenta bajo su
seudónimo The Master Therion, se encuentran en la biblioteca personal de Fernando Pessoa dos
versiones idénticas, una en la cual no hay anotaciones y que conserva su forma original, es decir, los
cuatro tomos separados, y otra que Pessoa mandó a encuadernar. Es en este último volumen que se
encuentran los subrayados y las anotaciones del escritor portugués. Esta versión solo fue entregada
a la Casa Fernando Pessoa por la familia del escritor en 2016 y fue puesta disposición del público en
2018. La increíble historia del devenir de este volumen puede leerse en MARRONE (2018).
6
La investigadora Helena BARBAS (2003) traza un paralelo entre el original y la traducción, verso a
verso; gracias a su trabajo es más fácil apreciar las diferencias entre la traducción pessoana y otra más
precisa en términos de ideas y vocabulario.
7
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Fig. 6. Hoje já não tenho personalidade
(Fernando Pessoa).
Fig. 7. Sou ponto de reunião de uma pequena
humanidade só minha (Fernando Pessoa).
En seguida, empiezan lo que en la obra se titulan como los “encuentros”. De
acuerdo con la visión de Belém, para esta “luta alquímica” [lucha alquímica] (BELÉM,
2018: 46) Pessoa se dispone a “invocar” la ayuda de algunos de sus heterónimos,
que, en criterio del autor, son ocultistas. En orden de aparición, los llamados a esta
misión son: Alexander Search (cf. Fig. 8), Alberto Caeiro (cf. Fig. 10), Ricardo Reis
(cf. Figs. 11-12), Álvaro de Campos (cf. Figs. 14-17) y Antonio Mora (cf. Figs. 20-22).
Lo primero que reluce es una admiración por la naturaleza, encarnada en Caeiro.
Posiblemente Reis sea la representación helenística de dioses paganos y símbolos,
esto es, el lenguaje más tendiente a lo bélico.
Fig. 8. Só há uma verdade
(Alexander Search).
Fig. 10. Ou passeando pelos caminhos ou
pelos atalhos (Alberto Caeiro).
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Fig. 9. Andei léguas de sombra
dentro do meu pensamento (Fernando Pessoa).
Fig. 11. Prefiro rosas, meu amor, à pátria
(Ricardo Reis).
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Victor Belém y sus foto-ficciones
Fig. 12. Tal seja, Lídia, o quadro, em que Fig. 13. De quem é o olhar que espreita por
fiquemos, mudos, eternamente inscritos
meus olhos (Fernando Pessoa).
(Ricardo Reis).
Campos, por su parte, es el llamado a representar lo humano, el poder del
pensamiento, la lucha contra los dioses, es el Adán primigenio, expulsado y resuelto
a volver alquímicamente a la esencia. Belém tal vez ya conocía un texto atribuido a
Campos y titulado “Mensagem ao Diabo”, que empieza: “É preciso crear abysmos,
para a humanidade que os não sabe saltar se engolfar nelles para sempre” (PESSOA,
2014: 508 [primera publ., en 1990]) [Es necesario crear abismos, para que la humanidad
que no sabe saltar se sumerja en ellos para siempre].
Fig. 14. Todo o cais é uma saudade de pedra Fig. 15. Há em cada canto da minha alma
(Álvaro de Campos).
um altar a um deus diferente (Álvaro de Campos).
Fig. 16. Sentir tudo de todas as maneiras
(Álvaro de Campos).
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Fig. 17. Arroja-me à praia angústia
sem leme (Álvaro de Campos).
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Victor Belém y sus foto-ficciones
Fig. 18. O deserto está agora virado
para baixo (Fernando Pessoa).
Fig. 19. Que parte de mim que eu desconheço,
é que me guia? (Fernando Pessoa).
Antonio Mora, último en embarcarse, es quien aparece listo para un viaje, un
viaje en el que su careta del mundo real caerá en favor de un traje sencillo para
afrontar las tentaciones del desierto. Es Antonio Mora quien comienza el que de
súbito parece un camino iniciático. Esto es paradójico en alguna medida, porque
Mora habla poco de rituales o de iniciación, y dedica muchas páginas, en general, al
paganismo y la espiritualidad. Pero el semiheterónimo pagano parece visto a través
de los ojos de Caeiro, que celebra su aparición y con ella el renacimiento de un nuevo
paganismo, al que estarían asociadas las figuras del drama en gente y Pessoa.
Fig. 20. Sentir é existir a sós
(António Mora).
Fig. 21. O grande Pã renasceu!
(António Mora).
Fig. 22. Pensar é existir com os deuses
(António Mora).
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Fig. 23. Sorriem as paredes (Fernando Pessoa).
Victor Belém y sus foto-ficciones
Fig. 24. Bebé fera (Fernando Pessoa).
Los “encuentros” de Pessoa con Ofélia y su madre, Maria Magdalena Pinheiro
Nogueira, son una de las partes más intrigantes de esta creación. Tal vez Belém intuía
la necesidad de una facción femenina que se enfrentara a la energía de Hanni Jaeger,
compañera de Crowley en supuestas ceremonias satánicas (BELÉM, 2018: 46). La
presencia de Ofélia Queiroz en la serie puede deberse a un hecho: a saber, el tímido
restablecimiento de la correspondencia entre ella y Pessoa, reatado en septiembre de
1929. Ahora bien, como las investigaciones más recientes señalan, este corto
intercambio epistolar terminó en febrero de 1931 y fue principalmente sostenido por
Ofélia. Hoy también se sabe que Pessoa llegó a recurrir a sus heterónimos para
buscar el distanciamiento que Ofélia no deseaba (Pizarro, en PESSOA, 2023: 15-16).
Fig. 25. O meu destino pertence a outra lei
(Fernando Pessoa).
Fig. 26. A Mestres que não permitem
nem perdoam (Fernando Pessoa).
El encuentro con la madre, que había muerto cinco años antes del encuentro
con Crowley, propone un giro muy interesante en esta especie de enrolamiento. De
acuerdo a la narrativa de Belém, Maria Magdalena acompaña a su petit luchador
desde el más allá. Aunque ella es una presencia simbólica, de talante natural,
creadora y con algo de refugio (madre-templo), aun así, genera profundas rupturas
y vergüenzas, como lo materializa Belém a través de la foto-ficção de los cristales
rotos. De hecho, esta imagen pone fin al encuentro y hace las veces de bisagra entre
la primera y la segunda parte de la obra, en la que ocurre el encuentro con Crowley
y su compañera de viaje, Hanni Jaeger.
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Fig. 27. Maman, maman, ton petit enfant
devenu grand (Fernando Pessoa).
Fig. 28. Tu és o sexo das formas sonhadas
(Fernando Pessoa).
Fig. 29. Tu és a mulher anterior à queda
(Fernando Pessoa).
Fig. 30. Quem não se envergonha de ter mãe
(Fernando Pessoa).
En vísperas de esa segunda parte, y en sus camerinos, todos están listos para
el encuentro con el Mago Negro. Pronto entrarán Aleister Crowley (Alberto Pimenta
hizo ese papel) y Hanni Jaeger, que arribarán en el barco Alcântara, como otros
turistas, bajo un halo verde. La pareja luce un disfraz social, tal vez pretencioso y
terrenal. Las imágenes ganan entonces un rojo intenso y despuntan los tratos, el
deseo y alguna necedad. La diferencia de edad entre ambos personajes no es muy
notoria y eso hace que no la veamos del todo a ella como la joven artista un poco
deslumbrada por un hombre mayor y manipulador.
Fig. 31. Vibra do cio subtil da luz (Aleister Crowley).
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Fig. 32. Meu homem e afã...Yo Pã
(Aleister Crowley).
Fig. 33. Vem com Artemis, leve e estranha
(Aleister Crowley).
Fig. 34. Mergulha o roxo da prece ardente Fig. 35. No laço quente, no bosque enredo
no hálito rubro (Aleister Crowley).
(Aleister Crowley).
Belém supo captar que no se trataba solo de juegos y negocios, que podía haber
algo más. Desde el camerino, Pessoa levanta la mirada del escritorio y con profunda
atención observa su reflejo. El espejo le devuelve su rostro en la base de la estrella
pentagonal hacia arriba, símbolo eterno de la supremacía del hombre sobre los
cuatro elementos, el poder de la razón, de la inteligencia, de la creatividad.
Fig. 36. Do mar sem fim (Aleister Crowley).
Del otro lado de ese espejo está Crowley, ahora envuelto en la toga de un
ritual en el que enceguece a Hanni, con una máscara de grandes ojos egipcios, que
solo pueden presentirlo a él. Hanni queda en medio de Crowley y la pentalfa invertida,
signo del dios Pan, que representa los deseos masculinos y la supremacía de la
naturaleza sobre el hombre: la derrota de la razón en manos de los instintos.
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Fig. 37. Diabo ou Deus...vem a mim...a mim Fig. 38. Vem da Sicília e da Arcádia vem
(Aleister Crowley).
(Aleister Crowley).
Fig. 39. Vem como Baco, como fauno e fera
(Aleister Crowley).
Fig. 40. E ninfa e sátiro à tua beira
(Aleister Crowley).
En seguida, surge la Boca del Infierno, el lugar escogido por los cerebros de
este embuste para fingir el suicidio de Crowley. El juego y el show han concluido, el
plan se ha llevado a cabo. Belém interpela al observador con una imagen en que Pessoa
y Crowley son uno, no se encuentran enfrentados en el tablero: están cerca, viendo
desde arriba el juego de luz y sombra que es el teatro de la vida. No parecen estar
en una pelea; parecen haber encontrado una especie de complementariedad. Una
hilera de árboles bajo los que se siente calma colma el recuadro.
Fig. 41. Num asno lácteo do mar sem fim
(Aleister Crowley).
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Fig. 42. A mim...a mim
(Aleister Crowley).
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Fig. 43. Yo Pã...Yo Pã...Yo Pã
(Aleister Crowley).
Fig. 44. À sombra da ampla árvore
(Ricardo Reis).
Fig. 45. Fitavam o tabuleiro antigo (Ricardo Reis).
La serie termina con un par de figuras de mujeres idealizadas envueltas en
prendas de color blanco (Ofélia más idealizada que Hanni), cada una representando
un tipo de mujer. La instantánea final le corresponde a Pessoa en su triple rol en esta
historia: Pessoa en septiembre de 1930, Pessoa escritor de la novela y Pessoa personaje
de la novela misma. El juego, la partida concluye con la evocación de un poema que
comienza “Ouvi contar que outrora, quando a Pérsia”: ese que hoy es conocido como
el de los jugadores de ajedrez.8
Fig. 46. Inda que nas mensagens do
ermo vento (Ricardo Reis).
Fig. 47. Lhes viessem os gritos
(Ricardo Reis).
La escena del tablero de ajedrez evoca directamente la historia de la fotografía falsa de Crowley y
Pessoa jugando juntos. Victor Belém debió entender su obra en este punto como un especie de fotopresagio. Sobre esa fotografía, vease PASI (2009).
8
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Fig. 48. E uma partida ganha, a um jogador melhor
(Ricardo Reis).
De acuerdo con el catálogo de la obra en la versión del Museo Condes de
Castro Guimarães, Belém considera que los planes del Crowley Mago Negro fueron
frustrados por el Pessoa “Mago Branco” [Mago Blanco], y que esto produjo “a morte
iniciática do Mago Negro na Boca-do-Inferno” (BELÉM, 1996a: 11) [la muerte iniciática
del Mago Negro en la Boca del Infierno]. Estas declaraciones permiten un acercamiento
a este proyecto bajo otra luz, porque agregan una perspectiva iniciática que es muy
interesante. De hecho, dicha perspectiva se encuentra reflejada en otro trabajo de
Belém, aquel llamado “Caixa Iniciação” [Caja Iniciación], publicado en 1973, una obra
que nos permite afirmar que el interés de Belém por Pessoa y sus ideas iniciáticas se
remonta a la década de 1970, es decir, a varios años antes de crear las foto-ficções.
Fig. 49. Caixa Iniciação (BELÉM, 2018: 35).
Señálese que las foto-ficções que hemos comentado se componen de una serie
de montajes que se pueden relacionar con la cinematografía. Mientras que esta última
se centra en la captura de imágenes en movimiento para construir una narrativa
visual, la técnica de montaje remite a la manera en que las imágenes se ensamblan y
relacionan entre sí para transmitir significado y emoción. Además, el montaje puede
entenderse en un sentido más amplio que implica la reinterpretación, así como la
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);$)9:'#&!G,C>#$&H!<)!*: Y8'&A:!<)!*&;!:k&;!04E!
mago negro contra o mago branco
texto de Victor beLém, 1998
in LiVro “Pessoa Versus crowLey”
ed. casa fernando Pessoa
No dia 2 de Setembro de 1930 chega a Lisboa, no navio
Alcântara, o “Mago Negro” Aleister Crowley, acompanhado
da sua mulher “escarlate”, Hanni Jaeger.
Terá sido este, provavelmente, o motivo do encontro que foi
provocado pelo poeta, de dois homens que seguiam vias
de ocultismo opostas.
Vinha a Lisboa a convite do poeta Fernando Pessoa que
o foi esperar ao cais.
É óbvio que o “Mago Branco” ganhou. Daí a morte alquímica do
“Mago Negro” na Boca do Inferno.
Segundo dados conhecidos, F.P. e A.C. encontraram-se pelo
menos cinco vezes durante a estadia do Mago até à simulação de
suicídio deste, na Boca do Inferno.
Sobre este encontro F. Pessoa não guardou nada no seu
espólio mas há, pelo menos, a prova da sua tentação pela mulher
“escarlate” no poema escrito dois dias depois
de um encontro com o Mago e a sua companheira.
Este trabalho pretende ser a reconstituição do encontro
imaginário entre os dois personagens: Fernando Pessoa (Mago
Branco) que, na sua via alquímica tinha vencido o Mundo
e o Corpo, teria ainda que vencer o Demónio.
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Gutiérrez-Giraldo
Victor Belém y sus foto-ficciones
ANEXO 1
He trascrito el texto conservando los títulos de las secciones para ser fiel al catálogo
de la exposición del Museo Condes de Castro Guimarães. Para seguir el ritmo, también
he decidido transcribirlo en portugués. Recomiendo al lector saltarse los títulos de
las secciones en mayúsculas para apreciar el efecto completo de la propuesta
estética. Los versos con un asterisco al final corresponden a las foto-ficções que no
hemos tenido al alcance de la investigación, tras diversas consultas. Le agradezco
muy cálida y especialmente a Helena Garrett y a Mário Belém por ayudarme a
identificar cuáles foto-ficções no formaron parte de la donación referida al principio
de este trabajo.
FOTO-FICÇÕES
PARTIDA PARA A VIAGEM AO ESPELHO
1. Hoje já não tenho personalidade (Fernando Pessoa)
2. Sou ponto de reunião de uma pequena humanidade só minha (Fernando Pessoa)
3. Médium de mim mesmo todavia subsisto (Fernando Pessoa)*
ENCONTRO COM ALEXANDER SEARCH
4. Não tenho ninguém em quem confiar (Alexander Search)*
5. Serei sempre um estranho em toda a parte (Alexander Search)*
6. Tracei um círculo no chão (Alexander Search)*
7. Só há uma verdade (Alexander Search)*
8. Tenho frio, sinto-me só (Alexander Search)*
9. Andei léguas de sombra dentro do meu pensamento (Fernando Pessoa)
ENCONTRO COM ALBERTO CAEIRO
10. Basta existir para se ser completo (Alberto Caeiro)*
11. O sol é sempre pontual todos os dias (Alberto Caeiro)*
12. Ou passeando pelos caminhos ou pelos atalhos (Alberto Caeiro)
13. Ou quando uma nuvem passa a mão por cima da luz (Alberto Caeiro)*
14. O maestro sacode a batuta e a lânguida e triste música rompe (Fernando Pessoa)*
ENCONTRO COM RICARDO REIS
15. O deus Pã não morreu (Ricardo Reis)*
16. Senta-te ao sol, abdica, sê rei de ti próprio (Ricardo Reis)*
17. Prefiro rosas, meu amor, à pátria (Ricardo Reis)
18. Tal seja, Lídia, o quadro, em que fiquemos, mudos, eternamente inscritos (Ricardo Reis)
19. Mestre são plácidas todas as horas (Ricardo Reis)*
20. De quem é o olhar que espreita por meus olhos (Fernando Pessoa)
ENCONTRO COM ÁLVARO DE CAMPOS
21. Todo o cais é uma saudade de pedra (Álvaro de Campos)
22. Há em cada canto da minha alma um altar a um deus diferente (Álvaro de Campos)
23. Sentir tudo de todas as maneiras (Álvaro de Campos)
24. Arroja-me à praia angústia sem leme (Álvaro de Campos)
25. O deserto está agora virado para baixo (Fernando Pessoa)
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
218
Gutiérrez-Giraldo
Victor Belém y sus foto-ficciones
26. Que parte de mim que eu desconheço, é que me guia? (Fernando Pessoa)
ENCONTRO COM ANTÓNIO MORA
27. Sentir é existir a sós (António Mora)
28. O grande Pã renasceu! (António Mora)
29. Pensar é existir com os deuses (António Mora)
30. Sorriem as paredes (Fernando Pessoa)
ENCONTRO COM OFÉLIA
31. Bebé fera (Fernando Pessoa)
32. O meu destino pertence a outra lei (Fernando Pessoa)
33. A Mestres que não permitem nem perdoam (Fernando Pessoa)
ENCONTRO COM A MÃE
34. Maman, maman, ton petit enfant devenu grand (Fernando Pessoa)
35. Tu és o sexo das formas sonhadas (Fernando Pessoa)
36. Tu és a mulher anterior a queda (Fernando Pessoa)
37. Quem não se envergonha de ter mãe (Fernando Pessoa)
ENCONTRO COM ALEISTER CROWLEY
38. Vibra do cio subtil da luz (Aleister Crowley)
39. Meu homem e afã...Yo Pã (Aleister Crowley)
40. Vem com Artemis, leve e estranha (Aleister Crowley)
41. Mergulha o roxo da prece ardente no hálito rubro (Aleister Crowley)
42. No laço quente, no bosque enredo (Aleister Crowley)
43. Do mar sem fim9 (Aleister Crowley)
44. Diabo ou Deus...vem a mim... a mim (Aleister Crowley)
45. Vem da Sicília e da Arcádia vem (Aleister Crowley)
46. Vem como Baco, como fauno e fera (Aleister Crowley)
47. E ninfa e sátiro à tua beira (Aleister Crowley)
48. Num asno lácteo do mar sem fim (Aleister Crowley)
49. A mim... a mim (Aleister Crowley)
50. Yo Pã...Yo Pã...Yo Pã (Aleister Crowley)
O REGRESSO DA VIAGEM
51. À sombra da ampla árvore (Ricardo Reis)
52. Fitavam o tabuleiro antigo (Ricardo Reis)
53. Inda que nas mensagens do ermo vento (Ricardo Reis)
54. Lhes viessem os gritos (Ricardo Reis)
55. Come se fosse apenas, memória de um jogo bem jogado (Ricardo Reis)*
56. E uma partida ganha, a um jogador melhor (Ricardo Reis)
Es el único verso que no fue transcrito entero por Belém. El verso entero dice: “e corpo e mente – do
mar sem fim”.
9
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
219
Gutiérrez-Giraldo
Victor Belém y sus foto-ficciones
ANEXO 2
En marzo la directora adjunta del Museu do Oriente nos compartió tres foto-ficções
de Camilo Pessanha donadas a la Fundação Oriente. Las reproducimos en seguida,
reiterando nuestro agradecimiento.
Figs. 51, 52 e 53. “porque vos fostes, minhas caravelas” / “foi um deslumbramento
que me endoidou a vista” / “o encontro do poeta Camillo Pessanha com Ana Castro Osório”.
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
220
Gutiérrez-Giraldo
Victor Belém y sus foto-ficciones
Bibliografía
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Lisboa: Tinta-da-china.
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Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
221
Gutiérrez-Giraldo
Victor Belém y sus foto-ficciones
CATALINA GUTIÉRREZ-GIRALDO es abogada egresada de la Pontificia Universidad Javeriana en
Bogotá, Colombia, y actualmente está realizando estudios de doctorado en Literatura en la
Universidad de los Andes, también en Bogotá. Su investigación se centra en las ideas iniciáticas
de Fernando Pessoa durante el período de 1930 a 1935, es decir tras el encuentro de Fernando
Pessoa con Aleister Crowley. Además, su trabajo explora las intertextualidades entre los ensayos
iniciáticos de Pessoa y las lecturas que el escritor portugués realizó de algunas obras esotéricas
de la primera mitad del siglo XX.
CATALINA GUTIÉRREZ-GIRALDO é advogada formada na Pontificia Universidad Javeriana, em
Bogotá, Colômbia, e atualmente está realizando estudos de doutoramento em Literatura na
Universidad de los Andes, também em Bogotá. A sua investigação foca-se nas ideias iniciáticas
de Fernando Pessoa durante o período de 1920 a 1935, isto é, após o encontro de Fernando Pessoa
com Aleister Crowley. Para além disso, o seu trabalho explora as intertextualidades entre os
ensaios iniciáticos de Pessoa e as leituras que o escritor português fez de algumas obras esotéricas
da primeira metade do século XX.
CATALINA GUTIÉRREZ-GIRALDO is a lawyer graduated from Pontificia Universidad Javeriana in
Bogotá, Colombia. Currently, she is pursuing a Ph.D. in Literature at Universidad de Los Andes,
also in Bogotá. Her research focuses on Fernando Pessoa's initiatic ideas during the period from
1930 to 1935, specifically after Pessoa’s encounter with Aleister Crowley. Additionally, her work
explores the intertextualities between Pessoa’s initiatic essays and the readings that the Portuguese
writer undertoook of some esoteric works from the first half of the 20th century.
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
222
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Céu e Silva
O Mistério da Boca do Inferno
As primeiras imagens de O Mistério da Boca do Inferno revelam sem qualquer dúvida
o objetivo do filme em que o realizador José de Pina se empenhou em 1988; de fato,
os tons escuros muito apropriados à cena inicial irão dominar em grande parte todos
os 67 minutos da ação que se segue. Não poderia ser de outra forma, pois o filme é
a reconstituição de um acontecimento real, com alguma ficção que antecipa o que só
irá ser estudado anos mais tarde sobre um estranho confronto entre o ingénuo poeta
Fernando Pessoa e o diabólico mago Aleister Crowley.
Mesmo que o britânico tivesse então uma dimensão pública incomparavelmente
maior que a do português, designadamente nos cenários do ocultismo mundial – e que
resultava em grande parte de disputas com os seus seguidores e os que lhe foram
infiéis, com destaque para o Nobel da Literatura irlandês William Butler Yeats –, já
o poeta era praticamente desconhecido nessa época e a sua obra demorará décadas
a ter a importância que lhe virá a ser concedida. Tal não impediu que ambos se
interessem um pelo outro e que daí resultasse um dos encontros mais estranhos que
se verificaram na vida de Pessoa. Este tivera conhecimento de um primeiro volume
das memórias de Crowley e descobrira que o horóscopo do mago aí publicado continha
alguns erros, logo informando o autor. Enviou então as correções e na volta do
correio foi informado de que o ocultista queria encontrar-se com o colega astrólogo
e que tencionava deslocar-se a Lisboa.
Tudo se passa em setembro do ano de 1930, cinco anos antes da morte do
português e dezassete da do inglês. Esse encontro irá ficar para a história, até porque
Crowley decidira envolver Pessoa num dos muitos atos mirabolantes que elaborou
em seu redor durante o seu percurso de vida, um espetacular falso suicídio na Boca
do Inferno, a gruta situada em Cascais e por onde entram muitas ondas do Atlântico.
Para o poeta, ansioso pela fama que nunca chegava, este evento macabro foi um
momento inspirador para o seu imaginário pois permitia-lhe elaborar uma série de
episódios baseados em certos acontecimentos que o levaram às páginas dos jornais
e que agradaram ao autor de policiais que ambicionava ser.
É através da descoberta desta aventura vivida entre Pessoa e Crowley que o
então jovem cineasta José de Pina (n. 1962) elaborou a história com que fez a sua
estreia no cinema, o filme O Mistério da Boca do Inferno, cujo argumento hoje poderá
não ser inesperado, mas que à época o era, além de bastante desconhecido quanto
ao seu significado. Basta ter em conta o quão desconhecido era Fernando Pessoa no
início da década de 1980, quando ainda faltavam dois anos para o aparecimento
revelador da primeira versão do Livro do Desassossego, preparada por Maria Aliete
Galhoz, Teresa Sobral Cunha e Jacinto do Prado Coelho, e que As Confissões de
Aleister Crowley: uma auto-hagiografia só seria publicada em inglês num volume de
900 páginas em 1969.
A ressurreição de Crowley após o suicídio encenado na Boca do Inferno
verificou-se um ano mais tarde, em 1931, quando o mago ressurgiu em Berlim.
Entretanto, Pessoa viveu a euforia de ser protagonista de uma história policial que
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
224
Céu e Silva
O Mistério da Boca do Inferno
o poderia tornar conhecido e publicado em língua inglesa e, devido ao interesse
e cumplicidade do jornalista Augusto Ferreira Gomes, do Diário de Notícias, e com
inspetores ingleses em busca do mago, tentou dar forma a uma possível história com
contornos de charlatanismo e muito mistério, bem ao jeito das suas anteriores incursões
literárias no género do policial.
O filme de José de Pina inaugurou pela criatividade e pela dimensão de mais
de uma hora a hipótese de um filão cinematográfico que poderia vir a surgir sobre
Pessoa; daí que O Mistério da Boca do Inferno possa ser apontado como uma das mais
originais e corajosas adaptações ao cinema, porque realizada ainda num tempo em
que uma obra e uma biografia ricas em idiossincrasias eram mal conhecidas e antes
de que posteriores estudos vieram confirmar a importância delas.
Fig. 1. O realizador José de Pina e o ator que interpreta Fernando Pessoa,
José Mora Ramos, no set de filmagens no ano de 1988.
O filme de José de Pina é posterior à longa-metragem Conversa Acabada (1981),
de João Botelho. Neste projeto, o poeta tem como parceiro de protagonismo um outro
poeta, Mário de Sá-Carneiro, mas não há nenhuma investida nos temas policiais ou
do oculto, nem existe uma procura de novos ângulos que retirassem Pessoa do
estatuto de ilustre desconhecido. Depois de Conversa Acabada, passarão alguns anos
até surgirem novos projetos cinematográficos sobre o escritor português atualmente
mais famoso em todo o mundo, além de O Mistério da Boca do Inferno. O próprio João
Botelho só regressará a Pessoa em 2010, com o Filme do Desassossego. Mas apesar dos
filmes pessoanos serem pouco comuns na década de 1980, um ano antes do filme de
José de Pina ser rodado, fora a vez de A Suavidade do Toque (La Gentilezza del Tocco),
do realizador italiano Francesco Calogero, que também se inspirara no Livro do
Desassossego.
Estes filmes e outros atestam a dificuldade em abordar Pessoa através do
cinema e não da literatura, onde ‘abundam’ narrativas com o poeta a protagonizar
o seu próprio papel ou em variações como se replicassem os seus heterónimos.
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
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Céu e Silva
O Mistério da Boca do Inferno
O filão Pessoa ainda estava muito por descobrir quando José de Pina avançou
no seu filme, bem como os contornos da própria história que irá escrever e realizar.
O poeta era pouco conhecido e a sua posteridade à procura de ser fixada. O Mistério
da Boca do Inferno é o primeiro filme em que se estreia com o estatuto de realizador
após ter frequentado a Escola Superior de Teatro e Cinema. Experiência nesta arte
não lhe faltava, fruto de ter participado em várias categorias em equipas de filmagens
como diretor de fotografia, cameraman e montador, entre outras tarefas.
O filme nasce três anos depois de terminar o curso, num momento em que já
trabalhava em cinema e andava à procura de ideias. Recorda: “Estava a ler uma edição
das Obras Completas de Fernando Pessoa do investigador João Gaspar Simões e ao
continuar a vaguear por aquelas páginas (quatro volumes com Luís de Montalvor na
Editorial Ática entre 1942-1945), e por outras de jornais, apareceu-me um texto sobre
o mistério da Boca do Inferno”1. O episódio despertou o seu interesse e foi em busca de
mais pormenores: “Comecei a investigar e a interessar-me principalmente pelos textos
de prosa do poeta e a informar-me sobre o que se publicara à época na imprensa”.
Ao descobrir que Pessoa era autor de vários textos policiais2, encontrou uma ponta
do novelo que irá desfiar para descobrir aquele mundo do poeta: “Fui à Biblioteca
Nacional consultar o que existia, ao Diário de Notícias ler jornais contemporâneos,
folhear os suplementos originais e avancei na descoberta do universo do poeta”.
Fig. 2. Nota manuscrita de José de Pina.
Além da vontade de fazer um primeiro filme, José de Pina estava a iniciar a
carreira de professor de Cinema na Escola Artística António Arroio, o que não impediu
a busca por elementos para construir um argumento em volta deste encontro de
Pessoa com Crowley, que desde cedo o entusiasmara. Recorda que quando avançou
Respostas de José de Pina a perguntas realizadas em 2014. O texto em questão corresponde às pp.
48-56 do texto “Fernando Pessoa, ensaio interpretativo da sua vida e da sua obra”, que abre o vol. I
da Obra Poética (1986), organizado por João Gaspar Simões para Círculo de Leitores. Nesse volume,
Pina deixou uma nota manuscrita (Fig. 2): “Aleister Crowley, Mago negro, a Besta 666, como gosta de se
intitular a si próprio, desembarca em Lisboa. Fernando Pessoa, poeta e ocultista, recebe-o com alguma
apreensão. É hostil à magia negra que o perigoso Aleister Crowley representa. Foi um desassossego”.
1
Descoberto no tomo Ficção e Teatro, organizado por António Quadros, que tomou alguns textos do
livro A Novela Policial-Deductiva em Fernando Pessoa (1973), de Fernando Luso Soares, e outros das
Obras em Prosa (1974), organizadas por Cleonice Berardinelli.
2
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226
Céu e Silva
O Mistério da Boca do Inferno
para o filme não sabia bem aquilo em que se estava a meter. Explica: “Foi uma
inspiração do momento e achava que poderia tornar-se um projeto interessante e
inventivo. Tanto assim que o filme termina com um Pessoa que não existe, porque
não se o vê a escrever, mas ocupado com os seus policiais. Decido introduzir no filme
o inspetor dos seus contos policiais, o inspetor Quaresma, bem como a sua paixão
pela astrologia devido às referências sobre o encontro com o mago Aleister Crowley.
É assim que nasce o projeto”.3
Para o cineasta há uma faceta de Fernando Pessoa que o subjuga desde que
perceciona que o poeta poderá ser o tema do primeiro filme que deseja realizar,
mesmo que o domínio do universo pessoano ainda fosse muito desconhecido dos
leitores. Se João Gaspar Simões andava há muito tempo à volta de Pessoa e escrevera
a sua primeira biografia, para José de Pina e para o cidadão comum estava tudo
ainda muito no início. Era preciso encontrar espessura no poeta de modo a elaborar
um argumento para um filme. A razão da escolha do protagonista era simples, como
justifica: “Fernando Pessoa era uma figura muito cinematográfica. Trabalhava na
Baixa de Lisboa, que era um bom cenário, tinha todos aqueles heterónimos, era poeta
e gostava de astrologia. Melhor era impossível”.
Enquanto fazia a investigação e montava a estrutura do filme, a grande
preocupação fora tentar perceber o que poderia estar na cabeça de Pessoa. Além de
que, após descobrir o encontro com Crowley, teve a certeza de que esta deveria ser
uma parte importante do guião: “Se Fernando Pessoa tinha tudo para ser um bom
protagonista, o mago não lhe ficava atrás. Achei de imediato que esse acontecimento
daria para fazer um bom filme, porque reunia dois protagonistas especiais: um,
introvertido, uma pessoa pouco comum, com aquela particularidade dos heterónimos
e aquela de gostar do oculto; outro, um louco inglês que diz ser um enviado do mal
ao mundo e que de imediato demonstrou um interesse em se relacionar com um
poeta muito diferente de si. Ou seja, tinha à mão todos os ingredientes que procurava
para criar uma história para um filme”. O que surpreendeu José de Pina foi que,
estranhamente, até então ninguém tivesse pensado numa ideia destas e também não
aproveitado o episódio que juntou Pessoa e Crowley. Daí que diga décadas depois:
“Alguém tinha de ser o primeiro!”.
Se Pessoa já era um desafio para a escrita de um argumento, ao descobrir a
situação que o poeta iria viver com a chegada de Aleister Crowley, José de Pina não
tem dúvidas sobre o rumo do argumento. Considera que deixou de parte qualquer
academicismo e que decidiu compor o personagem do escritor português por aquilo
que interpretava terem sido os factos: “Foi uma luta clássica entre as forças do mal
e as do bem, uma luta entre a magia negra e a branca. Resolvi avançar numa história
de ficção e com uma componente de entretenimento à volta do Pessoa. Não lhe quis
Também foi importante outro tomo organizado por quadros: A Procura da Verdade Oculta: Textos
Filosóficos e Esotéricos (1986), que integrou algum material cedido por Paulo Cardoso.
3
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227
Céu e Silva
O Mistério da Boca do Inferno
dar qualquer outra dimensão senão a de ser astrólogo, ter capacidades de médium
e ser autor de textos policiais”4. Acrescenta: “Pessoa tem uma grande vantagem para
os cineastas, a de o próprio ter escrito vários argumentos para cinema. Torna-se
também apetecível filmar a figura exótica que ele era, o fato e o chapéu, os lugares
de Lisboa por onde andava, até porque naquela altura todo esse seu lado era muito
desconhecido”. Convém referir que só duas décadas depois esses argumentos foram
publicados e revelados ao grande público.5
Ao investigar o encontro entre os dois astrólogos, José de Pina vai dedicar-se
a descobrir quais os poemas que Pessoa andara a escrever enquanto Crowley
estivera em Portugal e encontra um que lhe chama a atenção e que é fundamental
para o lado das emoções sempre necessário a uma boa história. Recorda: “Crowley
vem acompanhado de uma jovem alemã, Hanni Larissa Jaeger, e a única produção
poética que encontro nesses dias é uma que considerei que seria inspirada nela. Não
tinha a certeza então, só mais tarde é que essa inspiração foi estudada e provada
como certa, mas na minha cabeça só poderia ter a ver com a alemã. Creio que fui o
primeiro a fazer essa interpretação, o que nada tem de especial, apenas estava a
tentar perceber o que Pessoa produzira durante a estada de Crowley. Essa situação
fez com que introduzisse no argumento uma espécie de relação platónica do poeta
para com ela. Pessoa fica fascinado com a alemã, ambos são médiuns, e essa situação
interessava ao guião porque Crowley dominava a jovem, o que deixou Pessoa
furioso e mal impressionado com o mago misógino. Essa paixoneta leva a que o
poeta se queira libertar logo que possível de Crowley, bem como ajudar a alemã no
mesmo sentido, que, entretanto, desaparece e deixa o poeta aflito”.
Fig. 2. A atriz Catrin Loerck, que representou a médium Hanni Jaeger,
e o ator João D'Ávila com o turbante usado nos ritos de magia por Aleister Crowley,
preparam-se para as filmagens sob a orientação de José de Pina.
José de Pina: “A magia branca e negra vem realmente do Victor Belém, na altura falei com ele e foi
ao encontro daquilo que eu estava a escrever no argumento e gostei dessa ideia.”.
4
Trata-se de uma visão retrospetiva. Pina: “Em relação ao facto de Pessoa ter escrito argumentos, na
altura não sabia, obvio”. Publicaram-se em 2011.
5
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O Mistério da Boca do Inferno
Ao desaparecimento da médium Hanni segue-se o de Aleister Crowley,
deixando ao protagonista Fernando Pessoa a responsabilidade pelo que irá acontecer.
Para o realizador, o mago inglês sente-se ameaçado durante a estada em Portugal e
simula o seu desaparecimento. Segundo o guião escrito por José de Pina, Crowley
não pensou que era Pessoa quem estava por trás de tudo o que lhe estava a ocorrer
e com a colaboração do seu inspetor Quaresma: “Pretendia criar uma semelhança
entre a arte mais ficcional e fantasiosa do filme e no fim perceber-se que Quaresma
é um desdobramento do Pessoa, como se fosse um dos seus heterónimos”.6
O filme O Mistério da Boca do Inferno é dominado pela relação entre Pessoa e
Crowley, reproduzindo logo ao início o pesadelo em que o mago se transforma para
o poeta, situação bem delineada na chegada a Lisboa, quando as primeiras palavras
de Crowley questionam se não é bem-vindo devido à tempestade que o incomodou
na parte final da viagem. A ação aumenta com o convite para participar nas sessões
de ocultismo em Sintra, a que Pessoa responde com hesitação por considerar não
estar preparado. Crowley não aceita e invoca um ano de correspondência entre
ambos e exige a presença do poeta. Os dons de médium de Pessoa provocam em
Crowley indisposições e o mago pressente que o querem prejudicar no país que
visita. Enquanto isso, Pessoa define Hanni como “um espírito atormentado” e entra
em contacto com a sua mente, levando-a a abandonar o país. Crowley receia os seus
inimigos e o filme encaminha-se para o falso suicídio do mago, que deixa uma carta
à beira da gruta a justificar a sua morte. A partir desse momento, começam as
peripécias detectivescas de Pessoa em parceria com o jornalista Ferreira Gomes, que
Pessoa potencia a troco de fama internacional e entusiasmado com a escrita de um
livro sobre o caso Crowley.
O argumento e o filme surpreenderam os espetadores que assistiram à antestreia
na Cinemateca Portuguesa em março de 1989 e aos que regressaram em julho de
2023, numa reposição de O Mistério da Boca do Inferno. O propósito de José de Pina
em desvendar outro lado do poeta ainda muito desconhecido foi reconhecido por
quem o viu na Cinemateca Portuguesa na primeira vez: “As pessoas gostaram e
houve várias críticas simpáticas e, na maioria, positivas, como a importante opinião
de Mário Castrim”.7
A rodagem do filme suscitou curiosidade e o jornal O Independente destacou
Luís Maio para fazer uma reportagem. O que mais surpreendeu o jornalista era o
baixo orçamento e o prazo para realizar o filme: apenas três semanas. Perguntara:
“Como se faz uma média-metragem decente com tal orçamento?”; e sugerira: “[Esse]
é um mistério ainda maior do que o filme documenta”. Fizera também um retrato
do observado: “Para mais, a equipa é constituída na maior parte por jovens, e o
Ora, no romance policial, Pessoa inventa um inspetor inglês, diferente de Quaresma, e quase um
novo autor fictício.
6
7
A crónica / critica do Mário Castrim ao filme saiu no Diário de Lisboa.
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
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Céu e Silva
O Mistério da Boca do Inferno
realizador conta 25 anos. De chapéu muito pessoano, barba por desfazer, o ar convicto
com que se empenhou nisto de corpo e alma, é um entusiasta”. Maio destacou as
dificuldades que Pina relatara: “Temos os problemas com o guarda-roupa e os décors
por causa da falta de dinheiro”. A opinião final que o jornalista deixou é clarificadora
de como a luta para fazer o filme foi comparável àquela entre Pessoa e Crowley: “A
equipa é engenhosa, sem cheta [dinheiro], jovem e vagarosa”.
As prioridades do realizador estão bem expressas nesse artigo, no qual revela
como ultrapassou as condicionantes de um primeiro filme: “O fundamental é contar
uma história. A seguir é o fascínio das imagens, só depois o rigor histórico”. Não é
por acaso que o afirma, como se entende pela forma como escrevera o guião: “Baseeime nos policiais de Pessoa8, em textos ocultistas e na sua faceta de astrólogo, mas
como poeta nunca aparece”. Pina resume a intriga, por ele mesmo concebida, como
uma perfeita saga fantástica: “A história baseia-se num acontecimento verídico e eu
construi o argumento sobre um Pessoa diferente daquele que conhecíamos dos
bancos da escola”.
Os cenários onde as filmagens decorrem ajudam a transpor a ficção para meio
século antes, afinal ainda é tudo muito parecido. É o caso de um dos principais locais
para onde a equipa se desloca, um palacete em Sintra que bem poderia ser lugar de
visita de Pessoa; para onde se deslocaria no táxi antigo que costumava parar na Praça
do Rossio e entusiasmar os turistas devido à sua antiguidade, onde se passearia pelo
jardim com várias palmeiras em fundo e comporem uma paisagem própria para as
artes do ocultismo. Como nem tudo se sabia sobre o poeta, há que improvisar. Tanto
assim que a teatralidade do personagem Fernando Pessoa é recriada pelo ator que o
protagoniza, José Mora Ramos, com as dificuldades do desconhecimento de quem
está a representar, mas sentindo-se bem na figura que criou, mesmo que confesse:
“É o Pessoa, mas podia ser qualquer pessoa. Um Pessoa humilde, desconfiado, seguro
de si, mas jogando com as pessoas com uma certa frieza”. Pelo contrário, o ator que
interpreta Crowley, João D’Ávila, é um admirador do poeta e diverte-se a representar
o mago inglês com o seu turbante, nos momentos que antecedem um dos pontos
altos das celebrações demoníacas.
As tonalidades sombrias que preponderam no filme não surgem por acaso,
antes por duas razões. Uma primeira, tecnológica: “Os interiores das casas não
tinham a iluminação de agora e essa tonalidade sombria cria uma sensação da época
em que o filme se situava”. Uma segunda, própria das influências artísticas que
marcavam então José de Pina: “Inspirei-me muito em termos visuais em duas áreas:
a da banda desenhada de Jacques Tardi e da sua Adèle Blanc-Sec, bem como em E.P.
Jacobs e a sua dupla Blake e Mortimer; e também num cinema que então apreciava
bastante: o do expressionismo alemão dos filmes do Fritz Lang e de [Friedrich
Em Ficção e Teatro figuram: “Prefácio a Quaresma”, “A Janela Estreita”, “O Roubo na Quinta das
Vinhas”, “A Carta Mágica” e “O Caso Vargas”.
8
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
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Céu e Silva
O Mistério da Boca do Inferno
Wilhelm] Murnau, respetivamente, nos filmes Metropólis e Nosferatu. Aliás, a sessão
espírita no meu filme tem influência e parece-se com a de Dr. Mabuse der Spieler (1922)
de Lang” (ver Figs. 3-5). Ou seja, o meu filme passava-se nos anos 1930 e não fugia
muito àquele ambiente dos finais dos anos 1920, em que existiu uma grande onda
de misticismo, de magia e de médiuns, em que Crowley reinava, tendo decidido
levar todo esse universo para o filme, dentro das minhas possibilidades”.
Figs. 3 e 4. Dr. Mabuse der Spieler (1922).
Fig. 5. O Mistério da Boca do Inferno (1989).
Para que os cenários fossem credíveis, José de Pina chega a enumerar muitas
dificuldades, mas garante que em 1988 ainda se os encontravam e que atualmente
teriam de ser reconstituídos de raiz: “Apesar de se regressar a meio século antes,
ainda existia uma paisagem urbana em muito parecida com as necessárias para as
cenas em Sintra e Cascais, ainda existia o Hotel Metrópole por cima do Café Nicola;
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Céu e Silva
O Mistério da Boca do Inferno
alugámos carros a colecionadores, encontrámos um elevador e uma cabina telefónica
de época, e um escritório que seria em muito parecido com aquele em que Pessoa
trabalhava, com secretárias e portas de vidro à antiga. Foi uma sucessão de achados
que com os anos deixaram de existir fisicamente”.
Ora, como se pode ver nas figuras dos anexos finais, o argumento de O
Mistério da Boca do Inferno estava planificado por cada plano, com a ação, o diálogo e
um desenho, recorrendo a uma espécie de banda desenhada como storyboard. E
também existia um organigrama muito preciso com o agendamento das filmagens.
Para estabelecer o argumento em definitivo e poder fazer a direção de atores, José
de Pina tinha uma noção muito completa do que pretendia para o filme. O processo
era simples: “Preparava tudo por antecipação, por isso quando encontrávamos o
cenário ideal já sabia como ia ser a filmagem. Aos olhos de hoje, gostaria de ter
acrescentado outras situações, mas o orçamento facultado quase integralmente pela
RTP não o permitia. Ao rever o filme na Cinemateca [Portuguesa] há meses, posso
confessar que não senti qualquer frustração e fiquei satisfeito com o resultado.
Poderia sempre haver algumas melhoras a nível técnico, mas, creio, que é coisa que
não se nota, bem como ter explorado mais a questão dos inspetores ingleses que
vieram atrás de Crowley e jogado um pouco mais com essa parte da história, mas as
condições financeiras não o permitiam”.
A composição de Fernando Pessoa foi uma das dificuldades que se puseram
a José de Pina devido à pouca informação sobre o poeta em 1988: “De tudo o que fui
lendo, e para a situação de confronto com o enviado do mal em que o ia colocar, o
que mais se adequava era um Pessoa introvertido, desconfiado, fechado, contido e
que fala com pouca gente. Foi o que pedi ao ator que interpretava o poeta, o José
Mora Ramos, que fez um excelente Pessoa”. Quanto ao restante elenco, José de Pina
tinha de o dirigir a partir do que aprendera na Escola de Cinema, onde tivera aulas
de direção de atores com Luís Miguel Cintra, mas o modo como foi feito o casting
para escolher os atores revelou-se muito importante: “Já sabiam o que fazer e correu
bem”. Entre os atores, houve veteranos e novatos. No primeiro caso, estava a atriz
Glicínia Quartim que outro professor, Jorge Silva Melo, conseguiu convencer a participar;
no segundo caso, estava José Pedro Gomes, que estava no seu primeiro filme.
A banda sonora de O Mistério da Boca do Inferno é outra das surpresas que José
de Pina enuncia: “É a primeira banda sonora original que o músico Nuno Rebelo
compôs e que é inovadora e fora do que seria habitual à época, tanto que na reposição
da Cinemateca [Portuguesa] todos a consideraram bastante atual. Conversámos
bastante sobre o que eu queria, um som mais contemporâneo e experimental, e ele
correspondeu com, por exemplo, aqueles órgãos de igreja nos momentos de terror.
A música faz com que a ação seja valorizada e funciona muito bem”; e acrescenta:
“O mais surpreendente foi fazer tudo aquilo com um orçamento apertadíssimo,
tanto que quando vemos o filme não se acredita que fosse feito apenas com aquela
verba, nem que tivesse sido filmado em película de 16 mm”.
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Céu e Silva
O Mistério da Boca do Inferno
Se o filme surpreende aquando da sua estreia na Cinemateca de Lisboa e ao
ser exibido na televisão, deixando José de Pina satisfeito com o desafio a que se
propusera, a reposição feita trinta e quatro anos depois na mesma Cinemateca faz
com que se repita esse sentimento no realizador, que ainda ficou mais satisfeito: “Na
segunda vez, a reação até foi superior à da antestreia, porque a opinião era de que
poderia ser um filme de agora e não feito em 1988! Para tal concorreram duas
situações, um som perfeito e captado em direto e uma boa qualidade de imagem”.
Na folha de sala que foi entregue aos espetadores na sessão de 21 de julho de
2023, havia um aviso que os mais novos estranhariam: “A sessão terá uma pausa de
10 minutos a meio para mudança de rolo, dado tratar-se de uma cópia em dual-band”.
Um texto analítico de um outro realizador, Ricardo Vieira Lisboa, enquadrava O
Mistério da Boca do Inferno e dava a descobrir a estranha aventura cinematográfica
que décadas antes José de Pina realizara e que permitira trazer ao conhecimento
geral o que era de poucos sabido: “Sob a capa o filme de investigação policial, José
de Pina constrói uma série de intromissões formais (nem necessariamente flashbacks,
nem exatamente pesadelos) que enchem o filme de uma liberdade iconográfica
surpreendente. Veja-se, logo na sequência de abertura, o recurso ao plano subjetivo
ao ombro, os falsos raccords em zoom e as suas panorâmicas rápidas e repetitivas.
Veja-se, adiante, a sequência do sacrifício do gato preto que só come carne humana
(onde o campo / contracampo provoca uma equivalência entre as várias vidas dos
felinos e a heteronímia pessoana). Ou veja-se, por fim, a cena do ‘homicídio’ de Crowley
por uma versão patriarcal de si mesmo, uma forma lírica de afirmar o suicídio num
confronto entre dois cónegos, um de Deus e outro do Diabo – qual dos dois o mais
maligno? Cada um destes episódios contrasta com um certo retrato do quotidiano
de Pessoa (as suas pantufas, os seus pensativos cigarros, a sua pneumonia miasmática,
a sua aguardente de trazer no bolso), quotidiano esse atravessado por sopros fantásticos,
como se desvenda no final, com o desaparecimento de Quaresma – mais um dos
seus heterónimos? Com a sua total idiossincrasia, este é um filme que nos faz
lamentar que José de Pina não tenha prosseguido uma carreira no cinema”.
Trinta e quatro anos antes, fora José de Pina a escrever essa folha de sala para
ser distribuída na Cinemateca, na antestreia a 9 de março de 1989 (Anexo 6). Referia
com destaque a necessidade de rigor para um filme como O Mistério da Boca do
Inferno: “Rigor é a palavra mágica e, quando o orçamento é muito limitado então
todo o rigor é pouco e o mais pequeno dos problemas se torna um caso de vida ou
de morte. E um caso de vida ou de morte concordante com o tema base deste filme”.
Considerava que o filme “era ‘tout court’, a história secreta de uma maldição cuja
vítima é um astrólogo pouco conhecido, mas nem por isso pouco notável: Fernando
Pessoa. ‘The bad one’ é Aleister Crowley, mago negro, provável possuidor de todos
os vícios que é possível a um homem. […] Entre um e outro, Pessoa e Crowley, vai
travar-se a eterna luta entre o Bem e o Mal.”
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Céu e Silva
O Mistério da Boca do Inferno
Fig. 6. Para o realizador José de Pina, os personagens principais estão envolvidos
na luta entre o bem e o mal. Pessoa, no entanto, consegue evitar ser uma vítima do mago.
Não faltou um final feliz a O Mistério da Boca do Inferno, com José de Pina a
recriar nos últimos instantes do filme a famosa fotografia de Fernando Pessoa a
beber uma taça de vinho no estabelecimento da empresa Abel Pereira da Fonseca,
imagem que oferece à namorada Ofélia Queiroz com uma dedicatória feita de um
divertido trocadilho: “Em flagrante delitro”.
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
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Céu e Silva
O Mistério da Boca do Inferno
ANEXO 1
Outras imagens das filmagens
Fig. 7. Os atores José Mora Ramos (Crowley) e Catrin Loerck (H. Jaeger)
no set de filmagens. O automóvel é um Rolls Royce Phantom II de 1929
alugado para o filme.
Fig. 8. A recriação da época foi possível através de filmagens em locais que
ainda mantinham a estética e arquitetura dos anos 1930. Segundo José de Pina,
hoje seria quase impossível encontrar esses lugares com a arquitetura
e decoração de então.
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
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Céu e Silva
O Mistério da Boca do Inferno
ANEXO 2
Ficha técnica de O Mistério da Boca do Inferno
O Mistério da Boca do Inferno (1989)
Realização e argumento: José de Pina
Exteriores: Lisboa | Cascais | Guincho | Sintra
Cor | 16 mm | 67 min | Dual-band | Falada em português
Produção e rodagem: Mai/Jun 1988
Ante-Estreia | 1989-03-09 | Cinemateca Portuguesa
Estreia | 1989-05-14 | Emissão na RTP1
Laboratório: Tobis Portuguesa, RTP
Elenco. José Mora Ramos: Fernando Pessoa | João D'Ávila: Aleister Crowley |
Fernando Heitor: Homem da Gabardina | Catrin Loerck: Miss H. Jaeger | José Pedro
Gomes: Augusto Ferreira Gomes | Rui Luís: Inspetor | Glicínia Quartin: Senhora
Espirituosa | Carlos Fogaça: Repórter | Fernando Oliveira, Natália Luiza, José
Alexandre, Miguel Calheiros e Vítor Medina.
Direção de fotografia: João Guerra
Direção de produção: João Cayatte
Direção de som: José Gonçalves
Música original: Nuno Rebelo
Montagem: Luís Amaro e José Pina
Ruídos e ambientes: José Leitão e António Pires
Efeitos especiais: José João
Decoração: Luís Roussado e João Nascimento
Grafismos cenográficos: Maria José e Helena Filipe
Vestuário: Maria da Luz Villas-Boas e Catarina Pedro
Caraterização: Adelaide Sousa
Assistente de Imagem: Rui Trigueiros
Assistente de Produção: João Gata
Assistência de realização e anotação: Rui Filipe e Paulo Guilherme
Eletricista: Carlos Aguiar, João Ribas, Carlos Sequeira
Colaboração: Fernando Vendrell, Margarida Miranda, Joaquim Pinto, Alexandre
Gonçalves, Inês Simões, Acácio de Almeida, J. Faria, Nuno Artur Silva
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
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O Mistério da Boca do Inferno
ANEXO 3
O Mistério da Boca do Inferno (1989)
Fig. 9. O Mistério da Boca do Inferno (1989).
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
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O Mistério da Boca do Inferno
Fig. 10. O Mistério da Boca do Inferno (1989).
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238
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O Mistério da Boca do Inferno
Fig. 11. O Mistério da Boca do Inferno (1989).
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
239
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O Mistério da Boca do Inferno
Fig. 12. O Mistério da Boca do Inferno (1989).
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
240
Céu e Silva
O Mistério da Boca do Inferno
Fig. 13. O Mistério da Boca do Inferno (1989).
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
241
Céu e Silva
O Mistério da Boca do Inferno
ANEXO 4
Planificação
Fig. 14. Planificação.
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
242
Céu e Silva
O Mistério da Boca do Inferno
Fig. 15. Planificação.
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
243
Céu e Silva
O Mistério da Boca do Inferno
Fig. 16. Planificação.
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
244
Céu e Silva
O Mistério da Boca do Inferno
ANEXO 5
Mapa de rodagem
Fig. 17. Mapa de rodagem.
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245
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O Mistério da Boca do Inferno
ANEXO 6
Folha de sala
Fig. 18. Folha de sala.
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246
Céu e Silva
O Mistério da Boca do Inferno
Bibliografia
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PESSOA, Fernando (2019). O Mistério da Boca do Inferno. Correspondência e Novela Policial. Edição de
Steffen Dix. Traduções de Sofia Rodrigues. Lisboa: Tinta-da-china.
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ZENITH, Richard (2022). Pessoa: Uma Biografia. Lisboa: Quetzal.
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
247
Céu e Silva
O Mistério da Boca do Inferno
JOÃO CÉU E SILVA é autor do romance A Segunda Vida de Fernando Pessoa e de artigos sobre o
poeta publicados no Diário de Notícias. Nasceu em Alpiarça em 1959, e viveu no Rio de Janeiro,
onde se licenciou em História. Recebeu em 2021 o Prémio Carreira de Jornalismo do festival
literário Escritaria e publicou nesse mesmo ano Uma Longa Viagem com Vasco Pulido Valente, o
sexto volume de uma série, que conta com outros autores: José Saramago, António Lobo
Antunes, Miguel Torga, Álvaro Cunhal e Manuel Alegre. Além da investigação literária, tem a
histórica: Álvaro Cunhal e as Mulheres que Tomaram Partido, 1961 – O Ano que Mudou Portugal, 1975
– O Ano do Furacão Revolucionário, Fátima – A Profecia Que Assusta o Vaticano e O General que
Começou o 25 de Abril Dois Meses Antes dos Capitães. Em 2013, recebeu o Prémio Literário Alves
Redol com o romance A Sereia Muçulmana. Na ficção publicou também 28 Dias em Agosto, A Hora
da Ilusão, Adeus, África e Adeus, Casablanca. Em 2022 recebeu o Prémio Joaquim Mestre com o
romance Guadiana, da Associação de Escritores do Alentejo.
JOÃO CÉU E SILVA is the author of the novel A Segunda Vida de Fernando Pessoa and of articles
about the poet published in Diário de Notícias. He was born in Alpiarça in 1959 and lived in Rio
de Janeiro, where he graduated in History. In 2021, he received the Career Journalism Award
from the literary festival Escritaria and published in the same year Uma Longa Viagem com Vasco
Pulido Valente, the sixth volume in a series featuring other authors such as José Saramago,
António Lobo Antunes, Miguel Torga, Álvaro Cunhal, and Manuel Alegre. In addition to literary
research, he has written about historical topics such as Álvaro Cunhal e as Mulheres que Tomaram
Partido, 1961 – O Ano que Mudou Portugal, 1975 – O Ano do Furacão Revolucionário, Fátima – A
Profecia Que Assusta o Vaticano, and O General que Começou o 25 de Abril Dois Meses Antes dos
Capitães. In 2013, he received the Alves Redol Literary Award for the novel A Sereia Muçulmana.
In fiction, he has also published 28 Dias em Agosto, A Hora da Ilusão, Adeus, África, and Adeus,
Casablanca. In 2022, he was awarded the Joaquim Mestre Prize for the novel Guadiana by the
Association of Writers of Alentejo.
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
248
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V03U)S3W:
Miraglia
Boca do Inferno
A breve estadia de Aleister Crowley em terras de Portugal – o ocultista inglês chegou
no dia 2 de setembro de 1930, vindo de Vigo no paquete Alcântara, e deixou o país
a 23 do mesmo mês num Sud-Express1 –, tem sido fonte de inspiração para várias
obras de ficção a partir da última década do século XX, sendo pioneiros autores como
Alessandro Dell’Aira e Nuno Júdice2. O filme Boca do Inferno, de 2019, escrito por
Jaime Monsanto e realizado por Luís Porto, insere-se na segunda vaga de efabulação
do intrigante encontro entre o ocultista inglês e Fernando Pessoa impulsionada pela
vinda a lume, em 2001, de um volume preparado por Miguel Roza, nom de plume de
Luís Miguel Rosa Dias, sobrinho-herdeiro do poeta, que, pela primeira vez, reunia e
divulgava um extenso conjunto de documentos relacionados com este singular
episódio biográfico, documentos esses até então desconhecidos por continuarem na
posse da família do escritor e não terem sido ainda integrados no seu espólio à guarda
da Biblioteca Nacional de Portugal (BNP). Para além das cartas que o poeta trocara
com Aleister Crowley e outros destinatários, o livro dava a conhecer uma novela
policial, inacabada e fragmentária, com o título de The Mouth of Hell, que Fernando
Pessoa idealizara e parcialmente redigira, depois da saída do ocultista inglês de
Portugal,3 como sequência e, ao mesmo tempo, cabal e definitiva explicação do
“Mistério da Boca do Inferno”. Nessa reportagem sensacional assinada por Augusto
Ferreira Gomes, mas na realidade escrita pelo próprio Pessoa, e que saíra no Notícias
Ilustrado de 5 de outubro de 1930, apresentavam-se os elementos essenciais do enigma
que envolvia o súbito desaparecimento de Aleister Crowley: a carta do mago dirigida a
Hanni Larissa Jaeger, que o jornalista Ferreira Gomes encontrara sob uma cigarreira
com símbolos egípcios na Boca do Inferno, e o depoimento prestado por Pessoa
diante das autoridades, segundo o qual, alegadamente, Crowley teria sido visto em
Lisboa no dia 24 de setembro, ou seja um dia depois daquele em que, como entretanto
apurara a Polícia Internacional, este último passara a fronteira de Vilar Formoso.
A revelação de The Mouth of Hell não foi motivo de maior surpresa para os
estudiosos da obra pessoana, pois o forte interesse de Pessoa pela ficção policial já
era conhecido e Fernando Luso Soares, na década de 1970, já tinha editado em volume
Uma sintética e eficaz reconstrução das semanas que Aleister Crowley passou em Portugal pode
ler-se no volume sobre o assunto organizado por Steffen Dix (PESSOA, 2019: 447-457). Veja-se também
o “Chapter 62” da recente biografia de Fernando Pessoa escrita por Richard ZENITH (2021: 754-772).
1
2
Para um levantamento dessas obras, veja-se: PASI (2012).
No plano preparatório da mistificação, redigido por Aleister Crowley, existem umas linhas a sugerir
a escrita de uma história capaz de render uma boa quantia em direitos americanos: “This story ought
to fetch £200 American rights alone. Work up romance story — and how Yorke’s treachery caused
the parting. Curse upon him by black magician named Yorke” (PESSOA, 2019: 337-338). Isto significa
que a simples ideia de escrever uma história para tirar proveito da mistificação surgiu quando
Aleister Crowley e Fernando Pessoa estavam a aprontar a blague, e até pode ter vindo do primeiro,
todavia fica a nítida impressão que a tal “romance story” não seria necessariamente uma novela
policial e a sua ligação direta com The Mouth of Hell afigura-se algo precipitada.
3
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Miraglia
Boca do Inferno
uma série de fragmentos das novelas policiárias protagonizadas pelo Dr. Quaresma
(SOARES, 1976). Já no século XXI, o conhecimento da relação de Fernando Pessoa com
esse género narrativo tornar-se-ia cada vez mais abrangente graças ao notável e
minucioso trabalho de recolha, decifração e transcrição de numerosos documentos
guardados no espólio, que levou a cabo Ana Maria de Freitas. A esta estudiosa
deve-se a edição de dois volumes: o primeiro dedicado às novelas policiárias do Dr.
Quaresma, cuja escrita deve ser colocada num período que vai, aproximadamente,
desde 1914 até ao derradeiro ano de vida do poeta (PESSOA, 2008); e o segundo aos
textos policias em língua inglesa, Tales of a Reasoner, que protagonizam o Ex-Sergeant
Byng e que remontam aos anos da sua juventude (PESSOA, 2012). Talvez por ter sido
excluído dos volumes que constituem as edições de referência para a ficção policial
de Fernando Pessoa, The Mouth of Hell não tem geralmente encontrado espaço na
bibliografia que se debruça sobre esta faceta da obra pessoana, e, de resto, Ana Maria
de Freitas, no seu ensaio O Fio e o Labirinto, reconhece que este romance “está à
margem das duas grandes séries, de Byng e a de Quaresma” (FREITAS, 2016: 307).
Voltando ao filme Boca de Inferno, cumpre dizer, antes de mais, que se trata de
uma história policial, um motivo suficiente, aliado à sua até agora reduzida difusão,
para procurar evitar que estas páginas possam de alguma forma prejudicar a
auspicada visão da obra por parte do leitor. Além disso, o enfoque seguido neste
artigo, que na verdade é mais o dos estudos pessoanos do que o de uma crítica
cinematográfica, visa, em primeiro lugar, evidenciar o modo como no filme foram
aproveitados ou reelaborados os textos de Fernando Pessoa, dando particular realce
à relação do argumento com The Mouth of Hell, e, em segundo lugar, fazer sobressair
a imagem que Boca de Inferno transmite aos espetadores de Fernando Pessoa como
figura humana. Isto implica que não serão abordados aspetos mais especificamente
ligados à linguagem da sétima arte que não só enriquecem e valorizam, pela sua
qualidade, a obra de Luís Porto, mas que são ineludíveis para uma interpretação
abrangente e profunda do filme nas suas várias facetas e na sua dimensão simbólica.
Fica aqui apenas uma alusão, que é ao mesmo tempo um caloroso convite ao leitor
para ver o filme, à cenografia, particularmente sugestiva com a alternância de
cenários no interior de um único espaço, o Claustro do Mosteiro de São Bento da
Vitória; à realização, na qual sobressai o movimento de câmara que dinamiza uma
linguagem de cariz teatral; à fotografia, com os hábeis jogos de luz; aos figurinos,
que transportam o espetador para a atmosfera dos anos Trinta do século XX; à
representação, com as convincentes interpretações de Jaime Monsanto (Fernando
Pessoa), Edmund Digby-Jones (Detective), Simon Treves (Aleister Crowley), Pedro
Manana (Augusto Ferreira Gomes) e Georgina Beedle (Hanni Larissa Jaeger); à banda
sonora, toda ela constituída por músicas originais de João Morais ‘O Gajo’, que
também atua no filme.
Feito este disclaimer, começamos por analisar qual é a relação do argumento
com a novela pessoana. A este respeito, é possível identificar de forma clara duas
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
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Miraglia
Boca do Inferno
partes nitidamente separadas no filme, coincidindo a segunda com o momento em
que a personagem Pessoa entra no Café Arcada. Com efeito, até então, a narrativa
fílmica afigura-se substancialmente como uma linear transposição ou adaptação de
The Mouth of Hell, marcada pela voz, em off, do detetive inglês cuja primeira frase, de
resto, corresponde exatamente a uma das que Fernando Pessoa escreveu para incipit
do romance: “This book is the detailed (so far as it lies in me) logical narrative of the
investigation which I personally conducted into the possible suicide, and certain
disappearance, of Aleister Crowley in Portugal” (PESSOA, 2019: 382; BNP/E3, 324r).
Cabem ainda no âmbito da que se pode considerar uma adaptação da novela,
embora já mais livre,4 o deambular do detetive pelas ruas da cidade e a sucessiva
sequência no interior do Café Arcada, com Augusto Ferreira Gomes que narra a um
Raúl Leal apavorado como encontrou a cigarreira e a carta do mago e uns clientes
que vão lendo sucessivamente trechos da reportagem sensacional publicada no Século
Ilustrado − uma solução brilhante e eficaz para apresentar ao espetador de forma
resumida os elementos à volta do os quais gira o mistério −, todavia, a partir da cena
em que o detetive inglês se apresenta a Pessoa, o argumento envereda por outro rumo,
sendo a sua fonte de inspiração não tanto The Mouth of Hell, mas sim a correspondência
que o poeta português manteve com Aleister Crowley, o diário deste último relativo
às semanas vividas em Portugal, e outros testemunhos deste episódio peculiar e
surpreendente na habitualmente pacata biografia do poeta. O foco da narrativa
fílmica passa a ser o próprio Fernando Pessoa e o seu encontro com o enigmático
Aleister Crowley e a sua companheira, a atraente e perturbante Hanni Larissa Jaeger.
Através do diálogo entre o detetive inglês e a personagem Pessoa, enquanto estão
sentados a uma mesa do Café Arcada, vão sendo reevocados, em flashback, alguns
episódios marcantes da estadia do casal em Portugal, deixando transparecer,
sobretudo nas sequências em que o poeta contracena com a jovem mulher, como o
contacto com estas personalidades tão diferentes das que faziam parte do seu
quotidiano não podia deixar de o afetar.
Convém, agora, interromper a descrição do filme, que se vai aproximando do
fim, dado que a história, mesmo afastando-se da de The Mouth of Hell, continua a ser
uma história policial e reserva para as cenas finais o imprescindível desfecho
inesperado. O desvio de Boca do Inferno da novela pessoana significa simplesmente
que o rumo da investigação seguido pelo detetive do filme, as suspeitas que ele vai
levantando acerca das personagens e, por conseguinte, também os resultados aos
quais irá chegar não tem correspondência alguma com o que se pode ler nas páginas
que Fernando Pessoa escreveu. Há, todavia, nessa segunda parte do filme, um dado
intrigante pelo que concerne justamente à relação entre argumento e novela pessoana.
As frases da voz em off, pronunciadas pelo detetive, excetuando a primeira, são, na realidade, o
resultado de uma hábil colagem de vários trechos tirados de diferentes partes de The Mouth of Hell
com ligeiras alterações.
4
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Perante as perguntas insistentes do detetive, que manifesta a sua perplexidade
acerca da personalidade de Aleister Crowley e da sua fama, a personagem Pessoa
responde pronunciando umas frases que são de facto retiradas de documentos que
integram The Mouth of Hell. Nos primeiros casos, trata-se de reflexões sobre a fama:
Fame, or celebrity, is by its very nature superficial, and the qualities that go to make it must
be superficial in themselves. […] They [famous men] owe their fame, however justified by
their higher qualities, to qualities lower than those. A man must either cheapen his fundamental
genius, if he have one, or set up a current outside that fundamental genius, to have any hold
on what is called the, or a, public.
(PESSOA, 2019: 430; BNP/E3, 345-1r)
It is very easy to fall into this slough of our more successful selves.
(PESSOA, 2019: 431; BNP/E3, 346r)
Fig. 1. Trecho da novela policial, sem capítulo definido (BNP/E3, 345-1r e 2r).
Noutros, de considerações acerca da personalidade de Crowley, e mais em geral sobre
o génio:
Suppose a man has his mind removed from the dirt and friction of reality, but that he has a
life, or a temperament, which brings him down into them. He will create a dual life […]
(PESSOA, 2019: 431; BNP/E3, 346r)
There is a timidity of the outer world, a strange hesitation in puMing our real selves in contact
with it. So gradually we become two – an inner man, locked up in his deep feelings and thoughts,
and, to use somewhat excessive language, withdrawn from manifestation, and an outer man,
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made by circumstances and occasions, who, if such circumstances and occasions happen to
be opposed to his inner nature, will be, not only two men, but to mutually opposed men.
(PESSOA, 2019: 514; BNP/E3, 347r)
O primeiro documento (cota 345-1; Fig. 1) tem a indicação inicial: “M[outh]/H[ell]. —
Chapter (?) ‘A Study in Complexity’” (PESSOA, 2019: 429). Sem dúvida, estamos perante
uma espécie de diálogo, de natureza ensaística, que contrasta com a quase totalidade
dos outros textos, onde predomina o monólogo do detetive, quer esteja ele a raciocinar
sobre os dados do mistério, quer a descrever os passos sucessivos da investigação
que o leva a visitar vários lugares em Lisboa e nos arredores; e é bem possível que
esse diálogo seja entre Pessoa e o detetive inglês. Poder-se-á, então, conjeturar que,
independentemente da segunda parte do filme representar um acentuado desvio em
relação à novela, o argumento de Boca do Inferno se inspirou justamente nessas páginas
singulares da ficção pessoana para fazer do encontro entre o detetive inglês e Pessoa
no Café Arcada o verdadeiro fulcro da narração fílmica,5 mas isto obriga-nos a
examinar, com uma atenção porventura maior da que mereceu até hoje, este escrito
tardiamente incluído no espólio à guarda da BNP.
Publicados num primeiro momento por Miguel Roza, os documentos que
compõem o corpus textual de The Mouth of Hell, foram posteriormente objeto de uma
cuidadosa edição organizada por Steffen Dix, que integra a coleção Pessoa da editora
Tinta-da-china dirigida por Jerónimo Pizarro. Na “Apresentação” do volume, Dix
descreve o estado inacabado e fragmentário do texto e a árdua tarefa que se apresenta
a quem queira editá-lo:
Considerando a irregularidade e as variantes dos fragmentos da novela, torna-se praticamente
impossível compilá-los de uma maneira definitiva. A única hipótese de compilar os textos,
de forma relativamente convincente, consiste numa análise atenta do conteúdo dos fragmentos
e numa comparação dele com os planos dos capítulos. Mesmo assim, persiste o dilema irresolúvel
de existirem, por vezes, múltiplas variantes do mesmo texto ou capítulo. Ou seja […] a
organização dos capítulos da novela policial obedecerá sempre, e necessariamente, a critérios
subjectivos do editor, considerando que não existem praticamente nenhuns indícios objectivos
sobre a última versão de um capítulo ou que fragmentos pertencem concretamente a determinado
Convém notar que nos documentos em causa não há qualquer indicação relativa ao lugar no qual
se desenrola o diálogo. No seu comentário a The Mouth of Hell, Ana Maria de Freitas escreve: “A
investigação chega ao Café Arcada, onde o gerente e dois criados dão testemunhos sobre a presença
do Poeta e do Mago nas suas mesas. O Arcada ficava perto da Wagons-Lits e da Estação de Caminho
de Ferro. Terá sido nesse café o encontro de Pessoa com o investigador? O texto não dá essa
informação” (FREITAS, 2016: 314). A sermos mais rigorosos, podemos acrescentar que, pela leitura dos
fragmentos, é altamente duvidoso que o detetive inglês de The Mouth of Hell tenha alguma vez posto
os pés no Café Arcada, pelo menos nas duas primeiras fases de escrita da novela (ver infra): “Not
wishing to conduct in person this part of the investigation, I had it conducted by careful proxy by a
waiter of another cafe, a clever man and a sharp witted one. He came to me the next morning and
reported in full his conversation with two of the three waiters of Café Arcada. They knew P[essoa]
quite well, and they knew C[rowley] too” (PESSOA, 2019: 419; BNP/E3, 355-4r).
5
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capítulo. Reconhece-se, assim, a hipótese de outras organizações dos fragmentos, eventualmente
tão produtivas quanto a que aqui se dá a conhecer; sublinha-se, contudo, a impossibilidade
de algum dia se poder chegar a um critério objectivo definitivo.
(PESSOA, 2019: 18-19)
Além disso, há outro elemento a dificultar o trabalho editorial, pois, segundo Steffen
Dix, “encontra-se na correspondência uma referência algo enigmática que sugere a
possibilidade de uma reescrita de toda a novela policial com um final que nunca
pudesse ser contrariado” (PESSOA, 2019: 18). Seja como for, logo após ter citado essa
referência enigmática, contida numa carta a Karl Germer datada de 3 de dezembro
de 1930, Dix chega à conclusão que:
Embora alguns fragmentos pareçam indiciar uma tentativa de dar à novela uma nova
direcção, estas linhas representam também uma forma indirecta de oferecer desculpas pelo
facto de Pessoa não ter continuado, a partir de certa altura, com a escrita, perdendo pouco a
pouco a vontade de concluir a novela.
(PESSOA, 2019: 18)
Em boa verdade, a leitura da correspondência de Fernando Pessoa com Karl Germer
e Israel Regardie fornece um conjunto de informações sobre a idealização de The
Mouth of Hell, e porventura sobre a sua mesma escrita, que exigem uma análise mais
aprofundada. Senão, vejamos.
É numa carta dirigida a Karl Germer, datada de 13 de outubro, que Fernando
Pessoa menciona pela primeira vez a existência de um detetive inglês que estaria a
investigar o desaparecimento de Aleister Crowley, aventando, ao mesmo tempo, a
possibilidade da publicação do relatório sensacional que redundaria dela:
I have some news to give you. I have just been informed that an English detective – a private
one, I believe, who was here handling some other case – has been investigating Mr. Crowley’s
disappearance since the beginning of the month. My information is very indirect and it is not
very clear, yet I believe I am not mistaken in thinking that he is likely to make a possibly
sensational report, probably even for publication, upon it. If so, I suppose we are likely to hear
something by the beginning of next month.
(PESSOA, 2019: 355; BNP/E3, 244r)
Sete dias mais tarde, a 20 de outubro, sempre em carta dirigida a Germer, Pessoa
informa que o detetive inglês está prestes a concluir a sua investigação, dando a
conhecer um dos seus resultados mais notáveis, isto é, o rastreamento, após vários
dias de busca, de um táxi misteriosamente relacionado com o caso Crowley:
There is just one thing to tell you. The English detective, who was commissioned to handle
this maMer (see my leMer of the 13th.), hopes to conclude his investigation to-day. […] I am
also informed that a good number of days were spent by the investigator in tracking down a
certain taxi, connected (I cannot imagine how) with the Crowley case. He has tracked it down
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
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at last, after a long and weary process of elimination, and I am told that the upshot of that is
so starling that it will add, so to speak, a fourth dimension to the problem. In these ensuing
days the man will write his report, and I am asking my intermediary friend that he suggests
to the detective – unless some professional reason counters the possibility of his agreement –
that he publish the result of his investigation, especially if it be so interesting as I am thus
vaguely told it is.
(PESSOA, 2019: 358; BNP/E3, 255-2r)
Finalmente, a 24 de outubro, Pessoa comunica a Germer que o detetive inglês concluiu
a investigação e que está a escrever o relatório, prevendo-se o fim do mês como prazo
para a conclusão da sua redação:
This is just to communicate that the English detective in charge of the Crowley Case, having
(as I already informed) completed his investigation, is writing the report on it. I am told that
the writing of this report is likely to take up to the end of the month, or a few days over, but
it is likely to prove – especially the final part – a rather sensationalist thing.
(PESSOA, 2019: 360; BNP/E3, 263r)
Nesta carta, são revelados também outros elementos fulcrais da investigação, que,
pelo que diz respeito ao álibi e ao rastreamento do táxi, correspondem a partes da
novela bastante desenvolvidas nos documentos guardados no espólio:
[…] the establishment of a particularly difficult alibi, the discovery of the man who replaced
Crowley in the Sud-Express, the exact determination of the adverse forces which were working
against Crowley, the finding of the taxi which was concerned in an essential part of the process,
and the culmination in the murder of the driver of that taxi.
(PESSOA, 2019: 360; BNP/E3, 263r)
Para dar uma ideia do que poderá vir a ser o relatório do detetive inglês uma vez
concluído, Fernando Pessoa estabelece um paralelismo com os romances policiais
de autoria de Freeman Wills Crofts: “Looked at from the outside — this, again, is my
information — it will look, in a sense, like a Freeman Wills Crofts’ novel — detection
in minimis” (PESSOA, 2019: 360; BNP/E3, 263r).
Foi com muita probabilidade “the establishment of a particularly difficult
alibi”, relacionado com a saída de Portugal de Aleister Crowley de comboio, que
sugeriu a Pessoa a associação do até então simplesmente relatório sensacional do
detetive inglês aos romances de Freeman Wills Crofts, onde muitas vezes o enigma
a desvendar é um álibi aparentemente perfeito alicerçado nos horários dos caminhos
de ferro. No seu ensaio The Detective Story, Fernando Pessoa coloca o escritor irlandês
ao lado de Austin. C. Freeman como expoente maior da corrente do género policial
na qual a investigação é de facto investigação,6 e sabemos que na altura da escrita de
6 “Investigation must either be natural and patient, as in Mr. Wills Crofts’ novels, or superior and
scientific as in Dr. Austin Freeman’s. Most writers so confuse incident with investigation that it is
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The Mouth of Hell, ele lera pelo menos duas obras de Freeman Wills Crofts: Inspector’s
French Greatest Case e The Ponson Case. Nenhuma delas se encontra hoje na Biblioteca
Particular do poeta, embora da primeira tenha ficado no espólio a sobrecapa (PIZARRO,
FERRARI e CARDIELLO, 2010: 421), mas ambas partilham um aspeto curioso que Pessoa
lembra numa das páginas da novela inacabada:
I had to work by myself, by direct unaided contact with facts and central persons, basing
myself only on my knowledge of Portuguese and on such spiritual aid as I might derive from
the memory of Freeman Wills Crofts, who, in prophetic regard for one of his unknown
readers, had already had at least two of his criminals arrested here in Portugal.
(PESSOA, 2019: 396; BNP/E3, 327r)
Fig. 2. Trecho datilografado na metade superior de uma folha (BNP/E3, 327r).
Com efeito, nesses dois livros a fuga do criminoso, num caso perseguido pelo
Inspetor French, noutro pelo Inspetor Tanner, conclui-se justamente em Portugal, e,
em The Ponson Case, podemos ler uma breve descrição da Baixa lisboeta, que, muito
provavelmente, não terá deixado indiferente Fernando Pessoa:
When Tanner emerged into the brilliantly lighted streets and gazed down the splendid vista
of the Avenida da Liberdade, he literally held his breath with amazement. The Portuguese he
had always looked on as a lazy, good-for-nothing set, but this great new boulevard made him
reconsider his opinion. He booked a room in the Avenida Palace Hotel, and then, crossing
the Dom Pedro Square, walked down to the steamboat offices in the Rua da Alfandega. […]
difficult to determine, of certain stories, whether they can better be classed as mystery stories or as
tales of investigation The two main writers in this class of story are Dr. Austin Freeman and Mr.
Crofts. In both investigation is indeed investigation” (MIRAGLIA, 2018: 474).
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Boca do Inferno
At six o’clock Tanner was down on the Praça do Commercio, admiring in the brilliant sunlight
the splendid river which flowed before him, and the charming seMing of the town on its range
of hills. In the river lay several steamers, some quite large, and all tugging at their anchors
with their bows upstream. Down seawards, but inside the comparatively narrow mouth of
the Tagus, a grey, two-funnelled boat was coming slowly up—the Vaal River—with, as Tanner
hoped, William Douglas on board.
(CROFTS, 2000: 218)
Voltemos à correspondência. Já na carta enviada a 30 de outubro a Israel
Regardie, com cópia para Karl Germer, a principal preocupação de Fernando Pessoa
parece ser a de encontrar a editora mais adequada para a publicação do livro que o
detetive inglês, tendo sido autorizado para isso, já teria parcialmente escrito e que
deveria ficar completo no espaço de duas semanas. Sendo parecido, pelo que
concerne o modo como a investigação é levada a cabo, aos romances de Freeman
Wills Crofts, o volume teria as seguintes caraterísticas:
The book will contain, among other things, (1) the complete examination of an alibi, (2) the
gradual discovery of the truth in this very serious maMer, (3) the culmination of the whole
case in a murder, which, however, is not Crowley’s, and this makes it all the more complex.
(PESSOA, 2019: 364; BNP/E3, 277-2r)7
A partir deste dia, Fernando Pessoa deixa abruptamente de escrever cartas aos seus
interlocutores estrangeiros e nem sequer responde às mensagens que lhe vai enviando
o amigo Augusto Ferreira Gomes, nessa altura em Paris. O silêncio absoluto ao qual
se remete o poeta durante todo o mês de novembro contrasta com a verdadeira
euforia epistolar que marcara o período anterior. É só a 3 de dezembro que ele volta
a dar sinais de vida, escrevendo uma carta para Karl Germer, com cópia para Israel
Regardie (ver Anexo 1), na qual, após se desculpar por não ter dado notícias,
imputando o motivo a uma doença, afirma que essa circunstância adversa acabou,
porém, por ser revelar vantajosa para o destino do livro, pois, como explica: “If there
had been time, health and disposition to write the book as originally intended, the
book would have been a wrong move” (PESSOA, 2019: 366; BNP/E3, 282-1r).
Uma breve descrição do livro lê-se também na carta enviada a Augusto Ferreira Dias, três dias antes,
a 27 de outubro: “Como creio que lhe disse, o detective inglez que aqui tem estado a tratar do caso
Crowley está escrevendo (em inglez, claro está) o relatorio completo da sua interessantissima
investigação do assumpto. Deve, segundo me informam, formar um livro pequeno, com uns oito a
dez capitulos breves, cujo interesse, porém, vae augmentando do primeiro ao terrivel ultimo (ou
penultimo) [...] O escripto, segundo as minhas (aliás boas) informações, tem uma grande similhança
com os romances policiaes do Freeman Wills Crofts — os da investigação paciente, minuciosa, conquistando
a verdade pouco a pouco e muitas vezes chegando a resultados inesperados. Deve este livrinho, além
de ser baseado na realidade, e ser, portanto um Freeman Wills Crofts photographico, ter a seducção
— com elementos intellectuaes e de raciocinio — dos bons contos policiaes (PESSOA, 2019: 161-162;
BNP/E3, 275-2r).
7
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A impossibilidade de realizar o plano traçado anteriormente permitiu-lhe
refletir melhor sobre o assunto e chegar à conclusão que seria mais oportuno seguir
outro rumo:
The compulsory meditation that has intervened has enabled me to think out the work as (1)
a coherent whole as a detective story, (2) a far more interesting story than it was originally,
(3) a story with a conclusion which no future fact or facts can ever counter or rebut.
(PESSOA, 2019: 366; BNP/E3, 282-1r)
A seguir, Pessoa fornece uma sinopse da história bastante extensa e pormenorizada,
na qual descreve toda a investigação do detetive inglês, detendo-se em particular no
complicado álibi relacionado com a saída de Aleister Crowley de Portugal, até ao
seu desfecho, e remata: “This, very quickly and badly told, is the whole story”
(PESSOA, 2019: 368; BNP/E3, 282-3r). O que faltaria, seria apenas uma reelaboração
do que já tinha sido escrito em partes à luz da nova conceção da história como um
todo coerente, e, Pessoa, assumindo-se como seu autor sem mais disfarces (“The
poor author still lies under the curse of deferred work for commercial elementals”),
promete enviar os capítulos à medida que estejam redigidos, prevendo concluir o
trabalho no fim do mês.
Ora bem, da longa sinopse de The Mouth of Hell não consta qualquer encontro
entre o detetive inglês e a personagem Pessoa e, de resto, também nas informações,
embora parciais, acerca da investigação do detetive inglês e do seu relatório sensacional
que o escritor fora dando aos seus interlocutores nas cartas enviadas ao longo do
mês de outubro não há vislumbre de que alguma vez tal encontro se dera. Na
realidade, a primeira referência a um encontro fugaz que teria acontecido entre
Fernando Pessoa e um agente investigador inglês aparece num texto que faz parte
da mistificação, da blague, ou seja, o artigo “Aleister Crowley foi assassinado? Um
novo aspecto do caso da ‘Boca do Inferno’”, publicado a 16 de dezembro de 1930 na
revista Girasol:
Sei com absoluta certeza que estiveram aqui dois agentes investigadores ingleses a tratar do
caso de Crowley. Logo no dia 29 de Setembro me apareceu aqui, neste escritório, um dêles;
veio com um disfarce verbal transparente, tanto que não só eu, mas um amigo meu, inglês,
que por acaso aqui estava, imediatamente desconfiámos do “professor de línguas” que nos
havia aparecido.
(PESSOA, 2019: 192)8
Sabemos que este artigo, em forma de entrevista, foi integralmente escrito na
realidade por Fernando Pessoa, como ele informa Aleister Crowley em carta datada
É justamente neste artigo que se baseia o argumento do filme para as falas iniciais do diálogo entre
Pessoa e o detetive, como evidencia o facto de este último se apresentar como um professor de língua
inglesa.
8
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Boca do Inferno
de 13 de fevereiro de 1931 (PESSOA, 2019: 188); da sua leitura, infere-se que, nessa
altura, o plano para The Mouth of Hell continuava a ser o da sinopse:
Do “professor de línguas” não só tenho a certeza visual e lógica, mas consegui saber, por
favor especial, ao menos três resultados das suas investigações.
Sei que êle conseguiu “levar a sua investigação a bom fim”, ou que, pelo menos, supõe que o
fez; sei que nem admite a hipótese do suicidio nem a hipótese da “blague”; e sei que, desde o
primeiro dia da investigação, me “riscou do caso”, com o fundamento, que me deixa perplexo,
de que entre Crowley e os jornais havia um elemento de ligação “muito mais íntimo e
valioso” do que eu”.
(PESSOA, 2019: 192)
Tudo isso nos leva a conjeturar que até, pelo menos, ao mês de dezembro de 1930,
as páginas do capítulo “A study in complexity” não tinham sido ainda escritas e nem
sequer idealizadas. Corrobora esta hipótese o facto de em nenhum dos planos que
Pessoa traçou para o romance surgir, entre os capítulos listados, “A study in
complexity” (cf. PESSOA, 2019: 377-379 e 437).
Podemos supor, então, que a escrita de The Mouth of Hell tenha passado por,
pelo menos, três fases: a primeira, porventura a mais abundante, a situar ao longo
do mês de outubro, a segunda, que consistiria essencialmente num reajuste da
história à luz dos pressupostos enunciados na carta a Karl Gremer de 3 de dezembro,
levada a cabo entre as últimas semanas de 1930 e o começo de 1931,9 e a terceira,
algures ao longo do ano de 1931 ou até mais tarde, que implicaria algumas alterações
substanciais em relação à sinopse, sendo a mais notável o acrescento à história do
encontro entre o detetive e a personagem Pessoa.10
No seu ensaio sobre a ficção policial de Fernando Pessoa, Ana Maria de
Freitas dedica algumas páginas à análise de The Mouth of Hell, nas quais realça e
comenta a relevância do capítulo “A study in complexity”:
No entanto, apesar de se aproximar das convenções do género e se afastar do modelo policial
pessoano, essa obra apresenta a marca do autor e é mais complexa do que uma simples ficção.
Pessoa tem, nesta história, o prazer de se incluir como personagem e de lançar sobre si-próprio
um olhar exterior. O único diálogo pertence-lhe e nele aproveita não só para fazer uma análise
da Besta 666 como para estender essa análise a questões do génio e da fama […]. Percebe-se
que a personagem Fernando Pessoa é colocada, na ficção, no papel de Abílio Fernandes
A esta segunda fase, provavelmente, devem-se a maioria das variantes dos capítulos do romance e
do “Prefácio”.
9
The Mouth of Hell consta de dois projetos editoriais (BNP/E3, 170r e 181r), que, para Jorge Uribe e
Pedro Sepúlveda, devem ser datados de c. 1931 (cf. PESSOA, 2007: 64); o segundo tem a particularidade
de associar a novela a outra com o título de The Double Issue, sendo ambas atribuídas a “J.S.B.” (URIBE
e SEPÚLVEDA, 2016: 196-198). The Double Issue é o título que Fernando Pessoa deu, num segundo
momento (ver BNP/E3, 273 K-2v), a The Second Issue, “the story of the greatest forgery of modern times”
(BNP/E3, 273 K4), ou seja, a conhecida fraude de Artur Alves Reis.
10
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Quaresma, caindo o investigador inglês para o papel de Manuel Guedes, o que é justo e lógico,
pois Quaresma é um Pessoa reduzido a um dos seus aspetos, o do decifrador de charadas.
(FREITAS, 2015: 312)11
Para reforçar a proximidade entre a personagem Fernando Pessoa, tal como se
delineia nas páginas desse capítulo tardio de The Mouth of Hell, e o Dr. Quaresma,
oportunamente assinalada por Ana Maria de Freitas, vale a pena acrescentar que,
assim como em certos trechos de “A study in complexity” ecoam as reflexões sobre
a celebridade que podem ser lidas no ensaio Erostratus (PESSOA, 2000), também na
novela policiária mais desenvolvida da série Quaresma, O Caso Vargas, não faltam
nítidas reminiscências desse texto, fragmentário e inacabado, que Fernando Pessoa
foi escrevendo entre 1929 e 1930:
Outras circumstancias, como certos estimulantes, certos momentos de exaltação espiritual, e
outras assim, podem produzir num cerebro não-genial faiscas do que, se fosse constante, seria
genio. Tal homem, naturalmente normal, e portanto banal, mas intelligente, terá um momento
em que escreva um soneto que fique, unico d’elle, numa anthologia. Tal outro – e isto é mais
vulgar – terá um dito de espirito que voluntariamente aMribuiriamos a um espirito realmente
genial. O dito de espirito é, até, um dos exemplos curiosos do raro phenomeno do genio occasional:
e é de notar quantas vezes nasce do estimulo da sociedade, do do vinho, de outros assim.
(PESSOA, 2008: 92; BNP/E3, 2714 V2-13r)12
O capítulo “A study in complexity”, que apenas surge na terceira e já
derradeira fase de escrita de The Mouth of Hell, constitui na realidade o regresso de
Fernando Pessoa à sua ficção policial mais autêntica após uma esforçada divagação
por caminhos narrativos, sob o signo de Freeman Wills Crofts, que podiam até merecer
o seu apreço como leitor de romances do género, mas que não se coadunavam de
forma alguma com a sua índole.
Em suma, do novo rumo que o escritor pensou dar a The Mouth of Hell, ficou
apenas um vislumbre e o destino desta novela acabaria para não ser diferente do que
tiveram todas as outras tentativas do autor no âmbito da ficção policial: fragmentos
confiados à arca. Que o argumento de Boca do Inferno tenha feito justamente do
encontro entre o detetive inglês e a personagem Fernando Pessoa o verdadeiro fulcro
da história, inspirando-se naquelas páginas da novela policial que mais se afastam
Note-se também este importante comentário da estudiosa: “Existe um longo diálogo em que Pessoa
faz o papel destinado a Quaresma nas novelas: analisa a motivação psicológica da figura central [...]
O tema é a fama ou celebridade de Crowley, mas Pessoa passa para considerações gerais” (FREITAS,
2016: 314)
11
Cf. Erostratus: “Every man has made, at least, one good joke in his life; yet he is not therefore a wit.
The joke was the moment’s, not his. Every man has had, if only once in his life, a happy idea, and he
is not therefore a thinker. The idea was his chance rather than his property [...] Some strange trick of
the brain, which if, continual and organic, is genius, may be occasional and non-typical and simulate
genius legimately as it lasts. (PESSOA, 2000: 133-134 BNP/E3, 96-22r).
12
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da investigação meticulosa, mas, ao mesmo tempo, rebarbativa e árida que caracteriza
The Mouth of Hell, revela como Luís Porto e Jaime Monsanto souberam captar o que
de mais autenticamente pessoano se encontra nesta ficção incompleta. Boca do
Inferno, como vimos, conta uma história que, a partir de certa altura, já não é a mesma
de The Mouth of Hell, assim como ficou guardada na arca, mas nada nos impede de
a considerar, no fundo, um desenvolvimento, sem dúvida livre e imaginativo, de
uma potencialidade latente no novo rumo da novela que Fernando Pessoa se
limitara a esboçar.13
Para concluir, algumas breves considerações sobre a representação do poeta,
enquanto homem, que sobressai de Boca de Inferno. Vale a pena notar, antes de mais,
que o filme de Luís Porto, ao contrário do que seria porventura expectável, tendo em
conta a tendência geral das obras de ficção inspiradas no encontro entre Fernando
Pessoa e Aleister Crowley, não explora aqueles aspetos mais comummente
associados a este acontecimento, isto é, o ocultismo e a magia. Pelo que concerne a
reevocação das semanas que o mago inglês e Hanni Larissa Jaeger passaram em
Portugal, à qual o espetador assiste na segunda parte do filme, o que ressalta é, como
já foi notado, a reação de Pessoa diante dessas duas personalidades invulgares e, em
particular, o acanhamento e a perturbação que lhe provocam os momentos de
intimidade com a jovem mulher. Numa cena, literal e metaforicamente solar, o
espetador assiste à visualização do conhecido poema “Dá a surpresa de ser” que
Pessoa escreveu a 10 de setembro, um dia depois de ter passado umas horas em
companhia de Hanni: este seria “o seu único poema vagamente erótico”, segundo
Steffen Dix (PESSOA, 2019: 451) “the only poem of his entire life in which the speaker
unequivocally lusts after a female body”, nas palavras de ZENITH (2021: 762). O
toque leve e delicado com o qual Luís Porto trata esses momentos de intimidade
leva-me a pensar se a sua recriação corresponde ao que realmente aconteceu nesses
dias de setembro de 1930, que talvez não seja arrojado supor um reflexo ou um eco
desses momentos noutro poema que Fernando Pessoa escreveu a 12 de setembro:
Não sei se é amor que tens, ou amor que finges,
O que me dás. Dás-m’o. Tanto me baste.
No doc. BNP/E3, 344r temos indícios de uma transformação da própria figura do detetive inglês,
inicialmente alheio à cultura portuguesa: “I finally ascertained that P[essoa] used to go every day to
Café Arcada, right down near the Tagus, not for conversation but for coffee, and that he did foreign
correspondence for at least two offices, which, being of well-known business men, I easily got the
addresses of. Let no one curse cafés, those “oases of noisy uselessnesses” (as the Portuguese poet
Alvaro de Campos, who happens to be one of Pessoa’s “heteronymous” personalities, once said). In
the future course of this investigation of mine, I never got information so quickly as in this true oasis,
noisy but not useless, which I was to find, in the beginning of the very real desert of my quest (PESSOA,
2019: 405; BNP/E3, 344r). O detetive traduz para inglês uma expressão que se encontra no verso 44
da “Ode Triunfal”: “Nos cafés – oásis de inutilidade ruidosas” (PESSOA, 2014: 49). É de salientar, neste
documento, a ocorrência, porventura a primeira e única no espólio, do termo “heteronymous”.
13
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Já que o não sou por tempo.
Seja eu jovem por erro.
Pouco os deuses nos dão, e o pouco é falso.
Porém se o dão, falso que seja, a dadiva
É verdadeira. Acceito,
E a te crer me resigno.
(PESSOA, 2016: 159)
Talvez não seja mais que uma mera coincidência temporal, certamente é um Ricardo
Reis insólito e atípico aquele que fala e medita nos versos desta ode.
Na representação fílmica do escritor, há outra faceta que se revela quando, na
sua primeira aparição, a personagem Pessoa contracena com Augusto Ferreira Dias.
Perante a hesitação que o amigo jornalista manifesta acerca de alguns detalhes da
blague suscetíveis de levantar perplexidades na opinião pública, a resposta lapidar
do poeta define de imediato o caráter da personagem: “Porque é sempre preferível
mentir a dizer a verdade. A ficção é lógica, ou pelo menos devia ser; a realidade é
como vem, e por vezes, não tem verossimilhança alguma”14. E é significativo, pelo
que concerne o intuito de Luís Porto em realizar este filme, que seja justamente a
imagem de um Fernando Pessoa irónico, espirituoso, blaguer, em diálogo humorado
com Augusto Ferreira Dias, a última que fica na retina dos espetadores de Boca de
Inferno.
A fonte quase textual destas frases, assim como das pronunciadas por Augusto Ferreira Dias pouco
antes, ao narrar o caso a Raúl Leal, no Café Arcada, (“O Fernando disse-me logo: Você não pode
contar isso assim, porque ninguém acredita. A verdade nunca se acredita. É preciso mentir. Invente
qualquer coisa, qualquer coisa plausível e ‘humana’”) é um documento do espólio escrito em língua
portuguesa (PESSOA, 2019: 312-313; BNP/E3, 324r), ao que parece um depoimento sobre o achado da
carta de Aleister Crowley que não foi aproveitado na reportagem sensacional publicada no Notícias
Ilustrado ou nos outros artigos saídos na imprensa.
14
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Fig. 3. P[essoa] used to go every day to Café Arcada (BNP/E3, 344r).
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ANEXOS
Símbolos utilizados
□
<>
espaço deixado em branco pelo autor
segmento riscado
Segmentos sublinhados encontram-se reproduzidos em itálico.
Anexo 1
[BNP/E3, 282-1r a 4r]
Dear Mr. Germer:
I am sorry that I should have delayed so much my reply to your le€er of the
18th. November, and that, apart from that, I should have left you for so long a time
without any news. The fact is that I was ill for a good (meaning a bad) part of November,
and the time that I was not ill circumstances were ill around me. Then, when both I
and they were be€er, there was the immediate pressure of work delayed owing to
both ills.
As, however, it behoves everyone who can do so to make circumstances, even
if adverse, the subject of a sort of alchemy or transmutation, by which delay itself
may become a mode or episode of progress, I, as Gonzalo would have said, have
“derived much comfort” from this fellow, circumstance.
If there had been time, health and disposition to write the book as originally
intended, the book would have been a wrong move. The compulsory meditation
that has intervened has enabled me to think out the work as (1) a coherent whole as
a detective story, (2) a far more interesting story than it was originally, (3) a story
with a conclusion which no future fact or facts can ever counter or rebut.
The detective in charge of the case, after very curious investigations (all
backed up by witnesses, facts and careful deductions) arrives at the conclusion that
A[leister] C[rowley] neither committed suicide nor was murdered nor left the country
on the Sud-Express. The definite conclusion is that he was either tracked here by
enemies, or enemies were already here awaiting him; that, in view of this, he sent
Miss J[aeger] ahead of him to get her out of danger; that as Miss J[aeger] went to
Germany, so did C[rowley] mean to go to Germany; that once in Germany he would
be safe, the danger being on the route; that, in view of this, he arranged with
someone of whom the detective never ascertained the identity to take, if necessary,
his place and passport and luggage an go off in the Sud-Express if the trackers got
wind of the purchase of the ticket (otherwise C[rowley] would himself have gone in
the Sud-Express); that the ticket for the Sud-Express was purchased at 10.5 or 10.10
in the morning of the 23rd. September at the agency of the Wagon-Lits by a man who
gave his name as Cole and his address as Hôtel de l’Europe, who was accompanied
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Miraglia
Boca do Inferno
by another man who answered rather roughly, though not exactly, to my description,
the buyer of the ticket seeming to conform fairly well to C[rowley]’s description; that,
however, on the showing of four witnesses, at that precise hour C[rowley] and myself
were at the Café Arcada in Terreiro do Paço, there being therefore an absolute alibi
(it is at this stage that the story begins to get interesting, and it is not necessary to
add that what I have mentioned before as “conclusions” really comes after); that
both C[rowley], pseudo-C[rowley] and pseudo-I appeared at the railway station for
the Sud-Express; that the trackers were there, so pseudo-C[rowley] went off with
C[rowley]’s luggage and passport, pseudo-I speaking to him in the carriage long
before the train left (and in French, since he ended by crying out “Bon voyage!” from
the passage); that consequently the man who crossed the frontier with C[rowley]’s
passport was not C[rowley] and bore only a general, but working, resemblance to
him; that this man, as the American Consular authorities took the trouble to investigate, went, as C[rowley] would have done, right through to Germany, where he
was on the 27th., as Consul Armstrong affirms (though he afterwards became unsure
whether it was really C[rowley] who was then in Berlin); that C[rowley] left the
Railway Station and (another witness) got into a taxi which had been waiting for
him a long time on the upper level of the Station (description of taxi and driver
obtained, and the taxi contained only one suitcase, new); that on the 24th. C[rowley]
and the pseudo-I took coffee on the “terrace” of the Café Royal (another witness) at
about 3 p.m., then went off (obviously to the Tabacaria Ingleza, which is next door,
and this was evidently when I saw C[rowley] and “another man” enter this place);
that then they went off to the Estoril Railway station, which is just opposite; that on
the 25th. (witnesses at Cascaes) a man closely resembling pseudo-I was twice seen
near Bocca do Inferno; that presumably this meant the “planting” of the “suicide
le€er”, which Gomes found that very evening; that, presuming that C[rowley]
would leave the country – for Germany, as he obviously meant to do –, he would
leave by another route, the best being obviously the Southern Train, which runs to
the very South of Spain, which is very little used by foreigners (except Southern
Spaniards) and goes to a place on the frontier where vigilance is very slack and
C[rowley] could therefore have easily passed with another man’s passport, or, for a
consideration of something like £5, without any passport at all; that there is testimony
that a man resembling C[rowley] very closely, and carrying one new suitcase left
Lisbon at 8 a.m. on the 25th. on this train, buying a first-class ticket to the end of the
line — Villa Real de Santo Antonio, just opposite Spain; that the “suicide le€er” was
obviously planted to confuse the trackers, who would by then have discovered that
the Sud-Express passenger was not C[rowley] and leave them sufficiently confused
to enable C[rowley] to get out of the country; that (Cascaes witnesses) a “roughlooking man” was seen looking about the Bocca do Inferno on the 26th. (which
means that information leaked out from Diario de Noticias or from the Censorship,
since the news-item was held up for a day and only appeared on the 27th., showing
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thus the het of connections that C[rowley]’s enemies had); that it was never possible
to identify pseudo-C[rowley] or pseudo-myself; that the case is thus carried to a
triumphant close, as far as can be; that it would have been possible, perhaps, to carry
it further if it had been possible to interview the driver of the taxi which carried
C[rowley] from the Central Railway Station just after the Sud-Express of the 23rd.
left; that the investigator very rightly ascertained that this taxi must have been taken
by C[rowley] in Terreiro do Paço, just after he left Café Arcada at 10.25 a.m. (time
exact) on that day, identification of the taxi being thus easy from (a) porter’s
description of the taxi, (b) porter’s description of the driver, (c) the fact that it was a
taxi likely to be known15 at Terreiro do Paço, which is a taxi-stand but a small one;
that the taxi was very easily identified from these data as the one belonging to Ernesto
Martins; that it was impossible, however, to obtain any information from E[rnesto]
M[artins] because he was shot in his taxi, in highly mysterious circumstances, in the
early hours of the 26th. September, outside an estate called Quinta da Terrugem,
which is on the line between Lisbon and Cascaes; that the murderer of E[rnesto]
M[artins] was never caught, all that is known of him being that he was a “roughlooking man”, presumed to be a certain individual, with a criminal record, whom
the Police let slip through their hands.
This, very quickly and badly told, is the whole story. As you may presume,
when put the right way and in the right se€ing and development, it makes a very
good detective story, even to the16 presence of an unexpected alibi and a murder,
and also “powerful enemies”, who go to the extent of murdering a poor chauffeur
when they cannot get their man – a stupid thing (most times) in fiction, but a highly
interesting one in real life, and duly shrouded in mystery. Apart from this, the story
follows a strictly logical development; there are many curious points about it, one
being that the investigation is put on the right track by the apparently minor
circumstance that I (Pessoa) look younger by almost ten years if I put my hat on, this
being one of the definite proofs of the advantage of psychologically directed
minuteness in observation. And, as you see, no facts can emerge to counter this, so
no one’s movements are hindered by the story or by any delay it may still undergo.
The whole circumstances and non-circumstances have been built up by intellectual
alchemy into a coherent whole, each fact dovetailing into another, the whole story
moving by a process of observation tempered by reasoning, in a series of readjustments
and readaptations to reality.
Of course, it would be of great advantage if the appearance of the central
figure of the story were not to take place before the book appears, but, as I have said,
the story has been so devised as to be not only whole in itself, but also so as to adapt
itself to reality – both in the sense that no facts can possibly emerge to counter it, and
15
No original, “knozn”.
16
No original, “tothe”.
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Miraglia
Boca do Inferno
in the sense that nobody’s movements are really hindered by its delay or not-delay.
This treble adaptation to reality has given more trouble than a philosophical treatise
would give, but… Mens agitat…
The story is wri€en in parts, but it is only now, that it has been thought out
as a coherent whole, that it can be really wri€en out. The poor author still lies under
the curse of deferred work for commercial elementals, but the curse lapses on
Sunday, when final redaction will begin. It should move swiftly thereafter, but there
is no saying it will not take till the end of the month. As promised you, the chapters
will be sent you as they are wri€en.
After all, the ubiquitous 3-month sign in my Horary Question was quite right!
I tried to read the present circumstances into the end-October aspect, but that
absolutely covers the Détective article, so clearly a good aspect in its publication and
bad aspect in the wholesale bungling of names, not to speak of the slovenly redaction
of the amiable criminal who wrote it.
The question of the capitalization has, so it happens, undergone – for very
different reasons – a parallel delay. It is not till the end of the present month that my
friend can consider with the due a€ention the proposition, which interested him in
the abstract. He, however, does not like to go deeply into a proposition till he has
the ready money to put into it at once, should he accept it. Now this ready money
will not befall him till the end of this year, when he gets clear of a business in which
the money was bound up.
As I also received a le€er from Mr. I[srael] R[egardie] asking for news, I am
sending him a copy of this le€er, as I sent you some time ago a copy of one to him,
and for the same reasons of simplicity and quickness.
With best wishes, I am
Yours very sincerely,
[Fernando Pessoa]
Anexo 1
[BNP/E3, 282-1r a 4r]
Cópia a papel químico de quatro páginas dactilografadas da carta enviada a Karl Germer. As páginas
encontram-se numeradas no cabeçalho, acompanhadas pela data da carta: 3-XII-1930. A leitura desta
carta esclarece qual era a história que Fernando Pessoa pretendia contar em The Mouth of Hell. A
história de uma investigação particularmente complexa e articulada que explicaria cabalmente o
enigma lançado pela reportagem sensacional publicada no Notícias Ilustrado, “O Mistério da Boca do
Inferno”. Afinal, Aleister Crowley não se suicidou, nem foi assassinado, e para sair de Portugal
serviu-se do comboio do Sul em vez do Sud-Express. Houve, de facto, a encenação do suicídio na
Boca do Inferno, mas com a finalidade de despistar os poderosos inimigos que perseguiam o ocultista
inglês e cuja ferocidade se manifesta no assassínio do taxista Ernesto Martins. Diante disso, as
afirmações perentórias que podemos ler no posfácio da mais recente edição dessa novela policial
afiguram-se, senão inexatas, pelo menos ambíguas ou enganosas: “No entanto, e à semelhança da
maioria dos projectos de Pessoa, também a novela policial The Mouth of Hell ficou fragmentária.
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
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Miraglia
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Pessoa começou-a com grande entusiasmo, mas depressa perdeu o interesse e enviou a Crowley
‘justificações astrológicas’ regulares do facto de ainda não ter conseguido acabar o texto. Na verdade,
o que falta nos fragmentos é um final verdadeiramente convincente. O leitor nunca saberá se Crowley
cometeu suicídio, se foi assassinado, ou se tudo não passou de um embuste, um hoax” (PESSOA, 2019:
476). Pode-se até admitir, em parte, que uma leitura circunscrita exclusivamente aos documentos que
ficaram da redação da novela deixe dúvidas acerca de qual seria o seu desfecho, todavia, a carta
dirigida a Karl Germer, de 3 de dezembro de 1930, revela como o inacabamento do texto não deve
ser atribuído à perda de interesse ou à falta de inspiração. Na mente de Fernando Pessoa, a história
estava nessa altura plenamente arquitetada “by intellectual alchemy” e numa forma que a salvaguardaria
de quaisquer eventos que pudessem surgir, inclusive o reaparecimento público do ocultista inglês.
Repare-se, aliás, que, quando tal aconteceu no mês de fevereiro de 1931, Fernando Pessoa viu nisso
até uma vantagem para o destino da novela, como fez notar a Aleister Crowley: “Having a lot of
pressing and unimportant maMers weighing down upon me, I have transferred the definite writing
of the ‘novel’ till March or April, if Fate so will it. Having ceased to be topical, in the worst sense of
the word, it can at least become interesting in the best one” (PESSOA, 2019: 373; BNP/E3, 288r). Em
suma, o facto de Fernando Pessoa não ter conseguido traduzir no papel a história idealizada parece
ser mais a confirmação da sua dificuldade crónica em escrever ficção, como atestam ex abundantia as
numerosas tentativas em diferentes géneros narrativos que redundaram em textos incompletos e
fragmentários. O que, na verdade, surpreende neste caso, se considerarmos a quantidade de
documentos relativos a The Mouth of Hell guardados no espólio, é o empenho de Fernando Pessoa na
escrita dessa novela; um empenho que, mesmo tendo em conta as dificuldades económicas com as
quais se debatia constantemente o poeta, não creio encontrar justificação apenas na possibilidade
dessa história policial lhe granjear um lucro monetário. Sabemos que o encontro com Aleister
Crowley, em setembro de 1930, reavivou em Fernando Pessoa um sonho alimentado durante toda a
sua juventude e que foi desmoronando com o passar dos anos: o de se afirmar como um grande poeta
de língua inglesa (veja-se MIRAGLIA, 2022). A mistificação da Boca do Inferno, por outro lado,
ofereceu-lhe uma súbita e inesperada oportunidade de ver finalmente um seu livro publicado na
Inglaterra. Um livro que, no seu intento, ombrearia com os populares romances policiais de Freeman
Wills Crofts, e representaria porventura um primeiro passo para mais altos voos no mercado editorial
anglo-saxónico. Daí, o entusiasmo, uma verdadeira euforia, que se apoderou de Fernando Pessoa e
que transparece da intensa troca epistolar com Karl Germer e Israel Regardie ao longo do mês de
outubro de 1930. O abrupto silêncio, ao qual se remete o poeta no mês de novembro, é talvez sinal de
que a concretização do projeto ia-se revelando mais árdua do que ele previa, mas a longa carta de 3
de dezembro indicia que o interesse por The Mouth of Hell não esmorecera de forma alguma e, de
resto, um exame cuidadoso dos documentos constantes do espólio desmente a ideia que Fernando
Pessoa se tivesse cansado tão cedo de escrever essa novela policial.
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269
Miraglia
Boca do Inferno
Fig. 4a. Carta de Pessoa para Germer, 3-12-1930 (BNP/E3, 382-1r).
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
270
Miraglia
Boca do Inferno
Fig. 4b. Carta de Pessoa para Germer, 3-12-1930 (BNP/E3, 382-2r).
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
271
Miraglia
Boca do Inferno
Fig. 4c. Carta de Pessoa para Germer, 3-12-1930 (BNP/E3, 382-3r).
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
272
Miraglia
Boca do Inferno
Fig. 4d. Carta de Pessoa para Germer, 3-12-1930 (BNP/E3, 382-4r).
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
273
Miraglia
Boca do Inferno
Anexo 2
[BNP/E3, 277 V-2r]
The Mouth of Hell17
Definite analysis of the whole narrative. Get elements to have everything right,
down to Amaral.
A year has now passed over the incidents which make up this narrative. The three
reasons18 for withholding it from publication have now disappeared. In the first
place I have □
Anexo 2
[BNP/E3, 277 V-2r]
Folha de papel manuscrita, com marca-d’água GRAHAMS BOND | REGISTERED. Deste documento, não
recolhido na edição de Steffen Dix (PESSOA, 2019), Miguel Roza apresenta uma reprodução fotográfica
no volume Encontro Magick (PESSOA e CROWLEY, 2010: 402), acompanhada por uma tradução em língua
portuguesa na qual os algarismos na parte superior da página foram interpretados como uma data:
27-7-32. Na realidade, esses algarismos correspondem à cota atribuída ao documento no espólio à
guarda da Biblioteca Nacional de Portugal (BNP), pelo que se deduz que o mesmo não integrava o
dossier Pessoa-Crowley, que esteve, até 2008, na posse dos herdeiros do poeta. Este breve texto, que
parece ser o incipit de um prefácio para a novela, revela que Fernando Pessoa continuava a pensar na
publicação de The Mouth of Hell um ano depois da mistificação da Boca do Inferno. Existe outro
documento (BNP/E3, 386), também este manuscrito, que apresenta um texto semelhante na primeira
parte (“Sufficient time has now passed since the events and the investigation described in this book
for it to be proper, perhaps I may add safe, to publish it”; cf. PESSOA, 2019: 407), enquanto na segunda
descreve as impressões que o detetive reteve de um encontro com Pessoa: “He seemed to me a highly
nervous subject, of the emotional, rather than the irritable, kind. If any knowledge of man were right,
I would have thought he was perplexed or troubled; but I know he was not — his emotion was
spontaneous and meant nothing. Some [understain] of repression or inhibition could perhaps explain
antecedently his epidermic nervousness. It was enough to me that it was epidermic and no more. I
signed that up in the train I hid my eyes, without watching him. […] The moment he answered it as
he did, my case, in one respect, was complete. I knew he had nothing to do with C[rowley]’s disappearance […] (PESSOA, 2019: 407; BNP/E3, 386r). Trata-se de um testemunho evidente da terceira fase
de escrita da novela policial que, como já foi dito, previa não apenas o encontro entre o detetive inglês
e a personagem Pessoa, com a atribuição a este último de um papel que lembra o do dr. Quaresma,
mas também uma alteração profunda do perfil do próprio detetive.
17
<The Mouth> The Mouth of Hell
18
<The reason> The three reasons
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
274
Miraglia
Boca do Inferno
Fig. 5. Apontamento avulso datável de 1931 (BNP/E3, 277 V-2r).
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
275
Miraglia
Boca do Inferno
Bibliografia
CROFTS, Freeman Wills (2000). The Ponson Case. London: House of Status. (A obra original foi publicada
em 1921).
FREITAS, Ana Maria de (2016). O Fio e o Labirinto: A Ficção Policial na Obra de Fernando Pessoa. Lisboa:
Colibri.
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276
Miraglia
Boca do Inferno
GIANLUCA MIRAGLIA é investigador do Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias
(CLEPUL) da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. No âmbito dos Estudos Pessoanos
publicou vários artigos, entre os quais: “Essay on Detective Literature & The Detective Story: dois
ensaios de Fernando Pessoa sobre a ficção policial”, in Pessoa Plural, n.º 13, primavera de 2018;
“The Reception of Futurism in Portugal”, in Portuguese Modernisms―Multiple Perspectives in
Literature and the Visual Arts, editado por Jerónimo Pizarro e Steffen Dix (Oxford: Legenda, 2010;
Routledge, 2017); “Londres, 1914 – Junho: a obra-prima do Futurismo”, in Pessoa Plural, n.º 11,
primavera de 2017; “Do ‘Dia Triunfal’ ao Orpheu: ascensão e queda de Alberto Caeiro”, in Pessoa
Plural, n.º 18, outono de 2020. Recentemente editou, de Álvaro do Carvalhal, Os Canibais e Outros
Contos (Lisboa: Porto Editora, 2021).
GIANLUCA MIRAGLIA is an Associate Researcher at the Center for Lusophone and European
Literatures and Cultures (CLEPUL), at the Faculty of Arts and Humanities of the University of
Lisbon. Within the field of Pessoan studies he has published several articles: “Essay on Detective
Literature & The Detective Story: dois ensaios de Fernando Pessoa sobre a ficção policial”, in Pessoa
Plural, no. 13, Spring 2018; “The Reception of Futurism in Portugal,” in Portuguese Modernisms:
Multiple Perspectives in Literature and the Visual Arts, edited by Jerónimo Pizarro and Steffen Dix
(Oxford: Legenda, 2010; Routledge, 2017); “Londres, 1914 – Junho: a obra-prima do Futurismo,”
in Pessoa Plural, no. 11, Spring 2017; “Do ‘Dia Triunfal’ ao Orpheu: ascensão e queda de Alberto
Caeiro”, in Pessoa Plural, n.º 18, Fall 2020. He has recently edited, by Álvaro do Carvalhal, Os
Canibais e Outros Contos (Lisboa: Porto Editora, 2021).
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
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Medeiros
Fernando Pessoa na Boca do Inferno
O presente estudo analisa Boca do Inferno, expressão sugestiva que evoca, de forma
simultânea, um filme noir contemporâneo (PORTO, 2020), um espaço geográfico
(perto de Cascais), uma novela policial inacabada (de Fernando Pessoa) e um
acontecimento histórico. Em 2020, estreou o filme realizado por Luís Porto e escrito
por Jaime Monsanto: Boca do Inferno. Este remete, por sua vez, ao local na Costa da
Guia, à novela pessoana (inédita até 2001) e ao caso do inesperado encontro entre
Pessoa e Aleister Crowley, que chegou acompanhado da jovem artista alemã Hanni
Larissa Jaeger, apelidada de “Anu”. O filme já estava praticamente concluído,
quando, em 2019, apareceu uma nova edição, mais cuidada e completa, a cargo de
Steffen Dix, com a correspondência e a novela relacionadas com o caso d’O mistério
da Boca do Inferno (PESSOA, 2019).
No presente contributo, focalizamos a análise do filme do Luís Porto dando
prioridade à observação das camadas de erotismo com que a obra fílmica conseguiu
cingir um episódio pessoano usualmente mais rememorado pelo seu caráter ocultista,
farsesco e detetivesco. Ao final deste texto analítico, encontra-se uma entrevista
concedida pelo realizador1, em 16 de janeiro de 2024, especialmente para este dossiê
da revista Pessoal Plural, voltado para o chamado “cinema pessoano”.
A consulta ao material textual e audiovisual (versão de rodagem, making of,
etc.) produzido pela equipe responsável pelo filme Boca do Inferno — material que
Porto gentilmente disponibilizou a Marcelo Mello, a Jerónimo Pizarro e a mim —
levou a uma inquietação, confirmada na entrevista com o realizador. Inicialmente, o
filme teria por título Anu, justamente o nome íntimo e porventura carinhoso
atribuído pelo mago Crowley à sua jovem companheira de viagem. O nome do filme,
afinal, mudou, como se sabe. Contudo, e explicitando a minha inquietação crítica,
convém esclarecer que a narrativa fílmica, por meio de uma série de aspectos
estéticos que serão em breve descortinados, confere lugar de destaque a Hanni. Tal
escolha, a de garantir a presença de uma femme fatale na película, tem por saldo um
feito raro no infinito universo criado a partir do “mito-Pessoa”2: a erotização do
poeta e de figuras que com ele contracenaram (em vida, em tela).
Cabe indicar, antecipadamente, que a personagem Anu, a ser aqui analisada,
é aquela composta criativamente por Porto e Monsanto em sua película; aquela que,
remetendo à Hanni Larissa Jaeger histórica, não visa a uma cópia imediata (o que,
aliás, seria projeto de impossível concretização) da jovem alemã que namorou
Crowley e que conheceu Pessoa. Assim, não aludimos a momentos anteriores ou
posteriores da vida documentada de Jaeger, na medida em que nos interessa, nesta
oportunidade, focalizar apenas o período cronológico evocado pelo filme – os dias
de setembro de 1930 em que decorreram encontros pessoais entre três figuras tão
peculiares. A Anu reinventada e encenada pela atriz Georgina Beedle assume, por
Agradecemos ao realizador Luís Porto pela disponibilização de materiais audiovisuais e escritos
referentes ao filme Boca do Inferno; pela entrevista generosamente concedida; e pela revisão da mesma.
2
Alusão à consagrada expressão do crítico Eduardo Lourenço em Fernando, rei da nossa Baviera (1984).
1
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Medeiros
Fernando Pessoa na Boca do Inferno
certo, contornos particulares, que evidenciam a qualidade do trabalho desenvolvido
pela atriz e pela equipe de preparação de atores. Tais propriedades particulares nos
interessam porque garantem, justamente, certa novidade interpretativa para um
episódio específico da biografia pessoana. Tomamos, portanto, Boca do Inferno, o
filme, como mais uma leitura capaz de multiplicar Pessoa e as pessoas que com ele
conviveram (ainda que circunstancialmente), nos termos da “multiplicidade de
Pessoas” (PIZARRO, 2023: 22) apontada pelo crítico Jerónimo Pizarro: “Escapa-se-nos
[Fernando Pessoa] a todos. É mais nosso, porque continuamos a construí-lo. É menos
nosso, porque cada vez é de mais pessoas” (PIZARRO, 2023: 22).
Vamos, então, ao filme. Desde o seu primeiro minuto, os espectadores
minimamente versados na história do cinema se reconhecem em presença de um
filme noir. É oportuno indicar que a brasileira Leyla Perrone-Moisés, ainda nos anos
1990, em um despretensioso artigo de jornal intitulado “Pessoa e a besta 666”3, sobre
o encontro de setembro de 1930, entre Crowley e Pessoa, já intuíra:
[Fernando Pessoa] disse também que avistara o inglês (“ou seu fantasma”) em Lisboa no dia
24 de outubro, uma vez virando a esquina do café de la Gare, depois entrando na Tabacaria
Inglesa. Excelente locação para um filme noir. Adensava-se o mistério, com a colaboração de
Pessoa.
(PERRONE-MOISÉS, 2000: 160)
Remontando à tradição cinematográfica dos anos 1940/1950, Boca do Inferno adensa
o mistério em torno da dupla de “fantasmas” mencionada por Perrone-Moisés, mas
acrescenta uma terceira personagem: a scarlet woman, que, na paleta em chiaroscuro
dominante no filme, imprime tons amarelos, dourados e — como poderíamos supor —
vermelhos na composição visual da obra.
Registre-se que não tenho, na presente oportunidade, o intuito de discutir as
especificidades do cinema noir — se o próprio termo divide opiniões, por poder se
referir a um gênero, a um estilo, a uma técnica, etc. Recorro a esse “fenômeno
cinefílico” (MASCARELLO, 2006: 177) não para discutir suas especificidades ou debater
sua efetiva existência e permanência no seio da sétima arte. Antes, sou, enquanto
espectadora do filme de Luís Porto, impelida a evocar essa estética que orienta a
produção e a recepção de Boca do Inferno — obra que consegue, ao mesmo tempo,
retomar e subverter, atualizar ou mesmo recriar, “à portuguesa”, no século XXI,
aqueles filmes policiais narrados em off produzidos no contexto estadunidense da
pós-guerra. De sorte que recorro ao termo noir conforme definição do brasileiro
Fernando Mascarello: “nem gênero, nem tom, nem estilo. É um fenômeno, e acima
de tudo social (espectatorial). A maior prova de que existe? A fascinação que produz,
Artigo originalmente publicado no caderno Mais! da Folha de São Paulo, em 2 de agosto de 1992.
Posteriormente, o artigo transformou-se em capítulo que integra a coletânea de textos críticos de
Leyla PERRONE-MOISÉS (2000) sob o título Inútil poesia e outros ensaios breves.
3
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o desejo que desperta: a ‘mística noir’” (MASCARELLO, 2006: 185). Gosto de tal acepção,
pois o que permanece do noir “tradicional” na película aqui analisada é sobretudo a
“mística noir”, que encontra profunda sintonia com a personagem possivelmente
mais mística e mítica da cultura portuguesa do século XX: Fernando Pessoa. Assim,
Boca do Inferno é uma obra que deseja o noir e, por isso mesmo, resulta em uma
composição audiovisual que tem por protagonista não Pessoa, menos ainda Crowley,
mas sim o próprio Eros — o desejo sexual. Considerando-se que o erotismo não figura
como um dos aspectos mais usualmente identificados e discutidos na infinita obra
pessoana, o inusitado dessa associação (Pessoa – desejo – “mística noir”) já convida
a assistir ao filme.
No primeiro minuto do média-metragem, dos segundos 02 ao 06 (00:01:0200:01:06), vemos a expressão que lhe serve de título, em letras garrafais arredondadas,
sair da cor branca / acinzentada / azulada em fundo preto para os tons amarelo /
laranja / dourado sobre mesmo fundo. Note-se a transição de coloração, entre cores,
aliás, complementares (Figs. 1 e 2). Esse momento inicial do filme está profundamente
conectado com todo o desenvolvimento — e mais que isso: com a trama misteriosa
que envolveu Pessoa em setembro de 1930, com a mulher que nessa altura ele
conheceu e com o poema que para ela compôs (“Dá a surpresa de ser”). As letras de
abertura da película exploram as formas arredondadas (no “B”, no “C”, no “R” e no
“O”, sendo, evidentemente, esta última letra a que mais vezes se repete na expressão-título do média-metragem). De tal maneira que, assim composto, o título “BOCA DO
INFERNO”, colorindo-se da paleta em branco-acinzentado para a amarelo-dourada,
sugere a imagem de montinhos que amanhecem — expressão utilizada no poema pessoano
feito após o encontro com Hanni Larissa Jaeger, como veremos mais adiante. Desde
já, porém, quero chamar a atenção para o fato de que o último “O” (esse da palavra
“inferno”), surgir como que falhado, não plenamente preenchido em seu contorno.
Como se um pedaço seu tivesse sido mordido, abocanhado (para usar termo do
mesmo campo semântico de “boca”...). Fiquemos com essa intuição, por hora.
Fig. 1. Filme Boca do Inferno (00:01:02).
Fig. 2. Filme Boca do Inferno (00:01:06).
Nas cenas seguintes, a atmosfera permanece bastante escura e noturna, com
pontos de luz dourada insurgidos em meio ao noir apenas por meio de elementos
como lamparinas de rua, abajures domésticos, fósforo aceso, roupa e chapéu de duas
mulheres que aparecem rapidamente no café Martinho da Arcada. Tal imagética
persiste até o minuto 00:11:56, quando tem início uma espécie de segunda parte do
filme, a do encontro de Pessoa com o Mago e sua acompanhante. Perseguindo um
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Fernando Pessoa na Boca do Inferno
marinheiro (que, aliás, traja branco), saímos do ambiente soturno e íntimo do café
em direção à rua, ao cais, durante o dia — primeira cena da obra em que prevalece a
luminosidade e os tons em branco / bege claro. Na ambiência portuária, vemos descer
a gente do paquete Alcântara, aquele que, a 2 de setembro de 1930, trazia o casal a
ser recebido pelo poeta de Lisboa. Uma personagem feminina, secundária, muito
vestida, com braços e colo coberto, de meia idade, anuncia o incômodo perante uma
outra mulher — pergunta: “quem é aquela?”. Acompanha a indagação um silenciamento
dos barulhos ordinários da rua. Tal “ensurdecimento” dos ruídos confere destaque
ao som das cordas da viola campaniça. Trata-se de uma viola tradicional da região
portuguesa do Alentejo, tocada por João Morais, conhecido como O Gajo, que, aliás,
aparece tocando o instrumento em diversos momentos do filme Boca do Inferno.
Ainda, segue-se uma mudança de enquadramento: de plano geral, vemos a câmera
fazer close em uma mulher belíssima, loira, olhos claros, usando chapéu grande e
vistoso na cor preta, trazendo bolsa também preta, com braços inteiramente à mostra,
trajando vestido branco de bolinhas cinzas e luvas na cor vermelho escarlate — mesmo
tom do batom.
O close cede lugar paulatinamente a um plano médio, em que vemos a jovem
descer lentamente as escadas do paquete:
Fig. 3. Filme Boca do Inferno (00:12:39).
Após sorrir e fitar a Lisboa que a recebia, vemos a femme virar-se, ficando de costas
para o público e para Pessoa, que é então saudado por Crowley (o coadjuvante da
cena destacada na Fig. 3). Note-se que conhecemos primeiramente a senhorita Jaeger;
apenas após sua aparição lenta e luminosa é que visualizamos o homem alto, bem
trajado, sorridente, cartola preta, que assim saúda Pessoa: “Destiny most certainly
provided last night's fog in Vigo” (00:12:56). A fog, um nevoeiro (recorde-se o tom branco
da neve), atrapalhou o encontro entre o ocultista inglês e o astrólogo português em
um dia ou mais. No entanto, o poeta avalia que o destino agiu acertadamente. Travam
o seguinte breve diálogo:
FERNANDO PESSOA
I just looked it up: Venus is at zenith. No beper time for us to meet than today, under the
auspices of the planet of the Arts.
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Medeiros
Fernando Pessoa na Boca do Inferno
CROWLEY
Ah! The Arts, Destiny… and Love. Which reminds me someone that I’d like you to meet.
Anu, my dear, this is Fernando Pessoa, in persona.
(Boca do Inferno, PORTO, 2020: 00:12:58-00:13:19)
Na sequência, a mulher aproxima-se dos dois homens e Pessoa permanece com
feição boquiaberta, espantado, sem conseguir cumprimentar adequadamente aquela
que lhe é apresentada como a scarlet woman de Crowley (assim definida pelo próprio
mago). Vale notar que as primeiras palavras do poeta português a Anu somente lhe
são dirigidas quando a Besta 666 afasta-se. Assim, acompanhamos o seguinte diálogo
entre a jovem e Pessoa:
ANU
So, are you talented?
FERNANDO PESSOA
Names can be deceiving.
ANU
Looks, maybe, but not names.
(Boca do Inferno, PORTO, 2020: 00:13:40-00:13:47)
É nesta altura que o mago inglês retorna para junto dos dois. O trio trava uma
conversação sobre o sobrenome menos conhecido de Pessoa: Nogueira. O português
explica que o nome remete à árvore que produz nozes e, finalmente, Crowley e
Jaeger assumem discurso deliberadamente obsceno, que alude à genitália masculina:
CROWLEY
(para Pessoa):
You are like a money tree, I would suck your nuts dry anytime.
(Ri estrondosamente).
ANU
His nuts would be in beper hands with me.
(Boca do Inferno, PORTO, 2020: 00:14:22-00:14:30)
Após essa tirada espirituosa — e reforço: erótica — da moça de 19 anos (ela efetivamente
contava tal idade quando aportou em Lisboa acompanhando o homem de 54 anos),
a cena do filme muda novamente: retomamos a ambiência no café da Arcada,
fotografia noir, luzes douradas pontuais provenientes de abajures que circundam
Pessoa e o detetive inglês — aquele mesmo, anônimo, que teria escrito a novela
policial na ficção pessoana. O estudioso alemão Steffen Dix explica:
[...] os fragmentos da novela policial parecem basear-se num “relatório da investigação” que
um detective inglês anónimo redigiu em Lisboa. O “relatório” foi supostamente elaborado
em Barcelona (ou em Madrid, numa primeira versão), pouco depois do desaparecimento de
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Crowley, com o título Mouth of Hell. Na medida em que o “relatório” revela algumas qualidades
literárias semelhantes aos romances policiais do escritor irlandês Freeman Wills Crofts, o
detective — que não é, em princípio, senão mais uma personagem literária do próprio Pessoa —
menciona várias vezes a sua intenção de o publicar também sob a forma de romance ou de
novela.
(em PESSOA, 2019: 11)
O roteiro de Boca do Inferno, portanto, confere seguramente papel de relevo na trama
a esse detetive — presente do início ao fim da narrativa fílmica — que Pessoa forjou
para investigar um caso igualmente forjado. A pergunta do tal detetive inglês referenda
a intuição que antes tivemos (os espectadores) quanto ao baixo-corporal da cena
anterior: “So, were the other encounters this saucy?” (ver: Boca do Inferno, PORTO, 2020:
00:14:42).
A presença de Anu é saucy, picante, em praticamente todo o filme. Em sua
segunda aparição, a mulher traja um vestido dourado, com decote acentuado (para
a moda dos anos 1930), que contrasta com o tom vermelho (outra vez escarlate) das
cortinas do ambiente:
Fig. 4. Filme Boca do Inferno (00:14:53).
Contemplamos o perfil da moça jovem (dos ombros até pouco abaixo da cintura), em
enquadramento que evidencia, simultaneamente, seu busto e seu quadril. O plano
vai-se abrindo progressivamente até vermos novamente seu rosto. Poucos segundo
depois, Hanni desloca-se do piano (onde estava) até a escrivaninha, onde se encontra
sentado Pessoa. Por momentos, o filme de Porto pode evocar a Lolita de Kubrick
(1962) ou de Lyne (1997). O ambiente é um quarto íntimo. Percebemos isso pelo plano
sequência, que deixa ver o deslocamento da jovem até o poeta, passando por uma
cama de casal. Há uma troca de olhares entre os dois que merece destaque:
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Fernando Pessoa na Boca do Inferno
Fig. 5. Filme Boca do Inferno (00:15:23).
A dupla Anu-Fernando é interrompida por Aleister, que explica a alcunha
íntima que atribuiu à moça:
PESSOA
Anu?
CROWLEY
As I like to call her
PESSOA
Why Anu?
ANU
Well…
(interrompida)
CROWLEY
My liple monster has the most wonderful anus…
(Boca do Inferno, PORTO, 2020: 00:15:08-00:15:37)
Novamente, Anu põe-se de costas para o público e salta sobre Crowley para que ele
interrompa o discurso obsceno proferido em presença de Pessoa. Contudo, vale frisar
que acessamos tal narrativa, no filme, justamente pelo contar de Pessoa ao detetive.
O poeta não esconde, portanto, os detalhes picantes. Seja na cena com o casal estrangeiro,
seja no retorno à conversação com o detetive, a feição pessoana é de torpor. Como
afirmou o realizador Luís Porto em entrevista a nós concedida, o filme consegue
sugerir que “Pessoa é capaz de se apaixonar”. E por uma mulher!
O auge do erotismo nessa obra fílmica tem início em uma cena marcada por
iluminação solar que contrasta com a usual “iluminação low-key (com profusão de
sombras)” (MASCARELLO, 2006: 181) da maior parte do filme — associada ao “plano geral
em plongée (este, o enquadramento noir por excelência)” (MASCARELLO, 2006: 181):
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Fernando Pessoa na Boca do Inferno
Fig. 6. Filme Boca do Inferno (00:16:38).
Destaque-se a paleta de cores da fotografia: amarelo ocre da areia contrastando com
o vermelho central do guarda-sol, a cadeira de sol branca, o traje negro de Pessoa, as
pernas e os braços desnudos e brancos de Anu. Poucos segundos depois, a câmera
avança do plano aberto para um close na jovem deitada, de bruços, trajando roupa
de banho vermelha e branca, batom vermelho, chapéu de praia, cabelos dourados,
olhando – e sorrindo – para o amigo português:
Fig. 7. Filme Boca do Inferno (00:16:46).
É neste encontro — o terceiro entre a mulher e o poeta, ao menos na versão do
cinema — que vemos o autoproclamado supra-Camões pronunciar, com dicção um
tanto quanto constrangida, em Língua Portuguesa (nessa língua que a alemã não
compreendia), as redondilhas de “Dá a surpresa de ser”, composição datada de 10
de setembro de 1930. Sobre tal poema, o crítico e editor Jerónimo Pizarro, na mais
recente publicação das Cartas de amor de Fernando PESSOA (2023), comenta:
O poeta [...] também utilizou uma linguagem metafórica e com alguns traços porventura
infantis (os “montinhos” lembram os “pombinhos” das cartas de amor) num poema vagamente
erótico que escreveu depois de ter passado algum tempo com a namorada de Crowley.
(PESSOA, 2023: 18)
O poema é lido integralmente pelo Pessoa-personagem, mais ou menos à metade do
filme, por volta do minuto 00:17:30 (a obra tem duração total de pouco mais de 38
minutos). Entendo que tal texto, assim posicionado na narrativa fílmica, em sua cena
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Medeiros
Fernando Pessoa na Boca do Inferno
mais colorida e saucy, marca o cume da experiência sexual estabelecida entre Anu e
Fernando. Não custa visitar o poema e deslindar o seu teor erótico:
Dá a surpreza de ser,
É alta, de um louro escuro.
Faz bem só pensar em ver
Seu corpo meio maduro.
Seus seios altos parecem
(Se ella estivesse deitada)
Dois montinhos que amanhecem
Sem ter que haver madrugada.
E a mão do seu braço branco
Assente em palmo espalhado
Sobre a saliencia do flanco
Do seu relevo tapado.
Appetece como um barco.
Tem qualquer coisa de gomo.
Meu Deus, quando é que eu embarco?
Ó fome, quando é que eu como?
(PESSOA, 2019, pp. 451-452; cf. PESSOA, 2005: 152-153)
Alguns enquadramentos da cena da praia, com câmera frontal (do minuto
00:16:53 ao 00:17:00, por exemplo), põem no centro inferior da tela justamente os
seios altos da personagem feminina. No filme, a primeira estrofe do poema é lida por
Pessoa com câmera em close nele. A partir da segunda estrofe, o foco volta-se
novamente para a mulher, em big-close que passeia de seu quadril até seu rosto. Vale
frisar que o poema contém uma expressão entre parênteses: “(se ela estivesse deitada”).
Na cena, a personagem efetivamente deita-se (sem a condicional “se”...). Ouvimos a
declamação na voz de Fernando, desde o verso “Seus seios altos parecem” (verso 1
da estrofe 2) até “Assenta em palmo espalhado” (verso 2 da estrofe 3), acompanhando
o movimento suave e constante da mão de Anu, que percorre as curvas de seu
próprio corpo, segurando uma cigarreira prateada. A partir de “Sobre a saliência do
flanco” (verso 3 da estrofe 2), a câmera volta a filmar Pessoa, que exibe olhar lateral,
evidentemente mirando o corpo da jovem. Na última estrofe, Pessoa-personagem
torna a olhar para os papéis onde lê o poema, para, enfim, com um sorriso discreto,
encarar outra vez a musa ao pronunciar o verso derradeiro: “Ó fome, quando é que
eu como?”.
Neste ponto, vale recordarmos a letra “O” falhada no título BOCA DO INFERNO,
do minuto inicial, que sugere uma letra abocanhada. Em alguma medida, no contexto
de um filme tão bem elaborado e mesmo cuidadosamente delicado nas suas alusões
sexuais, o “O” mordido do título combina com o verso derradeiro do poema pessoano:
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Fernando Pessoa na Boca do Inferno
“Ó fome, quando é que eu como?”; e também pelo verso quase anterior, que alude
a um gomo de fruta. Se a vogal do título está abocanhada, não se pode deixar de
levantar a hipótese — não explícita, mas emanada da composição fílmica — de que,
talvez, o autor do poema tenha matado a sua fome... Na biografia pessoana escrita
por Richard Zenith, o autor adverte para o fato de que “Hanni Jaeger [...] achou Pessoa
charmosíssimo, sentimento que foi recíproco” e acrescenta que, após encontro com
a alemã, o português “escreveu o único poema de toda a sua vida em que o eu
poético deseja inequivocamente um corpo feminino” (ZENITH, 2022: 823). Isso se
esquecermos os “pombinhos”... Seja como for, Luís Porto e sua equipe tiveram a
perspicácia de explorar, a partir de elementos variados, mais ou menos evidentes (o
batom vermelho de Anu é um índice explícito, enquanto a letra “O” comida é indício
erótico implícito), o teor apaixonante — para a jovem e para Fernando Pessoa — do
encontro propiciado por um mago. Possivelmente, a magia desse filme seja revelarnos um Fernando (mais que um Pessoa) homem, humano, fascinado sexualmente
por uma mulher misteriosa (que ele, aliás, nunca tornaria a ver depois daquele setembro
semifatídico de 1930).
Em Como Fernando Pessoa pode mudar a sua vida (2016), Carlos Pittella e Jerónimo
Pizarro produziram um capítulo bem-humorado sobre o episódio com Hanni Jaeger,
intitulado “Como cantar a mulher do mago”. Ali, os críticos comentaram sobre a musa
“de um louro escuro”:
Hanni Jaeger, com quase vinte anos, mulher sensual e sexualmente liberada em meio ao
conservadorismo lisboeta, deve ter causado uma forte impressão em Fernando Pessoa. Prova
disso são os versos eróticos escritos em 10 de setembro de 1930, isto é, uma semana após a
chegada de Hanni a Portugal: uma belíssima cantada dirigida à mulher do mago, embora ela
não falasse português e provavelmente jamais tenha tomado conhecimento do poema. [...] é
talvez o poema de Pessoa o documento que melhor representa a intrigante Hanni Jaeger,
musa de dois complexos personagens do século XX, cujos caminhos coincidiram na Lisboa de
1930.
(PITTELLA e PIZARRO, 2016: 34-35)
O principal acerto do filme Boca do Inferno parece-me ser, justamente, a escolha por
contar a narrativa que envolveu “dois complexos personagens do século XX” – dois
homens capazes de forjar um suicídio na Boca do Inferno – e uma jovem à frente de
seu tempo4, por uma perspectiva até aqui pouco explorada, a do erotismo. A obra
fílmica desnuda a presença de mais uma boca do inferno na trama, a de Anu, “mulher
sensual e sexualmente liberada”, como a descrita pelos pessoanos; como a representada
pela atriz Georgina Beedle na obra audiovisual de 2020.
Tanto a publicação por Marco PASI, dos diários de Crowley referentes a esse
período de 1930 – em artigo constante no n.o 1, da Primavera de 2012 da revista Pessoa
A expressão é do próprio personagem Pessoa, no filme (Boca do Inferno, PORTO, 2020: 00:11:21), pouco
antes de nós, espectadores, contemplarmos a mulher pela primeira vez.
4
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Fernando Pessoa na Boca do Inferno
Plural—A Journal of Fernando Pessoa Studies –, quanto o livro organizado por Steffen
Dix (O mistério da Boca do Inferno; PESSOA, 2019), e ainda o capítulo “Como coadjuvar
um falso suicídio”, da já citada coletânea editada por PITTELLA e PIZARRO (2016),
permitem cogitar a analogia, suscitada pelo mago inglês, entre estas duas bocas: a
do Inferno, região rochosa, na vila litorânea de Cascais, onde as ondas batem com
estrondo em formações de penhasco que lembram um arco — palco noir eleito por
Pessoa e Crowley para ambientar um suicídio farsesco; a de Anu, que pode remeter
a demais orifícios do corpo feminino, se considerada a economia sexual de uma
figura capaz de experimentar a vida erótica para além do moralismo católico ibérico
dos anos 1930. A ambiguidade consta no bilhete de Crowley (redigido entre 21 e 23
de setembro de 1930), que Pessoa conseguiu fazer circular no Diário de Lisboa como
texto de despedida suicida do Mago para Hanni Jaeger: “Não posso viver sem ti. A
outra ‘Boca do Infierno’ (sic) vai pegar-me – e não será tão quente quanto a tua!
Hjsos!”5. No filme, o bilhete é entregue por Crowley a Pessoa, em conversa particular
dos dois, novamente em plano fechado, ambiente soturno, luz amarela proveniente
do abajur posicionado entre os dois magos. A partir do minuto 00:27:46, Pessoa lê o
bilhete que Crowley diz ter redigido para Jaeger. Ao final da leitura (00:28:10), o
lisboeta indica que tal texto assemelha-se mais a uma nota suicida. A constatação
pessoana, afinal, alinha-se com o palco (português) do pretenso suicídio, se temos
presente aquela interpretação que Miguel de Unamuno, intelectual basco, oferece
sobre o país vizinho, em um dos capítulos de seu Por tierras de Portugal y de España
(1911): “Portugal é um povo de suicidas, talvez um povo suicida” (UNAMUNO, 1986:
64). Crowley, o inglês, ficava, assim, contagiado por essa tradição teoricamente lusa
do autoaniquilamento.
Um adendo: alguns instantes antes da leitura do bilhete, o britânico investe
em conversação recheada de termos obscenos. Após qualificar Anu como “VirginHarlot” (“virgem-puta”), indica que ela teria proferido a seguinte sentença: "If you
want to lock my cunt, you'd beUer lick the door" (Boca do Inferno, PORTO, 2020: 00:25:4100:25:44). A tradução para o português europeu, constante no próprio filme, é explícita:
“se queres trancar a minha cona, é melhor lamberes a porta”. Após risada intensa, a
Besta 666 afirma, já em tom de choro: “I did that indeed, front and back” (Boca do Inferno,
PORTO, 2020: 00:25:56).
Mikhail Bakhtin, em sua obra sobre François Rabelais (romancista matricial
na exploração de imagens do baixo-corporal), evidencia que a Idade Média consolidou
uma tradição que associa os orifícios humanos às paragens infernais:
As lendas medievais citam uma multidão de buracos nas diferentes zonas da Europa que
passavam por ser a entrada do purgatório ou do inferno e aos quais a linguagem familiar
Tradução para o português de PITTELLA e PIZARRO (2016: 46). Conferir original em inglês, incluindo
fac-símiles, em PASI (2012).
5
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dava um sentido obsceno [...]. Gibraltar chamava-se então “Buraco da Sibila” (deformação de
Sevilha), ao qual se atribuía igualmente um sentido obsceno.
(BAKHTIN, 2008: 331)
Ora, a porta da cona de Anu, mencionada no filme pelo mago, bem como sua vagina
e seu ânus enformam a “multidão de buracos” que Crowley nomeou por “Boca do
infierno” no bilhete supostamente suicida deixado na Boca do inferno de Cascais. A
Boca como acidente geográfico-oceânico é o palco propício para o último ato dos
autos aniquiladores; enquanto a(s) boca(s) da femme fatale daquele setembro de 1930
é (são) o lugar quente atravessado para se chegar à petite mort...
Mais um aspecto estético que aprofunda o teor erótico do filme precisa ser
explicitado antes do encerramento da presente discussão. Refiro-me à banda sonora
de Boca do Inferno. As composições de João Morais (O Gajo), presentes na realização
de Luís Porto, envolvem canções do álbum Longe do chão (2017), como também o
tema “Anu”, composto exclusivamente para o média-metragem. O ritmo de Boca do
Inferno é certamente demarcado pela viola campaniça, tantas vezes tocada em cena
por um personagem secundário, o próprio Gajo, que aparece constantemente na
trama, como que acentuando (de modo não apenas sonoro, mas também visual) o
andamento musical do filme. Na maior parte do tempo, o acompanhamento sonoro
aumenta ou distende a tensão — seja a tensão sexual, seja o clímax policial (este
último protagonizado pelo detetive inglês).
A partir do minuto 00:30:41, já no desfecho da trama, ganha claro destaque a
vocalização feminina, acompanhando a viola, lembrando as cantigas de amigo
medievais da tradição ibérica — aquelas marcadas pela presença de uma voz lírica
feminina, abundante de desejo pelo “amigo”. O filme encerra-se, assim, com um
canto vocalizado de mulher entremeado a frases de Anu (personagem) em flashback.
A mulher que historicamente encontrou Pessoa antes dos 20 anos mescla-se à femme
fatale do filme do século XXI e às vozes femininas inominadas das cantigas peninsulares
que sobrevivem, por séculos, no cancioneiro popular ibérico.6
Quanto ao processo multiartístico e coletivo que em geral envolve a produção
cinematográfica, Augusto Silva Junior e Lemuel Gandara, estudiosos brasileiros da
interface entre literatura e cinema, consolidaram o termo “tradução coletiva” para
tratar de obras fílmicas produzidas a partir de textos literários. Este é, em alguma
medida, o caso de Boca do Inferno, que remete ao inacabado projeto da novela policial
pessoana. A dupla explica:
A tradução coletiva trabalha especificamente com obras de arte que são transportadas para
artes coletivas como o teatro, a ópera e o cinema. Esse entendimento se deve ao fato de o
resultado totalizante de um filme em sua projeção ser composto por várias etapas durante os
Sobre as vozes femininas e o papel das mulheres na composição e entoação das cantigas de amigo
na Península Ibérica no decorrer da Idade Média, conferir a obra da medievalista Ria Lemaire, notadamente em LEMAIRE (2017).
6
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Fernando Pessoa na Boca do Inferno
processos das obras. É necessário perceber que todos os envolvidos reiluminam o resultado
final. A trilha sonora é resultado de uma leitura musical, a fotografia é uma leitura das cores
e luzes, a sonoplastia é uma leitura do som, a interpretação é uma leitura corporal – não
exatamente para o público, mas para pessoas e máquinas captadoras –, o roteiro é uma leitura
criativa do texto verbal – seu espelho, seu duplo, sua outra face.
(GANDARA e SILVA JR., 2015: 390)
Em entrevista com Luís Porto, o realizador chama a atenção justamente para o fato
de o filme aqui discutido ser uma construção de equipe. O resultado é, em definitiva,
uma tradução coletiva que reilumina (para ficar com as expressões de Silva Junior e
Gandara) um episódio da vida de Pessoa, um de seus inúmeros textos literários
inacabados, a sua existência enquanto homem — o Fernando, aquele que escreveu
redondilhas maiores para uma scarlet woman. Não quero com isso dizer que o poeta
de Lisboa, aquele que morreu em 1935, apaixonou-se, gozou ou amou uma mulher
fatal. Quero apenas indicar que dá a surpresa de ver um Pessoa outro, interpretado por
Jaime Monsanto, revisitado e lido criativamente, por Porto e sua equipe, quase um
século depois do encontro histórico entre dois magos e uma jovem à frente de seu
tempo.
Finalmente, recorro uma última vez ao artigo de Leyla Perrone-Moisés sobre
Pessoa e a Besta 666:
Pessoa colocou seus saberes e poderes na Alta Magia de escrever. Com seu gênio poético, ele
nos enfeitiça e engradece. Foi uma grande honra para Crowley ter conhecido um mago de tal
estatura.
(PERRONE-MOISÉS, 2000: 161)
Concordando integralmente com a incontornável pessoana brasileira, quero apenas
acrescentar que o filme de 2020 faz pensar que foi também uma grande honra para
o gênio Pessoa, mago da escrita, ter conhecido uma mulher da estatura de Hanni
Jaeger. Talvez, Anu tenha revelado ao nosso poeta maior sentidos outros, luminosos,
para uma expressão tão aparentemente macabra — aquela: Boca do Inferno, que,
afinal, pode ser tão quente.
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ANEXO
Fernando Pessoa na Boca do Inferno
1
Entrevista com Luís Porto
A entrevista ocorreu a 16 de janeiro de 2024, de modo online, por uma plataforma de
videoconferência.7
Legenda:
AM = Ana Clara Medeiros, entrevistadora, autora do texto crítico sobre o filme Boca
do Inferno (2020) para a revista Pessoa Plural (2024)
LP = Luís Porto, entrevistado, realizador do filme Boca do Inferno (2020)
AM – Luís Porto, primeiramente gostaria de dizer que o filme Boca do Inferno (2020)
me chamou muito a atenção, porque acho que você teve saídas muito inteligentes,
muito ousadas para trabalhar em cima desse mistério. Com isso, o que quero dizer
é que vocês foram muito criativos para tratar de um aspecto que se discute muito na
crítica pessoana, que é o romance policial inacabado do Pessoa, o suposto suicídio
do Mago Aleister Crowley, etc. Mas, antes de tudo, eu gostaria de perguntar: o que
te motivou a ir para esse caso especificamente dentro da obra do Pessoa? Ou, antes
disso, o que te mobilizou, enquanto português, jovem, a enfrentar a obra do
Fernando Pessoa nesse caso em específico?
LP – Principalmente nos meus primeiros anos de realização, houve alguma coragem
da minha parte, sem a procurar, quando dou por mim a trabalhar grandes escritores
e grandes obras literárias, que, na verdade, eu tento não pensar o quão grandiosos
elas são quando estou a trabalhá-las. Obviamente que eu não sou qualificado
academicamente para trabalhar Pessoa, mas tenho alguma coisa a dizer sobre a obra
dele, ou pelo menos sou apaixonado por ela desde que eu a conheci na escola com
13 anos. Sou um grande amante de poesia desde essa altura e, por mais poetas que
eu tenha conhecido, por mais poetas que tenho lido, eu vou sempre voltar a
Fernando Pessoa porque sou encantado pela sua obra.
Como dizia, eu não pensei, quando comecei a trabalhar na Boca do Inferno, que talvez
não estivesse à altura de trabalhar uma figura como é a de Fernando Pessoa, eu
foquei-me na história e no que realmente ela podia potenciar no aspecto
cinematográfico e narrativo. Larguei qualquer pretensão que pudesse haver da
minha parte ou da parte dos criadores deste filme em comentar a obra de Fernando
Pessoa ou a sua biografia, mas sim encontrar o “Fernando”, o homem, encontrar um
bocadinho da humanidade de Fernando Pessoa.
Agradecemos às estudantes de Graduação da Universidade de Brasília – UnB/Brasil – Ana Luiza
Damásio Arrais e Anna Karoline Madeiros da Silva pelo apoio no serviço de revisão da transcrição
automática da entrevista gravada.
7
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Medeiros
Fernando Pessoa na Boca do Inferno
Esta história, por que esta história? Obviamente que, se nós olharmos (isto agora já
falo como um pessoano), mas se nós olharmos, segundo o que sabemos hoje para a
vida de Fernando Pessoa é muito complicado encontrarmos uma história onde haja
ação, onde vejamos o Fernando Pessoa a sair de casa e a fazer coisas, a armar
esquemas. A verdade é que ele era muito introspectivo, genialmente introspectivo,
na sua janela a escrever a “Tabacaria”. Por mais que romantizemos a vida dele com
Ofélia, por mais que romantizemos a vida dele na “Orpheu” e no Martinho da
Arcada, há raros casos na vida de Fernando Pessoa em que ele realmente tenha agido
sem caneta e papel. É claro que “Orpheu” obviamente foi uma revista que ele criou
juntamente com os seus companheiros, mas esta história específica a da Boca do
Inferno, tem potencial estético e eu percebi logo isso ao lê-la. Houve o grande Mago
que vem a Portugal conhecê-lo, eles armaram os dois um esquema, fingiram o seu
suicídio. Fernando Pessoa participou ativamente nesta história, e eu achei isso
absolutamente imperdível. Antes de conhecer o romance, conheci a história. Depois
de ler o romance, percebi a quantidade de textos que foram escritos por Fernando
Pessoa sobre o tema, escritos e reescritos. Ele escreveu capítulos, depois rescreveu os
mesmos capítulos tentando encontrar o caminho certo, ele escreveu notícias de
jornal, ou seja, a informação estava toda encruzilhada. E, aí assim, um bocadinho
pretensioso da minha parte, mas pensei: isto poderia ser um bom levantar do véu
sobre o processo criativo da forma como ele escreve, pelo menos de como ele aborda
a ficção. No filme também está presente a ideia do Turismo Infinito, quero com isto
dizer que dentro do seu quarto ele viajou por todo lado, ele foi um detetive inglês
que vem em Lisboa a escrever sobre este desaparecimento misterioso e possível
suicídio do mago Aleister Crowley.
Também me interessou porque eu trabalho e tenho uma proximidade muito grande
com o teatro. Tento trabalhar a linguagem teatral no cinema; a linguagem cênica é
uma coisa que sempre me agradou muito. Uma das coisas que me marcou como
realizador foi filmar espetáculos de teatro; comecei por ter a liberdade no Teatro
Nacional de São João de filmar espetáculos de teatro como realizador. Ou seja, eu
percebi muito cedo a forma cinematográfica com que a “cena” se apresenta à câmera.
Quero com isto dizer que muitas vezes a cena é tão bonita, se nós apontarmos a
câmera na direção certa conseguimos ter uma cinematografia maravilhosa sem sair
de uma Black Box. Essa também foi um bocadinho a ideia do filme, lembrando aquela
intenção do levantar do véu para o processo criativo de Pessoa e assim misturando
o que é ficção e o que é realidade. Esse sempre foi o grande objetivo, o grande tema
do filme. Nós partimos dum terreno que é claramente ficcional, ou seja, as paredes
mexem, as luzes mudam, não há fundo, o fundo é negro, claramente estamos a ver
uma criação ou alguma coisa que não é naturalista, que não é realista. Mas partindo
deste ambiente não realista nós tentamos encontrar a história real no meio disto.
Acho que essa foi a proposta de realização e foi, talvez, aquilo que Fernando Pessoa
tenha tentado fazer no meio do que estava a acontecer em Lisboa naquela época, da
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vinda do Aleister Crowley, tentou unir estas pontas soltas e coser esta história para
que parecesse real.
AM – Excelente! Deixe-me perguntar outra coisa, o meu colega Jerónimo Pizarro
mandou-me o material referente ao filme, que você enviou para ele e para o Marcelo
Mello, também nosso colega de trabalho, o que inclui uma versão de rodagem, salvo
engano de 2018, que me chamou a atenção. A versão que eu recebi tinha por título
“Anu”. Gostaria de saber: o filme inicialmente se chamaria “Anu”? Caso sim, por que
se deu a mudança do título? Pergunto por que você verá que a minha abordagem
caminha no sentido de ver uma presença muito especial dessa personagem no filme.
Eu acredito que ela é um ponto muito alto do filme, então o primeiro aspecto sobre
o qual eu gostaria de saber é este, o título.
LP – O título inicial, também proposta do argumentista Jaime Monsanto, era “Anu”.
Isso porque o filme foi descoberto a partir do poema “Dá a surpresa de ser”, que
pela data do poema, acredita-se que talvez [Pessoa] o tenha escrito a pensar nela [em
Hanni Jaeger]. Novamente, eu não sou crítico de Fernando Pessoa, mas este pode
ser o único poema erótico na obra dele. Há realmente um poema do Álvaro de
Campos que fala dos corpos nus masculinos que ele queria agarrar, enfim, isso
também pode ser considerado um poema erótico, mas isso é uma passagem de um
poema que é mais longo do que isso, ou seja, o poema não pode ser resumido apenas
num poema erótico. Este sim [“Dá a surpresa de ser”] é um poema em que apetecelhe estar com ela, apetece-lhe perceber aquele corpo, apetece-lhe agarrar, nota-se
claramente isso. E foi também uma das formas que nós tivemos de nos aproximar
de Fernando Pessoa e tirá-lo um bocadinho do pedestal – é normal que nós
coloquemos sempre Fernando Pessoa num pedestal, porque ele merece lá estar –,
mas quando o vamos trabalhar num filme, quando vamos criar dele uma
personagem, quando vamos colocar um ator a representar esse papel, é necessário
que ele seja humano. E então este poema foi o começo da humanização de Pessoa,
da sua vida romântica. Obviamente que ali há uma história de amor que nós
queremos contar, ou pelo menos de atração, daí o filme inicialmente se chamasse
“Anu”.
A verdade é que enquanto estávamos a estruturar a história, o filme foi sempre
“Anu” e foi sempre “Anu” até ao final da edição. Só foi sugerida a alteração do título
pela tradutora, Maria Inês Peixoto, que argumentou “eu acho que a Anu não tem
um peso suficiente para o filme ter o nome dela”. É claro que ela possa ter sido o
motivo de muitas das coisas que ali aconteceram, mas a relação do Aleister Crowley
com Fernando Pessoa foi para lá dela. Depois o personagem principal, o detetive,
também não tem uma relação direta com a Anu. Ou seja, eu acho que o filme é maior
do que Anu, mas houve ali uma altura em que realmente ela era sempre o fio
condutor, ela era sempre o motivo pelo qual, na minha ótica, Fernando Pessoa até
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Medeiros
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aceitou fazer estas coisas com Aleister Crowley. Mas depois do filme feito, depois de
ver aquilo, eu percebi que talvez não. Que talvez fosse uma vontade da obra dele ser
lida, ser reconhecida internacionalmente. E aí decidi retirar o nome “Anu” e colocar
o nome “Boca do Inferno”, que achei que era o que fazia mais jus ao filme e à história
deles.
AM – Perfeito, entendo. Veja só: você, com muita modéstia, fala que não é crítico
pessoano, mas é claro que o seu trabalho demonstra um trânsito muito confortável
pela obra pessoana, e aí eu queria te dizer o contrário... Eu não sou do cinema, eu
sou do Pessoa [risos], então eu acesso a sua obra [o filme] muito a partir das minhas
chaves de leitura pessoanas, e aí o que me chama muito a atenção é que há um rasgo
no seu filme: Boca do Inferno consegue alguma coisa que não é muito comum em
narrativas sobre Pessoa, falo de todas as narrativas multimodais – seja cinema, seja
teatro, seja literatura –, não é tão usual conseguir erotizar o Pessoa, e eu entendo que,
sem exageros e dentro de uma estética dos anos 1930, você consegue produzir um
filme em tom erótico. Queria saber um pouco a sua avaliação sobre isso.
Entendo que o erotismo no filme vem muito por essa figura, a Anu, e por conta de
certa composição de cenas que vocês fazem, sobretudo relacionado às cores do filme,
e até o detetive – ele chega a perguntar ao Pessoa: “Os encontros foram sempre assim
picantes?”. Então, há um semblante erótico no filme. Mas uma coisa que é muito
inapreensível ainda do Fernando Pessoa é essa dimensão sexual erótica, e eu
acredito que vocês conseguem chegar ao erotismo. Por que eu falo disso? Porque o
filme mudou do título “Anu” para “Boca do Inferno” e eu acho que uma coisa muito
interessante que vocês propõem ali é aquele título “Boca do Inferno”, que vai sendo
preenchido por tons amarelo-dourados, e eu li, analisei o seu filme com uma
proposta de filme noir por conta das cores, da questão do detetive, mas vocês
preenchem, sobretudo com a paleta do amarelo, do dourado, alguns momentos do
filme. Notadamente esses momentos me levam para o campo do erotismo. E aí, por
exemplo, a cena da praia em que focalizam aquela areia amarela de cima, o guardachuva vermelho e aquela mulher maravilhosa com trajes de banho em branco e
batom vermelho... é, eu não posso não ver erotismo nesse filme. Então, eu queria que
você falasse um pouquinho sobre isso...
LP – Obrigado pela pergunta, gostei muito também da sua interpretação. Tudo isso
foi pensado por mim e pelo Jaime, tudo isso discutido com a equipe. Há duas coisas:
uma delas é um bocadinho mais de um método narrativo e estrutural, que nós, como
a Ana disse, claramente, estávamos a trabalhar um filme noir. Houve claramente a
intenção desde o início de tornar aquela atmosfera baseada nos grandes clássicos
noir, obviamente muitas discussões e muitas referências foram trocadas entre mim e
Manuel Pinto Barros sobre a cinematografia noir. Mas em termos de argumento, em
termos de estrutura narrativa, o filme noir tem sempre ou quase sempre uma femme
fatale, e obviamente a Anu seria a femme fatale. Seria o motivo, como disse há pouco,
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quando estava a falar da troca de nome, o motivo pelo qual tanto Fernando Pessoa
como Aleister Crowley agem da forma como agem, fazem o que fazem, é sempre
aquela mulher no meio deles dois. A femme fatale, ou como Aleister a chamava –
scarlet woman, não é? Mulher escarlate. Baseado em textos que lemos sobre ela
(alguns escritos por Pessoa), ela era uma mulher à frente do seu tempo, mostrava-se
e vestia-se de uma forma que Lisboa não estava habituada. Lisboa não estava
preparada para a receber e, então, aquela mulher chamou bastante a atenção,
imagino eu, as pessoas, quando ela passava na rua, comentavam, também não era
tão comum ver estrangeiras em Lisboa, como é nos tempos atuais. Então, uma
mulher de 20 e poucos anos, idade que ela tinha quando chegou a Lisboa,
acompanhando um velho, uma pessoa muito maior que ela, com claramente uma
abordagem à sexualidade muito diferente do que é a católica de Lisboa naquela
altura. Obviamente que este choque também se reflete em Fernando Pessoa e, pelo
menos, deu o poema erótico, pelo menos cresceu ali uma vontade.
O outro motivo foi a nossa leitura da história, queríamos juntar essa paixão que
Fernando Pessoa pode ter sentido por ela, ou seja, foi uma opção: Fernando Pessoa
apaixona-se por esta mulher. E, então, a minha cabeça construiu algo para o que
aconteceu nessas conversas, sobre o que é que eles falaram. Depois, o poema, é claro,
resumiu tudo, “Dá a surpresa de ser | é alta de um loiro escuro | faz bem só pensar
em ver | seu corpo meio maduro”. Para mim, também tentei que fosse uma surpresa
aquela mulher a passear em Lisboa, a passear com Fernando Pessoa. Queria que ela
tivesse o foco em cima dela, queria que ela fosse apaixonante. Mas é claro que isto é
um registo de cinema clássico antigo, não é a forma como uma mulher é hoje
retratada, felizmente. Mas utilizando a linguagem noir o erotismo vem da presença
dela, vem dos seus cabelos loiros, dos seus seios voluptuosos, que tem uma àvontade que as outras mulheres não tinham, que a Ofélia com certeza não tinha. Foi
esse contraste eu gostei de trabalhar como se eu estivesse apaixonado por ela
também.
AM – Eu não sei como é que não se fica apaixonada por ela no seu filme, essa mulher
é divina! Fazendo essa brincadeira com o termo: Boca do Inferno mais o adjetivo
divina... Eu acho que ela fica com uma composição muito apaixonante mesmo.
Porque até no momento do ataque dela, ela de toda forma não está trajada nessas
cores provocantes, o amarelo ou o vermelho, mas está toda em branco, como uma
transparência. Então, ela me parece que convulsiona o filme, tornando-o mais
luminoso...
LP – Eu diria que a tentativa foi endeusá-la de uma certa forma, porque ela sempre
foi vista aos olhos do Fernando Pessoa, porque o detetive, quando pergunta sobre
ela, é o Fernando Pessoa que conta as histórias, é o Fernando Pessoa que conta a sua
perspectiva sobre Hanni Larissa Jaeger. Ou seja, eu conto a perspectiva daquela
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pessoa que passou na vida dele e que lhe arrebatou completamente, por quem ele
ficou completamente louco de paixão e ela foi-se antes dele poder ter o tempo de se
desapaixonar. Foi aquele amor platônico cortado na altura certa, resta a memória,
ficou o endeusamento daquela mulher.
Só mais uma coisa, isto traz uma outra questão: obviamente que houve uma altura
em que nós pensamos: espera lá, nós estamos a trabalhar sobre a sexualidade de
Fernando Pessoa e eu nunca, realmente, quis abordar essa questão, eu nunca quis
provar o que quer que fosse sobre esse tema, foi uma inevitabilidade da história.
Nós, na fase de pesquisa, fomos falando com várias pessoas, eu falei com familiares
dele, falei com pessoanos, obviamente há pessoas que dizem, “não, Fernando Pessoa
era assexual”, “Fernando Pessoa era homossexual”, simplesmente – Pessoa era isso,
era aquilo... e depois defendem com unhas e dentes aquela ideia e a mim parece-me
que, no mínimo, ele é capaz de se apaixonar, homem, mulher, o que quer que seja.
É capaz de ter esta paixão, de ter este desejo.
AM – Excelente. E, nesse clima, o que eu acho que corrobora, que contribui para esse
clima de um Fernando Pessoa apaixonado, parece-me ser a banda sonora. Queria
saber as escolhas que vocês fizeram nesse sentido. Eu ouvi todo o álbum Longe do
chão, do Gajo. Tem alguma composição do filme que não está nesse álbum?
LP – Tem, o tema. Eu ouvi o álbum por acaso. Nós já sabíamos que íamos fazer o
filme e eu estava a fazer uma viagem de carro a ouvir Antena 3 e apareceu o Gajo.
Começou a tocar e eu automaticamente amei a música dele e pensei: “Isto é
altamente cinematográfico.”. Não sei por que, mas há certas músicas – e isso
simplesmente acontece –, algumas músicas são cinematográficas; com isso quero
dizer que as músicas dão para criar imagens na nossa cabeça. E o Gajo tem outra
coisa que me atraiu de imediato. Eu gosto de trabalhar as minhas origens, se quiser,
a “portugalidade”. Acho que é bom e bonito, e é o que nos torna únicos. Ora, a
guitarra campaniça é uma guitarra portuguesa de origem alentejana, e o Alentejo
está muito ligado a Lisboa. Então, era uma guitarra que eu imagino que o Fernando
Pessoa também pudesse tê-la no seu dia a dia, ou tê-la ouvido aqui e ali.
Procurei trabalhar com o Gajo automaticamente e ele foi generosamente bondoso e
prestativo. Tinha uma ideia prévia pensada musicalmente para o filme, que nunca
tinha feito em trabalhos passados, que era haver um tema. Haver uma música que,
no final do filme, as pessoas, espectadores, pudessem ficar com aquela música na
cabeça. E, então, é claro que eu e o Gajo trabalhamos essencialmente sobre esse tema
para ir de encontro ao mood da história. Houve muita conversa; ouvia músicas que
ele estava a preparar, depois voltava e dava algumas indicações. Andamos assim à
busca do tema, e num encontro decidimos: “Vamos concentrar-nos só no poema.
Vamos compor para este poema, para esta vontade de estar, para este ‘tem qualquer
coisa de gomo’”. Vamos escrever a música para esta dor, que é uma dor, de quem
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Medeiros
Fernando Pessoa na Boca do Inferno
quer dizer àquela mulher que se está apaixonado, que quer estar com ela, mas não
tem como dizer; pergunta, antes, se está frio. Percebe? E essa música vem buscar um
bocadinho essas dores do não conseguir verbalizar o desejo por outra pessoa. A
música chama-se “Anu”, ficou com esse nome.
AM – O Gajo aparece no filme, várias vezes...
LP – Aparece. Ajuda a nunca perder a ideia do musical que não chega a ser musical,
porque eles não cantam, mas há sempre uma música por trás, há sempre uma coisa
cénica. A música traz-nos isso também. Não só a luz e as paredes a mexerem-se, mas
a música presente e diegética.
AM – Essa opção da música é muito interessante para um filme que parte tanto de
um poema do Pessoa, “Dá a surpresa de ser”, que é todo em redondilha maior, né?
Um verso extremamente musical, então me parece muito acertada essa escolha de
vocês. Mas, mudando de assunto, pensando em uma recepção do seu filme junto ao
público brasileiro. Eu sou brasileira e, no Brasil, “Boca do Inferno” – a despeito do
que significa, daquele acidente natural em Cascais, Boca do Inferno – no Brasil, é
uma alcunha que a gente deu para um poeta muito importante, que é o Gregório de
Matos, um poeta do século XVII. O nome dele é Gregório de Matos, mas todo mundo
o conhece na historiografia luso-brasileira como “Boca do Inferno” porque ele tinha
poemas eróticos e satíricos. Poemas em que as freiras faziam coisas hereges. Então,
assim, esse autor é um expoente do Barroco luso-brasileiro. Bom, o Barroco tem
claro/escuro, preto e branco, que me lembra a atmosfera do seu filme; mas o auge da
cor no Barroco, novamente, é o dourado. Então, como brasileira, e pensando numa
recepção do filme no Brasil, eu me sinto impelida a perguntar isto, se você ou a sua
equipe ouviram dizer ou pensaram nessa referência Barroca, também chamada de
Boca do Inferno, mas do lado de cá do Atlântico.
LP – Não em relação ao poeta, mas houve referências barrocas, principalmente em
pinturas. Quando nós fomos para o filme noir, eu sou mais de me mover através de
referências de pintores do que propriamente de filmes – sempre que vamos para
referências de filmes parece que estamos a fazer uma cópia do trabalho de pessoas
que já o fizeram. Portanto, acho que Caravaggio foi realmente a nossa referência
cinematográfica, e nós tentámos ir por aí, para o que era o chiaroscuro, por essa
referência visual. Em termos de literatura, eu não sabia dessa alcunha “Boca do
Inferno”, primeira vez que estou a ouvir. Sei que “Boca do Inferno” pode querer
dizer uma série de coisas que não interessam para a história, mas o nome pareceume que englobava a história. É o nome do espaço que eles decidiram como o local
do suicídio do Aleister Crowley.
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
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Medeiros
Fernando Pessoa na Boca do Inferno
AM – E “Boca do Infierno” tem essa conotação – do bilhete do Crowley, né? Que é
um bilhete real. Um bilhete que ele discute ali no seu filme com Pessoa, em que o
Crowley diz: “Ah, a outra boca do inferno não será tão quente como a sua”. Não é?
LP – A boca da Anu também é chamada pelo Aleister Crowley como “Boca do
inferno”. Sim, isso é. A outra boca do inferno, sendo a original o penhasco. Sim, é
verdade.
Esqueci-me de referir uma coisa. Porque eu acho que a estrutura é sempre muito
importante para contar uma história, a Anu aparece quando acaba o primeiro ato.
Sempre pensamos a entrada da Anu a marcar a mudança do primeiro para o
segundo ato.
Ou seja, aí é que nós revelamos realmente qual é o assunto do filme e saímos da
questão do mistério do desaparecimento do Aleister Crowley e entramos numa
outra coisa, numa outra camada que é mais o assunto do filme. Esta camada
mantém-se até ao final, até quando o detective descobre as cartas e aquelas cartas
foram realmente escritas por ela para Fernando Pessoa, é claro que com o
conhecimento do Aleister Crowley. Fiéis aos factos que conseguimos apurar, não
existiu mais do que desejo naquela relação; eles não namoraram às escondidas, mas
dependendo da forma como se conta a história, podia ter sido mais, não é? Podiam
os dois ter morto Aleister Crowley.
É claro que nós não estávamos a tentar fazer uma biografia. O trabalho foi altamente
criativo, no sentido ousado; expusemos as fontes que nós tínhamos para construir a
nossa história. Não tentámos com que ela fosse a história real da Boca do Inferno,
até porque era impossível ter uma interação com o detetive, que era um personagem
fictício, não é? Ou seja, nós usamos essa liberdade para contar esta história, e
obviamente esta história erótica, ao pelo menos esta história da paixão e do desejo
de Fernando Pessoa. E chamar-lhe “Boca do Inferno”, sabendo que na carta ele
também tinha chamado a boca da Anu de boca do inferno, dava para juntar a boca
dela, a boca do desejo e a boca do suicídio.
AM – Pois. Eu não vou tomar muito mais do seu tempo. Apenas um registro:
fotografia e diretor de luz foram a mesma pessoa, o Manuel Pinto Barros, que fez
um trabalho excelente, não é?
LP – (Risos) Sim, sim, sim. Nós temos vindo a trabalhar juntos. O Manuel, de uma
forma ou outra, cresceu, pelo menos em Portugal, cresceu muito bem. Está muito
lançado no cinema e, então, puxa-me de vez em quando para fazer trabalhos com
ele. Ele também está mais por Lisboa, a trabalhar por Lisboa, e eu mantenho-me no
Porto e não quero deixar isto por nada. Felizmente tenho trabalhado bastante com o
Teatro Nacional São João em desenho de vídeo, ou seja, penso e realizo filmes para
serem incluídos em espetáculos de teatro através de projeções.
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
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Medeiros
Fernando Pessoa na Boca do Inferno
AM – E, finalmente, Luís, existe uma a tradição em Portugal, e você já disse (e acho
que o filme é muito legal por isso): “Não, esse filme não tem pretensão de biografia
do Fernando Pessoa” e até as biografias de Fernando Pessoa são complexas, então a
pergunta não é nesse sentido. Mas existe mesmo na tradição de Portugal isso de
narradores fictícios que contam a história da literatura de Portugal ou de
personagens portugueses e que fazem isso de um modo artístico. Então, por
exemplo, a gente tem casos muito consagrados: o José Saramago faz um romance no
final do século XX em que o Pessoa e o heterônimo Ricardo Reis são personagens. Aí,
já no século XXI, José Luís Peixoto faz um romance em que o Saramago é o
protagonista; o António Lobo Antunes faz coisa similar com Camões, então, com
muita serenidade, não quero te deixar assim com um fardo muito pesado, mas eu
queria saber se você se sente de alguma forma parte desta tradição. Isto é, um
português do nosso tempo que não se exime de enfrentar certa tradição de narrar
criativamente artistas de Portugal, queria saber como é que você se coloca nesse
lugar.
LP – Obrigado, obrigado por... (risos) por essa comparação, a verdade é que o José
Saramago é o romancista por quem eu sou fascinado, fanático pela obra dele,
trabalhei-o no ano passado um espetáculo que era o “Ensaio sobre a Cegueira”, estou
agora a trabalhar Lobo Antunes. Ah, então prefiro ver assim desta forma. Eu acho
que Portugal é um país muito pobre em muitas coisas. Nós não estamos numa fase
social em que conseguimos ter igualdade, em que conseguimos ter o nível de vida
aceitável. Pagamos demasiado por tudo, as pessoas não passam bem e, muitas vezes,
perdem a esperança neste Portugal que lhes foi prometido em Abril. Sinto a olhar à
minha volta que as pessoas estão desesperançadas deste país, acham que nós somos
pequeninos, que estamos na cauda da Europa, não gostam de viver cá e partem para
fazer as suas vidas noutros países. Eu compreendo a dor destas pessoas e
compreendo porque é que o fazem. E compreendo que Portugal não nos oferece
aquilo que promete. Somos realmente pobres. Mas a verdade é que Portugal tem
uma literatura que é das melhores que eu já li no mundo e eu sinto-me super
orgulhoso de ser português pela nossa língua e pela nossa literatura. E, nesse
sentido, eu sinto que a minha obrigação como criador, eu não gosto de dizer isso,
mas como artista também, é de conseguir propagar um bocadinho esta cultura
literária que nós temos. Nós podemos não ter os melhores cientistas, nem os
melhores empresários, nem os melhores políticos, com certeza, mas tivemos os
grandes escritores, os grandes poetas, e ainda temos! O Lobo Antunes ainda é vivo,
e daí sim, eu quando tento debruçar-me sobre um autor, eu normalmente vou-me
debruçar sobre um autor português, porque há tanta coisa para explorar na
literatura portuguesa que eu não tenho muito mais para onde ir, percebe?
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
300
Medeiros
Fernando Pessoa na Boca do Inferno
AM – Então eu fico mesmo muito honrada, te agradeço imenso. E se quiser fazer
qualquer outro comentário sobre o filme, algo de que gostasse que a crítica ficasse
sabendo, fique também muito à vontade.
LP – Ok. Acho que é importante referir sempre, pelo menos é a forma como eu vejo:
o cinema é uma arte coletiva. Aqui, nenhuma opção terá sido tomada apenas por
mim. Houve uma junção de trabalhos de pessoas diferentes. De uma diretora da
arte, Luísa Bebiano, que não foi só uma diretora da arte, que pensou o espaço como
arquiteta e cenógrafa. Do editor Alberto [Gonçalves], que já me acompanhava há
alguns anos e que já conhecia bem a linguagem. Do trabalho extraordinário da
produtora Laura Milheiro, que agora está a provar o seu mérito e a dar cartas na
indústria espanhola. Do trabalho do argumentista, que foi um processo muito
exigente entre mim e o Jaime [Monsanto]: andávamos a trabalhar este argumento,
mesmo sendo curto, pelo menos há um ano e meio, dois anos. E obviamente o
trabalho dos atores que, neste caso em específico, acho que eles estiveram bem,
gostei de ver os atores, senti realmente que os atores estavam num grande nível. E,
assim, era isso... Acho que toda a equipa que fez parte deste filme, desta aventura,
foi muito importante para conseguir trazer esta ideia à realidade. Depois, também,
o papel importantíssimo que teve o Teatro Nacional de São João, no Porto, Portugal,
onde eu estou agora, que foi em ceder o espaço. Ou seja, só foi possível por causa da
vontade das pessoas do Porto em contar uma Lisboa em 1930. É um filme difícil,
porque é um filme de 42 minutos, é um filme que não se insere numa curtametragem, não se insere numa longa-metragem. E, depois, olhando agora com
alguma distância, lembro-me de que o final não está nada como eu queria. Não foi
possível fazer melhor, mas é vida, né?
AM – Ótimo. Agradeço demais: além de ter ficado muito contente por ver o seu filme
umas 20 vezes, fiquei contente de poder conhecê-lo, ainda aqui de modo remoto, e
conversar com você, obrigada mesmo, pela sua gentileza e generosidade!
LP – Obrigado eu!
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
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Medeiros
ANEXO
Fernando Pessoa na Boca do Inferno
2
Depoimentos
Considerando-se que o dossiê da Revista Pessoa Plural agora publicado visa
apresentar, discutir, suscitar a pesquisa e divulgar a produção cinematográfica
realizada a partir da obra de Fernando Pessoa, apresentamos a seguir quatro depoimentos que propiciam o debate sobre o filme Boca do Inferno (2020), do realizador
Luís Porto. Os pesquisadores Marcelo Mello (CNPq/USP) e Ana Clara Medeiros
(UnB) coletaram depoimentos em fevereiro e março de 2024 de figuras fundamentais
à produção do média-metragem que narra o encontro de Pessoa com o mago Aleister
Crowley e sua amante Hanni Larissa Jaeger.
Os textos a seguir, portanto, registram as impressões e a experiência individual
(que se mostra bastante coletiva neste caso, como verão os leitores) do processo
compositivo de Boca do Inferno: agradecemos a Laura Milheiro, produtora do filme;
a Jaime Monsanto, argumentista e ator (intérprete de Fernando Pessoa na película);
a Manuel Pinto Barros, diretor de Fotografia; e a João Morais, conhecido como O
Gajo, responsável pela banda [trilha] sonora e música do filme – pelos depoimentos
concedidos , que contribuem para a percepção da atmosfera pessoana criada no Teatro
Nacional São João, no Porto / Portugal, onde se deram todas as filmagens da obra.
Laura Milheiro dá a ver como a leitura, a pesquisa, a consulta a estudiosos da
obra do poeta português foram fundamentais à composição do filme, produzido em
apenas oito dias de filmagem, como conta a produtora.
Jaime Monsanto explicita que, seja na escrita do roteiro, seja na atuação como
protagonista, era preciso humanizar Pessoa, revelá-lo como homem comum, que
sempre pregava peças, que ao menos uma vez se apaixonou por uma scarlet woman.
Manuel Pinto Barros, o diretor de fotografia, afirma que intentou “estar
dentro da cabeça de Fernando Pessoa” e, nesse espaço insólito do filme, onde tudo
é mentira, emergiu uma luminosa fantasia, chamada “Anu”.
Finalmente, João Morais, o Gajo, ressalta como a música, em Boca do Inferno,
cumpre o papel de demarcar o ritmo de uma narrativa, mas também consegue transportar-nos para tempos e espaços outros, ao som da (alentejana) viola campaniça.
Os testemunhos a seguir evidenciam que o filme resulta de um afinado trabalho
em equipe, do estudo da obra pessoana e do enfrentamento corajoso deste fantasma –
Fernando Pessoa, aquele que refundou a poesia de Língua Portuguesa no século XX;
aquele que fazia blague pelo desejo permanente de viver ficções. Vão aqui, então, mais
alguns contributos que, de um lado, ratificam o quão criativo, responsável e pessoano
é o filme de Luís Porto; de outro, consolidam a ideia de que as ficções pessoanas são
infinitas – desdobram-se em sons, performances, atuações, imagens – e ganham cada
vez mais vida quase 90 anos após a morte do mago de Lisboa.
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
302
Medeiros
Fernando Pessoa na Boca do Inferno
Laura Milheiro (Produtora)
Depoimento recebido por e-mail no dia 13 de março de 2024
Produzir a Boca do Inferno foi uma montanha-russa de acontecimentos, aprendizagem
e emoções.
Estávamos numa das primeiras apresentações públicas da nossa primeira
curta-metragem Deus Providenciará – eu, o Luís [Porto], o Jaime [Monsanto] e o Pedro
[Manana] – quando nos demos conta de que queríamos continuar a trabalhar juntos
e fazer algo que nos continuasse a fazer crescer a paixão pelo cinema. Pelo que desenterramos uma paixão comum: Fernando Pessoa. A partir desse momento foi todo um
processo. Descobrir que parte da sua vida abordar. Ler muito, ler tudo. Falar com
vários pessoanos, para poder começar a desenvolver o argumento. Escrever o argumento. Dar voltas e mais voltas ao mesmo, num processo contínuo.
Quando encontrámos o foco, do ponto de vista de produção, apercebemo-nos
da complexidade do projecto: actores de língua portuguesa, actores de língua inglesa,
um cenário que – pela narrativa – teríamos de construir de raiz, um local onde
conseguir fazê-lo, animais, figuração, tudo para construir o que, ao início seria uma
curta- metragem, e depois se transformou numa média-metragem.
Foram várias as tentativas de co-produção, de submissão de candidaturas, de
encontrar o elenco certo, montar uma equipa, da qual não poderíamos estar mais
orgulhosos.
Era um repto. Um repto que fez com que esta paixão de conseguir fazer este
filme crescesse cada vez mais.
Foi um caminho longo. Conhecemos bastantes pessoas que nos aportaram
muito de si para o projecto e, ao fim de cerca de dois anos, conseguimos. Encontrámos
um parceiro de produção, a Filmógrafo – que se uniria a nós nesta loucura –, um
espaço magnífico – o Mosteiro São Bento da Vitória, cujo Teatro Nacional São João
está a cargo –, um elenco e uma equipa fantásticos – pelos quais não poderíamos ter
mais admiração – e, com muito trabalho e montando um quebra-cabeças gigante,
conseguimos realizar o filme que o Luís tinha ideado. Foram 8 dias de filmagens, 1
semana louca de preparação para construir os cenários, conseguir os elementos
cénicos, figurinos, pensar no desenho de maquilhagem e de cabelos, trazer actores
de Londres, um movimento do Porto a Lisboa para filmar, inserir a própria banda
sonora do filme durante as filmagens... Foi feito muito em pouco tempo de real execução, com meios que – ainda assim – foram curtos e que, no final de tudo, nos trouxeram
uma sensação de orgulho, de realização, de trabalho feito, da qual – mesmo passados
5 anos – não posso deixar de recordar com o maior dos carinhos.
Jaime Monsanto (Argumentista e ator)
Depoimento recebido por e-mail no dia 6 de março de 2024
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
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Medeiros
Fernando Pessoa na Boca do Inferno
Sobre o processo
Como é sabido, o meu envolvimento na obra sobre a qual nos debruçamos neste
momento dá- se em duas frentes, a de argumentista e a de actor. A segunda sendo,
em boa verdade, uma decisão do Luís Porto e restante equipa, depois de fazermos
vários castings e o realizador chegar, me pareceu, à conclusão de que não estava a
ser fácil retirar os actores desta concepção endeusada do Fernando Pessoa, do pária,
o criador no cume da montanha olhando os mortais, e aproximá-los dessa visão mais
mundana, acessível, do ser social que bebia uns copos de vez em quando, como o
mais comum de nós e que, intuitivamente, sempre me interessou e também seduziu
o Luís. Digo intuitivamente porque foi o processo de pesquisa que acabou por validar
essa ideia, algo que irei desenvolver na secção dedicada ao processo como actor.
Na verdade, o meu fascínio começou por volta de 1994, no início da minha
carreira como actor (As pessoas de Pessoa, com encenação de Nuno Gama, produção
concebida a partir de textos de Fernando Pessoa). Neste espectáculo já se explorava
uma montagem de textos dos heterónimos e alguns excertos da carta a Adolfo Casais
Monteiro sobre os mesmos. Falo deste espectáculo em particular porque foi o precursor
de uma série de tentativas ao longo dos anos, que não vou mencionar (sob pena de
me tornar desnecessariamente exaustivo), de testar os textos de Pessoa na prática da
performance. De explorar a profundidade dramática, em sentido prático, dos textos
que o escritor denominou como “drama em gente”. Este processo de confrontar os
heterónimos em palco usando os seus poemas, e editando como se de uma conversa
se tratasse, contamina, em parte, o argumento de Boca do Inferno.
Argumento
O livro que serviu de base de pesquisa e guia para a estruturação do argumento,
Encontro Magick, é uma organização de textos de seu sobrinho Miguel Roza. Apesar
de o título apontar no sentido do ocultismo, Miguel Roza não se inclinou tanto nesse
sentido, mas no inusitado do encontro. No entanto, a preocupação de documentar
todo o episódio despertou o meu interesse porque retratava o lado bem humorado
de Pessoa como eu ainda não tinha conhecido até então. Pressentia-o na sua escrita,
apesar de erudita, mas não de forma tão clara como nas cartas entre o poeta e
Crowley. Eu encontrara um Fernando Pessoa que imaginara várias vezes, mas que
agora estava ali de forma indubitável. Por isto, o primeiro impulso foi retratar esse
lado, para o qual também concorria bem o poema de teor mais sexual que Anu
inspirou. Humor, sexo, exageros, dívidas, misticismo, tinha tudo, e arrojo ao ponto
de simular um suicídio com visibilidade internacional. Este era ainda outro
elemento que me seduziu muito na correspondência e, até no acto de enviar a carta
que trouxe Aleister a Portugal porque acredito que de alguma forma este pensamento
estava presente: a ambição de Pessoa em ser conhecido internacionalmente. Também
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
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Medeiros
Fernando Pessoa na Boca do Inferno
este elemento me seduziu muito, elemento que está na boca de Pessoa no romance
The Mouth of Hell, numa conversa que Pessoa tem com o investigador a respeito da
dualidade de Crowley: sendo um homem de talento e inteligência, ser tão seduzido
pela fama; me pareceu, ao mesmo tempo, uma introspecção sobre si próprio.
Assim, e depois de juntar ainda alguns elementos de pesquisa, como excertos
do diário de Aleister, começou a ser clara para mim a estrutura do argumento. Em
vez de relatarmos, acompanharmos as personagens e, com alguma imaginação à
mistura, criarmos cenários para o encontro “Magick”, também por uma limitação de
tempo que o formato de média metragem impõe, o desafio seria entrar na cabeça de
Fernando Pessoa e, de alguma forma, levar o público a viajar na imaginação de
Pessoa enquanto este fazia o seu malabarismo com a realidade, porque “a verdade
nunca se acredita”, criando uma verdade, como ouvimos da boca de Augusto
Ferreira Gomes, “qualquer coisa que seja plausível”.
Desta forma, todos os textos, independentemente de serem jornalísticos,
romanceados, ou do diário, cruzam-se com as poucas certezas a respeito da estadia
de Aleister e Anu em Lisboa e inspiram cenários em que realidade e ficção se diluem
na busca incessante por uma história que resultasse fantástica, como as personagens
reais que a protagonizam, mas verídica e plausível.
Após uma primeira versão, mais centrada nestes aspectos, e porque inicialmente o filme se chamava Anu, o Luís e o actor que faz Augusto Ferreira Gomes,
Pedro Manana, fizeram uma reestruturação dos acontecimentos para que incidisse mais
sobre o encanto de Pessoa pela dama escarlate de Crowley, Anu. Essa reestruturação
levou à criação de novas cenas e à reescrita que, de seguida, o realizador finalizou
comigo, resultando na versão do guião que deu origem ao filme. Trata-se, portanto,
de uma escrita a três mãos.
Actor
Como não seria de estranhar, foi todo este processo de escrita que me ajudou a
materializar uma figura que tinha muito clara nas nossas mentes e que dificultou o
trabalho a todos aqueles que chegaram para o casting. Seja pela pré-concepção do
poeta, ou pela nossa inaptidão em clarificar qual era afinal este Pessoa que queríamos
retratar. Sobre o meu processo enquanto actor, e para não me estender muito mais,
gostaria apenas de relatar uma prática do poeta que foi decisiva para a forma como
abordei a personagem. Na conversa que tivemos com o sobrinho de Pessoa, Miguel
Roza, este relatou um hábito que Fernando Pessoa tinha e que, penso, retrata bem o
seu sentido de humor e espírito farsola – que, aliás, está na justificação que Fernando
Pessoa apresenta para não ser ele a assinar a notícia do desaparecimento do mago
inglês, o facto de ser bem conhecida a sua inclinação para a disseminação do que
chama “blague”, e que nós designamos agora de peta. Segundo Miguel Roza, por
vezes, Pessoa ao sair de casa, encontrando alguém e sentindo-se inclinado para isso,
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
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Medeiros
Fernando Pessoa na Boca do Inferno
simulava deixar cair uma moeda no chão, e quando as pessoas se lançavam na busca
do tesouro perdido, o poeta seguia viagem deixando-as que nem baratas tontas à
procura de nada.
Manuel Pinto Barros (Director de Fotografia)
Depoimento recebido por e-mail no dia 23 de fevereiro de 2024
Boca do Inferno é um filme realizado por Luís Porto no qual fui Director de Fotografia.
O Luís Porto tinha uma ideia bem definida da forma como queria contar e
tratar o tempo / espaço do filme, o que ajudou imenso a construção visual do mesmo.
A ideia era desconstruir um espaço (convento de São Bento da Vitória, no
Porto), transformando-o em diversos espaços da vivência de Fernando Pessoa e
Aleister Crowley, em Lisboa.
O jogo entre espaço e tempo, criado pelo realizador, levavam a que visualmente o filme fosse um mosaico em que podia experimentar diversos “espaços visuais”.
Mas optei por limitar o espaço e o tempo visual a uma ideia: aquele espaço e tempo
que filmávamos seria a cabeça de Fernando Pessoa, e assim, assumir uma unidade
visual mais expressionista nos momentos entre Fernando Pessoa, Aleister Crowley
e o Detective, e um ambiente mais “limpo” e “difuso” na relação de Pessoa e Anu.
A partir do momento em que assumi que estaria “dentro da cabeça de
Fernando Pessoa”, procurei referências da época, e foi fácil chegar ao expressionismo
Alemão e ao surrealismo, movimentos que tiveram o seu auge nos anos 20 e que me
pareciam adequados para o visual do nosso filme.
Luz, sombra, contraste e deformação / alteração de espaços e luz foram alguns
dos elementos que me influenciaram na construção do visual de Boca do Inferno.
Existem momentos em que o plano sequência (não respeitando a sua essência) quebra
tempo e espaço, e em que a própria luz é alterada de forma a criar uma unidade de
partes que por si eram muito diferentes. Essencialmente, estávamos a ficcionar sobre
o que Fernando Pessoa estava a ficcionar, logo, o espaço criativo era imenso, intenso
e desafiante.
E tal como Fernando Pessoa e Aleister Crowley estavam a mentir, para mim
visualmente, interessava-me mentir ainda mais, e as ideias do realizador permitiam
isso mesmo. Penso nos cenários, que se podiam mover e ajudavam a romper tempo /
espaço. De forma sintética a Luz, o Tempo, o Espaço e a Narrativa eram tudo mentira.
Como director de fotografia, foi extremamente estimulante trabalhar sobre
estas mentiras, pois permitia criar sem os limites de uma narrativa “normal”. Aqui
estávamos livres na mente e mentira de Fernando Pessoa, que, por muito partisse de
uma premissa real, era apenas uma fantasia, fantasia essa de nome Anu.
E é essa fantasia, a forma como Fernando Pessoa vê Anu, que quebra com o
ambiente surrealista e expressionista. Esse é o ponto em que assenta a construção
visual de Boca do Inferno: estando dentro da cabeça de Fenando Pessoa, não podia
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
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Medeiros
Fernando Pessoa na Boca do Inferno
existir uma unidade visual, e Anu é o elemento que permitiu quebrar a barreira que
me agarrava ao surrealismo e expressionismo,
Em conclusão, diria que visualmente Boca do Inferno é uma mentira sobre uma
mentira, e que constantemente mente a si próprio. Não é, claramente, realista, mas
não é só surrealista, não é só expressionista, e não é só uma fantasia. É uma
interpretação de Fernando Pessoa.
João Morais, o Gajo (argumentista e ator)
Depoimento via Teams, no dia 6 de março de 2024
Sobre o casamento entre a banda sonora e o filme Boca do Inferno (2020), entrego o
mérito ao realizador Luís Porto. Ele ouviu a minha música na rádio e concluiu que
esta seria ideal para o seu projecto. A maior parte das músicas que estão no filme
são músicas que já estavam compostas, mas ele conseguiu que parecessem como se
fossem feitas para aqueles momentos. A consciência que tenho é de que a música
que faço é muito cinematográfica e, portanto, adequa-se bem à banda sonora de
imagens, de atmosferas, de ambientes; isso com certeza ajudou. Luís Porto disse-me
que seria bom termos uma espécie de momento musical que pudesse percorrer o
filme todo, ou seja, um tema do filme, e foi assim que surgiu a tal música “Anu”. O
que fiz basicamente foi estar no Porto (sou de Lisboa) a acompanhar todo aquele
processo de filmagem. A partir também de algumas imagens que ele [Luís Porto]
me enviou, fui guardando e reunindo ideias, mas não fechei nada até “a hora H”,
quando percebi que tinha de fato qualquer coisa que encaixava na dinâmica do
filme.
Foi muito bom ter estado presente nas filmagens. Consegui sentir a equipe,
sentir os movimentos, o ambiente. De todas as ideias que levei para o Porto nessa
semana em que estive com eles, acabei por encontrar um momento que me pareceu
um bom sustentador da imagem, um “drone”. Em música, chamamos “drone” a
uma espécie de motor a trabalhar em “ponto morto”, e que mantém a música pronta
a arrancar para qualquer lado. Sigo aquilo que estou a sentir. Acompanho de forma
muito sensorial e gosto muito destes desafios. Acho que resultou tudo muito bem,
mas honestamente o mérito eu entrego à equipe. Trabalhei as minhas ideias de
forma um bocado solta, apesar de serem refletidas, mas o casamento de tudo foi obra
da excelente equipe que eles conseguiram juntar e que fez este filme, que tem um
orçamento limitado, mas onde eu vi acontecerem coisas bastante mágicas.
Eu não sou um especialista em Fernando Pessoa, mas ele está no topo da
minha lista de referências porque sempre que preciso de inspiração, eu sei que a vou
encontrar em qualquer livro que abro dele. Eu tenho em casa a obra completa dos
vários “Fernandos Pessoas” e é sempre inspirador. Se neste filme eu fizesse um
trabalho musical muito pensado nas palavras, eu poderia fugir daquilo que no fundo
seria a dinâmica do filme. Quando componho, tento arranjar uma narrativa para as
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Medeiros
Fernando Pessoa na Boca do Inferno
coisas que faço, mas é mais por uma questão de estrutura de música, que tem um
ponto de partida, mas que, a partir daí, a música tem de florescer.
Neste caso, como o tema “Anu” era apenas um momento que iria pincelar o
filme de forma salteada, a música nunca foi gravada enquanto música isolada. Ela
só funciona para manter aquele filme com uma determinada cadência. Se eu fizesse
“Anu” como uma música completa, teria com certeza lido todas as palavras do texto
de referência [o poema de Fernando Pessoa “Dá a surpresa de ser”] e tentaria perceber
“para onde é que eu vou agora?”, “o que é que a próxima frase me diz?”. Mas não
tive que fazer esse processo e daí o porquê de o texto não ter sido o principal foco
de referência.
O que eu vejo quando assisto ao filme é o reflexo do talento daquela equipe.
Fui também convidado para aparecer no filme como um personagem secundário,
um tocador de rua, que está em segundo plano. Isso também me ajudou a estar mais
presente no processo. A minha música é muito analógica e tem de haver uma
presença humana. Não sou um músico muito digital. Essa minha presença no filme
fez colar ainda mais a música com a imagem. Só fechei as ideias depois de lá estar.
Quando a música é instrumental, como não há uma mensagem explícita, são as
dinâmicas, as execuções, os pequenas retoques que damos nas melodias, que conversam com as pessoas.
Certa vez escreveram sobre a minha música, que esta viola Campaniça os
transportava para um Portugal antes de Portugal ser Portugal, ou seja, para uma
espécie de memória antiga e islâmica derivada da presença dos Árabes na Península
Ibérica. Eles deixaram muita coisa, ainda há muitos vestígios. Eu diria que esta viola
Campaniça nasce algures dentro dessas civilizações Mediterrânicas mais antigas,
foi-se transformando, e hoje ela transporta-nos para essas regiões não só pelo seu
som, mas também nos transporta no tempo.
Encontrei esta viola em 2016. Eu tocava guitarras elétricas convencionais
americanas e japonesas, mas comecei a ouvir muitas “músicas do mundo”. É música
de raiz, aqui nós chamamos “música do mundo”, e isto quer dizer que são projetos
que trabalham essencialmente a partir das suas tradições locais, ou seja, usam os
seus instrumentos tradicionais, que cantam os seus cantares tradicionais, vestem as
suas indumentárias tradicionais e somos transportados por esse mundo fora apesar
de não sairmos do mesmo lugar, porque estamos a olhar só para um palco, mas os
cantares, o som e as indumentárias transportam-nos. Eu perguntava-me: “como é
que eu poderia fazer um pouco isso com as minhas composições e transportar os
ouvintes para a minha geografia?”, então acabei por procurar dentro daquilo que
são os nossos instrumentos tradicionais daqui de Portugal e encontrei a viola
Campaniça. Troquei, então, a minha guitarra elétrica de 30 anos pela viola tradicional
aqui da região do Alentejo, mas sem a intenção de tocar música alentejana, o meu
papel não é esse, não é tocar as músicas tradicionais, não é cantar os cantos
tradicionais. Quis arranjar um instrumento que tivesse essa voz, que o seu som
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Medeiros
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pudesse ser identificado com Portugal, mas para desenvolver as minhas próprias
composições. É muito curioso porque a viola é que me transporta para aqueles sons
mais antigos, é tudo muito intuitivo. A viola e a guitarra elétrica compõem coisas
completamente diferentes, e esta viola tem esse som que soa a qualquer coisa meio
arábica, ou islâmica, que cruza ali com tantas referências do Mediterrâneo, da
Grécia, da Itália, da Espanha... e de Portugal, obviamente.
Nós temos um país pequeno. Esta viola e outras da sua família de cordofones
tradicionais portugueses estiveram muito adormecidas, muito entregues ainda aos
sons antigos e tradicionais, sem se expandirem no seu potencial, sem viajar. A minha
veio para Lisboa e hoje percorre um caminho mais ligado a referências contemporâneas.
Tento não comprometer o seu legado e defendo muito a sua história, mas o futuro
tem muita coisa por explorar. Agora vamos assistindo por aqui a um florescimento
de tocadores e construtores, e estas violas vão aparecendo mais regularmente nos
palcos por esse país fora. Há poucos anos, estas violas não apareciam, quase ninguém
as conhecia... a verdade é que eu ia para qualquer lado e havia sempre quem
perguntasse: “Mas que viola é essa?”. Praticamente ninguém sabia que viola era.
Esta é a viola que marca o filme Boca do Inferno.
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Fernando Pessoa na Boca do Inferno
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ANA CLARA MAGALHÃES DE MEDEIROS é Professora Adjunta de Literatura Portuguesa no
Departamento de Teoria Literária e Literaturas do Instituto de Letras da Universidade de
Brasília. É pesquisadora junto ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico – CNPq/Brasil (Bolsista Produtividade em Pesquisa nível 2). Coordena o Projeto de
Pesquisa “Nós outros como futuro: interlocuções estéticas e rastros do Império nas literaturas
ibero-atlânticas e afro-diaspóricas”, financiado pela Fundação de Apoio à Pesquisa do Distrito
Federal (FAPDF), agregando investigadores/as do Brasil, de Angola, Colômbia, Itália,
Moçambique e Portugal em torno das Literaturas de Língua Portuguesa dos séculos XX e XXI.
Integrante do Grupo de Pesquisa “Crítica Polifônica” (UnB/CNPq).
ANA CLARA MAGALHÃES DE MEDEIROS is an Associate Professor of Portuguese Literature at the
Department of Literary Theory and Literatures at the Institute of Le\ers, University of Brasília.
She holds a Level 2 Research Productivity Scholarship from the National Council for Scientific
and Technological Development – CNPq/Brazil. She coordinates the Research Project “We
Others as the Future: Aesthetic Interlocutions and Traces of the Empire in Ibero-Atlantic and
Afro-Diasporic Literatures,” funded by the Foundation for Research Support of the Federal
District (FAPDF). This project brings together researchers from Brazil, Angola, Colombia, Italy,
Mozambique, and Portugal to explore Portuguese Language Literatures of the 20th and 21st
centuries. Additionally, she is a member of the “Polyphonic Criticism” Research Group
(UnB/CNPq).
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Sampaio
Um Jantar Muito Original
[O] convívio, o prazer de bem comer em grupo, é
menos inocente do que parece [...]; paira em volta
da mesa uma vaga pulsão escópica: observa-se
(espia-se) nos outros o efeito da comida, capta-se a
maneira como o corpo é trabalhado de dentro.
Roland BARTHES (1987: 225)
A curta-metragem Um Jantar Muito Original (2021) realizada por Leandro Ferreira
insere-se no âmbito do Projeto Trezes, uma parceria entre a RTP e a produtora
Marginal Filmes para a realização de uma série de filmes a partir, ou de adaptação,
de treze contos de autores portugueses dos séculos XX e XXI.1 A série iniciou-se na
RTP em 11 de dezembro de 2020 e contemplou os seguintes contos e autores: “Fronteira”,
de Miguel Torga (1907-1995); “A abóbada”, de Alexandre Herculano (1810-1877); “O
tesouro”, de Eça de Queiroz (1845-1900); “O ódio das vilas”, de Manuel da Fonseca
(1911-1993); “O rapaz do tambor”, de Fernando Namora (1919-1989); o conto popular
“A pereira da tia Miséria”; “O lavagante”, de José Cardoso Pires (1925-1998); “Uma
vida toda empatada”, de Mário de Carvalho; “Miss beijo”, de Lídia Jorge; “As cinzas
da mãe”, de Cristina Norton; “A morte do super-homem”, de Rui Zink; e “O sítio
da mulher morta”, de Manuel Teixeira-Gomes (1860-1941).2
Com argumento de Miguel Simal e de Leandro Ferreira, e com José Carlos de
Oliveira como produtor, Um Jantar Muito Original é apresentado na tela como uma
“adaptação cinematográfica” do conto homónimo de Fernando Pessoa / Alexander
Search, com o título “A Very Original Dinner” (1907), e foi realizado por Leandro
Ferreira.3 O ator Miguel Loureiro desempenha o papel de Sebastião Prositt (equivalente
a Wilhelm Prosit do conto homónimo de Pessoa) e Tomás Alves desempenha o papel
do Dr. Duarte Rodrigues (o equivalente, em traços largos, ao narrador, Meyer, da
narrativa pessoana) e Beatriz Barosa no papel de Madalena (mulher que não consta
do conto). Outros atores dão corpo às personagens do filme: Jorge Pinto, Rosa Bela,
Miguel Sermão, Jorge Silva, João Cabral, João Santos Silva, Lourenço Henriques,
Flávio Gil. A direção da fotografia coube a Guilherme Daniel e a banda sonora esteve
a cargo de José Carlos de Oliveira e Ricardo Pugschitz de Oliveira.
O telefilme é proposto como uma “adaptação” e não como uma inspiração do
conto homónimo de Pessoa. Veremos que não obstante as diferenças de linguagem
e de extensão, esta curta-metragem com a duração de 45 min. concretiza e dá
visibilidade a alguns dos sentidos latentes no conto pessoano. Constitui per se uma
Este artigo foi escrito no âmbito da investigação desenvolvida no Instituto de Literatura Comparada,
Unidade I&D financiada por fundos nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a
Tecnologia (UIDB/00500/2020 – https://doi.org/10.54499/UIDB/00500/2020).
1
Alguns trailers dos filmes, a lista dos respetivos realizadores e outras informações úteis estão
disponíveis em https://www.marginalfilmes.pt/
2
O argumento foi elaborado a partir da tradução do conto elaborada por Maria Leonor Machado de
Sousa e publicada em 1978, em Fernando Pessoa e a Literatura de Ficção.
3
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Sampaio
Um Jantar Muito Original
interpretação pertinente e criativa da narrativa pessoana, iluminando as elipses e os
espaços de indeterminação (na aceção de Wolfgang Iser), que constituem qualquer
narrativa e iluminando, em sentido inverso, a riqueza do conto, assim como as múltiplas
camadas geologicamente sobrepostas e o seu potencial hermenêutico.4 A introdução
de um subenredo amoroso e de uma personagem feminina de relevo (Madalena),
numa variação que Pessoa certamente repudiaria, traduz-se numa narrativa mais
dinâmica e menos sombria, aberta ao Eros, que já em Brillat-Savarin é indissociável
da comida. O filme acaba por ser um convite à revisitação desse conto pessoano de
1907, escrito em inglês, e que o autor retomou em 1915, ao traduzir o título para
português. A corporalidade dos atores do filme – perante um conto com personagens
escassas e quase incorpóreas, apesar da menção a 52 membros – dilui naturalmente
a atmosfera de mistério e de indefinição da narrativa de Pessoa, tanto mais que o
filme põe em relevo, ou desvela, pela explicitação e autocitação, alguns elementos
significativos, como é o caso da recapitulação final dos indícios disseminados ao
longo da narrativa.
Fig. 1. Um Jantar Muito Original, adaptação cinematográfica do
conto homónimo de Fernando Pessoa / Alexander Search.
Estamos perante um filme político de terror, de um terror que vai além dos
assassinatos que povoam o nosso imaginário e que amplia, quase no desfecho, o
tema do canibalismo, quer pela duplicação do mesmo quer pela sua mostração
visual, aqui numa associação triunfal entre conquista de poder e canibalismo. Esta
é, decerto, uma das razões para o recurso a marcadores de ficcionalidade a abrir e a
fechar o filme, encontrando-se também disseminados ao longo do mesmo através do
O nosso entendimento do processo de adaptação, que tem sido objeto de várias reflexões teóricocríticas, está em sintonia com a aceção geral que dele tem Linda Hutcheon, tal como é discutido (e
profusamente exemplificado) no livro A Theory of Adaptation. Citamos um trecho que oferece uma
excelente síntese do pensamento da autora: “The adapted text, therefore, is not something to be
reproduced, but rather something to be interpreted and recreated, often in a new medium. It is what
one theorist calls a reservoir of instructions, diegetic, narrative, and axiological, that the adapter can
use or ignore [...] for the adapter is an interpreter before becoming a creator” (HUTCHEON, 2013: 84).
4
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Um Jantar Muito Original
recurso à voz off do narrador. Não há (nem poderia haver) a habitual advertência,
em jeito de legenda, de que qualquer coincidência entre os acontecimentos do filme
e a realidade é pura coincidência, mas a abertura é metafílmica, na voz de um narrador
(e personagem principal, como saberemos depois), que aqui é uma espécie de alterego
do realizador-comentador. Respeitando a narrativa em flash-back de “A Very Original
Dinner”, o filme abre com a cena final do conto, com a defenestração de Prosit, a
criatura canibal inventada por Alexander Search, mas é de imediato suspensa pelo
narrador, Duarte Rodrigues: “Perdoem-me! Mas não foi assim que aconteceu, talvez
seja melhor recuarmos até ao início”.
Fica congelada a imagem de um corpo a meio da janela de guilhotina da
fachada de um prédio urbano (mas a imagem pairará na mente do espectador), e a
história recomeça com promessa de desfecho alternativo, seguindo agora uma ordem
cronológica. Na cena do fecho, há claramente a quebra da quarta parede, com o rosto
do narrador a fitar o espectador. A introdução desse distanciamento de teor brechtiano,
ou a violação dessa convenção teatral e cinematográfica na qual ancora a suspensão
da descrença, pode ser explicada em função das cenas de canibalismo do filme, agora
em dose dupla, mas diferentes na intensidade do efeito de horror provocado. Mesmo
no final (aos 44 minutos e 26 segundos), a cena de uma cabeça servida numa bandeja
– precedida por outra com caveira – e o ambiente de loucura e de total desregramento
faz justiça literal à ideia de que em momentos revolucionários rolam cabeças, mas
cria-se um efeito de surpresa quando percebemos que a personagem que mais simpatia
granjeou do público, “o bom rapaz Duarte”, o noivo de Madalena, é a que leva a cabo,
a solo, sem a motivação da vingança, o ato mais horrendo, numa superação incontestável
do mestre. Outras explicações poderão ser adiantadas para a moldura metaficcional
que a voz off do narrador ao longo do filme vai ativando, nomeadamente um certo
princípio de decorum, decorrente do facto de o filme se destinar a ser visionado em
ambiente familiar, privado, frente a um televisor e não numa sala de cinema. Para lá
de ser uma adaptação do conto pessoano, o filme é claramente inspirado na História
de Portugal, criando de imediato uma relação de familiaridade e de intimidade dos
espectadores mais cultos com os acontecimentos narrados. O clima de euforia, de
humor e de ironia, em diálogos plenos de vivacidade, bem como a relação amorosa
entre Duarte e Madalena, não faz prever a festa de loucos do final. Ao nível simbólico,
porém, a ideia de autofagia sociopolítica justifica-se plenamente.
A abertura do filme leva de imediato o público para os inícios do século XX;
lê-se: PORTUGAL 1907. AS IDEIAS REPUBLICANAS VÃO-SE IMPONDO E AS INSTITUIÇÕES
MONÁRQUICAS COMEÇAM A SER ABALADAS. MAS A SOCIEDADE GASTRONÓMICA DE LISBOA
RESISTE E APARENTEMENTE É UM DOS MAIS SÓLIDOS BASTIÕES DA MONARQUIA. Neste
momento, a banda sonora do filme é o concerto para violino n.º 2, de Shostakovitch,
o famoso compositor russo, cuja obra artística é indissociável de questões políticas e
da história da União Soviética.
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Ficamos assim a saber, ainda antes de qualquer cena, que há, como diria
Lawrence VENUTI (2001) a propósito da tradução em geral, um processo de domesticação
do texto de partida, que se manifesta no transplante da ação da Alemanha para
Portugal, com a ambientação da famosa Sociedade Gastronómica de Berlim – agora
Sociedade Gastronómica de Lisboa – na capital portuguesa, no período conturbado
que precede a implantação da República. Seguindo uma estética realista (de paredes
meias com o surrealismo), a par da toponímia, também a onomástica será portuguesa,
com exceção do nome do Presidente da Sociedade, Wilhelm Prosit, transformado no
filme em Sebastião Prosiv (com dupla grafia da oclusiva final), o que acentua o seu
estatuto de “estrangeiro” ou de outsider. A leitura politizada da narrativa (e que o
conto permite) traduz-se numa capitalização do tema da rivalidade entre as duas
fações políticas dominantes desse período crítico da história nacional, os Republicanos
e os Monárquicos, e entre as duas maiores cidades portuguesas, Porto e Lisboa.5 Os
rapazes do Porto – cuja pronúncia é uma marca identitária inconfundível – representam
a fação republicana, as forças de renovação, numa alusão à revolta militar fracassada
do Porto, em 31 de Janeiro de 1891, que traduzia o descontentamento da sociedade
portuguesa e o sentimento geral de decadência nacional. A Sociedade Gastronómica
de Lisboa representa, por seu lado, a fação monárquica, e as forças atávicas da tradição,
concentradas sobretudo na figura de um General (o General Caeiro), orgulhoso da
sua linhagem militar e dos seus nobres antepassados e com uma visão simplista da
realidade (ainda que, paradoxalmente, aliada a teorias da conspiração). Um lapso na
primeira tradução do conto pessoano (do original em inglês), em 1978, onde a
expressão “fifteenth-century” é traduzida por “Quingentésima sessão”, é sabiamente
explorada por Leandro Ferreira, ao colocar a personagem do General a evocar a
expansão marítima portuguesa, contrapondo, com nostalgia, esse tempo míticohistórico de glórias lusas ao tempo de decadência do presente, num apelo a sentimentos
nacionalistas. Os temas da decadência, da rivalidade, da traição presentes no conto
pessoano – equacionadas, numa primeira leitura, num plano mais individual(ista) e,
sobretudo, num plano artístico – têm agora uma cor acentuadamente política, com
referência explícita a figuras históricas da fase final da monarquia, como João Franco
[do Partido Regenerador] e o rei [D. Carlos].
No meio das duas fações, num lugar um tanto incerto, temos a figura algo
ambivalente, mas central, do jovem Duarte Rodrigues (Dr.), pois integrando a tal
Sociedade Gastronómica de Lisboa [SGL], e prestes a casar-se com a filha do General,
considera que o tempo é de mudanças e que todos podem ser escrutinados. A sua
A leitura política de A Very Original Dinner não será alheia aos estudos mais recentes – com destaque
para os de José Barreto e os de Carlos Pittella – sobre os escritos políticos de Pessoa ao longo da sua
vida, numa revisão radical da ideia de um Pessoa apolítico. De Barreto (ed.), veja-se, por exemplo,
Sobre o Fascismo, a Ditadura Militar e Salazar (PESSOA, 2015). E sobre os poemas políticos de Pessoa
escritos ainda em Durban, leia-se o ensaio de PITTELLA, “Chamberlain, Kitchener, Kropotkine—and
the political Pessoa” (2015).
5
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fala não pode ser mais eloquente: “São tempos diferentes, hoje em dia as instituições
já são questionadas. Todos estamos sujeitos a escrutínio. Até o Rei!”.
Assim, não faltam referências ao clima explosivo dessa época pré-República e a
sociedades secretas variadas, e há jantares e reuniões, que são o pretexto para sucessivas
alianças e conspirações, numa comprovação da tradicional aliança entre Gastronomia e
Política – de que é um excelente exemplo o episódio “In Which a Great Patriotic
Conference is Holden”, do romance Little Dorrit (livro II), de Charles Dickens, um dos
autores que também terá inspirado Fernando Pessoa. Como escreve Roland Barthes,
no ensaio “Leitura de Brillat-Savarin”, uma sociedade Gastronómica é o lugar quase
sempre privilegiado de uma prática comunitária de convivialidade e de conversação
em grupo sobre os mais diversos temas – e este filme faz justiça a esta visão (BARTHES,
1987: 226). Mas a ruidosa Sociedade Gastronómica lisboeta surge no filme como uma
camuflagem para uma organização profundamente conservadora, considerada como
o “pilar da nação”, podendo eventualmente a Sociedade Zoológica e a Sociedade
Agronómica, referidas em tom humorístico, serem alusões a muitas outras sociedades
secretas da época (e poderíamos pensar na Maçonaria, na Carbonária, etc.).6 E surge
também como o espaço natural de articulação entre a questão da originalidade em Arte
– ponto de partida do conto pessoano – com questões políticas de liderança e de atentados
ao poder (de microssociedades ou de regimes políticos). Assim, a cena inicial do
filme introduz-nos no “Problema” –, o tema em debate na sociedade gastronómica
para depois deslizar para a questão da originalidade em Arte, numa sintonia diegética
e discursiva com a primeira parte do conto pessoano. O “Problema”, o gatilho para os
conflitos internos, é o artigo do jornal “Gastronómica do Porto”, em que o Presidente
Prositt é acusado de ser uma fraude e de a Sociedade que preside ser um “lupanar”,
i.e., um atentado à boa reputação da Gastronomia. O General Caeiro não se furta às
leituras paranoides desse período e verá nesse texto de imprensa uma ameaça indireta
à Coroa e ao Império.
Neste clima profano de conspiração, dilui-se a atmosfera de mistério em torno
do indivíduo Prosit pessoano, assim como se atenuam as relações sugeridas no conto
entre primitivismo e originalidade em arte e ainda a dimensão ritualística. Há a ideia
de coletivo e de forças plurais, que levam a uma multiplicação de personagens
Refira-se que não obstante alguns investigadores e gastrónomos (como José Quitério, por exemplo)
considerarem que as sociedades gastronómicas em Portugal não tinham grande representatividade
nesse período, havia, no entanto, uma que ficou célebre e associada à implantação da República: a
Casa ou Clube dos Makavenkos, fundada/o em 1884. A este clube, responsável pelo livro editado em
1919, Memórias e Receitas Culinárias dos Makavenkos, pertenceram nomes importantes da sociedade
lisboeta como Francisco Grandella ou Ferreira do Amaral. De acordo com fontes diversas, os
primeiros Estatutos determinavam que o número de sócios não ultrapassasse o número 13 (o número
de apóstolos da última Ceia, ou Ceia Mística). Há também referências a um mordomo e cozinheiro
(entre outras funções), Josué dos Santos, célebre pelos espetáculos sensacionalistas e macabros que
dava em feiras (usando esqueletos) antes de trabalhar no Clube dos Makavenkos. Sobre o assunto,
veja-se (para lá de textos mais científicos) um artigo no Jornal Expresso (NATÁRIO, 2010).
6
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Sampaio
Um Jantar Muito Original
relevantes ao descentramento marcado da figura de Prosit / Prositt, relegado na maior
parte das cenas para um segundo plano, pois o protagonista (na aceção etimológica
da palavra) passa a ser o jovem Duarte Rodrigues (numa reinvenção de Meyer, o
narrador pessoano) – e o big close up frontal da abertura e do desfecho não engana.
O conto de Pessoa refere 52 convivas, mas, com exceção do Presidente, de Meyer e
de um outro membro, as suas presenças são fantasmáticas e destituídas de voz. A
redução no filme de 52 para 11 membros pode explicar-se historicamente em função
das normas de algumas sociedades que estipulavam que não se ultrapassasse o
número 13, ou cinematograficamente, pois o retrato hedonista do grupo, no recurso
a planos de conjunto (e outros contíguos), não seria tão eficaz e tão apelativo.
É, no entanto, interessante ver como um filme aparentemente tão diferente do
conto de Pessoa está marcado pela presença do poeta. O universo pessoano (não
apenas o conto) é citado das mais diversas formas. Atente-se nos nomes de algumas
das inúmeras personagens do filme: o General Caeiro (70 anos), Sebastião Prosiv (55
anos), o Dr. Duarte Rodrigues (28 anos), Xavier (30 anos), o Engenheiro Peres (55 anos),
O Dr. Bayard (50 anos), o Engenheiro Gouveia (45 anos), o Professor Alexandre (60
anos), o Professor Campos (50 anos), o Capitão Lencastre (40 anos), o Arquiteto Maia
(55 anos), Madalena (20 anos), Clementina, a criada de Madalena (23 anos), Ezequiel
(30 anos), o mordomo de Prosiv, as empregadas de mesa, as girls “à Moulin Rouge”,
um negro referido como “Africano”. Já os nomes daqueles gastrónomos portuenses
republicanos, Pereira Carvalho (28 anos) e Afonso Pinho (32 anos), editor e editor
adjunto, respetivamente, da “Gastronómica do Porto”, parecem totalmente alheios
à galáxia pessoana.
A relação com Pessoa não se esgota na convocação da família heteronímica
(associada aqui à monarquia, em conformidade com uma ideia dominante do poeta),
mas está presente nas “interferências” de temas, motivos e títulos alusivos à obra
pessoana em geral, como a Mensagem, o sebastianismo, o anti-catolicismo, a cidade
de Lisboa (para referir os mais óbvios) – ou já derivados dessa obra, com relevo para
o Filme de Desassossego, de João Botelho e para a estética deste cineasta.
Não é de menosprezar também a eventual inspiração dos argumentistas, para
a inserção de inúmeros trechos musicais de compositores clássicos do séc. XIX e XX,
de Beethoven a Rachmaninoff, no filme operático Os Canibais, realizado por Manoel
de Oliveira, a partir da novela homónima de Álvaro de Carvalhal.7 O desenlace do
A indicação desta possível influência prende-se com a inferência, mais do que de factos ou de
informações dos argumentistas, de que estes levaram a cabo uma exaustiva pesquisa quer sobre a
época em que decorre a ação do filme (sociedades secretas, gastronómicas, conflitos políticos, etc.),
quer sobre a obra pessoana em geral, para lá de uma leitura atenta do conto pessoano, que poderá tê-los conduzido à novela de Álvaro Carvalhal (que surge referido no estudo de Maria Leonor Machado
de Sousa, em 1978) e ao filme de Manoel de Oliveira. De resto, não faltam, nos séculos XX e XXI, filmes
que vinculam a gastronomia (e os seus excessos) ao capitalismo e ao fascismo: La Dolce Vita (1960),
dirigido por Federico Fellini; El ángel exterminador (1962) e Le charme discret de la bourgeoisie (1972),
7
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filme em estudo pode levar-nos mesmo ao conto fantástico de Carvalhal (de 1868)
onde, numa reviravolta final, as personagens rapidamente recuperam do horror de
se saberem quase-canibais (quase, pois comeram uma estátua, não um ser humano),
perante a ideia da fortuna que vão receber. Também as personagens no filme de
Leandro Ferreira, ao contrário do que acontece no conto de Pessoa, nos vão surpreender
num ato final e apoteótico de canibalismo voluntário e consciente – depois do canibalismo
involuntário e inconsciente –, que se traduziu no assassínio e deglutição de Prosiv. A
supressão do desfecho (falsamente?) moralizador e judicialista do conto de Pessoa –
que nos leva a reexaminar o ethos do narrador e a sua relação com o Presidente – não
elimina a vertente satírica da história, mas poderá levar alguns espectadores a
interrogar-se sobre a gratuitidade das cenas.
A maior divergência em relação ao conto de Pessoa – que pode dever algo
ainda a Os Canibais, novela ou filme – diz respeito à introdução de uma personagem
feminina na história (para lá das mulheres que animam os jantares), pois em nada
conforme à representação das sociedades masculinas do seu imaginário (como
aquela de que Pickwick faz parte). Embora Madalena não integre a SGL, e se mova
nas suas margens, estamos perante uma personagem atenta a tudo e que desempenhará
o papel de protetora e salvadora do noivo.
Madalena (com 20 anos) é uma figura de mulher em conformidade com um
certo espírito revolucionário dos primeiros tempos republicanos: é uma mulher
pertencente a uma classe privilegiada e, aparentemente, filha obediente, que toca
piano a pedido do pai (o General Caeiro, com 70 anos), mas provoca-o e confronta-o
sempre que pode. Tem algo da rebeldia (sem os vícios) das filhas do velho General
Sternwood, de The Big Sleep, de Raymond Chandler. Mas é, sobretudo, uma mulher
aberta a novos rumos artísticos e políticos, a experiências amorosas de risco, e que,
no papel de uma espia caseira, salvará Duarte de um golpe de traição planeado pelo
General. Os argumentistas constroem a personagem de Madalena à imagem das
“novas” mulheres do tempo da República (jornalistas e intelectuais), que lutaram
pelos direitos da mulher. Na relação com o noivo, Madalena é coquete, sedutora, mas
quando este lhe pergunta se ela quer ser a sua musa, Madalena responde evasivamente
a uma questão que a relega para um papel tradicional e passivo e reclama um papel
ativo: “Quero levá-lo a essa excelência que tanto procura”.
Madalena é também o pretexto para um tratamento mais desenvolvido do
tema da Arte e da originalidade em Arte aflorado na cena inicial. Recorde-se que
equacionada a questão política que dominará o filme, a partir do mote dado para a
conversação, i.e., do “Problema”, o general lança o tema da originalidade em arte, a
que se segue o famoso convite de Prosit(t), feito no recurso ao texto pessoano ou com
pequenas variações do mesmo, com multiplicação de indícios conducentes à decifração
ambos dirigidos por Luís Buñuel; La Grande Bouffe (1973), de Marco Ferreri; Salò o le 120 giornate di
Sodoma (1975), de Pier Paolo Pasolini.
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Um Jantar Muito Original
do enigma: “A originalidade do jantar... Não está no que vai parecer que está a ser
servido nos vossos pratos, mas naquilo que significa, no que contém. O repto que
vos lanço, é que, depois de terminado, me digam em que medida ele é original.
Garanto que ninguém vai adivinhar...”.
Os argumentistas reforçam o tratamento do tema artístico num episódio extra,
acrescentado ao conto, que poderá parecer lateral, mas que é bem conseguido e que
aglutina Poder, Arte, Gastronomia e Erotismo. E ainda Religião, em modo parodístico,
através de elementos mínimos que acabam por funcionar como citações da paródia
eucarística que tem lugar no conto “A Very Original Dinner”. Adiante-se já que a
apresentação, mesmo no fim do filme, da cabeça de Prosiv numa bandeja, traz à
memória o episódio bíblico da decapitação de São João Batista, a pedido de Salomé –
imagem que poderá levar-nos a vislumbrar em Madalena uma adjuvante ou
seguidora de Duarte. Neste quadro, o próprio tema político da traição política do
filme não exclui alusões ao tema bíblico da traição na última Ceia de Cristo.
Retomando o papel de Madalena no filme, referíamos o episódio em que que
o jovem Duarte, na cozinha da sua casa, ensina à noiva (Madalena) a arte de cozinhar,
ou melhor, a arte de partir ovos com a mestria e a destreza necessárias – indício do
engenho que mais tarde evidenciará, ao destronar Prosiv. Talvez as expectativas do
espectador (de um espectador do século XXI) de um rendez-vous explicitamente sexual
possam sair sido goradas, mas a opção pelo erotismo conjuga-se na perfeição com o
tema da gastronomia.
Num longo diálogo pregante de segundos sentidos, Madalena começa por
dizer a Duarte: “Sinto que estamos numa situação sacra... Devo ajoelhar-me?”.
Noutro momento, afirma: “Eu não digo, fala de comida como um verdadeiro artista
fala da sua obra”. Sendo erótico, o discurso é ao mesmo tempo um discurso de poder
e não apenas sobre o poder, e o diálogo entre ambos é sintetizado por Duarte, quando
sentencia: “Também aqui temos que saber domar os alimentos... Cada um tem vida
própria, como um animal selvagem”. Ou noutra fala mais explícita na crítica política:
“Para se mandar, é preciso primeiro saber fazer. É o mal de muitos líderes hoje em
dia. Limitam-se a falar, mas não se comprometem com o que dizem”.8
Madalena reforçará esta visão do mundo assente em forças de conflito e de
poder, quando refere o micro-poder exercido na esfera doméstica: “O papá dá ordens
à nossa cozinheira. Não é como o Duarte, o Duarte experimenta, suja as mãos”.
Noutro momento, Madalena pergunta a Duarte: “É isso que quer ser? Um líder?
Achei que tivesse alma de artista...”. Ao que este contra-argumenta: “Não se pode
querer ter os dois mundos?”.
Duarte Rodrigues é um homem para quem a praxis está acima do discurso e de quaisquer valores
ético-morais – situa-se, por isso, nos antípodas de figuras como Hamlet. Este comentário da
personagem também pode ser lido como uma marca de auto-reflexividade e de auto-crítica dos
adaptadores da excessiva verbosidade das personagens do filme.
8
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Um Jantar Muito Original
Fig. 2. Um Jantar Muito Original, adaptação cinematográfica.
Madalena e Duarte Rodrigues.
Sendo um episódio pleno de indícios, que deixa ver as ambições de Duarte,
num prenúncio do que sucederá mais tarde, é também aquele em que se equaciona
uma questão latente no conto pessoano: a da compatibilidade, ou não, entre Arte e
Política, i.e., da sintaxe possível entre as duas atividades (não apenas em termos
figurados). Ou seja: poderá um político ser artista e vice-versa? Numa leitura carnal
(no sentido de KERMODE, 1979), poderá simplesmente estar em causa a designação
de Arte aplicada à gastronomia.
Mas, uma das cenas mais espetaculares do filme, em termos visuais e sonoros,
parece responder a esta questão. Trata-se do longo desfile de pratos requintados, sob
a direção do mordomo Ezequiel, no sumptuoso banquete oferecido por Prositt aos
comensais. Os argumentistas preenchem a elipse no conto pessoano com criatividade
e imaginação, num apelo aos sentidos do próprio espectador, e conseguem a proeza
de evitar que a gastronomia seja subsumida na densa matéria histórica e política do
filme, sem nunca a perderem de vista. A escolha da célebre Marcha Radetzky, de
Strauss I, dá o tom festivo e de fausto e deixa no ar a nota política e militar presente
na sua génese. Já na cena do restaurante, onde Prositt faz o famoso convite aos
rapazes do Porto, os crepes flamejantes da entrada dão o mote para as palavras
inflamadas do diálogo. Nunca a gastronomia como fonte de prazer e de diversão é
descurada. Assim, a mesa gigante (que “vem” do banquete pessoano) é axial e quase
personagem em momentos-chave da história, e a arte da Gastronomia (conhecimento e
património cultural) é relembrada na oferta do livro sagrado de todos os gastrónomos
por parte de Prositt a Duarte: De Re Coquinaria.9 Passagem de testemunho, decerto.
E, quiçá, mensagem cifrada sobre a traição de que será alvo.
Ou Ars Magirica, ou Apicius Culinaris. Trata-se de um compêndio de receitas culinárias da Roma
antiga, escrito em latim e que é atribuído a Marcus Gavius Apicius (25 a.C. – 37 d.C.).
9
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Fig. 3. Um Jantar Muito Original. Chegada dos convivas
da Sociedade Gastronómica de Lisboa.
Todo o clima conspirativo de inícios do século XX é objeto de um tratamento
cinematográfico exemplar, com cuidada planificação e excelente fotografia, quer nas
cenas rodadas no exterior quer nos interiores de mansões e de um restaurante. Os
marcadores espaciotemporais (o cronótopo), que deixam antever uma aturada pesquisa
arqueológica, são dados não só discursivamente (através de longos diálogos), mas
também de forma discreta através de adereços como a moda feminina e masculina
(bengalas e chapéus), do mobiliário, da grafonola, dos candeeiros de gás ou da charrette
nas ruas de Lisboa. A origem asiática (i.e., não europeia) e a marca da pirataria sugerida
por Pessoa, do criado negro de Prosiv, (Ezequiel) é sugerida através de um simples
brinco em argola, que contrasta com os lenços e gravatas dos comensais. Por sua vez,
a penumbra, as velas (os jogos de luz e de espelhos como em Pessoa), os sussurros
das vozes, as missivas secretas, os diálogos saturados de múltiplos sentidos, criam
um efeito de mistério que se vai adensando no decurso da história. Na rua, o pesado
nevoeiro noturno e as deslocações das personagens dão uma nota messiânica que
parece estar ausente do conto. Também a banda sonora é criteriosamente escolhida
a partir de um repertório clássico que inclui peças alusivas aos tópicos da traição e
da conspiração, de que a ópera Julius Caeser (HWV 17: I Overture), de Handel é o
melhor exemplo. Outras peças, como as de Débussy e Beethoven, são utilizadas ora
como narrativa paralela (apreendida pelo espectador culto), ora como coro, ora ainda
como forma de caraterização de uma dada personagem (a irreverência de Madalena e
os atos de provocação da figura paterna surgem associados à música de Debussy). Por
outro lado, insinua-se subliminarmente, ou de forma explícita, (mesmo que seja
apenas a nível temático), através de peças como “Danse Macabre” de Liszt ou a “A
ilha dos mortos”, Poema sinfónico Op. 29, de Rachmaninoff, a relação entre Música
e Poder, entre Música e Violência/Morte. O recurso frequente ao plano picado, entre
outras razões, conjuga-se com a ideia de uma história que se inicia in ultima res e que
é a versão de um único narrador, o vencedor, aquele que se impôs a todos pela
astúcia, inteligência e perversidade. De certo modo, Duarte Rodrigues representa aqui
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o papel dos deuses greco-romanos – não do Deus católico – que manipula(m) as suas
criaturas para atingir os seus fins.
Distanciamo-nos neste ponto do perfil enigmático do narrador pessoano e da
imagem de vítima que transmite, mas as ligações ao conto manifestam-se ainda na
questão colonial. Em sintonia com esse viés histórico-político dos argumentistas,
verifica-se no filme uma amplificação deste tópico pessoano – a justificar a leitura
pós-colonialista que dele esboçou o crítico David JACKSON (2010), em Adverse Genres –,
uma mesma atribuição da fortuna do Presidente à sua vida, igualmente obscura,
passada em África (em Pessoa alarga-se o espaço à Índia e a outras colónias europeias),
um mesmo recurso a “africanos” ao serviço de Prosit(t) para levar a cabo os seus
planos macabros. Um será Ezequiel, mordomo para todo o serviço, e um outro, o
cocheiro (que não passa de um vulto), é referido apenas como o “Africano”, sendo,
aparentemente, o responsável pelo rapto e homicídio dos rapazes do Porto. O filme
reproduz os preconceitos da época em relação a África e presentes no conto “A Very
Original Dinner”: o continente onde se fazem fortunas de qualquer maneira; o
General falará de África como um lugar onde se passam coisas inomináveis, sendo
Prosiv considerado um “emergente”, ou intruso, devido ao seu passado obscuro e à
riqueza acumulada, não ao sangue azul e aos pergaminhos. Ironicamente, o nome
próprio de Prosiv, Sebastião, ativa o mito do sebastianismo, o que permitirá ao
espectador levar mais longe as interpretações políticas do desenlace (e a personagem
Madalena, com os seus presságios, poderá levar-nos a uma D. Madalena histórica,
ligada ao nome de Frei Luís de Sousa10). Num momento de charneira e de crise da
História portuguesa, entre a monarquia moribunda e o advento da República, Duarte
Rodrigues, um independente, comete o maior de todos os crimes: a destruição do
mito português da salvação. Ou, talvez, noutra perspetiva: insufla-lhe vida, ao
incorporá-lo literalmente no sangue e corpo dos comensais monárquicos. Muitas
poderão ser as leituras de um final, que não deixa de surpreender até pela escolha
da banda sonora, o Hino à Alegria, ou a Nona Sinfonia, de Beethoven – o que soará a
muitos como mais uma forma de perversidade.11
É curioso verificar como os argumentistas nunca perdem de vista o conto
pessoano, pelo que parece justificada a ideia de adaptação. Convocando de novo as
teorias da tradução, e em jeito de recapitulação e síntese, poderíamos recorrer à
tipologia de Antoine BERMAN (2001), exposta em “Translation and the Trials of the
Foreign”, para descrever as transformações operadas num texto no trânsito de uma
língua para outra, neste caso, da linguagem verbal para a linguagem cinematográfica,
Atente-se nas palavras de Madalena: “Não percebe que já tem? Não há nada para provar Duarte,
tudo o que precisa é cozinhar... para mim... Esqueça o Prositt, o meu pai, a maldita monarquia e essa
sua prometida república. Partimos, só os dois... Esqueça-os todos”.
10
Na história do cinema, encontramos no filme Orange Clock (1971), dirigido por Stanley Kubrick,
uma perturbadora associação, na figura do protagonista, Alex DeLarge, entre a Nona Sinfonia e os
temas da perversidade e da violência.
11
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num processo de inter e de transmedialidade com alterações necessárias. Dos doze
tipos enumerados, os três primeiros revelam-se de grande utilidade neste estudo: a
expansão, a clarificação e a racionalização. Escreve BERMAN: “Rationalizing and clarifying
require expansion, an unfolding of what, in the original, is ‘folded’” (2001: 282).
A expansão verifica-se no filme quer no plano diegético (como vimos) quer
no plano temporal, através da dilatação do tempo da narração. O filme não poderia
manter a sobriedade e a contenção dos processos narrativos de um conto, qualquer
que ele fosse. Em vez da intriga una e da concentração de elementos diegéticos que
conduz rapidamente ao desenlace, há aqui um desdobramento (unfold) em cadeia:
de lugares, de tempos, de banquetes e intrigas políticas. Algo análogo, mas apenas
parcialmente, ao processo de mise en abyme – pois haverá também a via da bifurcação
do enredo (como a abertura logo anuncia), conduzindo à multiplicação de episódios.
Assim, há cenas interiores e há cenas de exterior com as ruas e o nevoeiro; há dois
banquetes finais sob o mote da originalidade; há o confronto exógeno entre Monárquicos
lisboetas e Republicanos portuenses e há golpes palacianos vários no interior da
Sociedade Gastronómica de Lisboa, nomeadamente, a conspiração endógena para
destituir o Presidente e eleger (numa eleição de farsa) o jovem Duarte, com a intenção
de o destituir a breve prazo; há o confronto entre velhos e novos e o confronto entre
o Mestre (Prosiv) e o discípulo (Duarte), num ato de traição anunciado ou revelado
por este último, em jeito de fair-play. Após a questão da rivalidade entre republicanos
e monárquicos, e entre Porto e Lisboa, instaura-se a partir de dado momento o
conflito no interior da Sociedade Gastronómica entre forças conservadores e forças
de inovação no confronto de Duarte com duas figuras paternas (que o disputarão):
a de Prositt (passado) e a do General (e futuro sogro). Regista-se então uma bifurcação
no enredo: o jovem membro da SGL, mas considerado demasiado “radical” pelos
mais velhos, matará os pais, um, de forma literal e horrenda, outro de forma simbólica.
Duarte prova ser o líder, ao abalar as estruturas hierárquicas de poder e ao fazê-lo
sem ajudas externas (do Africano ou de outros). Este confronto entre velhos e novos,
que permite a leitura psicanalítica, está presente no conto de Pessoa, mas adquire
aqui outras proporções e significados.
No final, Duarte Rodrigues poupará ao espectador um trabalho de reconstrução
da diegese, quando procede à recapitulação (excedentária, reconheça-se) de frases e
imagens que eram óbvias pistas de leitura:
Eles vão sentir na pele o jantar que lhes preparo!
Vão estar presente no meu jantar em carne e osso.
Ezequiel e outro homem africano a saírem do nevoeiro.
Prositt para Pereira Carvalho: essa sua gravata é um luxo de bom gosto.
Neste aspeto, o filme parece não fazer justiça à dimensão enigmática e de jogo
inscrita no conto e que o epíteto de “joker” (Prosit), no seu duplo sentido, acentua.
Exige-se, é certo, menos do espectador do filme do que do leitor do conto. Mas a
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sombra do homo ludens não se dissipa neste trânsito da palavra para a imagem. Os
jogos perigosos não faltam e Duarte Rodrigues, que joga a última cartada de forma
apoteótica. Os argumentistas – leitores em demanda de múltiplas e diversas camadas
de “A Very Original Dinner” – um misterioso conto, que continua a sê-lo e parece
ter sido descoberto por artistas nacionais e internacionais em pleno século XXI.12
Fig. 4. Um Jantar Muito Original. A cabeça de Sebastião Prositt.
Refiro-me à adaptação teatral que dele foi feito pela encenadora austríaca Alex Riener e apresentado
no Teatro Nacional D. Maria II, em 11 julho de 2010, e a um jantar encenado, em 2020, no Espaço
Brotéria (sempre com título homónimo), com supervisão artística de Albano Jerónimo, no âmbito de
MOTEL/X, Festival Internacional de Terror de Lisboa.
12
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La Sept.
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MARIA DE LURDES SAMPAIO é Professora na Faculdade de Letras da Universidade do Porto e
investigadora do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa (ILCML). Tese de mestrado
em Estudos Anglo-Americanos sobre Ezra Pound (Universidade de Coimbra) e doutoramento
em Literatura (Literatura Comparada), na Universidade do Porto, com a tese História Crítica do
Género Policial em Portugal (1870-1970): Transfusões e Transferências, 2 vols. Áreas de investigação:
Literaturas em Língua Portuguesa (séculos XX e XXI), Tradução e Cultura / Interculturalidades,
Modernismos, Literatura Policial / Criminal, Cânone vs. Não Cânone, Censura.
MARIA DE LURDES SAMPAIO is Professor at Faculdade de Letras of the University of Porto and
researcher of Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa (ILCML). She holds a MA on
Anglo-American Studies (about Ezra Pound) from University of Coimbra and a Ph.D.
(Comparative Literature) from University of Porto (dissertation: História Crítica do Género Policial
em Portugal (1870-1970): Transfusões e Transferências). Areas of research: Portuguese-language
literatures (from 19th to 21st cent.), Translation and Culture / Interculturalities; Modernisms,
Detective / Crime Fiction, Canon vs. Non-Canon, Censorship.
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Schincariol
O Ídolo à luz das novelas policiárias
É por isso que as críticas e até as grandes críticas literárias
e artísticas têm dado tão más provas no descobrimento e
compreensão dos homens de gênio nas letras e nas artes.
O crítico compara entre si as coisas que há; o génio, porém,
traz o que não há.
“O caso Vargas” (PESSOA, [2008] 2014: [119] 111)
Sobre as marcas de autoria nos argumentos para filmes de Fernando Pessoa
Como explica Marcelo Cordeiro de Mello, o curta-metragem O Ídolo, filmado em seis
dias com câmeras de telefone celular e patrocinado por uma companhia que produz
tais aparelhos, foi lançado em 2021 e anunciado como “o primeiro filme de Fernando
Pessoa” (MELLO, 2021b: 180). Tal definição, propositada e estrategicamente ambígua,
eficiente para atrair a atenção do grande público e dos clientes ou futuros clientes da
companhia de telefonia, não pode ou deve ser lida em um sentido literal. Deve-se,
sim, atentar que o curta escrito e dirigido por Pedro Varela a partir de um dos
argumentos para filmes de Fernando Pessoa foi, na verdade, escrito – e em certo
sentido dirigido – a (pelo menos) quatro mãos, como acontece, aliás, em diferentes
proporções, com a adaptação de qualquer obra (literária) para o cinema. Num certo
sentido, como grande parte da obra editada do próprio Fernando Pessoa.
É preciso ressaltar que não há qualquer tom de crítica nessa observação.
Tampouco percebo como problemático o realizador ter lido o argumento pessoano
a partir do seu conhecimento da obra do autor; isso passa por uma dimensão
extremamente pessoal, como não poderia deixar de ser. Nos limites deste artigo,
mais produtivo do que reconhecer o entusiasmo e a responsabilidade envolvidos na
“possibilidade de ‘bater bola’” com Pessoa, como o faz Varela (apud MELLO, 2021a:
105), é questionar que Pessoa foi esse o do realizador.
É, no entanto, o próprio Varela quem insiste na possibilidade de ser fiel, de
alguma forma, ao argumento em que se baseia O Ídolo: “Fazer justiça ao que Pessoa
teria na sua intenção original, foi o meu único objetivo” (apud MELLO, 2021b: 201).
Ora, questiono-me se uma outra afirmação do realizador, em tom categórico,
não pode surpreender, tendo em conta que, pelos documentos de que dispomos até
o momento e pela diversidade dos “formatos” dos argumentos para cinema de
Fernando Pessoa – num sentido experimental do termo –, é possível cogitar que nem
mesmo Pessoa teria tido uma resposta tão certeira: “Eu mostrei a eles e eles ficaram
todos felizes porque estavam com muito medo de que o Fernando Pessoa fosse atrair
uma narrativa lenta, contemplativa, profundamente profunda. Eu sabia bem qual era
o cinema [...] que Pessoa estava a descrever para a Ecce Film” (apud MELLO, 2021b: 190;
itálicos meus).1
é o nome de uma possível produtora cinematográfica concebida por Pessoa, para a qual,
além de ter feito esboços de logotipo, o autor havia determinado um endereço exato. Segundo Patricio
1
ECCE FILM
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
329
Schincariol
O Ídolo à luz das novelas policiárias
Como quem talvez pretendesse relativizar a autoria do curta-metragem,
Marcelo Cordeiro de Mello observa que:
O Ídolo é um thriller policialesco que, embora se mantenha fiel ao espírito do texto pessoano,
ao desenvolver a ideia embrionária deixada no argumento, precisou recorrer a boa dose de
invenção, o que em alguns casos significou contradizer o argumento para melhor conformálo à sua essência, afinando-o também ao estilo criativo do próprio Varela.
(MELLO, 2021b: 180)
São várias as questões levantadas por essas considerações: “policialesco” definiria
somente O Ídolo, ou também “Note for a thriller, or film”, argumento em que o curta
se baseia? Deve-se, aqui, atentar que nem todo “thriller” é necessariamente um
híbrido do gênero policial. O que significaria, em termos mais concretos, “espírito
do texto pessoano”? Que particularidades – ou limitações – do argumento em
questão teriam tornado necessário que se recorresse a “boa dose de invenção”? Nesse
sentido, de que fontes ou referências viria a inventividade de Varela ao preencher as
supostas lacunas do argumento original? Mais ainda, e englobando todas essas
questões, como seria possível contradizer um argumento criado por determinado
autor para melhor conformá-lo à essência de um filme – que, como vimos há pouco,
pretende ser fiel à ideia original desse autor – e ao mesmo tempo afiná-lo ao estilo
criativo de um diretor que pretendesse adaptá-lo? Temos aqui algumas questões que
nortearão a discussão que se segue.
Não pretendo, com isso, questionar o valor ou a pertinência das observações
que acabamos de acompanhar. Deve-se mencionar, aliás, que Mello dedicou anos ao
estudo dos argumentos para filmes de Pessoa, tendo a oportunidade de entrevistar
Pedro Varela e, com isso, acessar detalhes ou nuanças de sentido que nem sempre
se traduzem na transcrição de uma entrevista. Assumindo estrategicamente uma
posição mais distanciada, atento à tensão entre respeitar e alterar o argumento de
Pessoa, tensão essa que também transparece na dificuldade em tratá-lo de forma mais
objetiva ou assertiva, dificuldade que é suavizada, como procurarei mostrar, quando
se atenta para a estética com a qual os argumentos pessoanos dialogam, e a partir
qual ganham (um novo) sentido.
Ao se acompanhar o processo de adaptação envolvido na realização de O
Ídolo, tendo como principal referência a entrevista concedida por Varela a Mello,
percebe-se, da parte de ambos, uma intenção, consciente ou não, de promover
fluência entre o curta-metragem – e, num outro nível, o argumento original – e a vida e
a obra de Fernando Pessoa. É o que se verifica, por exemplo, nas seguintes passagens,
que, apesar de constituírem um conjunto um tanto extenso, são de leitura imprescindível
para que o presente artigo se desenvolva com mais clareza.
FERRARI e Claudia J FISCHER, não se sabe se a ECCE FILM envolveria, necessariamente, a produção, a
distribuição e a exibição de filmes (2011: 30).
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
330
Schincariol
O Ídolo à luz das novelas policiárias
Embora seja um thriller – portanto um filme cuja linguagem está bastante distante de cinemas
considerados “poéticos”, por exemplo, os de Bergman, Tarkóvski, Antonioni ou Kieslowski
– há em O ídolo diversos acenos à obra e à vida de Pessoa. O filme se inicia com o traçado da
caligrafia da carta de Albert Soares que, numa metáfora visual poética, alude ao sinuoso
desenho da estrada de Sintra: o espectador familiarizado com a poesia pessoana pensará
imediatamente em Álvaro de Campos “Ao volante do Chevrolet pela estrada de Sintra”.
Naturalmente, o nome do personagem Albert Soares – autor da carta – é uma fusão entre os
nomes dos heterônimos Alberto Caeiro e Bernardo Soares. O topos da escrita epistolar também
remete a Pessoa, que não apenas foi autor de uma profícua e interessante correspondência,
mas que também fez do tema das cartas um assunto recorrente em sua poesia: “Todas as
cartas de amor são ridículas”.
(MELLO, 2021b: 184)
Chama a atenção, logo de cara, o fato de o diretor ter escolhido fazer um filme de época – o
que, naturalmente, contrasta com o fato de as filmagens terem sido realizadas com câmeras
de telefones celular [sic] de última geração: esta tensão entre moderno e arcaico, aliás, é bem
pessoana, e aparece, por exemplo, na oposição entre os heterônimos Álvaro de Campos (com
suas odes futuristas) e Ricardo Reis (com sua poesia de inspiração romana).
(MELLO, 2021b: 187)
Os escritos de Pessoa para o cinema são praticamente todos calcados na ideia do falso e do
fingimento – um dos temas mais importantes e definidores da obra do “poeta fingidor”
Fernando Pessoa.
(MELLO, 2021b: 193)
Observa-se que a forma como o espectador interpreta cada personagem vai sofrendo mudanças
ao longo do filme, o que remete às metamorfoses pessoanas, tanto nas diferentes maneiras
como sua obra foi, é e será lida, quanto no jogo de simulação e despersonalização em que o
poeta se transforma em seus heterônimos.
(MELLO, 2021a: 103)
Na altura em que Pessoa concebe seus thrillers marítimos, já existem filmes inspirados no
acidente do Titanic, em 1912: é o caso de Atlantic (1929). Não deixa de ser irônico que, bem
mais tarde, em 1997, o filme marítimo Titanic seria um dos maiores sucessos de bilheteria da
história do cinema – o que mostra que Pessoa teria tido uma intuição correta ao escolher o
cenário marítimo para o cinema comercial que idealizou.
(MELLO, 2021a: 104)
Das palavras de Mello podemos passar às de Varela:
O cinema sendo um media das histórias, e ele [Pessoa] sendo um homem que criava histórias,
ele pensou talvez: “Eu sei fazer isso. Eu posso vir a fazer isso. Eu posso fazer filmes. Eu posso
fazer histórias, porque isso é o que eu faço”. Ele criava personagens, não é? Os heterônimos
dele não são mais do que dezenas de personagens que ele cria. Nós fazemos isso no roteiro.
Você abre o roteiro, você cria personagens, e tem que buscar a voz para cada um deles. Então
eu acho que ele se sentiu [...] vocacionado a querer fazer isto
(apud MELLO, 2021b: 191)
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Schincariol
O Ídolo à luz das novelas policiárias
Podemos certamente ler a frase final de O ídolo pelo prisma da poesia pessoana: “Somos todos
vítimas de nós mesmos, dos nossos vários eus”. Esse é talvez o mais evidente aceno a Pessoa.
(apud MELLO, 2021b: 85)
É preciso atentar que nem todos os elementos identificados como pessoanos nas
passagens que acabamos de citar encontram-se em “Note for a thriller, or film”. É o
caso, por exemplo, da mencionada carta de Albert Soares e da cidade de Sintra. Quanto
aos demais, é necessário questionar se seriam tão claramente identificados como
pessoanos caso o argumento em questão não tivesse sido assinado por Pessoa e, num
caso ainda mais extremo, se não fosse certo que pertencessem ao espólio do autor.2
O que há, mais do que marcas de autoria evidentes, é um elemento comum:
o diálogo com a estética da ficção policial.3 Como será possível acompanhar mais à
frente, trata-se, especificamente, da tradição das narrativas detetivescas do tipo
enigma ou whodunit, comumente associadas à chamada Golden Age of Detective Fiction
(anos de 1920 e 1930). De modo assumidamente provocador, defendo que os argumentos
para filmes escritos por Fernando Pessoa poderiam ter sido escritos – como planos
para narrativas policiais / detetivescas – por qualquer autor dessa mesma tradição.
E não se dá ao acaso que é com essa mesma tradição que Pessoa dialoga ao escrever
suas novelas policiárias e ao tecer considerações teóricas sobre o gênero no ensaio
Detective Story.4
No contexto do presente artigo, sempre que me referir, de modo geral, aos argumentos para cinema
escritos por Fernando Pessoa, terei em mente “Note for a thriller, or film”, “Note for a silly thriller. |
or for a film” e “Half plan of play or film”, publicados em Argumentos para Filmes (PESSOA, 2011). Por
meio de esta publicação, pode-se ter acesso aos escritos pessoanos relacionados ao cinema. Além dos
próprios argumentos, incluem-se apontamentos críticos e/ou biográficos sobre cinema, projetos em
que de alguma forma o cinema está envolvido, além da correspondência em que se faz menção ao
cinema. Em anexo, na mesma edição, encontra-se ainda documentação sobre cinema na Biblioteca
Particular de Fernando Pessoa, como títulos de livros, artigos e resenhas, filmes anunciados em jornais, e
os números da revista presença em que Pessoa publicou e em que se faz alguma referência ao cinema.
2
A expressão “ficção policial” traduz normalmente o conceito mais geral de “crime fiction”, gênero
em que a figura do detective, ainda que comumente subentendida, nem sempre é primordial, ou
mesmo presente. No escopo deste artigo, ao tratarmos da discussão teórica sobre o gênero policial
desenvolvida por Fernando Pessoa, “ficção policial” corresponde à noção mais particular de “detective
fiction”, rigorosamente utilizada para a ficção policial em que a figura do detetive é central, como é
o caso das séries Byng e Quaresma, e também da tradição britânica com a qual Pessoa dialoga.
3
Novelas policiárias refere-se exclusivamente à literatura policial escrita por Fernando Pessoa,
independentemente do detective ou investigador que se tenha em consideração. Como explica
Miraglia, a designação “novelas policiárias”, ausente dos textos teóricos de Pessoa sobre a ficção
policial e que substitui o sintagma “romance policial”, aparece num artigo publicado na revista Fama,
em março de 1933. Nele, Pessoa traduz assim “detective stories” e com referência a Chersterton
(MIRAGLIA, 2018: 411-412). Não faz parte deste artigo uma discussão sobre os subgêneros no universo
do que se poderia chamar, em termos mais abrangentes, de gênero policial. Refira-se ainda que nos
argumentos para filmes escritos por Pessoa, “thriller” é um termo usado de forma solta e um pouco
descompromissada, referindo-se possivelmente aos momentos de tensão ou aos “twists” das narrativas.
4
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
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Schincariol
O Ídolo à luz das novelas policiárias
Ler os argumentos de Pessoa sem que se os desvincule do seu interesse pelo
gênero policial, da literatura que praticou e de suas considerações teóricas sobre o
gênero, possibilita que se redimensione a forma como esses argumentos têm sido
tratados, apresentando uma hipótese alternativa de leitura. No caso de “Note for a
thriller, or film”, permite que se reavalie a forma como este foi adaptado para o
cinema por Pedro Varela, com a única intenção de lançar outra luz sobre o trabalho
do realizador, do qual já tratou, extensivamente, Marcelo Cordeiro de Mello. Afinal,
também é possível uma leitura que parta dos caminhos e das direções apontados
pelos próprios argumentos, com o propósito de complementar outras anteriores.
Minha intenção é levantar questões de adaptação e execução que os argumentos
colocam, tendo em conta que um argumento, ainda que não realizado em sua forma
fílmica, pode fornecer indicações precisas e concretas sobre como deve ser lido e/ou
adaptado para cinema, como é o caso, inclusive, daquele que deu origem a O Ídolo.
Em termos práticos, contextualizar os argumentos para filmes de Fernando
Pessoa em meio a sua produção policial significa enfrentar com outros olhos o
aspecto traiçoeiramente despojado desses textos, o uso e a manipulação, num
sentido experimental do termo, de elementos e procedimentos hoje percebidos como
meros clichês das narrativas policiais do tipo mistério, e, sobretudo, a aparente e um
tanto incômoda ausência de marcas de autoria imediatamente reconhecíveis como
pessoanas, que talvez justificou, num sentido último, o processo de adaptação realizado
por Varela, que fora incumbido de realizar um filme comercialmente viável e que
fosse inquestionavelmente identificado como um filme de Fernando Pessoa. A esse
respeito, a contextualização a que me refiro possibilita ainda identificar um novo
sentido para o termo “comercial”, inevitável quando se trata das referências ao
cinema da parte de Pessoa e dos seus projetos envolvendo tal forma de arte.
Por fim, é preciso esclarecer que não pretendo tecer conjecturas sobre as obras
cinematográficas que teriam influenciado a escrita dos argumentos para cinema de
Pessoa. Tal tarefa, pela dificuldade em ultrapassar o nível das meras especulações,
revelaria mais sobre o meu conhecimento de cinema (policial) – incluindo minhas
limitações –, que propriamente as referências cinematográficas pessoanas.
A dimensão “comercial” em Fernando Pessoa
Não constitui novidade que Fernando Pessoa era um ávido leitor e apreciador de
narrativas policiais, particularmente da tradição britânica de narrativas detetivescas
do tipo whodunit.5 Tal preferência implicava, inclusive, reconhecer que a reputação
Além disso, thriller (normalmente traduzido como suspense) é um gênero híbrido, que se cruza com
vários outros, dentre eles o próprio gênero policial.
Uma versão mais completa e detalhada das considerações sobre as novelas policiárias que se seguem
nesta seção encontra-se em SCHINCARIOL (2023b).
5
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
333
Schincariol
O Ídolo à luz das novelas policiárias
do gênero entre os intelectuais não era das melhores.6 Muito embora a produção
policial seja relativamente menos conhecida ou estudada no conjunto da obra publicada
de Pessoa, não se pode afirmar que seu interesse pelo gênero seja periférico. Transcende,
como foi apontado, o campo da literatura, verificando-se também na escrita de seus
argumentos para cinema.
A produção de narrativas policiárias inicia-se na cidade de Durban e tem como
investigador o ex-Sargento William Byng, sendo mais atrde transposta para Lisboa,
amadurecendo e adquirindo novos contornos, tendo desta vez como protagonista o
decifrador de charadas Abílio Quaresma: “Do inglês passou para o português, os
trâmites do enredo esbateram-se a favor do raciocínio puro, o seu detetive ganhou
vida e densidade. De simples Detective Stories passou para Tales of a Reasoner, título
já revelador do que realmente lhe interessava, e depois às novelas policiárias de
Quaresma, Decifrador” (FREITAS, 2014a: 13).
Ana Maria Freitas chama a atenção para o fato de a primeira referência ao título
Quaresma, Decifrador encontrar-se num testemunho datável de 1915-1916, onde Pessoa
planeja as novelas a publicar (FREITAS, 2014a: 10). Em momento posterior, a autora
observa que “A datação possível de esquemas da série Quaresma, Decifrador indica
[...] os anos de 1913/1914 para início das duas primeiras novelas, anos decisivos na
vida de Pessoa” (FREITAS, 2016: 322).
A análise dos documentos a que teve acesso em sua investigação leva Freitas
a acreditar que a certa altura a série que tem Byng como detetive e aquela em que a
figura central é Quaresma foram trabalhadas em paralelo: “Rapidamente, no entanto,
Quaresma se sobrepôs e se tornou a única manifestação da narrativa policial pessoana
até a morte do autor, com a exceção de The Mouth of Hell [A Boca do Inferno], caso de
aproveitamento de uma oportunidade editorial que poderia abrir as portas do mercado
britânico” (FREITAS, 2016: 322). Freitas chega mesmo a concluir que a transformação
de Byng em Quaresma “acompanha a aproximação de toda a obra à língua e cultura
portuguesas”, constituindo, em sentido último, uma tentativa de desenvolver “um
gênero subdesenvolvido no panorama literário nacional”, cabendo às novelas policiárias
“ocupar o lugar de uma literatura popular superior” (FREITAS, 2016: 322). Quaresma
seria “a versão pessoana do género policial, por sua vez superior em complexidade
e amplitude de sentidos a todo o policial até então criado” (FREITAS, 2016: 322).
“Um dos poucos divertimentos intelectuais que ainda restam ao que ainda resta de intelectual na
humanidade é a leitura de romances policiais. Entre o número áureo e reduzido das horas felizes que
a Vida deixa que eu passe, conto por do melhor ano aquelas em que a leitura de Conan Doyle ou de
Arthur Morrison me pega na consciência ao colo. | Um dos volumes de um destes autores, um cigarro
de 45 ao pacote, a ideia de uma chávena de café – Trindade cujo ser-uma é o conjugar a felicidade
para mim – resume-se nisto a minha felicidade. Será pouco para tanto, é verdade. É que não pode
aspirar a muito mais uma criatura com sentimentos intelectuais e estéticos no meio português actual.
| Talvez seja para os senhores como que causa de pasmo, não o eu ter estes por meus autores predilectos
e de quarto de cama, mas o eu confessar que assim os tenho” (PESSOA, 1966: 62; BNP/E3, 20-49).
6
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Schincariol
O Ídolo à luz das novelas policiárias
O interesse de Pessoa em criar um tipo de narrativa policial comercial ou
popular viria a conduzir o projeto cinematográfico. Como penso, a mesma intenção
de produzir uma “literatura popular superior”, ou melhor, uma “versão pessoana
do gênero policial”, “superior em complexidade e amplitude de sentidos a todo
policial até então criado”, reconhece-se nos argumentos cinematográficos escritos
pelo autor, ainda que isso implique a ressignificação do termo “comercial”. É importante
notar, nesse sentido, que o interesse de Pessoa no mercado britânico não se limitava
a The Mouth of Hell. Chegou a planejar, por exemplo, publicar suas novelas policiárias
na Strand Magazine.7
Tendo em conta os argumentos para cinema de que tratamos neste artigo,
essa intenção comercial pode ser entendida como uma tentativa de criar um produto
de consumo superior que, ao contrário de render-se às tendências ou exigências do
mercado, pudesse desafiá-las, ou seja, questionar, a um só tempo, mercado, gosto
popular e tradição do gênero policial na literatura como no cinema – e, num sentido
mais amplo, as próprias linguagens literária e cinematográfica. Trata-se de uma
postura que se deixa entrever, por exemplo, nos seguintes comentários de Patricio
Ferrari e Claudia Fischer:
O ataque ao cinema de consumo rápido – considerado uma fábrica de simulacros de beleza,
mecanicamente reproduzidos e condenados a ser uma mera passagem meteórica pela memória
da humanidade – reaparece noutro fragmento de Erostratus, onde é mais uma vez reiterada a
vaidade dos seus produtos e, como tal, a impossibilidade de ascenderem a um estatuto de arte.
(FERRARI e FISCHER, 2011: 21)
O que dizer sobre como esse ataque ao cinema de consumo rápido se traduziria nos
argumentos de Pessoa, e, nesse sentido, como deveria conduzir sua leitura e/ou sua
adaptação? Trata-se de questões cuja resposta possível, como procurarei mostrar,
reside no confronto entre o sentido de “comercial” segundo Varela em sua empreitada
financiada por uma empresa de telefonia e aquele que se entrevê na relação de
Pessoa com o gênero policial.
A dimensão provocadora do cinema concebido por Pessoa é reconhecida por
Mello na passagem abaixo, na qual ela é justificada pela intenção de levar o
espectador ao mais alto grau de compreensão dos filmes:
O cinema imaginado por Pessoa provocaria e atiçaria o espectador, procurando levá-lo ao mais
elevado grau de compreensão da obra. No enredo embaralhado, a reductio ad absurdum da trama
acena constantemente com a ideia de que o cinema é ilusão – ponto de vista que Pessoa desenvolveu
em Erostratus, ao mesmo tempo em que concebia o argumento que se tornaria O ídolo. Há inclusive
fragmentos de Erostratus que utilizam o mesmo suporte (papel e tinta) em que foram escritos
Os planos do autor não se restringiam à Strand Magazine: “Pessoa planeou publicar as novelas
policiárias em livros ou livrinhos separados, de diversos tamanhos, e a preços correspondentemente diversos,
acrescentando, noutro apontamento, one per month” (apud FREITAS, 2014a: 10).
7
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Schincariol
O Ídolo à luz das novelas policiárias
os argumentos: um indício que confirma sua relação. É impossível não lembrar também do
ensaio que classifica os leitores de acordo com sua capacidade de entendimento. Embora Pedro
Varela desconheça a tentativa de Pessoa de criar essas categorizações sobre a compreensão de
histórias policiais, o fato é que o diretor soube reproduzir o ponto de vista de Pessoa que está
cristalizado nos argumentos dos thrillers. Sua proposta era fazer filmes com histórias complexas e
confusas, que estimulassem a inteligência do espectador. Fugindo à ideia do cinema comercial
visto como mera alienação desatenta, Pessoa ia na contramão, procurando extrair do espectador
o máximo de sua atenção. É instigante ver até que ponto Pedro Varela foi capaz de fazer justiça
ao texto pessoano.
(MELLO, 2021b: 194)
Pedro Varela faz justiça à proposta cinematográfica de Fernando Pessoa, que também era
guiada pelo “prazer de fazer o espectador pensar” – na contramão da ideia de um cinema
alienante e idiotizante.
(MELLO, 2021b: 195)
Concordo com Mello quanto à hipótese de o cinema imaginado por Pessoa explorar a
ideia de que tal forma de arte é uma ilusão; no sentido, porém, de que os argumentos
de Pessoa sugerem uma adaptação fílmica em que os procedimentos responsáveis
pela impressão de “realidade” são expostos, como que desmascarados, aos olhos do
espectador, numa espécie de revelação final em que aquilo a que se acabou de assistir
é posto em xeque. Quando encarados no contexto da poética do gênero policial, os
termos “embaralhado”, “complexas” e “confusas” revelam a forma como Mello percebe
procedimentos que, na verdade, dizem respeito ao modo como se exploram e se
manipulam os mecanismos da suspeita nas narrativas policiais, o que, a julgar pelos
argumentos para cinema considerados neste artigo, Pessoa faz com extrema clareza e
precisão. Como penso, a noção de “comercial” em Fernando Pessoa não se esclarece
pela dicotomia entre filmes que fazem pensar e filmes que não o fazem. A questão
para a qual tentarei oferecer uma possível resposta é a seguinte: por meio de que
mecanismos, exatamente, o cinema de Pessoa quer fazer pensar, para além da suposta
intenção de “confundir” o espectador?
A partir daqui, exploraremos o diálogo entre as novelas policiárias e o modo
de ser da ficção policial. Trata-se de um passo essencial para tornar mais clara a
relação entre os projetos literário e cinematográfico de Pessoa que envolvem o gênero
policial e, a partir daí, apresentar uma leitura dos argumentos para cinema escritos
por Pessoa, bem como uma análise das soluções propostas por Varela em O Ídolo.
As novelas policiárias e o modo de ser da ficção policial
Em seu estudo intitulado The Reader and the Detective Story, George N. Dove atenta
para aquele que acredita ser um consenso entre críticos do passado e do presente
quanto às quatro qualidades que separam as “detective stories” de outros gêneros
de ficção populares: seu aspecto transitório, ou seja, a ausência de objetivos ou
propósitos de longo alcance; seu caráter fundamentalmente intelectual; sua dimensão
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
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Schincariol
O Ídolo à luz das novelas policiárias
recreativa8, destinada principalmente a relaxar o leitor; e o fato de constituírem uma
forma literária disciplinada e delimitada (DOVE, 1997: 2).9 Este último elemento
diferenciador justificaria, como penso, a própria preocupação de Pessoa em escrever
Detective Story, ensaio fragmentário e incompleto sobre a (sua) poética do gênero
policial – escrito entre 1905-1906 e os anos de 1920,10 década esta de que datariam os
argumentos para cinema escritos em inglês e que revelam uma conexão mais direta
com o gênero policial. Mais que isso, essa mesma forma disciplinada e delimitada
explicaria sua intenção de testar, na literatura como no cinema, os limites de regras
já estabelecidas ou em vias de o ser. Em Detective Story, Pessoa define a história
policial como um exercício fundamentalmente intelectual centrado nos raciocínios
do investigador-decifrador; diferente, portanto, de uma história de mistério, exercício
de imaginação. Lidos a partir do referido ensaio, os argumentos para filmes escritos
por Pessoa levam-nos a questionar como esse exercício intelectual poderia ser transposto
para a linguagem do cinema.
Ainda quanto aos elementos distintivos das “detectives stories”, Dove explica
que o aparente paradoxo entre ler por diversão e por estimulação intelectual é
resolvido pela limitada estrutura do gênero policial, que confere interesse ao jogo ao
impor regras a ele.11
O crítico tem como foco as narrativas policiais e o seu próprio “modo de ser”,
argumentando que é a “detective formula”, que caracteriza o gênero policial –
referindo-se à tradição britânica do romance-enigma, como à americana do hardboiled –, que prevê e estabelece as regras do jogo a ser jogado pelo leitor; ainda que
observe que a leitura de narrativas policiais possa produzir leitores de policiais mais
Dove observa que essa questão deve ser tratada com considerável reserva, sendo que alguns críticos
questionam a primazia do caráter recreativo, como também o escopo delimitado desse gênero de
ficção (DOVE, 1997: 5).
8
Uma versão mais completa e detalhada das considerações sobre as novelas policiárias que se seguem
nesta seção, encontra-se em SCHINCARIOL (2023b).
9
Quanto a Detective Story, é preciso observar que Gianluca Miraglia propõe uma edição filológica de
“Essay on Detective Literature” e “The Detective Story” como conjuntos de fragmentos separados e
com datas distintas, por volta de 1906 e fim da década de 1920, respectivamente (ver MIRAGLIA, 2018).
10
Ao fazê-lo, o crítico dialoga com autores como Willard Huntington Wright – verdadeiro nome de
S. S. Van Dine –, para quem, em “The great detective stories”, a “detective story” não é ficção no
sentido convencional do termo, mas um estendido e complicado quebra-cabeça; ao passo que discorda
de John Dickson Carr, que em “The grandest game in the world” concebe as narrativas do gênero
como um duelo entre autor e leitor (apud DOVE, 1997: 3-4). Para DOVE, trata-se de um pacto e não
exatamente de uma competição, pacto este que acredita ser subjacente à “detection formula”, governando
o que o leitor pode esperar de uma narrativa: “The role of the reader is both recreational and
intellectual; the reader voluntarily accepts the limits (agrees to the rules), in order to permit the game
to be played” (1997: 3-4). Em termos mais amplos, Dove acredita que o que de fato confere um caráter
único à “detection formula” não reside primeiramente no texto, mas no modo como a “detective
story” é lida.
11
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experientes, que passam a ler tais narrativas com certos pressupostos e expectativas.12
Questionamo-nos, então, em que medida os argumentos de Pessoa pressuporiam – na
sua “economia”, no modo como deveriam ou poderiam ser lidos ou adaptados para
o cinema – essas mesmas “regras do jogo a ser jogado”, mas desta vez pelo espectador.
Ao tratar de O Ídolo, Mello analisa a forma como, no curta-metragem de
Varela, o tema do jogo é explorado. São duas as suas principais referências teóricas,
o ensaio Homo Ludens (1938), de Johan Huizinga, e o estudo Plasticidades poéticas,
escrituras picturais (2016), de Yara Silva. Baseando-se nesses autores, Mello apresenta
a seguinte definição de jogo:
O jogo é uma competição, definida por regras, que pode assumir a forma mais drástica de
uma luta ou um combate. Por outro lado, o jogo é movido pela imaginação e a procura da
diversão, ou seja, pelo impulso lúdico que seduz a mente humana desde a infância. Frequentemente, o jogo se orienta por regras que incorporam estruturas matemáticas e que recorrem a
procedimentos como a permutação, isto é, a combinação entre elementos – e que pode também
(como lembra Huizinga) criar uma condição de aleatoriedade, por exemplo, por meio de um
lance de dados. Embora muitas vezes o jogo se apresente como um simples passatempo, a
sociedade também o enxerga como algo perigoso, que pode levar ao vício e à perdição.
(MELLO, 2021a: 100)
Tal definição permite que Mello, explorando a polissemia do termo, trate dos
elementos do jogo em O Ídolo, no plano da forma como do conteúdo, aprofundando
o diálogo “que a criação cinematográfica pessoana estabelece com alguns filmes da
história do cinema – o que pode ser lido sob a ótica do jogo interartístico”. E também:
[…] o jogo intertextual que O ídolo estabelece com os outros textos cinematográficos deixados
por Pessoa. Em suma, a proposta aqui é identificar como aspectos lúdicos estruturam tanto
o texto fílmico de Pessoa quanto o thriller de Varela e, a partir daí, explorar a ideia de jogo
intertextual, propondo relações com outras obras, tanto de Pessoa quanto de outros autores.
(MELLO, 2021a: 100)
Seguindo um caminho paralelo ao percorrido por Mello, proponho que se explore
uma camada que as considerações do crítico deixam entrever, a qual se mostra mais
visível quando se esclarece o conceito de jogo13 que perpassa a argumentação de
O próprio DOVE esclarece a noção de leitor que norteia o seu estudo: “Unless otherwise indicated,
reader refers to the veteran reader of detective fiction, who has sufficient experience in literary
detection to be guided by the special qualities of the genre, such as its conventionality or its absolute
dependence upon solution” (1997: 10).
12
Dove explica que, assim como ele, Gadamer usa o termo “‘play’ almost interchangeably with
‘game’, with the exception that he gives the game special definition: play becomes a game when the
player faces some kind of opponent” (DOVE, 1997: 15). Em termos gadamerianos, esse oponente não
é necessariamente um outro jogador, no sentido literal do termo, mas algo mais com que o jogador
joga e que “responds to his moves with a countermove” (apud DOVE, 1997: 15): “In reading, this
opponent may take many forms: paradox, challenge, problem, or perhaps nothing more than the
13
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Schincariol
O Ídolo à luz das novelas policiárias
Dove, minha referência ao tratar das novelas policiárias: “When I call the detective
story a play-experience, I do not mean that everything in it is a source of fun, or that
it is not to be taken seriously” (DOVE, 1997: 15); “To speak of the detective story as a
game is not equate the term with puzzle, problem, or intellectual exercise, but rather to
assert that the narrative is built on a set of expectations that correspond to the mode
of play or game” (DOVE, 1997: 17; grifos do autor).14 Nas palavras de DOVE, “I use
the term play in the sense in which Hans-Georg Gadamer uses it, to designate a
“mode of being”, an identity independent of the state of mind of both creator and
player, an aesthetic concept that has its own proper spirit and imposes its own
special attitude” (1997: 15).15
Ao se discutir a noção de “play as an integrative frame of detective fiction”,
no sentido gadameriano, entende-se que “play” “is ‘transformed into structure’, that
is, into a mode of being marked by absence of stress, by movement that renews itself
in constant repetition, and by voluntary acceptance of tasks that are bound to makebelieve goals” (apud DOVE, 1997: 22). Além disso, “it serves to relieve the stress of the
narrative, and it is endlessly repeatable. The immanence of the play element
accounts for that peculiar capacity of detective fiction for tolerating subsequent
repetitions by other writers that would soon become outworn in another genre”
(DOVE, 1997: 22). É também nesse sentido que se explicaria, como penso, a aparente
falta de marcas de autoria e de originalidade nos argumentos cinematográficos de
Pessoa; no sentido de que a repetição de elementos e procedimentos utilizados por
outros autores – hoje percebidos como clichês – pode mascarar o que se poderia
chamar de “assinatura pessoana”, isto é, a forma como tais elementos e procedimentos
são arranjados e o modo extremo a que seu uso é elevado, com quem tentasse testar
os limites da “integrative frame of detective fiction” a que Dove se refere.
Conceber o gênero “detective story” como um jogo implica, segundo Dove,
que esse tipo de narrativa pode ser definido em termos de dois componentes ou
funções:
demands of context” (DOVE, 1997: 15). Como o autor esclarece, “What we are calling ‘context’ of
detective fiction is the generalization of the reader’s early experience of the formula, which supplies
the framework for interpretation of the signals of the text” (DOVE, 1997: 24).
“Many commentators have used the word game in a different context from the one in which I am
using it here, making the tale of detection a ‘game’ between author and reader, to determine whether
the reader can reach the solution ahead of the detective. Some commentators use the term to
designate the contest between detective and culprit” (DOVE, 1997: 19).
14
“Gadamer approaches the meaning of the word play through an examination of its metaphorical
uses and finds that what is intended is to-and-fro movement that would not produce a conclusion
(103). Play is, moreover, free of stress; it may involve considerable effort, but it is what would in the
1990s be called a no-sweat experience (105). The third quality, says Gadamer, is that the player
voluntarily assumes special tasks with make-believe goals that give meaning to the play (107)” (apud
DOVE, 1997: 16-17)
15
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Schincariol
O Ídolo à luz das novelas policiárias
First, there must be definitional rules that do not simply regulate the playing of the game but
make it possible for the game to be played. Such rules would provide limits or frames within
which innovation could take place, plus pre-understandings and defined tasks. Second, there
must be a definition of the game in terms of foreground-background, space, and its identity
in terms of its own history and its place among other games, its “mystique”.
(DOVE, 1997: 19)16
De acordo com o conceito de “jogo” apresentado por Dove, o leitor assume o papel
de um espectador interessado, que é livre para aceitar ou recusar os desafios das
histórias, evento em que a graça do jogo está no ato de jogar. Tais convites, como
acrescenta o crítico, podem ser aceitos ou declinados sem qualquer dano à satisfação
da leitura.
Ora, Dove observa que talvez fosse mais produtivo pensar o leitor como um
espectador envolvido que assiste ao jogo na expectativa por sua solução, mais que
um jogador participante, mesmo porque em sentido último o jogo não depende dos
esforços do leitor para ser levado ao final; não seria, portanto, um jogo em que se
ganha ou perde, mesmo porque, mais que a habilidade de chegar à conclusão antes
do detetive, o que o leitor desejaria mesmo é “a means of interpreting the problem in
the special sense in which detetive-fiction problems should be interpreted” (DOVE,
1997: 20; grifo do autor). Como Dove faz questão de ressaltar, em uma narrativa
detetivesca, a convenção exerce uma influência particularmente forte no ato de
“jogar o jogo”:
[…] as does the special drive of the plot towards the unveiling of the secret. During the reading
of a detective story especially, the traditions of the genre place upon the reader the obligation
not only to accomplish certain objectives but to accomplish them in a certain way; one does
not, for example, sneak a premature look at the solution.
(DOVE, 1997: 15)
Em princípio, as tradições do gênero impõem ao leitor certas obrigações.
Estreitamente relacionado ao conceito de “play” de que trata Dove encontrase o que o autor, apoiado em Kermode, chama de “especialização hermenêutica”17:
“The unique reading strategy of detective fiction arises from two basic structural
qualities of the genre, its persistent conventionality and its hermeneutic specialization”
(DOVE, 1997: 27):
16
“Mystique” refere-se, aqui, à estrutura subjacente do “jogo” da narrativa detetivesca (DOVE, 1997: 190).
“Primarily, the tale of detective fiction is limited by what Frank Kermode [em ‘Novel and
Narrative’] calls its ‘hermeneutic specialization’, a mode that forces the reader to interpret the text in
terms of the anticipated outcome of the story” (DOVE, 1997: 4); “Readers of detective stories, says
Kermode, are always ‘sorting out the hermeneutically relevant from all other information and doing
so more persistently than we have in other kinds of novels’” (apud DOVE, 1997: 183).
17
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Schincariol
O Ídolo à luz das novelas policiárias
The conventionality of the genre is manifested in the mass of traditions the tale of detection
has accumulated, including the set of plot conventions inherited from Poe (and, on occasion,
Hammett and Chandler) and those dozen of incidental conventions, such as the most likely
suspect, of which authors and readers of literary detection seem never to tire. The term
hermeneutic specialization, as used here, designates that tendency of a story to push the reader
on toward the solution, which is the dominant drive of the detective story.
(DOVE, 1997: 27)
A convencionalidade do gênero detetivesco seria, então, a principal fonte da ausência
de estresse, que, segundo Gadamer, caracterizaria a experiência de jogo.
Não é preciso ser um especialista ou leitor voraz de ficção policial para
perceber que as novelas policiárias de Pessoa preveem uma “hermenêutica” diversa
daquela que Dove apresenta como definidora da tradição do romance-enigma, como
também a do hard-boiled e seus desenvolvimentos. Tendo em conta os fragmentos
até o momento publicados das novelas policiárias, não se pode afirmar, nem mesmo
intuir, que tais narrativas visam a alimentar no leitor uma forte compulsão de ver no
que a história vai dar; mas esta seria, segundo Dove, uma espécie de mola propulsora
da ficção policial (DOVE, 1997: 18). A leitura das longuíssimas passagens em que
Byng e Quaresma desenvolvem seus raciocínios e de tantas outras em que o foco são
procedimentos policiais parece contradizer as palavras do próprio Pessoa em
Erostratus, quando considera que “Conciseness and a hold on the reader, which are
required in detective stories, are no less required in all forms of literature. Nothing
is gained by wearying the reader” (1967: 207; BNP/E3, 19-60r).
Por isso, o tom de quase revolta dos seguintes comentários de Maria de Lurdes
Sampaio sobre “O Caso Vargas” não se deve a uma questão de gosto pessoal:
In “O Caso Vargas” there is something monstruous, pedantic in Quaresma’s long and didactic
exposition, and in the unusual process of delaying the identification of the culprit. In this
novel, Quaresma is gripped by the vortex of his theories, lost in the labyrinth of seemingly
endless typologies, lost in the vertigo of arguments and language.
(SAMPAIO, 2008: 151)
Mas os argumentos cinematográficos de Pessoa, ao menos os que constituem o escopo
do presente artigo, quando lidos dessa perspectiva, parecem apontar para uma outra
direção, não somente pelo seu caráter sucinto e pelo foco na captação da atenção do
espectador, mas sobretudo pelo interesse em despertar neste último “uma forte
compulsão de ver no que a história vai dar”.
Peças essenciais na chamada “especialização hermenêutica”, os detetives ou
investigadores criados por Pessoa são essencialmente raciocinadores, decifradores
de charadas; o que por si só sugere serem particulares as habilidades requeridas de
um leitor que, iniciado na leitura de narrativas policiais e guiado pelos “mandamentos”
que a tradição do gênero lhe oferece, ouse acompanhá-los na posição de “codedutor”,
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Schincariol
O Ídolo à luz das novelas policiárias
ou melhor, compartilhar com eles as regras previstas pelo fair play do “jogo” policialesco
num sentido mais convencional do termo.
Tais considerações motivam a que se questione em que medida o papel dos
raciocinadores nas novelas policiárias ajudaria a compreender a função dos detetives
nos argumentos para cinema escritos por Pessoa. Posso adiantar, neste ponto do
artigo, que minha hipótese é de que o papel do raciocinador é, no cinema, transferido
para o espectador, o que não significa que, num sentido último, o caráter subversor
das novelas policiárias seja essencialmente distinto do que se verifica nos argumentos
para filmes. Trata-se, antes, de pôr em prática um mesmo tipo de intenção – a de
mais uma vez testar os limites dos códigos das narrativas policiais –, mas por meio
de mecanismos que, desta vez, explorem e potencializem as possibilidades da
linguagem cinematográfica. No cinema, o espectador seria aquele a assumir, de
forma estratégica, o papel do investigador-raciocinador. Em ambos os casos e, por
mecanismos distintos, a evolução e a “representação” dos raciocínios transforma-se,
num sentido último, no próprio enredo, fazendo com que as novelas policiárias e os
argumentos para cinema escritos por Pessoa se encontrem, a um só tempo, dentro e
fora das convenções e da lógica da ficção policial.
Fig. 1. Apontamento para identificar o conjunto
(“Film Arguments”) (BNP/E3, 2723-126v).
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Schincariol
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O caráter subversor dos argumentos cinematográficos de Pessoa
A análise que se segue parte da leitura de três argumentos para filmes escritos por
Fernando Pessoa: “Note for a thriller, or film”, “Note for a silly thriller. | or for a
film” e “Half plan of play or film”. Como observam FERRARI e FISCHER, editores de
Argumentos para filmes, que também têm em conta “The Three Floors”, estas peças
foram escritas na década do cinema mudo, atentando que o primeiro filme sonoro
da história do cinema, The jazz singer, é datado de outubro de 1927 (2011: 31).
Nas palavras de Fernando Guerreiro:
A primeira questão a colocar talvez seja a do “estatuto” destes textos. Os quatro escritos em
inglês, e datáveis da década de 20, têm a particularidade de, pelo seu aparato para-textual,
se situarem num espaço entre diferentes modalidades genológicas e de discurso: a ficção
(“Note for a silly thriller”, “Note for a thriller”), o teatro (“Half plano of play”) e o cinema
(com remissões nos quatro casos). Sintomático, enquanto marca morfológica dessa hesitação
e/ou indiferenciação, o uso, nessas determinações capitulares de género (chamemos-lhes
assim), das conjunções or [ou] (“Note for a silly thriller.| or a film”, etc) e if [se] (“if this be a
film, can be easily visualized”) (doc. 1): o que, para lá da hesitação quanto ao modo/registo
desses textos – dado já em si interessante na própria medida em que manifesta uma ideia
não-autónoma, impura, de cinema –, nos remete para uma concepção mais “recuada”, em
tudo diferente daquela que encontramos nos autores da presença.
(GUERREIRO, 2011: 173)
Sem discordar das considerações de Guerreiro, não descarto a hipótese de que o uso
de conjunções a que se refere poderia ter em mente a linguagem e os elementos que
são internos aos argumentos propriamente ditos, ou então os limites desse formato
e as suas possíveis funções, mais que propriamente um diálogo mais profundo e
compromissado com outros gêneros e discursos.
Talvez essa concepção mais “recuada” de cinema possa bem refletir a atitude
do próprio Pessoa ao ser solicitado que respondesse ao tão referido inquérito sobre
cinema na presença (PESSOA, 2011: 11-13): a de quem acredita que essa concepção
deve ser experimentada e apre(e)ndida na prática, mais que sintetizada em observações
de ordem teórica, ainda mais na forma de um mero inquérito. Aponta para essa
mesma direção o fato de que, ao elaborar (e experimentar com) suas novelas policiárias,
Pessoa muitas vezes não segue as “regras” que ele mesmo formulou no ensaio
teórico Detective Story (SCHINCARIOL, 2023a; 2023b).
É inevitável reconhecer o caráter conciso dos argumentos escritos por Pessoa,
ainda que a concisão seja uma marca dos argumentos cinematográficos – sobretudo
se comparados aos roteiros – e não haja um único modelo a ser seguido em termos
de formatação ou número de páginas. O minimalismo de que se trata, no entanto,
está longe de ser um defeito, mesmo porque um olhar mais atento torna menos
provável a hipótese de que sejam lacunares. Trata-se, como penso, de atentar para
as razões por trás do que se determina e do que se deixa em aberto.
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A ideia comum de que um argumento representa a história começando a
tomar forma faz sentido quando se o considera um dos primeiros passos – quando
não o primeiro – até o produto final, ou seja, a execução de um filme. Nos argumentos
escritos por Pessoa detecta-se uma urgência em marcar certas decisões com absoluta
clareza, levando-nos a acreditar que, ao redigi-los, as decisões em relação à história
e ao seu desenvolvimento haviam todas sido tomadas, e que não haveria – ou deveria
haver – concessões a esse respeito. Ao contrário do que se poderia pensar, são bastante
inflexíveis, refratários a “alterações”. E com isso não pretendo simplesmente atentar
que tais argumentos possuem começo, meio e fim; mas sim que apontam para certas
convenções que fazem sentido dentro das regras que norteiam a literatura policial
que Pessoa tem como referência, ainda que esse diálogo não se faça de forma direta
ou explícita. Com uma grande diferença, porém: a “hermenêutica” a que me refiro
e que conduziria a leitura dos argumentos para filmes de Pessoa não seria (exatamente)
aquela estabelecida pela tradição, mas aquela que se define pelo questionamento
dessa mesma tradição, e que conduz (ou deveria conduzir) à leitura das novelas
policiárias. Trata-se de uma outra forma de perceber a superposição entre os projetos
literário e cinematográfico de Pessoa, no que toca o gênero policial.
Ora, quando lidos à luz da ficção policial, sobretudo das narrativas de mistério
da chamada Golden Age of Detective Fiction (1920-1930), chama a atenção, nesses
argumentos, o uso de tópicos e procedimentos que, aos olhos de hoje, são fatalmente
identificados como alguns dos principais clichês das narrativas do gênero policial.
Um deles é o uso de espaços fechados em que se possam isolar vítimas e suspeitos,
como é o caso do navio em “Note for a silly thriller”, do iate em “Note for a thriller,
or film” – transformado em navio transatlântico em O Ídolo – e a soirée na casa de B
em “Half plan of play or film”. John Scaggs chama a atenção para o uso desse recurso
quando trata dos subgêneros criados pelos vários cenários e locações da mystery and
detective fiction, como o country-house mystery (do qual faria parte a variação snowbound mystery) e o locked-room mystery, “in which various ingenious methods of
committing murder in a hermetically sealed environment formed the core [este
último, convém observar, um claro favorito de Pessoa em suas novelas policiárias]”
(SCAGGS, 2005: 51). Como observa Scaggs, o country-house e o locked-room mystery e
seus derivativos são ainda evidentes na ficção policial contemporânea, ainda que
sua estrutura e sua forma sejam características de uma visão estereotipada de uma
Grã-Bretanha que não existe mais e a qual muitos escritores são relutantes em retomar
(SCAGGS, 2005: 53). Ainda que o crítico não os mencione entre seus exemplos, os
“maritime mysteries”, ou seja, as narrativas de mistério que se passam em navios de
cruzeiro ou outro tipo de embarcação, são tão frequentes, que será suficiente citar
algumas das mais conhecidas: “The ghost of John Rolling” (1924), conto de Edgar
Wallace; The blind barber (1934), de John Dickson Carr; Death on the Nile (1937), de
Agatha Christie; e Murder on the Atlantic (1940), de Carter Dickson, pseudônimo de
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John Dickson Carr. Mais recentemente, Conrad Allen, pseudônimo de Keith Miles,
é responsável por uma série chamada Ocean Liner Mysteries (1999-2007).
Não menos recorrentes, e não necessariamente quando se trata de um “maritime
mystery”, são os objetos extremamente valiosos e raros, como as pedras preciosas
de valor inestimável e os ícones, que carregam consigo o mistério de um passado
distante, de uma cultura percebida como “exótica” e, não raro, algum tipo de poder
ou maldição; o fato de esses objetos serem insubstituíveis justifica que exista comoção
em torno do seu (iminente) roubo ou desaparecimento, que a investigação – tipicamente
por um detetive – seja feita e que, num outro nível, o ocorrido deva ser relatado por
meio de uma narrativa policial. Não há como não citar, aqui, The Moonstone, de
Wilkie Collins, que, de acordo com Eliot, “is the first, the longest, and the best of
modern English detective novels” (ELIOT, 2015: 356). Há também, entre tantos
outros, “The adventure of the Blue Carbuncle” (1892), de Arthur Conan Doyle, e The
Blue Diamond (1925), de Annie Haynes.
Em relação a “Half plan of play or film”, que não se enquadra na categoria de
“maritime mysteries” e tampouco gira em torno de um objeto precioso, leva à décima
potência o ato de assumir uma identidade alheia, procedimento comum em narrativas
policiais, desde os seus primórdios aos mais recentes desenvolvimentos. São exemplos
“A Scandal in Bohemia” (1891), de Conan Doyle, e The Secret Adversary (1922), de
Agatha Christie. É desta última o incontornável The Murder of Roger Ackroyd (1926),
em que o assassino se faz passar pelo narrador. Assumir a identidade de uma outra
pessoa é o mecanismo central de um outro clássico, The Lady in the Lake (1943), de
Raymond Chandler. Mais recentemente, há Fingersmith (2002), de Sarah Waters, e
Gone Girl (2012), de Gillian Flynn.
Com o objetivo último de identificar qual seria a “assinatura pessoana” em
meio a essas convenções, atentemo-nos, num primeiro momento, para a clareza com
que os argumentos de Pessoa apresentam o desenvolvimento do enredo, sobretudo
as reviravoltas que, num próximo passo, seriam centrais num hipotético roteiro, sem
que este último seja necessariamente para uma adaptação cinematográfica. “Note
for a silly thriller. |or for a film”, por exemplo, gira em torno de incidentes ocorridos
no transporte de uma coleção de diamantes (ou algo de valor semelhante) no
Cantábria, navio que leva passageiros da América para a Europa. Além do próprio
X., milionário que transporta os diamantes, no navio se encontravam diversas
quadrilhas de vigaristas, além de dois detetives profissionais, um deles enviado pela
agência Spryer’s. Se tivéssemos de eleger o aspecto desse argumento a que Pessoa
teria dedicado maior atenção, certamente esse seria o modo como a narrativa se
desenrola, mais precisamente o jogo de identidades entre X. e um dos detetives, que
determina o desfecho da história; jogo esse que atravessa o mistério do suposto
roubo dos diamantes e confere nuanças ao procedimento central em toda narrativa
do gênero: o de ativar e manipular, estrategicamente, os mecanismos da suspeita.
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Fig. 2. Note for a silly thriller (BNP/E3, 2723-126r).
São exemplos da manipulação a que me refiro: a) as quadrilhas de vigaristas – e,
não por acaso, são diversas delas –, que desviam a atenção do leitor / espectador do
verdadeiro “culpado”; b) a amizade entre a rapariga pertencente a uma das quadrilhas
e o milionário X. – o qual lhe conta sobre os diamantes e sobre a existência de dois
detetives a bordo – confirma o fato vagamente conhecido por ela e pela quadrilha,
aguçando a um só tempo a curiosidade destes e do leitor / espectador sobre quem
seria esse detetive; c) a revelação de que X. não sabia da identidade do detetive
enviado pela agência Spryer’s coloca este último como alvo principal dessa curiosidade,
tornando a “resolução” do “mistério” menos evidente para o leitor / espectador ao
levar a crer que X. não poderia ser esse detetive. É preciso ainda atentar para a ironia
implicada pela escolha do nome Spryer’s, que significa mais esperto ou mais vivaz
– no contexto da narrativa, o que “enganou” o leitor / espectador até o final; d) o fato
de X. ter sido assaltado duas vezes torna menos provável a hipótese de que este
estaria por trás de tudo, sendo que o terceiro assalto, desta vez à cabine de Y., leva
as quadrilhas – e também o leitor / espectador – a acreditar que de fato os diamantes
estavam lá e que foram roubados, o que efetivamente não acontece. Acrescente-se
que na primeira revista às cabines, feita pela polícia, os diamantes não são encontrados,
levando a crer que o tal detetive cuja identidade X. não conhecia poderia ter executado,
de forma estratégica, o “roubo”; e que a informação de que X. esperava que de fato
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isso tivesse acontecido reforça sua “inocência”, numa tentativa de mais uma vez
descartá-lo dos possíveis suspeitos. Além disso, e depois de um motim, Bartlett,
chefe de uma das quadrilhas, toma controle do navio e organiza uma segunda
revista; o fato de mais uma vez nada ter sido encontrado continua alimentando o
suspense e o mistério, instaurados desde o início da narrativa. Quando o milionário
X. confessa que havia escondido os diamantes na cabine de Y. sem que este o soubesse,
desloca então o mistério para quem teria sabido de tal ocorrência, mais uma vez
afastando a suspeita de si mesmo, colocando-a num homem chamado Z e um outro
chamado ZZ, que teriam sido vistos por X. junto à porta de sua cabine enquanto
preparava os diamantes para serem escondidos na cabine de Y. Refira-se ainda que
o fato de Z pertencer a uma quadrilha e ZZ a outra leva Bartlett a duvidar de Z, que
era da sua quadrilha, enquanto ZZ nega que ele e Z tivessem estado perto da cabine
de X.; e que, ao final, revela-se que o milionário X. nunca estivera a bordo do Cantábria,
tampouco os diamantes, e que, na verdade, esse pseudo-X era o detetive da agência
Spryer’s, o qual consegue prender todas as quadrilhas ao chegar à Europa.
Como se acompanha, trata-se de um mistério que efetivamente não ocorreu, de
um milionário e de diamantes que nunca estiveram no navio e, mais importante, de um
detetive que, em vez de investigar e resolver o “caso”, é responsável por manipular
os mecanismos de suspeita para afastar a hipótese de que estava por trás dessa
manipulação e de que não era quem dizia ser. A própria prisão dos membros das
quadrilhas efetivamente não acontece, já que o documento assinado pelo detetive
sob a identidade do milionário X. era inválido. De uma forma ainda mais enviesada,
o detetive afirma dar sua palavra sobre como não agiria [em vez de como agiria],
observando que o milionário X., quem de fato o detetive não era, nunca voltara atrás
com sua palavra.
Em “Note for a thriller, or film”, o leitor / espectador é informado de que,
como é sabido, o Prof. A confiara um ídolo de valor inestimável ao célebre milionário
C, que partiria em breve em seu iate para a Europa, podendo assim entregar o raro
objeto a B. Como acredita o milionário C, um, se não mais, dos seus 18 convidados
provavelmente andaria atrás do ídolo. Vem daí a ideia de propor um jogo. Declara
a missão de que fora incumbido e espera que todos se unam a ele na tarefa de conduzir
o raro objeto ao seu destinatário. Sem saber o que esperar exatamente da tripulação
– não conhecia intimamente a todos –, C manda preparar vinte pacotes idênticos e
selados, um dos quais contendo o ídolo. Cada convidado receberia um dos pacotes
e teria o dever de devolvê-lo quando chegassem todos na Inglaterra. Aquele em cujo
pacote estivesse o ídolo receberia, de acordo com as regras, um prêmio de cem mil
dólares, sendo que, alternativamente, essa pessoa poderia pedir a ele o que quisesse.
Depois de todos terem recebido os pacotes, C fica com o último deles.
Como penso, a clareza e a objetividade com que “Note for a thriller, or film”
descreve os objetivos e as regras do “jogo” proposto por C, bem como as circunstâncias
em que este se dá, tem a mesma função das muitas reviravoltas meticulosamente
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encadeadas em “Note for a silly thriller. | or for a film”: desviar a atenção do espectador
da informação que poderia arruinar o impacto do desfecho da narrativa. No argumento
de que nos ocupamos no momento, alimenta-se, estrategicamente, a impressão de
tudo estar ocorrendo às claras, sem segundas intenções – impressão que vale para o
espectador, como também para os convidados de C. Em termos mais precisos, o
objetivo dessa “clareza e objetividade” é justamente desviar a atenção do fato de que
C preparara vinte pacotes, sendo que ele e os convidados somavam dezenove.
Dando sequência a “Note for a thriller, or film.”, o roteiro menciona a ocorrência
de numerosas aventuras, entre elas aquela em torno de um convidado vigarista que
se dá conta de que, sem desrespeitar as regras do jogo, aquele cujo pacote contivesse
o ídolo poderia pedi-lo a C como forma alternativa de recompensa. Não se deve ao
acaso que Pessoa tenha especificado ao menos uma dessas aventuras: ao “compartilhar”
com o espectador a constatação de que a recompensa poderia ser o próprio ídolo,
cujo valor era inestimavelmente maior que os cem mil dólares oferecidos por C, o tal
vigarista garante que o espectador esteja ciente dessa hipótese – caso não tenha por si
só chegado a ela – , o que lança certa suspeita sobre as intenções do milionário C,
sem com isso “arruinar” o desfecho da narrativa – o qual, por sua vez, poderia parecer
um tanto “forçado” ou mesmo “injustificado”, caso não se tivesse cogitado que o
milionário C estaria tramando algo.
Revela-se, então, que C nunca levara o ídolo a bordo e que propusera o jogo
somente para se divertir, como quem testasse a honestidade dos convidados. O ídolo
já havia sido transportado, um dia antes, por um amigo de C, tendo sido entregue a
B antes mesmo de o iate chegar ao seu destino final, Southhampton ou Londres.
Pessoa termina o argumento tecendo considerações sobre o modo como a
revelação teria sido feita aos convidados: C abre os pacotes, não encontrando o ídolo
em nenhum deles, quando então D, amigo que transportara o ídolo até B, entra na
sala e declara que o objeto já estava nas mãos do seu destinatário. É C quem explica
aos convidados, atônitos e indignados, que eram vinte os pacotes, sendo dezenove
o número dos que os haviam recebido; e que não seria bobo de oferecer um valor
inferior ao do ídolo, que poderia ser cobrado como forma “alternativa” de recompensa.
Só o fizera porque sabia que ninguém apresentaria o objeto. Declara ainda que
tampouco via qualquer prazer em oferecer dinheiro estupidamente.
Assim como em “Note for a silly thriller. | or for a film”, em “Note for a
thriller, or film” tem-se um mistério – em torno de com quem estaria o ídolo – que
efetivamente não ocorreu: assim como os diamantes do primeiro argumento nunca
estiveram no navio, o ídolo nunca estivera a bordo do iate. No caso deste último,
nem mesmo há um detetive. A hipótese de que os convidados de C ocupariam a
função de detetives ao especular e tecer hipóteses sobre o paradeiro do ídolo mostrase pouco provável; para tanto, seria de se esperar que, à semelhança do que ocorre
em “Note for a silly thriller. | or for a film”, o argumento orquestrasse, de modo preciso,
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os mecanismos da suspeita. Como pudemos acompanhar, “Note for a thriller, or
film”, quanto a esse quesito, não aponta para essa direção.
À superfície, ao menos, “Half plan of play or film” contrasta com o caráter
preciso e enxuto de “Note for a thriller, or film”, argumento que acabamos de analisar.
Pode-se mesmo descrevê-lo como o mais extremo dos argumentos considerados
neste artigo, no sentido de sua “arquitetura”, e sobretudo das suas ambições. Aqui
o jogo de identidades, que marca particularmente “Note for a silly thriller. | or for a
film”, é como que levado ao limite da compreensão, o que não quer dizer, como se
acompanhará, que o argumento seja confuso, ainda que se revele fragmentário. A
impressão de um “problema” cuja solução foge completamente ao controle, das
personagens como do espectador, é obtida por meio de um jogo meticulosamente
arquitetado em que o “passar-se por uma outra pessoa” é explorado de forma muito
vertiginosa.
Na passagem de “Half plan of play or film”, marcada como “I”, sabe-se que
o Marquês de A. está doente – ou sente-se doente –, mas não quer faltar ao evento
social a ser realizado na casa de B, uma soirée ou algo desse gênero. Em febre e
incomodado por não poder ir, o Marquês de A. tem a ideia de o seu criado se fazer
passar por ele, o que considera possível pelo fato de que voltara ao país há pouco
tempo, não sendo conhecido, pessoalmente, na casa de B. Como o marquês comenta,
seu criado tem maneiras tão boas como as suas próprias, se não melhores, já que
controladas, além de uma aparência aristocrática. A fala que aparece entre parênteses,
que reproduz o que o marquês teria dito ao criado, reforça que o autocontrole deste
último, para além de sua aparência aristocrática, era mesmo excepcional: “The
essence of superiority is self-control; now you are more self-controlled than I, your
very profession has taught you that better than all my education” (PESSOA, 2011: 43).
A inclusão dessa fala em discurso direto poderia ainda ser entendida como uma
forma de marcar que essa informação deveria ser necessariamente compartilhada
com o espectador, e exatamente assim; ou seja, tratando como digno de admiração
um tipo de habilidade que, como se acompanhará, causará muitos problemas. Ter
autocontrole extremo, o que aprendera com a profissão de criado, é um fato decisivo
para que a narrativa seja minimamente crível, e o mesmo pode ser dito sobre a
aparência de aristocrata.
Com alguma relutância, o criado aceita a proposta, atraído pelo fato de que
Yvonne, uma camareira, estaria na casa de B. Como o argumento sugere, as segundas
intenções do criado não são do conhecimento do marquês, o que faz crer que essas
são compartilhadas com o espectador, lançando, muito sutilmente, uma ponta de
suspeita sobre o que o criado de fato teria em mente. E é assim que termina essa
primeira passagem.
Na passagem “2”, dois amigos, C e D, visitam o Marquês de A. Então, C, que
também iria ao evento na casa de B, pergunta ao Marquês a que horas este pretendia
ir. O Marquês explica a C que não vai, diz o porquê, e acrescenta que não dirá a B
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que não irá a sua casa. Seria possível cogitar que, ao incluir, entre parênteses,
“reason?” (PESSOA, 2011: 43), Pessoa questionava-se se, na economia da narrativa, seria
apropriado revelar a C a razão de o marquês não dizer a B que não iria ao evento, como
que num momento de flagrante hesitação. Deve-se atentar, no entanto, que o marquês
não revelar a B que não iria a sua casa é condição imprescindível para que o enredo se
desenrole como Pessoa teria planejado. Revelar a C por que não diria nada a B
implicaria tornar C ciente do seu plano de enviar o criado em seu lugar, e aquilo
conduziria a narrativa por um caminho bastante diferente. Nesse sentido, é mais
apropriado encarar a suposta lacuna indicada por “reason?” como uma evidência
de que o Marquês poderia inventar qualquer razão que fosse, sem que ela interferisse
nos rumos da história. Trata-se este de mais um exemplo de como, nos argumentos
de Pessoa, “lacunar” não indica hesitação ou problema a ser resolvido posteriormente;
mas, sim, marca, pontualmente, os aspectos flexíveis, passíveis de variação, que,
como insisto, são raríssimos.
À saída da casa do marquês, D, que não tinha sido convidado, mas queria ir
à casa de B, propõe a C que poderia ir ao evento fazendo-se passar pelo marquês, já
que na casa de B nunca tinham visto este último em pessoa. Sem qualquer hesitação,
C concorda com a ideia. O diálogo em discurso direto entre C e D que então se segue
fornece o tom exato da cena, reforçando o modo imediato como C aceita a proposta,
como se passar-se por outra pessoa não trouxesse consequência alguma: “‘They
don’t know A there, do they?’ – ‘No. Why?’ – ‘Well, I could go as A, since they don’t
know him’; – ‘Good idea, do that’, says C” (PESSOA, 2011: 43). A parte “2” termina
com “But she surely will know h[i]m there” (PESSOA, 2011: 43), antecipando que o
plano de D poderia não correr bem pelo fato de uma mulher, supostamente na casa
de B, poder identificá-lo, sem ficar claro se “him” se refere a D ou ao marquês. Este
último caso parece ser o mais provável, sendo a mulher, no caso, Lady E, que aparece
logo em seguida, na parte “3”.
A parte “3” inicia com o marquês recebendo uma chamada telefônica de Lady
E, de quem está enamorado, na qual ela lhe conta que vai ao evento na casa de B.
Lamentando não poder ir, o marquês lhe explica por quê. Lady E duvida, o que
deixa o marquês nervoso, o que, por sua vez, a leva a desligar o telefone. Apesar de
não se sentir bem, o marquês pensa em ir ao evento, considerando que F, um rival
seu perigoso, estaria lá. É quando se lembra de que havia enviado o criado para se
fazer passar por ele e que este já saíra – sem saber que D também assumiria sua
identidade, do que o espectador já sabe – e de que D, que recentemente o visitara na
companhia de C, não iria ao evento. O marquês decide então ir como D ao evento.
Ao encontrar C, daria algum tipo de explicação ao amigo. Essa passagem é de
extrema importância para criar tensão e expectativa porque o fato de tanto o marquês
ir ao evento como D concretizaria uma inversão de identidades.
Entre parênteses, informa-se que o marquês confessa a Lady E o seu jogo,
contando que o criado iria fazer-se passar por ele. O que teria como objetivo evitar
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confusão acabará tendo o efeito contrário, já que a conversa com o marquês leva Lady
E, num momento seguinte, a supor que D era o criado, já que D também iria “disfarçado
de marquês”. Também entre parênteses, questiona-se se o marquês iria fazer face à
agência que pensava em enviar um detetive ao evento, ou então teria sido instruída
a enviar alguém que se passasse por um detetive, adicionando, assim, a possibilidade
de uma outra camada na confusão de identidades. Se o primeiro uso de parênteses
parece indicar o que o marquês teria dito a Lady E em uma conversa – provavelmente
por telefone –, o segundo uso sugere antecipar parte do andamento da história para
que se acompanhe, com mais clareza, para onde ela caminha.
Já na casa de B, o criado encontra-se com Yvonne, a camareira, revelando a
essa que se passava pelo marquês. A camareira informa ao criado que outra pessoa
já havia sido anunciada como o marquês – sem saber que esta pessoa era D –, o que
coloca ironicamente o criado, que já era impostor “em segredo”, na iminência de ser
visto na posição de impostor “em público”. Atônito e, uma vez dentro da casa de B,
o criado se lembra de que D não havia sido convidado para o evento. Sem saber que
D era a tal pessoa anunciada como o marquês, o criado decide se passar por D. Isso
significa que alguém se passando pelo marquês se faria passar por uma outra pessoa
que também estaria se passando pelo marquês. Diante dessa informação, o argumento
pressupõe que o espectador, já um tanto aturdido, deveria antecipar que a decisão
do criado viria a causar espanto e estupefação em D, que, num possível encontro, se
veria na situação de estar se passando pelo marquês enquanto um outro se passava
por ele. Uma informação entre parênteses, como é comum nesse argumento, adianta o
acontecimento, com a possível intenção de que se acompanhe o assunto – e também o
filme – sem que, até esse ponto, o leitor / espectador desista de tentar seguir o fio da
história, o que arruinaria o processo: “This he [o criado] does (to subsequent great
astonishment of the real Duke [outro modo se se referir a D]” (PESSOA, 2011: 44).
Sem marcação de mudança de cena – o que corrobora que a numeração ao
longo do argumento se referia mesmo às partes da história / do filme –, sabe-se que,
depois de subir no muro do jardim da casa de B, tentando entrar na festa, o marquês
– o verdadeiro – é preso por um detetive. O marquês explica ser ele mesmo, no que
o detetive não acredita. Aquele então lhe explica que enviara o criado para se fazer
passar por ele. O detetive então lhe revela que sabia que a pessoa que então se
passava pelo marquês não era o marquês, mas sim D – sugerindo que o detetive teria
concluído que D era o tal criado? Como se não se desse conta da real situação e
guiado pela vaidade, o marquês dá a entender que D havia tentado se passar por ele
porque parecia mesmo alguém distinto – o que sugere que o marquês concluíra que
aquele a quem o detetive se referia como D era de fato seu criado? Mais uma vez
reproduz-se a fala de um personagem, desta vez a do marquês, marcando o tom
irônico da narrativa.
O argumento então informa que D não queria ir ao evento como ele mesmo –
indicando que isso teria se dado por qualquer razão – “(some reason)” (PESSOA, 2011:
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45). Essa razão, no entanto, envolveria o criado – que se fazia passar por ele – em
grandes complicações, uma vez que o homem ou mulher que constitui o motivo de
D não querer ir como ele mesmo não o conhecia – sendo assim, entende-se, esse
homem ou mulher poderia acreditar que o criado era de fato D.
A última passagem desta parte introduz a informação de que o criado era um
vigarista internacional. Sabe-se que o detetive, ao ouvir que o marquês havia
enviado o criado para se passar por ele, começa a suspeitar do próprio marquês.
Tendo-se em conta que este, ao ser flagrado pulando o muro do jardim, já havia
explicado ao detetive o plano envolvendo o criado, talvez se queira dizer que o
detetive tenha finalmente se dado conta do problema ao saber, um pouco depois,
que o criado era um vigarista. O detetive prende – o ponto de interrogação em
“arrests (?)” indicaria qualquer outra possibilidade de intervenção, já que não
interferiria nos rumos da narrativa (PESSOA, 2011: 45) – ambos, o marquês (que é D)
e o verdadeiro marquês quando este entra declarando sê-lo. Deve-se notar, pelo que
se entende, que o criado, ele mesmo, não é capturado, o que torna ainda mais
questionável a atitude do detetive.
Questiona-se, neste ponto, se e como o espectador teria acompanhado esse
jogo em que, quando se refere a alguém, este alguém pode ser outro. Outra questão
essencial é se o mistério (em torno do jogo das identidades), que claramente ocorre
no nível das personagens, se reproduz no nível do espectador, já que, como o
argumento indica, este teria acesso privilegiado a certas informações, ao acompanhar
cenas em que somente algumas das personagens fazem parte, por exemplo. A
passagem que descreve a captura dos “dois marqueses”, a qual tem ar de fim de
história, dialoga, sobretudo em razão de certas referências e personagens em
comum, com outros documentos, sugerindo uma possível intenção de estender de
alguma forma a narrativa, ou então de complementá-la de alguma forma, de
explorar ainda mais o jogo de identidades.
No documento incluído como parte de “Half plan of play or film” e que
recebe o irônico título de “The Multiple Nobleman”, acompanha-se um diálogo,
desta vez em português, entre duas personagens femininas, em que se comenta
sobre como se determina a vida e o caráter de um homem, como acredita uma delas,
como a ensinaram na aula de história, “sommando os factos que os definem”
(PESSOA, 2011: 46). Refere-se a um homem que se destaca dos demais, nobre, leal e
destemido, qualidades essas que teriam sido reconhecidas por uma dessas senhoras,
guiada pela intuição feminina. Tratar-se-ia este de um “verdadeiro Homem”
(PESSOA, 2011: 46). Umas das senhoras envolvidas no diálogo afirma que esse
Homem “não era o Marquez de A. que estava lá,” (PESSOA, 2011: 46), indicando que
o farsante poderia ser o criado ou D, os quais se passavam pelo marquês. Um terceiro
participante desse diálogo, supostamente o marquês, que, como se sabe, estava febril
e ainda assim foi ao evento, intervém na conversa: “– Estive com um ataque de gripe
aguda” (PESSOA, 2011: 46). A reação não é das mais agradáveis: “– O que o Marquez
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esteve foi com um ataque de immoralidade aguda. A mulher do Crespo! Parece
impossível. Para onde é que a levou?” (PESSOA, 2011: 46). Nesse ponto, questiona-se
quem seria essa tal “mulher do Crespo”. Note-se que, de acordo com a fala de uma
das senhoras, a imoralidade do marquês era atribuída a ter fugido com uma mulher
comprometida e não, como seria apropriado pensar, a este ter pedido que seu criado
se passasse por ele – o que poderia mesmo confirmar que o marquês a que se referiam
era o criado ou D; estes dois, como se sabe, estavam envolvidos com alguém que se
encontrava na casa de B: o criado com Yvonne e D com alguém que o argumento
não menciona e que o teria levado a ir ao evento sob outra identidade que não a sua.
Seria “a mulher do Crespo” a criada Yvonne, Lady E, ou uma terceira pessoa? É
possível ainda cogitar se o marquês que participava do diálogo era o verdadeiro, ou
se era um dos que se passavam por ele, o que dependeria de saber se essas senhoras
haviam encontrado pessoalmente o marquês ou os que pretendiam ser ele.
No documento “III”, publicado na sequência a este último, há um outro
diálogo, também em português, de que as duas senhoras – supostamente as mesmas
do anterior – fazem parte. Pode-se encarar esse diálogo como uma continuação do
anterior, ainda que não se possa afirmar quanto tempo depois do primeiro ele teria
se dado. Confirma-se, aqui, que as senhoras são mãe e filha – supondo serem elas as
mesmas de então. A mãe, tentando explicar o caso à filha, lança suspeita sobre quem
seria de fato aquele que pensavam ser o marquês:
Se esse rapaz fingia lá ser o Marquez de A. [essa pessoa seria o criado, já que o termo “rapaz”
não teria sido usado para se referir a D, que era um Duque] e se se disse que a Crespo [termo
que descarta a hipótese de que se referiam a Lady E] fugiu com o Marquez de A. e ela não
fugiu com este rapaz [ou seja, se o rapaz com que ela fugiu e que se passava pelo marquês
não era o criado], como tu mesma estás dizendo, então é que ella fugiu com alguém que lá
conheceram como o Marquez de A. Fugiu com este senhor, minha filha...
(PESSOA, 2011: 47)
Ironicamente, mãe e filha mostram-se mais sagazes – e mais eficientes – do que o
detetive, sobretudo a mãe, que deduz que havia um outro se passando pelo marquês –
e sabemos que era D. Num outro nível, é possível concluir que D é quem teria fugido
com a Crespo e que esta – ou seriam ela e o marido – teria sido a razão de D não
querer ir ao evento como ele mesmo.
Dando sequência ao diálogo, a filha chama a atenção para o fato de que “havia
lá um outro rapaz que se dizia Marquez de A.” (PESSOA, 2011: 47) – o termo “rapaz”
sugere que, nos comentários que a filha ouvira, as pessoas se referiam como “rapaz”
àquele que era D, um duque, se passando pelo marquês – possivelmente levados
pelo fato de saberem que o marquês enviara um criado ao evento passando-se por
ele?; “piada” que seria descartada se a filha tivesse visto D como marquês e o tivesse
reconhecido. Segue-se, então, o seguinte “esclarecimento”, em inglês e entre parênteses: “(She could not have seen him and recognized him, or then she would know the
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Duke as he when she saw him that morning) (This [referindo-se ao fato de a menina
ter visto o suposto marquês, constatando que de fato era D] only cuts out the little
joke about his valet looking a valet whereas he was the Duke)” (PESSOA, 2011: 47).
Na fala seguinte, supostamente da mãe, a senhora julga ter desvendado o
enigma: “– Ora ahi está. Se este rapaz passava por Marquez de A. [“rapaz” indicaria
que se trata do criado, ou de D, o duque, sendo identificado pelas pessoas como o
criado que teria ido ao evento passando-se pelo duque?] e ainda lá estava quando a
Crespo fugiu com o Marquez de A. [cogitando que o marquês com o qual a Crespo
fugiu – que acreditamos ser D – era outro distinto do marquês que ainda lá estava –
supostamente o criado, ao qual as pessoas se referiam como “rapaz”], é que
reconheceram o Marquez de A”. O seguinte comentário da senhora sugere que ela
se aproxima muito da solução do enigma, ainda que duvidasse da possibilidade de
sua hipótese: “– Não me parece muito possível que houvesse lá duas pessoas a fingir
de Marquez de A. Não te parece?” (PESSOA, 2011: 47). É quando uma delas se refere
a um tal de “Antonio”, nome que até então não fora mencionado na narrativa, que
saberia da verdade: “– Antonio, dize-me a verdade...” (PESSOA, 2011: 47). Este, de
quem é cobrada a solução do enigma, poderia ser, talvez, o nome do detetive, que
confessa ter perdido o controle da situação: “– Sei lá qual é a verdade. Não sei nada.
Não percebo nada. Estou completamente doido” (PESSOA, 2011: 47). Importante é
notar que o detetive, sendo ele ou não o “Antonio”, não consegue solucionar o
enigma em que se transforma o jogo de identidades. Da mesma forma que não
chegam à solução mãe e filha, num certo sentido detetives (mais espertas do que o
próprio, aliás); e não seria essa uma evidência de que a agência enviara alguém que
se passasse por detetive, como o argumento já tinha cogitado?
Há ainda um outro documento pertencente a esse mesmo argumento a
analisar, “III. 1st. scene.”. No diálogo, em discurso direto e em português, alguém
identificado como “maid” interage com um outro identificado como V, possivelmente
ao criado (“valet”). Aquela diz para V. que o havia visto às pancadas com o Crespo
– cuja mulher, como se sabe, teria fugido com alguém se fazendo passar pelo
marquês. De acordo com V., o Crespo julgava que ele era D, daí a pancadaria.
“Maid”, que dá evidências de conhecer intimamente V., acusa-o de dar desculpa
esfarrapada, dizendo que o Crespo o tinha flagrado a fazer com a esposa dele as
mesmas coisas que fazia com ela; indicando que “Maid” na verdade era Yvonne,
camareira por quem V., o criado, aceitara a proposta do marquês. Yvonne, indignada
pela traição e mal se aguentando de tanta raiva, afirma ainda que o criado teria
engambelado e iludido a mulher do Crespo, fazendo-se de marquês.
No documento final, “III.2.”, acompanha-se uma breve interação, no mesmo
formato dos diálogos que seguimos, entre A (entende-se que se trata do Marquês de
A.) e V. (identificado no documento anterior como o criado). Diante da reclamação
do marquês quanto a um barulho que ouvia, o criado, pedindo desculpas, diz-lhe,
como já seria de se esperar nesse ponto, que se tratava de uma irmã que estava zangada
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com o marido – e podemos deduzir de quem se trata. Questionado pelo marquês
sobre por que a irmã teria sentido necessidade de se zangar na sua casa, o criado
responde: “– Não tinha, senhor M., mas eu corri logo com ella” (PESSOA, 2011: 47).
Faz sentido considerar que, no argumento que analisamos, a “reviravolta final”
não se dá de forma tão clara quanto nos anteriores. Talvez mesmo os fragmentos com
diálogos em português pudessem ser lidos como tentativas de reforçar que não se
chegaria a nenhuma conclusão sobre a troca de identidades, ainda que algumas
deduções passassem muito próximo desta; ou melhor, que as personagens quebraram
a cabeça por nada, considerando-se que o criado, o vigarista internacional, saiu ileso.
Há uma possível interpretação: que Pessoa, ao estender uma narrativa que
parecia já ter chegado a um possível final cômico – com a captura do marquês
verdadeiro e do falso marquês, ficando o criado às soltas –, pretendesse de alguma
forma que o espectador experienciasse o mesmo processo de exaustão por que
passam as próprias personagens. Assumindo que os diálogos em português podem
ter acontecido algum tempo depois do “possível final” a que me referi, a intenção
poderia ser a de expressar um mistério que teria permanecido no tempo entre as
personagens, reforçando a impressão de irresolúvel. Tendo em conta os demais
argumentos analisados, minha hipótese é de que o resultado pretendido com o que
acredito consistir em um “exercício de finalizar a narrativa”, seria o de questionar a
posição privilegiada do espectador de “saber mais que as personagens”. Em outros
termos, a captura dos marqueses no “primeiro final” representaria a possibilidade
de o espectador, sabendo mais do que as personagens, ver-se na posição confortável
de ter chegado à solução de mistério.
As partes com diálogos em português, nesse sentido, relativizariam essa
mesma conclusão ao revelar ao espectador que havia mais a ser resolvido do que
este pensava. Saber se o espectador acompanhou visualmente a captura do falso
marquês ou se simplesmente teve acesso à informação de que o detetive o fizera
ajudaria a interpretar com segurança as intenções de Pessoa. O fato de o verdadeiro
marquês ter sido capturado pelo detetive quando adentrava o local anunciando
como “aquele que era quem de fato afirmava ser” pode sugerir que o espectador
poderia não saber se o impostor capturado fora de fato o criado ou D, ou seja, que
esse tenha sido um fato anunciado, mas não mostrado, o que justificaria a necessidade
do “esclarecimento” posterior. Independentemente de termos ou não essa certeza,
podemos concluir que, também no nível do espectador, não fica claro quem deveria
ser considerado o “culpado”, e não considero dever-se ao acaso que a suposta cena
final termine com o marquês e o criado, já publicamente identificado como vigarista
internacional, trabalhando em sua casa como se nada tivesse acontecido. De forma
retrospectiva, movimento esse sugerido por todos os diálogos em português, toda a
confusão poderia ter sido evitada se o marquês, em vez de dizer não ia ao evento e
enviar o criado à casa de B, tivesse simplesmente ido, mas como ele mesmo.
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A ideia de uma narrativa policial que, ao final, provoca a sensação de “não
dar no que se esperava que desse”, ou então de que “se raciocinou tanto por nada”,
como acontece nos argumentos para cinema de Fernando Pessoa aqui analisados,
não é alheia às novelas policiárias, particularmente as da série Quaresma. A força
inquestionável do raciocinador e a sua fama de decifrador infalível não impedem
que, num nível mais superficial da narrativa, sua eficácia seja questionada,
sobretudo quando se espera um desfecho típico de uma narrativa policial. A
fragilidade dos raciocínios de Quaresma e a sua inutilidade do ponto de vista
jurídico é reforçada com veemência pelo juiz em “O Caso Vargas”:
O caso é este, sr. dr. Quaresma: V.a Ex.a pensa cientificamente, e eu penso juridicamente. O
seu argumento convence toda a gente, menos um juiz. Qualquer pessoa, por esse argumento,
dá o Borges por culpado, excepto um juiz. O mais reles advogado de defesa destrói em juízo
todo esse seu esforço, que é mais que assombroso. E destrói-o com um argumento
cientificamente estúpido, mas juridicamente formidável: prove.
(PESSOA, [2008] 2014: [126-127] 116-117; BNP/E3, 2714 V2-28r)
De modo semelhante ao que acontece ao fim dos três argumentos para filmes que
analisamos, a breve nota acrescentada ao depoimento final em “O Caso Vargas”
sugere, ironicamente, que a elaboração inteligente do crime, a investigação dos policiais,
os raciocínios elaborados por Quaresma, as explicações e a autoanálise de Borges,
tudo isso teria sido em vão, ao menos de uma perspectiva prática:
Da intenção do comandante Pavia Mendes [referindo-se aos planos para um submarino]
provou-se, afinal, que envolvia um erro tendencioso num dos seus dois pontos principais. O
outro está bem, mas já havia sido inventado, um ano atrás, e por coisinha de nada, por o sr.
José Branco. O invento do Pavia Mendes resultou, pois, incomerciável.
(PESSOA, [2008] 2014: [140] 128; BNP/E3, 2715 V2-16r)
No contexto das novelas policiárias, a não resolução de um crime do ponto de vista
jurídico, pelas mais diversas razões possíveis, só vem a ressaltar que o que de fato importa
é a representação dos raciocínios do investigador-racionador, que, num sentido último,
constituem o enredo das narrativas. Em termos mais precisos, em vez de ver no que
a história vai dar até a solução do mistério, as novelas policiárias esperam que o
leitor veja no que vão dar os raciocínios do investigador-raciocinador, como se a solução
do mistério não dependesse da “trama”, mas fosse essencialmente o resultado desse
processo intelectual; ou então que neste último residisse o próprio mistério.
Quando, à luz dessas constatações, volta-se, mais uma vez, para a análise dos
argumentos para filmes escritos por Pessoa, é necessário questionar qual teria sido
o objetivo de construir mecanismos de suspeita de forma tão meticulosamente
calculada, para depois revelar que o jogo jogado nem mesmo aconteceu.
Em “Note for a silly thriller. | or for a film”, há um crime que, além de não
ter sido resolvido do ponto de vista “legal”, estritamente falando não chegou a
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ocorrer. Minha hipótese é de que o ato de “dissolver” a própria existência do mistério
tem o objetivo último de, também no cinema, reduzir a narrativa aos raciocínios do
investigador; mas desta vez, aos do espectador-transformado-em-investigador. No
nível da narrativa, aquele que se declara como detetive (pseudo-X) não é aquele a
efetivamente investigar o “mistério”. Com isso, desloca-se para o espectador o papel
de investigador-de-fato; o que reforça, como penso, a impressão ilusória (e da parte
deste) de que se encontra “dentro” do universo ficcional em que a história se passa,
como se se visse transformado em um dos peões em torno dos quais gira uma
narrativa policial. O que pretendo dizer com isso é que o argumento em questão
prevê que o espectador, “manipulado” pelos mecanismos da suspeita de que aquele
que se declara como detetive lança mão, é a quem caberia, em sentido último,
resolver o mistério – que supostamente seria o do roubo dos diamantes, crime esse
que, na verdade, não ocorre. Diferente do que comumente acontece na literatura
policial, em que o leitor num certo sentido “compete” com as habilidades intelectuais
do detetive, no referido argumento de Pessoa o espectador é ludibriado por um
detetive-que-efetivamente-não-o-é.
Acredito que algo semelhante aconteça em “Note for a thriller, or film”. Como
acompanhamos, neste argumento o mistério não se concretiza porque o ídolo nunca
estivera no iate em que C testa, por diversão, a honestidade dos convidados. Pelas
mesmas razões, tampouco poderia ter havido o roubo desse mesmo objeto. O fato
de não haver um detetive na narrativa coloca, mais uma vez, o espectador no papel
daquele a quem cabe resolver o “mistério” a partir das informações que a narrativa
estrategicamente lhe fornece. Em outro nível, essa ausência contribui para reforçar
a impressão, da parte do espectador e das personagens, de que não haveria nada
palpável com que se preocupar, seguindo aqui a infalível constatação de que onde
há detetive, haverá crime – constatação essa, aliás, que Pessoa subverte, ao seu
modo, em “Note for a silly thriller. | or for a film”.
Em “Half plan of play or film”, se o complicado jogo de identidades impede
que o detetive – como as demais personagens – chegue à “solução” do mistério, a
trajetória do criado do marquês desestabiliza o julgamento moral que poderíamos
expressar sobre quem deveria ser responsabilizado. Nesse sentido, o fato de o criado
ter saído ileso significaria falta de justiça ou o cumprimento dela? E o que dizer do
marquês, que convenientemente usou o criado e, mesmo depois de este ter sido
desmascarado como vigarista internacional, continua contando com seus serviços?
O tom de humor que percorre a narrativa contribui para que se questione se chegou
a haver de fato algum tipo de crime.
Analisado no quadro da poética da ficção policial detetivesca, o final dos
argumentos aqui analisados poderia ser encarado com uma caricatura dos possíveis
e (in)imagináveis truques de mau gosto a serem “cometidos” por um escritor,
truques esses encarados pela tradição como formas de trapacear e/ou desrespeitar o
leitor. No quadro da ficção policial (cinematográfica) concebida por Pessoa, porém,
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Schincariol
O Ídolo à luz das novelas policiárias
“desrespeitar” o espectador – e com isso “desrespeitar” a tradição – parece ser condição
necessária para que os seus argumentos para cinema ultrapassem o nível das narrativas
policiais um tanto tolas e despretensiosas.
Em “Note for a silly thriller”, “desrespeitar” o leitor significa reproduzir no
nível da narrativa – para depois desconstruir –, o mecanismo de “impressão de
realidade” de que o cinema, basicamente, se constitui; num outro nível, leva a
considerar em que medida o encadeamento dos raciocínios que a crença na existência
do mistério incita no espectador sobreviveria à própria revelação de que o mistério
que é convidado a resolver nunca existiu. Pode-se afirmar, nesse sentido, que os
argumentos para filmes de Pessoa preveem que, diante da revelação final, o espectador
confronte os raciocínios tecidos até então, e que de alguma forma se posicione em
relação a eles. Dito de outra forma, é preciso que Pessoa surpreenda o espectador
com a revelação de que “tudo se fez por nada” para que este tome consciência do
modo como tecera hipóteses e chegara a suas conclusões e, num certo sentido, de
como pôde ter se deixado ludibriar.
De uma outra perspectiva, dissolver o mistério significa, antes de mais nada,
reduzir o filme ao que ele possui de mais essencial: os raciocínios concatenados pelo
espectador-investigador; raciocínios que, uma vez destituídos, ainda que de forma
metafórica, do seu “esqueleto-mistério” – reação “retroativa” diante da constatação
de que o mistério não existiu – , são como que “apreendidos” de forma “abstrata”,
no sentido de sua existência não depender necessariamente de um caso ou mistério
a ser resolvido – trata-se de um conceito a ser discutido logo adiante. A ausência de
propósito ou sentido mais profundo que poderia ser atribuída ao processo de
experienciar o desfecho dos argumentos criados por Pessoa é, como acredito,
aparente; tão ilusória quanto o próprio cinema: afinal de contas, trata-se de um filme
que, ao “ludibriar” o espectador, torna-o mais consciente, a uma só vez, dos
mecanismos pelos quais o cinema fabrica a impressão de realidade, como também
dos elementos e fatores que o influenciam a “pensar como pensou”.
“Note for a thriller, or film” e “Half plan of play or film” apontam para essa
mesma direção. No caso do primeiro, o confronto do espectador com as hipóteses e
suposições que construíra até o momento da revelação final se dá, como vimos, por
meio de um enredo, digamos assim, mais despojado. No caso deste argumento, é
como se a revelação final tornasse o espectador mais consciente da forma como
julgou o caráter dos personagens, como se, com seu “jogo”, o milionário C
pretendesse julgar também o caráter do espectador. Quanto ao segundo, ainda que
a revelação final não se dê exatamente por uma “reviravolta” tão explícita ou
impactante, ao espectador é deixada a tarefa de julgar, segundo seus próprios
critérios, as questões morais envolvidas num complicado jogo de identidades
explorado à exaustão.
O conceito de “raciocínio abstrato”, a que me referi há pouco, torna-se mais
claro quando analisado no quadro das novelas policiárias, particularmente as da série
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Schincariol
O Ídolo à luz das novelas policiárias
Quaresma. Para tanto, é necessário recorrer às considerações de Pessoa em Detective
Story. As referências ao leitor nesse ensaio teórico sobre o gênero policial, muitas das
quais dialogam explicitamente com autores consagrados no contexto da ficção
policial, devem ser analisadas pelas lentes do objetivo que atravessa o ensaio de
modo transversal: “I wish the reader to understand that I make a great distinction
between a mystery-tale and a detective story” (PESSOA, 2016: 252; BNP/E3, 146-78r).
Para Pessoa, uma história policial, diferentemente de uma história de mistério,
é essencialmente uma história de investigação, ou melhor, “a tale of investigation, is
a mystery story, the chief interest of which lies, not in the mystery itself, but in the
investigation of it”. O autor acrescenta que “Ordinarily a tale is both―mystery story
and detective story―for the mystery exists both for the reader and the investigator;
it is, however, not essential that it should exist for the reader” (PESSOA, 2016: 238;
BNP/E3, 100-28r). Pessoa então recorre ao Austin Freeman de Shadow of the Wolf e de
Singing Bone como exemplo bem-sucedido do método de mostrar o crime a ser
cometido e depois descrever o modo como dr. Thorndyke chega à solução do mistério,
sendo que “the latter process constitutes the story, which is therefore not of mystery
but a tale of investigation or, in other words, a detective story pure and simple”
(PESSOA, 2016: 238; BNP/E3, 100-28r).
Ao tratar daquela que seria a principal diferença entre uma história policial e
uma história de mistério, portanto, Pessoa a atribui ao fato de “história policial” ser uma
história de mistério cujo principal propósito não reside no mistério em si, mas na sua
investigação. De acordo com essa distinção, os argumentos para cinema de Pessoa
revelam toda sua complexidade. Num certo sentido, “Note for a silly thriller. | or
for a film” poderia ser definida como uma história de mistério – que existe, ainda
que temporariamente, para o espectador-investigador e não para aquele que se
declara como detetive – que, ao final, converte-se em “uma história policial pura e
simples”, num sentido mais extremo que o atribuído por Pessoa às referidas
narrativas de Freeman. O que possibilita que se chegue a tal conclusão é que, ao se
revelar, ao final, que não houvera efetivamente mistério algum, o que “entra em
jogo” são os raciocínios que teriam conduzido o espectador em sua “investigação”,
e que o teriam levado à conclusão de que o mistério teria, de fato, acontecido.
Guardadas as devidas diferenças, o mesmo pode ser dito sobre “Note for a
thriller, or film”, que, num sentido estrito, não é uma narrativa de mistério, mas sim
da investigação de um suposto mistério (pelo espectador). “Half plan of play or
film” talvez seja, nesse sentido, o mais radical dos argumentos analisados. Num
nível, pode ser considerada uma história de mistério – ou seria de (também) crime? –
em que o processo de investigação se dá por meio de um jogo de identidades
vertiginoso, o qual, perpassado pelo humor, põe em xeque a seriedade do jogo e o
sentido do que é uma investigação e sua validade. Em relação aos resultados desta,
a solução “moral” não é apresentada como resolvida ao espectador, da mesma forma
que o mistério não se resolve por completo no nível das personagens.
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Schincariol
O Ídolo à luz das novelas policiárias
Dando sequência a suas observações, Pessoa atenta que investigação – que
pode ser “natural and patient, as in Mr. Wills Crofts’ novels, or superior and
scientific as in Dr. Austin Freeman’s” (PESSOA, 2016: 238; BNP/E3, 100-29r) – não deve
ser confundida com incidentes. É o que fica claro, por exemplo, na seguinte
passagem de “Note for a silly thriller. | or for a film”: “Then the gangs begin to work
one against another, and several complicated incidents arise. (This can be made
interesting by a series of liveliness, which, if this be a film, can be easily visualized)”
(PESSOA, 2011: 40). Nesse sentido, Pessoa teria deixado em aberto tais incidentes /
ocorrências simplesmente por não interferirem no que realmente importa: a noção
de “investigação”. É o que também pode ser dito sobre a seguinte passagem de
“Note for a thriller, or film.”: “Numerous complex adventures ensue during the
voyage [...]” (PESSOA, 2011: 42).
O autor esclarece que a verdadeira história policial, que é uma história de
dedução, atingiria o seu ponto mais alto e mais simples “when no investigation is
conducted”, como no conto de Poe “Purloined letter”, “where Dupin’s obtaining of
the letter is a mere postscript in the narrative” (PESSOA, 2016: 239; BNP/E3, 100-29r).
Questiono-me se não teria sido esse o verdadeiro propósito da “inversão” final dos
argumentos de que tratamos. Em “Note for a silly thriller”, como se acompanhou, a
investigação não ocorre por parte daquele que, na narrativa, se declara como detetive;
mas, sim, por parte do espectador, que tem que fazer sentido com as informações
com ele compartilhadas ao longo da intrincada narrativa. A revelação de que X. e
seus diamantes nunca estiveram no navio faz questionar se teria havido investigação,
num sentido próprio do termo, de um mistério que nunca houve. Por essa mesma
razão seria possível considerar que tampouco houve investigação em “Note for a
thriller, or film”. Já em “Half plan of play or film”, resta a seguinte questão, que aponta
para mesma direção dos demais argumentos aqui analisados: quebrou-se tanto a
cabeça para, no jogo de identidades, determinar quem eram de fato aqueles que
diziam ser eles mesmos, mas para quê?
A questão de que nos ocupamos remete ao conceito de armchair detective –
“The ideal detective story is that where facts are put before the reader and the
detective solves the problem without anything but those facts, that is to say, without
shifting from his chair” (PESSOA, 2016: 239; BNP/E3, 100-29r). De acordo com esse
conceito, é prescindível a investigação no sentido convencional do termo – visitas ao
local do crime, coleta de pistas e evidências, depoimentos de testemunhas –,
configurando-se, em vez, como atividade puramente cerebral: no caso nas novelas
policiárias, “atividade puramente cerebral” seria a sequência dos raciocínios do
detetive-decifrador; nos argumentos para filmes em questão, a sequência dos
raciocínios do espectador-assumindo-o-papel-de-investigador, com os quais este é
levado, ao final, a se confrontar.
Nesse sentido, “The tale of mystery is imaginative, the detective story is
intellectual, in its essence: that summarizes their fundamental distinction” (PESSOA,
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
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Schincariol
O Ídolo à luz das novelas policiárias
2016: 240; BNP/E3, 71-20v)18. Como já se insinua, o conceito de “história de decifração”
prevê um lugar particular para a figura do investigador-decifrador – no cinema, para
o espectador-tornado-investigador: “As the tale we are considering is based on an
intellectual problem and on its solution, it is obvious, axiomatic, that the figure of the
man who solves it must be the central figure” (PESSOA, 2016: 244; BNP/E3, 146-46v).
Isso permite cogitar que, se nas novelas policiárias a personagem central é o raciocinador,
nos argumentos de que tratamos a “personagem central” seria o espectador. O papel
central do espectador, previsto pelos argumentos, mas a ser exercido no ato de ver
o (hipotético) filme, permite afirmar que esses argumentos não são tão banais quanto
uma leitura mais descompromissada e que se restringisse exclusivamente à narrativa
poderia levar a pensar. Tem-se aqui uma forma possível de explorar a conscientização
do espectador. Questiono-me, nesse sentido, se Pessoa não estaria indiretamente
acrescentando uma quarta categoria àquelas que viriam a ser reconhecidas como
“cinema de autor”, cinema de ator” e “cinema de personagem”.
Não se pode afirmar que Pessoa esteja reinventando as regras da literatura
policial em suas novelas policiárias – tampouco em seus argumentos para filmes.
Entretanto, o caráter subversor desses apontamentos reside no grau a que conceitos
e procedimentos tidos como fundamentais na poética do gênero policial são elevados a
uma potência (bem) mais alta ou extrema; como quando o autor constata que “The
reasoning of the detective is the plot of the detective story; not as many has
conceived it, the crime that leads to the detective work” (PESSOA, 2016: 244; BNP/E3,
146-47v). Pergunto-me se Pessoa não teria almejado algo semelhante – explorar os
limites do conceito de enredo – ao conceber os argumentos aqui analisados; mas desta
vez explorando os recursos que são mais viáveis no cinema (tratando-se, como somos
levados a crer, do cinema mudo): nas novelas policiárias, representar os raciocínios
do decifrador em “estado puro” implica, entre outros procedimentos, que Pessoa
(re)crie a linguagem por meio da qual aquele se expressa (cf. SCHINCARIOL, 2023a);
no cinema, a solução teria sido, num sentido último, colocar o espectador na posição
de investigador para depois, pela já analisada “inversão final”, tentar capturar a
sequência dos raciocínios pelos quais, até então, este se deixara guiar.
De uma perspectiva mais ampla, acredito que Pessoa, na literatura como no
cinema, pretende, a um só tempo e por meio de mecanismos que se justificam pelas
diferenças de linguagem: a) derrubar a ideia de crime como motor de uma narrativa
policial; b) reinventar o conceito de enredo; c) sugerir um outro nível em que deve
se dar a epifania final; d) como consequência disso tudo, deixa entrever um novo
papel para o leitor / espectador e também um outro tipo de fair play: “Here the plot
is not only in the mystery, but also in the intellectual process by which the mystery
is unravelled, the interest [is] in the very same intellectual process, in its progressive
“If ‘detective tales’ were called ‘decipherment stories’, that juster title would define them as the
usual one does not” (PESSOA, 2016: 240; BNP/E3, 71-20v).
18
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Schincariol
O Ídolo à luz das novelas policiárias
resolution of the truth, far more interesting than the other kind of dénouement”
(PESSOA, 2016: 249; BNP/E3, 146-59r). A própria noção de mistério é redimensionada
de modo radical: “[...] but whereas in the tale of mystery the unravelment is part of
the tale, in that of decipherment it is the mystery that is part of the unravelment”
(PESSOA, 2016: 240; BNP/E3, 71-20v).
Ao ler as novelas policiárias, por momentos nos esquecemos de que há
mesmo um mistério a ser resolvido além daquele em que se transformam os próprios
raciocínios do decifrador. É nesse sentido que se pode afirmar que Quaresma resolve
os casos por meio de um “raciocínio abstrato”. É sintomático que nos momentos em
que Quaresma remete diretamente a um caso particular sendo investigado, tal
referência se justifique, em especial, pela necessidade de esclarecer algum ponto do
raciocínio abstrato que se apresenta. É o que indica a seguinte passagem de “O Caso
Vargas”: “Admitindo que aqui houvesse homicídio, e cometido da maneira que
imaginei, qual seria a mentalidade do homicida, fosse ele ou não o Borges?” (PESSOA,
[2008] 2014: [116] 108; BNP/E3, 2714 V2-93r).
O próprio Guedes, amigo de Quaresma, por vezes se confunde e se irrita com
o nível a que pode chegar o caráter abstrato dos raciocínios do decifrador, como
acontece em “O Caso do Triplo Fecho” ou “O Roubo no Banco de Galícia”: “O dr.
me dá licença? – interrompeu o chefe Guedes. Tudo isso é muito interessante, mas o
doutor está a fazer uma prelecção sobre a investigação de crimes?” (PESSOA, [2008]
2014: [307] 283; BNP/E3, 2712 O2-5r). É nesse sentido que o fato de Pessoa não terminar
de redigir o final da novela “O Desaparecimento do Dr. Reis Gomes” não invalida o
raciocínio até então apresentado. Numa narrativa policial mais convencional,
particularmente do tipo “enigma”, a ausência de uma “conclusão” sobre quem
cometeu o crime invalidaria imediatamente o trabalho do detetive, cujo raciocínio
se aplicaria (muitas vezes exclusivamente) ao caso particular em investigação.
Pode-se considerar que, em parte, o caráter abstrato dos raciocínios de
Quaresma se explica pelo fato de ser, como já se observou, um armchair detective; e,
portanto, preferir raciocinar a agir: “Mas eu prefiro raciocinar a agir, e, em verdade,
com o raciocínio consigo, tarde ou cedo, ir descobrindo o que quero” (PESSOA, [2008]
2014: [186] 171; BNP/E3, 275 R-10r). Uma explicação mais cabível é a de que Quaresma
excita-se e encontra prazer intelectual na elaboração dos seus raciocínios, mais do
que propriamente na resolução do mistério, com a descoberta de quem cometeu o
crime. E é nesse sentido que o “enredo” das novelas policiárias conduz a um outro
tipo de desfecho ou “epifania final”. No caso dos argumentos para filme de Pessoa,
é como se “o prazer intelectual” e a “excitação” do espectador no processo de elaborar
seus raciocínios e tirar suas conclusões, alimentados precisa e meticulosamente ao
longo das narrativas, tivessem que ser “frustrados”, para que então, como parte da
“epifania final”, o espectador tomasse consciência desse processo – e, por que não,
do modo como foi manipulado?
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Schincariol
O Ídolo à luz das novelas policiárias
Fig. 3. O Ídolo (cartaz de divulgação).
A adaptação de O Ídolo
Como explica Marcelo Cordeiro de Mello, na detalhada análise que faz de O Ídolo,
na Metamorfoses – Revista de Estudos Literários Luso-Afro-Brasileiros (com dossiê sobre
a obra de Fernando Pessoa):
Como se sabe, o argumento cinematográfico é o texto que inicia o processo de escrita e
reescrita palimpséstica típico dos textos destinados à produção cinematográfica. Pedro Varela
iniciou o processo de adaptação do argumento com um tratamento (“Treatment”) inicial, que
desenvolve aspectos do argumento original de Pessoa, agregando elementos novos, e alterando
alguns detalhes. Em seguida, Varela se dedicou à escrita do roteiro (em Portugal, utiliza-se o
termo “guião”), que desenvolve o tratamento acrescentando os diálogos e os detalhes da ação.
Naturalmente, cada documento passou por diversas versões, até chegar à versão final, a que
o leitor tem acesso aqui.
(MELLO, 2021b: 181)
A análise que se segue tem em conta, particularmente, o argumento original de
Fernando Pessoa, a versão final do roteiro escrito por Varela, como também o curtametragem O Ídolo em sua versão já realizada. Parte-se da premissa de que analisar
as alterações feitas por Varela e o impacto destas na economia da narrativa de O Ídolo
não implica cobrar do realizador qualquer tipo de fidelidade ao argumento original;
antes, pretende-se acompanhar as repercussões de tais alterações no quadro da
ficção policial escrita e teorizada por Fernando Pessoa.
“Note for a thriller, or film.” tem início com uma espécie de preâmbulo que,
supõe-se, deve ser compartilhado com o espectador – considero aqui os dois primeiros
parágrafos do argumento:
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
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Schincariol
O Ídolo à luz das novelas policiárias
It is a known fact, within the circles diversely interested, that Prof. A, having the priceless
green idol (priceless in several ways) to deliver to B., in Europe, entrusts this idol to keep of
the well-known millionaire, C, who is shortly sailing in his own yatch to Europe.
In his yatch C has a good number of guests, eighteen in all, and, as all are not quite clearly
known to him, with intimacy, it is practically certain that one if not more will very likely be
after the idol.
(PESSOA, 2011: 41)
Assumindo que o cinema idealizado por Pessoa tivesse como referência e intenção
o cinema mudo, pode-se cogitar que este preâmbulo não se devesse concretizar por
meio de imagens, propriamente ditas – mas sim por texto –, o que, como consequência,
implicaria que a primeira cena a ser visualizada pelo espectador fosse aquela, já no
iate, em que o milionário C anuncia a proposta de que cada um dos presentes
recebesse e mantivesse, em proteção, um dos vinte pacotes, contendo, um deles, o
ídolo a ser transportado até B. Tal hipótese, como penso, pode ser sustentada quando
se tem em mente que, ao restringir a ação – visualmente falando – ao interior do iate,
acentua-se a sensação de ambiente confinado, tão importante, como observamos,
quando se trata de narrativas policiais detetivescas. É o que é sugerido, como penso,
pela seguinte passagem do argumento original: “Very shortly after the ship sails from
New York, C, just after dinner, says he has a very important and amusing proposition
to make to his guests” (PESSOA, 2011: 41; itálicos meus).
Acompanha-se, na primeira imagem de O Ídolo, traços de uma caligrafia que,
como o narrador, em voice over, logo esclarece, constituem a redação de uma carta
que daria início a uma história, como tantas cartas o fazem, mas desta vez “particularmente interessante pela forma como desenrola, pelas suas qualidades tão
originalmente bizarras, que poderia mesmo tratar-se de um thriller, ou de um filme”
(VARELA, 2021: 211). Sabe-se, pela carta, em processo de ser redigida, que é de 1928,
enquanto somos informados, como parte dos créditos, de que se trata de “um
argumento de Fernando Pessoa” (VARELA, 2021: 211). É curioso como Varela, além
de criar um narrador para a história que se acompanha no curta-metragem, decide
antecipar, para o espectador, que se trata de uma história de “qualidades bizarras”,
a ponto de poder ser considerada um thriller ou um filme. Mais curioso ainda é que
tenha escolhido o termo “bizarras”, que, assim como o narrador ou a carta, não
consta do argumento original escrito por Pessoa. No universo da ficção policial,
ninguém ou nada que se passa em O Ídolo poderia ser tão tranquilamente definido
como tal. Tendo em conta o final do curta-metragem, em que os vários “eus” do
protagonista Bernard / Albert remetem aos heterônimos de Pessoa, pode-se entender
que bizarra seria, num sentido último, o próprio heteronimismo, associação que
reduz um mecanismo tão complexo e central na obra de Pessoa a sua suposta
estranheza, extravagância ou invulgaridade.
Ainda que não se o faça de modo explícito, a estrutura narrativa de O Ídolo
coloca como questão central e última o heteronimismo, elemento que, num plano
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Schincariol
O Ídolo à luz das novelas policiárias
mais amplo, justifica e determina os acontecimentos que acompanhamos na narrativa
do curta-metragem. Nesse sentido, O Ídolo afasta-se do modo como Pessoa define
uma história policial, bem como das regras que o autor põe em prática em suas
novelas policiárias. Para Pessoa, como acompanhamos há pouco, uma história policial
constitui um exercício fundamentalmente intelectual centrado nos raciocínios do
investigador-decifrador, em outros termos, uma história de mistério cujo principal
propósito não se encontra no mistério propriamente dito, mas na sua investigação.
Isso implica que o curta-metragem de Varela, utilizando-me aqui do mesmo rigor
com que Pessoa se expressa, deva ser encarado como um exercício de imaginação,
ou melhor, uma história de mistério cujo propósito reside no próprio mistério.
Depois, em voice over, o narrador menciona um homem que pede, como favor,
a um outro homem, que transporte uma obra de arte, sem revelar a este último que,
ao aceitar a tarefa, arriscaria sua vida; tampouco lhe revela que o provável sucesso
da missão seria garantido pelas próprias fraquezas daquele responsável pelo
transporte do objeto. Acompanhamos, então, um veículo que, como o narrador
explica, conduziria o objeto ao seu destino final: “‘Jade figure holding jaguar baby’,
uma obra de arte tão rara e poderosa, que o seu valor é praticamente impossível de
calcular” (VARELA, 2021: 211). Sabemos então que a mão que assina a carta é de
Albert Soares, aquele que possui o ídolo, sobre quem é a história que se segue. Tratase este de um dado extremamente importante, mesmo porque o argumento original
leva a entender que a história gira em torno daquele que carrega o ídolo, o milionário
C, no curta-metragem, Mr. Sotto. Acompanha-se Bernard – e, como espectadores,
não sabemos que se trata do narrador em voice over – que entrega a carta – como se
entende, de Albert Soares – à criada Adelaide, pedindo a esta que diga a um rapaz
que a envie naquele mesmo dia. De acordo com o narrador em voice over, sabemos que
a carta que educadamente pede o tal favor “também propõe um jogo bastante
perigoso, eu diria mesmo... mortal” (VARELA, 2021: 211).
Somos então transportados para Nova York e, na capa do New York Times,
vemos uma imagem da estátua de valor inestimável, com a notícia de que o
Metropolitan Museum se despedia, após duas décadas, do “Green Idol Olmec”.
Acompanhamos, assim, um rapaz que, no corredor de um luxuoso hotel, entrega
uma carta a Mr. Sotto, que a lê junto à janela, e, como o narrador nos informa, aceita
o pedido sem hesitação. No quarto de hotel, há uma mulher com Mr. Sotto – como
espectadores, ainda não sabemos ter o nome de Ofélia. Passamos para o que o roteiro
chama de sala do cofre do museu e acompanhamos dois funcionários de luvas
brancas que colocam o “green idol” em um estojo de madeira. Mr. Sotto, presente,
acompanha atentamente a operação. Com uma expressão de confiança e vaidade, o
milionário deixa o museu carregando o ídolo em uma mala. Descendo as escadas e
passando por fotojornalistas, entra no banco de trás de um carro, onde se encontra
uma mulher, que, pela leitura do roteiro, sabemos ser Emily Nogueira, sua noiva.
Acompanha-se o carro chegando até o transatlântico Europa. Augusto Sotto e Emily
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O Ídolo à luz das novelas policiárias
são recebidos pelo capitão, que trata aquele como habitué, seguindo, assim, para
Southhampton. Somos mais uma vez conduzidos pela estrada que o narrador nos
informa ser de Sintra, quando acompanhamos um carro que chega até a casa do
magnata Albert Soares. Somos informados pelo narrador de que já se passaram
algumas semanas desde que, entende-se, o ídolo havia sido confiado a Mr. Sotto.
Não se sabe quem é aquele que conduz o carro, mas este é recebido pela criada
Adelaide e por Bernard, o narrador. Abre-se uma mala como aquela em que Mr.
Sotto carregava o ídolo, o narrador nos informa de que nem tudo ocorrera como
planejado e acompanha-se, agora em Nova York, um jovem carregando três malas –
uma delas parece ser idêntica àquela em que Mr. Sotto teria transportado o ídolo –
que, aos gritos, pede que o Europa não parta ainda. Acompanha-se então esse
mesmo jovem – pelo roteiro sabe-se ser Américo –, já dentro do navio. Dentro de
uma cabine se encontram Mr. Sotto e a noiva – e aí vemos a mala em que estaria o
ídolo. Depois da interrupção de um funcionário do navio que entra com um carrinho
de bebidas, o qual é praticamente expulso por Mr. Sotto, o milionário tranca a porta
e diz à noiva, mostrando uma mala em que estão várias caixas, que se trata de algo
que vai tornar a viagem bem mais divertida. Diz-lhe, ainda, que vai precisar de ajuda.
Fig. 10. Dois funcionários de luvas brancas colocam
o “green idol” em um estojo de madeira.
Tendo em conta a economia de uma narrativa policial que se passa num
ambiente confinado, como é o caso do argumento de Pessoa em que se baseia O Ídolo,
é inevitável constatar, nesses quatro minutos e trinta e seis segundos de um total de
vinte e três minutos e cinco segundos de filme, como Varela nos transporta a
diversos ambientes distintos – mansão de Albert Soares, Sintra, Nova York, Museu,
transatlântico. Ainda que a maioria dos eventos se passe dentro do transatlântico,
Varela desloca o centro do mistério para fora, mesmo porque a ideia de distribuir as
caixas aos convidados no curta-metragem é de Albert Soares, enquanto, no
argumento original de Pessoa, quem tem essa ideia é o milionário C, já dentro do
seu iate. A própria decisão de substituir um iate – espaço fisicamente mais restrito e
com número de possíveis vítimas e suspeitas bem mais limitado – sugere o mesmo
movimento de “desconfinar” o mistério; movimento, este, também sugerido pela introdução de elementos “locais”, no caso portugueses, à trama: afinal, no curta-metragem
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O Ídolo à luz das novelas policiárias
a língua falada é, predominantemente, o português, e parte da história se passa na
casa de Albert Soares em Sintra.
Como acredito, a intenção de fazer com que o espectador se sentisse adentrar
um espaço minimamente familiar vai muito além da informação explícita, nos
créditos do filme, de que se trata de um argumento de Fernando Pessoa; mesmo
porque, no contexto do argumento original do autor, tal informação poderia ser
responsável por um grande estranhamento por parte de um espectador que tentasse
identificar possíveis marcas pessoanas. Os exemplos mais óbvios da intenção a que
me refiro talvez sejam, para além dos elementos “portugueses”, o nome do
milionário, Albert Soares, e o nome Ofélia, a amante de Mr. Sotto – no roteiro,
também Bernard.
Fig. 11. Os convidados trocam as caixas entre si.
Uma outra diferença marcante entre “Note for a thriller, or film” e O Ídolo é
que, enquanto no argumento de Pessoa sabemos que o milionário C faz a proposta
simplesmente a seus “guests”, no curta-metragem temos mais informações sobre
quem eram estes, o que se dá enquanto alguns passageiros do transatlântico recebem
o convite de Mr. Sotto – o roteiro nos diz que se trata de um jornalista francês, da
cantora de jazz Blanche Calloway, da amante de Mr. Sotto, de um casal de ingleses,
do padre Thomas e do empresário inglês Mr. Williams. É preciso notar que, ainda
que possamos “ler” a aparência e os trajes dos convidados em questão, o filme só
nos informa, explicitamente, da profissão do padre Thomas.
A cena da distribuição dos convites é interrompida abruptamente e somos
levados mais uma vez até Sintra, à casa de Albert Soares, onde este, pensativo,
encontra-se à frente de um tabuleiro de xadrez. Voltamos ao transatlântico, cuja
imagem é capturada de cima, e em seguida acompanhamos o jantar oferecido por
Mr. Sotto, onde estão outros convidados que até então não nos haviam sido apresentados. Ao dar vida a quem Pessoa se refere como “guests”, Varela não se preocupa
em dizer exatamente quem são essas pessoas, tampouco nos apresenta todas elas –
sabemos aqui que a amante de Mr. Sotto, que também estava presente, chama-se
Ofélia. Na economia de uma narrativa policial, teríamos de saber quem são esses
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convidados e, necessariamente, todos eles, no sentido de que a única razão para
estarem ali é a de constituírem possíveis vítimas ou suspeitas de um crime. Depararmo-nos com personagens sobre as quais não temos informações seria percebido,
de acordo com o flair play das narrativas policiais, como inapropriado.
É nesse jantar que entram as tais vinte caixas dentro de uma das quais estaria
o ídolo, jogo cujas regras Mr. Sotto explica – também ao espectador. Duas questões
que, no argumento original de Pessoa, deveriam ser evitadas, já que revelariam o
“twist final”, são feitas, respectivamente, por Mr. Williams – “Mas por que razão
você daria cem mil dólares, assim, de mão beijada?” – e pelo padre Thomas – “Comparando ao valor do ídolo, é um valor bastante baixo...” (VARELA, 2021: 219). A desculpa
de Mr. Sotto de que era para que se pensasse a recompensa como um seguro, “para
que tudo corra sem percalços e sem segurança”, invalida, de certa forma, as regras
estabelecidas por ele. É como se Mr. Sotto, que havia sido orientado por Albert
Soares, não estivesse preparado para essas questões – e talvez tenha sido mesmo
esse o objetivo de Varela. Emily, ainda que tenha feito a seguinte questão para
simular certa desconfiança em relação a Mr. Sotto – e assim contribuir para a impressão
de que o noivo não tinha segundas intenções –, acaba por deixar a solução do
mistério muito evidente para o espectador: “E quem escolheu a ordem em que estas
caixas nos foram entregues?” (VARELA, 2021: 220).
No argumento original, como observamos, a atenção do espectador deveria
ser desviada da relação entre o número de caixas e o número dos que as receberiam.
A pergunta de Emily, em O Ídolo, ao chamar a atenção para uma possível manipulação
das caixas, faz justamente o contrário. Trata-se de uma outra evidência de que, no
curta-metragem, o centro do mistério se encontra fora do transatlântico, na “dupla”
identidade de Bernard / Albert. Com penso, é em relação a essa dimensão do mistério,
ligada ao heteronimismo, que Varela teria tido a preocupação de não “entregar” a
solução ao espectador.
A resposta de Mr. Sotto de que ninguém havia escolhido a ordem das caixas
é seguida da troca de caixas entre ele e Emily, o que atestaria a verdade do que
afirmara. Os convidados seguem o mesmo gesto, trocando as caixas entre si. De
acordo com o argumento original de Pessoa, após a distribuição das caixas, “Numerous
complex adventures ensue during the voyage, including the discovery by one of the
crooked guests that if the parcel containing the idol is found in anyone’s possession,
and he can claim anything, he can claim the idol under the exact terms of the offer
made by C” (PESSOA, 2011: 42). Como foi possível acompanhar há pouco, padre Thomas
já havia se dado conta dessa possibilidade, “apresentando-a” ao espectador.
Na já referida entrevista concedida a Mello, o diretor Varela, em tom de
humor, diz ter ficado com a parte mais difícil deixada por Pessoa, ou seja, imaginar
que aventuras teriam sido essas (apud MELLO, 2021b: 186). É preciso notar, mais uma
vez, que, dentro da economia do argumento original de Pessoa, que aventuras
teriam sido essas não faria a mínima diferença em relação à reviravolta final; daí,
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como penso, o autor não ter sentido a necessidade de explicitá-las. Não se pode dizer
o mesmo de O Ídolo, observação essa que deixa mais evidente o sentido outro das
decisões tomadas por Varela.
Respeitando a sequência dos acontecimentos, acompanhamos alguns convidados deparando-se com as caixas recebidas sem saber exatamente o que fazer.
Vemos então Mr. Sotto guardar a caixa que era dele em um cofre e depois ir dormir
com Ofélia na cabine da amante; constatamos, com Mr. Sotto, que o empregado que
servia bebidas teria levado a caixa que estava à mesa de cabeceira; seguimos Mr.
Sotto questionando o capitão sobre quem teria entregue champanhe sem ter sido
solicitado que o fizesse, ao passo que compartilhamos o momento em que Mr. Williams
revela ser um agente secreto – a profissão exata de Williams não fica assim tão clara
para o espectador; temos acesso à informação compartilhada pelo capitão de que
havia “mais de cem pessoas na tripulação” – informação essa que comprometeria
profundamente uma narrativa policial ao ampliar tanto assim o número de possíveis
suspeitos, como que sugerindo ao leitor que nem tentasse resolver o caso (VARELA,
2021: 222); inferimos que o jornalista francês teria percebido qual era o jogo sórdido
jogado por Mr. Sotto; assistimos à performance de Blanche Calloway; sabemos que
Américo tinha os olhos em Emily e que era leitor dos seus livros; que a leva a sua
cabine no deck inferior para que autografe um deles; acompanhamos o desespero
do padre Thomas a dizer que foi roubado, e o jornalista francês e Blanche a dizerem
o mesmo; ao ouvirmos um grito de horror, deparamo-nos com a capitão morto sobre
a cama, o que leva a uma enquete de suposto homicídio conduzida por Mr. Williams
– a qual efetivamente não se concretiza; vemos que Emily, sozinha na cabine, abre o
cofre em que Mr. Sotto guardara a caixa; acompanhamos Mr. Sotto, que, ao cruzarse com um dos empregados do navio, se dá conta de algo estranho – pelo roteiro
sabemos que seu nome é Mário e que, estranhamente, tinha apenas uma parte
bigode (supõe-se que o espectador reconheceria essa personagem da cena em que
um empregado do transatlântico, na cabine em que se encontravam Mr. Sotto e sua
amante, entregava bebidas); somos informados, por Mr. Williams, que dezessete
caixas haviam sido roubadas, sobrando apenas a dele, a de Mr. Sotto e a de Emily;
que Mr. Sotto volta imediatamente a sua cabine e verifica estar lá sua caixa; que Mr.
Sotto flagra Mr. Williams e Mário em situação suspeita, aquele chamando a atenção
deste sobre o bigode “incompleto” – avistam-se, rapidamente, caixas com o que
parecem ser tijolos dentro; acompanhamos Mr. Sotto sendo perseguido por Mr.
Williams e, depois, dominando este último, já com a arma deste em mãos; de arma
em mãos, apontada para Mr. Williams, Mr. Sotto grita àqueles que estão à sua volta
e diz ser ele a decidir quando jogo acaba; depois de levar um golpe de Williams, ao
chão e ainda com a arma em mãos, atira no agente, que cai morto ao chão; a voz do
narrador explica que Mr. Sotto não teria tido a intenção de disparar, dirigindo-se,
agora, ao espectador: “Até porque todos sabemos bem quem é o responsável, verdade?”(VARELA, 2021: 229); Mr. Sotto põe a culpa nos outros, que seriam gananciosos
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e não teriam sabido jogar um simples jogo, que teriam sido estúpidos de pensar que
poria uma peça de tal valor – como aquela dentro da caixa que tinha consigo – nas
mãos de pessoas como aquelas; ameaçado pelos policiais armados, Mr. Sotto sobe
no parapeito e, sem querer, deixa cair ao mar a caixa em que pensava estar o ídolo;
salta atrás do ídolo e morre; em Sintra, na casa de Albert Soares, Emily entra com uma
mala e uma caixa em mãos; um tanto confuso e hesitante, Bernand – o narrador –
aceita a caixa; Emily informa a Bernard que Mr. Sotto estava morto; diante da notícia,
Bernard diz lamentar muito e que o que havia na caixa era apenas um boa cópia, que
tudo havia sido uma manobra para transportar o ídolo a salvo – que, como diz, já
estava nas mãos do dono; Emily vê então o ídolo verde em um expositor de vidro e,
ao lado deste, Américo – ao fundo vê o retrato que denuncia que Bernard e Albert
Soares eram a mesma pessoa; ao voltar com o envelope para pagar Américo, Bernard
pergunta aos dois se já se conheciam, quando aquele diz que não; junto à janela,
Bernard observa Emily e Américo entrarem no carro e saírem juntos; Bernard diz a
si mesmo as seguintes palavras: “We are all victims of ourselves, of our various
selves, we are all so many, and some are better than others”; ao olhar para o ídolo
verde, percebe que o expositor estava mal fechado, aventando a hipótese de que
estava ali a cópia, estando o original com Américo e Emily.
É inevitável constatar, à luz do argumento original de Pessoa, que a inventividade de Varela foi guiada pela necessidade de conferir um final inquestionavelmente
pessoano a uma narrativa cuja marca de autoria não era notável. Em O Ídolo, o fato
de a estátua ter ou não estado no navio, de não estar na caixa em que Mr. Sotto
pensava que estivesse, ou a constatação de que aquele que pensava enganar a todos
ter sido enganado no final não produzem o mesmo efeito de “dissolução” do
mistério, como seria de se esperar de uma narrativa policial detetivesca, uma
investigação propriamente dita, porque Varela incluiu no enredo dois assassinatos
– além de um “acidente fatal” – que não havia no argumento original. Como penso,
o argumento de Pessoa prevê que o espectador, diante da revelação final de que se
tentou resolver um mistério que não houve, questione esses mesmos raciocínios e a
sua validade. O Ídolo parece prever que a satisfação do espectador pode ser preenchida
quando este acompanhar, com extrema atenção – ainda que isso implique assistir ao
filme mais de uma vez –, todos os detalhes de um enredo que tentou de todas as
formas enganá-lo.
Tendo como objetivo refletir sobre até que ponto Pedro Varela teria sido
capaz de fazer justiça ao texto pessoano, Mello chama a atenção para o desejo de o
realizador manipular, como em um jogo, a atenção do espectador. Nas palavras
deste último, “‘deixar o espectador ‘puzzled’ […], um tanto embaralhado […]. Tudo
o que eu possa fazer para confundir o espectador, para mim é maravilhoso. Confundir
com respeito, com inteligência, mas confundir’” (apud MELLO, 2021b: 194).
Quando se têm em conta as novelas policiárias, a discussão teórica apresentada
por Pessoa em Detective Story e, de uma perspectiva mais ampla, a tradição do
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gênero policial com a qual o autor dialoga, confundir com respeito e inteligência
significa, necessariamente, fazê-lo a partir da regra fundamental de que todos os
fatos do mistério devem ser compartilhados com o leitor / espectador, regra essa a
que Pessoa confere papel central no referido ensaio teórico. No início de Detective
Story, em uma pequena lista intitulada “Traits of a detective story”, afirma-se que
“The facts should all be set before the readers & the conclusions drawn from them”
(PESSOA, 2016: 236; BNP/E3, 48D-76v). Anos mais tarde, esclarece-se que “Putting all
the facts before the reader means really putting them all before the reader, even if
the order and the significance are veiled in the narrator’s version” (PESSOA, 2016:
239; BNP/E3, 100-30r), regra cujo descumprimento Pessoa considera inadmissível.
Não se pode afirmar que “confundir o espectador com respeito”, para Varela,
tenha o mesmo sentido de “confundir o leitor com respeito”, para Pessoa. No caso
deste último, não se trata propriamente de confundir, mas de apresentar fatos – e
todos eles – de modo que não seja possível ao leitor chegar à solução do mistério
(antes do detetive); o que é bem diferente de, como acontece em O Ídolo, nem sempre
se poder estar certo de que fatos, na verdade, são esses, efeito obtido, sobretudo, por
um meticuloso trabalho de edição que não permite ao espectador ter certeza do que
pôde ver. Trata-se de um procedimento que, apesar de funcionar no curta-metragem
de Varela para instigar a curiosidade do espectador, poderia causar indignação a um
leitor do gênero policial mais “experiente”.
Num primeiro momento, Mello atribui o fato de alguns detalhes da narrativa
passarem despercebidos ao formato de O Ídolo, um curta-metragem, indicando, depois,
ao citar as palavras de Varela, que este teria tido a intenção de que assim o fosse:
“Por se tratar de um filme de ritmo ágil, é natural que muitos detalhes passem despercebidos, o que sugere a ideia de uma obra que pode ser assistida diversas vezes (o que
é favorecido pelo lançamento de O ídolo em formato digital)” (MELLO, 2021b: 194):
Eu acho que são grandes recursos de storytelling, ou seja, nós precisamos sempre levar o
espectador numa direção de confundir, de embaralhar. E não é pelo prazer de confundir, [mas
sim] pelo prazer de o fazer pensar. O espectador não precisa ser enganado. O espectador quer
ser enganado. O espectador quer que uma coisa seja diferente do que ela parece. O espectador
exige a surpresa. O espectador exige o aceleramento do coração. O espectador exige a emoção.
(apud MELLO, 2021b: 194)
Nós estamos muito treinados hoje em dia à narrativa, à dramaturgia, ou seja, a séries, cinema
etc. O nosso músculo dramatúrgico e narrativo está muito bem treinado. […] Às vezes o
‘pace’ de algumas séries é mais lento. […] Mas as séries às quais o público (isto é, as massas)
mais se tem agarrado são séries altamente ‘engaging’, muito elétricas. […] Quem vê um
filme do Christopher Nolan e entende, está no supra do supra, porque são filmes altamente
complexos, você não entende nada. Então aqui [em O ídolo] eu acho que é a dose suficiente
para o seu cérebro estar em constante junção de peças, e foi esse o exercício.
(apud MELLO, 2021b: 195)
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O espectador deve pensar, deve poder fazê-lo, deixando-se surpreender.
Ora, a dimensão subversiva dos argumentos pessoanos analisados neste artigo
– dimensão essa que também se identifica em suas novelas policiarias –, reside no
modo como se “confunde” o espectador; e esse modo exige que se reconheça que o
jogo a ser jogado tem regras. Tais regras existem – estabelecidas pela tradição do
gênero policial – e é imprescindível conhecê-las para as pôr em xeque, tateando seus
limites, tanto no cinema como na literatura. O não seguimento de algumas dessas
regras, cujo cumprimento não considero condição para que se adaptem para o
cinema quaisquer dos argumentos analisados neste artigo, implica que as tentativas
de ser fiel ao jogo ou de subvertê-lo não podem ser interpretadas como plenamente
intencionais ou, necessariamente, como pessoanas.
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MARCELO SCHINCARIOL formou-se em Linguística e em Literaturas em Língua Portuguesa pela
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Brasil. Recebeu os títulos de Mestre e Doutor
em Literatura Brasileira nessa mesma instituição. Recentemente, tem se dedicado ao estudo da
literatura policial escrita por Fernando Pessoa. Trabalha como “Teaching Associate Professor” nos
Estados Unidos, no Departamento de Espanhol e Português da Universidade do Colorado-Boulder.
MARCELO SCHINCARIOL graduated in Linguistics and Literatures of the Portuguese-Speaking
World at the State University of Campinas (Unicamp), Brazil. He received the titles of Master and
Doctor in Brazilian Literature at the same institution. Recently, he has dedicated himself to the
study of detective fiction written by Fernando Pessoa. He works as a Teaching Associate Professor
in the United States, in the Department of Spanish and Portuguese at the University of ColoradoBoulder.
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Gardnier
Vestígios de ninguém
Julio Bressane adora vestígios. E pode-se dizer que seu olhar transforma tudo em
vestígio. O modo de sua câmera olhar para objetos, lugares, pessoas já naturalmente
as torna vestígio de alguma coisa, índice de algum passado, de algum outro objeto
ou lugar. Mesmo que não saibamos a que remete o vestígio, a forte impressão de
vestígio adentra o recinto, se faz presente. Do estúdio abandonado da Cinédia em O
Rei do Baralho, passando pelas inscrições rupestres e remanescências do período précolombiano em Viagem Através do Brasil e chegando à própria letra da literatura como
produção de assombramento, tudo evoca o mistério do vestígio, sua forma de nos
abrir a mundos que podemos apenas imaginar, em todo seu caráter mágico: seja a
pujança americana prévia à culturação europeia, o gesto criador na confecção de
uma frase especial ou o espaço-testemunha que presenciou momentos de brilho, há
sempre alguma literalidade frontalmente filmada que evoca uma ausência – a ser
preenchida parcialmente pelo filme por meio indicial, mas jamais tampando a lacuna.
A lacuna é o que faz devanear.
O Batuque dos Astros retoma um modo específico da investigação de vestígios,
qual seja, a de visitar os espaços outrora vividos por autores, e ligando a câmera para
registrar as ruínas que o tempo não destruiu. Esse procedimento já tinha ocorrido
com Michelangelo Antonioni numa visita ao cemitério em que jaz o jazigo de sua
família (Ver Viver Reviver, Passagem para Ferrrara) e com espaços em que o filósofo
Friedrich Wilhelm Nietzsche habitou (Nietzsche em Nice, Nietzsche Sils-Maria Rochedo
de Surley). Em O Batuque dos Astros, Bressane vai a Lisboa filmar os espaços habitados
por Fernando Pessoa: o quarto e a escrivaninha onde escreveu O Guardador de Rebanhos,
as ruas, as praças, os prédios, e também os construtos-homenagens feitos ao poeta:
sua estátua na calçada em frente ao café A Brasileira e a exposição da Casa Fernando
Pessoa. Como sempre, não se tratam de filmagens frias e objetivas, jornalísticas ou
“documentais” no sentido mais comum do termo. Elas estão impregnadas pela subjetividade do assombro e do enigma de quem vê, de quem filma imaginando não o
presente vazio mas o passado pleno, permitindo à imaginação que possa criar fantasmas. Mas a câmera de Bressane não para por aí: ela estabelece símbolos, no caso o
chapéu e a taça de vinho, e cria planos ponto-de-vista de Pessoa passeando. A
expressão é lúdica, pode-se fazer tomadas de bonde, de escada, de hotel e brincar de
A Velha a Fiar (curta-metragem de Humberto Mauro, 1964) com elas. Há digressões,
planos soltos, travellings que passeiam por lombadas e capas de livros de escritores
portugueses, Pessoa em maioria. A montagem, como quase sempre em Bressane, é
uma assemblage paratática. Isolados, certos planos podem ser tomados como simples
registro de viagem turística. Mas não são nada disso.
Bressane e seu Batuque podem ter Fernando Pessoa como tema principal, mas
de alguma forma a literatura portuguesa como um todo é reivindicada. Padre
António Vieira, Mário de Sá-Carneiro e Cesário Verde aparecem em imagens e/ou
citações. O filme, aliás, começa com Bressane, Zelito Viana, Rosa Dias e entourage em
frente a estátua de António Feliciano de Castilho, poeta e tradutor do Fausto de
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Goethe, de onde Bressane recita emocionado “Eis-me, visões, sou vosso”. Fernando
Pessoa aparece, então, não isolado como genialidade única a ser investigada, mas
como parte de um meio histórico e literário do qual fez parte.
Por outro lado, o filme também existe como o retrato memorialístico de um
leitor: Bressane aparecendo com os livros de Pessoa e de outros escritores portugueses,
livros de época e outros mais novos, fazendo imaginar um histórico de leituras ao
longo dos anos, um histórico de acontecimentos-Pessoa que mexeram com sua
sensibilidade a ponto de citá-lo constantemente em seus filmes, nas vozes dos atores,
sem fornecer citação ou proveniência, apenas dramatizando-os. As citações de Pessoa
em seus filmes começam com O Rei do Baralho (1973) mas atingem o ápice com A agonia
(1978), filme readaptado para o Brasil tendo como fonte original o projeto de um
filme chamado Ninguém que deveria ter sido rodado em Portugal em 1976. Há
Pessoa em Cinema Inocente (“cidade da minha infância pavorosamente perdida”), em
Viola Chinesa (“O essencial na arte é exprimir; o que se exprime não tem importância”),
em Tabu, em Sermões, O Gigante da América. Mostrando os livros que o acompanham
desde a década de 1970 e os trechos dos filmes em que a influência ou a palavra de
Pessoa aparece, fica evidenciado que O Batuque dos Astros é também uma espécie de
inventário de um convívio, o do olho de Bressane com a letra de Pessoa, e posteriormente do gesto de cineasta de Bressane com a matéria-prima de Pessoa, os dois
passos entre a digestão e a produção.
Mas qual é o retrato que se faz de Fernando Pessoa em O Batuque dos Astros?
Bem, Fernando Pessoa é alguém que conseguiu ser ninguém, e que ao mesmo tempo
não obteve sucesso em seu intento. O desaparecimento aparece poeticamente nas
filmagens dos lugares que frequentava e morava, no Largo de São Carlos em que
passava, e que agora não registra mais sua presença, senão como fantasma.
Por outro lado, aquele que queria se dispersar na infinidade de nomes distintos
hoje é estátua, é o oposto do desaparecimento, é algo exposto em via pública à
exposição de todos. E cabe notar que o ângulo escolhido para os dois longos planos
que focam na estátua têm como pano de fundo uma agência do banco BPI e não o
café A Brasileira, que daria como que uma habitação à estátua. Do jeito que o enquadramento é feito, a estátua de Pessoa resulta propositalmente deslocada, ignorada
pela maioria dos passantes, ou então um mero entretenimento para turistas curiosos.
Num deles, o rosto está no extracampo superior, e só aparece refletido em forma
inversa na taça com água em primeiro plano na imagem. No outro longo plano fixo
da estátua, vemos o rosto apenas dos olhos para baixo, novamente com a taça em
primeiro plano, refletindo inversamente seu pé na água. O Pessoa desses planos é
ao mesmo tempo Pessoa (as pessoas sabem de quem se trata) e ninguém (pois
ninguém sabe de quem se trata), os enquadramentos e a taça gerando obstáculos à
apreensão total da estátua, fornecendo o suplemento necessário de mistério àquilo
que foi criado para ter o estatuto pétreo de monumento. Bressane reinstaura o fragmentário à figura de Pessoa – algo que é inerente à experiência de sua obra. Quanto
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ao Pessoa que importa, ele vive através da poesia e da prosa, na boca dos personagens de seus filmes e de Fernando Eiras, que lê “Abdicação”. A declamação em
frente à estátua, como a do início do filme, não cabe quando o poeta em questão é
Fernando Ninguém Pessoa.
Julio Bressane dramatizou a literatura em língua portuguesa diversas vezes.
Trouxe para seus filmes Padre Antonio Vieira, Machado de Assis, Oswald de Andrade,
Lamartine Babo etc. Deu grau acentuado de atenção às traduções de Nietzsche e da
Bíblia de São Jerônimo. É, portanto, não só um leitor mas alguém que faz agir a letra
(nesse sentido, e só nesse, assemelha-se a Jean-Marie Straub e Danièle Huillet), alguém
que pensa em como a própria literatura, e não seu conteúdo, tem condições de ser
traduzida intersemioticamente para o cinema de modo a não perder seu vigor (o que
sempre acontece quando só se adapta o entrecho). Nesse contexto, O Batuque dos
Astros é construído como um ponto fora da curva nesse microcosmo, pois aqui não
se trata de uma obra de ficção com atores, mas o gesto de rememoração de um
passado vivido em continuidade através de seus próprios filmes, e do modelo
“investigação dos vestígios” dos filmes sobre Antonioni e Nietzsche. Bressane assim
intimiza sua relação com o retratado, e isso fica absolutamente claro nos planos de
lombada de livro em que ao fundo vemos o cineasta espelhado ao fundo, apenas
rosto e ombros nus.
Por fim, cabe atentar para um papel singular que O Batuque dos Astros desempenha na carreira de Julio Bressane. Nos créditos do filme, são listados doze filmes
de sua autoria que aparecem no filme em fragmentos de imagem e/ou som. Esse,
portanto, é o primeiro momento em que Bressane passa a debruçar-se em sua própria
obra pregressa para criar arte a partir dela. Dado que em 2023 estreia mundialmente
seu filme A Longa Viagem do Ônibus Amarelo, com suas sete horas e quinze minutos
de duração, feito apenas de trechos de todos os filmes feitos por Bressane em sua
trajetória, inspirado por Aby Warburg (outro criador para quem a noção de lacuna
é fundamental), em ordenação ora cronológica, ora por motivos recorrentes (escada,
plano sequência, repositório de água etc.), é inevitável pensar que Bressane, em seu
Batuque, fazia o gesto inicial que culminaria nessa obra gigantesca em duração tanto
quanto em gênio, e começaria a tratar sua própria obra como o objeto de sua eterna
investigação de vestígios.
*
O final de O Batuque dos Astros quase nos sugere um encerramento convencional.
Vemos o hospital que foi o último leito, vemos o cemitério, vemos o jazigo, vemos o
monumento, as letras impressas na pedra, tudo muito oficial e solene. No entanto,
subitamente a tela de cinema vira um quadradinho de imagem, com o monumento
ao fundo, e um movimento de câmera para a esquerda faz aparecer o que parece ser
uma viga, bem de perto, com dois círculos concêntricos talhados em profundidade,
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e ouvimos barulhos de portões sendo fechados. Parece ser um ornamento simples,
um tanto impessoal, e é com essa imagem que o filme se despede. Seriam essas
formas circulares um correlato aos vestígios deixados em pedra pelas inscrições
rupestres, puras expressões sem significado ou cujo significado não conseguimos
decodificar? Não mais uma remissão direta, um nome cravado em pedra, uma
estátua, mas… um mistério… um vestígio… uma lembrança de… ninguém?
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ANEXO
O batuque dos astros – Transcrição de trechos com citações pessoanos da filmografia
de Julio Bressane
A agonia (1978)
EXT. Eva e Antena discutem diante de um barraco na favela:
EVA
E como é que terminou?
ANTENA
Bem. Não terminou. Não termina nunca, você sabe.
EVA
Mas é muito estranho.
ANTENA
É estranho. É isso. É estranho. Muito estranho. É estranho. Muito.
INT. A conversa continua no carro. Ao fundo, a praia de Ipanema.
ANTENA
Você está cansada?
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EVA
Cansada? Por que? Não, não é cansaço. É uma quantidade tal de desilusão. É um domingo às
avessas. É enfim um feriado passado no abismo.1 Sofrer como? Isso mesmo, como?
ANTENA
Como o que?
EVA
Se eu soubesse... Mas confesso. É cansaço.
[Corte]
EVA
Eu não tiro os olhos de suas mãos. Quem são elas? (Pausa). Hoje estou calmo. Nada tenho que
esperar nem desesperar. (Pausa). Pare o carro! Tenho vontade de vomitar. E de me vomitar a mim!2
[Corte]
ANTENA
Eu , eu mesmo, eu… Quantos o mundo pode dar? (Pausa). Você tá cansada?
EVA
Estou cansada, claro. Porque a certa altura a gente tem que estar cansado. De que estou cansada,
não sei. Tenho visto muito. E entendido muito o que tenho visto.3 É isso.
ANTENA
Como pode ser?
EVA
“Como pode ser” não. Como pode não ser.
Eva canta Cidade Mulher de Noel Rosa
1
Cf. Álvaro de Campos: “Não, não é cansaço...”.
2
Cf. Álvaro de Campos: “Ora até que enfim..., perfeitamente...”.
3
Cf. Álvaro de Campos: “Estou cansado, é claro”.
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INT. Antena e Eva conversam no escuro de uma sala de cinema.
ANTENA
O que houve, você tremeu?
EVA
É com as minhas ideias que eu tremo. A capacidade de pensar o que sinto é o que me distingue
da mulher vulgar.4
*
INT. Numa cozinha, Antena, de pé, observa Eva, usando uma peruca loira, sentada, dizendo:
EVA
É apenas um astro benéfico transitando num ponto vital do horóscopo.5
*
EXT. Num pátio diante de uma mesa com pessoas sentadas à sua volta, Sinhô fala e Antena escuta, curvado.
SINHÔ
O Botto tem isso de forte. Não dá desculpas. Não dar desculpas é melhor do que ter razão.6
[corte]
EXT. No mesmo pátio, Sinhô discursa diante da mesa enquanto todos escutam.
SINHÔ
[...] de diferente dos outros, e não o que ele tem de comum com eles. Fenômenos são esses
que caracterizam a doença extrema da época.7 O que pode ter numa época dessas o espírito
4
Cf. Álvaro de Campos: “O tumulto concentrado da minha imaginação intelectual...”.
5
Cf. carta de Fernando Pessoa a Armando Côrtes-Rodrigues, de 26 de junho de 1915.
6
Cf. carta de Álvaro de Campos a José Pacheco, de 17 de outubro de 1922.
Cf. final do primeir parágrafo de um texto que começa: “A emergência demasiado fácil das personalidades secundárias”, que se conhece desde 1966 (Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação).
7
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da raça dos Descobridores? Nada! Salvo a repulsa espontânea e o desprezo repetido.
Não nos adaptamos porque os sãos não se adaptam a meio mórbido. Não nos adaptando,
somos mórbidos. Neste paradoxo vivemos. Não temos outra esperança, nem outro remédio.
*
EXT. Wilson Grey de costas diante de um descampado com morros ao fundo. Uma voz off diz:
WILSON GREY
Não sê como a voz da terra, que é tudo e que é ninguém. Não sê ninguém.8
Viola chinesa (1976)
EXT. NUM MIRANTE, DIANTE DE UMA VIATURA DE POLÍCIA E CARREGANDO UM GATO
NO COLO, JÚLIO BRESSANE FALA AO MICROFONE:
JÚLIO BRESSANE
O importante em arte é exprimir. O que exprime não tem importância.
EXT. JÚLIO BRESSANE ENTREVISTA GRANDE OTELO NO ALTO DE UM MORRO, TENDO AO
FUNDO A CIDADE DO RIO DE JANEIRO.
8
Cf. Álvaro de Campos: “Notas para a recordação do meu mestre Caeiro”.
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*
JÚLIO BRESSANE
Arte é imitação. É imitação de um processo da natureza. Não cópia.
GRANDE OTELO
Então, arte é deformação. Arte é anormalidade. Arte é conflito.
O gigante da América (1976)
INT. A câmera enquadra o movimento dos quadris e do ventre de uma bailarina, enquanto uma voz
em off diz:
VOZ
E não poder apagar essa tortura! E não poder esquecer esta vida!
*
EXT. Jece Valadão e Colé Santana conversam sentados à mesa diante da Baía de Guanabara.
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COLÉ SANTANA
Eu já fui tudo, mas nada vale a pena.9
*
JOSÉ LEWGOY
Ser tu sendo eu. Ser outros, sem precisar ser eu.10
*
EXT. Close do rosto de Jece Valadão, que encara a câmera e diz:
JECE VALADÃO
Paro à beira de mim e me debruço.11
Jece deixa pender sua cabeça para frente, e a aba do chapéu esbarra em garrafas de aguardante sobre
a mesa.
Cf. h|ps://ldod.uc.pt/fragments/fragment/Fr317/inter/Fr317_WIT_ED_CRIT_P Livro do desassossego,
“Quanto mais contemplo”.
9
10
Cf. Fernando Pessoa: “Ela canta, pobre ceifeira”.
11
Assim começa um trecho poético do Fausto pessoano (data: 6-11-1912).
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Cinema Inocente (1980)
EXT. Imagens em preto e branco do centro do Rio de Janeiro. Uma voz em off diz:
VOZ
Outra vez te revejo, cidade da minha infância pavorosamente perdida. Cidade triste e alegre.
Outra vez sonho aqui.12
A câmera balança do alto de uma passarela na Avenida Presidente Vargas. Entra a música De babado
de Noel Rosa.
12
Cf. Álvaro de Campos: “Lisbon Revisited (1926)”.
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*
INT. Numa sala de edição, Radar (apelido do montador Leovegildo Cordeiro) trabalha sentado diante de
uma mesa de edição, tendo um rolo de película enrolado em torno do pescoço. Em off, sua voz diz:
RADAR
“A raça dos deuses e dos homens é uma só”. O deus antigo não cria, transforma apenas.
A duras penas, o vago fica vago.13
Deus, o super-homem, não define o que cria. Daí a sua superioridade. O homem é bobo
da sua imaginação. Sombra chinesa de uma ânsia inútil, sem esperança, sem sossego,
sem outro conforto. 14
Toda emoção verdadeira é mentira da inteligência. Toda emoção verdadeira tem uma
expressão falsa. Exprimir-se é dizer o que não se sente. Estar é ser. Fingir é conhecer.15
Tabu (1981)
EXT. Numa calçada, João do Rio caminha de braços dados com Lamartine Babo e Oswald de Andrade.
Cf. o texto que começa: “Os deuses pagãos não criam”, que se conhece desde 1966 (Páginas Íntimas e
de Auto-Interpretação).
13
14
Cf. o texto que começa assim, no capítulo VIII de Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação.
15
Cf. Álvaro de Campos: “Ambiente”.
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JOÃO DO RIO
Não é só o céu semeado de estrelas que pede para ser explicado e decifrado. Eu também preciso
de um decifrador. De um decifrador de... de um decifrador de charadas. De charadas sincopadas
que ninguém na roda decifra nos serões de província. É disso que eu preciso. E que remédio?16
16
Cf. Álvaro de Campos: “Sim, sou eu, eu mesmo, tal qual resultei de tudo”.
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Filmografia
BRESSANE, Júlio (2012). O batuque dos astros. Brasil. 1 h 14 min.
_____ (1989). Sermões, a história de Antônio Vieira. Brasil. 1 h 18 min.
_____ (1982). Tabu. Brasil. 1 h 19 min.
_____ (1980). O gigante da América. Brasil. 88 min.
_____ (1979). Cinema inocente. Brasil. 39 min.
_____ (1978). A agonia. Brasil. 1 h 40 min.
_____ (1977). Viola chinesa. Brasil. 8 min.
_____ (1973). O rei do baralho. Brasil. 1 h 21 min.
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RUY GARDNIER é jornalista, pesquisador e crítico de cinema e música. Ingressou na faculdade
com o objetivo de escrever sobre música, mas, em 1994, o cinema tornou-se sua paixão. Durante
os anos acadêmicos, produziu fanzines sobre música e cinema, porém o cinema ganhou um
maior destaque. Em 1998, fundou a revista eletrônica Contracampo, que revolucionou a crítica
cinematográfica no Brasil. Posteriormente, criou a revista e o grupo “Camarilha dos Quatro”
(https://camarilhadosquatro.wordpress.com/). Este blog destaca músicas experimentais e pouco
convencionais. Atua como coordenador de programação da Cinemateca do MAM e pesquisador
no Acervo Audiovisual do Circo Voador, é professor em cursos online de cinema e crítico de
cinema para o jornal O Globo. Anteriormente, trabalhou como professor na Escola de Cinema
Darcy Ribeiro e pesquisador no Tempo Glauber e na Cinemateca do MAM. Também foi curador
de diversas mostras de cinema e editor de catálogos retrospectivos de renomados cineastas.
Além disso, organizou a Sessão Cineclube no Cine Odeon/RJ e co-curou o Festival Cinemúsica
de Conservatória/RJ.
RUY GARDNIER is a journalist, researcher, and critic of cinema and music. He entered college
with the aim of writing about music, but, in 1994, cinema became his passion. During his academic
years, he produced fanzines about music and cinema, but cinema gained greater prominence. In
1998, he founded the online magazine Contracampo, which revolutionized film criticism in Brazil.
Later on, he created the magazine and the group “Camarilha dos Quatro” (https://camarilhadosquatro.wordpress.com/). This blog highlights experimental and unconventional music. He works
as the programming coordinator at the MAM Cinematheque and a researcher at the Audiovisual
Archive of Circo Voador. He is also a professor in online cinema courses and a film critic for the
newspaper O Globo. Previously, he worked as a professor at the Darcy Ribeiro Film School and
a researcher at Tempo Glauber and the MAM Cinematheque. He has also curated various film exhibitions and edited retrospective catalogs of renowned filmmakers. Additionally, he organized the
Cineclube Session at Cine Odeon/RJ and co-curated the Cinemúsica Festival in Conservatória/RJ.
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Alves
Dossier Ophiussa
[...] a cidade a que chego
abre-se como se do seu nome nascesse
Abre-se e ergue-se em sua extensão nocturna
Em seu longo luzir de azul e rio
Em seu corpo amontoado de colinas —
Vejo-a melhor porque a digo
Tudo se mostra melhor porque digo […]
(ANDRESEN, 2011: s.p.)1
Dizer Lisboa é, para os que convivem com a poesia portuguesa, ouvir certos versos
de Sophia de M. B. Andresen citados em epígrafe. Essa visão luminosa, azul e líquida
reverbera a Lisboa – Ulysseia, origem mítica a ligar Ulisses ao futuro marítimo de
Portugal. Lisboa a atravessar séculos, coração de uma nação e de sua literatura,
motivo recorrente de afeto ou de desassossego. Mas dizer Lisboa é também para
muitos (re)encontrar Fernando Pessoa e um imaginário de sensações que esse artista
criou quando pôs em movimento, nos muitos e quase inesgotáveis papéis que deixou,
um “drama em gente” absurdo e admirável.
O jovem Pessoa, depois de quase uma década em Durban, África do Sul, com
sua mãe, padrasto e meios-irmãos, retornou a Lisboa em 1905 para fazer seus estudos
universitários, que não levaria adiante. Poderia ter voltado para sua casa materna,
ter feito sua vida na capital africana. Talvez pudesse ser um funcionário de nível
mais elevado ou se tornar um escritor em inglês de origem lusitana. No entanto,
Pessoa ficou em Lisboa, na sua cidade de nascimento e estabeleceu com ela uma
ligação para a vida toda até que partiu em definitivo aos 47 anos, em 1935. A relação
com a cidade foi profunda e talvez a sua escrita fosse outra se não tivesse passado a
viver, adulto, nessa cidade em que a luz é diferente, em que a história paira sobre o
rio Tejo e tantos espaços públicos, em que o casario sobe pelas colinas, contemplando
o mar atlântico com a nostalgia do passado e a expectativa sonhadora de um futuro
que deveria vir.
O filme Ophiussa2 transporta-nos para essa Lisboa pessoana, (re)criando suas
paisagens, seus sons, suas visões, entre realidade e devaneio, em meio ao movimento
citadino ou na solidão de quartos com janelas que se abrem sobre ruas talvez pacatas
das primeiras décadas do século XX. Neste dossier, é oferecido ao leitor um conjunto
de materiais que explicam o projeto e guiam a compreensão da obra verbo-vocovisual. A sinopse fílmica propõe “[...] um périplo cinematográfico pela cidade. Através
da visão heteronímica do poeta, o filme recria um território imaginário e intemporal,
possivelmente um não-lugar povoado de ‘ficções do interlúdio’” (Anexo 1– Sinopse).
Esta publicação foi escrita no âmbito da investigação desenvolvida no Instituto de Literatura
Comparada, Unidade I&D financiada por fundos nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência
e a Tecnologia (UIDB/00500/2020 - https://doi.org/10.54499/UIDB/00500/2020).
1
Pode ser visto em https://arquivos.rtp.pt/conteudos/ophiussa-uma-cidade-de-fernando-pessoa/. Tem
uma duração de 59’44.
2
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Alves
Dossier Ophiussa
O cartaz do filme (Anexo 2) torna materialmente visível a junção desses elementos,
sobrepondo a silhueta em preto de Pessoa sobre um postal antigo de Lisboa em que
se nota, por trás, a escrita do poeta. O postal é tomado pelo tom azul velho, havendo
uma sombra branca à volta do título do filme, a sinalizar talvez a visualidade
espectral de uma presença urbana mais imaginada que vivida.
Lançado exatamente em 13 de junho de 2013, 125.º aniversário de Pessoa, o
filme foi realizado por Fernando Carrilho (Anexo 3 – Créditos), responsável também
pela seleção dos fragmentos textuais pessoanos ouvidos ao longo da projeção e pela
montagem, em coprodução da Casa Fernando Pessoa, Imagens do Século e Videoteca
Municipal de Lisboa, com Direção de Arte por João Frazão e Direção de Fotografia
por Miguel Pité. O título Ophiussa refere uma nomeação arcaica do território, com
ocupação céltica, onde se constituiria séculos mais tarde Portugal. A partir dessa
identificação longínqua, quase fantástica, abre-se uma espécie de portal para adentrarmos em um mundo de palavras criadoras a erguer uma cidade, que não é somente
a Lisboa – capital portuguesa, realidade geográfica mensurável, mas um espaço ora
exterior, ora interior, visto ao rés-do-chão ou no horizonte distante, resultado das
perceções várias de sujeitos imaginados e criados por Pessoa ao longo de sua vida de
jovem e adulto lisboeta. Assistir Ophiussa é entrar num túnel de tempo, visualizando
fragmentos da cidade (d)escrita por Pessoa, esteticamente articulados na montagem
fílmica para causar aos nossos sentidos uma experiência ímpar do pensamento do
artista e de suas sensações e emoções mediadas por imagens. Conhecer “[…] a sua
Ophiussa, o seu território místico e imaginário” (Anexo 4).
O guião completo (Anexo 5) do filme constrói essa experiência a partir da
composição de diferentes materiais visuais, como fotografias do arquivo histórico
da cidade, panoramas filmados da natureza (céu e nuvens, rio, árvores) ou de zonas
lisboetas, como a Baixa, o Rossio, o Chiado, o Jardim da Estrela, o Tejo e o mirante de
São Pedro de Alcântara. Ao dividir-se em três atos, como uma peça ou um drama em
desenvolvimento, marcam-se o movimento das estações (primavera, verão, outono
e inverno), a passagem dos anos em Pessoa (representado por três atores diferentes
aos 25, 35 e 45 anos, para além da criança presente na primeira cena do filme) e a
escrita em processo do Livro do Desassossego e dos versos de Álvaro de Campos. Da
criança que parte para a África do Sul, num navio, ao jovem que retorna e ao adulto
que morrerá nessa mesma cidade, sem completar 50 anos, todas as cenas, atravessadas
pelo fio do tempo e das estações, contrastam diferentes efeitos de luz natural (o
amanhecer, o sol pleno, o crepúsculo e o anoitecer), com toda uma palheta de dourado,
azul, cinza e preto, com a luz artificial que cerca o escritor a escrever à mão ou à
máquina sobre uma mesa de trabalho em quartos nos quais se tornam quase palpáveis
o vazio e a solidão. O poeta sonha por palavras e, a cada ato, a “narração” se faz por
vozes masculinas que dizem fragmentos do Livro do Desassossego3 ou versos de Álvaro
3
O realizador utilizou a edição organizada por Jerónimo Pizarro (Lisboa: INCM, 2010).
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394
Alves
Dossier Ophiussa
de Campos espelhados pelas imagens que acompanhamos na tela. Assim, Ophiussa
transforma-se num caleidoscópio e vemos, fascinados, Lisboa, Pessoa, sua escrita,
fotografias antigas da cidade, da natureza, panoramas fílmicos contemporâneos,
num constante movimento que abarca ainda a diversidade dos sons urbanos (o
ruído dos transeuntes nas ruas, dos cafés, das carroças, dos eléctricos [bondinhos],
do rio Tejo tão próximo) com os dos quartos habitados por Pessoa (o ruído da máquina
de escrever, dos passos nas escadas, do que vem da rua pelas folhas entreabertas da
janela) e os da natureza, lá fora, como o cair da chuva, os trovões ao longe e o vento.
Tudo se transforma, para o espectador, em sensações de frio (“gela-me o corpo e a
alma”) ou calor (o sol alto), de acolhimento ou de exílio, de companhia ou solidão,
de vida ou morte. O guião, indicando em cada cena os fragmentos pessoanos escolhidos
e combinados com as estações, partes do dia e as notações meteorológicas, possibilita
a cada assistente, com as imagens e os sons, uma experiência fortemente sinestésica,
sensivelmente marcante, que atravessa nossos corpos como essa Lisboa que transpassa
Pessoa e dele sai transformada, tornando-se paisagem, um construto de sentidos e
de sensações que a arte torna visível ao olhar.
Reproduzem-se também dez fotogramas do filme (Anexo 6) com o domínio
do cinza azulado sobre a paisagem, o olhar aberto sobre espaços icônicos lisboetas,
como o mirante de São Pedro de Alcântara, locais urbanos que se opõem ao fechamento
dos quartos com o foco dirigido para Pessoa, curvado sobre seu trabalho infinito de
escrita, aliado do mundo e da cidade trivial de cada dia. A ligação entre esses espaços
se dá por janelas que aqui e ali são focalizadas e atravessadas pelo olhar pessoano,
emparelhado com o nosso olhar. O espectador torna-se também um heterônimo a
viver e a sentir essa Ophiussa de brumas, chuva, horizontes azulados e acinzentados,
de exteriores articulados com as luzes que brilham na noite ou sobre a mesa do
escritor a criar experiências diversas da vida, de Lisboa, da cidade moderna a partir
do pensar e do sentir de Vicente Guedes, Bernardo Soares e Álvaro de Campos. A
alternância das imagens em preto e branco com as coloridas, das fotografias de
arquivo e filmagem de cenas contemporâneas, das gentes do passado e do presente,
dos muitos espaços sociais que existem numa cidade (as ruas, as praças, os jardins,
as lojas, as fábricas), da luz e da sombra, de ruas, horizonte e céu, todo esse jogo de
movimento do olhar, de planos e de sítios, leva-nos a percorrer diferentes Lisboas
no tempo e na escrita pessoana.
Cumpre-se assim a carta de intenção do realizador e compreendemos por que
Ophiussa é um filme a revisitar, um dossier também da imaginação e dos sentidos
de uma cidade percorrida e vivida por dentro, por Pessoa e por nós, que dividimos
com ele não apenas os afetos, as divagações, as sensações partilhadas por seus
heterônimos, mas sobretudo as paisagens da alma ou da escrita que transmutam a
indiferença ou a melancolia dos dias comuns na liberdade plena dos sonhos.
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Alves
Dossier Ophiussa
ANEXO 1
Sinopse
Percorrendo os textos que Fernando Pessoa deixou sobre Lisboa, o filme propõe um
périplo cinematográfico pela cidade. Através da visão heteronímica do poeta, o filme
recria um território imaginário e intemporal, possivelmente um não – lugar povoado
de “ficções do interlúdio”.
ANEXO 2
Cartaz e postal
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Alves
Dossier Ophiussa
ANEXO 3
Créditos
Produção: Casa Fernando Pessoa, Imagens do Século e Videoteca Municipal de Lisboa.
Parceria estratégica: EGEAC.
Apoios: Cinema São Jorge, REN, Sony – Portugal
Com:
Afonso Mendonça
Nuno Vicente
Rui Mário
Fernando Pessoa – 25 anos
Fernando Pessoa – 35 anos
Fernando Pessoa – 43 anos
Textos lidos por:
Almeno Gonçalves
Ivo Canelas
José Wallenstein
Bernardo Soares
Vicente Guedes
Álvaro de Campos
Figuração especial:
José Neto
Ricardo Filipe
Miguel Gomes
Barbeiro
Fernando Pessoa em criança
Homem engravatado
Direcção de Arte: João Frazão
Direcção de Fotografia: Miguel Pité
Grafismos e Tratamento Digital de Imagem: Fátima Rocha
Assistente de Realização: Bruno Telésforo
Primeiro Assistente de Imagem: Miguel Serra
Segundos Assistentes de Imagem: Álvaro Virtudes e João Pelica
Chefe Maquinista: Edgar Pacheco
Imagens adicionais e Steadycam: Miguel Serra e Ricardo Vale
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
397
Alves
Dossier Ophiussa
Engenheiro de Som: João Azevedo
Montagem e Misturas de Som: Pedro Lourenço
Direcção Geral: António Cunha
Direcção de Produção: Joana Cunha
Assistentes de Produção: Alexandra Martins e Manuela Martins
Selecção de Textos, Realização e Montagem: Fernando Carrilho
ANEXO 4
Nota de Intenções
As cidades e os poetas são por vezes um elo indissociável, eterno, fértil e intemporal. A
paisagem urbana e a teia das relações sociais de uma metrópole marcam os indivíduos,
formam os seus habitantes e inspiram artistas, escritores e criadores.
Fernando Pessoa foi um lisboeta, habitou e viveu a cidade, escreveu sobre ela
e projectou também a partir dela os seus pensamentos, recriando a sua Lisboa e
edificando a sua Ophiussa, o seu território místico e imaginário. O poeta deixou-nos
um conjunto de passagens e fragmentos que nos sugerem uma cidade, um universo
pessoano disperso por ruas, praças, cafés e projectado indefinidamente em paisagens
sonhadas. Na dimensão encantatória de Lisboa, Fernando Pessoa ocupa um lugar
de relevância.
O projecto fílmico que se apresenta propõe um périplo cinematográfico pela
cidade de Lisboa através da prosa e dos poemas de Vicente Guedes, Bernardo Soares
e Álvaro de Campos. Granjeando a riqueza da sua visão heteronímica o filme sugere
um olhar sobre Lisboa convidando o espectador a seguir os passos fictícios de Pessoa
e a recriar ele próprio a sua cidade.
Propõe-se uma viagem no tempo e no espaço a um não-lugar, povoado de
“ficções do interlúdio”!
ANEXO 5
Guião
I. Acto – Primavera
Texto / Locução
Cena 01/a – Largo Teatro de S. Carlos –
Noite,
Cena Visual
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
Conteúdo / Acção
Planos do S. Carlos
Fotografias de Arquivo do teatro
Planos da Janela onde nasceu
Ponto de vista da Janela (ou cimo do
prédio) para o teatro
Excerto de Opera no S. Carlos PG
Time
398
Alves
Dossier Ophiussa
Cena 01/b – Quarto nº 1 de Fernando
Pessoa – Interior
Fernando Pessoa (5 anos) assoma à janela e
vê a burguesia entrar no teatro,
Cena 01/c – Porta do S. Carlos – Exterior –
Noite
fotografia arquivo, pessoas frente ao teatro
Cena 01/d – Quarto de Fernando Pessoa –
Interior – Noite
depois vai para a cama e adormece a ouvir
ópera
começa o genérico
01’00’’
Cena 02 – Vicente Guedes VG – Navio
entra na Barra / Exterior – Final de Dia
Foi por um crepúsculo de vago Outono que
eu parti para essa viagem que nunca fiz.
O céu – impossivelmente me recordo –
era dum resto roxo de ouro triste, e a linha
agónica dos montes, lúcida, tinha uma
auréola cujos tons de morte lhe penetravam,
amaciadores, na astúcia do seu contorno.
Da outra amurada do barco (estava mais
frio e era mais noite sob esse lado do toldo)
o oceano tremia-se até onde o horizonte leste
se entristecia, e onde, pondo penumbras de
noite na linha líquida e obscura do mar
extremo, um hálito de treva pairava como
uma névoa em dia de calor.
O mar, recordo-me, tinha tonalidades
de sombra, de mistura com fogos ondeados
de vaga luz – e era tudo misterioso como
uma ideia triste numa hora de alegria,
profética não sei de quê.
Eu não parti de um porto conhecido.
Nem hoje sei que porto era, porque ainda
nunca lá estive. Também, igualmente, o
propósito ritual da minha viagem era ir em
demanda de portos inexistentes – portos
que fossem apenas o entrar-para-portos;
enseadas esquecidas de rios, estreitos entre
cidades irrepreensivelmente irreais.
Imagens de mar alto de arquivo e actuais
Fotografias de barcos de passageiros (Navio
Herzog)
Imagens actuais de mar com céu
Sintra no horizonte e céu
Trafaria, Costa da Caparica,
Entrada na Barra de Lisboa, surge o Bugio,
depois Lisboa ao Fundo
Vê-se a proa do Navio em entrar no Tejo
Ligeiro nevoeiro
01’45’’
Cena 03 – Bernardo Soares – Quarto nº 2
/Interior
O patrão Vasques, o guarda-livros Moreira,
o caixa Borges, os bons rapazes todos, o
garoto alegre que leva as cartas ao correio,
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
Fernando Pessoa (25 anos) escreve à secretária,
399
Alves
o moço de todos os fretes, o gato meigo –
tudo isso se tornou parte da minha vida;
não poderia deixar tudo isso sem chorar,
sem comprehender que, por mau que me
pare-cesse, era parte de mim que ficava
com elles todos, que o separar-me d’elles
era uma metade e similhança da morte.
Aliás, se amanhã me apartasse de elles
todos, e despisse este trajo da Rua dos
Douradores, a que outra coisa me chegaria
– porque a outra me haveria de chegar?, de
que outro trajo me vestiria – porque de
outro me haveria de vestir?
Dossier Ophiussa
Movimento charriot, fica ao fundo sozinho
a escrever, som da sua voz em fade, composição final, enquadrando a janela
01’00’’
Cena 04 – VG – Quarto nº 2 / Interior
Cada pessoa é apenas o seu sonho de si
próprio. Eu nem isso sou. […]
Sou bocados de personagens de dramas meus.
F. Pessoa divide-se em três personagens,
Campos, Bernardo e Vicente, surgem três
sombras no quarto.
00’30’’
Cena 05 – Bernardo Soares – BS – Baixa /
Exterior amanhecer
No nevoeiro leve da manhã de meiaPrimavera, a Baixa desperta entorpecida e o
sol nasce como se fora lento. Há uma alegria
sossegada no ar com metade de frio, e a
vida, ao sopro leve da brisa que não há,
tirita vagamente do frio que já passou, pela
lembrança do frio mais que pelo frio, pela
comparação com o Verão próximo, mais
que pelo tempo que está fazendo.
[...]
Não abriram ainda as lojas, salvo as leitarias
e os cafés, mas o repouso não é de torpor,
como o de domingo; é de repouso apenas.
Um vestígio louro antecede-se no ar que se
revela, e o azul cora palidamente através
da bruma que se esfina. O começo do movimento rareja pelas ruas, destaca-se a separação dos peões, e nas poucas janelas abertas,
altas, madrugam também aparecimentos.
Os eléctricos estrondeiam a meio-ar o seu
vinco móbil amarelo e numerado. E, de
minuto a minuto, sensivelmente, as ruas
desdesertam-se.
[...]
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
Planos gerais da baixa ao amanhecer,
Ponto de Vista Elevador Santa Justa,
Rua do Carmo, do Ouro, Augusta
Planos pormenor com céu
Lojas da Rua Augusta, Rua do Carmo
fechadas
Fotografias de arquivo
Planos de Janelas, pessoa espreita, abre a
janela
Plano de eléctrico na Rua da Prata, ou outra
Plano Geral Rua Augusta em fast motion
400
Alves
Vogo, atenção só dos sentidos, sem pensamento nem emoção. Despertei cedo; vim
para a rua sem preconceitos. Examino como
quem cisma. Vejo como quem pensa. E uma
leve névoa de emoção se ergue absurdamente em mim; a bruma que vai saindo do
exterior parece que se me infiltra lentamente.
Dossier Ophiussa
Fernando Pessoa (25 anos) sai de casa,
interior de um prédio
SteadyCam – deambula na baixa, Rua
Augusta
02’00’’
Cena 06 – Álvaro de Campos AC –
Imagens de Lisboa – Exterior – Manhã
Outra vez te revejo,
Cidade da minha infância pavorosamente
perdida...
Cidade triste e alegre, outra vez sonho
aqui...
Eu? Mas sou eu o mesmo que aqui vivi, e
aqui voltei,
E aqui tornei a voltar, e a voltar,
E aqui de novo tornei a voltar?
Ou somos todos os Eu que estive aqui ou
estiveram,
Uma série de contas-entes ligadas por um
fio-memória,
Uma série de sonhos de mim de alguém de
fora de mim?
Várias imagens de Lisboa de manhã, actuais
e de arquivo, ponto de vista invulgares,
Arco do Triunfo, Elevador Santa Justa,
Miradouro de Alfama, Lapa, Estrela, filmar
casario, pontos de vista para o Tejo, Elevador
da Bica, Jardim Botânico
Feira da Ladra, pontos de vista para o Tejo
Pontos de vista do Castelo
Outra vez te revejo,
Com o coração mais longínquo, a alma
menos minha.
Outra vez te revejo — Lisboa e Tejo e tudo —,
Transeunte inútil de ti e de mim,
Estrangeiro aqui como em toda a parte,
Casual na vida como na alma,
Fantasma a errar em salas de recordações,
Ao ruído dos ratos e das tábuas que rangem
No castelo maldito de ter que viver...
01’20’’
Cena 07 – BS – Imagens de Lisboa,
transeuntes – Final Manhã
Reparo subitamente que o ruído é muito
maior, que muito mais gente existe. Os
passos dos mais transeuntes são menos
apressados. Aparece, a quebrar a sua
ausência e a menor pressa dos outros, o
correr andado das varinas, a oscilação dos
padeiros, monstruosos de cesto, e [a]
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
Fotografias e imagens de arquivo de
cidadãos, varinas, padeiros, leiteiros
401
Alves
igualdade divergente das vendedeiras de
tudo mais desmonotoniza-se no conteúdo
das cestas, onde as cores divergem mais
que as coisas. Os leiteiros chocalham, como
chaves ocas e absurdas, as latas desiguais do
seu ofício andante. Os polícias estagnam
nos cruzamentos, desmentido fardado da
civilização ao movimento invisível da
subida do dia.
[…]
Acordo de mim e, olhando para tudo, agora
já cheio de vida e de humanidade costumada,
vejo que a névoa que saiu de todo do céu,
salvo o que no azul ainda paira de ainda
não bem azul, me entrou verdadeiramente
para a alma, e ao mesmo tempo entrou
para a parte de dentro de todas as coisas,
que é por onde elas têm contacto com a
minha alma. Perdi a visão do que via. Ceguei
com vista. Sinto já com a banalidade do
conhecimento. Isto agora não é já a
Realidade: é simplesmente a Vida.
Dossier Ophiussa
Imagens actuais de trânsito, lojas e pessoas,
cafés, Brasileira, Martinho da Arcada, Rua
dos restaurantes na Baixa, Pastelaria Suíça,
Café Gelo, Nicola, planos de pessoas na baixa
Planos de Steadycam no chiado
01’10’’
Cena 08 BS – Cortada
Cena 09 – VG – Rossio – Esplanada –
Brasileira – Tarde
Do terraço deste café olho tremulamente
para a vida. Pouco vejo dela – a espalhada –
nesta sua concentração neste largo nítido e
meu. Um marasmo como um começo de
bebedeira, elucida-me a alma de coisas.
Decorre fora de mim nos passos dos que
passam e na fúria regulada de movimentos
a vida evidente e unânime. Nesta hora dos
sentidos estagnarem-me e tudo me parecer
outra coisa – as minhas sensações um erro
confuso e lúcido –, abro asas mas não me
movo, como um condor suposto.
Homem de ideais que sou, quem sabe
se a minha maior aspiração não é realmente
não passar de ocupar este lugar a esta mesa
deste café?
Tudo é vão, como mexer em cinzas,
vago como o momento em que ainda não
é antemanhã.
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
Imagens da estátua de Pessoa na Brasileira,
ponto de vista para as pessoas que passam,
Imagens do Largo do Chiado e Rua Garret
Imagens em tele de pessoas
Imagens de arquivo e fotografias do Chiado
402
Alves
Dossier Ophiussa
E a luz bate tão serenamente e perfeitamente nas coisas, doura-as tão de realidade
sorridente e triste! Todo o mistério do mundo
desce até ante meus olhos se esculpir em
banalidade e rua.
00’50’’
Cena 10 – BS – Praça da Figueira – Tarde
Volvo lentos os passos mais rápidos do que
julgo ao portão para onde subirei de novo
para casa. Mas não entro; hesito; sigo para
diante. A Praça da Figueira, bocejando
venderes [sic] de várias cores, cobre-me,
esfreguezando-se o horizonte de ambulante.
Avanço lentamente, morto, e a minha visão
já não é minha, já não é nada: é só a do
animal humano que herdou, sem querer, a
cultura grega, a ordem romana, a moral
cristã e todas as mais ilusões que formam a
civilização em que sinto.
Onde estarão os vivos?
Entrada da Rua dos Douradores
Steady-Cam entrada na rua que dá acesso à
Praça da Figueira. Pelo Rossio
Imagens da Praça da Figueira actuais
Imagens de arquivo “Lisboa de Ontem Hoje
e Amanhã”
Fotografias de arquivo da Praça
Steady-Cam velho dá milho aos pombos na
Praça da Figueira, vagabundos na Praça da
Figueira
00’40’’
Cena 11 – BS – Céu de Lisboa – Tarde
Nuvens... Hoje tenho consciência do céu,
pois há dias em que o não olho mas sinto,
vivendo na cidade e não na natureza que a
inclui. Nuvens... São elas hoje a principal
realidade, e preocupam-me como se o velar
do céu fosse um dos grandes perigos do
meu destino. Nuvens... Passam da barra
para o Castelo, de Ocidente para Oriente,
num tumulto disperso e despido, branco às
vezes, se vão esfarrapadas na vanguarda
de não sei quê; meio-negro outras, se, mais
lentas, tardam em ser varridas pelo vento
audível; negras de um branco sujo, se, como
se quisessem ficar, enegrecem mais da
vinda que da sombra o que as ruas abrem
de falso espaço entre as linhas fechadoras
da casaria.
Imagens actuais em contra picado do céu
visto da baixa
Planos do Castelo vistos do Terreiro do
Paço
Planos do Castelo de S. Jorge
Planos do café do Teatro Taborda
Planos da Escola Academia
Planos em fast motion do céu de Lisboa
00’50’’
Cena 12 – BS – Largo Costa do Castelo –
Tarde
Não é nos largos campos ou nos jardins
grandes que vejo chegar a Primavera. É nas
poucas árvores pobres de um largo pequeno
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
Filmar a um fim-de-semana
403
Alves
da cidade. Ali a verdura destaca como uma
dádiva e é alegre como uma boa tristeza.
Amo esses largos solitários, intercalados
entre ruas de pouco trânsito, e eles mesmos
sem mais trânsito que as ruas. São clareiras
inúteis, coisas que esperam, entre tumultos
longínquos. São de aldeia na cidade.
Passo por eles, subo qualquer das ruas
suas afluentes, depois desço de novo essa
rua, para a eles regressar. Visto do outro
lado é diferente, mas a mesma paz deixa
dourar de saudade súbita – sol no ocaso – o
lado que não vira na ida.
Dossier Ophiussa
Largo Costa do Castelo
Diversos Planos
Imagens de arquivo, eventualmente
Imagens de steady, rua de cima,
Surge o Tejo
00’40’’
Cena 13/a – BS – Imagens Arquivo – S.
Pedro de Alcântara-Tarde
Disse Amiel que uma paisagem é um estado
de alma, mas a frase é uma felicidade frouxa
de sonhador débil. Desde que a paisagem é
paisagem, deixa de ser um estado da alma.
Objectivar é criar, e ninguém diz que um
poema feito é um estado de estar pensando
em fazê-lo. Ver é talvez sonhar, mas, se lhe
chamamos ver em vez de lhe chamarmos
sonhar, é que distinguimos sonhar de ver.
Imagens de arquivo de paisagens de Lisboa,
fotografias e imagens em movimento
Cena 13/b – BS – Quarto nº 2 –Tarde
De resto, de que servem estas especulações
de psicologia verbal? Independentemente
de mim cresce erva, chove na erva que
cresce, e o sol doira a extensão da erva que
cresceu ou vai crescer; erguem-se os montes
de muito antigamente, e o vento passa com
o mesmo modo com que Homero, ainda que
não existisse, o ouviu. Mais certo era dizer
que um estado da alma é uma paisagem;
haveria na frase a vantagem de não conter
a mentira de uma teoria, mas tão-somente
a verdade de uma metáfora.
Pessoa (25 anos) escreve à máquina, pensa
vai à janela
Cena 13/c – BS Jardim S. Pedro de
Alcântara – Tarde
Estas palavras casuais foram-me ditadas
pela grande extensão da cidade, vista à luz
universal do sol, desde o alto de São Pedro
de Alcântara. Cada vez que assim contemplo
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
Jardim S. Pedro de Alcântara, Mini-Jib
Vários planos, panorâmicas
404
Alves
Dossier Ophiussa
uma extensão larga, e me abandono do
metro e setenta de altura, e sessenta e um
quilos de peso, em que fisicamente consisto,
tenho um sorriso grandemente metafísico
para os que sonham que o sonho é sonho, e
amo a verdade do exterior absoluto com
uma virtude nobre do entendimento.
O Tejo ao fundo é um lago azul, e os
montes da outra banda são de uma Suíça
achatada. Sai um navio pequeno – vapor de
carga preto – dos lados do Poço do Bispo
para a barra que não vejo. Que os Deuses
todos me conservem, até à hora em que
cesse este meu aspecto de mim, a noção
clara e solar da realidade externa, o instinto
da minha inimportância, o conforto de ser
pequeno e de poder pensar em ser feliz.
01’35’’
Cena 14 – VG – S. Pedro de Alcântara –
Tarde
Mas as paisagens sonhadas são apenas
fumos de paisagens conhecidas e o tédio de
as sonhar é também quase tão grande como
o tédio de olharmos para o mundo.
Panorâmicas
Miradouro S. Pedro de Alcântara
00’30’’
Cena 15 – VG – Deambula – Chiado – Tarde
Todos os dias a Matéria me maltrata. A minha
sensibilidade é uma chama ao vento.
Passo por uma rua e estou vendo na face
dos transeuntes, não a expressão que eles
realmente têm, mas a expressão que teriam
para comigo se soubessem a minha vida, e
como eu sou, se eu trouxesse transparente
nos meus gestos e no meu rosto a ridícula e
tímida anormalidade da minha alma.
[...]
Conviver com os outros é uma tortura para
mim. E eu tenho os outros em mim. Mesmo
longe deles sou forçado ao seu convívio.
Sozinho, multidões me cercam. Não tenho
para onde fugir a não ser que fuja de mim.
Vários planos de steadycam, no Chiado,
Rua Garret e Rua do Carmo, steady viaja
entre a multidão que olha para a câmara
(Ruas à sombra )
01’30’’
Cena 16 – BS – Cortada
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
405
Alves
Dossier Ophiussa
Cena 17 – AC – Porto Marítimo de Alcântara
– Fim Tarde
Vai pelo cais fora um bulício de chegada
próxima,
Começam chegando os primitivos da espera,
Já ao longe o paquete de África se avoluma
e esclarece.
Vim aqui para não esperar ninguém,
Para ver os outros esperar,
Para ser os outros todos a esperar,
Para ser a esperança de todos os outros.
Porto marítimo de Alcântara, chegada de
paquete
Trago um grande cansaço de ser tanta coisa.
Chegam os retardatários do princípio,
E de repente impaciento-me de esperar,
de existir, de ser,
Vou-me embora brusco e notável ao
porteiro que me dita muito... mas
rapidamente.
Regresso à cidade como à liberdade.
Vale a pena sentir para ao menos deixar de
sentir.
Planos 24 de Julho, ponto de vista alto??
01’30’’
Cena 18 – BS – Cortada
Cena 19 – BS – Imagens de Lisboa – Exterior
– Noite
Alastra ante meus olhos saudosos a cidade
incerta e silente.
As casas desigualam-se num aglomerado
retido, e o luar, com manchas de incerteza,
estagna de madrepérola os solavancos mortos
da confusão. Há telhados e noite, janelas e
idade média. Não há de que haver arredores. Paira no que se vê um vislumbre de
longínquo. Por sobre de onde vejo há ramos
negros de árvores, e eu tenho o sono da
cidade inteira no meu coração dissuadido.
Lisboa ao luar e o meu cansaço de amanha!
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
Panorâmica da Baixa, elevador Santa Justa,
lua cheia
01’20’’
406
Alves
Dossier Ophiussa
II. Acto – Verão
Texto / Locução
Cena 20 – BS – Quarto nº 3 – Interior –
Manhã
Conteúdo/Acção
Time
Fernando Pessoa (35 anos) olha o nascer do
dia pela janela
Cena 20 B – BS – Cortada
Cena 21 – BS – Cortada
Cena 22 – BS – Cortada
Cena 23 – AC – Cais das Colunas – Exterior –
Manhã
Sozinho, no cais deserto, a esta manhã de
Verão,
Olho pró lado da barra, olho pró Indefinido,
Olho e contenta-me ver,
Pequeno, negro e claro, um paquete
entrando.
Vem muito longe, nítido, clássico à sua
maneira.
Deixa no ar distante atrás de si a orla vã do
seu fumo.
Vem entrando, e a manhã entra com ele, e
no rio,
Aqui, acolá, acorda a vida marítima,
Erguem-se velas, avançam rebocadores,
Surgem barcos pequenos detrás dos navios
que estão no porto.
Há uma vaga brisa.
Mas a minh'alma está com o que vejo menos.
Com o paquete que entra,
Porque ele está com a Distância, com a
Manhã,
Com o sentido marítimo desta Hora,
Com a doçura dolorosa que sobe em mim
como uma náusea,
Como um começar a enjoar, mas no espírito.
Planos Cais das Colunas, barcos no Tejo,
imagens de arquivo, barcas com vela,
documentário de arquivo, sobre as barcas
Fotografias de arquivo
02’00’’
Cena 25 – CORTADA
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
407
Alves
Dossier Ophiussa
Cena 26 – BS – Rossio –Exterior - Meio Dia
– Céu meio nublado
À roda dos meios da praça, como caixas de
fósforos móveis, grandes e amarelas, em
que uma criança espetasse um fósforo
queimado inclinado, para fazer de mau
mastro, os carros eléctricos rosnam e tinem;
arrancados, assobiam a ferro alto. À roda
da estátua central as pombas são migalhas
pretas que se mexem, como se lhes desse um
vento espalhador. Dão passinhos, gordas
sobre pés pequenos.
[...]
Do lado do oriente, entrevista, a cidade
ergue-se quase a prumo falso, assalta
estaticamente o Castelo. […] O vento
parece leste, talvez porque aqui mesmo, de
repente, cheira vagamente ao maduro e
verde do mercado oculto. Do lado oriental
da praça há mais forasteiros que do outro.
De repente estou só no mundo. Vejo
tudo isto do alto de um telhado mental.
Estou só no mundo. Ver é estar distante.
Ver claro é parar. Analisar é ser estrangeiro.
Toda a gente passa sem roçar por mim.
Tenho só ar à minha volta. Sinto-me tão
isolado que roço a distância entre mim e o
meu fato. Sou uma criança, com uma
palmatória mal acesa, que atravessa, de
camisa de noite, uma grande casa deserta.
Vivem sombras que me cercam – só sombras,
filhas das coisas mortas e da luz que me
acompanha. Elas me rondam, aqui ao sol,
mas são gente.
Grua, pessoas cruzam a praça
Eléctricos circundam a praça, Imagens de
arquivo
Pombos na estátua
Vista do Castelo, grua
Esplanada Pastelaria Suíça, passadeira para
Rua Augusta
Grua noutro local, ponto de vista ruínas do
Carmo, elevador Santa Justa ou alto de
algum edifício ou hotel
Steady-cam meio da multidão
Slow motion, pessoas no Rossio, efeito de
arrasto
03’10’’
Cena 27 – AC – Cortada
Cena 28 – BS – Cortada
Cena 29 – AC – Casario / Exterior – Meio Dia
Lisboa com suas casas
De várias cores,
Lisboa com suas casas
De várias cores,
Lisboa com suas casas
De várias cores...
À força de diferente, isto é monótono.
Como à força de sentir, fico só a pensar.
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
Começar com imagens de arquivo de
casario a preto e branco
408
Alves
Se, de noite, deitado mas desperto,
Na lucidez inútil de não poder dormir,
Quero imaginar qualquer coisa
E surge sempre outra (porque há sono,
E, porque há sono, um bocado de sonho),
Quero alongar a vista com que imagino
Por grandes palmares fantásticos.
Dossier Ophiussa
Descobrir casas coloridas no filme mistérios
(algumas perto do Jardim do Príncipe Real)
(outras em transversais da Rua da Escola
Politécnica)
Mas não vejo mais,
Contra uma espécie de lado de dentro de
pálpebras,
Que Lisboa com suas casas
De várias cores.
Sorrio, porque, aqui, deitado, é outra coisa.
À força de monótono, é diferente.
E, à força de ser eu, durmo e esqueço que
existo.
Iniciar com vários planos de casas coloridas
viradas para o Tejo, Alfama, Mouraria, Santos,
Príncipe Real, 24 de Junho
Fica só, sem mim, que esqueci porque
durmo,
Lisboa com suas casas
De várias cores.
01’35’’
Cena 30 – VG – Beira-Rio – Meio Dia
Em vez de almoçar – necessidade que tenho
de fazer acontecer-me todos os dias – fui ver
o Tejo, e voltei a vaguear pelas ruas sem
mesmo supor que achei útil à alma vê-lo.
Ainda assim...
Viver não vale a pena. Só olhar é que
vale a pena. Poder olhar sem viver realizaria
a felicidade, mas é impossível, como tudo
quanto costuma ser o que sonhamos. O êxtase
que não contivesse a vida!...
Imagens do Tejo, mulher 40 anos olha e pinta
um quadro de paisagem do Rio Tejo (encenação) Imagens em tele, fundo desfocado
(diafragma aberto)
Plano geral Rio Tejo
01’20’’
Cena 31 – BS – Rua dos Douradores /
exterior – Meio Dia
Há sossegos do campo na cidade. Há momentos, sobretudo nos meios-dias de estio, em
que, nesta Lisboa luminosa, o campo, como
um vento, nos invade. E aqui mesmo, na
Rua dos Douradores, temos o bom sono.
Que bom à alma ver calar, sob um sol
alto quieto, estas carroças com palha, estes
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
Planos da Rua dos Douradores ao meio dia
Fazer mais planos da rua vazia
Imagens de arquivo, fotografias (encenar fotos
com Pessoa presente)
409
Alves
Dossier Ophiussa
caixotes por fazer, estes transeuntes lentos,
de aldeia transferida!
Cena 31b – BS – Escritório Interior – Meio Dia
Eu mesmo, olhando-os da janela do escritório,
onde estou só, me transmuto: estou numa
vila quieta da província, estagno numa
aldeola incógnita, e porque me sinto outro
sou feliz.
Bem sei: se ergo os olhos, está diante
de mim a linha sórdida da casaria, as janelas
por lavar de todos os escritórios da Baixa, as
janelas sem sentido dos andares mais altos
onde ainda se mora, e, ao alto, no angular
das trapeiras, a roupa de sempre, ao sol
entre vasos e plantas. Sei isto, mas é tão
suave a luz que doura tudo isto, tão sem
sentido o ar calmo que me envolve, que
não tenho razão sequer visual para abdicar
da minha aldeia postiça, da minha vila de
província onde o comércio é um sossego.
Fernando Pessoa (35 anos), espreita à janela
Janela para a Rua dos Douradores, telhados
e edifícios
Filmar sapateiro, outra loja
02’10’’
Cena 32 – BS – Rua dos Douradores –
Exterior – tarde
Penso às vezes que nunca sairei da Rua dos
Douradores. E isto escrito então parece-me
a eternidade.
Contra Picado, Pessoa (35 anos) à Janela
fumando
00’30’’
Cena 35 – BS – Jardim da Estrela – Exterior
– tarde
O jardim da Estrela, à tarde, é para mim a
sugestão de um parque antigo, no século
anterior do desencanto da alma.
[…]
Não quero mais da vida do que senti-la
perder-se nestas tardes imprevistas, ao som
de crianças alheias que brincam, nestes
jardins engradados pela melancolia das
ruas que os cercam, e copados, para além
dos ramos altos das árvores, pelo céu velho
onde as estrelas recomeçam.
Ponto de vista da Basílica da Estrela
Imagens de arquivo manipuladas
Grades para a rua
Travelling circular cp copas das árvores
01’00’’
Cena 36 - BS – Jardim Príncipe Real – Tarde
Não sei que coisa estranha e pobre existe na
substância íntima dos jardins citadinos que
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
Imagens de arquivo, fotografias
Ponto de vista alto
410
Alves
só a posso sentir bem quando me não sinto
bem a mim. Um jardim é um resumo da
civilização – uma modificação anónima da
Natureza. As plantas estão ali, mas há
ruas-ruas. Crescem árvores, mas há bancos
por baixo da sua sombra. No alinhamento
virado para os quatro lados da cidade, ali
só largo, os bancos são maiores e têm quase
sempre uma abundância de pessoas.
Não odeio a regularidade das flores em
canteiros. Odeio, porém, o emprego público
das flores. Se os canteiros fossem em parques
fechados, se as árvores crescessem sobre
recantos feudais, se os bancos não tivessem
alguém, haveria com que consolar-me na
contemplação inútil dos jardins. Assim, na
cidade, regrados mas úteis, os jardins são
para mim como gaiolas, em que as espontaneidades coloridas das árvores e das flores
não têm senão espaço para o não ter, lugar
para dele não sair, e a beleza própria sem a
vida que pertence a ela.
Dossier Ophiussa
Travellings
Bancos de jardim, amorcê para as ruas
Travelling canteiros
02’30’’
Cena 37 – BS – Cortada
Cena 38 – BS – Cortada
Cena 39 – AC – Cortada
Cena 40 – VG – Cortada
Cena 41 – BS – Viagem de Eléctrico 28 /
Imagens de Arquivo
Vou num carro eléctrico, e estou reparando
lentamente, conforme é meu costume, em
todos os pormenores das pessoas que vão
adiante de mim. Para mim os pormenores
são coisas, vozes, frases. Neste vestido da
rapariga que vai em minha frente decomponho o vestido em o estofo de que se compõe,
o trabalho com que o fizeram – pois que o
vejo vestido e não estofo – e o bordado leve
que orla a parte que contorna o pescoço
separ-se-me em retrós de seda, com que se
o bordou, e o trabalho que houve de o bordar.
E imediatamente, como num livro primário
de economia política, desdobram-se diante
de mim as fábricas e os trabalhos – a fábrica
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
Recriação eléctrico com pessoas vestidas á
época
Plano conjunto perfil de passageiros
PAP frontal de rapariga morena com vestido
verde à época olhando a Janela
Tilt para baixo
Imagens de arquivo
Senhora a bordar
Fábricas de confecção
Máquinas, operários
Escritórios, livros de contabilidade
Retratos de pessoas da época
411
Alves
onde se fez o tecido; a fábrica onde se fez o
retrós, de um tom mais escuro, com que se
orla de coisinhas retorcidas o seu lugar junto
ao pescoço; e vejo as secções das fábricas, as
máquinas, os operários, as costureiras, meus
olhos virados para dentro penetram nos
escritórios, vejo os gerentes procurar estar
sossegados, sigo, nos livros, a contabilização
de tudo; mas não é só isto: vejo, para além,
as vidas domésticas dos que vivem a sua vida
social nessas fábricas e nesses escritórios...
[...]
Toda a vida social jaz a meus olhos.
Para além disto pressinto os amores, as
secrecias, a alma, de todos quantos trabalharam para que esta mulher que está diante
de mim no eléctrico use, em torno do seu
pescoço mortal, a banalidade sinuosa de um
retrós de seda verde escura fazendo inutilidades pela orla duma fazenda verde menos
escura.
Dossier Ophiussa
Plano Médio da rapariga que agora olha
para ele
Cena 41 B – corredor do Eléctrico 28
Entonteço. Os bancos do eléctrico, de um
entre-tecido de palha forte e pequena, levamme a regiões distantes, multiplicam-se-me
em indústrias, operários, casas de operários,
vidas, realidades, tudo.
Saio do carro exausto e sonâmbulo. Vivi a
vida inteira.
CP eléctrico do museu da carris,
FP G levanta-se e caminha no corredor
Eléctrico pára e FP G sai, plano sobreexposto
04’00’’
Cena 42 – BS – Cortada
Cena 43 - BS - Rua do Arsenal / Alfândega
Amo, pelas tardes demoradas de Verão, o
sossego da cidade baixa, e sobretudo aquele
sossego que o contraste acentua na parte
que o dia mergulha em mais bulício. A Rua
do Arsenal, a Rua da Alfândega, o prolongamento das ruas tristes que se alastram para
leste desde que a da Alfândega cessa, toda
a linha morta e separada dos cais quedos –
tudo isso me conforta de tristeza, se me
insiro, por essas tardes, na solidão do seu
conjunto. Vivo uma era anterior àquela em
que vivo; gozo de sentir-me coevo de Cesário
Verde, e tenho em mim, não outros versos
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
Domingo, planos vazios das Ruas do Arsenal
e Alfândega, cafés, prédios
412
Alves
como os dele, mas a substância igual à dos
versos que foram dele. Por ali arrasto, até
haver noite, uma sensação de vida parecida
com a dessas ruas. De dia elas são cheias
de um bulício que não quer dizer nada; de
noite são cheias de uma falta de bulício que
não quer dizer nada. Eu de dia sou nulo, e
de noite sou eu. Não há diferença entre
mim e as ruas para o lado da Alfândega,
salvo elas serem ruas e eu ser alma, o que
pode ser que nada valha ante o que é a
essência das coisas. Há um destino igual,
porque é abstracto, para os homens e para
as coisas – uma designação igualmente
indiferente na álgebra do mistério.
Dossier Ophiussa
Steady-Cam
Imagens de arquivo
Steady-cam mais ao final do Dia
02’00’’
Cena 44 – AC – Quarto nº 3 / Noite
(BS – Cena Áudio ver texto Realidade Anafrodisíaca)
Pessoa (35 anos), pára, ouve e pensa
Começa a haver meia-noite, e a haver
sossego,
Por toda a parte das coisas sobrepostas,
Os andares vários da acumulação da vida...
Calaram o piano no terceiro-andar...
Não oiço já passos no segundo-andar...
No rés-do-chão o rádio está em silêncio...
Vai tudo dormir...
Fico sozinho com o universo inteiro.
Não quero ir à janela:
Se eu olhar, que de estrelas!
Que grandes silêncios maiores há no alto!
Que céu anticitadino! —
Antes, recluso,
Num desejo de não ser recluso,
Escuto ansiosamente os ruídos da rua...
Um automóvel! — demasiado rápido! —
Os duplos passos em conversa falam-me
O som de um portão que se fecha brusco
dói-me...
Vai tudo dormir...
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
Som do portão a fechar
02’00’’
413
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Alves
Dossier Ophiussa
com seu sorriso triste de verdade inteira.
Tudo quanto tenho tido, sim, tem sido o
não ter sabido buscar, senhor feudal de
pântanos à tarde, príncipe deserto de uma
cidade de túmulos vazios.
Cena 57 – BS – Cena Cortada
Cena 58 – BS – Quarto Nº 4 / Rua dos
Douradores – Princípio Noite
Estou quase místico, com eles, ao falar deles,
mas seria incapaz de ser mais que estas
palavras escritas ao sabor da minha inclinação
ocasional. Serei sempre da Rua dos Douradores, como a humanidade inteira. Serei
sempre, em verso ou prosa, empregado de
carteira. Serei sempre, no místico ou no
não-místico, local e submisso, servo das
minhas sensações e da hora em que as ter.
Serei sempre, sob o grande pálio azul do
céu mudo, pajem num rito incompreendido, vestido de vida para cumpri-lo, e
executan-do, sem saber porquê, gestos e
passos, posições e maneiras, até que a festa
acabe, ou o meu papel nela, e eu possa ir
comer coisas de gala nas grandes barracas
que estão, dizem, lá em baixo ao fundo do
jardim.
Pessoa (40 anos) escreve (manuscrito) à
secretária, olha para a janela
Rua dos Douradores
Noite
Luz Quente
Janela Concelho Nacional Juventude
Planos Contra-Picados, visão do céu.
Plano em profundidade da rua
Cena 59 – BS – Imagens de Arquivo
Saudades! Tenho-as até do que me não foi
nada, por uma angústia da fuga do tempo e
uma doença do mistério da vida. Caras que
via habitualmente nas minhas ruas habituais
– se deixo de vê-las entristeço; e não me foram
nada, a não ser o símbolo de toda a vida.
O velho sem interesse das polainas sujas,
que cruzava frequentemente comigo às nove
e meia da manhã? O cauteleiro coxo que me
maçava inutilmente? O velhote redondo e
corado do charuto à porta da tabacaria? O
dono pálido da tabacaria? O que é feito de
todos eles, que, porque os vi e os tornei a
ver, foram parte da minha vida? Amanhã
também eu me sumirei da Rua da Prata, da
Rua dos Douradores, da Rua dos Fanqueiros.
Amanhã também eu – a alma que sente e
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
Barbeiro entra em casa, traz garrafa
aguardente e faz a barba a Pessoa.
Imagens de Lisboa, anos 70 e 80
Fotografias de um cauteleiro, Rua da
Prata, Rua dos Fanqueiros
Fotografias de Pessoa a deambular pela
cidade, misturadas com fotografias
falsas, na taberna, a ler o jornal, etc
421
Alves
pensa, o universo que sou para mim – sim,
amanhã eu também serei o que deixou de
passar nestas ruas, o que outros vagamente
evocarão com um “o que será dele?”. E tudo
quanto faço, tudo quanto sinto, tudo quanto
vivo, não será mais que um transeunte a
menos na quotidianidade de ruas de uma
cidade qualquer.
Dossier Ophiussa
Várias fotografias de “gente morta”
ANEXO 6
Fotogramas
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
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Dossier Ophiussa
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Dossier Ophiussa
Bibliografia
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_____ (2010). Livro do Desasocego. Edição crítica de Jerónimo Pizarro. Lisboa: Imprensa NacionalCasa da Moeda.
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
426
Alves
Dossier Ophiussa
IDA ALVES é professora titular de literatura portuguesa do Instituto de Letras da Universidade
Federal Fluminense, Brasil. Docente do Programa de Pós-Graduação Estudos de Literatura –
UFF. Vice-coordenadora do Polo de Pesquisas Luso-Brasileiras (PPLB), Real Gabinete Português
de Leitura. Pesquisadora do Conselho Nacional de Pesquisa/CNPq, Brasil, e Colaboradora do
Instituto de Literatura Comparada da Universidade do Porto. Coordena a Plataforma eletrônica
Páginas Luso-Brasileiras em Movimento e o site Escritor Carlos de Oliveira. Autora e coautora de coletâneas, capítulos e artigos em revistas acadêmicas sobre poesia portuguesa moderna e contemporânea, além de estudos de paisagem nas literaturas de língua portuguesa. Destacam-se os
livros: Revistas de poesia: Brasil / Moçambique / Portugal (2022); Carlos de Oliveira e Nuno Júdice,
Poetas Personagens da Linguagem (2021); Paisagens em Movimento Rio de Janeiro e Lisboa Cidades
Literárias, 3 vols. (2020-2021); Poesia Contemporânea e Tradição Brasil – Portugal (2017); Grafias da
cidade na poesia contemporânea – Brasil e Portugal (2015); e Poetas que interessam mais (2011).
IDA ALVES is a full professor of Portuguese literature at the Institute of Letters of the Federal
Fluminense University, Brazil. She is a lecturer in the Graduate Program in Literary Studies at
UFF. Vice-coordinator of the Portuguese-Brazilian Research Center (PPLB), Royal Portuguese
Cabinet of Reading. Researcher at the National Research Council/CNPq, Brazil, and Collaborator
at the Institute of Comparative Literature of the University of Porto. She coordinates the electronic
platform Luso-Brazilian Pages in Movement and the website Escritor Carlos de Oliveira. Author and
co-author of anthologies, chapters, and articles in academic journals on modern and contemporary
Portuguese poetry, as well as studies on landscape in Portuguese-language literatures. Among
her books, the following stand out: Revistas de poesia: Brasil / Moçambique / Portugal (2022); Carlos
de Oliveira e Nuno Júdice, Poetas Personagens da Linguagem (2021); Paisagens em Movimento Rio de
Janeiro e Lisboa Cidades Literárias, 3 vols. (2020-2021); Poesia Contemporânea e Tradição Brasil –
Portugal (2017); Grafias da cidade na poesia contemporânea – Brasil e Portugal (2015); and Poetas que
interessam mais (2011).
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
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Chollet
À propos de Le songe de B. Soares
La vie entière de l’âme humaine est mouvement
dans la pénombre.
Fernando Pessoa1
Les documents
Les documents présentés ici ont été mis en forme lors de la demande d’aide au CNC
(Centre National du Cinéma). Nous avons demandé avec la société de production
Gasp! une subvention que nous avons touché.
Le film était presque finalisé à ce moment. La note d’intention explicite ma
démarche et le projet d’adaptation d’un texte de Fernando Pessoa. Ces documents
correspondent dans l’ensemble au résultat du film, sauf la fin du court-métrage qui
a été complètement remaniée.
Le storyboard a été élaboré après l’animation des plans, ce qui est le contraire
de ce qui est fait d’habitude. Il sert surtout pour que la commission puisse visualiser
ce que va être le film.
Le film
C’est difficile de retrouver totalement l’idée qui m’a poussé à créer ce court-métrage.
Je pense que j’étais un peu déçu de la tournure qu’avait pris mon précédent film. Je
travaillais depuis un an sur une série où je faisais beaucoup de tâches répétitives et
tous les jours des longs trajets de train qui m’épuisaient.
J’avais découvert l’œuvre de Fernand Pessoa quelques années avant. J’ai
entendu pour la première fois son nom dans une émission de radio sur France
Culture. J’ai tout de suite été fasciné par ses personnalités et j’ai commencé à lire les
poèmes du Gardeur de troupeaux, puis l’ensemble de son œuvre. Le poème Bureau de
tabac m’a subjugué. Puis j’ai lu le Livre de l’intranquillité qui est devenu pour un temps
mon livre préféré.
Donc pendant cette année mélancolique de travail, les textes de Pessoa
faisaient de multiples échos à mes propres émotions et pensées. J’avais l’impression
de lire ce que j’aurais voulu écrire.
J’ai proposé d’adapter le poème bureau de tabac en court métrage
d’animation à mon producteur mais celui-ci n’a pas été très enthousiaste… Ce qui
m’a amené finalement sur ces longs trajets de train à faire des illustrations des textes
de l’Intranquillité juste pour le plaisir. Je prenais une phrase ou deux et à partir de
celle-ci je me laissait porter par des souvenirs, éléments obsessionnels ou des idées
récurrentes. Ainsi on peut retrouver la balançoire de mon enfance, une personne à
la fenêtre.
1
Cette présentation est un témoignage de l'auteur, qui expose ainsi l'un de ses travaux créatifs.
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J’ai repris des éléments graphiques qui m’habitaient et qui me semblaient
répondre avec l’œuvre de Pessoa. Ainsi j’ai repris l’œil, le fantôme d’Odilon Redon,
mais aussi des personnages des caprices de Goya, ou encore l’homme dans le tableau
d’Anselm Kiefer « The Renowned Orders of the Night ». J’avais également la citation
d’un film de Guy Debord en tête : « In girum imus nocte et consumimur igni » (« Nous
tournons en rond dans la nuit et nous sommes dévorés par le feu »).
Petit à petit j’ai cumulé pas mal de dessins et mon idée de livre illustré s’est
transformé en film d’animation. J’ai commencé à animer (toujours sur les trajets de
train) les illustrations que j’avais faite sur ordinateur. Faire ce film me permettait de
donner du sens à mes journées. J’ai dû faire cela six mois.
J’avais dans l’idée de faire un film immobile, mélancolique et sombre (ce qui
me rendait étonnamment très enthousiaste) qui se finirait dans une explosion de
mouvement et d’émotions. C’est un court avec beaucoup de traits qui a été long à
fabriquer, avec beaucoup de « faux fixe » (un dessin redessiné trois fois pour faire
vibrer le trait).
Ensuite les trajets ont pris fin et j’en ai profité pour finir les images du courtmétrage. J’ai fais une version montée avec une musique Indonésienne (une musique
qui m’a porté pendant toute la création de l’animation) qui me semblait s’accorder
parfaitement à mon projet : Sudamala de Gamelan Dharma Swara. Et comme je ne
comprenais pas les paroles de ce chanteur j’ai commencé à mettre en sous-titres les
phrases de Bernardo Soares, et cela semblait parfait. J’ai montré mon projet à mon
producteur qui a été enfin intéressé. Mais la bande son ne lui convenait pas. On a
réussi à toucher quelques aides pour la musique et l’image. Ce qui nous permis
d’enregistrer une musique et d’enregistrer une voix off.
Ce court-métrage a été projeté dans quelques festivals et reste peu vu. De mon
point de vue c’est une sorte de boule noire très personnelle que j’expose sous différents
masques. Même si j’ai beaucoup aimé le fabriquer je ne referais certainement pas un
autre film comme celui-ci, je n’ai plus les mêmes envies. Je pars dans d’autres
directions maintenant.
Texte de Fernando Pessoa
J’ai choisi cet extrait car c’est qui s’accordait le mieux avec mes préoccupations et
inquiétudes existentielles. Un texte magnifiquement écrit qui me touche profondément,
qui allie lucidité, mystère, et interrogation métaphysique. C’est un texte sur le
mouvement perpétuel de la pensée et des émotions. Quand je lisais ce texte je me
disais que je ne pourrais jamais rien écrire de mieux, qu’il exprimait parfaitement
ma pensée. Ces phrases je voulais les partager, avec les images qu’il me suscitait.
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Fernando Pessoa, Livre de l’intranquillité, texte L.l.63
La vie entière de l’âme humaine est mouvement dans la pénombre. Nous vivons
dans le clair-obscur de la conscience, sans jamais nous trouver en accord avec ce que
nous sommes, ou supposons être. Les meilleurs d’entre nous abritent la vanité de
quelque chose, et il y a une erreur d’angle dont nous ignorons la valeur. Nous
sommes quelque chose qui se déroule pendant l’entracte d’un spectacle ; il nous
arrive partais, par certaines portes, d’apercevoir ce qui n’est peut-être que décor. Le
monde entier est confus, com me des voix perdues dans la nuit.
Les pages où je consigne ma vie, avec une clarté qui subsiste pour elles, je
viens de les relire, et je m’interroge. Qu’est-ce que tout cela, à quoi tout cela sert-il ?
Qui suis-je lorsque je sens ? Quelle chose suis-je en train de mourir, lorsque je suis ?
Comme un homme qui tenterait, de très haut, de distinguer les êtres vivants
dans une vallée, ainsi je me contemple moi-même depuis un sommet et je suis,
malgré tout, un paysage confus et indistinct.
C’est durant ces heures où s’ouvre un abîme dans mon âme que le plus petit
détail vient m’accabler, comme une lettre d’adieu. Je me sens perpétuellement sur le
point de m’éveiller, je me subis comme l’enveloppe de moi-même, dans un
étouffement de conclusions. Je crierais de bon cœur, si mon cri pouvais parvenir
quelque part. Mais je suis plongé dans un sommeil profond, qui se déplace de
certaines sensations vers d’autres comme un cortège de nuages – ces nuages qui
parsèment de vert et de soleil l’herbe tachetée d’ombre des vastes prairies.
On dirait que je cherche, à tâtons, un objet caché je ne sais où, et personne ne
m’a dit ce qu’il était. Nous jouons à cache-cache avec personne. Il existe, quelque
part, un subterfuge transcendant, une divinité fluide et seulement entendue.
Oui, je relis ces pages qui représentent des heures vécues pauvrement, de
petits répits, des illusions, de grands espoirs déviés vers le paysage, des tristesses
semblables à des pièces où l’on pénètre jamais, certaines voix, une immense fatigue
– l’évangile qui reste à écrire.
Chacun de nous a sa vanité, et cette vanité consiste à oublier que les autres
aussi existent, et ont une âme semblable à la nôtre. Ma vanité, ce sont ces quelques
pages, certains passages, certaines questions...
Je me suis relu ? Faux ! Je n’ose pas, je ne peux pas me relire. A quoi cela serviraitil ? Celui qui est dans ces pages, c’est un autre. Je ne comprends déjà plus rien...
Fernando Pessoa, Livre de l’intranquillité, texte L.l.133
[…] ne goûtant le rêve que lorsque je ne rêve point, et ne goûtant le monde que
lorsque je rêve loin de lui. Pendules oscillant sans cesse, toujours en mouvement
sans arriver jamais, n’allant que pour revenir, éternellement prisonnier de la double
fatalité d’un centre et d’un mouvement inutile.
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NOTE D’INTENTION
Depuis longtemps les textes de Fernando Pessoa hante mon travail sans que je
parvienne à comprendre l’influence qu’il avait sur moi alors que depuis toujours, je
cherche à transcrire dans mes courts métrages le sentiment qu’ils évoquent.
La confusion de la pensée et de nos perceptions sont les thématiques qui
ressortent de l’œuvre de cet auteur et correspondent à des questionnements intimes
et personnels. Pessoa nous fait douter sur l’existence de nos vies, de nos actes,
comme si nous tournions dans le noir, attirés par des desseins qui au fur et à mesure
que l’on s’en rapproche perdent de leur importance. Son regard distancié et poétique
nous amène lentement vers une dissolution des évidences.
Je me rappelle mon adolescence où l’absence de signification de l’existence
était pour moi une vraie préoccupation. C’est à cette période charnière que l’on se
demande Qui suis-je ? Que faire de ma vie dans le temps qui m’est imparti ? C’est à
ce moment de ma vie que faire des films est apparue comme une évidence ; faire un
film pour moi c’est tenter de faire sens. Le texte de Pessoa répond à mes réflexions
et les sublime par sa sensibilité. Il s’accorde parfaitement avec cet part mélancolique
en moi ; son texte décrit ce que je ressens.
Bien qu’à priori conceptuel, ce ressenti est une manière d’aborder le sens de
la vie, de l’interroger, de l’expérimenter. Certaines phrases de ces textes de ne
cessent de frapper mon imagination et c’est la raison pour laquelle ce projet me tient
à cœur. L’objectif n’est pas d’illustrer simplement mais bien d’en donner un point
de vue personnel comme une traduction en image d’émotions liées à un style
d’écriture pour mener les spectateurs dans cette ambiance mélancolique ponctuée
d’images mentales fortes, comme un cheminement spirituel. Je souhaite que le
spectateur se laisse guider et se laisse porter par l’image comme il pourrait le faire à
l’écoute d’un poème, d’une musique.
Les scènes dessinées sont oniriques et symboliques, elles sont l’interprétation
visuelle du monologue. Le personnage les traverse, s’y observe, s’y démultiplie. Ce
sont des paysages mentaux, fait d’arbres, de souvenirs d’enfance, de sensations
abstraites animées. L’homme à la balançoire est l’image centrale du film ; elle est le
motif qui résonne avec la pensée du narrateur. Je me sers de la mise en abîme
permanente explorée par Fernando Pessoa, pour me déplacer de l’imaginaire à la
vie concrète et créer une cohésion au film.
Les différentes scènes seront accompagnées d’une voix-off qui guidera le
spectateur pour apporter des clés, du sens. Il s’agit d’une adaptation libre et concise
afin de ne pas noyer l’image sous un flux continu. Ce monologue sera interprété par
un chanteur balinais accompagné du groupe Gamelan Dharma Swara. Cette voix en
contrepoint, rythmera le film et contrebalancera la noirceur des images. Elle
apportera une étrangeté onirique, un décalage presque grotesque. Cette voix théâtrale
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et chantante a pour but de nous plonger dans le spectacle mental du narrateur —
dans le spectacle mental des images.
La musique balinaise accompagnant cette voix est formée d’un ensemble
d’instruments principalement percussifs. La musique de Gamelan est cyclique, elle
crée un lien profond entre ce qui se passe à l’écran et ce que l’on entend. Elle donne
une respiration et une tonalité unique au film.
Le court-métrage sera animé en 2D numérique. Les recherches graphiques et
les décors seront dessinés à la plume et à l’encre de chine. Un important travail sur
le clair obscur sera apporté à chaque scène. Je cherche par ce dessin en noir et blanc
à me concentrer sur l’essentiel. Ce médium s’accorde avec la matière même du texte
de Fernando Pessoa par sa sensibilité et son acuité. Je souhaite approfondir et
renouveler ce que j’ai commencé à expérimenter sur mon précédent court-métrage
Le Promeneur avec un trait à la fois maîtrisé et lâché en limitant au maximum
l’utilisation du crayonné.
Je suis influencé pour ce projet des films d’animation de Koji Yamamura (Un
médecin de campagne) et d’Alexandre Petrov (Le journal d’un homme ridicule) qui
allient profondeur et expérimentation dans le dessin et la réalisation. Le dessin est
également nourri par la série de gravures les Caprices de Francisco de Goya et par
les clairs-obscurs vibrants de Malcolm McKesson.
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Bibliographie
CHOLLET, Thibault (2019). Le Songe de B. Soares. https://vimeo.com/thibaultchollet .
PESSOA, Fernando (2004). Le livre de l'intranquillité. Françoise Laye, traducteur. Édition intégrale. Paris :
Christian Bourgois Editeur.
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Passionné de lecture depuis son enfance, THIBAULT CHOLLET a étudié pour devenir bibliothécaire,
mais insatisfait car dans les bibliothèques, on organise surtout les livres plutôt que de les lire. En
parallèle de ses études, il a appris à dessiner et à animer de manière autodidacte, en réalisant
des films dans sa chambre. Cela a abouti à Septembre, son film de fin d’études, découvert par
Gasp!, ses producteurs depuis 10 ans. Thibault a réussi à entrer dans le secteur de l’animation
grâce à un stage de longue durée et, par un heureux concours de circonstances, il est devenu
assistant réalisateur. Depuis lors, il a travaillé sur plusieurs séries télévisées à différents postes
techniques. Il a cherché à alterner entre le travail sur les séries et les projets personnels, ce qui
lui a donné l’opportunité de réaliser plusieurs courts métrages expérimentaux. Récemment,
après 4 ans d’attente, Thibault réalise un nouveau court métrage, un projet qui alliera narration
et expérimentations visuelles.
Apaixonado pela leitura desde a infância, THIBAULT CHOLLET estudou para se tornar bibliotecário,
porém insatisfeito, pois em bibliotecas, principalmente, organiza-se mais do que se lê. De forma
paralela aos estudos, aprendeu a desenhar e a animar por conta própria, criando filmes no seu
quarto. Isso resultou em Septembre, o seu filme de conclusão de curso, descoberto pela Gasp!, os
seus produtores há 10 anos. Thibault conseguiu ingressar no setor de animação através de um
estágio de longa duração e, por uma feliz coincidência, assumiu o cargo de assistente de direção.
Desde então, trabalhou em várias séries de televisão em diferentes funções técnicas. Ele procurou
alternar entre o trabalho em séries e projetos pessoais, o que lhe proporcionou a oportunidade
de dirigir diversas curtas-metragens experimentais. Recentemente, após quatro anos de espera,
Thibault está realizando uma nova curta-metragem, um projeto que combinará narração com
experimentações visuais.
Passionate about reading since childhood, THIBAULT CHOLLET studied to become a librarian, but
was dissatisfied as in libraries, books are mostly organized rather than read. Alongside his
studies, he taught himself drawing and animation by creating films in his room. This led to
Septembre, his final student film, discovered by Gasp!, his producers for the past 10 years.
Thibault managed to enter the animation sector through a long-term internship and, through a
fortunate coincidence, became an assistant director. Since then, he has worked on several
television series in various technical roles. He sought to alternate between work on series and
personal projects, affording him the opportunity to direct several experimental short films.
Recently, after four years of waiting, Thibault is making a new short film, a project that will blend
narration and visual experiments.
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Ventura
Paisagem-Pessoa
Apresentar o material ainda sem título definitivo e que estou chamando de “Paisagem-Pessoa”, documento-arte de Eloar Guazzelli, é também introduzir os leitores
ao universo onírico do criador gaúcho que tem na fruição de literatura em geral, e
de literatura portuguesa em particular, elementos disparadores de produção artesanal
de arte em quadrinhos, de cinema de animação e de ilustrações para livros.
O nome do artista está indissoluvelmente ligado ao cinema de animação
brasileiro há, pelo menos, três décadas, o que faz com que seu traço seja imediatamente reconhecido por parte do público que, no entanto, a partir dos anos 2010,
pode fruir obras literárias nas quais a participação de Guazzelli mostrou tanto seu
repertório como diretor de arte e artista plástico, como também sua ligação intensa
com parte específica da literatura portuguesa.
Antes de adentrar nas relações de Eloar Guazzelli com o universo pessoano,
que se deram, no mundo editorial, pela publicação dos livros Fernando Pessoa e
outros Pessoas (Eloar Guazzelli e Davi Fazzolari, 2011), Apetece-lhe Pessoa? Antologia
poética para ler e ouvir (José Jorge Letria, Susana Ventura e Eloar Guazzelli, 2017) e
Eu, Fernando Pessoa em quadrinhos (Susana Ventura e Eloar Guazzelli), este último,
lançado em junho de 2013 e acompanhado pelo curta de animação Eu, Fernando
Pessoa por Guazzelli (Eloar Guazzelli, Adriana Pinto e Nick Graham-Smith, 2013),
gostaria de iluminar a participação do artista na edição que, em 2011, fez a casa
editorial Cosac Naify do conto “Um dia de chuva”, de Eça de Queirós.
Nesta obra, impressa em duas cores – azul e castanho – e ilustrada por Eloar
Guazzelli, podem ser vistas camadas de leituras literárias do artista que estariam
posteriormente presentes tanto nos livros sobre o universo pessoano e no curtametragem acima mencionados, quanto no documento-arte “Paisagem-Pessoa”. Neste
momento, trago algumas reflexões do artista a respeito desse trabalho a partir das
obras literárias, o que evidencia as referidas camadas de leitura literária. E, como
este número de Pessoa Plural é dedicado às relações de Fernando Pessoa com o
cinema, vou me servir do espetáculo de imagens em movimento, convidando os
leitores a assistirem ao filme Um dia de chuva, de Eça de Queiroz e Eloar Guazzelli1,
em que o artista fala sobre sua percepção do casarão do conto de Eça de Queirós
como uma “ilha”. Destaco as palavras que Eloar Guazzelli pronuncia a partir de
um minuto e vinte segundos do vídeo: “[..] tudo acontece como se fosse uma ilha.
Eu entendi como uma ilha... pessoas ilhadas por uma chuva torrencial, que cria
dois ambientes, o interno e o externo”.
Além da possibilidade de vermos parte das ilustrações criadas para a edição
em questão enquanto ouvimos o artista nesta elaboração, as questões levantadas
por ele nos mostram como seu trabalho está ligado à leitura literária que vem de
um passado de leitura familiar que ele evoca no vídeo (e que depois será retomada
no documento-arte por um texto manuscrito). Aos dois minutos e dez do vídeo,
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Acessível em https://www.youtube.com/watch?v=mlIV528dDxs
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Eloar Guazzelli declara “eu mergulhei nessa paisagem portuguesa [...] os objetos
são protagonistas também, são personagens”. Muito do que o artista expressa
durante esse vídeo de divulgação aparecerá marcadamente nos dois álbuns em
quadrinhos que ele publicou na sequência da filmagem: no mesmo ano de 2011,
Fernando Pessoa e outros Pessoas e, no ano de 2013, Eu, Fernando Pessoa em quadrinhos
(cf. VENTURA, 2014). Em ambos figuram questão da ilha e do estar ilhado, o
contraponto entre paisagens internas e externas, e muitas das obsessões do artista:
como o voo de animais fantásticos ou de um coração; alagamentos e chuvas
torrenciais e constantes, que possibilitam a transição entre ambientes internos e o
ar livre; e a oscilação entre o deambular pelos ares e a exploração de uma fauna
aquática exuberante e onírica. Nesse universo subaquático a figura humana
aparece muitas vezes equipada com um escafandro atravessado por representantes
de um imaginário animal que dança nas águas.
O mencionado curta-metragem Eu, Fernando Pessoa por Guazzelli2 traz a
representação do contraste entre os ambientes interno e externo às construções
arquitetônicas e, ao ar livre, Guazzelli encena sua obsessão pelo voo, no caso realizado pelo coração de pessoa que realiza a visitação das cidades fantasmáticas de
sua vida, pelas salas de cinema em si consideradas e representadas nas cidades
onde o poeta viveu. Numa delas Fernando Pessoa está figurado e multiplicado
assistindo ao próprio obituário que leva, ao final do curta-metragem à vertiginosa
descida ao elemento aquático.
A composição do curta-metragem acompanha elementos do roteiro do álbum
em quadrinhos, que pressupunha, além de uma apresentação dos mais conhecidos
heterônimos pessoanos, uma apresentação biográfica que, no caso em questão, por
escolha da roteirista, foi realizada a partir do obituário do poeta.
Assim chegamos ao documento-arte “Paisagem-Pessoa”, que o próprio artista
diz ter sido pensado e elaborado a partir de 2008. A montagem que o artista nos
oferece começa pela página em que se lê no topo “Paisagem”. Nela, a linguagem
está bastante próxima da elaboração demonstrada nos dois álbuns de quadrinhos e
no curta-metragem, já muito depurada em relação ao que veremos a partir da
página 3. A página 2 repete a palavra “Paisagem”, mostra o coração-símbolo da
edição do álbum Eu, Fernando Pessoa em quadrinhos e do curta-metragem Eu, Fernando
Pessoa por Guazzelli, e reproduz parte do posfácio do artista ao referido álbum de
quadrinhos, elaborado em 2012, em que, com letra manuscrita, ele revela o que
significou realizar o álbum enquanto vivia algumas semanas ao lado de sua mãe,
doente terminal, que faleceu durante a elaboração do livro. A opção do artista para
esse documento-arte inédito, é interromper o posfácio com as palavras: “Desenhei
enquanto conversávamos sobre literatura. Ela faleceu em julho desse ano […]”. E
na sequência está a camada mais antiga de elaboração artística em relação a todas
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Acessível em https://www.youtube.com/watch?v=StyRLiVYDjs&t=4s
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as publicações mencionadas acima: parte de seu trabalho para um filme de animação que, segundo Guazzelli, foi realizada a partir de 2008.
Para as pessoas que acompanham o seu trabalho, as páginas 3 a 10 do documento-arte desvelam os percursos e as escolhas do artista para vários dos trabalhos
que realizaria nos anos subsequentes, tanto em animação quanto em livros.
As ilustrações realizadas para o livro mais recente do conjunto, Apetece-lhe
Pessoa? Antologia poética para ler e ouvir, apontam para a síntese das leituras
pessoanas de Eloar Guazzelli até o momento, nas quais o coração flutuante de
Fernando Pessoa, sua deambulação e as questões do isolamento aquático povoado
de peixes, moluscos e escafandristas estão cada vez mais presentes e marcadas.
A paixão de Eloar Guazzelli por Fernando Pessoa pulsa e, esperamos,
continuará a reverberar nas próximas obras.
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ANEXO 1 – Eu, Fernando Pessoa – Animação por Guazzelli (storyboard / book trailer).
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ANEXO 2 – “Paisagem-Pessoa”
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Bibliografia
Livros
GUAZZELLI, Eloar; FAZZILARI, Davi (2011). Fernando Pessoa e outros Pessoas. São Paulo: Saraiva.
LETRIA, José Jorge; VENTURA, Susana (2017) (orgs.). Apetece-lhe Pessoa? Antologia poética para ler e
ouvir. Ilustrações de Eloar Guazzelli. São Paulo: Peirópolis.
QUEIRÓZ, Eça; GUAZZELLI, Eloar (2011). Um dia de chuva. São Paulo: Cosac & Naify.
VENTURA, Susana (2014). “Eu, Fernando Pessoa (em quadrinhos): um percurso pela construção do
álbum”. Pessoa Plural—A Journal of Fernando Pessoa Studies, n.º 5, primavera, pp. 187-194.
Brown Digital Repository. Brown University Library. https://doi.org/10.7301/Z0CF9NM9
VENTURA, Susana; GUAZZELLI, Eloar (2013). Eu, Fernando Pessoa em quadrinhos. São Paulo: Peirópolis.
Filmes
Um dia de chuva, de Eça de Queiroz e Eloar Guazzelli, sem dados de diretor, Editora Cosac & Naify,
2011. Acessível em https://www.youtube.com/watch?v=mlIV528dDxs
Eu, Fernando Pessoa por Guazzelli, Eloar Guazzelli/ Adriana Pinto e Nick Graham-Smith, 2013.
Acessível em https://www.youtube.com/watch?v=StyRLiVYDjs&t=4s
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SUSANA VENTURA é doutora em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa
pela Universidade de São Paulo (2006), desenvolve pesquisa de Pós-doutorado no Instituto de
Arte da UFRGS. Pesquisadora do Centro de Literaturas Lusófonas e Europeias da Universidade
de Lisboa (CLEPUL) e do Centro de Pesquisas sobre os Mundos Ibéricos Contemporâneos
(CRIMIC), da Sorbonne (Paris IV). Curadora da exposição Linguaviagem (Ministério das Relações
Exteriores e Museu da Língua Portuguesa; Brasil, 2010). Autora de vários títulos voltados ao
público jovem, com destaque para Convite à navegação: uma conversa sobre literatura portuguesa
(2012), Eu, Fernando Pessoa em quadrinhos (2013, ambos pela Editora Peirópolis, receberam Selo
Altamente Recomendável pela Fundação Nacional para o Livro Infantil e Juvenil, delegação
brasileira do IBBY), O caderno da Avó Clara (Editora Florear Livros, Prêmio Jabuti, 2017) e Um
lençol de infinitos fios (Editora Biruta, Prêmio Biblioteca Nacional, 2020). O curriculum vitae
completo pode ser acessado em http://lattes.cnpq.br/3828608150600836
SUSANA VENTURA holds a PhD in Comparative Studies of Portuguese Language Literatures
from the University of São Paulo (2006) and is conducting post-doctoral research at the
Institute of Arts of UFRGS. She is a researcher at the Center for Lusophone and European
Literatures of the University of Lisbon (CLEPUL) and the Center for Research on Contemporary Iberian Worlds (CRIMIC) at Sorbonne (Paris IV). She curated the exhibition Linguaviagem
(Ministry of Foreign Affairs and Museum of the Portuguese Language; Brazil, 2010). Author of
several titles aimed at young audiences, notably Convite à navegação: uma conversa sobre
literatura portuguesa (2012), Eu, Fernando Pessoa em quadrinhos (2013, both published by Editora
Peirópolis, received the Highly Recommended Seal from the National Foundation for Children’s
and Youth Books, Brazilian delegation of IBBY), O caderno da Avó Clara (Florear Livros Publisher,
Jabuti Award, 2017) and Um lençol de infinitos fios (Biruta Publisher, National Library Award,
2020). The full curriculum vitae can be accessed at http://lattes.cnpq.br/3828608150600836
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A Confissão de Laerte
Fiz de mim o que não soube,
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti,
e perdi-me.
Quando quiz tirar a mascara,
Estava pegada á cara.
Já tinha envelhecido.
Estava bebado, já não sabia vestir o dominó que não
tinha tirado.
Deitei fóra a mascara e dormi no vestiario
Como um cão tolerado pela gerencia
Por ser inoffensivo
E vou escrever esta historia para provar que sou sublime.
“Tabacaria” (PESSOA, 2014: 203-204)
A revista Circo foi publicada no Brasil de outubro de 1986 a maio de 1988 pela Circo
Editorial, reunindo histórias em quadrinhos brasileiras e estrangeiras, sob a edição
geral de Toninho Mendes e Luiz Gê, e tiragem de cinquenta mil exemplares por
edição. Além da Circo, a editora lançou com sucesso as revistas Chiclete com Banana,
de Angeli, e Geraldão, de Glauco. A revista publicava uma introdução original em
forma de HQ, apresentando a sua proposta, além de charges e notícias sobre quadrinhos. Representou, sem sombra de dúvida, um grande momento da arte sequencial
no Brasil. Embora as histórias estrangeiras reunissem autores relevantes, foram as
nacionais que mais se destacaram, lançando nomes como Laerte Coutinho – autora
da série Piratas do Tietê, sua criação mais conhecida. A primeira história da série foi
publicada na revista Chiclete com banana. Passou, a seguir, pelas páginas da revista
Circo e, finalmente, ganhou uma revista própria homônima, com catorze edições em
banca, que circularam com grande sucesso no início dos anos 1990, atingindo tiragens
de mais de 150.000 exemplares.
Essas histórias foram reunidas em álbum pela primeira vez em 2007, numa
coleção de três volumes luxuosos lançados pela editora Devir: Piratas do Tietê – a saga
completa, de significativo valor histórico. Algumas são verdadeiros clássicos do
quadrinho brasileiro, como “A balada do lobisomem”, “O Poeta (com a participação
especial de Fernando Pessoa)” e “Vozes da selva”. Além das histórias, os livros
trazem um perfil do autor, o texto inédito em livro da peça de teatro Piratas do Tietê,
o filme (que esteve em cartaz no Teatro Popular do SESI em 2003), e um pôster
colorido. Cada sequência é precedida por desenhos e fotos de abertura, reproduções
das capas das revistas originais e textos da autora que resgatam as circunstâncias
que envolveram a criação de cada uma.
A considerar o depoimento de Laerte à Pessoa Plural, a artista não tinha
qualquer familiaridade com a obra de Pessoa, ao selecioná-lo para uma “participação
especial” na célebre história “O Poeta”, de sua famosa trupe Piratas do Tietê:
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A Confissão de Laerte
Eu nunca tinha lido Fernando Pessoa. Só conhecia as frases pinçadas aqui e ali, a tal coisa do
“poeta fingidor”, etc. Quis fazer uma aventura dos Piratas onde eles interagiriam com uma
personagem intelectual, alguém conduzido por uma alma lírica, e disso extrair cenas interessantes. Acabei indo pro Fernando Pessoa porque tinha um livro dele em casa: O Eu profundo
e os outros Eus. Não sei se era aquisição minha ou de outra pessoa. Fui lendo e achando que
os versos provocavam ações interessantes dos piratas. Tudo foi se encaixando – e acabei curtindo
o Fernando Pessoa.
De resto, não sou uma leitora muito experiente de poesia. Minha bagagem se resume a itens
esparsos, dos quais o Fernando Pessoa passou a fazer parte. [...] Mas, fora esse episódio interativo,
não me aprofundei muito mais no universo do Fernando Pessoa. Estive em Portugal, vi uma
estátua dele, vi um lugar onde ele esteve, um buracão no litoral, de rochedos com um abismo
gorgolejante onde diziam que alguém tinha se suicidado. Mais longe que isso não fui.
[Em depoimento a Marcelo Mello]
Entretanto, os poemas transcritos por Laerte Coutinho, ou simplesmente Laerte,
nos balões que contêm as falas do Poeta não parecem resultado de uma escolha
casual, recaindo sobre a obra do enigmático heterônimo Álvaro de Campos. Além
da temática considerada homoerótica por alguns críticos da “Ode Marítima” e do
poema “Tabacaria”, por exemplo, citados pela quadrinista, é interessante mencionar
que Campos tem uma participação especial na história romântica de Pessoa com
Ofélia Queiroz, documentada nas cartas trocadas pelo casal, nas quais ele surge
como uma entidade não-fictícia, requisitando para si a atenção do poeta “Íbis” a fim
de compor, com a namorada deste, um triângulo amoroso. Por essas razões, Campos
talvez seja a figura pessoana que mais proximamente se capacita a uma tradução do
drama em gente vivenciado pela autora dos quadrinhos (àquela época ainda um autor).
Os personagens dos versos da “Ode Marítima” atestam o peculiar fascínio do
jovem Pessoa pelas aventuras de pirataria de Edgar Allan Poe no livro A narrativa de
Arthur Gordon Pym, ao qual se refere não poucas vezes, e que trata do relato de um
motim e de um assombroso massacre a bordo do brigue americano Grampus, em
rota para os mares do sul em 1827. O enredo envolve detalhes da recaptura do navio
pelos sobreviventes, seu naufrágio, a provação pela qual passaram em virtude da
fome, seu resgate pela escuna britânica Jane Guy, o breve cruzeiro desta embarcação
no Oceano Antártico, sua captura e, finalmente, o massacre da tripulação em um
arquipélago, juntamente com as incríveis descobertas no extremo sul a que essa
lamentável calamidade deu origem.
Na pena de Fernando Pessoa, porém, todo esse enredo de peripécias e embates
é filtrado, como bem percebe Laerte, na possessão espiritual do heterônimo Campos
pelo “delírio das cousas marítimas” (PESSOA, 2014: 80). Mas não o delírio coletivo da
grandeza histórica dos valorosos navegadores da época dos Grandes Descobrimentos,
tão cara a Portugal (que vem a figurar, nebulosamente, no livro Mensagem de Pessoa).
O delírio de Campos em sua ode, ao contrário, reflete uma anônima e privada “febre
da pirataria antiga” (PESSOA, 2014: 86). Uma espécie de sensualidade sadomasoquista
que o “sol dos trópicos” teria inoculado nas “veias intensivas” do engenheiro naval,
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A Confissão de Laerte
tatuando a sua “imaginação de imagens trágicas e obscenas” (COUTINHO, “O Poeta”,
p. 3 [na Pessoa Plural]).
É, portanto, para a obscenidade das cenas evocadas pelo Poeta em seu
discurso solitário – impermeável à percepção dos Piratas do Tietê – que atenta Laerte
em sua história. Acostumados a barbarizar a cidade de São Paulo, seus habitantes,
tradições e costumes, de modo a descortinar ironicamente as suas incongruências a
fim de angariar os aplausos dos leitores, os Piratas são surpreendidos, desta feita,
pela imprevisível resistência de um adversário incomum, que parece indiferente à
fanfarronice de seus assaltos. De sua posição obscena, nos bastidores da cena
principal – e embora acusando os efeitos destrutivos das invectivas dos valentões
sobre o seu ser –, o Poeta põe-se, cada vez mais, numa posição altiva e imune à pesada
artilharia detonada em sua direção pela turba escarnecedora.
O riso catártico, responsável pelo brilho de outras histórias, não funciona na
história em questão. Os agressores, retratados como uma cambada de bullies ignóbeis,
parecem dever mais a sua representação aos moldes dos personagens tirânicos do
clássico infantojuvenil Peter Pan, de J. M. Barrie (pela óbvia inspiração no Capitão
Gancho e no jacaré), do que à história de Poe e seu Arthur Gordom Pym, que tanto
seduzia Pessoa. Por sua vez, o que parece seduzir Laerte na “Ode Marítima” é posto
em destaque num quadrinho (quinta página de “O Poeta” [a Pessoa Plural]) no qual
o Poeta responde à violência dos piratas incendiários, que jogam querosene em seu
escafandro, com uma ironia muito diferente da usual nessas tirinhas: “Vossa fúria,
vossa crueldade, como falam ao sangue | dum corpo de mulher que foi meu outrora,
e cujo cio sobrevive!” (PESSOA, 2014: 88); referindo-se, provavelmente, ao corpo
feminino evocado por Campos no desordenado êxtase desses versos:
Ser no meu corpo passivo a mulher-todas-as-mulheres
Que fôram violadas, mortas, feridas, rasgadas plos piratas!
Ser no meu ser subjugado a fêmea que tem de ser dêles!
E sentir tudo isso – todas estas cousas duma só vez – pela espinha!
Ó meus peludos e rudes herois da aventura e do crime!
Minhas marítimas feras, maridos da minha imaginação!
Amantes casuais da obliquidade das minhas sensações!
Queria ser Aquela que vos esperasse nos portos,
A vós, odiados amados do seu sangue de pirata nos sonhos!
Porque ela teria comvôsco, mas só em espírito, raivado
Sobre os cadáveres nus das vítimas que fazeis no mar!
(PESSOA, 2014: 89-90)
Imerso em um imaginário centrado na heteronormatividade, o poeta assimila
os códigos que associam a realização homoerótica à doença, à neurose, à anomalia.
Uma vez internalizada tal estrutura, o poeta é levado a compreender que o caminho
de saída do “escafandro” se dá, necessariamente, pela degradação do caráter e da
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A Confissão de Laerte
decência. A exacerbação da violência, o impulso de um desejo autopunitivo se revela,
ainda, como influxo das relações de subordinação e dominação, mantidas pela sociedade
patriarcal. Nesse contexto, a imagem do homem representa força e fúria e a imagem
da mulher, por conseguinte, é reificada, concebida como fonte de prazer do homem
e associada à fragilidade e à passividade (cf. BISPO e OLIVEIRA, 2017: 88).
Subitamente, a presença dos versos de Álvaro de Campos passa a contextualizar
os Piratas do Tietê, aos olhos de Laerte, numa dimensão muito diferente daquela até
então inspirada pelo Capitão Gancho de Barrie. A narrativa passa a contrariar o
horizonte de expectativas do público, até então acostumado ao fragoroso sucesso
dos protagonistas, submetendo-os a uma série de desastres: a falência de suas armas,
o naufrágio de sua fragata, e finalmente um monumental ataque deste mesmo
público, outrora entusiástico, que agora se atira ao mar, em bandos, para contestálos aos gritos. Essa inusitada conclusão, à época, já antecipava a radical negação de
Laerte aos Piratas do Tietê décadas depois, como documenta o diretor Otto Guerra
em seu longa metragem animado A Cidade dos Piratas, cujo roteiro relata os percalços
de uma conturbada produção de quinze anos, desde o argumento inicial de 2003 até
o lançamento do filme em 2018. Como diz Eliane GORDEEFF (2021: 225):
O então cartunista Laerte, aos 56 anos, tomou a resolução de assumir outra identidade de
gênero e passou a repudiar seus personagens, considerando-os homofóbicos, enquanto Otto
Guerra foi diagnosticado com câncer e passou a considerar o filme a sua última obra animada.
Diante desse contexto, a produtora-chefe (Marta Machado) abandonou a produção em razão
da dificuldade de trabalhar com o diretor-roteirista, pois este alterava o roteiro a todo momento.
E apesar desse caos, mas exatamente em virtude dele, o filme é ímpar, “não sendo para
amadores”.
De uma suposta homenagem aos famosos quadrinhos de Laerte, a certa altura
renegados por sua criadora, o filme transforma-se num discurso metalinguístico
crítico e emblemático para o qual convergem diversos gêneros, desde o documental,
biográfico e autobiográfico até o ficcional mais surrealista, expressos tanto no resgate
da série dos Piratas como em animação, live-action e colagens. O filme renasce do
dilúvio de indefinições e problemas sob o peso dos quais parecia haver afundado, a
exemplo do Poeta que renasce das águas na história original de Laerte.
Depois da batalha travada contra ele pelos Piratas do Tietê, o personagem
Pessoa é retratado saindo do mar, vivo e de braços abertos, a recitar os versos do seu
mestre, o heterônimo Alberto Caeiro: “Colhamos flores, e que o seu perfume suavize
o momento” (décima página de “O Poeta” [a Pessoa Plural]), enquanto caminha
resolutamente rumo a outra voracidade, tão ou mais problemática: a da grande
mídia, que simula exaltá-lo enquanto submete sua natureza a um patético escrutínio,
risível e igualmente violento. Este movimento também é incorporado ao filme de
Otto Guerra numa bem-humorada costura das entrevistas de fato concedidas pela
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nova Laerte a programas de televisão conduzidos por conhecidas figuras como Antônio
Abujamra, Marília Gabriela, Jean-Claude Bernardet, Maura Roth, e outros.
É preciso dizer que a nova Laerte, tardiamente exposta a esses desafios após
renegar os Piratas do Tietê e retirar a máscara do rosto, certamente se identificaria
com outro poeta da trupe de Orpheu: o amigo de Fernando Pessoa, Mário de SáCarneiro, autor da novela A confissão de Lúcio, na qual ecoam inegáveis ruídos da
Balada do cárcere de Reading, de Oscar Wilde. Pois jamais haveria, no espaçoso Mário
de Sá-Carneiro, lugar para confissões medíocres, para não dizer constrangedoras,
como aquelas cobradas à Laerte pela grande mídia nacional.
Exilado em Paris, locus amoenus e emblemático dos sonhos civilizatórios dos
pais fundadores da nação portuguesa moderna – a geração de 70 –, polindo as unhas
de suas belas mãos, Sá-Carneiro escrevia textos inadequados à sua época, conquanto
verdadeiramente alusivos ao futuro: não aos generosos vinte anos que determinou
como margem para a deflagração do entendimento de seus versos, em “Caranguejola”
(“Daqui a vinte anos a minha literatura talvez se entenda”), mas aos atuais mais de
100 anos que já se contam desde a sua suposta partida “para a terra natal”, em 1916.
Não era, e não seria jamais, um “moço de escritório” como Pessoa, decalcado
ao avesso na multidão dos comuns, apaixonando-se contidamente e em silêncio pelos
Freddies, rapazes louros e brancos que se esvaneciam nas sombras da irrealidade do
desejo insatisfeito, como loucas imperatrizes “por reinar” e princesas “destronadas”.
Preferiria morrer a acatar esse destino. Disto ele sabia e foi sobre isto que encheu
páginas e páginas de uma única confissão: a de que morreria jovem para um mundo
morto – “Morre jovem o que os deuses amam”, diria PESSOA (2005, p. 455); e a de que
só aceitaria as “riquezas” e os “louros” (ou “Ricardo de Loureiro”?) deste mundo
mediante um ardil que o libertasse para as alegrias da realização de suas inclinações.
Ele seria “Lúcio”, do latim luciferius, “portador da luz”, “o que traz iluminação”, primo-irmão de Lúcifer – a “estrela da manhã”, o “filho da alva”, o planeta
“Vênus” –, antes de este ser abduzido pela Igreja medieval e metamorfoseado na
figura de “Satanás”: a encarnação do Mal que é a desobediência, o questionamento
dos valores morais e das regras sociais que levam ao embalsamamento do espírito
vivo num suporte, acidamente definido por Pessoa, como o de um “cadáver adiado
que procria”. A relação engendrada, em sua novela, com “Marta”, shape-shifting
feminino de “Ricardo”, cujo nome significa “senhora” ou “patroa”, ou ainda, a verdadeira “dona da casa” – ou do “corpo”, objeto do prazer almejado pelo parceiro –
comunga astrologicamente, pela alusão ao planeta Marte e ao deus mitológico da
guerra, com a alusão ao planeta Vênus e à deusa mitológica da beleza e do amor. Ambos
engendram na literatura clássica uma famosa relação adúltera, cujas implicações não
estão, certamente, distantes dos propósitos alegóricos do autor desta obra.
Lúcio e Marta/Ricardo, Vênus e Marte, homem feminino e mulher masculina,
unidos pela transfiguração alquímica e mágica do sexo num elemento andrógino
esfuziante – traduzido na imagem de um templário e aterrorizante Baphomet (que
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aparece reconfigurado, no filme de Otto Guerra, na figura compósita de um Minotauro,
homem-touro amputado de um chifre, que é um alterego de Laerte) – protagonizam,
na novela de Sá-Carneiro, um crime absolutamente execrável e totalmente delirante,
pelo qual o suposto autor da narrativa aceita pagar com a privação de dez anos de
sua liberdade e pelo qual o verdadeiro autor da obra, talvez, tenha aceito pagar com
o sacrifício da própria vida. Ou talvez não.
Apraz-me pensar que a juventude, irreverência e ousadia dos órficos
portugueses não teria ficado no papel, nos registros de duas simples publicações
financiadas pelo pai de Sá-Carneiro, e de uma terceira vinda a público apenas nos
anos 1980; em que pese, naturalmente, o invulgar valor dos textos ali compilados. O
apreço à palavra, profundo em Pessoa, talvez respaldasse essa possibilidade; porém
o caráter mais raso e inflado de Sá-Carneiro – e do influente Álvaro de Campos, em
seu radical desvio revisionário do monástico Alberto Caeiro – não convence o leitor
atual desta conveniente reclusão, ou mesmo contenção, das vontades bombásticas
desses jovens rebeldes nas molduras comportadas das páginas de uma revista.
Há outros dados que corroboram a fantástica hipótese de que a ação da dupla
Pessoa / Sá-Carneiro teria incidido tanto sobre a vida dita real quanto sobre a criação
literária. Por um lado, e em caráter definitivo, o fato do desaparecimento do corpo
do poeta obeso, jamais encontrado, juntamente com a sua campa no cemitério Pantin
(desaparecida em 1949, segundo Marina Tavares Dias), levanta suspeitas. Afora isso,
há a sequência de bilhetes suicidas a Pessoa, antecipando adeuses e fazendo ameaças
de atirar-se para debaixo de um comboio; além das cartas e comunicados oficiais das
supostas testemunhas do espetáculo final – nomeadamente “José (ou João?) Araújo”
e “Carlos Ferreira”, amigos de pouca data. O suicídio foi levado a cabo como um
evento notório, com direito a convite, fato de gala e brinde mortal de estricnina.
Chama a atenção, ainda, a confecção dos Últimos poemas, sobretudo o grotesco
“Fim”, no qual a carnavalização circense da morte figura como mais um aspecto
dúbio em toda a história:
Quando eu morrer batam em latas,
Rompam aos saltos e aos pinotes,
Façam estalar no ar chicotes,
Chamem palhaços e acrobatas!
Que o meu caixão vá sobre um burro
Ajaezado à andaluza...
A um morto nada se recusa,
Eu quero por força ir de burro.
(SÁ-CARNEIRO, 1995: 131)
Tais comunicados também foram dirigidos a Pessoa em Portugal, relatando, com
detalhes macabros e talvez desnecessários – mas muito ao gosto de Sá-Carneiro – o
passamento do poeta. Consta, ainda, em sua fotobiografia, o relato não de todo
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indiferente sobre o desaparecimento de uma mala com as posses do poeta, exceto as
poucas coisas que teria deixado para alguns amigos.
Por outro lado, é do conhecimento público a tendência mitomaníaca de
Pessoa, relatada em vários documentos de sua juventude, e alvo de estudos como os
de Jerónimo PIZARRO (2007) e Kenneth KRABBENHOFT (2011), nos quais se registram
fatos curiosos; como o envio, pelo jovem escritor, de missivas aos professores e colegas
da escola secundária inglesa que cursou em Durban, na África do Sul, consultandoos acerca do caráter de Fernando Pessoa, doente que – de acordo com o missivista,
o “doutor Faustino Antunes” – teria cometido suicídio (PIZARRO, 2007: 72).
Consta, inclusive, que Pessoa mantinha uma caixa postal na Rua da Bela-Vista
à Lapa, em nome de Alexander Search e Álvaro de Campos; e até do “psiquiatra”
Antunes, o qual, de fato, teria recebido respostas dos mais desavisados e crédulos à
sua consulta. Como já se disse, a própria relação com a namorada Ofélia engendrou,
a certa altura, um exótico triângulo, no qual as interferências escritas do heterônimo
modernista produziram abalos reais no espírito da jovem apaixonada, que
confessou muitas vezes, em suas cartas, o seu “ódio” ao “sr. engenheiro” Álvaro de
Campos.
O mais famoso episódio desta interminável série de mistificações, contudo,
ocorreu já na maturidade do poeta e teve repercussões internacionais, contando com
investigações oficiais até da Scotland Yard: o rumoroso desaparecimento do
ocultista britânico, figura de grande presença e notoriedade no cenário cultural e
político da época, conhecido como a “Besta 666”, que teria vindo a Portugal
exclusivamente para encontrar-se com Pessoa e acabou sumindo misteriosamente num
sítio conhecido como a “Boca do Inferno” – o penhasco rochoso na costa oeste da vila
de Cascais, mencionado por Laerte em seu depoimento, aqui reproduzido – onde
são relatados muitos suicídios.
Aleister Crowley, responsável pela doutrina Thelema, líder da sociedade
O.T.O. (“Ordo Templi Orientis”) e autor do Livro da Lei, viria a influenciar numerosos
escritores, músicos e cineastas no futuro, como Jimmy Page, Alan Moore, Bruce
Dickinson, Raul Seixas, Marilyn Manson, Kenneth Anger e Ozzy Osbourne. Sua
relação com Pessoa, contudo, permanece nas sombras, fazendo parte do folclore a
história de que Crowley desejaria conhecê-lo pelas admiráveis correções feitas pelo
poeta em seu mapa astral. Mas há quem suspeite da existência de uma maior
intimidade entre eles do que a imposta pelo “encontro magick”: “o suicídio rocambolesco de Aleister Crowley, com o seu ressurgimento ‘esotérico’ dias depois, em
Berlim” (PESSOA, 2010: 16).
Tais eventos trazem, nas entrelinhas dos muitos e sérios relatos dos pesquisadores, dúvidas não esclarecidas e interrogações sequer formuladas. Nesse caso, o
impulso especulativo torna-se inevitável. Forjar, na imaginação, hipóteses possíveis,
alternativas e mesmo desejáveis para o destino de Mário de Sá-Carneiro revela o
quanto embarcamos, enquanto leitores, na força de sua fantasia. E se Mário de SáPessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
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Carneiro não houvesse morrido em 1916? E se os bilhetes de despedida não passassem
de uma boutade entre outras? E se a cena do quarto de hotel fosse uma performance
calculada, pensada com a ajuda dos amigos, para forjar uma fuga? E se Fernando
Pessoa, com sua larga experiência no campo do engano e do fingimento, tivesse
concordado em compactuar com o “suicídio” do inadequado – o “Esfinge gorda”, o
“Rei-lua postiço”, o “Papa-açorda” – para fazer nascer para o mundo, quem sabe, a
“Mulher Fulva” que surge deslumbrante no palco do espetáculo de abertura d’A
confissão de Lúcio? E se Mário/Marta tivesse escapado de Paris para Sevilha, por
exemplo, não sem antes comparecer discretamente ao “enterro” do falecido?
De fato, os pouquíssimos conhecidos em Paris relatam a existência de um relacionamento conturbado de Mário com “uma mulher” no período, sobre a qual nada se
sabe. José Araújo comenta apenas que não percebia “se era amor, simpathia ou odio”;
mas desde então ele “mudou bastante, vinha aqui ao escriptorio sempre apressado [...]
sahiamos [a um café] e então elle coitado, contava-me o que se passava: que não
podia continuar assim, impossivel, impossivel, aquela mulher: um misterio, um
horror, e por aqui fora muito nervoso” (SÁ-CARNEIRO, 2015: 532). Para atribuir maior
veracidade à hipótese, um amigo, Xavier de Carvalho, em texto publicado no Diário
de Notícias (3-6-1916), menciona a presença, no enterro de Sá-Carneiro, “de uma
midinette idealmente loira com os olhos cheios de lágrimas, que atravessou a rua e
deitou sobre o caixão o pequeno ramo de violetas que trazia no corsage de linon
branco e cor-de-rosa pálido. ‘– Um poeta que morreu de amor’ – explicava ela a uma
companheira. – Como eu o teria amado!’”. Impossível não perceber, no detalhismo
descritivo, uma tentativa de ficcionalizar, à maneira romântica, o episódio para os
leitores do jornal – o que só contribui para envolver em brumas e suspeitas a morte
do poeta (cf. DIAS, 1988: 216).
Apraz-me, pois, imaginar uma sorridente midinette desembarcando em Sevilha,
ainda carregando a mala do Outro, repleta das cartas de Fernando Pessoa (nunca
recuperadas), e disposta a abandonar definitivamente a poeira dos livros e a tortura
dos versos – cumprido que fora o destino de sua fama literária alavancada aos 26
anos pelo episódio do suicídio em Paris –, para debutar nos palcos, sensual e sinuosa,
como dançarina. Apraz-me imaginar, como um feliz, realizado e liberto shape-shifting
de Mário de Sá-Carneiro, o nascimento da misteriosa dama, por ele/ela mesmo/mesma
narrado (a anos-luz do autorretrato do moço do escritório amargado pelo Poeta maior,
Fernando Pessoa, que optou pela existência desassossegada):
Então foi apoteose: toda a água azul, ao recebê-la, se volveu vermelha de brasas, encapelada,
ardida pela sua carne que o fogo penetrara... E numa ânsia de se extinguir, possessa, a fera
nua mergulhou... Mas quanto mais se abismava, mais era lume ao seu redor... Até que por
fim, num mistério, o fogo se apagou em ouro e, morto, o seu corpo flutuou heráldico sobre
as águas douradas... tranquilas, mortas também...
(SÁ-CARNEIRO, 1995: 364)
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Nunca mais “Pântanos de mim”, nunca mais “Jardins estagnados”. Nunca
mais “nunca mais” (“Nevermore”, de Poe). Apraz-me imaginar Mário de Sá-Carneiro
vivo e – como narra Laerte na edição dos Piratas do Tietê dedicada ao “Poeta”, aqui
comentada – liberto das amarras de uma sociedade hipócrita, aparentemente sã e
cuja seriedade e peso redundam naquilo que o heterônimo António Mora, internado
na Casa de Saúde de Cascais, comentou:
Nós realizamos, modernamente, o sentido preciso daquela frase de Voltaire, onde diz que, se
os mundos são habitados, a terra é o manicômio do Universo. Somos, com efeito, um
manicômio, quer sejam ou não habitados os outros planetas. Vivemos uma vida que já
perdeu de todo a noção de normalidade, e onde a higidez vive por uma concessão da doença.
Vivemos em doença crônica, em anemia febricitante. O nosso destino é o de não morrer por
nos termos adaptado ao estado de (perpétuos) moribundos.
(PESSOA, 2002: 215)
Dizia o maior amigo de Sá-Carneiro que ele era um gênio. Não só da arte, mas
da inovação dela, e por isso vítima da indiferença que circunda os gênios e da
zombaria das turbas de Piratas do Tietê que perseguem os inovadores: “prophetas,
como Cassandra, de verdades que todos teem por mentira. In quâ scribebat, barbara
terra fuit” (SÁ-CARNEIRO, 2015: 517). E conclui anunciando, quem sabe, as futuras
confissões de outros visionários nos séculos vindouros, habitantes de cidades eternamente saqueadas por piratas chocarreiros:
O Circo, mais que em Roma que morria, é hoje a vida de todos; porém alargou os seus muros
até os confins da terra. A glória é dos gladiadores e dos mimos. Decide supremo qualquer
soldado bárbaro, que a guarda impôs imperador. Nada nasce de grande que não nasça
maldito, nem cresce de nobre que se não definhe, crescendo. Se assim é, assim seja! Os Deuses
o quiseram assim.
(PESSOA, 2005: 456)
Post-scriptum. Segue, em anexo, depois da
capa, “O Poeta”, de Laerte.
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Ferreira
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ERMELINDA MARIA ARAÚJO FERREIRA é bacharel em Medicina (1986), bacharel em Letras (1986),
mestre em Letras pela Universidade Federal de Pernambuco (1988) e doutora em Literaturas de
Língua Portuguesa pela PUC-Rio (1998), com estágio na Universidade de Lisboa. Fez um pósdoutorado em Literatura Comparada na Universidade Nova de Lisboa (2011), como bolsista da
CAPES, com o projecto “Literatura e Medicina: encontros, percursos, revelações”. É professora
do curso de Letras e do Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Federal de
Pernambuco (UFPE). Pesquisadora do CNPq, também é líder do Núcleo de Estudos em
Literatura e Intersemiose (NELI/UFPE) e editora da Intersemiose – Revista digital.
ERMELINDA MARIA ARAÚJO FERREIRA holds a Bachelor’s degree in Medicine (1986), a Bachelor’s
degree in Literature (1986), a Master’s degree in Literature from the Federal University of
Pernambuco (1988), and a Ph.D. in Portuguese Language Literatures from PUC-Rio (1998),
with a stint at the University of Lisbon. She completed a post-doctorate in Comparative
Literature at the Nova University of Lisbon (2011), funded by CAPES, with the project
“Literature and Medicine: encounters, paths, revelations.” She is a professor in the Literature
department and the Graduate Program in Literature at the Federal University of Pernambuco (UFPE). As a researcher with CNPq, she also leads the Center for Studies in Literature
and Intersemiosis (NELI/UFPE) and serves as the editor of Intersemiose – Digital Journal.
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Xavier
Pessoa e o Cinema?
Fig. 1. Desassossego.
Confesso não compreender a fascinação que o cinema exerce, desde a sua origem,
sobre as pessoas.
Confesso também não compreender o obsessivo interesse que a maioria das
pessoas tem pelas ficções que o cinema e a literatura semeiam copiosamente por todo
o lado.
Devo dizer que eu sou daqueles que preferem o incompreensível poético ao
compreensível prosaico.
Espero que haja pouca gente como eu senão os cinemas esvaziavam-se.
Quando as coisas que me rodeiam, que vejo, oiço ou leio me parecem
imediatamente compreensíveis, é sinal que não consegui atingir o estado necessário
para as aceitar.
A aceitação de tudo o que percepciono, é o estado que me permite sentir,
como dizia o poeta, tudo de todas as maneiras.
O processo da narração cinematográfica incomoda-me por me impor um
decorrer de imagens fatiadas segundo critérios alheios ao meu ritmo e ao meu
pensamento que me obrigam a ver através dos olhos de alguém doutro.
Eu sou daqueles que gostam de se sentar no banco da sala de um museu para
contemplar sossegado um quadro sem intermediários, sem pressas nem sobressaltos
e, sobretudo, sem tentar saber mais do que aquilo que o quadro me oferece.
Segundo consta, o poeta Pessoa interessava-se pelo cinema.
Há alguns anos a traz, também me disseram que o poeta Pessoa tinha escrito
histórias policiais.
Estas duas novidades pouco ou nada me interessaram. Porque deveria eu
extasiar-me por saber que Pessoa se interessou por banalidades?
Para mais, o Pessoa prosador nunca me interessou, excepto dois textos: “A
carta da corcunda ao serralheiro” (PESSOA, 2013: 626-632) e a irónica “Crónica
decorativa – I” (in BOSCAGLIA, 2016).
Em Pessoa é o poeta que me interessa.
Porem, acho interessante o enunciado “Pessoa interessou-se por isto e por
aquilo”.
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Xavier
Pessoa e o Cinema?
Reparo que o nome do poeta remete imediatamente para ele próprio tudo e
mais alguma coisa. Então pergunto-me: o que é importante? As coisas que
interessavam o poeta ou o poeta que se interessava pelas coisas?
Até hoje, tudo o que foi dito e escrito sobre Pessoa focaliza essencialmente os
diversos aspectos da sua personalidade poliédrica, a sua fisionomia, o seu bigode, o
seu chapéu, os seus óculos, a sua caneta e até a cómoda onde um dos seus “outros”
teria escrito, de pé e duma só vez, “O Guardador de Rebanhos”.
E o resto? Quero dizer, e a poesia? E as imagens em movimento que as suas
palavras suscitam?
Silêncio.
Aquilo que mais me agrada na poesia de Pessoa é quando ela se obscurece,
que se torna enigmática, ou misteriosa e se desprega do obsessivo “eu” que em geral
a desencadeia.
Pessoa sem Pessoa cativa-me muito mais do que Pessoa com Pessoa.
Como, por exemplo, neste poema dito ortónimo de 1914:
Passa um vulto entre as árvores…
Segue-o a sombra do vulto entre as árvores…
E o vulto é a floresta em si que passa entre as árvores…
(Fogos-fátuos sobre a sombra entre as árvores)
Mas não há arvores: há só entre-as-árvores.
(PESSOA, 2005: 219)
A frase “Mas não há arvores: há só entre-as-árvores”, que veicula os conceitos
de intervalo e de vazio, conceitos que venero, talvez tenha sido responsável da meu
desejo de criar movimentos de imagens pessoanas, mas…
O que é uma imagem pessoana?
Como tantos outros caí na esparrela e lá fiquei durante algum tempo agarrado
à fisionomia, ao bigode, ao chapéu e aos óculos de Pessoa, até me dar conta que a
face ou silhueta do poeta nada têm a ver com o que ele escreveu, disso estou hoje
convicto.
O problema é que se eu desenhasse algumas árvores e fizesse passar um vulto
anónimo entre elas, o conjunto de imagens obtidas não seria reconhecido como
sendo pessoano.
Em contrapartida, se o vulto que passasse entre as árvores fingisse ser a
silhueta de Pessoa, mesmo o mais leigo dos leigos reconheceria imediatamente nela
uma imagem pessoana o que é falso.
Só após ter realizado os filmes 28, Pessoas e Desassossego, é que me dei conta
das ‘facilidades’ em que caí.
Hoje, procuro e tento outras maneiras de traduzir em imagens o movimento
e os gestos inclusos nas palavras de Pessoa sem recorrer aos convencionais artifícios
usuais que tanto agradam aos outros.
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
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Xavier
Pessoa e o Cinema?
Contudo em todos filmes citados que fiz e em muitos outros projectos que
ficaram por fazer, está expressa a minha vontade de mostrar as duas facetas de
Pessoa que prefiro: a ironia e o humor.
Figs. 2 a 5. Ele e Eu.
Pessoa não era aquilo que a maioria das pessoas coladas como mexilhões ao
Livro do Desassossego pensão que ele era.
Dei-me conta disso quando meti o nariz e depois o corpo todo no seu espólio.
As pessoas que fazem filmes a sério, o que não é o meu caso, (ou talvez seja
eu que faça filmes a sério e não os outros; “Nestas coisas, como em todas, não
devemos ser dogmáticos”, como dizia PESSOA [2013: 645)]), não só gostam de dar a
ver, mas também de dar a ouvir.
Confesso também não compreender esta atitude.
Para mim, Pessoa impõe o silêncio.
Dizer, declamar, recitar Pessoa parece-me uma afronta ao bom senso.
A poesia de Pessoa é, como dizia o poeta e místico San Juan de la Cruz, uma
“música callada”.
Os filmes que eu faço são geralmente silenciosos. Os poucos que comportam
sons ou músicas resultam de compromissos.
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
479
Xavier
Pessoa e o Cinema?
Os meus filmes não são cinematográficos. Longe disso.
Eles são mesmo de natureza anti-cinematográfica. Eu não faço cinema, eu
escrevo movimentos desenhados que procuram assemelhar-se a poemas.
Figs. 6 a 10. Imagens para o projecto “Palavras de Pessoa.
É, portanto, no território da poesia, o das páginas preenchida de grafias, que
Pessoa e eu nos encontramos e nos entendemos.
Existem coisas que têm o mérito de terem sido realizadas, mas eu penso que
também há mérito em não realizar outras tantas. É esta atitude prudente que adopto
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
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Xavier
Pessoa e o Cinema?
perante os meus entusiasmos para com a poesia de Pessoa que, assim que a leio, me
empurra sempre para a minha mesa de trabalho.
Relativamente à questão: será que vale a pena traduzir este ou aquele texto
de Fernando Pessoa em termos de imagens? A minha resposta é quase sempre: não!
Porquê? Por ter o sentimento de os ir estragar, a não ser que o meu talento
seja equivalente ao do poeta o que me parece impossível. Porque aquilo que Pessoa
diz, relata ou evoca faz parte do seu mundo interior e esse mundo só ele o poderia
ter traduzido em imagens se ele tivesse possuído a competência gráfica, e mais para
além, cinematográfica, para o exprimir.
Quererá isto dizer que é impossível traduzir em imagens a poesia de Pessoa?
Sim.
Aquilo que é possível fazer é transforma-la noutras coisas que pouco ou nada
têm a ver com a fonte de inspiração, tal como Pessoa fazia quando ele transformava
a realidade do que via, ouvia e sentia em palavras que desenham na mente do leitor
outra coisa que a realidade.
O seu longo poema “Un soir à Lima” parece-me neste sentido bastante
significativo.
UN SOIR À LIMA
Vem a voz da radiofonia e dá
A notícia num arrastamento vão:
“A seguir
Un Soir à Lima…”.
Cesso de sorrir…
Para-me o coração…
E, de repente,
Essa querida e maldita melodia
Rompe do aparelho inconsciente…
Numa memória súbita e presente
Minha alma se extravia…
O grande luar da África fazia
A encosta arborizada reluzente.
A sala em nossa casa era ampla, e estava
Posta onde, até ao mar, tudo se dava
À clara escuridão do luar ingente…
Mas só eu, à janela.
Minha mãe estava ao piano
E tocava…
Exatamente
Un Soir à Lima.
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Xavier
Pessoa e o Cinema?
Meu Deus, que longe, que perdido, que isso está!
Que é do seu alto porte?
Da sua voz continuamente acolhedora?
Do seu sorriso carinhoso e forte?
O que hoje há
Que mo recorda é isto que oiço agora
Un Soir à Lima.
Prossegue na radiofonia
A mesma, a mesma melodia
O mesmo “Un Soir à Lima”.
Seu cabelo grisalho era tão lindo
Sob a luz
E eu que nunca pensei que ela morresse
E me deixasse entregue a quem eu sou!
Morreu, mas eu sou sempre o seu menino.
Ninguém é homem para a sua mãe!
*
E inda através de lágrimas não falha
À memória que tenho
O recorte perfeito da medalha
Daquele perfeitíssimo perfil.
Chora, ao lembrar-te, mãe, romana e já grisalha,
Meu coração sempre infantil.
Vejo teus dedos no teclado e há
Luar lá fora eternamente em mim.
Tocas em meu coração, sem fim.
Un Soir à Lima.
O silêncio fatal das coisas findas
As tuas mãos pequenas e tão lindas
Com escrúpulo risonho e familiar
Com um sorriso em que não há
Nada senão o eternamente humano
Tiravas da quietude do piano
Un Soir à Lima.
Tinhas, perfil, um rosto de medalha
Eras de frente, e olhando, a minha mãe
Como hoje o teu olhar me falha
E o teu perfil me lembra bem.
*
“Os pequenos dormiram logo”.
“Ora, dormiram logo”.
“Esta está quase a dormir”.
E tu, sorrindo ao responder, continuavas
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Xavier
Pessoa e o Cinema?
O que tocavas
– Atentamente tocavas –
Un Soir à Lima.
Tudo que fui quando não era nada,
Tudo que amei e sei só eu verdade
Que o amei por não ter hoje estrada,
Que tenha qualquer realidade.
Por não ter dele mais que a saudade –
Tudo isso vive em mim
Por luzes, música e a visão
Que não tem fim
Dessa hora eterna no meu coração,
Em que voltavas
A folha irreal da música a tocar
E eu te ouvia e via
Continuar
A eterna melodia
Que está
No fundo eterno desta nostalgia
De quando, mãe, tocavas
Un Soir à Lima.
E o aparelho indiferente
Traz da emissora inconsciente
Un Soir à Lima.
Eu não sabia então que era feliz.
Hoje, que o já não sou, sei bem que o era.
“Esta também está a dormir…”.
“Não está”.
Ficámos todos a sorrir.
E eu distraidamente vou
Continuando a ouvir,
Longe do luar que há
E que lá fora existe duro e só,
O que me faz sonhar sem o sentir,
O que hoje faz que tenha de mim dó
Esse canto sem voz, teclado e brando,
Que minha mãe estava tocando –
Un Soir à Lima.
*
Não ter aqui numa gaveta,
Não ter aqui numa algibeira
Fechada, havida, completa,
Essa cena inteira!
Não poder arrancar
Do espaço, do tempo, da vida
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
483
Xavier
Pessoa e o Cinema?
E isolar
Num lugar
Da alma onde ficasse possuída
Eternamente
Viva, quente,
Essa sala, essa hora,
Toda a família e a paz e a música que há
Mas real como ali está
Ainda, agora,
Quando, mãe, mãe, tocavas
Un Soir à Lima.
Mãe, mãe, fui teu menino
Tão bem dobrado
Na sua educação
E hoje sou o trapo que o Destino
Fez enrolado e atirado
Para um canto do chão.
Jazo, mesquinho,
Mas ao meu coração
Sobe, num torvelinho
A memória de quanto ouvi do que há
No que há de carícia, de lar, de ninho,
Ao relembrar o ouvir, hoje, meu Deus, sozinho,
Un Soir à Lima.
Onde é que a hora, e o lar e o amor está
Quando, mãe, mãe, tocavas
Un Soir à Lima?
E num recanto de cadeira grande
Minha irmã,
Pequena e encolhidinha
Não sabe se dorme se não.
*
Eu tenho sido tanta coisa vil!
Tenho traído tanto do que sou!
Meu espírito sedento
De raciocinador subtil
Quantas vezes prolixamente errou!
Quantas vezes até o sentimento
Inanimadamente me enganou!
Já que não tenho lar,
Deixa-me estar
Nesta visão
Do lar de então,
Deixa-me ouvir, ouvir, ouvir –
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
484
Xavier
Pessoa e o Cinema?
Eu à janela,
Do nunca mais deixar de sentir,
Nessa sala, a nossa sala, quente
Da África ampla onde o luar está
Lá fora vasto e indiferente
Nem mal nem bem
E onde no meu coração
Mãe, mãe
Tocas visivelmente,
Tocas eternamente
Un Soir à Lima.
A minha raiva de animal humano
A quem tiraram a mãe,
E não tem
Para o menino que lhe na alma há,
Para lhe encher o coração,
Mais que esta visão –
As tuas mãos pequenas pelo piano
Quando, oh meu Deus, tocavas
Un Soir à Lima.
Ai, mas é engano.
Aqui sou velho
Não há sala nem há piano
Nem tu existes a tocar.
Há um aparelho mudo
De onde um som vem de longe, e dói.
Como é que eu te darei um beijo agora?
Eu poderia, vindo da janela,
Como tantas vezes fiz
◊1
O raciocinador exato
Cuja alma está em mil pedaços,
Em mil pedaços que nem há…
Deixa-me dormir
E sonhar de estar vendo, a ouvir,
Un Soir à Lima.
*
E era nesta calma,
Nesta felicidade
Em que existia uma alma
(Meu Deus, que saudade!),
Que, sob a luz que dourava,
1
Este símbolo representa um espaço deixado em branco pelo autor.
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
485
Xavier
Pessoa e o Cinema?
(Hoje onde é que isso está?)
Longe de onde o luar prateava,
Minha mãe tocava
Medalha atenta e humana ao piano,
Un Soir à Lima.
Desde então
Tenho atravessado
Muitas vidas.
As mais das vezes tenho errado.
Meu coração
Pesa de coisas esquecidas.
Desde quando
Nesse brando
Conforto do meu lar extinto
Eu, à janela, ouvia, hirto e sonhando,
Ermo e indistinto,
O que há
Em toda a música de intuição e instinto,
Quanto tenho deixado morrer
Dentro do que quis ser,
Quanto tenho deixado
Só pensado,
Quanto, quanto,
Tem sido para mim somente sonho,
Somente o encanto,
Tristemente risonho
De o ter sonhado,
Quem sabe se a saudade
Transmutada num devaneio meio humano
De quanto nessa noite está,
Longínqua, em que, mamã, ao piano
Tocavas, sob a crua claridade,
Un Soir à Lima.
Pesa-me o coração. Um torpor denso
Ocupa-me a consciência de ◊
E um frio informe, desolado e denso
Não me deixa pensar.
Num baloiçar-me, num embalar
Relembro tudo, relembro em vão.
Meu Deus, isso tudo onde está?
Un Soir à Lima…
Quebra-te, coração!
*
Meu padrasto
(Que homem! que alma! que coração!)
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
486
Xavier
Pessoa e o Cinema?
Reclinava o seu corpo basto
De atleta sossegado e são
Na poltrona maior
E ouvia, fumando e cismando,
E o seu olhar azul não tinha cor.
E minha mãe, criança,
No recanto da sua poltrona,
Enrolada, ouvia a dormir
E a sorrir
Que estava alguém tocando
Se calhar uma dança…
E eu, de pé, ante a janela
Via todo o luar de toda a África inundar
A paisagem e o meu sonhar.
Onde tudo isso está!
Un Soir à Lima,
Quebra-te coração!
*
Mas entorpeço.
Não sei se vejo, se adormeço,
Se sou quem fui,
Nem sei se lembro, nem se esqueço.
Há qualquer coisa que indistinta flui
Entre quem sou e o que eu era
E é como um rio, ou uma brisa, ou um sonhar,
Qualquer coisa que não se espera,
Que se suspende de repente
E, do fundo aonde ia acabar,
Surge, cada vez mais distintamente,
Num halo de suavidade
E nostalgia,
Onde o meu coração ainda está,
Um piano, uma figura, uma saudade…
Durmo encostado a essa melodia –
E oiço que minha Mãe toca,
Oiço, já com o sal das lágrimas na boca,
Un Soir à Lima.
*
O véu das lágrimas não cega.
Vejo, a chorar,
O que essa música me entrega –
A mãe que eu tinha, o antigo lar,
A criança que fui,
O horror do tempo, porque flui,
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Xavier
Pessoa e o Cinema?
O horror da vida, porque é só matar!
Vejo, e adormeço,
E no torpor em que me esqueço
Estou vendo minha mãe tocar.
Essas mãos brancas e pequenas,
Cuja carícia nunca mais me afagará,
Tocam ao piano, cuidadosas e serenas,
Un Soir à Lima.
Ah, vejo tudo claro!
Estou outra vez ali.
Afasto do luar externo e raro
Os olhos com que o vi.
Mas quê? Divago e a música acabou…
Divago como sempre divaguei
Sem ter na alma certeza de quem sou,
Nem verdadeira fé ou firme lei
Divago, crio eternidades minhas
Num ópio de memória e de abandono.
Entronizo fantásticas rainhas
Sem para elas ter um trono.
Sonho porque me banho
No rio irreal da música evocada.
Minha alma é uma criança esfarrapada
Que dorme num recanto obscuro.
De meu só tenho,
Na realidade certa e acordada,
Os trapos da minha alma abandonada,
E a cabeça que sonha ao pé do muro.
Mas, mãe, não haverá
Um Deus que me não torne tudo vão,
Um outro mundo em que isso agora está?
Divago ainda: tudo é ilusão.
Un Soir à Lima…
Quebra-te, coração…
(PESSOA, 2018: 145-157)
Quem lê este belíssimo poema sem conhecer a música à qual Pessoa se refere, vai
imaginar imediatamente uma música encantadora, envolvente e tropical. Não é o
caso, infelizmente. Un soir à Lima Op.99 do senhor Godefroid, Félix é uma peça de
música feia, miserável que não contem nem uma migalha de talento, mas graças ao
génio poético de Pessoa as suas palavras transcenderam a banalidade da música
ouvida que despertou nele íntimas recordações.
Assim sigo o exemplo que ele ma dá.
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Xavier
Pessoa e o Cinema?
A poesia ortónima de Fernando Pessoa é, para mim, uma permanente fonte
de inspiração porque ela representa, a meus olhos, o laboratório de experiências do
poeta.
Recentemente, um outro poema do 7 de Setembro de 1933 despertou a minha
atenção:
Contemplo o que não vejo.
É tarde, é quasi escuro.
E quanto em mim desejo
Está parado ante o muro.
Tudo é do outro lado,
No que há o no que penso.
Nem há ramo agitado
Que o céu não seja imenso.
Por cima o céu é grande;
Sinto árvores além;
Embora o vento abrande,
Há folhas em vaivém.
Confunde-se o que existe
Com o que durmo e sou.
Não sinto, não sou triste,
Mas triste é o que estou.
(PESSOA, 2006: 155)
É sobre este poema consagrado ao movimento das coisas que tenho de novo ganas
de fazer qualquer coisa.
Fig. 12. Imagens para o poema: “Contemplo o que não vejo…”
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
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Xavier
Pessoa e o Cinema?
Bibliografia
BOSCAGLIA , Fabrizio (2016). “As Chronicas Decorativas de Fernando Pessoa: edição crítica de oito
documentos”. Pessoa Plural—A Journal of Fernando Pessoa Studies, n.º 9, Primavera, pp. 148183. Brown Digital Repository. Brown University Library. https://doi.org/10.7301/Z0RJ4GPP
PESSOA, Fernando (2018). Antologia Mínima – Poesia. Edição de Jerónimo Pizarro. Lisboa: Tinta-dachina.
_____ (2013). Eu Sou Uma Antologia: 136 Autores Fictícios. Edição de Jerónimo Pizarro e Patricio
Ferrari. Lisboa: Tinta-da-china.
_____ (2006). Poesia 1931-1935, e não datada. Edição de Manuela Parreira da Silva, Ana Maria Freitas
e Madalena Dine. Lisboa: Assírio & Alvim.
_____ (2005). Poesia 1902-1917. Edição de Manuela Parreira da Silva, Ana Maria Freitas e Madalena
Dine. Lisboa: Assírio & Alvim.
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
490
Xavier
Pessoa e o Cinema?
JOSÉ-MANUEL XAVIER, cineasta, ensaísta, pintor, gravador e poeta nascido em Lisboa, onde fez
os seus primeiros estudos artísticos e musicais. Ainda muito jovem, praticou na capital portuguesa
o desenho animado publicitário para viver e para se divertir. Em 1965, mais de que farto do
regime do Doutor Salazar, migrou para Paris. Na capital francesa, praticou o cinema de animação,
dedicou-se à pintura e à ilustração, expôs obras de arte conceptual, praticou a gravura (iniciado
pelo grande mestre Alexandre Alexeïeff), realizou ilustrações para livros, revistas e jornais até
compreender que o cinema de animação só se torna interessante quando praticado como forma
de arte. Nos anos 80 interessou-se pelas novas tecnologias. Solicitado pela comissão para as
comemorações do bicentenário da revolução francesa, realizou um filme intitulado Paris 1789,
em desenhos animados e imagens de síntese 3D, numerosos filmes publicitários, curtas e medias
metragens de animação para o cinema e para a televisão assim como múltiplos genéricos e
efeitos especiais. Desde o fim dos anos 80, José Xavier nunca mais cessou de se interrogar,
experimentando, escrevendo e ensinando sobre a arte dos movimentos ilusórios. Ver: Le
mouvement des choses (lemouvementdeschoses.wordpress.com) e O movimento das coisas talvez
(omovimentodascoisastalvez.wordpress.com), assim como a página www.youtube.com/@josemanuelbarataxavier9246. Autor de vários livros: La Poétique du Mouvement suivie du Carnet de
l'animateur (Edition CNBDI, 2003): Poética do Movimento (Edições MONSTRA, 2007); Poética de
Ilusão de Movimento (Edição do Núcleo de Cinema de Animação de Campinas, 2018); O
Movimento das Coisas, talvez... (Edição Senhor Passageiro 2018).
JOSÉ-MANUEL XAVIER, filmmaker, essayist, painter, engraver, and poet born in Lisbon, where
he pursued his early artistic and musical studies. Still very young, he practiced commercial
animation in the Portuguese capital to make a living and to have fun. In 1965, feeling more than
fed up with the regime of Dr. Salazar, he migrated to Paris. In the French capital, he practiced
animation cinema, devoted himself to painting and illustration, exhibited conceptual artworks,
delved into engraving (under the guidance of the great master Alexandre Alexeïeff), created
illustrations for books, magazines, and newspapers until he realized that animation cinema only
becomes interesting when practiced as an art form. In the 1980s, he became interested in new
technologies. Commissioned by the committee for the bicentenary celebrations of the French
Revolution, he created a film titled Paris 1789, using both traditional animation and 3D synthesis
images, along with numerous advertising films, short and medium-length animated films for
cinema and television, as well as multiple title sequences and special effects. Since the late 1980s,
José Xavier has never ceased to question, experiment, write, and teach about the art of illusory
movements. See: Le mouvement des choses (lemouvementdeschoses.wordpress.com) and O
movimento das coisas talvez (omovimentodascoisastalvez.wordpress.com), as well as the page
www.youtube.com/@jose-manuelbarataxavier9246. Author of several books: La Poétique du
Mouvement followed by Carnet de l’animateur (CNBDI Edition, 2003); Poética do Movimento
(MONSTRA Editions, 2007); Poética de Ilusão de Movimento (Edition of the Campinas Animation
Film Center, 2018); O Movimento das Coisas, talvez... (Senhor Passageiro Edition, 2018).
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
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Atanes
Unas notas sobre Perplejidad
Con Perplejidad (Aleister Crowley en la Boca del Infierno), a la que en estas líneas me
referiré en lo sucesivo como Perplejidad, espero cerrar un círculo trazado a lo largo
de casi veinticinco años. Para explicarme con claridad, procederé a resumir el
periplo de forma cronológica. Mi primer encuentro con Aleister Crowley se produjo
en los albores de este siglo gracias a La gran bestia, biografía escrita por John
Symonds, cuando el personaje aún era prácticamente un desconocido en España y,
creo, en el ámbito hispanohablante. Mi productividad cinematográfica entonces era
más intensa que ahora y no tardé en tomar la decisión de inspirarme en él para filmar
una película.
Con más impaciencia que preparación, en 2002 me lancé al rodaje de algo
para lo que no contaba ni siquiera con un argumento completo. Había previsto un
plan de rodaje fragmentado, y con las primeras páginas del guion en mano filmé, en
inglés, con actores anglosajones, las primeras secuencias de Ian Perplexed. Su título
conjugaba una de las ultimas frases que el mago pronunció en su lecho de muerte:
“I am perplexed” (“Estoy perplejo”) y el nombre del personaje que servía de hilo
conductor, un tal Ian implicado en la búsqueda de Crowley (una búsqueda similar
a la que emprendió Marlow en pos del señor Kurtz). Dificultades de diversa índole
que sería demasiado prolijo relatar aquí dieron al traste con el proyecto a los dos
días de rodaje.
Figs. 1 e 2. Ian Perplexed. Algunos de los actores.
Resolví entonces volver a empezar de cero con Perdurabo, un largometraje
estructurado en tres partes, de unos cuarenta minutos cada una. En 2003, logré
terminar la primera, ambientada en la abadía siciliana de Thelema. Se centraba en
las andanzas de los thelemitas y la aparición de Crowley quedaba postergada para
el segundo fragmento, que retomaría algunas cuestiones apuntadas en Ian Perplexed
y narraría el encuentro de Crowley con el demonio Choronzon en el desierto de
Argelia. Este segundo fragmento, apenas guionizado, no se rodó nunca. El tercero,
cuya naturaleza he olvidado por completo, ni siquiera llegó a existir sobre el papel.
La parte filmada, sin embargo, conformaba un mediometraje por derecho propio, así
que pasó a llamarse Perdurabo (Where is Aleister Crowley?) y a gozar de cierta difusión en
festivales e internet.
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Atanes
Unas notas sobre Perplejidad
Figs. 3 e 4. Perdurabo. Decorado de la abadía de Thelema.
Inasequible al desaliento, resolví emprender un tercer asalto. Pero, escarmentado
por los problemas que habían frustrado los dos primeros, inherentes a la escasez de
medios de una producción de tipo underground, me incliné por un enfoque más
convencional: la escritura de un guion completo y la búsqueda de productores que
pudieran financiar un proyecto más ambicioso y, por ende, más caro. De ahí surgió
Aleister Crowley en la Boca del Infierno, cuya escritura concluí en 2008. La trama rompe
con las anteriores, parte del encuentro de Crowley con Fernando Pessoa y se sirve
de un juego ficcional (¿y si Aleister Crowley hubiera caído realmente al mar desde
la Boca del Infierno?) para describir un viaje alucinatorio a través del inframundo,
una inmersión en el género fantástico henchida de guiños y referencias a la obra y a
la vida de Crowley. La estructura se articula de acuerdo con la disposición de los
arcanos mayores del Tarot (del Tarot de Crowley en particular) pero invertida, ya
que narra un camino de muerte y renacimiento, es decir, un trayecto inverso al
habitual. Esta correspondencia es unas veces sutil y otras evidente.
Pero la película planteada era demasiado ambiciosa y cara. Y, lo que es aún
peor, Crowley seguía siendo todavía una figura ignota para el público general. Baste
decir que ni siquiera por aquel entonces directores británicos renombrados como
Ken Russell o Terry Jones habían logrado materializar sus aspiraciones cinematográficas
sobre Crowley en un país tan conocedor del personaje como Inglaterra. Dadas las
circunstancias, mi empresa era obviamente una quimera y, tras varias conversaciones
con productores que no condujeron a nada, el proyecto quedó varado de forma
definitiva. Hastiado, arrojé la toalla. Pero alentado por los aficionados a la magia
thelémica que seguían acudiendo a mí, interesándose por una película que nunca
llegaba, en 2013 consideré que sería una buena idea publicar el guion. Y así lo hice,
completando el título con un subtítulo muy elocuente: El guion nunca filmado.
En la década subsiguiente me mantuve alejado de Crowley y volví a él sólo
en ocasiones puntuales. Inevitablemente, por ejemplo, para citarle en mi ensayo
Magia del caos para escépticos, publicado por la editorial Dilatando Mentes en 2018.
Fue José Ángel de Dios, de Dilatando Mentes, quien me sugirió en aquella ocasión
novelar Aleister Crowley en la Boca del Infierno. Guardé la propuesta en el cajón de la
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Atanes
Unas notas sobre Perplejidad
desgana porque, estando ocupado en otros temas y escrituras, la novelización del
guion se me antojaba una tarea ímproba y porque (esta es la razón principal) no
deseaba volver a vérmelas con un personaje que me había dado tantos disgustos.
Para mí, Crowley era caso cerrado. Sin embargo, y a pesar de la aversión que había
llegado a provocarme el personaje, en mi fuero interno nunca dejé de sentir que mi
vinculación con él se había cerrado en falso. Pero habrían de pasar varios años más
para que la renuencia cediera.
A finales del verano de 2023, Marcelo Cordeiro de Mello se puso en contacto
conmigo para solicitarme la inclusión de algunos fragmentos de Aleister Crowley en
la Boca del Infierno en una edición especial de la revista Pessoa Plural. Como no podía
ser de otro modo, le expresé mi conformidad. Pero revisar esos fragmentos me llevó
a la relectura del guion y a la decepción consiguiente. Porque el tiempo nos convierte
en críticos implacables de nuestros trabajos pretéritos y porque, a fin de cuentas, se
trata de un guion cinematográfico. No voy a descubrir nada nuevo explicando que,
al margen de su calidad, un guion no es, ni tiene por qué pretender ser, una obra
acabada, una obra por sí y para sí. A mi modo de ver, no es más que un bosquejo,
una guía necesaria para elaborar un plan de rodaje y jalonar el camino tortuoso e
imprevisible de una película, que debe cobrar vida en el transcurso de su elaboración,
en comunión con el caos humano y material del mundo. Una vez usado, exprimido
y casi diría que mancillado, el destino manifiesto de un guion es la papelera. Solo la
certeza de que este en particular no sería filmado y el deseo de satisfacer a los
curiosos me animaron a publicarlo.
Sin embargo, la relectura también supuso un reencuentro. Tras largos años de
convalecencia crowleyana, cicatrizadas ya las heridas, me sorprendí redescubriendo
una materia que conservaba su vigencia y que clamaba ser transformada por fin en
una obra completa. No una película, pero sí una novela. El empeño constituía un
desafío porque no me interesaba en absoluto maquillar superficialmente el guion en
aras de su publicación: solo tendría sentido regresar a la Boca del Infierno relegando
al guion a su condición de borrador, con la determinación de transformar la historia
en un material genuinamente literario. Y ni siquiera estaba seguro de poder lidiar
con ello. El guion entrañaba dificultades serias en lo que respecta a su metamorfosis
literaria. Lo que en la escritura para cine se soluciona con una simple apostilla,
requiere de una explicación más argumentada y del empleo eficaz de recursos,
digamos, poéticos en un texto literario. No basta con señalar, por ejemplo, que
mediante “un progresivo cambio de perspectiva va quedando claro que ese fondo
de estrellas no es el cielo, sino un pavimento moteado”. Y este tipo de deslizamientos
cinematográficos abundan en el guion de Aleister Crowley en la Boca del Infierno. Las
ópticas y los movimientos de cámara no desempeñan papel alguno en una novela,
lo que redunda en consecuencias de calado imprevisible que afectan al propio
desarrollo de la trama. Sea como fuere, el deseo superó a la inseguridad y a los pocos
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Unas notas sobre Perplejidad
días me hallaba enfrascado en la escritura de Perplejidad, a los que seguirían casi
medio año de aislamiento y (extenuante) trabajo intensivo.
Si me preguntaran lo que ha supuesto para mí transformar el guion en novela,
respondería con la imagen que me venía a la cabeza con frecuencia cuando me
ocupaba de ello: vestir un árbol desnudo en un páramo invernal con una frondosa
copa de hojas y frutos. El tronco se ha mantenido incólume, así como los tocones de
rama. Pero ahora hay tocones extendidos en ramas alargadas, una pluralidad mayor
de ramitas, subdivisiones, una exuberancia de follaje, una propagación mayor y más
profunda de las raíces. Casi puede verse la savia recorriendo arriba y abajo los tubos
leñosos.
He mantenido, pues, el armazón, pero he reescrito por completo los diálogos,
puliéndolos, ampliándolos y enriqueciéndolos; he rescatado escenas y elementos que,
habiendo sido incluidos en las primeras versiones del guion, acabé suprimiendo por
considerar que su filmación sería demasiado complicada, costosa (la travesía de la
barca solar, entre otras) o contraproducente para el ritmo de la película (revelándose
su incorporación a la novela, por el contrario, provechosa y hasta necesaria); he
cambiado de manera notoria algunos pasajes y he efectuado también una poda
cuidadosa de otros; he reconectado cabos argumentales que habían quedado sueltos
y he sembrado el texto con insinuaciones que nunca existieron en el guion. He incluido
circunloquios, elucubraciones, monólogos interiores y referencias metatextuales que
hubieran sido inviables en una obra cinematográfica. Y, por supuesto, he disfrutado
mucho en los momentos en que soltaba la estilográfica nutriéndome con textos de
Crowley que ya conocía y con algunos que no conocía. Cosa que también he hecho
con otros personajes, fundamentalmente con el desasosegado Pessoa, al que he dotado
de mayor densidad y relevancia argumental tanto en sus apariciones directas como
en las indirectas, y a quien debo una dedicación exclusiva en algún proyecto futuro.
Por supuesto, la elección del título no ha sido producto del azar. La perplejidad
aludida tiene que ver con la atmósfera de la novela, con el efecto que deseo causar
en el lector, con la frase que antes cité de Aleister Crowley, y supone, cómo no, el
capricho privado de enlazar con el título de Ian Perplexed, la primera etapa de este
viaje. Lo que empezó como un balbuceo y un tropezón ha culminado, un cuarto de
siglo más tarde, en un colofón que por fin me satisface. Así, de forma circular,
clausuro mi larga relación con un personaje, Aleister Crowley, a quien he dedicado
más tiempo y esfuerzos de los que yo mismo puedo entender. En 2010, cuando mi
prioridad era encontrar financiación para rodar Aleister Crowley en la Boca del Infierno,
Jesús Palacios me invitó a participar en el libro colectivo La bestia en la pantalla:
Aleister Crowley y el cine fantástico, publicado por la Semana de Cine Fantástico y de
Terror de San Sebastián. Allí vertí mis cuitas y traté de explicar el porqué de mi
filiación con un señor tan controvertido. Por encima de los motivos de índole dramática,
como la naturaleza palmariamente cinematográfica de sus andanzas, destaqué uno
que sigue pareciéndome incontestable y, desde mi punto de vista, cautivador: su
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Atanes
Unas notas sobre Perplejidad
rabiosa heterodoxia. Con estas palabras lo hice constar en el pequeño ensayo Aleister
Crowley está vivo: “Crowley sigue siendo indigerible, intriturable, inasumible. El
mundo ha cambiado bastante en algo más de cien años, pero quizá no tanto cuanto
el cáustico heterodoxo de la sociedad victoriana sigue siendo cáustico y heterodoxo
ahora. Esta es también una de las razones de que Crowley tampoco esté tan muerto
como han contado”. Si lo que dije era cierto en 2010, no digamos ya en los tiempos
que corren. Perplejidad, creo, ha esperado a ser escrita cuando tenía que ser escrita.
Queda claro entonces que el círculo se ha cerrado, pero solo en su dimensión
artística. Queda pendiente la vital. La última vez que viajé a Lisboa fue al poco de
terminar el guion, en compañía de unos amigos. Deambulé por las calles de esa
ciudad que adoro pisando las mismas calçadas que pisó Fernando Pessoa. De regreso
a Madrid, en automóvil, pasamos por Cascais y vimos el letrero que indicaba el
desvío a la Boca del Infierno. Hubiera bastado un volantazo, pero el anochecer y las
prisas se interpusieron. No sé hasta qué punto es inoportuno confesar que, habiendo
estado solo a escasos metros de ella, habiéndola visitado tantas veces y de forma tan
detallada en mi imaginación, nunca he puesto realmente un pie en la Boca del Infierno.
Pero a día de hoy es la pura verdad. Algún día repararé la omisión. Hacerlo sí supondrá
el cierre del círculo con Crowley. Aunque intuyo que podría ser el inicio de otro
similar con Pessoa.
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Unas notas sobre Perplejidad
ANEXO
Perplejidad
(Carlos Atanes)
Fragmento de la novela
Encuentro de Aleister Crowley con Fernando Pessoa
–¿Señor Crowley?
Se volvió hacia la voz, un poco sobresaltado. Al final iba a resultar que el
sótano del mundo estaba tan concurrido como Picadilly Circus. Un hombre delgado,
vestido con gabán y sombrero de ala ancha, algunos años más joven que él, esperaba
su respuesta.
–¿Qué se le ofrece? –dijo Crowley, apartándose el pañuelo de la boca y doblándolo
con meticulosidad, como si su tos horrible fuera un rasgo de coquetería.
–¿No me reconoce? Soy su anfitrión –respondió́ el otro con voz queda.
–No –respondió́ Crowley–. No le recuerdo. No se ofenda, pero apenas es
usted un manchurrón en la niebla. Por cierto, qué niebla tan espesa. ¡Y qué humedad!
¿Haría usted el favor de decirme qué lugar es este?
El ala del sombrero ensombrecía las facciones de aquel hombre, pero un
característico bigotillo triangular resaltaba por encima de su labio superior.
–Pensé que le acompañaría la señorita Jäger, Sr. Crowley. Pero ahora descubro
que ha acudido sin ella.
–Por supuesto que me acompaña. Estamos dando la vuelta al mundo. Lisboa,
los Mares del Sur... ¿No la ha visto pasar, hace un momento? Está por ahí, estirando
las piernas. Y me acompaña, no le quepa duda. Es solo que Anu...
–¿Por qué la llama Anu? Sepa que no es muy cortés referirse a una dama en
esos términos.
¿Cómo se atreve, el mojigato? También la llamo El Monstruo, pensó Crowley
con secreto regocijo. Guardó el pañuelo ya doblado y extrajo la pitillera del bolsillo.
Fijó su atención en aquel bigotito, las gafas, las cejas pobladas, la mirada vidriosa,
una miscelánea anodina donde nada resultaba especialmente llamativo. Crowley
entornó los ojos para obligarse a sí mismo a ser más perspicaz. Entonces le reconoció.
–Ah, sí –dijo, sin demasiado entusiasmo–. Usted es el traductor portugués.
–Poeta.
–Déjeme pensar. Sí. Pessoa. Corrigió un error de mi carta astral –golpeó un
cigarrillo contra el depósito de la pitillera–. O al menos se jactaba de haber corregido
un error. Un error que yo había cometido. Sí, se jactaba bastante.
Pessoa asintió y siguió hablando:
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Unas notas sobre Perplejidad
–También jugamos al ajedrez, ¿se acuerda? Y le invité a venir. Me halaga
mucho que aceptara. No imaginé que atendería la petición de un simple aficionado.
Confió en que no interprete la corrección que hice de su carta como una insolencia.
Crowley dejó de dar golpecitos.
–¿Está seguro de que fue usted quien me invitó? Pero calle un momento.
Antes le he preguntado algo. ¿Dónde estamos? Esto no parece Lisboa.
–¡Oh! Permítame.
Pessoa se descubrió, trazando un amplio arco con el sombrero. Como si
descorriera un telón, una potente luz vespertina bañó a los dos hombres. El viento
fresco azotó sus cabellos y sus ropas, rociándoles con un intenso aroma a salitre.
Crowley retuvo su sombrero, que pugnaba por salir volando, y se adelantó unos
pasos hacia la luz. Los pies trastabillaron en un firme que ya no era de arena, sino
abrupto y pedregoso. Resultaba muy sencillo torcerse un tobillo si uno no se andaba
con tiento. Aquel lugar le resultó familiar. Se asomó al precipicio para cerciorarse y,
en efecto, tuvo la repentina certeza de que se hallaba en un puente natural de roca
sobre el océano, en la costa agreste de Portugal. A orillas de Cascais, concretamente.
Varios metros por debajo de ellos las olas embravecidas rompían contra el ojo del
puente, una entrada medio sumergida que daba paso a una caldera de rocas, el
vestigio de lo que antaño fuera una caverna.
–Éste es el lugar que los portugueses llamáis Boca del Infierno –dijo Crowley–.
Sí, lo recuerdo bien, estuve aquí antes.
–Antes no, señor Crowley –se apresuró a puntualizar Pessoa–. Ahora. Su carta
astral predice su venida, ¿quiere que se la muestre?
Muy bien, conforme: ahora y no antes. Allí estaban los dos hombres, a la
fresca, congregados en el equinoccio de otoño, encaramados a un mirador sobre el
Atlántico. Eso es lo que contaba, eso era real. No un maldito sentimiento ni una
conjetura, sino aire real en un lugar real. Cascais, el estruendo de las olas, la última
puesta de sol del verano. Pessoa no transfiguraba a voluntad el espacio enarbolando
su sombrero, esas cosas no suceden en el mundo de los adultos. Era más fácil achacar
lo sucedido en las horas previas a una especie de trance, a un tránsito por la versión
más cicatera del Plano Astral. Y ahora, allí, en aquel mismo momento, gracias a la
injerencia del portugués, Crowley había despertado de un episodio de inconsciencia
y volvía a afianzar, una vez más, los pies en el borde mismo del abismo.
Sobrevolando el mar a baja altura, en dirección a la costa, el dirigible Graf
Zeppelin LZ 127 culminaba para entonces el último tramo del trayecto Berlín-Lisboa.
En un punto concreto del recorrido la majestuosa aeronave se interpuso entre el sol
y Crowley, eclipsando parcialmente el fulgor del ocaso. Las pupilas de Crowley se
dilataron ansiosas. ¿Y Anu? ¿Se dispondría a embarcar en el dirigible, de vuelta a
Alemania? ¿Cómo, en el dirigible? Crowley recapacitó. ¡No, qué bobada! El coste de
un pasaje era inasumible para ella. A duras penas alcanzaría a costearse un billete
de tercera en un vapor herrumbroso, como el que les había traído a Portugal.
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Unas notas sobre Perplejidad
–Debería estar aquí́ conmigo viendo esto. Qué boba. Estaba dispuesto a poner
el mundo en sus manos –la indignación de Crowley menguó hasta caber en un
suspiro–. Me ha abandonado en el peor momento. Ahora, justo ahora, cuando sobre
mí se cierne una corriente de fuerza mágica, pesada, negra, silenciosa...
–...como la bocaza abierta de Choronzon –remató Pessoa.
Crowley le lanzó una mirada de soslayo, pasándose una mano por la cabeza
afeitada como si alisase el recuerdo de su cabellera. Quizá no fuera un simple
aficionado. Había algo turbador en la mirada un poco estrábica del portugués. Una
atonía desasosegante refutada por una chispa extremadamente sutil de vivacidad,
en virtud de la cual el carácter inexpresivo de su rostro adquiría una inquietante
condición de máscara. Crowley supo entonces que se hallaba ante un fingidor
profesional. A sus pies la Boca del Infierno seguía devolviendo chorros furiosos de
espuma al océano.
–Usted se piensa que me conoce –dijo, agarrando el sombrero que la ventisca
amenazaba con arrebatarle.
–Por supuesto. ¿Y quién no? Usted es una estrella –le respondió Pessoa,
señalando la pitillera.
Crowley se la entregó sin dejar de darle la espalda.
–Todo hombre y toda mujer es una estrella.
–¿Se la regaló ella? Es muy bonita –dijo Pessoa, abriendo la pitillera–. Muy
bonita. Pero está vacía. Le conozco bien, Sr. Crowley. De otro modo no me hubiera
atrevido a corregir su carta astral. Permítame –rebuscó en sus bolsillos y extrajo un
papel doblado–. Permítame que se la muestre.
–¡Qué va a saber de mí! –protestó Crowley–. He vivido cien vidas y solo he
cosechado calumnias. Usted no puede conocerme.
–Claro que sí –Pessoa desplegó la hoja–. Qué importa lo que digan los demás.
Los poetas no tenemos biografía, sino obras, Sr. Crowley.
–¿Obras? ¿Qué obras? –Crowley chasqueó la lengua y siguió hablando más
para sí que para Pessoa– ¿Los poemas que nadie lee, mis invocaciones a dioses
imaginarios?
Suspiró, terriblemente cansado, deshaciendo entre los dedos el cigarrillo que
no había encendido y viendo cómo el viento esparcía las briznas en el aire, de la
misma forma que el paso del tiempo habría de esparcir, tal vez, el recuerdo de sus
obras. En algún lugar había puesto por escrito que ni siquiera la destrucción del
mundo significaría algo para un observador ubicado en las estrellas. Por ejemplo, en
el sistema estelar de Sirio. Polvo, insignificancias. Astrónomos de Sirio. Por cierto,
¿dónde se había metido Anu?
–Usted ha vivido su vida. No ha sido vivido por ella. No todos podemos
presumir de algo así –insistió Pessoa.
Notando que Crowley estaba ensimismado en sus pensamientos, se aproximó
a él sigilosamente. Sostenía la hoja en una mano.
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500
Atanes
Unas notas sobre Perplejidad
–Soy un viejo ridículo –se lamentó Crowley, apretándose los labios para
cerciorarse de que los dientes aún seguían en su sitio–. Enfermo, arruinado y solo.
No tengo excusa, me lo he ganado.
Pessoa miró la hoja y a Crowley alternativamente, y durante un pestañeo
vaciló y se detuvo. –No sé por qué le confieso todo esto –añadió Crowley.
Entonces Pessoa siguió acercándose, conduciendo su mano hacia la espalda
de Crowley, quizá para tocarle el hombro y recordarle así su presencia. –Será mejor
que me vaya –concluyó Crowley.
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Atanes
Unas notas sobre Perplejidad
Filmografia de Carlos Atanes
Largometrajes
2024
2012
2010
2007
2004
2003
Alter Ego Film Project / Autofocus
Gallino, the Chicken System
Maximum Shame
PROXIMA
FAQ:
Frequently Asked Questions
Perdurabo (Where is Aleister Crowley?)
Cortometrajes, documentales y otros
2017
2008
2008
2007
2002
2002
1999
1999
1999
1998
1997
1997
1996
1995
1993
1993
1992
1991
1991
1991
1991
1990
1990
1989
1989
1987
Romance bizarro
Scream Queen
CODEX ATANICUS
(antología)
Made in PROXIMA
Manuel Meller, señor de Barcelona
e-Nachiana
Cyberspace Under Control
Welcome to Spain
Metaminds & Metabodies
Die Sieben Hügel Rom's
Salomé
Borneo
Morfing
Tríptico (largometraje inacabado)
La Metamorfosis de Franz Kafka
El Tenor Mental
El Parc
La Muerte
Els Peixos Argentats a la Peixera
The Marvellous World of the Cucu Bird
Romanzio in il sècolo ventuno
Morir de calor
Le descente à l'enfer d'un poète
El garaje de los coches
La Ira
El hombre de las gafas oscuras
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Atanes
Unas notas sobre Perplejidad
CARLOS ATANES es un prolífico cineasta y escritor español, reconocido por su enfoque transgresor
y su incursión en el cine underground. Miembro de The Film-Makers’ Cooperative, fundada por
figuras como Jonas Mekas y Andy Warhol, Atanes ha dejado una marca distintiva en la escena
cultural contemporánea. Desde sus inicios en 1987, cuando comenzó a rodar cortometrajes de
manera amateur, Atanes demostró una gran audacia creativa. Su primera incursión en el cine, El
Meravellòs Món de l'Ocell Cúcù (1991), dejó entrever su singular visión cinematográfica. A lo largo
de los años, ha explorado diversos géneros y formatos, desde cortometrajes estrambóticos hasta
obras de ciencia ficción distópica. Atanes no se limita al cine; su incursión en el teatro ha sido
igualmente impactante. Con obras como Un genio olvidado (Un rato en la vida de Charles Howard
Hinton) y Antimateria, ha desafiado las convenciones teatrales, explorando temas que van desde
la metafísica hasta la sátira social, desde la magia del caos hasta la exploración de dimensiones
paralelas.
CARLOS ATANES é um prolífico cineasta e escritor espanhol, reconhecido pela sua abordagem
transgressora e a sua incursão no cinema underground. Como membro de The Film-Makers’
Cooperative, fundada por figuras como Jonas Mekas e Andy Warhol, Atanes deixou uma marca
distinta na cena cultural contemporânea. Desde os seus primeiros passos em 1987, quando
começou a fazer curtas-metragens amadoras, Atanes demonstrou grande audácia criativa. A sua
primeira incursão no cinema, El Meravellòs Món de l'Ocell Cúcù (1991), insinuou a sua visão
cinematográfica única. Ao longo dos anos, ele explorou diversos gêneros e formatos, desde curtasmetragens peculiares até obras de ficção científica distópica. Atanes não se limita ao cinema; a
sua incursão no teatro tem sido igualmente impactante. Com obras como Un genio olvidado (Un
rato en la vida de Charles Howard Hinton) e Antimateria, ele desafiou convenções teatrais, explorando
temas que vão desde a metafísica até a sátira social, da magia do caos à exploração de dimensões
paralelas.
CARLOS ATANES is a prolific Spanish filmmaker and writer, recognized for his transgressive
approach and his foray into underground cinema. As a member of The Film-Makers’ Cooperative,
founded by figures like Jonas Mekas and Andy Warhol, Atanes has left a distinctive mark on the
contemporary cultural scene. Since his beginnings in 1987, when he started making amateur
short films, Atanes demonstrated great creative audacity. His first foray into cinema, El
Meravellòs Món de l'Ocell Cúcù (1991), hinted at his unique cinematic vision. Over the years, he
has explored various genres and formats, from quirky short films to dystopian science fiction
works. Atanes is not limited to cinema; his foray into theater has been equally impactful. With
works like Un genio olvidado (Un rato en la vida de Charles Howard Hinton) and Antimateria, he has
challenged theatrical conventions, exploring themes ranging from metaphysics to social satire,
from chaos magic to the exploration of parallel dimensions.
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
503
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Sampaio & Almeida
Um Jantar Muito Original
Em geral, um guião (ou roteiro) é um texto transitivo e em trânsito – algo intermédio
entre o texto adaptado e o resultado desse processo, uma obra futura. Um guião é, à
partida, um artefacto verbal desprovido de autonomia, mesmo quando parece tê-la,
como no caso de guiões que desafiam e subvertem essa função primordial como, por
exemplo, os cine-romances de Robbe-Grillet, ou quando é objeto de publicação.
Partindo de um texto prévio – com existência autónoma – ou escrevendo um texto
de raiz, os guionistas produzem um documento interno com uma finalidade prática
e com diretrizes claras para toda uma equipa, que dele se serve de modos diferentes.
O guião é escrito sendo imaginado como filme: que tipo de pessoa interpretaria um
dado papel, como certo gesto seria filmado, que movimento de câmara daria conta
desta ou daquela cena, como seria a montagem, e assim por diante. Correlativamente,
cada interveniente num filme (do ator ao fotógrafo) será um leitor que procederá a
uma “leitura egoísta do roteiro” procurando nele “o seu alimento [individual]”
(CARRIÈRE e BONITZER, 1996: 11), já que a leitura do guião na íntegra só interessa(va),
na maior parte dos casos, ao diretor cinematográfico.
Portanto, em princípio, o guião é um objeto estranho à publicação, espécie de
“planta baixa”, i.e., blue printing, destinado a transformar-se no filme projetado e a
ser esquecido. Como sintetizam Jean-Paul CARRIÈRE e Pascal BONITZER, no supracitado
Prática do Roteiro Cinematográfico, um roteiro é algo passageiro: “não é concebido para
perdurar, mas para se apagar, para tornar-se outro” (1996: 11).
Poderíamos dizer que aquilo que define o guião é a sua função utilitária (que
preside à sua génese), a transitividade e a efemeridade. Uma vez realizado o filme,
ele está condenado ao desaparecimento (lixo ou espólios). Ou estava. Atualmente,
existem sites que disponibilizam guiões para aprendizes de cinema e para leitores
heterogéneos movidos pela curiosidade.1 Outros há que, por fetichismo, os colecionam.
Mas, a autonomia de um guião preservado é relativa; separado da curta ou longametragem a que deu origem, paira sobre ele o fantasma da sua produção – mesmo
quando o filme nem sequer se concretizou. Há que contemplar, no entanto, debates
mais recentes que procedem a uma revisão deste entendimento do guião, com
propostas que vão no sentido da sua inclusão no universo artístico. De imediato,
diríamos que na história da arte encontramos justificação mais do que suficiente
para esta posição: desde a prática da intermedialidade ao longo dos séculos (com
adaptações incontáveis de peças do teatro grego) à arte concetual (que pode
sobrevalorizar a ideia em detrimento do produto final). De entre os defensores da
tese do guião como arte, sobressai o nome de Ted Nanniceli, ensaísta e professor de
Comunicação e Artes na Universidade de Queensland. Autor de inúmeros estudos
sobre meios audiovisuais, NANNICELI (2021) invectiva os investigadores a levar a
Vejam-se, a título de exemplo, os sites: h\ps://imsdb.com/; h\ps://www.simplyscripts.com/; ou também h\p://www.roteirodecinema.com.br/index.htm
1
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
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Sampaio & Almeida
Um Jantar Muito Original
cabo uma reflexão filosófica sobre a ontologia do guião à luz de novas ferramentas
concetuais e de novas formas de arte.
Não é, porém, o estatuto de obra de arte literária que justifica a publicação do
guião elaborado por Leandro Ferreira e Miguel Simal. De entre as várias razões (para
além da curiosidade de leitores de guiões), destacamos quatro, interligadas: i) O
grau de desenvolvimento e de finalização deste texto; ii) O modo como ele ilustra a
tese de que o guionista é, em primeiro lugar, um intérprete do texto que adapta; iii)
O gesto de dessacralização do nome e autor Fernando Pessoa / Alexander Search,
reavivando, desejavelmente, o interesse pela ficção pessoana; iv) o contributo que a
sua publicação pode dar a uma reflexão sobre a condição ontológica do guião e sobre
a elaboração e aperfeiçoamento de uma tipologia do guião.
Não se espera de um guião um caráter tão definitivo, com notações tão pormenorizadas e específicas como o que este evidencia – embora, há que reconhecê-lo,
haja todo o tipo de guiões, com variações que vão da extensão ao estilo.2 Em muitos
casos, o guião, sem que se confunda com uma sinopse, é um texto de caráter bem
esquemático, que privilegia as construções paratáticas e as frases nominais. É também,
com frequência, um texto aberto; um qualquer leitor terá eventualmente vontade de
intervir, de fazer sugestões. O guião de Um Jantar Muito Original está já muito
próximo de devir filme, pois apresenta indicações ou marcações muito detalhadas e
amadurecidas, visando a realização cinematográfica; planos, cortes, junções tudo é
elencado com rigor e clareza.3 Os guionistas fazem uso de ferramentas que são da
ordem da realização, como sejam a montagem, a decupagem e a movimentação da
câmara. Estamos perante um guião no seu último estágio de acabamento – com os
guionistas a registarem alternativas que nos levam proleticamente para a filmagem.
Vejamos como isso acontece logo na parte inicial do guião. A abertura do
filme, segundo o guião, divide-se em três cenas. A primeira, começa a nível do chão,
numa praça com um imponente prédio à frente. No segundo andar deste edifício,
com as janelas dando para a rua, fica o salão de jantar da Sociedade Gastronómica
de Lisboa. Ouve-se um grito vindo de lá e o texto conduz-nos (“corta”) para dentro
do salão. Prositt, o presidente da Sociedade, está a ser carregado pelos outros membros
em direção à janela. Quando é enfim lançado através dela, a sequência assume uma
terceira posição: está novamente do lado de fora, mas agora à altura da janela, de
onde pode focalizar Prositt sendo lançado através do vidro.
O guião propõe uma outra maneira de se resolver a sequência em um único
momento. “GERAL – UMA CARRUAGEM ATRAVESSA O QUADRO DIREITA ESQUERDA. COCHEIRO
Poder-se-ia ilustrar a questão do estilo – aparentemente alheia ao guião em geral – com um guião
de adaptação do romance White Jazz, de James Ellroy, por parte dos irmãos Ma\hew Michael Carnahan e Joe Carnahan, que tem todas as linhas de ação escritas na primeira pessoa (ou seja, com
narrador autodiegético).
2
Este dado é reforçado pela data inserida na capa: novembro de 2020. E o filme foi exibido pela primeira vez a 5 de março de 2021.
3
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Sampaio & Almeida
Um Jantar Muito Original
SÓ. A CARRUAGEM SAI, GRITOS, PAN. ASCENDENTE RÁPIDA PARA A JANELA, IDEALMENTE
CONJUGADA COM MOVIMENTO DE GRUA DE APROXIMAÇÃO À JANELA. NOTA: ESTE PLANO,
CASO O PROSITT SAIA PELA JANELA, POUPAVA AS CENAS 2 E 3”.
E, de fato, na altura da filmagem, o realizador escolheu fazer a sequência de
abertura com apenas um plano, que começa na praça, tem o movimento ascendente
em direção a janela – e onde vemos alguns elementos do grupo a levar Prosil em
direção à janela semiaberta.
Um traço interessante do guião de Um Jantar Muito Original reside na sua
articulação fortemente coesa com um documento expressamente técnico. Ou seja,
surge no corpo do texto uma narração dramática, que relata a história do filme
através de cenas, descrições de ação e diálogos; mas corre, em paralelo, bem
demarcado a cor azul, um documento técnico voltado para a rodagem do filme, com
a decupagem de todas as cenas. Cada cena é, portanto, fatiada (“quebrada”) numa
lista de planos: sabemos exatamente qual o enquadramento previsto (Geral; Grande
Plano; Americano; Conjunto), se haverá movimento (Travelling; Panorâmicas;
Movimento de Grua), se a câmara estará angulada (há muitos planos picados no
filme) e quais personagens serão focalizados na ação.
Qualquer leitor se aperceberá deste traço de finalização, ao deparar-se com a
seleção dos temas musicais: em vez de indicações mais genéricas, com uma playlist
contendo nomes de música clássica (“Beethoven” e outros) – pois um dos objetivos
desta escolha é acentuar o elitismo das personagens e o seu estatuto de classe privilegiada – temos já uma especificação das peças. Compreende-se com essa seleção que
a banda sonora não visa apenas a criação de efeitos, de emoções e sensações; é parte
constitutiva da diegese (como se fosse uma narrativa paralela), aludindo a histórias
de traição, de violência e de lutas de poder – que reforçam o contexto históricopolítico do conto de Pessoa.
A leitura do guião de A Very Original Dinner e o visionamento do telefilme
permitem-nos perceber de forma clara como um roteiro se vai desenvolvendo em
direção a uma forma definitiva de filme. Assim, ao lermos este guião, podemos colocar lado a lado duas versões diferentes da mesma cena. E, ao veros o filme, se ele
não corresponder à decupagem, teremos uma terceira. Termos acesso ao guião, neste
caso, nos coloca num espaço privilegiado e estimulante, a partir do qual compreendemos melhor as engrenagens da construção de um filme.
O guião de Um Jantar Muito Original faz justiça à tese de que um guião pode
ser a primeira forma de um filme. O facto de ele ter sido o produto de um trabalho de
colaboração a quatro mãos e de o realizador ser coguionista explicará em parte o
grau de acabamento e de aperfeiçoamento deste guião.
Por outro lado, o guião de Leandro Ferreira e Miguel Simal põe bem em
evidência o modo como um guionista – quando parte de um texto prévio – se transforma em intérprete desse texto, encarado como um palimpsesto ou um objeto-leque
(e o conto de Pessoa é-o sem dúvida). Decidida a transplantação da história de “A
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Sampaio & Almeida
Um Jantar Muito Original
Very Original Dinner” de Berlim para Lisboa, a data de 1907 que, no conto de Pessoa,
figura logo abaixo do título, será determinante para a domesticação (no aportuguesamento) da história e para uma leitura politizada da narrativa pessoana.4 Os
guionistas recriam, a partir de dados extrínsecos ao conto, a atmosfera política de
instabilidade e de conspiração que precede a instauração da República e adicionam
um enredo que opõe Republicanos a Monárquicos, sem que a oposição entre
gastrónomos seja anulada ou substituída. Pelo contrário, o guião permite perceber
que se imagina um filme que apela às sensações do espectador, aguçando todos
os sentidos, do visual ao acústico, passando, naturalmente, pelo gustativo. Como
intérpretes que textualizam as suas interpretações, Leandro Ferreira e Miguel Simal
tornam-se produtores de texto (deixando entrever o prazer da escrita e do engendrar
estórias a partir do conto de Pessoa, que também se cita de forma a ter aqui uma
sobrevida): preenchem as elipses, dilatam as cenas pessoanas sumariamente descritas,
desdobram os espaços físicos, multiplicam os diálogos, criam na figura do respeitável
General uma figura alcoólica e patética, acrescentam mulheres ao enredo, episódios
amorosos e familiares, e duplicam a prática do canibalismo. Procuram criar uma
história dinâmica, com ação, diluindo o estatismo, a incerteza e o mistério que
dominam o conto “A Very Original Dinner”.
As cenas amorosas, que Pessoa decerto reprovaria (e basta lembrar que o seu
gosto por novelas policiais derivava grandemente da ausência de questões de ordem
passional), provam a independência dos guionistas e a diferença de linguagens e de
códigos em causa. Nem este episódio nem as cenas em que pai e filha se enfrentam
têm uma função decorativa ou dilatória da ação. Eles dão um tom de normalidade
(numa atmosfera de conspirações no masculino) a um grupo de pessoas da sociedade
lisboeta, ao mesmo tempo que desviam a atenção da figura de Prositt (conotada com
a loucura e o mistério) para a figura empática do jovem enamorado Duarte Rodrigues.
Mais do que o efeito de surpresa final, uma mensagem parece clara (e está contida
no conto de Pessoa): a violência extrema pode estar em qualquer lado e as lutas de
poder engendram monstros. Apreende-se uma vertente satírica no tema da gastronomia e do canibalismo – parecendo surgir este também como paródia da banalização
deste tópico no cinema e nas séries televisivas das últimas décadas.
A unidade e o fio ténue do também ténue enredo do breve conto pessoano
dão lugar a várias linhas narrativas que os guionistas ambiciosamente entretecem,
visando um telefilme com a duração de 45 minutos: A Arte, a Originalidade, a Gastronomia, a Política, a Violência. Talvez decorra desse emaranhado de fios um excesso
de explicitude e de informação nos diálogos e nas cenas descritas (numa sobreorientação do olhar do espectador). Numa primeira leitura, a adaptação (“livre” –
diz-se no guião, mas não no filme) que apreendemos no guião é um texto bem
Cf. neste número da revista, estudo de Maria de Lurdes Sampaio sobre o filme de Leandro Ferreira
e Miguel Simal, intitulado “Um Jantar Muito Original: Recontextualização e Amplificação”.
4
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distinto do conto pessoano – e até ao nível quantitativo, de massa textual, se apreende
essa diferença. Mas o guião coloca-nos perante leitores competentes do conto, que
vão além das máscaras pessoanas e dos processos de camuflagem presentes em “A
Very Original Dinner”. É possível que nesta interpretação (que põe em alto relevo a
matéria histórico-política) se tenha resgatado uma textualidade subjacente ao conto
de Pessoa / Search. Afinal, como escreve Linda HUTCHEON: “In the workings of the
human imagination, adaptation is the norm, not the exception” (2013: 177).
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ANEXO
Um Jantar Muito Original
Adaptação livre do conto homónimo de Fernando Pessoa
sob o pseudónimo de Alexander Search
Argumento: Miguel Simal & Leandro Ferreira
Realização: Leandro Ferreira
Versão: 22 de Novembro de 2020
1 EXT. SOCIEDADE GASTRONÓMICA
NOITE
Legenda sobre fundo negro:
PORTUGAL 1907. AS IDEIAS REPUBLICANAS VÃO-SE IMPONDO E AS INSTITUIÇÕES MONÁRQUICAS COMEÇAM A SER
ABALADAS. MAS A SOCIEDADE GASTRONÓMICA DE LISBOA RESISTE E APARENTEMENTE É UM DOS MAIS SÓLIDOS BASTIÕES DA MONARQUIA.
É uma breve imagem acompanhada pelo concerto para violino Nº2 de Shostakovich, para
em seguida passarmos para uma típica praceta portuguesa. Estamos em frente do seu
prédio mais imponente. É uma noite fria e a
rua vazia proporciona um ambiente calmo,
que é subitamente interrompido por um conjunto de GRITOS oriundos do segundo andar
do prédio, o único que tem a luz acesa.
1. GERAL – UMA CARRUAGEM ATRAVESSA O QUADRO DIREITA ESQUERDA.
COCHEIRO SÓ. A CARRUAGEM SAI, GRITOS, PAN. ASCENDENTE RÁPIDA PARA A
JANELA IDEALMENTE CONJUGADA COM
MOVIMENTO DE GRUA DE APROXIMAÇÃO À JANELA. NOTA: ESTE PLANO,
CASO O PROSITT SAIA PELA JANELA,
POUPAVA AS CENAS 2 E 3.
2 INT. SALÃO DE JANTAR DA SOCIEDADE GASTRONÓMICA NOITE
Num ambiente tumultuoso, UM GRUPO DE
HOMENS, perto da histeria, carrega em
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grande algazarra um corpo ensanguentado
em direcção à janela. A sala, decorada de
forma luxuosa e marcada por uma enorme
mesa central rectangular, encontra-se num estado caótico, com loiça partida e cadeiras no
chão, sinais de uma luta recente. O homem,
PROSITT (55 anos), que é carregado pelo
grupo, apesar dos maus-tratos, não pára de rir,
uma gargalhada louca que se sobrepõe às injúrias intensas do bando.
1. GERAL COM TODA A ACÇÃO DE PROSITT A SER CARREGADO – MASTER 1
2. PICADO COM A MESMA ACÇÃO, MAS
MAIS CERRADO. SAEM PELA PARTE DE
BAIXO DO QUADRO – MASTER 2
3. APROXIMADO/GP PROSITT – ACOMPANHAMENTO DO MOVIMENTO – GIMBAL
OU STEADY CAM
4. + DOS HOMENS QUE CARREGAM PROSITT, COM DESTAQUE PARA PERES e XAVIER, IDÊNTICO AO PLANO DE PROSITT,
SEMPRE EM MOVIMENTO
5. CONJUNTO – ACÇÃO, COM TODOS DE
COSTAS, A JANELA AO FUNDO. PROSITT,
TODO ENSANGUENTADO É ARREMESSADO CONTRA A JANELA, QUE ESTILHAÇA POR TODO O LADO. PROSITT
NÃO PÁRA DE RIR. DEVERÁ SER FEITO EM
DUAS ESCALAS
3 INT/EXT. JANELA DA SOCIEDADE GASTRONÓMICA NOITE
510
Sampaio & Almeida
Um Jantar Muito Original
O corpo que víramos a ser carregado dentro
da casa de jantar é projectado selvaticamente
pela janela. Vêem-se os estilhaços de madeira
e vidro partido. PROSITT não pára de rir.
Quando o seu corpo se encontra a meio da janela, a imagem congela.
1. GP PROSITT A SAIR PELA JANELA
2. CONJUNTO – CORPO DE PROSITT SAI
PELA JANELA. FREEZE.
DUARTE RODRIGUES (OFF)
Perdoem-me! Mas não foi assim
que aconteceu, talvez seja
melhor recuarmos até ao início.
FADE OUT
4 INT. SALÃO DE JANTAR DA SOCIEDADE GASTRONÓMICA NOITE
11 HOMENS estão presentes no jantar anual
da Sociedade Gastronómica de Lisboa. O ambiente é bastante requintado. excêntrico, facto
visível através das roupas usadas pelas 3 EMPREGADAS, um misto de espartilhos “Moulin Rouge” com Carnaval de Veneza, que servem à mesa, sempre sorridentes e sem se
fazerem rogadas para agradar aos homens que
vão servindo. A mesa onde estão sentados,
cinco de cada lado e o presidente ao centro, é
comprida e rectangular. O jantar já se encontra
numa fase adiantada. Os comensais conversam entre si. O ambiente é efusivo, e apenas o
homem à cabeceira, o Presidente PROSITT,
parece estar distante.
DUARTE RODRIGUES (discurso directo)
Estamos na quingentésima reunião
da Sociedade Gastronómica de
Lisboa, presidida pelo distinto
gastrónomo, o Professor
Sebastião Prosi\. Um habitual e
extravagante hino aos mais
diversos prazeres da vida. Este
ano, o grande tema de debate
é aquilo a que decidimos chamar “O
Problema”.
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
1. APROXIMADO DUARTE, SENTADO À
MESA, FALA PARA A CÂMARA, COMO SE
ESTIVESSE SOZINHO NA SALA, FUNDO
DESFOCADO. DUAS ESCALAS.NO INÍCIO
DIZ A RÉPLICA DA CENA 3: “Perdoem-me!
Mas não foi assim que aconteceu, talvez seja
melhor recuarmos até ao início”
2. PROSITT, SENTADO À CABECEIRA,
PARA INTERCALAR NO PLANO DE DUARTE
3. DUARTE DE NOVO. COMEÇA A OUVIRSE A VOZ DO GENERAL. DUARTE OLHA
NA DIRECÇÃO DELE.COM A VOZ DO GENERAL COMEÇA A OUVIR-SE O AMBIENTE E ENTRAMOS NO REAL. ESTE
PLANO É MESMO (1), MAS FOTOGRAFADO DE FORMA REALISTA.
4. CONJUNTO FRONTAL, COM PROSITT
À CABECEIRA. GENERAL EM PÉ FALA E
TODA A ACÇÃO DA CENA. GIRLS SERVEM À MESA - MASTER
Um dos convivas, ao meio na fila do lado esquerdo do Presidente, em pé, fala de forma arrastada, denunciando um acentuado estado
de embriaguez, num discurso que se percebe
já vir longo. É o GENERAL CAEIRO (70 anos).
GENERAL CAEIRO
...o problema? O problema, é
muito mais do que um simples
problema! E por isso não nos
devemos restringir ao que ele é,
mas sim ao que ele representa!
Não consideram que o marasmo em
que se encontra a arte
gastronómica é bem mais difícil
de resolver do que a larica
desses republicanos peralvilhos
que se atiram aos bons costumes
da tradição monárquica? É
preciso mais... originalidade, é
preciso... mais... (olha para o
copo) vinho!
511
Sampaio & Almeida
5. FRONTAL GENERAL QUE DISCURSA
PARA TODOS – DUAS ESCALAS COM
TODO O DIÁLOGO. NA MAIS ABERTA
COM ALEXANDRE EM CAMPO
O primeiro na fila à direita de PROSITT é o Dr.
DUARTE RODRIGUES (28 anos). Ao seu lado,
XAVIER (30 anos). Os dois segredam.
XAVIER (divertido)
O general hoje está todo
entornado!
DUARTE
Não mais do que o costume.
6. XAVIER E DUARTE, FRONTAL COM
TODO O DIÁLOGO ENTRE OS DOIS
São interrompidos pelo General, que eleva a voz.
GENERAL CAEIRO
O-RI-GI-NA-LI-DA-DE!
Compreendem? É o que é preciso!
Um Jantar Muito Original
Gouveia, e que sai em seu auxílio, quando percebe que o estado de embriaguez do GENERAL o faz perder o fio à meada. Sentado à
mesa está ainda o PROFESSOR CAMPOS (50
anos), entre o GENERAL CAEIRO e o Engenheiro PERES. O CAPITÃO LENCASTRE (40
anos), senta-se no extremo da fila à direita de
PROSITT e o ARQUITECTO MAIA (55 anos)
à sua frente.
7. ENGENHEIRO PERES DEBITA TUDO –
DUAS ESCALAS. NA MAIS ABERTA COM
CAMPOS (MESMA RECEITA PARA OS OUTROS, COM REACÇÕES EM TODOS OS
PLANOS)
8. DR. BAYARD
9. ENGENHEIRO GOUVEIA
10. XAVIER SOZINHO. A OUTRA ESCALA É
COM DUARTE
DUARTE volta a segredar para Xavier.
11. ALEXANDRE. NA ESCALA MAIS
ABERTA COM O ARQUITECTO MAIA EM
CAMPO
DUARTE
Original seria, isso sim, vê-lo
sóbrio nestas condições!
12.(3) DUARTE SOZINHO, MAS DIFERENTE
DO PLANO INICIAL EM QUE FALA PARA
A CÂMARA
XAVIER
Duarte, não se esqueça que ele
vai ser seu sogro...
13. PROSITT
DUARTE e XAVIER trocam um sorriso. O GENERAL senta-se e o Engenheiro PERES (55
anos), o primeiro à esquerda de PROSITT, levanta-se por sua vez e, exibindo um jornal,
toma a palavra. O Dr. BAYARD (50 anos), sentado na fila do lado direito de PROSITT, em
frente ao GENERAL CAEIRO, e o Engenheiro
GOUVEIA (45 nos), sentado na fila à direita do
Presidente, ao lado do Dr. BAYARD, vão intervindo, enquanto o Engenheiro PERES fala,
mas mantêm-se sentados. Assim como XAVIER, DUARTE e o PROFESSOR ALEXANDRE (60 anos), sentado à esquerda do GENERAL CAEIRO, entre este e o Engenheiro
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14. CONJUNTO PICADO – PROSITT DE
COSTAS, COM TODOS A OUVIR O SEU DISCURSO (SALTO DE EIXO, EM RELAÇÃO AO
4. MASTER)
ENG. PERES
Este artigo da “Gastronómica do
Porto”, ou “o Problema”, como
lhe chamam, é só mais um ataque
aos bons costumes e à excelência
da nossa sociedade.
DR. BAYARD
Um ultraje! Isto é gente que se
intitula republicana.
512
Sampaio & Almeida
ENG. GOUVEIA
Efetivamente. E ainda ousam dizer
Que o nosso presidente é uma
fraude...
XAVIER
É um texto panfletário, mas pelo
caminho que as coisas tomam,
outros se seguirão.
ENG. GOUVEIA
Depois da conquista da Câmara do
Porto por essa gentalha
republicana, também me parece
inevitável.... A menos que
alguém os trave.
XAVIER
Escrevam o que vos digo, porque
não será o nosso Primeiro João
Franco nem o Rei que os
conseguirão parar.
O GENERAL intervém, mas mostra-se perdido na conversa. O Professor ALEXANDRE
logo o ajuda.
Um Jantar Muito Original
se alargou a todos.
O Engenheiro PERES senta-se e DUARTE intervém de imediato.
DUARTE
São tempos diferentes, hoje em
dia as instituições já são
questionadas. Todos estamos
sujeitos a escrutínio. Até o
Rei!
PROFESSOR ALEXANDRE
Cuidado meu caro, por menos já
foram bons homens parar à
cadeia!
DUARTE
O nosso presidente sabe que
estou longe de ser um revoltoso!
DUARTE, mantendo-se sentado, brinda a
PROSITT, que continua sem prestar grande
atenção à conversa, mas responde ao brinde.
O Engenheiro GOUVEIA dirige-se de forma
ostensiva a PROSITT.
GENERAL CAEIRO
Então, se a Coroa está em
perigo, trata-se de uma
declaração de Guerra!!!
ENG. GOUVEIA
Não diz nada, Prosi\? Na sua
qualidade de Presidente, não diz
nada? O assunto não o incomoda?
PROFESSOR ALEXANDRE
Que precisa de uma desforra imediata,
porque, isto há uns anos não acontecia!
DUARTE
(secundando o Engenheiro Gouveia)
Sim, afinal foi o mais visado no
artigo.
DUARTE
Está a questionar a liderança,
Alexandre?
PROFESSOR ALEXANDRE
Não foi isso que eu disse, lá
está você...
ENGENHEIRO PERES
Ninguém teria coragem de nos
questionar há dez, ou quinze
anos atrás. Permitam que me
sente, uma vez que a conversa
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
PROSITT levanta-se lentamente, mantendo o
ar misterioso. Em toda a sua conversa nunca
perde o sorriso enigmático. Pega no jornal que
o Engenheiro Peres acabara de exibir.
PROSITT
O artigo deste pasquim inútil,
francamente, só merece o meu
desprezo e os seus autores terão
a resposta adequada. E para o
provar, quero fazer-lhes uma
proposta, um convite… Estão todos
513
Sampaio & Almeida
a dar-me atenção?
PROSITT bate com uma colher num copo, a
pedir atenção. Toda a sala entra em silêncio.
PROSITT (CONT'D)
...Senhores, vou convidá-los
para um jantar. Declaro que
nunca foram a nenhum como este.
O meu convite é simultaneamente
um desafio.
PROSITT faz uma pausa para beber vinho, estuda a sala, a antecipar os seus pares.
PROSITT (CONT'D)
O desafio está contido no facto
de que de hoje a dez dias darei
uma nova espécie de refeição...
Bem, usando as palavras do meu
caro General... Um jantar muito
original! Considerem-se
convidados!
Inicia-se um burburinho entre todos, que se
transforma num tumulto de perguntas.
ENGENHEIRO PERES
Que espécie de jantar?
DOUTOR BAYARD
A que género de desafio se
refere?
PROSITT ganha uma nova disposição.
PROSITT
Na altura devida ficarão a saber
o que vos espera. Prometo-vos
que vai ser uma novidade
absoluta!
Todos aplaudem PROSITT, com gritos de incentivo. PROSITT conclui a sua intervenção.
PROSITT (CONT'D)
A originalidade do jantar... Não
está no que vai parecer que está
a ser servido nos vossos pratos,
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
Um Jantar Muito Original
mas naquilo que significa, no
que contém. O repto que vos
lanço, é que, depois de
terminado, me digam em que
medida ele é original. Garanto
que ninguém vai adivinhar... Mas
terminemos o assunto, afinal,
ainda nos falta a sobremesa!
PROSITT enfatiza com um estudado sorriso a
sua última frase e faz um gesto largo, num sinal que indica a entrada em cena de cinco mulheres jovens, vestidas de forma idêntica às
EMPREGADAS, e que estão ali para agradar
aos homens. Duas delas dirigem-se logo para
PROSITT, rodeando-o provocatoriamente. Ele
olha-as, como quem faz uma escolha e opta
por uma delas, enquanto a outra vai para o
lado esquerdo da mesa, ficando duas de cada
lado e uma com PROSITT.
15. GERAL PICADO, COM AS DUAS ÚLTIMAS FALAS DE PROSITT E TODA A ACÇÃO, ANTES E DEPOIS DA ENTRADA DAS
GIRLS ou
(13) PROSITT – A CÂMARA AFASTA-SE E
SOBE ATÉ FICAR EM GERAL PICADO.
5 INT. LOBBY DA SOCIEDADE GASTRONÓMICA NOITE
Os convidados preparam-se para abandonar o
local do banquete. A grande maioria ainda se
encontra no hall perto do bengaleiro. O Engenheiro GOUVEIA tenta partilhar as suas dúvidas, mas também o seu entusiasmo com DUARTE e XAVIER.
1. AMERICANO/MÉDIO – A MENINA DO
BENGALEIRO ENTREGA OS SOBRETUDOS
AO ENG. GOUVEIA, DUARTE E XAVIER. A
CÂMARA RECUA ACOMPANHANDO O
MOVIMENTO DELA E DESCOBRINDO OS
TRÊS HOMENS, COM A FRASE DE GOUVEIA MEIA EM OFF. FICAM OS TRÊS EM
CAMPO, QUE SE VÃO APERALTANDO. DE-
514
Sampaio & Almeida
POIS PROSITT ENTRA EM CAMPO E DIRIGE-SE AO BENGALEIRO ENQUANTO
FALA – A CÂMARA RECUA ENQUADRANDO PROSITT SOBRE A DIREITA.
MASTER 1 ATÉ SAÍDA DE PROSITT E
GOUVEIA
2. DUARTE EM APROXIMADO. EVENTUALMENTE COM AMORCE DOS OUTROS,
CONFORME O DIÁLOGO
3. GOUVEIA, IDEM
4. XAVIER IDEM
5. PROSITT DESDE QUE ENTRA ATÉ SAIR.
AÍ GOUVEIA ENTRA EM CAMPO, POSSIVELMENTE PELA DIREITA
ENGENHEIRO GOUVEIA
Então o que acharam do convite?
DUARTE
Acima de tudo achei-o
misterioso. Prosi\ nem parecia
ele, costuma ser menos
enigmático e estranhei toda
aquela euforia.
ENGENHEIRO GOUVEIA
É natural que tenha uma reacção
destas, atacaram-no forte no
artigo, nem nós o poupámos hoje
ao jantar.
XAVIER
O Prosi\ é um homem orgulhoso
na sua arte. O que será que está
a preparar?
ENGENHEIRO GOUVEIA
Talvez carne de algum animal
exótico?
DUARTE
Duvido. O nosso presidente não
gosta de se repetir... E ainda
temos problemas com a sociedade
Zoológica à conta do jantar em
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
Um Jantar Muito Original
que lhes roubamos as zebras!
Os três homens riem-se. O grupo é interrompido por PROSITT.
PROSITT
Vejo que continuam a falar do
meu convite. Só para vos aguçar
a curiosidade, vou dizer-vos que
em relação aos vis e
desprezíveis autores do artigo,
já está tudo tratado.
XAVIER
Vai-lhes responder num texto...
Talvez a relatar o jantar que
tem em mente?
PROSITT
A resposta não será por
escrito... Eles vão sentir na
pele o jantar que preparo!
ENG. GOUVEIA
Está a pensar convidá-los? Não
me parece que eles aceitem...
As dúvidas dos seus companheiros só aguçam
o sentido de diversão de PROSITT.
PROSITT
(ironicamente divertido)
Talvez mostrem alguma
resistência, mas garanto-vos que
faz parte dos meus planos a sua
presença, aliás o jantar não
seria o mesmo sem eles!
DUARTE
Intriga-me este seu desafio
Prosi\, do modo como fala dele
parece-me que vamos ter uma
aventura sem igual...
PROSITT
Não duvide. Em especial para si,
meu bom Duarte!
DUARTE
515
Sampaio & Almeida
Encontramo-nos dentro de quanto
tempo? Dez dias?
PROSITT
Ou talvez antes, nunca se
sabe... Agora que a aventura
começou! Meus amigos, desejo-vos
uma boa noite!
PROSITT abandona a sala, seguido pelo Engenheiro Gouveia. FIM MASTER 1
O Dr. BAYARD aproxima-se de Duarte e Xavier, falando para Duarte.
Um Jantar Muito Original
atiça o fogo e mantém-se em pé junto da lareira. Fica uma cadeira vazia. O GENERAL
está numa fase mais soturna da sua bebedeira.
1. CONJUNTO – GENERAL E PERES, SENTADOS, REAGEM À APROXIMAÇÃO DE
DUARTE E BAYARD. PAN LATERAL COM
TRAVELLING ATRÁS ATÉ FICAREM OS
QUATRO EM CAMPO. BAYARD VAI PARA
A LAREIRA, PEGA NO ATIÇADOR E FAZ
UM COMENTÁRIO: “NÃO PODEMOS DEIXAR MORRER A CHAMA”, RI DA PRÓPRIA PIADA E COMEÇA A ATIÇAR A LAREIRA. MASTER
6. DUARTE E XAVIER FICAM A VER PROSITT E GOUVEIA SAIR. XAVIER FAZ MENÇÃO DE TAMBÉM SAIR, MAS DUARTE
FAZ-LHE UM SINAL PARA DAR UM
TEMPO. NESSE INSTANTE VOLTAM-SE,
REAGINDO À VOZ DO DR. BAYARD
2. GENERAL CAEIRO, COM TODO O DIÁLOGO. DUAS ESCALAS. NO FINAL FAZ
UM SINAL AO DR. BAYARD
7. BAYARD AVANÇA PARA ELES, A CÂMARA RECUA ATÉ ENQUADRAR OS TRÊS
– MASTER E ÚNICO ATÉ FIM DA CENA.
NO FINAL XAVIER SAI PELA ESQUERDA
E DUARTE E BAYARD AFASTAM-SE DE
COSTAS PARA A CÂMARA – PAN
ESQ./DIREITA, EM PRINCÍPIO
4. ENGENHEIRO PERES, COM TODO O DIÁLOGO. DUAS ESCALAS
DR. BAYARD
Preciso que me acompanhe, é o
General... Ele pede a sua
presença.
XAVIER
Meu caro amigo, deixo-o com a
velha guarda.
XAVIER sai e DUARTE segue o Dr. Bayard.
6 INT. SALA DE FUMO SOCIEDADE GASTRONÓMICA NOITE
A sala de fumo está mal iluminada. Sentados
junto a uma lareira, a fumar charuto, estão o
GENERAL CAEIRO e o ENGENHEIRO PERES. O Dr. BAYARD caminha até à lareira,
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
3. DUARTE, COM TODO O DIÁLOGO.
DUAS ESCALAS
5. BAYARD EM PÉ JUNTO DA LAREIRA,
COM TODO O DIÁLOGO. DUAS ESCALAS.
NO FINAL, CORRESPONDENDO AO SINAL DO GENERAL, ATRAVESSA O CAMPO
DIREITA/ESQUERDA E SAI.
GENERAL CAEIRO
Sente-se, meu bom rapaz.
DUARTE hesita antes de se sentar. O general
insiste e ele acede.
DUARTE
(sentando-se)
O Dr. Bayard disse-me que o
General não se estava a sentir
bem.
GENERAL CAEIRO
Obviamente. Quem se sente bem
perante aquilo que estamos a
vivenciar?
DUARTE
516
Sampaio & Almeida
É só um jantar. E é só um
artigo, General.
GENERAL CAEIRO
E daqui a nada está a dizer que
é só uma monarquia, só um
império... Eu ouço-o a dizer
coisas em que sei que não
acredita. Tem todo um passado
atrás de si.
ENGENHEIRO PERES
E é por isso que lhe queremos
fazer uma proposta.
DUARTE
O Engenheiro não acha que já
tivemos emoção suficiente para
uma noite?
DR. BAYARD
A nossa sociedade gastronómica é
um dos pilares desta nação. Não
concorda?
DUARTE
Não descuro a sua importância,
nem a influência que os seus
membros têm no destino deste
país.
ENGENHEIRO PERES
(num tom
condescendente)
Nós sabemos as suas inclinações,
mas se os reis, as dinastias, os
governos, são passageiros,
acredite que se vier a república
o caos vai ser ainda maior,
porque vão ser sete cães a um
osso em busca do poder. Mas a
nossa sociedade já provou que
resiste a tudo e assim vai
continuar.
GENERAL CAEIRO
Nada nem ninguém derruba uma
tradição de cinco séculos.
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
Um Jantar Muito Original
DR. BAYARD
No entanto, cometemos um erro na
altura em que aceitámos o
Prosi\. E outro quando o
deixámos subir a presidente...
GENERAL CAEIRO
Um emergente que fez fortuna nas
colónias. De que maneira, quem o
sabe? Vocês não estiveram lá,
não viram coisas que eu vi...
DUARTE
Esta conversa tem um propósito?
O homem é um génio gastronómico.
ENGENHEIRO PERES
Inegável. Mas os ciclos
terminam. O que esta sociedade
precisa neste momento não é de
truques de circo ou guerras com
o exterior.
DR. BAYARD
Precisamos de estabilidade para
os tempos que se avizinham. Uma
nova liderança, que nos traga
sangue novo e que junte
originalidade à tradição.
ENGENHEIRO PERES
O Duarte tem ambições. Estamos a
propor que pense num jantar que
bata em tudo a originalidade a
que o Prosi\ se propõe.
DUARTE
Estão a propor uma traição ao
nosso presidente...?
GENERAL CAEIRO
O diabo para o Prosi\... é o
único culpado da situação em que
nos encontramos!... Pensamos em
si, Duarte, porque política à
parte, apreciamos o seu arrojo e
sabemos que é digno da nossa
confiança. Seria importante para
mim... E para a minha filha,
517
Sampaio & Almeida
estou certo.
DUARTE hesita na resposta, não se querendo
comprometer. Depois levanta-se, num movimento determinado.
DUARTE
Meus senhores, a noite vai
longa... Encontramo-nos dentro
de dez dias. Nessa altura, e
após avaliarmos a prestação do
nosso presidente, pensaremos no
futuro da nossa sociedade...E
agora, se me dão licença.
ENGENHEIRO PERES
Caro doutor, há toda uma
tradição que não podemos deixar
morrer… Contamos consigo.
Um Jantar Muito Original
fortuna do General.
DUARTE responde com um sorriso condescendente ao sorriso matreiro do Dr. BAYARD,
que o acompanha até à porta. Despedem-se de
forma afável. DUARTE sai e o Dr. BAYARD
volta para junto do General e do Engenheiro
Peres.
7 INT. CASA GENERAL CAEIRO/QUARTO
MADALENA DIA
MADALENA (20 anos), de bom traço, elegante, jovial, está a ser vestida pela empregada, CLEMENTINA (23 anos).
1. MÉDIO DAS DUAS, COM TODA A ACÇÃO – MASTER
DUARTE esboça um sorriso vago e faz menção de abandonar a sala.
2. GP MADALENA, COM TODA A ACÇÃO
E DIÁLOGO
(1). DUARTE SAI LADO ESQUERDO. FIM
MASTER
3. APROXIMADO MADALENA, COM TODA
A ACÇÃO E DIÁLOGO
O GENERAL CAEIRO faz um gesto na direcção do DR. BAYARD, que DUARTE já não vê.
O DR. BAYARD aproxima-se dele e pegandolhe no braço, acompanha-o na direcção da
porta de saída.
4. APROXIMADO CLEMENTINA, COM TODA
A ACÇÃO E DIÁLOGO
6. DUARTE DE COSTAS, JÁ NO HALL.
BAYARD ENTRA EM CAMPO, PEGANDOLHE NO BRAÇO. DUARTE SURPRESO, MAS
POUCO. PAN DIREITA / ESQUERDA OU
TRAVELLING LATERAL ACOMPANHANDOOS. DUARTE SAI PELA PORTA, ESQUERDA
E BAYARD SAI DE CAMPO PELA DIREITA
(VOLTA À SALA). FICAMOS COM A MENINA DO BENGALEIRO, QUE ATENDE
DOIS FIGURÕES.
DOUTOR BAYARD
(falando-lhe ao ouvido)
Duarte, você é um homem
apaixonado e a Madalena é uma
mulher linda e filha única…mais
tarde ou mais cedo vai herdar a
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
MADALENA
Se o papá te perguntar onde é
que eu estou, o que é que dizes
Clementina?
CLEMENTINA
Menina... Eu preferia não ter de
mentir ao senhor General.
MADALENA
Não seria a primeira vez.
CLEMENTINA
Por que é que a menina insiste em
meter-me nestas situações?
MADALENA
O que é isso comparado com
aquele teu namorado republicano?
Diz-me, ele continua por aí a
518
Sampaio & Almeida
Um Jantar Muito Original
colocar bombas?
CLEMENTINA
Credo, o meu Octávio não faz
dessas coisas, menina... Se o
Senhor General perguntar, eu
digo que foi às aulas de
piano... Mas se me permite,
alguém na sua posição não devia
encontrar-se sozinha com homens.
MADALENA
Com o meu noivo, Clementina. Que
é um homem moderno, tal como o
teu namorado. Além disso estamos
num novo século, há sete anos
que estamos no século vinte. Os
costumes agora são diferentes.
CLEMENTINA
Se isso fosse verdade, a menina
não tinha de ir ter com ele às
escondidas. Se o senhor seu pai
sonha sequer...
MADALENA
O meu pai sabe muito mais do que
dá a entender... Sabes como é o
papá! E não queres que eu seja
feliz? Então ajuda-me, vá!
8 INT. CASA DE DUARTE
GUES/SALA FIM DO DIA
RODRI-
A grafonola da sala, toca o “Air Suit Nº3 Em
Ré Maior” de Johann Sebastian Bach.
1. INSERT GRAFONOLA COM DISCO A RODAR (PODE OU NÃO SER UTILIZADO,
MAS É DE FAZER)
2. INSERT MÃOS DE DUARTE A ACENDER
LAMPARINA. A CÂMARA RECUA COM
PAN (IDEALMENTE DIREITA/ESQ.) ENQUADRANDO DUARTE E REVELANDO A
SALA, ATÉ DESCOBRIR MADALENA NA
CHAISE LONGUE, NA FRENTE DELE. DIÁ-
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
LOGO E TODA A ACÇÃO – QUANDO MADALENA SE LEVANTA A CÂMARA ACOMPANHA-A, APROXIMANDO-SE DELA E DUARTE. DEPOIS MADALENA SAI DE CAMPO
PELA ESQUERDA E FICAMOS SOBRE DUARTE.
DUARTE, junto a um carrinho de sobremesas
adaptado a cozinha portátil, está vestido de
maneira formal, mas de avental. A sala da sua
casa é um reflexo da sua personalidade, decorada de uma forma faustosa, com diversas gravuras e livros de anatomia, medicina, mas
igualmente de culinária. Sentada numa chaiselongue encontra-se MADALENA, que observa
DUARTE com curiosidade. Ele acende cuidadosamente uma pequena lamparina e coloca-a
por baixo de um suporte metálico, que funciona como bico de fogão. Em seguida põe manteiga numa frigideira e deixa-a ao lume a derreter, sempre sob o olhar atento de MADALENA,
que se levanta e aproxima-se dele com modos
insinuantes.
MADALENA
Sinto que estamos numa situação
sacra... Devo ajoelhar-me?
DUARTE sorri e olha-a sugestivamente.
DUARTE
Primeiro, comemos! Depois... o
resto!
MADALENA faz menção de o abraçar, mas
fica com o gesto a meio.
MADALENA
Compreendo, o dever antes do
prazer.
DUARTE
Não, cada prazer a seu tempo,
minha querida.
MADALENA simula ficar amuada e volta a
sentar-se na chaise-longue.
519
Sampaio & Almeida
3. MADALENA QUE VOLTA A SENTAR-SE
NA CHAISE LONGUE. TODO O DIÁLOGO
ATÉ SE LEVANTAR. SAI DE CAMPO PELA
DIREITA. DUAS ESCALAS
4. DUARTE – DUAS ESCALAS. TODA A ACÇÃO. NO FINAL MADALENA ENTRA EM
CAMPO PELA ESQUERDA. A CÂMARA
MOVIMENTA-SE À VOLTA DELES – STEADY OU GIMBAL
MADALENA
Antes de o conhecer, nem
imaginei possível que um homem
cozinhasse, muito menos com a
sua paixão e arte...
DUARTE abre uma cesta onde tem alguns
ovos e escolhe minuciosamente um deles. Responde-lhe maquinalmente, enquanto parte o
ovo apenas com uma mão.
DUARTE
Está a ver o movimento do pulso?
É como um maestro a marcar o
compasso de uma orquestra...
MADALENA
Ou a delicadeza de acariciar...
a crina de um cavalo.
DUARTE
Também aqui temos que saber
domar os alimentos... Cada um
tem vida própria, como um animal
selvagem.
MADALENA
Eu não digo, fala de comida como
um verdadeiro artista fala da
sua obra.
DUARTE
O seu pai também faz parte da
Sociedade Gastronómica de
Lisboa.
MADALENA
O papá dá ordens à nossa
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
Um Jantar Muito Original
cozinheira. Não é como o Duarte,
o Duarte experimenta, suja as
mãos.
DUARTE
Para se mandar, é preciso
primeiro saber fazer. É o mal de
muitos líderes hoje em dia.
Limitam-se a falar, mas não se
comprometem com o que dizem.
MADALENA
É isso que quer ser? Um líder?
Achei que tivesse alma de
artista...
DUARTE
Não se pode querer ter os dois
mundos?
MADALENA
Eu parece-me que o Duarte pode
alcançar tudo aquilo que deseja.
Exactamente, porque não tem medo
de experimentar...
DUARTE
Nunca existiu um bom artista que
não duvidasse da sua arte... Da
mesma forma que nunca um homem
alcançou a excelência sem uma
musa. Quer ser a minha musa,
Madalena?
MADALENA
Quero levá-lo a essa excelência
que tanto procura.
DUARTE
Venha, deixe-me ensiná-la.
DUARTE estende-lhe a mão. Ela levanta-se, de
uma maneira coquete, sedutora.
(4) MADALENA ENTRA EM CAMPO PELA
ESQUERDA. A CÂMARA MOVIMENTA-SE
À VOLTA DELES – ACÇÃO ATÉ FINAL STEADY OU GIMBAL. DEPOIS DUARTE SAI
520
Sampaio & Almeida
DE CAMPO NA DIRECÇÃO DA PORTA, FICAMOS SOBRE MADALENA, TODA LIXADA
MADALENA
Sim Mestre!
DUARTE sorri e pega na mão de Madalena.
Juntos tiram um ovo da cesta. Ela na frente
dele, com os corpos colados.
DUARTE
Vá, é tudo uma questão de pulso.
1... 2... e...3
MADALENA parte o ovo só com uma mão.
Ri-se.
MADALENA
Sou uma discípula aplicada.
DUARTE
Uma musa não é uma discípula, é
uma diva.
DUARTE envolve MADALENA nos seus braços, segura-lhe nas mãos enquanto ela começa
a bater os ovos, com o corpo sensualmente colado ao dele.
DUARTE (CONT’D)
(enquanto a acaricia)
Isso, isso,
compassadamente.1...2...3...4...
1...2...3...4...
MADALENA pousa a tigela dos ovos e voltase, enlaçando DUARTE.
MADALENA
(falando-lhe ouvido)
É agora que devo ajoelhar-me?
DUARTE está pronto a ceder à provocação.
DUARTE
Não vejo motivo para não o
fazer... Mas antes…
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
Um Jantar Muito Original
DUARTE puxa-a para si e beijam-se intensamente, com paixão e evidente volúpia. Nesse
momento a campainha da porta começa a tocar. DUARTE fica visivelmente irritado, hesita
em atender, mas perante a insistência da campainha, solta MADALENA e dirige-se até ao
hall de entrada. Ela faz um gesto de decepção
e segue-o à distância.
Sim, o que é?
DUARTE
(irritado)
9 INT. CASA DUARTE RODRIGUES/HALL
DE ENTRADA FIM DO DIA
DUARTE abre a porta de sua casa. É surpreendido por um homem enorme, africano, vestido
de forma exótica, mas ocidentalizada. Trata-se
de EZEQUIEL (30 anos), o mordomo de Prosi\, que lhe passa um envelope.
1. AMERICANO – DUARTE ENTRA PELA
DIREITA, ABRE A PORTA – MASTER TODA
A ACÇÃO ATÉ MADALENA – PAN OU
TRAVELLING LATERAL
2. EZEQUIEL, COM DUARTE EM AMORCE
3. DUARTE, COM EZEQUIEL EM AMORCE.
NO FINAL DUARTE VOLTA- SE – A CÂMARA ACOMPANHA-O EM PAN, ATÉ ENQUADRAR MADALENA. DIÁLOGO E TODA
A ACÇÃO DE MADALENA
EZEQUIEL
Dr. Duarte Rodrigues, o senhor
Prosi\ convocou-o.
DUARTE abre o envelope, enquanto MADALENA, ao fundo, o observa, conseguindo perceber a conversa entre os dois homens.
EZEQUIEL (CONT'D)
(peremptório)
A carruagem está à sua espera!
DUARTE
Agora? O Prosi\ não pode
521
Sampaio & Almeida
simplesmente pensar que eu...
estou acompanhado, compreende?
EZEQUIEL não liga a DUARTE.
4. INSERT CARTA – “PRECISO DA SUA PRESENÇA. URGENTE. P.”
5. GP DUARTE, REPETE ACÇÃO DESDE A
ABERTURA DA CARTA ATÉ IR NA DIRECÇÃO DE MADALENA
EZEQUIEL
A carruagem está à sua espera,
Dr. Duarte Rodrigues.
DUARTE hesita.
DUARTE
Eu... vou precisar de uns
momentos.
DUARTE volta-se e depara com Madalena,
que o olha com ar furioso.
DUARTE (CONT'D)
Minha querida, peço desculpa,
mas vou ter de me ausentar.
6. GP DUARTE, QUE FICA A VÊ-LA E NÃO
REAGE, MAS AMARROTA A CARTA.
7. INSERT CARTA A SER AMARROTADA.
LIGEIRA HESITAÇÃO E DUARTE METE-A
NO BOLSO.
MADALENA rejeita a tentativa de Duarte a
abraçar e, não escondendo a sua irritação. Começa a pegar nas suas coisas.
MADALENA
Já é tarde, tenho de me ir
embora, o Papá já deve estar
preocupado.
10 EXT. ESTRADA/INT. CARRUAGEM
NOITE
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
Um Jantar Muito Original
DUARTE vai sozinho na carruagem. Move a
sua bengala de forma nervosa. A carruagem
segue por uma rua escura e pouco movimentada, ao som de “A ilha dos mortos”, Poema
sinfónico Op. 29 de Rachmaninov. Estica a cabeça para fora, de forma a falar com EZEQUIEL.
DUARTE
O Prosi\, não disse qual o
motivo desta urgência?
1. DUARTE DENTRO DA CARRUAGEM EM
MOVIMENTO. DEITA A CABEÇA DE FORA.
DIÁLOGO, TODA A ACÇÃO
2. DUARTE VISTO DO EXTERIOR. DIÁLOGO, TODA A ACÇÃO
3. EZEQUIEL CONDUZ A CARRUAGEM
IMPÁVIDO E SERENO, SEM REAGIR À PERGUNTA DE DUARTE. BATE COM AS RÉDEAS
4. GERAL – CARRUAGEM ATRAVESSA O
QUADRO. ENTRA E SAI DE CAMPO
EZEQUIEL não responde, limita-se a bater
com as rédeas e a aumentar a velocidade da
carruagem. Duarte regressa para o interior.
11 INT. CASA GENERAL / SALA PIANO
NOITE
MADALENA está ao piano. A sua irritação
nota-se na forma furiosa como toca o 3º movimento da Sonata ao Luar de Beethoven. CLEMENTINA entra
CLEMENTINA
Menina, o seu paizinho pede se
pode tocar uma música mais...
alegre. Por causa das visitas.
1. INSERT MÃOS DE MADALENA A TOCAR
FURIOSAMENTE.
522
Sampaio & Almeida
MADALENA contém a sua fúria, observa as
pautas, coloca a partitura de Arabesque Nº1 &
Nº2 de Debussy e começa a tocar.
MADALENA
Vamos ver se ele anima com um
republicano.
CLEMENTINA
Não devia provocá-lo hoje... Ele
está mesmo aqui ao lado na sala
de fumo.
MADALENA
Provocá-lo, eu? Clementina, vai
perguntar ao papá se a música
agora está mais do seu agrado!
2. APROXIMADO/AMERICANO DE MADALENA SOBRE A DIREITA E CLEMENTINA
QUE AVANÇA DO LADO ESQUERDO –
TODA A ACÇÃO. QUANDO CLEMENTINA
SAI, A CÂMARA APROXIMA-SE DE MADALENA E RODEIA-A DIREITA/ESQUERDA.
CLEMENTINA sai. MADALENA continua a
tocar.
12 EXT. PORTA RESTAURANTE “CREPES”
NOITE
É uma noite de nevoeiro, onde ainda se consegue vislumbrar um ou outro transeunte. PROSITT está sozinho à porta de um Restaurante.
A sua atenção é chamada pelo ruído de uma
charrete que se aproxima ao fundo da rua.
PROSITT sorri agradado ao verificar que dentro da charrete, conduzida por EZEQUIEL,
vem DUARTE. A charrete pára e PROSITT
apressa-se a abrir a porta. DUARTE sai e PROSITT faz um gesto para EZEQUIEL que lhe
responde com um sinal afirmativo com a cabeça e depois parte.
1. CONJUNTO COM TODA A ACÇÃO, ATÉ
A CHARRETE PARTIR – MASTER
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
Um Jantar Muito Original
2. AMERICANO PROSITT. CONSULTA O
RELÓGIO E BOLSO. DEPOIS REAGE À
APROXIMAÇÃO
DA
CHARRETE,
OLHANDO ESQUERDA.
3. CHARRETE A APROXIMAR-SE – TRAVELLING PARA TRÁS ATÉ ENQUADRAR
PROSITT QUE ACOMPANHA O MOVIMENTO DA CARRUAGEM, ATÉ PARAR.
DUARTE SAI – PAN ESQUERDA/DIREITA
ATÉ ENQUADRAR TAMBÉM PROSITT,
QUE OLHA PARA EZEQUIEL SEM QUE DUARTE DÊ IMPORTÂNCIA A ISSO – MASTER 2, DIÁLOGO DOS DOIS
4. EZEQUIEL QUE FAZ UM SINAL AFIRMATIVO PARA PROSITT. A CARRUAGEM
AVANÇA, EZEQUIEL SAI DE CAMPO DIREITA/ESQUERDA
PROSITT
Meu bom doutor, espero que o
Ezequiel não o tenha apanhado em
má altura.
DUARTE
Pode explicar-me qual a urgência
da sua chamada?
PROSITT
(fugindo à pergunta de Duarte)
Não me diga que estava às voltas
com alguma cortesã?
DUARTE
Sabe perfeitamente com quem
estava. Aliás, tive que dizer à
Madalena que o Prosi\ se
encontrava terrivelmente doente,
para a abandonar assim...
PROSITT
Relaxe homem, as mulheres gostam
que lhes mintam! Aguça o
mistério, sabe?
DUARTE
Você agora é muito dado ao
mistério, Prosi\.
523
Sampaio & Almeida
PROSITT
(na inevitabilidade da sua ironia)
Acha que o General Caeiro não
suspeita que se encontra a sós
com a filha dele?
DUARTE
Acho que é capaz de ver mais
perigo em eu estar reunido
sozinho consigo.
PROSITT
(no mesmo tom irónico)
E não teme que eu o possa
denunciar?
DUARTE
(competindo com Prosi\ em ironia)
Pelo sim, pelo não, talvez tenha
de o mandar matar para garantir
o seu silêncio!
Nesse momento, PROSITT faz menção de dar
passagem a DUARTE para entrarem no restaurante, mas volta atrás e aproxima-se de
DUARTE.
5. APROXIMADO DE PROSITT COM DUARTE EM AMORCE
6. CONTRA-CAMPO DE DUARTE, COM
PROSITT EM AMORCE
PROSITT
O Duarte, matar? Tinha fibra
para isso?
Os dois homens fitam-se, num duelo de olhares, que PROSITT desfaz com uma estudada
afabilidade.
PROSITT (CONT'D)
Falemos de coisas mais sérias...
chamei-o porque preciso da sua
ajuda.
DUARTE mostra-se surpreendido com as palavras de Prosi\.
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
Um Jantar Muito Original
DUARTE
Da minha ajuda? Para o seu
jantar?
PROSITT
Não... Ou melhor, de uma certa
forma, sim.
DUARTE
E em que o posso ajudar?
PROSITT
Isso cabe-lhe a si descobrir,
quando chegar a altura! Vamos?
PROSITT abre a porta e dá passagem a DUARTE. Entram no restaurante.
(1) CONJUNTO – ENTRAM NO RESTAURANTE DE COSTAS PARA A CÂMARA
13 INT. CASA GENERAL/SALA DO PIANO
NOITE
MADALENA termina a sua peça de piano.
Observa a porta que dá para a sala de fumo,
contígua à sala do piano, e depois caminha de
forma cuidadosa, abrindo apenas uma fresta
para observar e escutar a conversa no seu interior.
1. MADALENA ACABA DE TOCAR. APERCEBE-SE DE VOZES E CAMINHA CAUTELOSA NA DIRECÇÃO DA PORTA, AFASTANDO-SE DA CÂMARA
2. MADALENA JUNTO DA PORTA, TENTANDO OUVIR A CONVERSA DO PAI COM
BAYARD E PERES E REAGINDO – DUAS ESCALAS: APROXIMADO E GP.
14 INT. CASA GENERAL-SALA DO PIANO/SALA DE FUMONOITE
1. POV DE MADALENA – DUAS ESCALAS,
ENQUADRANDO OS TRÊS HOMENS COM
TODA A CONVERSA ATÉ AO BRINDE.
524
Sampaio & Almeida
NESSA ALTURA MADALENA ENTRA NA
SALA
Na sala de fumo, encontram-se o GENERAL
CAEIRO, o ENG. PERES e o DR. BAYARD. Bebem brandy e fumam. MADALENA observaos, sem ser notada.
Um Jantar Muito Original
DR. BAYARD
Podemos confiar no seu futuro
genro?
GENERAL CAEIRO
É necessária uma ala jovem para
que Prosi\ caia. O Duarte é a
pessoa certa.
DR. BAYARD
O talhante habitual do Prosi\
diz que ele não o contactou...
E nós?
ENG. PERES
É natural que mude de
fornecedores, ele suspeitaria
que nós o íamos espiar.
GENERAL CAEIRO
Nós faremos com que a
presidência do meu futuro genro
não seja um sucesso...
GENERAL CAEIRO
A camareira também foi
dispensada.
ENGENHEIRO PERES
Está disposto a sacrificá-lo?
DR. BAYARD
O homem sabe manter um segredo e
uma expectativa.
DR. BAYARD
GENERAL CAEIRO
Não é um sacrifício... Estou
apenas a ajudar na formação de
carácter do rapaz.
GENERAL CAEIRO
E exactamente por isso é tão
perigoso e deve ser destituído.
Os três homens brindam em concordância.
MADALENA faz sentir a sua presença. Os três
homens levantam-se.
ENG. PERES
Acredita mesmo nisso General?
Como diz o seu futuro genro, é
apenas gastronomia.
2. CONJUNTO – MADALENA ENTRA NA
SALA. OS TRÊS REAGEM
GENERAL CAEIRO
A juventude do Duarte dá-lhe o
privilégio de poder ser inocente
nestas matérias. Privilégio que
não temos. Aproximam-se dias de
revolta. E nós vamos travá-la.
DR. BAYARD
Será que o Prosi\ desconfia de
alguma coisa?
ENGENHEIRO PERES
Não me parece. Mas com ele todo
o cuidado é pouco.
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
MADALENA
Peço desculpa, mas queria saber
se o Papá gostou da música...
ENGENHEIRO PERES
Permita-me que lhe diga que
mais melodiosa do que a sua
música, só a sua presença
Madalena.
MADALENA
O engenheiro é demasiado gentil.
Devo tocar mais, papá?
DR. BAYARD
Seria um prazer para todos.
525
Sampaio & Almeida
Um Jantar Muito Original
MADALENA prepara-se para sair, volta atrás.
Faz-se de sonsa.
15 INT. RESTAURANTE “CREPES” / SALA
PRIVADA
NOITE
3. MADALENA DE COSTAS. DEPOIS
VOLTA-SE, PÁRA E AFASTA-SE NO FINAL
– DUAS ESCALAS
O CHEFE DE SALA, vestido com uma jaqueta
branca e de calças pretas, prepara com elegância uns Crepes Suzete para PROSITT e DUARTE. Os dois homens observam com fascínio
as chamas.
4. OS TRÊS, QUE FAZEM MENÇÃO DE SE
SENTAREM, MAS LEVANTAM- SE DE
NOVO, DE FORMA UM TANTO CARICATA.
EVENTUALMENTE DUAS ESCALAS
MADALENA
(disfarçando em ingenuidade
a sua ironia)
Peço desculpa pela intromissão,
mas pareceu-me ouvir falar sobre
o Duarte... Aliás, imaginei que
ele estivesse presente, não é
uma reunião da vossa sociedade
“Agronómica”?
A expressão de MADALENA permite um riso
ao Dr. BAYARD e ao Engenheiro PERES.
DR. BAYARD
Gastronómica, minha querida, não
nos tome por comuns jardineiros!
MADALENA
Ambos criam, não é verdade?
ENGENHEIRO PERES
Aproximadamente. Nós…
MADALENA
(interrompendo-o)
Por outro lado, sempre me
pareceu mais justo fazer crescer
um jardim de rosas, do que
embebedar um peru para ser
servido a um jantar... Se os
senhores e o papá me permitem,
vou tocar mais um pouco. Com a
vossa licença.
Perante o olhar estupefacto dos homens, MADALENA volta para a sala do piano.
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
1. CHEFE DE SALA ACABA DE PREPARAR
OS CREPES. A CÂMARA ACOMPANHA-O
EM PAN ATÉ DESCOBRIR DUARTE E PROSITT SENTADOS À MESA. DEPOIS O CHEFE
SAI E A CÂMARA APROXIMA-SE DA MESA
– MASTER
2. APROXIMADO DE DUARTE COM PROSITT EM AMORCE.DIÁLOGO TODO
3. CONTRA-CAMPO DE PROSITT
4. GP DUARTE. DIÁLOGO TODO
5. GP PROSITT – CONTRA-CAMPO
PROSITT
Mas diga-me, meu caro doutor,
afinal qual foi o alimento mais
estranho que provou?
O chefe de mesa termina os crepes, serve-os a
PROSITT e a DUARTE, faz uma pequena vénia e sai da sala. Os dois homens iniciam a degustação dos crepes. DUARTE saboreia o
crepe enquanto pensa. Demora o seu tempo,
como que a testar a paciência de PROSITT.
DUARTE
Olhos de cabra viva na viagem
diplomática à Jordânia.
E que tal?
PROSITT
DUARTE
Não sei se repetia... Mas até
nem era mau de todo (ri-se). E
você, Prosi\?
526
Sampaio & Almeida
Um Jantar Muito Original
PROSITT
Lamento informá-lo, mas o meu
prato supera a traços largos o
seu. Aprendi nos anos em que
estive em África.
DUARTE
Em África... Escaravelhos?
Jacaré? Hiena?
Bípede!
PROSITT
DUARTE pensa um pouco.
DUARTE
Ah claro, macaco! Melhor, miolos
de macaco! E sabe cozinhá-los?
Devem ser difíceis de arranjar?
PROSITT
Engano seu, olhe que há por aí
bípedes em todo o lado!
Os dois homens soltam uma gargalhada
DUARTE
Já pode revelar o motivo deste
nosso encontro? Vai dar-me uma
dica sobre o jantar?
PROSITT
Não seria correcto dizer-lhe
alguma coisa que o pusesse em
vantagem em relação aos
demais... E garanto-lhe que não
ia gostar de saber o segredo
antes do tempo!
DUARTE
Se não sei o que precisa, como o
posso ajudar?
PROSITT
Achei apenas que lhe devia uma
explicação em relação ao que vou
organizar. Não lhe posso contar
muito, mas vai perceber que é
uma coisa que tinha de ser
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
feita... um acto de líder.
DUARTE
Eu sei que o Prosi\ pensa que
eu ponho em causa a sua
liderança...
PROSITT
Meu amigo, até ao dia do jantar,
nada disso interessa. Mas no
momento certo, o doutor terá a
oportunidade de perceber o que
lhe estou a dizer...
DUARTE
Garanto-lhe que vou descobrir o
segredo desse seu “jantar muito
original”!
PROSITT
Não duvido que tente, meu caro!
Não duvido que tente!
Os dois homens continuam a comer os seus
crepes.
16 INT. CASA GENERAL/SALA DO PIANO
NOITE
MADALENA está a tocar a abertura da Ópera
Julius Caesar (HWV 17: I Overture) de Handel, quando entra na sala o GENERAL CAEIRO. Vem de copo na mão, bebido, irritado.
1. MADALENA AO PIANO. O GENERAL
ENTRA EM CAMPO, SEM QUE ELA O VEJA.
MADALENA VOLTA-SE PARA ELE. ELA
SENTADA, ELE EM PÉ. TODA A CENA –
MASTER
2. MADALENA, DUAS ESCALAS, COM
TODA A ACÇÃO
3. GENERAL, DUAS ESCALAS, COM TODA
A ACÇÃO
GENERAL CAEIRO
Não sei o que pensa que ouviu na
527
Sampaio & Almeida
sala para fazer aquela triste
entrada, mas se me volta a
envergonhar perante os meus
convidados...
MADALENA finge mostrar-se espantada.
MADALENA
Eu, papá? Estava a tocar assim
tão mal?
GENERAL CAEIRO
Não faça essa coisa de parecer
tola, quando sabe perfeitamente
do que estou a falar. Não me
agradava na sua mãe, que Deus a
tenha, e certamente não me
agrada em si.
MADALENA
Apenas quis proporcionar um
acompanhamento musical ao seu
serão. Ouvi relatos que são do
seu agrado nos jantares da vossa
Sociedade… Gastronómica.
O GENERAL termina a sua bebida. Depois
tira um cantil de prata do seu casaco e volta a
encher o copo.
GENERAL CAEIRO
Agora já sabe o nome...
MADALENA
Os seus convidados foram muito
gentis em explicar-me a
diferença. Para uma mulher
certas palavras parecem todas
iguais.
GENERAL CAEIRO
Vocês mulheres e os vossos
artifícios. É por isso que um
homem deve ter um filho, alguém
que siga os seus passos, alguém
que o compreenda.
MADALENA
Mas não é isso que estou a fazer
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
Um Jantar Muito Original
ao aceitar o noivado com o
Duarte, papá? Dar-lhe o herdeiro
que sempre quis?
GENERAL CAEIRO
Por muito interessante que ache
o doutor Duarte Rodrigues, ele
não se equipara à nossa vasta
linhagem militar.
MADALENA
Certamente.
GENERAL CAEIRO
Os Caeiros estiveram ao lado do
Vasco da Gama na Índia, fomos os
primeiros a passar por cima do
Martim Moniz quando ele ficou
entalado nas portas... O que
fizeram esses Rodrigues que se
equipare?
MADALENA
Poder casar-se com a sua filha e
dar-lhe o varão que a mamã nunca
lhe deu. Não era esse o seu desígnio
quando me apresentou ao Duarte?
O GENERAL tenta concentrar-se.
GENERAL CAEIRO
Eu não tenho a certeza que a
menina compreenda do que estamos
a falar. Há coisas mais
importantes...
MADALENA
(interrompendo-o)
Que o futuro desta família, que
também passa pelo melhor para o
meu futuro esposo? O papá não
acredita que ele possa ser um dia um
bom presidente?
A bebida tolda o julgamento do GENERAL.
GENERAL CAEIRO
Presidente? Presidente de quê?
528
Sampaio & Almeida
MADALENA
(fazendo um gesto de
evidência)
Da vossa sociedade...(hesita)...
gastronómica!... O Papá sabe que
eu não percebo nada de
política... Mas acho que basta
ao Duarte não passar tanto tempo
rodeado daquele horrendo Prosi\
para poder atingir grandes
feitos.
GENERAL CAEIRO
Nada de bom vem desse homem.
MADALENA
E por isso mesmo o Duarte
Precisa de apoio, para não se
rodear das pessoas erradas. O
Duarte é o futuro... que pode
abrir caminho para que os seus
netos possam almejar a serem
líderes desta nação.
GENERAL CAEIRO
Os meus netos...
MADALENA
Guiado pelo Papá e apoiado por
mim... O Duarte pode ser o
símbolo de um novo império.
O GENERAL termina o seu segundo copo,
tenta servir-se de mais bebida, mas o cantil
está vazio. Olha para a filha. Absorve as suas
palavras. Consulta o seu relógio.
GENERAL CAEIRO
Mas já é tarde...
MADALENA
Tarde para ir dormir ou para
apoiar o Duarte?
Mas o GENERAL parece não se aperceber da
provocação da filha.
GENERAL CAEIRO
Vou retirar-me. Não volte a
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
Um Jantar Muito Original
tocar modernices como as desse
Debussy, ou a meter-se em
conversas de homens que não
entende.
MADALENA
Claro senhor meu pai, tenha uma
boa noite.
O GENERAL sai, deixando MADALENA sozinha, que esboça um leve sorriso de triunfo.
17 INT. RESTAURANTE “CREPES”-SALA
PRIVADA/SALA RESTAURANTE NOITE
PROSITT e DUARTE levantam-se da mesa,
saem da sala privada e passam para a sala
principal do restaurante. Ainda se encontram
algumas pessoas a comer no restaurante.
PROSITT olha em volta, consulta o seu relógio. Por fim, ao fundo, avista uma mesa onde
jantam animadamente dois jovens. PROSITT
sorri e dá uma palmada nas costas de Duarte
Rodrigues.
1. DUARTE E PROSITT, JÁ EM PÉ NA SALA
PRIVADA, CAMINHAM DIREITA/ESQUERDA
– A CÂMARA ACOMPANHA-OS EM TRAVELLING LATERAL, DESCOBRINDO A SALA
PRINCIPAL E A MESA DOS DOIS HOMENS
DO PORTO – MASTER COM TODA A ACÇÃO. NO FINAL PROSITT E DUARTE
SAEM E FICAMOS COM OS OUTROS
DOIS E A GRAVATA
PROSITT
Meu caro doutor, gostava de o
apresentar àqueles dois jovens
ilustres.
Os dois homens que se encontram na mesa são
jovens, na casa dos vinte anos. Claramente
dandies e de uma geração bem mais próxima
de Duarte do que de Prosi\. São eles: PEREIRA CARVALHO (28 anos) e AFONSO PINHO (32 anos, respectivamente editor e editor
adjunto da “Gastronómica do Porto”. Falam
com um notório sotaque nortenho.
529
Sampaio & Almeida
2. PROSITT E DUARTE, EM PÉ COM TODO
O DIÁLOGO E ACÇÃO
3. PEREIRA CARVALHO E AFONSO PINHO,
TODO O DIÁLOGO E ACÇÃO
4. PROSITT
5. DUARTE
6. PEREIRA CAVALHO
7. AFONSO PINHO
PROSITT (CONT'D)
Ora, muito boa tarde, cavalheiros,
que surpresa vê-los por aqui!
Pensei que não viessem à capital
onde... E deixem-me citá-los,
“se come pretensiosamente mal!”
Os homens sorriem, com ironia.
PEREIRA CARVALHO
Prosi\! É sempre um dissabor
vê-lo!
PROSITT
(não acusando o toque, para Duarte)
Não sei se o doutor já conhece
estes meus jovens amigos...
Os dois cumprimentam DUARTE, e é obvio
que já o conhecem. Instala-se um clima de
falso cavalheirismo entre eles.
DUARTE (OFF)
Era óbvio que eu conhecia o
casalinho ali sentado: Pereira
Carvalho e Afonso Pinho, os
autores do infame artigo da
“Gastronómica do Porto”. Agora
tornara-se clara a máxima
urgência de Prosi\, ele
precisava de uma testemunha para
o que se ia passar.
PROSITT
Sabem que é uma sorte encontrar-
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
Um Jantar Muito Original
vos aqui hoje, porque tenho a
anunciar-lhes um acontecimento
que será determinante nas vossas
vidas.
AFONSO PINHO
Não nos diga que se vai
reformar, Prosi\? Era uma
grande alegria que dava ao mundo
gastronómico.
Os dois homens riem. Prosi\ não se mostra incomodado com a piada.
PROSITT
Não é da minha reforma que se
trata, antes da forma com vão
honrar um jantar muito especial
que preparo na Sociedade
Gastronómica de Lisboa, a única
digna desse nome, aliás.
PEREIRA CARVALHO
Não me faça rir, com o seu humor
requentado. Mas não deve estar
bom da cabeça se pensa que nos
consegue pôr, a nós, num dos
seus abomináveis eventos.
PROSITT
(Sorri, desafiador)
Garanto-vos que por muito que
resistam agora, vocês vão estar
presentes no meu jantar… em
carne e osso!
PEREIRA CARVALHO enerva-se, tenta levantar-se, ameaçando PROSITT, mas é impedido
por Afonso Pinho.
PEREIRA CARVALHO
Ouça seu velho louco, tem que
perceber que nós nunca na vida
vamos estar presentes num dos
seus execráveis jantares. Não
leu o artigo? Você é uma fraude!
AFONSO PINHO
Sim, acha mesmo que nós íamos
530
Sampaio & Almeida
estar presentes numa daquelas
reuniões dessa vossa sociedade?
Aquilo não é gastronomia, é um
lupanar!
PROSITT
Acho estranho que diga isso, meu
caro Afonso Pinho, afinal...
antigamente não reclamava. Está
a fazer-lhe mal a nova
companhia!
AFONSO PINHO
Maldito seja Prosi\!
PROSITT
Vá, vá jovens... Tentemos manternos civilizados! Daqui a dois
dias em minha casa, um por um,
os meus amigos vão ser a alma da
festa!
Pereira Carvalho agora consegue levantar-se, já
que Afonso Pinho não o impede. Confronta
PROSITT.
PEREIRA CARVALHO
Raios, homem! Não vê que essa sua
insistência irrita? Quantas
vezes teremos que dizer que não
vamos ao seu jantar? Não percebe
que não gostamos da sua
presença?
DUARTE tenta serenar os ânimos. Afonso Pinho, que continua sentado, limita-se a um sorriso irónico.
DUARTE
Venha, Prosi\, não vale a pena
continuarmos
nisto…cavalheiros...
PROSITT
Vemo-nos em breve meus amigos...
Ah, só mais uma coisa, Pereira
Carvalho, essa sua gravata é um
luxo de bom gosto!
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
Um Jantar Muito Original
DUARTE e PROSITT abandonam o restaurante. PEREIRA CARVALHO faz um gesto
agressivo, mas fica a olhar para a sua gravata.
AFONSO PINHO acalma-o, mas não resiste a
olhar também para a gravata do amigo.
18 INT. CASA GENERAL / QUARTO MADALENA SALA PIANO NOITE
MADALENA, com indisfarçável ansiedade,
escreve uma carta. Coloca-a num envelope, lacrando-o de seguida. CLEMENTINA bate à
porta e entra a um sinal de Madalena.
1. MADALENA, SENTADA A UMA ESCRIVANINHA, ACABA DE ESCREVER UMA
CARTA, QUE METE NUM ENVELOPE.
OUVE-SE BATER À PORTA. MADALENA
DIZ A CLEMENTINA PARA ENTRAR.
2. INSERT ENVELOPE, COM MADALENA A
ESCREVER: DR. DUARTE RODRIGUES
3. MADALENA, MAIS ABERTO QUE 1. CLEMENTINA ENTRA EM CAMPO – DIÁLOGO
E RESPECTIVA ACÇÃO. CLEMENTINA SAI
DE CAMPO. FICAMOS COM MADALENA,
ANSIOSA, MAS SATISFEITA CONSIGO PRÓPRIA, TOMOU A DECISÃO CERTA
MADALENA
Preciso que entregues agora
mesmo esta carta ao doutor
Duarte Rodrigues.
CLEMENTINA
Menina... Eu não posso fazer
isso, se o seu pai me
descobre...
MADALENA
É uma questão da máxima
importância, Clementina. O
Duarte tem de saber o que lhe
preparam... Por favor
Clementina, é o último segredo
que te peço...
531
Sampaio & Almeida
CLEMENTINA acede ao pedido de MADALENA.
19 EXT. PORTA DO RESTAURANTE DOS
CREPES
NOITE
Um Jantar Muito Original
DUARTE
Estou a ver que eles tinham
razão, você está a ficar louco,
Prosi\! É impossível convencêlos a lá ir!
O nevoeiro é agora bem mais cerrado e não se
vê vivalma. PROSITT e DUARTE RODRIGUES abandonam o Restaurante. PROSITT
apresenta um semblante divertido, enquanto
Duarte não esconde a sua irritação.
PROSITT
Isso é o que eles dizem agora,
mas no dia do meu jantar eles
vão estar presentes e numa
posição de destaque! Ou não
fossem republicanos!
1. PROSITT E DUARTE SAEM DO RESTAURANTE. PARAM NO PASSEIO. FICAM DE
FRENTE, LADO A LADO – MASTER 1 ATÉ
CHEGADA DA CARRUAGEM
DUARTE
Começo a ficar farto desses seus
mistérios.
2. DUARTE
3. PROSITT
DUARTE
Não sei como é que soube que o
Pereira Carvalho e o seu acólito
iam cá estar, mas é a última vez
que me usa desta forma.
PROSITT faz um ar falsamente surpreendido.
PROSITT
Usar? Não o compreendo...
Enquanto, DUARTE fala, PROSITT mostra-se
meio distraído, olha para o relógio e começa a
ficar preocupado, como se esperasse alguém.
DUARTE
Toda aquela encenação da
urgência do nosso encontro,
quando no fundo apenas
necessitava de uma testemunha
para presenciar o seu convite
aos tipos daquela pseudo
“gastronómica”...
PROSITT
Garanto que eles vão estar
presentes no jantar!
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
PROSITT
Eu prometi um momento diferente
de tudo o que a nossa sociedade
já vivenciou até hoje. E vou
cumprir! É o que um presidente
deve fazer.
A carruagem chega, o COCHEIRO entrega um
embrulho a PROSITT. Nessa altura, DUARTE
apercebe-se que não se trata de Ezequiel. Percebe-se alguma estranheza na sua expressão.
4. CONJUNTO – A CARRUAGEM CHEGA.
TODA A ACÇÃO ATÉ FINAL MASTER 2
5. AMERICANO PROSITT E DUARTE, DEPOIS DA SAÍDA DO COCHEIRO
6. INSERT LIVRO
7. GP DUARTE, DEPOIS DO LIVRO
8. GP PROSITT, DEPOIS DO LIVRO
PROSITT (CONT'D)
Peça para o levarem onde quiser.
Eu tenho afazeres.
DUARTE
Não vai novamente incomodar
aqueles diletantes, pois não?
532
Sampaio & Almeida
PROSITT
Não me faça ser indiscreto com a
verdade meu caro doutor... Já
agora isto é para si.
PROSITT dá o embrulho a DUARTE, que o
abre de imediato, curioso. É um volume antigo
do livro de culinária “De Re Coquinaria”. DUARTE parece fica surpreendido, mas não esconde o seu entusiasmo e é evidente que já
deixou de se questionar sobre a razão do Cocheiro não ser Ezequiel.
PROSITT (CONT’D)
Aqui está o livro que precisa,
“De Re Coquinaria”, o livro de
receitas mais antigo da
Europa...
DUARTE
(estupefacto, mas rendido)
Mas é uma raridade, um livro
precioso…
PROSITT
Eu gosto de si Duarte! É dos
poucos que me dá luta... Posso
sugerir-lhe as beringelas à
Moura? Mandei preparar umas...
há cerca de quinze anos, no meu
primeiro banquete como
presidente.
DUARTE
(corrigindo-o)
O seu primeiro jantar...
PROSITT
Não acredita? Pergunte ao
General, ele deve-se lembrar. Na
altura achou-as bastante...
originais!
(4) Prosi\ abre a porta da carruagem a Duarte.
Os dois despedem-se. Mas DUARTE, ainda
não refeito da surpresa da “prenda” de Prosi\,
não deixa de reparar que ele começa a ficar
agitado. E enquanto vai a entrar na carruagem,
segue com o olhar... o olhar de Prosi\.
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
Um Jantar Muito Original
9. DUARTE A ENTRAR NA CARRUAGEM,
OLHA PARA PROSITT – DUAS ESCALAS
10. PROSITT AGITADO, OLHA A RUA
11. POV DUARTE: AO FUNDO DA RUA, DO
LADO OPOSTO, SURGINDO DO NEVOEIRO, DOIS VULTOS AVANÇAM NA DIRECÇÃO DE PROSITT.
20 INT/EXT CARRUAGEM / RUA NOITE
Já no interior da carruagem, DUARTE tenta
identificar os dois vultos saídos do nevoeiro.
1. APROXIMADO DUARTE, A CARRUAGEM COMEÇA A ANDAR
2. POV DUARTE: UM DOS HOMENS É
EZEQUIEL. O OUTRO, IGUALMENTE AFRICANO E DE ESTATURA IDÊNTICA À DE
EZEQUIEL. APROXIMAM-SE DE PROSITT,
QUE LHES FAZ UM SINAL. OS DOIS HOMENS, DE IMEDIATO PÁRAM. PROSITT
OLHA NA DIRECÇÃO DA CARRUAGEM E
DEPOIS CAMINHA NA DIRECÇÃO DOS
DOIS HOMENS.
3. GP DUARTE COM A MESMA ACÇÃO E
DEPOIS A ESTICAR A CABEÇA PARA FORA
DA JANELA
4. POV DUARTE: ACÇÃO DE PEREIRA
CARVALHO E AFONSO PINHO, ATÉ NA
CURVA DEIXAR DE OS VER
5. GP DUARTE INTRIGADO E CHATEADO
POR DEIXAR DE VER O QUE SE PASSA.
MAS COMEÇA A FOLHEAR O LIVRO
6. CARRUAGEM A DESCREVER A CURVA –
PAN ESQUERDA / DIREITA ACOMPANHANDO-A E AFASTANDO-SE AO FUNDO
DA RUA E PERDER- SE NO NEVOEIRO
DUARTE estica a cabeça para fora da janela,
fazendo tenção de falar com o Cocheiro, mas
533
Sampaio & Almeida
Um Jantar Muito Original
nessa altura apercebe-se que dois homens
saem do Restaurante. A distância já é considerável, mas DUARTE não tem dúvidas que se
trata de PEREIRA CARVALHO e AFONSO PINHO, que atravessam a rua, na direcção do sítio onde desapareceram, no meio do nevoeiro,
Prosi\, EZEQUIEL e o outro homem africano.
Entretanto, a carruagem descreve uma curva e
DUARTE não consegue ver mais nada. Está visivelmente intrigado, mas o apelo do livro que
tem na mão é mais forte e começa a folheá-lo
avidamente.
FADE OUT
21 INT. CASA DE DUARTE RODRIGUES /
SALA NOITE
1. A COMEÇAR NA GRAFONOLA, A CÂMARA VAI VAGUEANDO PELA SALA, EM
PAN ESQUERDA/DIREITA, CONJUGADA
COM TRAVELLING LATERAL, ATÉ DESCOBRIR DUARTE. COM A CARTA DE MADALENA, LEVANTA-SE MEIO TRÔPEGO E
APROXIMA-SE DA JANELA. ESPREITA PARA
A RUA
2. GERAL RUA, PICADO: UMA CARRUAGEM ATRAVESSA A RUA, ESQUERDA/DIREITA, A UMA VELOCIDADE EXCESSIVAMENTE RÁPIDA
3. GP DE DUARTE, QUE PARECE MEIO
ATORDOADO E DEPOIS DEAMBULA PELA
SALA, MUITO COMPRIDA (GRANDE ANGULAR) ATÉ SE DEIXAR CAIR NA CHAISELONGUE
DUARTE RODRIGUES está na sua sala, sozinho. Bebe um brandy. Está menos formal do
que é costume, sem gravata, apenas em mangas de camisa. A sala também se encontra desarrumada. Sobre a mesa ainda a loiça suja e
alguns pratos espalhados. Há diversos livros
de culinária abertos. DUARTE fecha o “De Re
Coquinaria”, olha para a carta de Madalena.
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
Pega nela. levanta-se e observa a janela. Na
grafonola toca “Danse Macabre” de Liszt.
DUARTE (VO)
Faltavam apenas dois dias para o
jantar e eu encontrava-me tão às
escuras em relação à sua
originalidade como no momento em
que Prosi\ o tinha anunciado. O
desafio, tal como uma hidra,
tinha agora várias cabeças. Não
bastava desafiar Prosi\ ou
descobrir os seus segredos, mas
mostrar ao General e à velha ala
da sociedade que eu estava à
altura do futuro e dos seus
golpes palacianos. Que jantar
poderia eu preparar que os
superasse a todos? E de que
serviria se primeiro não
superasse Prosi\? Nada era mais
importante do que vencer o seu
desafio.
Depois DUARTE deixa-se cair na sua chaiselongue. Não há ruídos, não há ambientes,
nada. Só a música se ouve, alto, muito alto.
4. GP DUARTE, CAÍDO NA CHAISE-LONGUE. MURMURA
DUARTE
(murmura)
Nada... Mesmo nada é mais
importante do que isso.
22 INT. SALA DUARTE RODRIGUES
DIA
Passou tempo. Agora, uma fresta de luz do dia
já ilumina a sala e o rosto ensonado e por barbear de DUARTE, mas ainda pairando no ar
um tom onírico, uma certa irrealidade.
1. INSERT DA JANELA – UMA MÃO DE MULHER ABRE A CORTINA E A LUZ DO DIA
ENTRA VIOLENTAMENTE.
534
Sampaio & Almeida
2. GP DE DUARTE, QUE ACORDA REPENTINAMENTE COM UMA FORTE LUZ NA
CARA. OLHA EM FRENTE. DIÁLOGO E ACÇÃO ATÉ SE LEVANTAR
3. EM CONTRA-LUZ, MADALENA APROXIMA-SE DE DUARTE, DE FRENTE PARA A
CÂMARA. DIÁLOGO E ACÇÃO ATÉ DUARTE SE LEVANTAR
4. CONJUNTO LATERAL – MADALENA
AGACHA-SE NA FRENTE DE DUARTE E
ABANA-O. QUANDO DUARTE SE LEVANTA, MADALENA FAZ O MESMO. A
CÂMARA APROXIMA-SE DELES. CAEM
SOBRE A CHAISE LONGUE, A CÂMARA
ACOMPANHA-OS – MASTER COM TODA
A ACÇÃO
Parecendo surgir do nada, e numa volta à realidade, MADALENA abre as cortinas de par
em par, de forma a entrar a luz de uma forma
violenta.
MADALENA
Estava a ficar preocupada
consigo... Desde que me
abandonou, para ir ter com
aquele homem horrível, que não
tenho notícias suas!
DUARTE
(para si próprio)
Nada é mais importante...
MADALENA
Recebeu a minha carta? Percebe o
que lhe querem fazer?
DUARTE desperta do transe.
DUARTE
Eu estou preparado.
MADALENA
Preferia não o ver envolvido com
gente daquela estirpe. Assustame. Prometa-me que isto acaba...
Se me ama, se pretende casar
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
Um Jantar Muito Original
Comigo, prometa-me que se afasta
dessa gente.
DUARTE levanta-se num impulso.
DUARTE
A Madalena não compreende, eu
tenho de os superar. Provar-lhes
que tenho mais génio que todos
eles juntos.
MADALENA aproxima-se
agarra-o. Beija-o.
de
DUARTE,
MADALENA
(enquanto o vai beijando,
falando de forma sussurrada)
Não percebe que já tem? Não há
nada para provar, Duarte, tudo o
que precisa é cozinhar… para
mim... Esqueça o Prosi\, o meu
pai, a maldita monarquia e essa
sua prometida república.
Partimos, só os dois… Esqueça-os
todos.
DUARTE corresponde agora aos beijos de
MADALENA. Começa a desapertar-lhe a
roupa. Caem sobre a chaise-longue.
23 INT. SALÃO JANTAR DA SOCIEDADE
GASTRONÓMICA NOITE
1. GERAL DA SALA COM TODA A ACÇÃO,
NO INÍCIO EM PICADO, DEPOIS A CÂMARA DESCE, FICANDO A MESA EM PRIMEIRO PLANO COM A ACÇÃO DE PROSITT, QUE NO FINAL SAI EM PROFUNDIDADE SEGUIDO POR EZEQUIEL
EZEQUIEL acende velas pela sala de jantar,
decorada de forma luxuosa. A mesma sala das
cenas 2 e 4. A mesa está impecavelmente
posta. A disposição das luzes é estratégica, de
forma a que a iluminação se centra na mesa,
deixando o resto da sala numa propositada
penumbra. PROSITT, que ainda não está tra-
535
Sampaio & Almeida
jado a rigor para o seu jantar, com uma fita métrica mede meticulosamente a distâncias entre
os pratos e talheres e a distância entre cadeiras. Não deixa nada ao acaso na preparação do
banquete. Tudo aquilo parece provocar-lhe
um enorme prazer.
24 EXT. SOCIEDADE GASTRONÓMICA
NOITE
1. COMEÇANDO NA JANELA, PERCEBENDO-SE NO INTERIOR A SALA ILUMINADA PELA LUZ DAS VELAS. A CÂMARA
DESCE E RECUA, ATÉ DESCOBRIR A RUA,
COM TODA A ACÇÃO, EM PLANO GERAL
Vemos a fachada do Prédio da Sociedade Gastronómica. Uma imagem, em muito parecida
com a da CENA 1, só que agora encontram-se
algumas carruagens a circular, e pessoas (os
convidados) a entrar no prédio. Ouvimos a
MARCHA DE “IDOMENEO” de Mozart.
25 INT. SALÃO JANTAR DA SOCIEDADE
GASTRONÓMICA NOITE
1. GERAL PICADO (DAR A IDEIA DA CONTINUAÇÃO DO MOVIMENTO DO PLANO
ANTERIOR), SENDO QUE OS 5 À ESQUERDA DE PROSITT FICAM DE COSTAS.
FRASE DE PROSITT E TODOS SE SENTAM
2. CONJUNTO, FRONTAL, COM PROSITT
AO FUNDO À CABECEIRA. REPETE-SE A
ACÇÃO DE 1 E TODA A CENA – MASTER
3. AMERICANO DE EZEQUIEL A ANUNCIAR OS PRATOS, NA RELATIVA PENUMBRA. ESTÁ SEMPRE FIRME E HIRTO, A
OLHAR EM FRENTE. PARA INTERCALAR
OS 10 CONVIDADOS e PROSITT, já trajado a
rigor, todos dispostos pela mesma ordem que
no jantar da cena 4, encontram-se em pé à
volta da mesa, apenas iluminada com a luz
das velas, o que cria um efeito estranho que realça principalmente o centro da mesa. A servir
à mesa estão as mesmas mulheres do jantar da
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
Um Jantar Muito Original
cena 4, vestidas com roupas idênticas, mas
mais coloridas.
PROSITT
Meus amigos, chegou o tão
esperado momento! Lembrem-se que
tão importante como desfrutar do
jantar é descobrir o que ele tem
de muito original.
PROSITT faz uma pequena vénia de cortesia
para o GENERAL CAEIRO, ao dizer a palavra
original. Todos se sentam.
4. GENERAL CAEIRO FRONTAL. OLHA ESQUERDA QUADRO PARA PROSITT, RESPONDENDO À SUA VÉNIA. SENTA-SE
5. ENGENHEIRO GOUVEIA, JÁ SENTADO –
TODAS AS SUAS RÉPLICAS
ENG. GOUVEIA
Sempre convidou o Pereira Carvalho?
PROSITT
O Dr. Duarte Rodrigues pode-vos
confirmar que sim! E não só o
convidei a ele como também ao
Afonso Pinho, ao Pinto Garrido e
ao Bernardo Palma da Silva.
6. APROXIMADO DUARTE, QUE FAZ OLHA
PARA PROSITT (DIREITA QUADRO) E DEPOIS FAZ UM GESTO PARA TODOS, MAS
NÃO MUITO CONVICTO
Os outros não se mostram muito convencidos.
É o ENGENHEIRO PERES quem manifesta a
desconfiança geral.
7. APROXIMADO PERES
ENGENHEIRO PERES
E acha mesmo que esses
republicanos têm o bom senso de
aprender connosco?
PROSITT
Avisaram-me agora mesmo que
536
Sampaio & Almeida
ainda não estão prontos. De
qualquer maneira, a comida não
se compadece com esperas. Eles
juntam-se a nós numa fase mais
adiantada. Assim sendo, dou por
iniciado o jantar!
8. APROXIMADO PROSITT BATE AS PALMAS
9. GERAL PICADO, COM A AZÁFAMA DO
JANTAR A SER SERVIDO
PROSITT bate as palmas e as empregadas começam a trazer a comida. O jantar é uma sequência de pratos ao ritmo da “MARCHA RADETZKY” de Strauss. Várias entradas, prato
de peixe e prato de carne. EZEQUIEL vai
anunciando cada prato que é servido.
EZEQUIEL
Salada de conchiglie com carnes
frias!
As empregadas servem o prato individualmente. Cada prato é requintadamente cuidado. Durante todo o processo, PROSITT
mantém um ar extasiado, como se estivesse
com uma embriaguez de felicidade.
10. PLANOS PARA INTERCALAR NA ACÇÃO – ELIPSES TEMPO: A) TRAVELLING
LATERAL DIREITA/ESQUERDA A COMEÇAR EM PROSITT, COM OS CONVIVAS À
ESQUERDA DE PROSITT DE COSTAS
B) TRAVELLING LATERAL ESQUERDA/DIREITA A ACABAR EM PROSITT, COM OS
CONVIVAS À ESQUERDA DE PROSITT DE
COSTAS
C) TRAVELLING LATERAL ESQUERDA/DIREITA A COMEÇAR EM PROSITT, COM OS
CONVIVAS À DIREITA DE PROSITT DE
COSTAS
D) TRAVELLING LATERAL DIREITA / ESQUERDA A ACABAR EM PROSITT, COM OS
CONVIVAS À DIREITA DE PROSITT DE
COSTAS
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Um Jantar Muito Original
EZEQUIEL (CONT'D)
Sopa de amêndoa feliz à camponesa!
As empregadas servem a sopa, enquanto alguns dos convidados falam entre si. XAVIER,
sentado ao lado de DUARTE, fala-lhe sem se
preocupar que PROSITT o ouça. O mesmo se
passa com DUARTE quando lhe responde.
11. XAVIER E DUARTE – ACÇÃO TODA DOS
DOIS, ATÉ DUARTE SE DESCULPARA A XAVIER E LEVANTAR-SE ATRÁS DE PROSITT
XAVIER
Acha que a originalidade está no serviço?
DUARTE
(divertido)
Não sei, mas talvez seja de
inspecionar a mesa, a ver se tem
algum alçapão.
12. PROSITT A ACENAR-LHES, TRANQUILO
PROSITT ouve os dois homens, sorri e acenalhes a dizer que não. Apesar do aspecto sombrio da sala, o ambiente animado mantém-se.
EZEQUIEL anuncia um novo prato.
EZEQUIEL
Cherne com “bacon” e molho de
manga!
O cherne é servido também em pratos individuais, o ENGENHEIRO GOUVEIA parece ser,
entre os demais, o que melhor aprecia o prato.
(5) GOUVEIA
ENGENHEIRO GOUVEIA
Diga-me Prosi\, a surpresa não
será a combinação de bacon com
peixe?
Para grande alegria sua, PROSITT dá uma resposta negativa. Entretanto, o GENERAL CAEIRO, como habitualmente já um pouco entornado, fala para o seu copo.
537
Sampaio & Almeida
12.
GENERAL CAEIRO
GENERAL CAEIRO
Originalidade. Que da sua origem
latina pode ser originale ou
mirus que significa fora do
comum... Ora isso quer dizer
que...
DUARTE mantém-se atento e apesar de se divertir, não deixa de observar PROSITT, e os
pratos servidos.
13, DUARTE, DUAS ESCALAS. NO FINAL
VÊ PROSITT A LEVANTAR-SE E LEVANTASE TAMBÉM, VAI ATRÁS DELE
XAVIER
Até agora... nada
extraordinariamente singular que
o deva assustar, não acha meu
caro?
DUARTE
Ainda é cedo, aguardemos pela
tal originalidade que nos foi
prometida.
14. POV FALSO DE DUARTE E ELIPSE DE
TEMPO – TRAVELLING ESQUERDA/DIREITA SOBRE A MESA E OS PRATOS QUE
ESTÃO A SER SERVIDOS
15. PROSITT LEVANTA-SE E SAI DE CAMPO,
ESQUERDA DO QUADRO
Nessa altura, PROSITT levanta-se e sai em direcção ao corredor que conduz à porta da cozinha e por onde as empregadas têm vindo a
entrar e onde se encontra EZEQUIEL. DUARTE desculpa-se a XAVIER, levanta-se também e segue-o. PROSITT pára junto de
EZEQUIEL.
16. PROSITT JUNTO DE EZEQUIEL, QUE SAI
PARA A COZINHA
PROSITT
Estamos prontos para o prato
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
Um Jantar Muito Original
principal. Sem falhas, Ezequiel!
26 INT. CORREDOR / SALÃO JANTAR SOCIEDADE GASTRONÓMICA NOITE
1. A CÂMARA ACOMPANHA DUARTE, DE
COSTAS, EM TRAVELLING PARA A FRENTE,
COM A ACÇÃO DE PROSITT E EZEQUIEL
EM FUNDO. NO FINAL PROSITT VOLTA-SE
PARA DUARTE, SURPREENDIDO
Ezequiel sai para a cozinha e PROSITT, ao voltar-se, fica surpreendido ao deparar com DUARTE.
2. APROXIMADO PROSITT COM DUARTE
EM AMORCE – TODO O DIÁLOGO, QUE
PODE SER O 1.
3. CONTRA CAMPO -DUARTE, COM PROSITT EM AMORCE
4. GP DUARTE
5. GP PROSITT
DUARTE
Então Prosi\, está a correr-lhe
de feição?
PROSITT
Meu caro doutor, não está a
tentar subverter as regras do
nosso jogo, pois não?
DUARTE
Quero que saiba que pretendo
desafiar a sua liderança da
sociedade. Irei anunciá-lo no
final do jantar.
PROSITT
Não me diga que cedeu à pressão
do seu sogro... Ou terá cedido
aos perversos encantos da sua
noiva?
DUARTE
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Sampaio & Almeida
Faço-o apenas por mim, e pelo
futuro da gastronomia.
PROSITT
E acha que tem o que é
necessário para me destronar?
DUARTE
De todos os presentes? Tenho a
certeza que sou o único.
PROSITT
Gosto de si Duarte, mesmo
estando do outro lado da
barricada. E por isso mesmo
digo-lhe, avance! Mas garantolhe que o Doutor seria incapaz
de organizar um jantar como o de
hoje.
DUARTE
É isso que teremos de ver.
6. CONJUNTO DOS DOIS, LATERAL.
EZEQUIEL ENTRA EM CAMPO PELA ESQUERDA. PROSITT E DUARTE SAEM PELA
DIREITA E A CÂMARA FICA SOBRE
EZEQUIEL, QUE ANUNCIA O “CHATEAUBRIAND COM MOLHO DE TORANJA” –
MASTER
EZEQUIEL volta ao corredor e faz um sinal a
PROSITT, indicando que tudo está pronto.
PROSITT
É justo. Venha, iniciemos o
último acto desta nossa aventura
PROSITT e DUARTE seguem para a sala do
banquete.
27 INT. SALÃO JANTAR DA SOCIEDADE
GASTRONÓMICA NOITE
Já com DUARTE E PROSITT sentados e a beber vinho, todos assistem à entrada das empregadas com o prato principal.
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
Um Jantar Muito Original
1. GERAL DA MESA COM PROSITT AO
FUNDO. TODA A ACÇÃO – MASTER
EZEQUIEL
Chateaubriand com molho de toranja!
PROSITT levanta-se ligeiramente para chamar
a atenção dos demais. Volta a sentar-se.
2. PROSITT, DUAS ESCALAS.
3. GENERAL CAEIRO, QUE FALA PARA
PROSITT E DEPOIS PARA DUARTE.
4. BAYARD REAGE ÀS PALAVRAS DO GENERAL
5. PERES TAMBÉM REAGE AO GENERAL
6. DUARTE REAGE AO GENERAL. XAVIER
TAMBÉM EM CAMPO
PROSITT
Aconselho-vos vivamente este
prato! Tem muita alma investida
nele!
GENERAL CAEIRO
As sua palavras, caro
Presidente, merecem o nosso
aplauso… e quiçá (faz uma pausa,
olhando para Duarte) o apoio de
todos para um próximo mandato,
assim a originalidade do seu
prato… nos deixe sem palavras.
Entre risos e aplausos, o prato começa a ser
servido e é por todos apreciado, que repetem
e elogiam e dão os parabéns a PROSITT pela
sua confecção. Quando estão quase a terminar,
DUARTE aproxima-se de PROSITT de modo
a que apenas este o ouça.
7. + PLANOS VÁRIOS DOS HOMENS A COMER E A FELICITAREM PROSITT
8. INSERTS DOS PRATOS A SEREM ESVAZIADOS
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Sampaio & Almeida
Um Jantar Muito Original
9. TRAVELLING LATERAL ESQUERDA/DIEITA, COM A FILA DE DUARTE DE FRENTE
E A OUTRA DE COSTAS. NO FINAL A CÂMARA ENQUADRA DUARTE (À ESQUERDA) E PROSITT. DIÁLOGO DOS DOIS
10. DUARTE, NO DIÁLOGO COM PROSITT
11. PROSIT, NO DIÁLOGO COM DUARTE
DUARTE
O seu segredo está relacionado
com o grupo do Pereira
Carvalho... É ou não verdade?
PROSITT faz um ar sério e preocupado, como
se o seu segredo estivesse prestes a ser desvendado.
Continue...
PROSITT
DUARTE
Eu achei estranho que o Pereira
Carvalho estivesse incontactável
nestes dias... Por momentos até
confesso que a sua obsessão por
os trazer implicasse tê-los no
jantar.
PROSITT
Portanto, compreende? E a razão
porque o fiz... E porque o
Duarte seria incapaz de o fazer?
DUARTE
Obviamente! O artigo falava do
futuro, de como estávamos
estagnados numa regência que a
nada nos leva... Que é
necessário apostar num novo
modelo, no futuro. Tudo isso
estava presente nos pratos que
serviu hoje. Diga-me, como
convenceu os rapazes do Porto a
cozinhar-lhe este jantar? E
quando os chama à mesa para os
nossos aplausos?
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
O olhar sério de PROSITT transforma-se numa
expressão de alívio, que se torna numa gargalhada compulsiva ao ouvir as últimas palavras
de Duarte Rodrigues
PROSITT
(a rir)
Meu caro... você acha que eles é
que confeccionaram o jantar?
DUARTE
É de um tremendo arrojo! Será do
desagrado do General e da velha
ala ter republicanos a
prepararem-nos o jantar. Mas
curvo-me perante o seu génio e
coragem. É de facto este o
futuro que nos aguarda!
PROSITT
Meu caro Doutor... É uma pena
que não use essa sua imaginação
prodigiosa na sua gastronomia...
(2) PROSITT levanta-se e pede silêncio ao
Grupo, no seu já habitual toque nos copos com
uma colher. Está num estado de excitação, como
uma criança que quer contar um segredo.
PROSITT (CONT'D)
(em tom de discurso)
Meus amigos, agora que já quase
todos tentaram adivinhar, acho
que chegou a altura de vos
revelar o segredo! O Doutor
Duarte Rodrigues andou perto ao
referir que o segredo estava
ligado ao grupo do Pereira
Carvalho. De facto, está... Mas
ao contrário do que o bom doutor
pensa, os jovens nortenhos seus
amigos não estão a confeccionar
o jantar, mas sim a ser...
confeccionados!
(2) PROSITT tira uma caveira debaixo da mesa
e coloca-a à vista de todos. Em seguida molha
o dedo na travessa com a carne e prova o molho libidinosamente.
540
Sampaio & Almeida
PROSITT (CONT'D)
E a mim...parece-me que não está
nada mau! Bem-vindos ao meu
convivium bellua!
12. GP PROSITT
PROSITT começa a rir loucamente perante o ar
horrorizado dos demais. Alguns dos homens
olham para os pratos enquanto outros se esforçam por não vomitar mesmo ali.
13. CONJUNTO DOS CINCO DA FILA DE
DUARTE
14. CONJUNTO DOS CINCO DA FILA DO
GENERAL
DUARTE fica sentado sem reacção a observar
o que se passa. Começa a ouvir frases reveladoras e a rever na sua cabeça:
15. DUARTE, DUAS ESCALAS, PARA INTERCALAR COM OS FLASHES E COM
TODA A ACÇÃO
EM RÁPIDOS “FLASHES” OS ACONTECIMENTOS RECENTES (ESTILO VERTIGO).
Lembra-se de frases como
“ELES VÃO SENTIR NA PELE O JANTAR
QUE LHES PREPARO!”
“VÃO ESTAR PRESENTES NO MEU JANTAR EM CARNE E OSSO”.
Os “flashes” sucedem-se, agora com maior nitidez: “EZEQUIEL E O OUTRO HOMEM
AFRICANO A SAÍREM DO NEVOEIRO”
leva-o a pensar no rapto dos dois nortenhos,
na sua confecção…
“PROSITT PARA PEREIRA CARVALHO:
ESSA SUA GRAVATA É UM LUXO DE BOM
GOSTO!”
16. INSERT DA GRAVATA DE PROSITT
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
Um Jantar Muito Original
Repara então na gravata de PROSITT: é a
mesma que Pereira Carvalho usava!
DUARTE levanta-se completamente fora de si.
DUARTE (VO)
Este é o momento em que perdemos
o controle!
(15) DUARTE agarra num jarro com vinho e
atira-o contra a cara de PROSITT, que não pára
de rir. Em seguida atira-se a PROSITT, como
um selvagem. Os restantes membros do grupo
seguem-no, destruindo o espaço e atacando
PROSITT. No meio da confusão alguém grita
“PELA JANELA!”.
17. DUARTE ATIRA-SE A PROSITT
Como um bando enlouquecido, incitado pelo
GENERAL CAEIRO, que em pé explode de
raiva, agarram PROSITT e preparam-se para o
atirar pela janela. XAVIER e o ENGENHEIRO
PERES são os primeiros a agarrá-lo, logo seguidos por todos os outros. Mas DUARTE
deixa-se ficar para trás e o GENERAL CAEIRO continua a vociferar e a dar ordens, em
pé no seu lugar. As empregadas ficam a observar tudo, muito juntinhas primeiro e depois
fogem para o corredor. EZEQUIEL, num primeiro momento faz menção de socorrer PROSITT, mas depois dá uma gargalhada de satisfação e fica a assistir ao “espectáculo”. Já
PROSITT está prestes a ser lançado pela janela,
quando se ouve um assobio que os trava. É
DUARTE, que tem na sua mão uma enorme
faca de trinchar.
18. CONJUNTO DOS HOMENS A ATIRAREM-SE A PROSITT E A CARREGAREM-NO
NA DIRECÇÃO DA JANELA
19. AS MENINAS E EZEQUIEL, COM TODA
A SUA ACÇÃO – DUAS ESCALAS
20. GP DUARTE
DUARTE
Párem!...Tenho uma proposta
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Sampaio & Almeida
Um Jantar Muito Original
muito mais... ORIGINAL!
2. APROXIMADO/GP DE DUARTE, FALANDO PARA A CÂMARA
21. CONJUNTO – OS HOMENS PÁRAM DE
REPENTE, CARREGANDO PROSITT
3. INSERT DA BANDEJA A SER DESTAPADA,
DESCOBRINDO A CABEÇA DE PROSITT
Os homens páram e olham para DUARTE RODRIGUES. Na sala passa a ouvir-se só A GARGALHADA de PROSITT, que se transforma
num GRITO, que se prolonga pela imagem
que funde em negro, para depois abrir na cena
seguinte.
DUARTE
(em discurso directo, irónico e pausado)
No fim, tal como Prosi\
previra, tudo acabou por fazer
sentido… Novos tempos se
adivinham, mas até lá... pelo
menos, ganhámos um bom prato!
28 INT. SALÃO DE JANTAR DA SOCIEDADE GASTRONÓMICA NOITE
Os diversos membros da Sociedade Gastronómica de Lisboa deliciam-se com o jantar. DUARTE levanta-se e pausadamente tira a tampa
de uma bandeja de prata de colocada à sua
frente, descobrindo, nada mais nada menos,
do que a CABEÇA DE PROSITT, com uma
maçã na boca (ao vermos a cabeça começamos
a ouvir o HINO DA ALEGRIA SINFONIA Nº
9 “CORAL 2” DE BEETHOVEN). O gáudio é
geral.
A Sociedade Gastronómica de Lisboa está reunida para mais um jantar. O cenário é em tudo
igual ao que vimos na CENA 4, a única diferença é o modo como os membros da Sociedade estão sentados. Na cabeceira, encontrase agora o Dr. DUARTE RODRIGUES.
1. DUARTE À CABECEIRA DA MESA, FALA
PARA A CÂMARA - TRAVELLING PARA
TRÁS SOBRE A MESA: DUARTE TIRA A
TAMPA DA BANDEJA, DESCOBRINDO A
CABEÇA DE PROSITT. A CÂMARA PÁRA E
QUANDO ENTRA A MÚSICA RETOMA O
MOVIMENTO AGORA MAIS RÁPIDO E SUBINDO, ATÉ MOSTRAR A SALA EM PICADO E TODOS A BANQUETEAREM-SE.
A IMAGEM FUNDE A NEGRO E A MÚSICA
PROLONGA-SE PELO GENÉRICO FINAL /
FICHA TÉCNICA.
FINIS
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Sampaio & Almeida
Um Jantar Muito Original
Bibliografia
CARRIÈRE, Jean-Paul; BONITZER, Ted
(1996). Prática do Roteiro Cinematográfico. São Paulo: JSN Editora.
(2013). A Theory of Adaptation. Oxford: Routledge. Second edition.
NANNICELI, Ted (2021). “Seria o roteiro uma obra de arte?” [trad. de Pablo Gonçalo e Lúcia Ramos
Monteiro]. Esferas, n.º 21, dossiê “Estudos de roteiro: histórias e poéticas entre a palavra e a
imagem”, pp. 28-46. https://doi.org/10.31501/esf.v1i21.13445.
PESSOA, Fernando (2017). “Um Jantar Muito Original. A Very Original Dinner”. A Porta e Outras Ficções. Edição e tradução de Ana Maria Freitas. Lisboa: Assírio & Alvim, pp. 77-137.
_____ ([2008] 2014). Quaresma Decifrador – As Novelas Policiárias. Edição de Ana Maria Freitas. Lisboa: Assírio & Alvim. 1.a ed., 2008; 2.a ed., 2014.
_____ (1978). “Um Jantar Muito Original”. Fernando Pessoa e a Literatura de Ficção. Editado e traduzido por Maria Leonor Machado de Sousa Lisboa: Novaera, pp. 98-105.
HUTCHEON, Linda
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Sampaio & Almeida
Um Jantar Muito Original
MARIA DE LURDES SAMPAIO é Professora na Faculdade de Letras da Universidade do Porto e
investigadora do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa (ILCML). Tese de mestrado
em Estudos Anglo-Americanos sobre Ezra Pound (Universidade de Coimbra) e doutoramento
em Literatura (Literatura Comparada), na Universidade do Porto, com a tese História Crítica do
Género Policial em Portugal (1870-1970): Transfusões e Transferências, 2 vols. Áreas de investigação:
Literaturas em Língua Portuguesa (séculos XX e XXI), Tradução e Cultura / Interculturalidades,
Modernismos, Literatura Policial / Criminal, Cânone vs. Não Cânone, Censura.
MARIA DE LURDES SAMPAIO is Professor at Faculdade de Letras of the University of Porto and
researcher of Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa (ILCML). She holds a MA on
Anglo-American Studies (about Ezra Pound) from University of Coimbra and a Ph.D. (Comparative Literature) from University of Porto (dissertation: História Crítica do Género Policial em Portugal (1870-1970): Transfusões e Transferências). Areas of research: Portuguese-language literatures
(from 19th to 21st cent.), Translation and Culture / Interculturalities; Modernisms, Detective /
Crime Fiction, Canon vs. Non-Canon, Censorship.
–––
ANDRÉ ALMEIDA graduou-se em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e atualmente frequenta o mestrado em Estudos Literários, Culturais e Interartes na Faculdade de Letras da Universidade do Porto (FLUP), onde desenvolve uma dissertação com o título “A Miscelânea como Método nos Mistérios de Lisboa de Camilo e Ruiz”. É co-fundador do
cineclube Lastro e está neste momento a organizar um colóquio sobre cinema e literatura giallo –
duas iniciativas apoiadas pelo Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa (ILCML). É
também guionista, sendo o seu mais recente trabalho o curta-metragem The Strange Disappearance
of Comrade Kuliakov (2022).
ANDRÉ ALMEIDA graduated in Image and Sound from the Federal University of São Carlos
(UFSCar) and is currently pursuing a master's degree in Literary, Cultural, and Interarts Studies
at the Faculty of Le_ers of the University of Porto (FLUP), where he is developing a dissertation
titled “The Miscellany as Method in the Mysteries of Lisbon by Camilo and Ruiz”. He is a cofounder of the Lastro cineclub and is currently organizing a colloquium on giallo cinema and
literature – both initiatives supported by the Margarida Losa Institute of Comparative Literature
(ILCML). He is also a screenwriter, with his most recent work being the short film The Strange
Disappearance of Comrade Kuliakov (2022).
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Halpern
O estranho caso
está do lado do espectador. Ou seja, apesar do objeto permanecer inalterável, a
perceção de cada espectador a cada visionamento pode modificar-se, criando, no
limite, a sensação de que se poderá estar a ver um filme diferente.
Para tal é determinante a criação de um filme com várias camadas e uma
riqueza de pormenores que poderá escapar a uma primeira leitura. Tal acontece em
Não Sou Nada. Aliás, Pêra é um adepto de criar literalmente camadas visuais, através
do recurso à técnica da sobreposição de imagens. No caso de Não Sou Nada, parece
claro, logo à partida, que haverá diferenças substanciais na perceção de um filme
para um pessoano e um espectador estrangeiro que nunca teve contacto com a
escrita do maior dos poetas portugueses. Tal não quer dizer que a ignorância perante
a vastidão do universo pessoano prejudique drasticamente a leitura ou fruição do
filme, até porque, na sua base, o filme está desenhado como um thriller psicótico
com contornos surrealistas. Quem conhecer bem o universo pessoano tem muito por
onde se entreter, na identificação das falas de cada personagem, embora corra
eventualmente o risco de passar ao lado das curvas da narrativa, que nem sempre
são de seguimento claro.
Edgar Pêra propõe-se à missão impossível de imaginar o que se passa dentro
da cabeça de Pessoa e montar ou desmontar o seu processo criativo plural e
fragmentário. Pessoa é uma multidão, um conjunto de vozes que se atropelam e
desafiam numa esquizofrenia criativa. Cinematograficamente isto traduz-se numa
multidão de Pessoas, que disputam tarefas num escritório sob a égide de Pessoa
homónimo. Tudo aquilo funciona como uma redação de um jornal do início do
século XIX. O pressuposto é fácil: para responder à latitude dos impulsos criativos de
Pessoa não bastaria um homem, seria necessária uma multidão.
O português comum, que estudou Pessoa na escola, conhece a existência de
heterónimos, mas limita-os normalmente aos três mais determinantes – Álvaro, de
Campos, Ricardo Reis e Alberto Caeiro – e eventualmente Bernardo Soares, o autor
do Livro do Desassossego, para muitos (e para Pessoa) considerado um semi-heterónimo.
Aliás, a disputa entre os heterónimos pela autoria do Livro dos Desassossego repete-se
ao longo o filme e é um dos elementos de humor.
Socorrendo-se de um livro editado por Jerónimo Pizarro e Patricio Ferrari (Eu
Sou Uma Antologia), Edgar Pêra dá rosto a dezenas de heterónimos, sendo que a
grande maioria surge quase como figurantes – a verdade é que quase todos têm um
papel muito secundário na própria criação de Pessoa. Desta linha emergem várias
figuras, que se disputam, digladiam, num conflito permanente com frutos criativos.
É uma amálgama intelectual e formal, terreno tranquilo para Pêra, realizador que
trabalha bem com a organização ou assumpção do caos, sem receio de deixar o
espectador perdido. Claro que nesta multidão de heterónimos há protagonistas, que
são os heterónimos mais significativos. Não só Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e
Ricardo Reis, mas também o Barão de Teive e António Mora. São todos vítimas e
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Halpern
O estranho caso
predadores. Ou por outra, elementos do policial que Pêra vai desenhando na cabeça
de Fernando Pessoa.
Dentro deste casino de heterónimo, que o próprio Pessoa controla com dificuldade, Edgar Pêra acrescenta um elemento impositivo e desestabilizador: Ofélia
Queiroz. Pêra faz da companheira intermitente de Pessoa um heterónimo feminino,
que entra nos jogos de disputa de poder e que geralmente lhes ganha ascendente.
Curiosamente, Ofélia não é retratada como a tímida namorada de Pessoa, apresentase antes com uma verdadeira femme fatale, chamada para o papel a atriz e modelo
Victória Abril, que aparece deslumbrante. A explicação é simples: passando-se tudo
no cérebro de Pessoa, Ofélia, apesar de, ao contrário dos outros, ter uma existência
carnal, ganha na sua imaginação uma imagem de exacerbada beleza e influência. É
como Pessoa a perceciona.
Edgar Pêra corre, porém, alguns riscos no elenco. O papel de Pessoa heterónimo
acabou por ser entregue a Miguel Borges, ator de perfil galã e extrovertido, que
contraria a imagem tantas vezes divulgada de um Pessoa misógino ou assexuado. A
verdade é que o Pessoa de Não Sou Nada é o CEO de uma grande equipa de conteúdos
criativos. O resto do elenco é menos surpreendente, mas cumprem sempre bem os
seus papéis atores talentosos como Paulo Pires, Albano Jerónimo, Vítor Correia,
Miguel Nunes ou António Durães.
No meio deste ambiente louco, o filme desenha-se simultaneamente como um
thriller. Alguém anda a matar heterónimos, e Fernando Pessoa homónimo lidera a
investigação para descortinar quem é o assassino (supostamente será um dos próprios
heterónimos). O contexto é demasiado difuso para espoletar as emoções típicas de
um thriller. Ainda mais porque, o realizador acaba por fazer uma alternância de
planos, mostrando também Pessoa num hospício, aumentando ainda as camadas,
ou a ideia de fusão da realidade com a imaginação.
Esta não é a primeira vez que Edgar Pêra se dedica a Fernando Pessoa. Já o
havia feito em diferentes ocasiões e agora está a terminar um documentário onde
imagina uma troca de correspondência entre o poeta português e o americano H. P.
Lovecraft. Eles que nem sequer se conheceram, mas Pêra descobre afinidades através
dos seus próprios textos.
Edgar Pêra é um dos maiores ícones mundiais de cinema independente, com
mais de uma centena de filmes realizados e uma pulsão para filmar compulsivamente. Está permanentemente a trilhar caminhos alternativos dentro do próprio
cinema, que vão muito além de propostas narrativas diferentes. Aliás, o seu trabalho
3D é algo tão ousado quanto raro no mundo inteiro.
Em Não Sou Nada, filme apanhado pela pandemia, conseguiu condições muito
especiais. Um orçamento acima do costume, bastante tempo de preparação e uma
equipa técnica e artística fechada numa antiga fábrica, sem poder abandonar o
espaço, devido às regras do confinamento. Tal fez com que Pêra criasse e recriasse
com meios pouco habituais (costuma fazer um cinema de guerrilha, com poucos
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Halpern
O estranho caso
meios). Se ele pudesse, teria feito o estúdio em forma de labirinto, assim como, de
alguma forma, desenhou o filme. Manoel de Oliveira dizia que não é possível filmar
o pensamento. Edgar Pêra, contudo, não tem pudor em ousar fazê-lo.
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O estranho caso
MANUEL HALPERN é jornalista e crítico de cinema do Jornal de Letras, Artes e Ideias, desde 1998,
colaborador permanente da revista Visão e fundador da revista literária A Morte do Artista. É
autor dos livros O Futuro da Saudade – O Novo Fado e os Novos Fadistas (ensaio, 2004); O Segredo
do Teu Corpo/Palco (teatro, 2006); Fora de Mim (ficção, 2008), O Homem do Leme (crónicas, 2018) e
Escama Rímel Carapaça (poesia, 2023). Nascido em Lisboa, no ano da Revolução dos Cravos, é
licenciado em Comunicação Social, pela Universidade Católica Portuguesa, com pós-graduação
em Crítica de Cinema e Música Pop, na Universidade Ramon Lull em Barcelona e foi bolseiro
da FLAD (Washington, EUA, 2013) e da Fundação Gabriel García Márquez (Cartagena de Índias,
Colômbia, 2014). Membro da Federação Internacional de Críticos de Cinema (FIPRESCI), foi
jurado de diversos festivais, integrando atualmente os júris de atribuição de subsídios do Instituto
do Cinema e Audiovisuañ (ICA).
MANUEL HALPERN is a journalist and film critic for Jornal de Letras, Artes e Ideias since 1998, a
regular contributor of Visão magazine, and the founder of the literary magazine A Morte do
Artista. He is the author of several books, including O Futuro da Saudade – O Novo Fado e os Novos
Fadistas (essay, 2004); O Segredo do Teu Corpo/Palco (theatre, 2006); Fora de Mim (fiction, 2008); O
Homem do Leme (chronicles, 2018); and Escama Rímel Carapaça (poetry, 2023). Born in Lisbon, in
the year of the Carnation Revolution, he graduated in Social Communication from the Portuguese
Catholic University, with a postgraduate degree in Film and Pop Music Criticism from Ramon
Lull University in Barcelona. He was a scholarship recipient of FLAD (Washington, USA, 2013)
and the Gabriel García Márquez Foundation (Cartagena de Índias, Colombia, 2014). A member
of the International Federation of Film Critics (FIPRESCI), he has served as a jury member for
various festivals and is currently a member of the grant allocation juries at the Institute of
Cinema and Audiovisual (ICA).
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Giménez
Cinema oculto sem filmar
entre o imaginário de Crowley na descida ao submundo e a estância do mago num
Hotel de Estoril, sugerindo, assim, certa obliquidade entre a realidade e a ficção da
personagem. Misturam-se, desta forma, dados da biografia de Crowley junto com o
relato da luta do protagonista pela sua alma após ter caído na Boca do Inferno. O
mago vence a batalha e nas sequências finais volta a encontrar-se com Pessoa e com
um conjunto de jornalistas que procuravam o mago desaparecido. Nessa sequência,
Pessoa desvela que se tratou de uma farsa, ao que Crowley responde:
CROWLEY
Si todo es una farsa nada lo es. Ser o no ser, ésa es mi cuestión. He esquivado la
venganza de Choronzón, no he mordido su anzuelo y he sorteado el Abismo.
A medida que habla, Crowley va subiendo el tono de voz, por encima del rumor de las olas,
dirigiéndose a toda la concurrencia, que en estos momentos parecen más interesados en
Hanni / Leila que en lo que él pueda decirles.
CROWLEY
He vencido a una muerte peor que la muerte. Y aquí tengo la prueba.
Crowley se recoge la túnica y mete una mano en la entrepierna del pantalón.
Hurga buscando algo. Extrae la oreja cortada de Chorozón.
CROWLEY
(pletórico, dando la vuelta al ruedo) Sólo hay una verdad, y la tengo en la mano. ¿Es
que no la veis, ni a la luz del día? ¿Tan necios sois, que vencida ya la noche
perseveráis en vuestra miserable comedia? ¿Aún pretenderéis juzgarme? ¡Bien,
adelante! Pero el único testimonio que obtendréis de mí será mi risa. Por que yo me
río de vosotros, de todos, de vuestra fe, de vuestros miedos y hasta de vuestras
pequeñas vidas. Miro a mi alrededor y sólo veo... ¿Masturbación?... Si. Y ¿sabéis qué,
mocosos? No siento odio no desprecio ni lástima.
Crowley, de pie en medio del círculo de arena, triunfante, alza la oreja de Choronzón.
(ATANES, 2013: 176-177)
Acredita-se que o guião é uma criação livre a partir dos tópicos mencionados.
Apesar desse esclarecimento, a construção de Atanes cai em alguns clichés sobre
Fernando Pessoa, o ocultismo e o esoterismo que terminam por embaçar o projeto
no seu conjunto, como na sequência XI, em que Crowley dialoga com o seu reflexo no
espelho e define Pessoa com base na saúde mental: “No. Pero padece un trastorno
de personalidad múltiple, como tú” (ATANES, 2013: 53). Além disso, como demonstram
a correspondência e os testemunhos, Pessoa perdeu rapidamente o interesse em
Crowley, durante e depois da visita do mago a Portugal. Apesar da estrutura narrativa ser bem pensada, numa ordem inversa aos Arcanos do Tarô, a transição entre
sequências, no roteiro, carece de uma diegese mais completa que contextualize o
discurso direto e possa oferecer também indicações de como seriam filmados os
planos. O texto não consegue descrever aquilo que vai estar na imagem e não há
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Giménez
Cinema oculto sem filmar
indicações sobre que estética se vai integrar no filme quando realizado. O leitor pode
ficar perdido no simbolismo ocultista que, sem diegese, parece excessivo:
HORUS (OFF)
La clave del reino de los muertos está en la palabra secreta que te ha sido dada.
Pronuncia ahora tu nombre mágico de eternidad...
Horus queda callado, inmóvil, con el cetro en alto, unos segundos interminables. Nadie se
mueve. Al cabo, retoma el discurso.
HORUS (OFF)
Pronuncia ahora tu nombre mágico de eternidad sin el que ningún dios te
considerará un Justificado, y sin el que no podrás sobrevivir en el inframundo.
No ha acabado Horus de pronunciar el último párrafo, e Isis y Neftis ya le han extraído la
máscara a Crowley, develando su rostro:
CROWLEY
Mi nombre es La Bestia.
(ATANES, 2013: 29)
Mesmo que se trate de uma criação livre, acredita-se que o guião poderia terse beneficiado de uma maior investigação prévia. Em 2012, na revista Pessoa Plural,
Marco Pasi publicou importantes textos sobre a relação entre Pessoa e Crowley. Em
2019, Steffen Dix publicou, na Tinta-da-china, um dos melhores estudos sobre o
poeta e o mago: O Mistério da Boca do Inferno (2019). No mesmo ano, Cristina Zhou
(2019) defendeu a tese de doutoramento Problemática Metafísica e Especulação Esotérica
na Poesia Portuguesa da Modernidade: de Antero a Régio, e, em 2022, Rita Marrone
defendeu a tese Os “Livros Ocultos” de Fernando Pessoa: Um Estudo da Biblioteca Esotérica
de Fernando Pessoa. Todos estes trabalhos, quase todos posteriores à publicação do
guião, apresentam um esforço científico para justificar o discurso sobre esoterismo e
ocultismo na academia, para que seja estudado com um objeto e um marco teórico
despojado do preconceito ao qual está comumente associado. Por exemplo, as leituras
esotéricas de Fernando Pessoa nutrem a atividade de criação entre arte e conhecimento
ao mesmo tempo em que situam o pensamento esotérico num lugar de relevância
dentro da obra pessoana e do debate académico. O discurso esotérico alumbra mais
um sentido do puzzle pessoano que é preciso reivindicar.
Como dito anteriormente, resulta complicado, se não impossível, imaginar
como o realizador teria representado em imagem-movimento o guião que nos
propõe. As imagens poderiam sobrepor-se às palavras para apresentar um filme
pictórico além da letra. Não se pode saber. Mas o texto que foi analisado, sem o
suporte das imagens e sem uma diegese mais detalhada, ou menos elíptica, que
contextualize o discurso direto, pode cair na banalidade e na superficialidade
associada comumente ao ocultismo e que esforços académicos recentes tentam
contextualizar e desmitificar. Neste sentido, torna-se obscuro justificar em termos
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Giménez
Cinema oculto sem filmar
estéticos, para além do cliché, descrições de extração de órgãos, relações sexuais,
diálogos esotéricos, Arcanos e sonhos vários associados à viagem de Crowley à Boca
do Inferno.
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Giménez
Cinema oculto sem filmar
Bibliografia
MARRONE, Rita Catania (2022). Os “Livros Ocultos” de Fernando Pessoa: Um Estudo da Biblioteca Esotérica
de Fernando Pessoa [Tese de doutoramento]. Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade
de Coimbra. https://hdl.handle.net/10316/100123
PASI, Marco (2012). “September 1930, Lisbon: Aleister Crowley's lost diary of his Portuguese trip”.
Pessoa Plural—A Journal of Fernando Pessoa Studies, n.º 1, Primavera, pp. 253-283. Brown
Digital Repository, Brown University Library. https://doi.org/10.7301/Z03N21MS
PASI, Marco; FERRARI, Patricio (2012). “Fernando Pessoa and Aleister Crowley: New discoveries and
a new analysis of the documents in the Gerald Yorke Collection”. Pessoa Plural—A Journal of
Fernando Pessoa Studies, n.º 1, Primavera, pp. 284-313. Brown Digital Repository, Brown
University Library. https://doi.org/10.7301/Z07D2SCK
PESSOA, Fernando (2019). O Mistério da Boca do Inferno. Correspondência e Novela Policial. Edição de
Steffen Dix; tradução de Sofia Rodrigues. Lisboa: Tinta-da-china.
ZHOU, Cristina (2019). Problemática Metafísica e Especulação Esotérica na Poesia Portuguesa da
Modernidade: de Antero a Régio [Tese de doutoramento]. Coimbra: Faculdade de Letras.
https://hdl.handle.net/10316/87606
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Giménez
Cinema oculto sem filmar
DIEGO GIMÉNEZ, Doutor em literatura e pensamento pela Universidade de Barcelona, com uma
tese sobre o Livro do Desassossego, é também Mestre em Estudos Literários e Licenciado em
Filosofia pela mesma universidade. Trabalhou na redação de LaVanguardia.com e cofundou em
2008 Revista de Letras. Foi bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian e investigador no projeto
financiado pela FCT “Nenhum problema tem solução: um arquivo digital do Livro do Desassossego”
da Universidade de Coimbra. Foi investigador de pós-doutoramento na Universidade Estadual
de Londrina onde continuou os estudos sobre Fernando Pessoa e onde lecionou as disciplinas
Teoria do Poema e Teoria da Narrativa. Atualmente é investigador de pós-doutoramento no
Centro de Literatura Portuguesa da Universidade de Coimbra com uma bolsa da FCT.
DIEGO GIMÉNEZ holds a PhD in Philosophy and Literature by the University of Barcelona, with
a thesis on The Book of Disquiet by Fernando Pessoa. He also holds a Master’s degree on Literary
Studies and a Bachelor degree on Philosophy from the same institution. He worked as a
journalist in LaVanguardia.com, and, in 2008, he cofounded Revista de Letras. As researcher at the
Calouste Gulbenkian Foundation and at the Center for Portuguese Literature at the University
of Coimbra, he worked on the Book of Disquiet Digital Archive. He was a post-doctoral fellow at
the Universidade Estadual de Londrina (Brazil), where he continued to study Fernando Pessoa
and taught Theory of the Poem and Theory of Narrative. Currently he is a post-doctoral fellow
FCT-POCH at the Centro de Literatura Portuguesa of the University of Coimbra (Portugal).
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555
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"
Macdonald
Pessoa e a cidade
Homem é um Mundo (1981), de Luís de Sttau Monteiro. Também tem interesse Mário
Viegas explorando em 1991, no programa Palavras Vivas, a última morada de Pessoa
em Campo de Ourique, antes de se converter na Casa Fernando Pessoa, ou até João
Villaret contando como foi apresentado a ele por António Botto, relatado em 1959
num dos seus programas de poesia. Tudo isto é visionável no website Arquivos RTP –
um fundo que poderá ter outros elementos semelhantes ainda por revelar (ver:
CUÉLLAR DOS SANTOS, 2020). Para mais, há várias entrevistas gravadas com os
sobrinhos de Pessoa, Manuela Nogueira (1925-) e Luís Miguel Rosa Dias (1931-2019),
e até curtos depoimentos televisivos de sua irmã, Henriqueta Madalena (1896-1992),
para a RTP e a brasileira Globo.2
Por comparação, Almada Negreiros mereceu desde cedo um tratamento mais
dedicado, com a vantagem de alguns realizadores terem acedido a ele directamente
e de o terem entrevistado na tela. É o caso de Almada, Um Nome de Guerra (1969), de
Ernesto de Sousa; Almada Negreiros – Vivo, Hoje, do mesmo ano, de António de
Macedo; e Almada & Tudo (2000), do já referido Manuel Varella, filme começado em
1970, mas só concluído e estreado 30 anos depois (ANON., 1970). Existem também
pelo menos seis produções para a RTP, a maioria delas documentários de médiametragem, de entre 1970 e 1986.3
Talvez a pergunta não seja tanto “Por que há pouca vontade para documentários sobre Pessoa?”, mas mais “Por que se faz tantos filmes de todos os outros
géneros?”. Em 2017, o historiador de cinema José de MATTOS-CRUZ publicou uma
lista de 44 produções portuguesas em torno do poeta de entre 1947 e aquele ano,
onde se incluem os cinco documentários mencionados no começo deste texto. A
topologia é interessante. Existem obras com “alusão” ao escritor (citações literárias,
menções biográficas); com “recriação” (leituras encenadas, leituras ilustradas, dramatizações de poemas e peças teatrais); como “referência” (documentários, análises
da obra, dramatizações especulativas); e como “reconstituição” (dramatizações mais
ou menos rigorosas de períodos biográficos). A estatística mostra a compulsão de
toda a sorte de realizadores e argumentistas para projectar o mundo-Pessoa, seja lá o
que isso for. É, usando um termo hollywoodesco (já arrematado por uma antologia;
cf. PESSOA, 2013), o verdadeiro “multiverso Pessoa”, e continua em expansão.
Na RTP: peça noticiosa de 1977, em https://arquivos.rtp.pt/conteudos/encontro-fernando-pessoana-fundacao-calouste-gulbenkian. Na Globo: programa Globo Repórter de 1986, disponível em
https://www.youtube.com/watch?v=9EjIgx5yQFg.
2
A saber: “Almada Negreiros” (1970) segunda parte de um episódio do programa Ensaio, realização
de António Damião; “Almada Negreiros” (1977), programa A Ideia e a Imagem, por Álvaro Manuel
Machado e Emídio Uva; “Almada Negreiros, um dos Inventores da Arte Portuguesa” (1977),
programa Intervenção Artística, realização de José Elyseu; “Almada Negreiros – Se não for por arte
não serei de outro modo”, programa Artistas Portugueses, realização de José Elyseu; Almada –
Português e Mito (1985), realização de José Elyseu; “Almada Negreiros” (1986), programa Trovas
Novas, realização de Dórdio Guimarães.
3
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Macdonald
Pessoa e a cidade
Ophiussa4 – Uma Cidade de Fernando Pessoa (70 mins., vídeo5), o filme de 2012
de Fernando Carrilho, é um caso de sobriedade. O realizador, numa nota inicial de
apresentação, chama-lhe “ensaio cinematográfico”, “cine-poema”, acto de “imaginar
[...] Lisboa através das palavras do poeta”, que são excertos de Bernardo Soares,
Vicente Guedes e Álvaro de Campos lidos em voz-off. A cidade surge com duas
faces: em imagens de agora, recolhidas para o filme, sem nunca vermos os habitantes
(salvo uma excepção fugaz, no largo do chafariz da Rua de O Século) e em certas
fotografias de arquivo, coevas da vida de Pessoa, aí sim com habitantes. A opção de
esvaziar a Lisboa de agora e de, aliás, filmá-la com algum distanciamento, protege o
espectador do lugar-comum do poderoso espectro literário daquele que ainda anda
por cá a assistir à vida dos outros e a sussurrar versos. Se é para localizar Pessoa,
faça-se em rigor, como Carrilho: os três actores que o representam (aos 25, 35 e 45
anos de idade, sendo que há um outro, um menino que o mostra em criança) surgem
em interiores, geralmente o quarto de dormir e de escrever (não que seja um quarto
em específico). Não vemos Pessoa passeando pela cidade. Os actores não falam (só
se ouve a voz-off, de outros três actores). Melhor, em vez dos actores representarem
Pessoa, iconografam-no, em cenários de reconstituição legítima, mas minimalista,
sem de facto ser necessário mais. Há situações muito bem resolvidas. Por exemplo,
por volta dos minutos 12-14, passa-se de uma dessas cenas de reconstituição inorgânica,
Pessoa dactilografando num quarto e depois espreitando à janela, para um travelling
lento no Miradouro de São Pedro de Alcântara – travelling que no fim pára e repousa,
em vez de ceder ao expediente sedutor do movimento infinito – e a seguir corta-se
para duas fotografias antigas do Tejo que, como todas no filme, respeitam a integridade dos originais e estão fixas, não incorrem no artifício do chamado “efeito Ken
Burns”, o zoom em detalhes (a deferência de Carrilho pelo documento não é estranha:
profissionalmente, ele coordena a Videoteca do Arquivo Municipal de Lisboa).
É uma estratégia equilibrada. Vem de um autor que, depois deste filme, olhou
para a cidade e o país e outros autores em documentarismo apurado: Bairro Alto –
500 Anos (2013); A Paisagem de Artur Pastor (2014); As Artes da Luz de Lisboa (2015),
co-realização de Miguel Amaral; Ventura Terra – Projectar a Modernidade (2017). Ora,
é essa estratégia que não faz de Ophiussa um “cine-poema”, como o realizador disse,
o que é bom. Entende-se o ensejo, mas, paradoxalmente, não o cumpriu, não resvalou
para a mera ilustração do texto ou para a poetização pelo filmado. A solução de
Carrilho para absorvermos Pessoa é plausível. Leitura e cena não se mutilam ou
banalizam mutuamente, o que costuma ser habitual neste tipo de projectos, por mais
que leitura e cena tenham sido seleccionadas e concebidas com cuidado; veja-se esses
ímpetos em obras tão opostas como Mistério de Lisboa – O que o turista deve ver (2008),
de José Fonseca e Costa (não propriamente uma grande escolha literária) e Lisbon
4
“Ophiussa” é um nome mitológico de Lisboa, supostamente do período pré-romano.
5
60 mins. visonáveis em: https://arquivos.rtp.pt/conteudos/ophiussa-uma-cidade-de-fernando-pessoa
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
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Macdonald
Pessoa e a cidade
Revisited (2014), de Edgar Pêra (exponenciado em 3D). Há, é certo, um momento em
que uma certa tentação simbólica vem perturbar a licitude concebida por Carrilho:
na parede de um quarto projecta-se uma sombra tripla do poeta, o tal branding
heteronímico, consagrado desde 1978 numa célebre tela de António Costa Pinheiro
(1932-2015), Fernando Pessoa – Heterónimo (colecção do Centro de Arte Moderna da
Fundação Gulbenkian).6 Mas é um momento breve. Noutra cena, das raras construídas
no exterior, com figurantes, uma jovem dentro de um elétrico sugere Ofélia, sem
passar disso, portanto uma espécie de encenação mais eficaz (é quando ouvimos a
passagem do Livro do Desassosego “Vou num carro eléctrico”, em parte remetente
para o poema “Apostila” de Álvaro de Campos, “Passageira que viajas tantas vezes
no mesmo compartimento comigo”7).
Perante aquela imensidão de cinematografia pessoana até 2012, ano de estreia
deste filme, e olhando para toda a outra produzida desde então, Carrilho demonstra
que o Pessoa fílmico, por mais exigente que seja, está longe de ser intratável, e, por
outro lado, que a captura visual da (de uma) Lisboa literária é mais surpreendente
quando mais contida, principalmente se colocada acima do fenómeno do turismo
literário hoje espalhado pela cidade (muito superficial na exploração do escritor,
note-se, até em merchandising selvagem: parafraseando o Almada Negreiros antiDantas8, as lojas de souvenirs estão cheias de canecas Pessoa e t-shirts Pessoa e sacolas
Pessoa e porta-chaves Pessoa, um sem fim). Perante tudo isto, voltando à inquirição
lançada no começo do texto, conclui-se: o filme de Carrilho abre possibilidades sérias
para futuros esforços de cinema objectivamente documental sobre Pessoa.9
Ver em https://gulbenkian.pt/cam/works_cam/fernando-pessoa-heteronimo-139236. Costa Pinheiro
dedicou-se profundamente a Pessoa; em 1981 a Fundação Calouste Gulbenkian organizou uma
exposição dedicada aos seus trabalhos sobre o escritor: Costa Pinheiro – O Poeta Fernando Pessoa (ver
em https://gulbenkian.pt/historia-das-exposicoes/exhibitions/429). Essa sombra tripla, com variantes,
é um cliché recorrente entre vários artistas (sem que daí venha mal ao mundo), como, por exemplo,
mais recentemente, na ilustração que Nuno Saraiva (1969-) fez em 2023 para as toalhas de mesa do
café A Brasileira do Chiado (ver em: https://amensagem.pt/2023/01/25/cafe-a-brasileira-chiado-novastoalhas-homenagem-lisboa-mesas-ilustrador-nuno-saraiva).
6
“(Passageira que viajas tantas vezes no mesmo compartimento comigo | No comboio suburbano, |
Chegaste a interessar-te por mim? | Aproveitei o tempo olhando para ti? | Qual foi o ritmo do nosso
sossego no comboio andante? | Qual foi o entendimento que não chegámos a ter? | Qual foi a vida que
houve nisto? Que foi isto à vida?)”. Presença, 2.ª série, n.º 1, Coimbra, Nov. 1939; cf. PESSOA (2014: 207).
7
8
“[...]
E SABONETES EM CONTA ‘JULIO DANTAS’ E PASTAS DANTAS P’RÓS DENTES, E GRAXA DANTAS P’RÁS
BOTAS, E NIVEINA DANTAS, E COMPRIMIDOS DANTAS E AUTOCLISMOS DANTAS E DANTAS, DANTAS, DANTAS,
DANTAS... E LIMONADAS DANTAS-MAGNESIA”.
Manifesto Anti-Dantas, 1916, https://purl.pt/38677
Mesmo que ZENITH o considere impraticável no prefácio da sua biografia: “I have tried to construct,
with as much credible detail as I could muster, a ‘cinematographic’ life: what Pessoa looked like and
how he behaved, where his steps took him, the people he interacted with, and the lively settings
where his life unfolded. But this film, on its own, would tell us little about Pessoa the writer, whose
essential life took place in the imagination” (2021: xxxi). O autor, bem visto, usa os termos “film” e
“cinematographic” enquanto projecções de escrita.
9
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Macdonald
Pessoa e a cidade
Bibliografia
ANON. (1970). “Dois mil metros de filme sobre Almada Negreiros em breve, na RTP”. Diário Popular,
n.º [n.d.], 17 de Junho, Lisboa, p. 6. Acessível em: https://modernismo.pt/index.php/arquivoalmada-negreiros/details/33/453
CUÉLLAR DOS SANTOS, Clara (2020). “A Pessoa por detrás da obra: Três documentários do Arquivo
RTP”. Pessoa Plural—A Journal of Fernando Pessoa Studies, n.º 18, Outono, pp. 506-572. Brown
Digital Repository. Brown University Library. https://doi.org/10.26300/z0x4-4r67
MATTOS-CRUZ, José de (2017). “Filmografia e presencismo”. Arte e Teoria, s. 2, n.º 20, Lisboa, pp.
245-246. Direcção de José Carlos Pereira e António Vargas. Centro de Investigação e Estudos
em Belas-Artes / Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa. Acessível em:
https://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/48695/2/CIEBA_ARTETEORIA_N20.pdf
PESSOA, Fernando (2023). Multiverso Pessoa. Edição e prefácio de Macckeey Soto Aguirre; tradução
de Jesús Caso e Renato Sandoval. Lima: Quimérica Editorial / Zafiro.
_____ (2014). Obra Completa de Álvaro de Campos. Edição de Jerónimo Pizarro e Antonio Cardiello.
Lisboa: Tinta-da-china.
_____ (2013). Eu Sou Uma Antologia: 136 autores fictícios. Edição de Jerónimo Pizarro e Patricio
Ferrari. Lisboa: Tinta-da-china.
ZENITH, Richard (2021). Pessoa: A Biography. New York: Liveright.
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560
Macdonald
Pessoa e a cidade
JOÃO MACDONALD é jornalista desde 1994, e historiador de arte. Mestrando na Faculdade de BelasArtes da Universidade de Lisboa. Publicou estudos sobre o Modernismo português em: Performance
na Esfera Pública, organização de Ana Pais (Orfeu Negro, 2017); E – Revista do Expresso (2018,
2020); Santa Rita Pintor – Polémicas e controvérsias, coordenação de Fernando Rosa Dias (Documenta,
2019); Convocarte – Revista de Ciências da Arte (CIEBA-FBAUL, 2019, 2021); Modernités Portugaises,
organização de Anne Bonnin (Maison Caillebotte / In Fine – Éditions d'Art, 2022); Pessoa Plural—
A Journal of Fernando Pessoa Studies (2022).
JOÃO MACDONALD is a journalist since 1994, and an art historian. Master’s student at the Faculty
of Fine Arts of the University of Lisbon. He has published studies on Portuguese Modernism in:
Performance in the Public Sphere, organized by Ana Pais (Orfeu Negro, 2017); E – Revista do Expresso
(2018, 2020); Santa Rita Pintor – Polémicas e controvérsias, coordinated by Fernando Rosa Dias (Documenta, 2019); Convocarte – Revista de Ciências da Arte (CIEBA-FBAUL, 2019, 2021); Modernités
Portugaises, organized by Anne Bonnin (Maison Caillebotte / In Fine – Éditions d'Art, 2022);
Pessoa Plural—A Journal of Fernando Pessoa Studies (2022).
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Levy
Da escrita de imagens
prevalece o princípio da causalidade no encadeamento dos eventos: a opção é por
uma exposição fragmentária.
Ainda que cada cena do filme seja um fragmento, elas constelam em torno de
certas temáticas. Identificamos três sequências, ou conjuntos de cenas, que preservam
entre si uma unidade de sentido. Para fins explicativos, nomeamos assim cada sequência: a aventura (cenas 1, 2, 3 e 4); o outro (cenas 5 e 6); o desassossego (cenas 7, 8, 9,
10, 11 e 12).
Na primeira sequência, que compreende os cinco minutos iniciais do filme, é
evocado o passado heroico português no contexto das grandes navegações. Na cena
de abertura, vê-se uma caravela projetada sobre a imagem de um descampado. Um
homem acena para uma criança que caminha ao longe em direção à imagem evanescente da caravela no horizonte. Os sons percebidos na cena criam a ambiência de um
porto, ouvimos o apito da embarcação, a movimentação da água, o canto das gaivotas.
Fig. 1. Cena de abertura. Fotograma de Au bord du monde.
O ambiente acústico criado em um filme, ao emular os sons característicos de
um lugar, torna possível ao espectador a experimentação de uma paisagem sonora.
O termo soundscape é um neologismo cunhado pelo compositor e teórico canadense
R. Murray Schafer, uma derivação de landscape, que tem sido traduzida para a língua
portuguesa como paisagem sonora. SCHAFER (2001) destaca que o ambiente sonoro
no qual estamos imersos é composto pelos mais variados sons, sejam humanos, da
natureza ou de máquinas, e que a experiência sonora é marcadamente histórica,
geográfica e cultural. Por isso, certos sons remetem a contextos e lugares específicos.
No desenho de som de Au bord du monde, predomina o uso da acusmática (CHION,
2011: 61) na criação de paisagens sonoras. Acusmático é o som que nos chega sem
que possamos ver a fonte sonora, de maneira que certos ruídos são suficientes para
ativar no espectador a imaginação do espaço cênico. Esse recurso, presente na cena
acima descrita, é utilizado em vários momentos de Au bord du monde e pode ser
localizado previamente no roteiro.
A cena de abertura do filme finaliza com uma voice over: a certa altura, uma
voz masculina enuncia os versos de Pessoa como se meditasse:
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
563
Levy
Da escrita de imagens
Entre o sono e o sonho,
Entre mim e o que em mim
É o quem eu me suponho,
Corre um rio sem fim.
(PESSOA, 2018: 111)1
O ordenamento dessa cena está invertido entre roteiro e filme. O texto indica que se
trata de uma cena de fechamento, mas na tela ela funciona como uma abertura. Essa
reorganização narrativa é o indício de que o filme, invariavelmente, segue sendo
“reescrito” na montagem.
Na cena seguinte, ao som de uma tempestade, a imagem percorre uma superfície
que a princípio parece um mar escuro, depois uma porção de terra numa visão aérea,
mas logo a imagem se fixa e percebemos que a superfície se move: é uma pele áspera
de um ser que respira e emite um som característico. É uma baleia. A imagem do
animal preenche a tela. Trata-se de uma figuração do “mostrengo” (PESSOA, 1977:
79-80), alegoria referenciada na obra pessoana como a representação dos perigos
que se impunham de ordinário aos navegadores que desbravavam os mares, e, por
extensão, um elemento simbólico da coragem em transpor limites e enfrentar o medo
do desconhecido.
Até o final desta sequência e na próxima, a locação é um teatro, de tal modo
que o cenário, os adereços e a disposição dos atores assemelham-se a um espetáculo
teatral. Para além de uma escolha estética, a utilização de um palco como set de
filmagem pode ter sido uma alternativa para contornar o baixo orçamento da produção.
Os elementos cênicos construídos em uma escala menor, como a miniatura de uma
caravela, conferem um aspecto de irrealidade que contribui para a proposta onírica
do filme, mas também convocam à reflexão. O timoneiro da caravela, “o homem do
leme”, é um gigante negro. Essa desproporção, entre o tamanho da embarcação e do
homem que a conduz, acentua que a aventura portuguesa se deu ao custo da força
de trabalho dos negros escravizados.
Fig. 2. O homem do leme. Fotograma de Au bord du monde.
Os diálogos no roteiro estão em francês (provavelmente retirados de edições francesas de Pessoa,
com eventuais adaptações). Porém, optamos aqui pelo original em português.
1
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Nesta sequência, recorre-se também a objetos simbólicos, como uma bola de
luz, por exemplo, que lembra uma esfera armilar, instrumento de orientação utilizado
pelos navegadores. A bola de luz aparece como um brinquedo nas mãos de uma
criança. O menino é então embalado por uma mulher sentada em um trono, talvez
uma alusão a um futuro rei que viria a desbravar os oceanos.
Fig. 3. O menino e a bola de luz. Fotograma de Au bord du monde.
A segunda sequência do filme, aqui nomeada “o outro”, tem nove minutos e
reúne duas cenas que exploram a incomunicabilidade. Na cena cinco, temos a
presença de oito pessoas que não falam a mesma língua; ou melhor, que se apresentam
num idioma que não existe. Esses diálogos não constam no roteiro, pois, como revela
a diretora, os atores foram solicitados a improvisar. Uma mulher se junta ao grupo
e tem início uma sessão espírita. A médium é a atriz e cantora brasileira Mônica
Passos. Em certo momento, a médium invoca as palavras do semi-heterônimo Bernardo
Soares: “Somos morte”, e adverte que “quando julgamos que vivemos, estamos
mortos”2. A cena seis é uma coreografia: um casal dança executando movimentos
que aludem à impossibilidade do encontro amoroso.
A terceira e última sequência do filme tem duração aproximada de nove
minutos. Ao nomeá-la “desassossego” não estamos sugerindo que os excertos sejam
exclusivos do Livro do Desassossego, mas que as reflexões filosóficas que as cenas
suscitam expressam inquietações existenciais e metafísicas. Na cena sete, dois homens
discutem sobre o conceito de infinito. Essa é a discussão que está nas Notas Para a
Recordação do Meu Mestre Caeiro,3 atribuídas a Álvaro de Campos. Os homens estão
dentro de um trem em movimento. Aqui temos a utilização de um criativo raccord
de eixo. Primeiro temos um plano aberto de um trem de brinquedo se movimentando
no chão. Depois, um plano fechado em dois homens que conversam no que parece ser
um trem, por causa da disposição das cadeiras, dos ruídos e da projeção de uma
paisagem em movimento vista pela janela. A justaposição desses planos, apesar da
economia de objetos de referência, leva o espectador a inferir que os personagens
2
Cf. https://ldod.uc.pt/fragments/fragment/Fr132/inter/Fr132_WIT_ED_CRIT_P_2.
3
Algumas publicadas na revista Presença, n.º 30, de janeiro-fevereiro de 1931; ver: PESSOA (2014).
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em cena são, de fato, passageiros de um trem. Apesar desse efeito ser executado na
última etapa da produção do filme, que é a montagem, ele já estava previsto no roteiro.
Figs. 4 e 5. Cena do trem. Fotogramas de Au bord du monde.
Na mise en scene, a discussão entre os dois passageiros se intensifica até que um joga
o outro pela janela do trem. Com um efeito visual, a cena oito mostra o homem em
queda, flutuando, como se caísse do céu até pousar em cima do trem de brinquedo, que
vemos ser conduzido por uma criança. É uma cena em que as imagens oferecem
muitas camadas de sentido: o abismo, a queda, a repetição, o destino.
As três cenas que se seguem são as únicas filmadas em ambientes externos. O
“homem que veio do céu” tem no colo a “criança que conduzia o trem”, eles se apoiam
no balaústre de uma janela e observam um homem que caminha na rua. Um
fenômeno ocorre com o transeunte, que tem o seu espectro desprendido do corpo.
De aspecto transparente, esse corpo fantasmático espia um grupo de pessoas que
conversam numa esquina qualquer. Uma das mulheres, ao escutar algo que lhe é
cochichado ao ouvido, gargalha desbragadamente. O riso ressoa no ambiente. Temos
no mesmo espaço: o prosaico e o insólito, o ordinário e o extraordinário, o humano
e o transcendente.
Fig. 6. O fantasma que espia. Fotograma de Au bord du monde.
Na última cena, filmada em uma aparente sala de estudos ou laboratório, dois
homens vestindo jalecos brancos, referidos no roteiro como professores, conversam
sobre sonho. Um terceiro homem, parcialmente coberto por um lençol (um cadáver?),
jaz deitado sobre uma mesa. Em dado momento, surge magicamente Dom Sebastião,
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o rei de Portugal desaparecido durante uma batalha no século XVI, circunstância que
alimentou no imaginário lusitano a profecia do seu regresso ao reino. Dom Sebastião
é interpretado por uma atriz, Fabienne Bargelli. O diálogo da personagem é composto
por alguns versos do sexto soneto do ciclo “Passos da Cruz” (PESSOA, 1977: 125-126).
Uma conexão curiosa é que uma das alcunhas de Dom Sebastião era “o adormecido”,
nome similar atribuído no roteiro ao personagem que permanece deitado: dormeur.
Fig. 7. Os sonhadores. Fotograma de Au bord du monde.
Depois que a aparição do rei se esvai lentamente na sombra, os professores discorrem
sobre o “provincianismo português”4 e um certo ideal de civilidade. São retomadas
as reflexões sobre o sonho, agora acompanhadas de questionamentos sobre a noção
de realidade e lucidez. Um dos professores diz:
We are our dreams of ourselves, souls by gleams,
And each to each other dreams of others’ dreams.
(PESSOA, 1977: 589)
Esse diálogo, que não está escrito no roteiro, é o único na língua inglesa. Já nos
momentos finais do filme, o homem que dormia acorda e, tomando para si as
palavras do autor do Livro do Desassossego, diz ser um “sonhador exclusivamente”.5
O roteiro de Au bord du monde é um raro exemplar de um guia de trabalho,
um documento que carrega as marcas do processo de criação do filme. Em sua
materialidade, podemos olhá-lo como um objeto. Por sobre o texto datilografado em
francês, há comentários manuscritos, indicação das obras de referência, anotações em
português, rasuras, linhas transversais que editam o texto, falas escritas à mão que
se sobrepõem a registros impressos. Pequenas manchas amareladas no canto superior
das páginas denunciam a ferrugem, vestígios dos grampos que prendiam as folhas
de papel. A superfície da página oito revela seu avesso, uma espécie de marca d’água
do que foi manuscrito no verso da folha: “O último sortilégio” (PESSOA, 1977: 155156). Na materialidade da página, um feitiço do tempo e da umidade.
4
“O provincianismo português”, texto de 1928, figura em Textos de Crítica e de Intervenção (PESSOA, 1980).
5
Cf. https://ldod.uc.pt/fragments/fragment/Fr393/inter/Fr393_WIT_ED_CRIT_P.
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Figs. 8 e 9. Frente e verso da página oito. Fac-símile do roteiro de Au bord du monde.
É importante destacar que a digitalização do roteiro (feita pela diretora em 2023) e a
sua conversão em objeto de estudo, além de garantir a preservação como documento
histórico, torna possível a afluência de novos leitores e outras leituras.
Ao investigar sobre a poética do roteiro, o pesquisador Ian W. MACDONALD
(2013) propõe que os princípios e regras do ofício, as normas que padronizam o texto,
os saberes aplicados e as técnicas estabelecidas são variáveis sujeitas ao contexto de
produção. Essa perspectiva nos possibilita enxergar a singularidade de cada roteiro
e de seu processo de criação.
No roteiro escrito por Uttscheid, em uma primeira visada, é possível notar
sua heterodoxia formal. As cenas não são enumeradas; também não há a inscrição de
cabeçalhos, indicando o lugar e o tempo da cena; as ações não se limitam a descrever
o que pode ser filmável; a disposição dos diálogos na página nem sempre respeita o
alinhamento centralizado; e também não há a indicação dos nomes dos personagens
que proferem as falas. Esses itens ausentes são característicos do chamado formato
master scenes, um padrão de roteiros que foi se estruturando no mercado dos Estados
Unidos da América a partir dos anos 1940. Este formato atende a um modo de
produção cinematográfica industrial, algo que historicamente teve pouca aderência
no sistema europeu e francês, em particular. Contudo, atualmente esse é o formato
profissional usado no mundo todo.
Outra peculiaridade do roteiro Au bord du monde é a inscrição de uma (já
referida) epígrafe; outra, a lista de personagens e atores, curiosamente denominados
comédiens ao invés de acteurs. Do ponto de vista semântico, os termos são sinônimos
e designam as pessoas que trabalham como atores, mas no âmbito cultural, os franceses
tendem a associar acteurs ao cinema e televisão. No roteiro, segue ainda uma lista da
equipe técnica e outra de agradecimentos. A presença desses elementos textuais
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sugere que essa versão foi elaborada numa fase adiantada da produção. E estando a
direção do filme nas mãos da mesma pessoa que assina o roteiro, os ajustes no texto,
frente às demandas do set, são inevitáveis.
O texto com o enredo do filme começa na página 4 e segue até à 14, ou seja,
tem 10 páginas. Não há, portanto, uma coincidência, como é de praxe nos roteiros
comerciais, entre o número de páginas e a duração do filme (23 minutos). Em parte,
isso se justifica pela omissão da descrição de ações ou diálogos no roteiro e pela
inclusão de diálogos manuscritos no verso das folhas. O documento digitalizado
tem, no total, 27 páginas.
O fato de ser um filme concebido em um contexto de produção menos
comercial conferiu uma maior liberdade formal ao roteiro de Au bord du monde. O
projeto do filme teve início em 1988, por ocasião do centenário de nascimento de
Fernando Pessoa. Segundo relato da cineasta, canais de televisão franceses foram
buscados para financiar a produção, mas o capital levantado não foi suficiente.
Uttscheid precisou custear com recursos próprios as despesas de laboratório, a
montagem do negativo e a impressão das cópias. Uma aventura, como define a
diretora, que envolveu quatro anos de dedicação e endividamento até alcançar as
telas de cinema. A estreia foi numa sala do Centro Nacional de Cinematografia,
órgão vinculado ao Ministério da Cultura francês, que subsidiou o desenvolvimento
da trilha musical na etapa de pós-produção. O curta-metragem participou de alguns
festivais de cinema, tais como Clermont-Ferrant, Nantes e Biarritz. Atualmente, Uttscheid
trabalha como montadora, especialmente para produções de TV e mídias digitais.6
Em Fausto, drama pessoano para o teatro, encontramos os seguintes versos:
Paro à beira de mim e me debruço...
Abismo...E nesse abismo o Universo.
(PESSOA, 1977: 457)
O filme Au bord du monde, em tradução livre, “à beira do mundo”, não faz referência
direta aos versos citados, mas se mostra em sintonia com a obra pessoana ao assumir
como premissa a instabilidade, o risco, o mistério. É uma criação imagética sobre a
experiência limiar de estar à beira do abismo.
6
Agradecemos à cineasta pelo apoio ao nosso trabalho de resgate da memória de Au bord du monde.
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ANEXO
Roteiro
Figs. 10 e 11. Capa e epígrafe, Au bord du monde.
Figs. 12 e 13. Comediens et techniciens, Au bord du monde.
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Fig. 14. Au bord du monde, p. 4.
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Fig. 15. Au bord du monde, p. 5.
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Fig. 16. Au bord du monde, p. 6.
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573
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Fig. 17. Au bord du monde, p. 7.
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574
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Da escrita de imagens
Fig. 18. Au bord du monde, p. 8.
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575
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Fig. 19. Au bord du monde, p. 9.
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576
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Da escrita de imagens
Fig. 20. Au bord du monde, p. 10.
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577
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Da escrita de imagens
Fig. 21. Au bord du monde, p. 11.
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578
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Fig. 22. Au bord du monde, p. 12.
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579
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Fig. 23. Au bord du monde, p. 13.
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Fig. 24. Au bord du monde, p. 14.
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Da escrita de imagens
Bibliografia
CHION, Michel (2011). A Audiovisão: Som e Imagem no Cinema. Tradução de Pedro Elói Duarte. Lisboa:
Edições Texto & Grafia.
MACDONALD, Ian W (2013). Screenwriting Poetics and the Screen Idea. London: Palgrave MacMillan.
PESSOA, Fernando (2018). Antologia Mínima – Poesia. Edição de Jerónimo Pizarro. Lisboa: Tinta-da-china.
_____ (2014). Obra Completa de Álvaro de Campos. Edição de Jerónimo Pizarro e Antonio Cardiello. Lisboa:
Tinta-da-china.
_____ (1980). “O provincianismo português”. Textos de Crítica e de Intervenção. Lisboa: Ática, pp. 157161. Primeira publicação em Notícias Ilustrado, 12 de agosto de 1928.
_____ (1977). Obra Poética. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar.
SCHAFER, R. Murray (2001). A Afinação do Mundo. Tradução de Marisa Trench Fonterrada. São Paulo:
Editora UNESP.
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582
Levy
Da escrita de imagens
JOANISE LEVY é roteirista e professora no curso de Cinema e Audiovisual da Universidade
Estadual de Goiás (UEG). É doutora em Estudos Fílmicos e da Imagem, Universidade de Coimbra,
e doutora em Literatura pela Universidade de Brasília (cotutela). É mestre em Educação e graduada
em Jornalismo pela Universidade Federal de Goiás. É investigadora no grupo de pesquisa CRIA –
Centro de Realização e Investigação Audiovisual, da UEG, e no grupo Estudos de Roteiros:
arquivos, processos e cartografias, da UnB. É membro da SRN – Screenwriting Research Network
e da Rede Docente de Roteiro do Forcine – Fórum Brasileiro de Ensino de Cinema e Audiovisual.
É uma das coordenadoras do Seminário Temático “Estudos de Roteiro e Escrita Audiovisual”
(biênio 2023-2024) da Socine – Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual. É
coautora do projeto de série de ficção para TV, Fim de Ano, contemplado pelo edital FSA/PRODAV
da Ancine. Tem experiência como consultora de roteiros e na curadoria de festivais de cinema.
JOANISE LEVY is a screenwriter and professor in the Film and Audiovisual course at the State
University of Goiás (UEG). She holds a Ph.D. in Film and Image Studies from the University of
Coimbra and a Ph.D. in Literature from the University of Brasília (joint supervision). She also
earned a master's degree in Education and a bachelor's degree in Journalism from the Federal
University of Goiás. As a researcher, she is affiliated with the CRIA – Center for Audiovisual
Achievement and Research at UEG and the Research Group on Screenplays: Archives, Processes,
and Cartographies at UnB. Joanise is a member of the SRN – Screenwriting Research Network
and the Teaching Network of Screenwriting at Forcine – Brazilian Forum for Teaching Film and
Audiovisual. She serves as one of the coordinators for the Thematic Seminar “Screenwriting and
Audiovisual Writing Studies” (2023-2024 biennium) at Socine – Brazilian Society of Cinema and
Audiovisual Studies. Additionally, she is a co-author of the fiction TV series project Fim de Ano,
awarded by the FSA/PRODAV call from Ancine. With experience as a script consultant and in
the curation of film festivals, Joanise Levy brings a wealth of expertise to the field.
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583
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Mariani
Um Husserl heterónimo de Pessoa
Entre os versos de um dos mais célebres livros de versos de Fernando Pessoa, O
Guardador de Rebanhos, transparece uma tese que nos permite pensar, não sem
paradoxo, a relação entre o ser humano e a natureza.1 Trata-se de uma tese filosófica
ou talvez seria mais correto dizer “antifilosófica”, que serve de sugestão e, ao mesmo
tempo, de provocação em comparação com o quadro transcendental da fenomenologia
husserliana. Sob o nome do heterónimo Alberto Caeiro, Pessoa identifica-se, ou
imagina identificar-se, num contínuo jogo de simulação e de despersonalização, com
um guardador de rebanhos, uma alma simples, capaz de olhar para as coisas pelo que
elas são (uma “árvore”, uma “flor”, um “outeiro”); capaz de olhar para as coisas
como as próprias coisas pedem para ser olhadas – olhadas e não pensadas – na plenitude
de uma presença que só uma visão imediata, livre de artifícios, seria capaz de captar:
O meu olhar azul como o céu
É calmo como a água ao sol.
É assim, azul e calmo,
porque não interroga nem se espanta...
(PESSOA, 2001: XXIII, 45 | 2016: 55)
Contra todas as poéticas do espanto colocadas nas origens da filosofia e, de forma
consequente, da fenomenologia – que, na sua roupagem husserliana, aspira a ser a
renovação da filosofia –, Alberto Caeiro, o mestre dos heterónimos, convida-nos a
não nos espantarmos com nada para nos mantermos tão fiéis quanto possível àquilo
a que pertencemos sem desvio, à natureza; a vivermos “à ras de nature”, como
sugere José GIL, 2000), um dos intérpretes filosoficamente mais atentos e originais
de Pessoa, para não nos afastarmos daquilo que simplesmente somos: animais
humanos que existem num mundo sem porquê, onde as coisas não são nem mais
nem menos do que são e onde não há ser para além da aparência. Toda a dificuldade,
para o heterónimo do poeta, pensado como um “argonauta das sensações verdadeiras”,
reside em resistir à tentação – humana, demasiado humana – de querer ser outra coisa,
de imaginar outra coisa, de acreditar que as coisas têm um sentido quando, pelo
contrário, são simplesmente. Para o homem que aspira a ser “natural” como uma
criança na sua eterna inocência e, igualmente, para o poeta que vive em osmose com
o mundo, como uma ninfa nos tempos do paganismo, a dificuldade está em não
pensar e em viver sem refletir – “existimos antes de o sabermos” –, como aquele que
ama, sem saber que ama, aceitando que “tudo é como é e assim é que é” e que o
Os poemas que compõem O Guardador de Rebanhos são indicados por numeração romana seguida
da respetiva paginação (Companhia das Letras e Tinta-da-china). Os versos citados dos Poemas
Inconjuntos de Alberto Caeiro são indicados por P.I. e pela respetiva paginação. Para um confronto
dos testemunhos textuais de O Guardador de Rebanhos, remetemos para esta página do espólio pessoano:
https://purl.pt/1000/1/alberto-caeiro/guardador.html
1
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
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Mariani
Um Husserl heterónimo de Pessoa
“Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia”, porque “O Tejo não é
o rio que corre pela minha aldeia” (PESSOA, 2001: XX, 42 | 2016: 53).
A glória do visível – “não ver senão o visível!” (PESSOA, 2001: XXVI, 48 | 2016:
57), exclama o mestre Caeiro – decreta a ruína inexorável de toda a hermenêutica
filosófica, condenando ao mesmo tempo, e sem apelo, todas as formas reflexivas de
pensamento e, poderíamos mesmo acrescentar, a própria filosofia, incapaz de vencer
a distância que separa o pensamento da vida; incapaz, em última instância, de aderir
ao imediatismo desse laço entre o homem e a vida que faz do homem um ser da
natureza. “Pensar é estar doente dos olhos” (PESSOA, 2001: II, 16 | 2016: 34). E os
filósofos, não por acaso, acrescenta Caeiro com cortante serenidade, são “homens
doidos” que transformam o imediatismo do dado em algo indireto, algo artificial,
irremediavelmente. Como um aviso, a mesma condenação aplica-se sem piedade a
qualquer tentativa filosófica de questionar a ligação entre o homem e a natureza, ao
passo que o mundo “não se fez para pensarmos nele”, “mas para olharmos para ele
e estarmos de acordo” (PESSOA, 2001: II, 16 | 2016: 34). Mesmo antes de qualquer possível
decisão ou ação individual, coletiva ou política – quanto mais não seja devido à tão
propalada “crise ecológica” – não nos apercebemos de que o problema, perante a
natureza, somos nós próprios no preciso momento em que começamos a pensar – nós,
tristes seres, “que trazemos a alma vestida!” (PESSOA, 2001: XXIV, 46 | 2016: 56).
Surge então uma questão, espontânea e, por assim dizer, desesperada, se
quisermos dramatizar o impasse perante o qual a advertência de Caeiro nos coloca:
o que resta à filosofia e aos filósofos, condenados a suportar o fardo, ainda que
emblematicamente, da exceção antropológica? O que resta à filosofia senão a tarefa de
uma contínua autossuperação, de uma espoliação do pensamento para retroceder, em
vez de avançar, para além do próprio pensamento? Grande parte da filosofia do
século XX foi, de resto, confrontada com as exigências desta injunção que, a partir de
Nietzsche, se pode identificar com a crise mais geral da modernidade, cujos motivos
literários e artísticos, bem como filosóficos, veicularam a expressão de um “mal de
viver” acompanhado, de várias maneiras, pelo sentimento de uma perda de
pertença ao mundo em que vivemos – pensemos, por exemplo, em Hofmannstahl,
Rilke, Blanchot, nos movimentos de vanguarda do início do século XX, de Munch a
Schiele, em Camus e em Sartre. Heidegger, a partir da década de 1940, nos seus
cursos sobre Nietzsche e, em particular, nos Entwürfe zur Geschichte des Seins als
Metaphysik, aborda as razões sistemáticas desta crise, que tem raízes mais profundas
do que se poderia imaginar à primeira vista. Na sequência do gesto inaugural de
Descartes, o fundamento metafísico da época moderna residiria numa vontade de
poder que colocaria o homem, único sujeito autêntico, no centro do mundo (HEIDEGGER,
1997). A questão do ser transformar-se-ia na procura de um método destinado a
assegurar o fundamento absoluto e incontroverso da verdade (fundamentum absolutum
inconcussum veritatis), que coincidiria com a evidência de uma egologia elevada à
medida de tudo (cogito ergo sum). O homem, seguro de si e da sua presumível
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Um Husserl heterónimo de Pessoa
singularidade, acabaria por se proclamar senhor de um mundo reduzido à res extensa,
onde o ente não seria mais do que o objeto de uma representação possível, o correlato
de uma relação assimétrica estabelecida em benefício do próprio homem, o “sujeito”,
que, deixando de se submeter à ideia de um criador, reclamaria plenos poderes sobre
o que resta da criação (HEIDEGGER, 1997: 430-431).
Merleau-Ponty, para citar outro ilustre exemplo, partilha o mesmo diagnóstico,
embora partindo de outros pressupostos, invocando a oportunidade de um novo
olhar sobre o mundo, visando fazer justiça à dimensão sensível das coisas, em
alternativa aos limites, senão mesmo à insensibilidade, de que a tradição cartesiana
terá dado provas. Célebres a este respeito são as conferências radiofónicas de 1948,
as Causeries, em que Merleau-Ponty, com a sua caraterística elegância estilística, não
hesita em afirmar:
C’est donc une tendance assez générale de notre temps de reconnaître entre l’homme et les
choses non plus ce rapport de distance et de domination qui existe entre l’esprit souverain et
le morceau de cire dans la célèbre analyse de Descartes, mais un rapport moins clair, une
proximité vertigineuse qui nous empêche de nous saisir comme pur esprit à part des choses
ou de définir les choses comme purs objets [...].
(Exploration du monde sensible : les choses perçues, § 7)
[É, pois, uma tendência bastante geral do nosso tempo reconhecer entre o homem e as coisas já não
aquela relação de distância e de domínio que existia entre o espírito soberano e o pedaço de cera na célebre
análise de Descartes, mas uma relação menos clara, uma proximidade vertiginosa que nos impede de
nos apreendermos como puro espírito separado das coisas ou de definir as coisas como puros objetos].
(Trad. nossa)
Não somos cabeças de anjo aladas e as coisas que estão diante de nós não são objetos
neutros de contemplação desinteressada. Descartes, segundo uma vulgata igualmente
célebre, é acusado de ser o principal responsável por este erro que nos leva a
acreditar que somos senhores de um mundo desprovido de consistência ontológica.
Esta constatação, aparentemente banal, cristaliza um consenso amplamente
partilhado por grande parte da tradição filosófica e fenomenológica contemporânea:
para sair do impasse da modernidade, a filosofia seria obrigada a abandonar de
forma definitiva a grande estação do racionalismo cartesiano. E, neste caso concreto,
a fenomenologia, para recuperar uma relação direta com o mundo, teria de avançar
para além de Husserl, que identifica a própria fenomenologia – a sua fenomenologia
– com uma forma de “neocartesianismo” (HUSSERL, 1991: 44). Ir para além de Husserl
para corrigir o erro de Descartes, para redescobrir a dimensão corpórea do nosso ser
no mundo e devolver ao mundo a concretude que ele merece, como nos ensina por
sua vez Fernando Pessoa, que, identificando-se com a simplicidade desarmante de
Alberto Caeiro, ultrapassa “por baixo” as filosofias do cogito, da consciência e da
intencionalidade – “sou místico”, afirma o guardador de rebanhos, “mas só com o
corpo” (PESSOA, 2001: XXX, 53 | 2016: 60).
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Mariani
Um Husserl heterónimo de Pessoa
O método fenomenológico da ἐποχή, a suspensão da crença na tese da
existência do mundo, as reduções eidéticas e transcendentais que transformam o
próprio mundo no correlato de uma consciência absoluta, não seriam mais do que
os resultados de uma doença intelectual levada ao paroxismo. Husserl, em confronto
com a figura do guardador de rebanhos, não escaparia às tristes fileiras dos “homens
doidos”, os filósofos fatalmente modernos – para citar Heidegger e Merleau-Ponty –
que preferem pensar o mundo em vez de o olhar e de o experimentar. Entre o poeta
e o fenomenólogo, a distância seria intransponível, apesar dos pontos de contacto
que os intérpretes têm tentado evidenciar nas suas leituras cruzadas de Husserl e
Pessoa – dois ilustres contemporâneos, desconhecidos um do outro. Não têm faltado,
por outro lado, tentativas de compreensão fenomenológica da obra pessoana e
mesmo de avaliação do ponto de vista do método da fenomenologia (BRAZ, 2008;
CARNEIRO, 2011; BORBA e SOUZA, 2014). Tentou-se explicar os pressupostos sui generis
do ensino do Alberto Caeiro a partir de uma perspetiva fenomenologicamente
compatível (DE GRAMMONT, 2011); a fenomenologia foi mesmo questionada à luz
das possibilidades de pensamento filosoficamente provocadoras que Pessoa confia
ao mestre dos heterónimos (FRIAS, 2012; GANERI, 2020). Um facto parece, no entanto,
ter-se imposto desde o artigo pioneiro de Bruno LINNARTZ (1966), independentemente
das orientações dos críticos, mais ou menos fenomenologicamente atentos: o programa
husserliano de um “ver puro”, livre de quaisquer pressupostos, se lido à luz do
objetivismo absoluto de que Caeiro é porta-voz, não viria a honrar a radicalidade
das promessas inicialmente feitas pela fenomenologia. Perdido o caminho de regresso,
a variante husserliana erraria em busca de um acesso às coisas, acabando por não
conseguir, por excesso de reflexão, habitar as coisas mesmas. E a realidade, coberta
pelo véu de um idealismo transcendental a que Husserl forçaria a fenomenologia,
reduzir-se-ia a um conjunto de cogitata, aos objetos intencionais de um fluxo de
consciência que acabaria por engolir em si tudo o que está lá fora, no mundo. Dos
versos de Caeiro emergiriam, quando muito, os lineamentos de uma fenomenologia
“pós-husserliana”, como sugere, entre outros, Anibal FRIAS (2012: 62) – no caso da
fenomenologia e, em termos ainda mais gerais, da filosofia ser capaz ou estar mesmo
à altura, como outros argumentaram, de dialogar com Pessoa (cf. BADIOU, 2000).
Cremos, no entanto, que há uma outra forma de abordar, com a devida
cautela, a fenomenologia de Edmund Husserl e o manifesto antifilosófico de Alberto
Caeiro, de modo a detetar uma subtil e não deliberada comunhão de intenções entre
ambos, sem negar a diferença que os separa irredutivelmente. “Comparar”, como se
lê nos Poemas Inconjuntos, não significaria mais do que teimar em não ver o que há
para ver – “comparar uma coisa com outra”, afirma Caeiro, falando de si e de uma
flor, “é esquecer essa coisa” (PESSOA, 2001: P.I., 117; 2016: 117). Centrar-nos-emos,
pois, no sentido algo “antifilosófico”, e abertamente declarado, da fenomenologia
husserliana, em vez de enuclearmos as teses filosóficas da antifilosofia do mestre
dos heterónimos – teses que, se desenvolvidas em termos explícitos, não seguem
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Um Husserl heterónimo de Pessoa
uma direção necessariamente fenomenológica, como o confirma a leitura de José Gil,
que vê em Caeiro uma poética da “diferença absoluta”, certamente mais próxima do
pensamento de Deleuze do que do de Husserl. Centrar-nos-emos no sentido mais
“antifilosófico” e “dogmático” da fenomenologia, reivindicado por Husserl face a
uma heterogeneidade irredutível do ser que exige ser vista e reconhecida – como se
lê já no início da sua obra de 1913, as Ideen zu einer reinen Phänomenologie und
phänomenologischen Philosophie (Sect. I, Cap. I e II), antes de a doutrina transcendental
da experiência se desdobrar em função de uma subjetividade constituinte, eideticamente
entendida, a maior parte das vezes reprovada, senão mesmo repudiada, pelos
seguidores de Husserl e, não menos importante (sem que a referência a Husserl
apareça explicitamente), por António Mora, semi-heterónimo de Fernando Pessoa, o
discípulo mais abertamente “metafísico” de Caeiro.2 Optaríamos, por outras palavras,
por uma leitura caeiriana de Husserl que ganharia, a nosso ver, ainda mais crédito
à medida que a fenomenologia, ao tornar-se transcendental, parece contradizer as
promessas de um regresso às “coisas mesmas”. Optaríamos, assim, por um Husserl
heterónimo de Pessoa, em busca de uma afinidade subterrânea entre a atitude
poética e a atitude fenomenológica; entre aquele que, sem reflexão, nada mais quer
do que ver e viver poeticamente e aquele que, por outro lado, questionando de forma
reflexiva o que é ver, aspira a apreender tudo o que é dado e que, de outro modo,
sem a fenomenologia, permaneceria invisível.
Filosofia sem filosofia
Partamos do princípio de todos os princípios, a “intuição”, que para Husserl não é outra
coisa senão um ver imediato, um trazer à presença – “em sua efetividade de carne e
osso”, leibhaftig – o que está diante de nós:
Am Prinzip aller Prinzipien: daß jede originär gebende Anschauung eine Rechtsquelle der
Erkenntnis sei, daß alles, was sich uns in der “Intuition” originär, (sozusagen in seiner
leibhaften Wirklichkeit) darbietet, einfach hinzunehmen sei, als was es sich gibt, aber auch
nur in den Schranken, in denen es sich da gibt.
(HUSSERL, 1976: 44)
[Ao princípio de todos os princípios: toda intuição doadora originária é uma fonte de legitimação do
conhecimento, tudo que nos é oferecido originariamente na “intuição” (por assim dizer, em sua
efetividade de carne e osso) deve ser simplesmente tomado tal como ele se dá, mas também apenas nos
limites dentro dos quais ele se dá.]
(Trad. port., 2006: 69, ligeiramente modificada)
O “princípio de todos os princípios” – explica Husserl no famoso § 24 das Ideen I – é
tal porque é anterior a qualquer teoria, estabelecendo o fundamento “pré-teórico” e,
2
Ver, a este respeito, o comentário de FRIAS (2012: 63).
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Um Husserl heterónimo de Pessoa
neste sentido, “pré-filosófico” sobre o qual se constitui qualquer tipo de relação com
o mundo em que vivemos. O “princípio de todos os princípios” indica o início – a
que Husserl chama de “absoluto” (HUSSERL, 1976: 43) – a partir do qual se desdobra
a teoria e, consequentemente, a ciência que visa explicar os dados que a experiência
nos oferece de acordo com o domínio em que atuamos. Quer se trate de coisas
materiais ou de seres vivos, da realidade espaciotemporal das ciências naturais, do
mundo social ou das entidades abstratas das ciências formais, do imaginário ou mesmo
do irreal enquanto campo de pura possibilidade desprovido de qualquer posição de
existência, o conhecimento realiza-se sempre e necessariamente em função de uma
esfera objetual inerente a uma “região do ser”, da qual deriva um tipo de experiência.
Este é, aliás, um dos sentidos possíveis da correlação que a intencionalidade nos
permite descrever em todo o seu alcance: a experiência, entendida em geral, e, por
extensão, a ciência, fundam-se no dado que constitui a sua fonte de legitimação,
qualquer que seja o quadro de referência. Uma teoria científica que se queira legítima
não pode, pois, fazer outra coisa senão elaborar sob forma mediada, de forma
predicativa, aquilo que é diretamente oferecido por uma intuição preliminar, em
virtude da qual o domínio que pretende investigar é atestado.
O “princípio de todos os princípios” atua, inelutavelmente, como ponto de
partida e, ao mesmo tempo – poderíamos acrescentar –, como princípio de fidelidade
ao que nos é dado e ao que somos chamados a exprimir tal como é e tal como é dado;
fixa o ponto de ancoragem que protege o imediatismo da visão das derivas da teoria
que, se desvinculada de um ponto de apoio concreto, nos levaria a ver erradamente
o que não está lá ou, então, a não apreciar plenamente tudo o que é dado a ver. Para
o fenomenólogo que aspira a aderir às coisas, mesmo antes de as interpretar e
mesmo de refletir, como para o guardador de rebanhos ou, se quisermos, para o
guardador do ser – num sentido totalmente husserliano – a dificuldade reside em
aprender a “ver, distinguir e descrever o que está diante dos olhos” (HUSSERL, 1976:
2), libertando-se dos constrangimentos do hábito, da tradição e, não menos importante,
da filosofia, negativamente entendida se vinculada à autoridade de um ipse dixit ou
enredada em preconceitos latentes, assumidos acriticamente. Estes preconceitos
conduziriam, em princípio, a duas consequências extremas, ambas igualmente
falaciosas, uma oposta à outra: privar os conceitos livremente criados pelo nosso
pensamento de qualquer forma de intuição, fazendo-os passar, sem qualquer
verificação, por coisas efetivamente dadas; velar os olhos perante a riqueza do ser,
limitando a nossa visão ao imediatismo de um dado que só seria considerado válido
se confirmado empiricamente. “Überall ist die Gegebenheit” afirma Husserl em 1907
(HUSSERL, [1973]: 72) – a doação está em todo o lado, e pouco importa se o que é dado é
real ou fictício, percebido ou apenas imaginado como no caso do homem que, ao
fantasiar, sonha ser pastor sem nunca ter guardado um rebanho – “O rebanho são
os meus pensamentos” – afirma Alberto Caeiro – para logo acrescentar: “E os meus
pensamentos são todos sensações” (PESSOA, 2001: IX, 31; 2016: 47). A transcendência
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Mariani
Um Husserl heterónimo de Pessoa
do objeto inscreve-se na imanência da vivência, como ensina o princípio fenomenológico
da intencionalidade que Pessoa, através de Caeiro, parece quase querer radicalizar.
O que seria, afinal, a essência de uma flor senão o facto de ser sentida? O significado
de um fruto reside, antes de mais, nos sentidos que o colhem e, uma vez colhido, o
fruto, ou melhor, a sua forma, como diria Aristóteles, está na alma, intencionalmente,
que é em potência todos os seres (De An. 431b). “Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la
| E comer um fruto é saber-lhe o sentido” (PESSOA, 2001: IX, 31; 2016: 47) – passando
ao ato, a alma apropria-se da coisa mesma, em virtude de uma intuição que fornece
ao intelecto uma base sobre a qual se pode erguer. Como refere uma das fórmulas
mais conhecidas da tradição fenomenológica, a “consciência” é, enquanto tal,
“consciência de algo” e “algo”, transformando-se no correlato objetivo de um ato
intencional, é eo ipso “sentido”, “percebido”, “pensado”, “imaginado” ou mesmo
apenas “sonhado”.
É por isso que Husserl nos convida a fazer o gesto de uma “ἐποχή filosófica”
(HUSSERL, 1976: § 18) antes mesmo da fenomenologia começar – uma ἐποχή que não
se confunde com a ἐποχή propriamente fenomenológica, enquanto momento
posterior do método que, suspendendo a crença na tese da existência do mundo,
permitiria transformar tudo o que é em “fenómeno”. Trata-se de uma ἐποχή sui
generis dirigida à filosofia tout court, à qual os comentadores têm dedicado uma
atenção marginal nas suas leituras da obra de 1913 e que, para Husserl, consistiria
numa suspensão programática do juízo sobre a própria possibilidade da filosofia.3
Neste sentido, poderíamos afirmar que a “filosofia”, se é fenomenologicamente
possível, tem de começar “sem filosofia”, pelo menos se seguirmos à letra o enredo
do argumento que Husserl desenvolve na primeira secção das Ideen I:
Die philosophische ἐποχή, die wir uns vornehmen, soll, ausdrücklich formuliert, darin
besten, daß wir uns hinsichtlich des Lehrgehaltes aller vorgegebenen Philosophie vollkommen
des Urteils enthalten und alle unsere Nachweisungen im Rahmen dieser Enthaltung
vollziehen.
(Husserliana, Hua III/1: 33)
[A ἐποχή filosófica que nós nos propomos deve consistir expressamente nisto: abster-nos
inteiramente de julgar acerca do conteúdo doutrinal de toda filosofia previamente dada e
efetuar todas as nossas comprovações no âmbito dessa abstenção”].
(Trad. port., 2006: 60)
Mesmo a formulação do “princípio de todos os princípios” – vale a pena sublinhá-lo –
insere-se no âmbito pré-filosófico desta ἐποχή peculiar, o que implica uma outra
Como exemplo, citamos o volume Commentary on Husserl’s Ideas I (STAITI, 2015), entre os mais
articulados e abrangentes, onde, no entanto, não há uma única referência ao significado desta ἐποχή
específica. O mesmo se aplica aos dois números monográficos mais recentes da revista Phainomenon.
Journal of Phenomenological Philosophy inteiramente dedicados às Ideen I (ALVES e MARIANI, 2022).
3
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injunção, formulada um pouco mais adiante, no § 19 das Ideen I, a “ausência de
pressupostos”, como complemento do famoso lema do “regresso às coisas mesmas”.
Contra qualquer metodologia que proceda de cima para baixo, contentando-se
com conceitos vazios, com “palavras puras e simples” que não encontram uma
contrapartida efetiva no plano da evidência, o caminho fenomenológico procede de
forma rigorosa de baixo para cima, excluindo do seu campo de ação todas as
afirmações que não sejam intuitivamente justificáveis (HUSSERL, 1984: § 2). A mesma
prescrição aplica-se, consequentemente, às doutrinas e correntes filosóficas entendidas
como factos historicamente atestados que, uma vez colocados entre parênteses, se
reduzem a meras convicções de ordem concetual, partilhadas pelos homens de uma
dada época e resultantes de uma dada “visão do mundo”. Seria, no entanto,
precipitado interpretar a função desta ἐποχή, tal como Husserl a entende, como a
simples aplicação em chave histórica de uma ausência, mesmo total, de pressupostos.
Para além do sentido crítico, por assim dizer, do princípio que exige que não se
recorra a afirmações não comprovadas para assegurar os fundamentos de um certo
conhecimento autêntico, a ἐποχή filosófica assume um sentido “dogmático” que
Husserl afirma apertis verbis. Espírito crítico e dogma, por paradoxal que pareça,
implicam-se mutuamente na medida em que o exame que o fenomenólogo impõe a
todo o tipo de conhecimento se torna possível pelo recurso ao “dado intuitivo”, que
precede todo o “pensamento teorizante” e, portanto, toda a teoria, toda a ciência e
toda a filosofia (HUSSERL, 1976: § 20). Antes mesmo de questionar as coisas que se
oferecem à nossa visão, devemos deixar que as coisas apareçam e se deem pelo que
são, com base numa atitude de abertura radical. “Não basta abrir a janela para ver
os campos e o rio” diria por sua vez Alberto Caeiro, para logo acrescentar: “é preciso
também não ter filosofia nenhuma” (PESSOA, 2001: P.I., 158; 2016: 118). A ἐποχή
filosófica exige, mutatis mutandis, uma disposição semelhante: a possibilidade da
filosofia, que Husserl, apesar de tudo, continua a defender ao contrário do mestre
dos heterónimos pessoanos, depende do que precede o pensamento, do outro do
pensamento que nos dá a pensar. No § 20 das Ideen I encontramos, à guisa de
conclusão, a seguinte afirmação com um sabor abertamente programático:
[…] nehmen wir unseren Ausgang von dem, was vor allen Standpunkten liegt: von dem
Gesamtbereich des anschaulich und noch vor allem theoretisierenden Denken selbst, von alle
dem, was man unmittelbar sehen und erfassen kann.
(Husserliana, Hua III/1: 38)
[(...) nós outros temos nosso ponto de partida naquilo que se encontra antes de todo ponto de vista: na
esfera completa do que é dado intuitivamente e antes de todo pensar teorizante, em tudo aquilo que
pode ser visto e apreendido imediatamente.]
(Trad. port., 2006: 64)
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Um Husserl heterónimo de Pessoa
O dogma do intuicionismo é, enquanto tal, absoluto, não porque exclua qualquer
relativismo ou perspetiva – como se uma intuição “pura” pudesse oferecer-se de
forma independente de um contexto – mas porque contempla, na sua formalidade,
todos os pontos de vista possíveis, encerrando em si a “esfera completa do que é
dado intuitivamente”. Basta, aliás, considerar a formulação através da qual Husserl
enuncia, algumas páginas mais adiante, o “princípio de todos os princípios” que se
refere a toda (“jede”) a intuição doadora originária – e não à intuição tout court, com
o artigo definido. A intuição, embora formalmente única enquanto princípio, é
contextualmente múltipla e é múltipla porque é “originária”, servindo de origem a
uma certa experiência e, consequentemente, a um determinado tipo de conhecimento
que varia consoante a esfera em que se constitui a nossa relação com o mundo.
Como Husserl também afirma no § 24, exemplificando a função gnosiológica
diretiva que a intuição assume, para as ciências naturais é a experiência compreendida
em termos empíricos e, em última análise, a perceção que oferece os dados originais
em virtude dos quais construímos os enunciados de uma teoria que pretende explicar,
com base numa lei causal, os dados factualmente observados. O mesmo se aplica às
chamadas “ciências das essências” que se ocupam das propriedades específicas de
algo individual, o quid, que pode ser “posto em ideia” e intuitivamente apreendido
em termos de uma generalidade de caráter necessário, já não factualmente contingente,
isto é – para usar a formulação husserliana – o eidos como “objeto de uma nova
espécie”, inerente a um contexto de relações que se articula em generalidades de
ordem superior (HUSSERL, 1976: § 3). Aqueles, por outro lado, que se ocupam das
ciências sociais – para acrescentar um outro exemplo, examinado em pormenor
apenas no segundo volume das Ideen – procurarão ligações já não causais, mas
motivacionais, atestáveis num contexto de sentido completamente diferente, onde a
natureza é composta não só de coisas, mas também de corpos animados e de objetos
aos quais nós, homens deste mundo, atribuímos um valor, um uso em vista de
determinadas finalidades, agindo sob o impulso de desejos e aspirações, interagindo
uns com os outros, criando relações comunitárias que, partindo de um espaço
partilhado, transformam as coisas em bens de vária ordem e a natureza num mundo
culturalmente estruturado, no qual se sedimentam um conjunto de hábitos, uma
tradição e, finalmente, uma história.
Teremos, então, tantos tipos de intuição doadora originária como tantas
regiões do ser. Regiões que podemos entender materialmente, como no caso do
mundo natural, do mundo vivo ou do mundo social, cujos conteúdos são especificados
em função de uma esfera de objetividade, ou, então, formalmente, se considerarmos
as conexões entre os conteúdos para além dos próprios conteúdos – as conexões que
vêm definir as categorias da ontologia formal, dentro das quais encontramos a forma
de todas as ontologias possíveis. O “objeto em geral”, universalmente compreendido,
é realizado, ou melhor, nas palavras de Husserl, “desformalizado” nos objetos da
experiência, através de uma “saturação” (Ausfüllung) do elemento formal que se
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Um Husserl heterónimo de Pessoa
aplica à especificidade dos âmbitos a partir dos quais as respetivas regiões do ser
são constituídas. Seria, no entanto, um erro – como Husserl se apressa a explicitar –
considerar o “algo vazio” da ontologia formalmente entendida como o género supremo
ao qual todos os objetos possíveis devem ser atribuídos. A noção de “objeto” não é
mais do que “uma designação para configurações diversas, mas inter-relacionadas”
(HUSSERL, 1976: 21); indica tudo o que podemos experimentar e, ao mesmo tempo, a
essência formal da própria experiência irredutível, em princípio, a um único campo
de investigação ou a uma única fonte de legitimação. O conceito de objeto não
poderia, aliás, ascender a um papel indiscriminadamente privilegiado, ao contrário
do que tem sido sugerido por mais do que um intérprete de Husserl, se aceitarmos
o primado da intuição, que opera em virtude de uma racionalidade que, por sua vez,
varia em função dos contextos em que se realiza.4 Den allgemeinen Gegenstandsbegriff
habe ich ja auch nicht erfunden – “Tampouco fui eu que inventei o conceito geral de
objeto”, admite Husserl com extrema simplicidade, defendendo-se da acusação de
“realismo platónico” quando ideias e essências, como realidades naturais, são reunidas
sob a designação de “objeto” segundo o sentido do “discurso científico geral” (HUSSERL,
1976: 40).
“Eu vejo”
Em termos equivalentes poderíamos, portanto, dizer: há tantos âmbitos de objetos e
regiões do ser como intuições doadoras originárias. Trata-se de noções estreitamente
relacionadas (“intuição”, “doação”, “objeto”, “região” e “ser”), como atesta a primeira
secção da obra de 1913, dedicada a uma exposição do vínculo de inseparabilidade
entre “facto” e “essência”, a partir da qual Husserl enucleia as estruturas que
regulam a ontologia, ou melhor, as ontologias, rigorosamente no plural, subjacentes
a cada esfera regional. Tudo o que é dado hic et nunc, factualmente, pode apresentarse noutro lugar ou noutro tempo e, sob certas condições, não existiria. O “poder ser
de outro modo” (Anderssein) que caracteriza a contingência dos factos coincide com
o seu modo específico de ser (Sosein); denota as suas propriedades fundamentais que
podemos generalizar ao ponto de apreender os elos que regulam as relações entre
os próprios factos. A contingência remete, então, para uma necessidade que estabelece
o seu limite, e o objeto, individualmente entendido, por mais mutável que seja, não
pode ser assimilado a algo irrepetível, a uma mera haecceitas desprovida de predicados.
O “indivíduo”, para usar a formulação husserliana, enquanto singularidade concreta,
traz em si “uma essência, um eidos” que podemos apreender na sua pureza. E tudo
A título de exemplo, referimo-nos à crítica da fenomenologia husserliana elaborada por Jean-Luc
Marion em favor de uma fenomenologia da doação que libertaria o conceito de Gegebenheit do seu
supostamente indevido achatamento no conceito de objeto (Objekt / Gegenstand). Entre as várias
referências possíveis na obra de Marion, assinalamos: Reprise du donné (MARION, 2016).
4
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o que pertence à essência de um indivíduo pode eo ipso pertencer a outro indivíduo
(cf. HUSSERL, 1976: 9).
Consideremos, a título de exemplo, uma coisa que se manifesta através de
certas propriedades como a duração temporal, a forma e a extensão – propriedades
que podemos apreender intuitivamente ou fixar como elementos comuns, se
compararmos essa coisa, individualmente, com outras. Podemos assim, por
generalização, fazer emergir os predicados e as relações em virtude dos quais se
configura uma dada região ontológica, como a natureza física composta por coisas
materiais ou, mutatis mutandis, o mundo social, cujos indivíduos de referência já não
são coisas tout court, mas sim pessoas que reconhecemos através de uma modalidade
específica da intencionalidade, a empatia, graças à qual compreendemos os seus
comportamentos, ações e interações. Cada “região” é determinada pelos indivíduos
que a compõem; é, por outras palavras, uma região de indivíduo eideticamente
definido. Como Husserl não deixa de sublinhar, o “indivíduo” serve de “objeto
originário” (Urgegenstand) em função do qual, por variação, se formam todas as
outras objetividades possíveis; é o núcleo de origem com base no qual se ramificam
as ligações que dão unidade à região correspondente. Se examinarmos uma coisa à
luz das suas propriedades materiais, estaremos perante estados de coisas, predicados
e características de ordem material, e a região em causa será determinada através de
relações causais que permitem interpretar o que se manifesta como a objetividade
de um mundo constituído materialmente; a estrutura do mundo social, pelo contrário,
articula-se a partir de propriedades, características e relações de ordem pessoal,
interpessoal ou comunitária, quando é a pessoa que funciona como objetividade de
referência.5. A cada região cabe, portanto, o seu próprio objeto como termo último
que não pode ser mais dividido, a partir do qual se pode estabelecer uma ordem de
relações e detetar uma essência segundo o sentido de uma legalidade intrínseca ao
âmbito em análise. “Toda essência”, afirma Husserl, “insere-se numa escala eidética”
(HUSSERL, 1976: 25) e, por conseguinte, a essência mais geral está “imediata ou
mediatamente contida na essência do particular” (HUSSERL, 1976: 26). No vermelho
apreendemos a qualidade que nos permite generalizar uma forma determinada
sensivelmente, passando do vermelho entendido singularmente – o “isto-aqui”
(Dies-da), para usar o vocabulário husserliano – para o “vermelho” como um género
que se insere no género mais amplo da “qualidade visual”. O mesmo se aplica ao
género da extensão que podemos encontrar em qualquer figura espacial. A qualidade
sensível e a extensão vêm, por sua vez, a constituir dois momentos abstratos, Husserl
diria “não independentes”, de um “concreto”, a coisa que nos aparece em termos
Cf. HUSSERL (1976, 29): “Das Individuum ist der reinlogisch geforderte Urgegenstand, das logisch
Absolute, auf das alle logischen Abwandlungen zurückweisen” [“Indivíduo é o proto-objecto
requerido pela lógica pura, o absoluto lógico, a que se refere todas as variações lógicas”] (Trad. port.,
2006: 54). Para um exame mais aprofundado do conceito de “indivíduo” no contexto da
fenomenologia husserliana, remetemos para as análises de MAJOLINO (2015).
5
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fenomenais, como uma “árvore” ou uma “flor” enquanto “indivíduos” de um “género
supremo” ou, o que é o mesmo, de uma região do ser (HUSSERL, 1976: §§ 14-15),
a “natureza” no sentido meramente naturalista que poderíamos mesmo definir, nas
palavras de Caeiro, como uma “natureza sem gente” (PESSOA, 2001: I, 13; 2016: 31).
Assim se desenha uma teia de conexões eideticamente relevantes como
fundamento de todas as ontologias, que preordena os modos como qualquer esfera
de objetualidade é composta. Husserl fala, a este respeito, de uma “estrutura formal”
(formal Verfassung) que engloba na sua generalidade todo o espetro de distinções
inerentes aos conceitos de objeto e região (cf. HUSSERL, 1976: 21). Trata-se de uma
estrutura do ser – poderíamos acrescentar – que se ergue à imagem de uma escada
(Stufenreihe), que poderia ser percorrida por degraus de baixo para cima e, viceversa, de cima para baixo – das singularidades aos géneros supremos, passando
pelas espécies e pelos géneros intermédios. Aliás, não seria ousado recorrer à célebre
expressão kantiana de uma arquitetónica, organizada em função de um objeto
contextualmente preferencial, o “indivíduo”, cujo privilégio (Vorzug) reside em ser
a referência orientadora para a constituição de uma esfera específica de pertença.
“Constatações assim efetuadas”, afirma Husserl na conclusão desta primeira secção
das Ideen I, “são de uma generalidade referida a todas as regiões abrangentes do ser”
e fazem parte, em princípio, da filosofia quando concebida nos termos de uma
possibilidade ideal, independentemente do corpus historicamente estabelecido das
doutrinas filosóficas (HUSSERL, 1976: 33). Dito de outro modo, e em termos
inequívocos, a ideia da filosofia radicaria nas coisas que podemos apreender e ver –
desde que compreendamos as próprias coisas à luz da “estrutura fundamental”
(Grundverfassung) que inerva, eideticamente, tudo o que é. Onde podemos começar
a refletir filosoficamente, afinal, senão a partir do que cai sob o nosso olhar,
direitamente, quer se trate de qualquer coisa que experimentamos, sem necessidade
de mediação concetual, quer se trate de uma sensação, de uma emoção, de um ato
de imaginação ou, para o dizer em termos gerais, de uma vivência, e o mesmo se
aplica a uma pessoa, um amigo ou um estranho que encontramos no mundo em que
vivemos? Impõe-se, portanto, uma tarefa de grande envergadura, que abre o início
da filosofia propriamente dita, construída sobre bases fenomenológicas:
Im Umkreise unser individuellen Anschauungen die obersten Gattungen von Konkretionen
zu bestimmen, und auf diese Weise eine Austeilung alles anschaulichen individuellen Seins
nach Seinsregionen zu vollziehen, deren jede eine [...] Wissenschaft (bzw. Wissenschaftsgruppe)
bezeichnet.
(HUSSERL, 1976: 32)
[Determinar os gêneros supremos de concreções no círculo de nossas intuições individuais e, desta
maneira, levar a cabo uma distribuição de todos os seres individuais intuídos segundo regiões do ser,
cada uma das quais designando por princípio [...] uma ciência (ou grupo científico).]
(Trad. port., 2006: 40)
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Seria, então, possível derivar de um núcleo de positividade originalmente apreensível,
as espécies, os géneros e os géneros supremos que traçam o perímetro da investigação
científica. E a intuição, em conformidade com as categorias lógicas que estão na base
de uma ontologia possível, diferenciar-se-ia numa multiplicidade de figuras inerentes
à essência dos objetos que, por sua vez, se agrupam em domínios de pertença.
Teremos, portanto, tantos tipos regionais de intuições quantas as regiões
fundamentais do ser e, na base de cada ciência, juízos imediatamente evidentes que
aderem ao que é dado na intuição.6 “O ver imediato”, acrescenta Husserl a este respeito,
“não meramente o ver sensível, empírico, mas o ver em geral, como consciência doadora
originária, não importa qual seja a sua espécie, é a fonte última de legitimidade de todas
as afirmações racionais” (HUSSERL, 1976: 36). Por outro lado, seria “absurdo” – lemos
algumas linhas mais adiante – “não conferir valor algum ao ‘eu o vejo’ [Ich sehe es]”,
na tentativa de legitimar o sentido de qualquer afirmação (HUSSERL, 1976: 36). “Eu
vejo”: eis, em suma, a razão, tão simples quanto radical, que faz do “princípio de
todos os princípios” um “património” (Bestand) inalienável da filosofia no seu estado
nascente, pouco importa se se trata de um ver percetivo ou imaginativo, se o que é
dado é uma fantasia devaneante ou a realidade empírica; o “eu vejo”, continua o
filósofo, “é chamado a servir de fundamento no sentido autêntico da palavra”
(HUSSERL, 1976: 44). Negá-lo seria contradizer-se, como, aliás, acontece com o empirista
que, refletindo sobre a possibilidade de conhecer, circunscreve o âmbito da intuição
ao sentido de uma experiência considerada naturalisticamente. Se a realidade se
limitasse ao que é factualmente dado, seríamos, por outro lado, forçados a reconhecer
que a exigência de um retorno às coisas mesmas coincidiria com a exigência de uma
redução de todo o conhecimento a uma base experimental; a ciência em geral e a
ciência empírica seriam uma e a mesma coisa (HUSSERL, 1976: § 19). Basta, no entanto,
perguntarmo-nos qual é o princípio de tal sobreposição para compreendermos o
equívoco a que se expõe o empirista, quando avança uma tese que ultrapassa o
domínio dos factos, com a pretensão de que é incondicionalmente válida. Contra o
empirismo – que, para Husserl, deve ser considerado, mais precisamente, como uma
variante do ceticismo – o antídoto reside numa reflexão capaz de dar conta do
progresso positivo das ciências, acolhendo as objetividades do conhecimento onde
Cf. Husserliana, Hua III/1, § 19, 36: “Die fundamentale Regionen von Gegenständen und korrelativ
die regionalen Typen gebender Anschauungen, die zugehörigen Urteilstypen und endlich die
noetischen Normen, welche für die Begründung von Urteilen solcher Typen jeweils gerade diese und
keine andere Anschauungsart fordern – all das kann man nicht von obenher postulieren oder dekretieren;
man kann es nur einsichtig feststellen, und das heißt selbst wieder: durch originär gebende
Anschauung ausweisen, und es durch Urteile, die sich dem in ihr Gegebenen getreu anpassen,
fixieren” [“As regiões fundamentais de objetos e, correlativamente, os tipos regionais de intuições doadoras, os
tipos correspondentes de juízos e, finalmente, as normas noéticas, que exigem, para a fundação de juízos desses
tipos, exatamente esta e nenhuma outra espécie de intuição – tudo isso não pode ser postulado ou decretado de
cima para baixo, mas apenas constatado com evidência, o que significa mais uma vez: mostrar em intuição
doadora originária e fixar por juízos que se ajustam fielmente àquilo que nela é dado”] (Trad. port., 2006: 62).
6
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elas realmente se encontram (HUSSERL, 1976: 46); no deixar-se guiar pelas coisas para
não cair no impasse de uma “teoria do conhecimento” incapaz de “distinguir as
espécies fundamentais de dados e de descrevê-las segundo suas essências próprias”
(HUSSERL, 1976: 41). Aqui reside a tarefa da filosofia que, ao mesmo tempo,
determina a sua natureza: refletir, para conseguir apreciar a legitimidade originária
de todos os dados; para assegurar o alcance e a extensão do conhecimento para
depois fixar o valor dos resultados a que as ciências chegam – com base numa atitude
diametralmente oposta ao ceticismo que, em termos ainda mais gerais, antes de ser
uma doutrina filosófica, representaria uma atitude de pensamento dirigida contra a
própria possibilidade da filosofia (HUSSERL, 1976: § 26). À fenomenologia cabe,
então, uma missão precisa para não perder o contacto com o que, por assim dizer,
nos dá a pensar: o regresso à origem, no decurso de uma reflexão em que o pensamento
é chamado a voltar-se sobre si próprio. Por meio de uma série de operações que
Husserl só iniciará a partir da segunda secção das Ideen I (a ἐποχή fenomenológica,
a suspensão da tese da existência do mundo, as reduções eidética e transcendental),
a análise transforma-se numa interrogação que não consiste senão em querer ver o
ver, de modo a tornar claro o que de outro modo permaneceria latente: as atuações
intencionais da subjetividade transcendental e eideticamente reconfigurada, em
virtude da qual se constitui o sentido de tudo o que experimentamos – o sentido que
só podemos apreender questionando e, consequentemente, problematizando o dogma
das “coisas mesmas”, do qual procede o pensamento, o conhecimento e toda a reflexão
filosófica sobre o conhecimento.
Ver ou ver-se?
Seria esta, então, a diferença entre o fenomenólogo e o poeta? A filosofia, refundada
fenomenologicamente, aspiraria a poder apreender reflexivamente tudo o que é, ao
passo que a simplicidade desarmante do guardador de rebanhos permaneceria voltada
irrefletidamente para o Grand Dehors, onde o sujeito não é mais do que a vibração de
uma natureza sem unidade na qual se dispersa a multiplicidade fervilhante das suas
partes. Para o “neopaganismo moderno” expresso nos versos de Alberto Caeiro, só
o ver conta, face a uma redução radical do sentido à existência que transforma o
gesto poético numa espécie de tautologia, numa atitude de encarar o mundo sem
mais perguntas e sem espanto: “O que nós vemos das coisas são as coisas” (PESSOA,
2001: XXIV, 46; 2016: 56). O diálogo entre o recuo para uma interioridade redefinida
fenomenologicamente e o impulso de uma poética da exteriorização seria, no entanto,
irremediavelmente enviesado se nos detivéssemos na letra de O Guardador de Rebanhos,
apesar de Alberto Caeiro proibir abertamente a procura de uma suposta profundidade
da linguagem para além do imediatismo do falado – “Caeiro tem uma disciplina: as
coisas devem ser sentidas tal como são”, lemos num texto datável de 1915 sobre o
“sensacionismo” enquanto estilo poético, assim como de vida, de quem elege a
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“simplicidade” como regra de ouro, substituindo o pensamento pelo dado imediato
de uma sensação pura e direta (PESSOA, 1966, 350; 2012: 308). É preciso não esquecer,
aliás, que o objetivismo absoluto na chave de Caeiro se inscreve no prisma do
heteronimismo em que se refrata uma constelação de personalidades típica da escrita
pessoana, dando origem a um “drama” – como Pessoa afirma na “Tábua bibliográfica”
de 1928 – composto não em atos, mas “em gente” (Presença, n.º 17). O heteronimismo
situa a obra do autor “fora da sua pessoa”: Alberto Caeiro, juntamente com os seus
discípulos, Ricardo Reis e Álvaro de Campos, não são meros alter egos, mas outras
tantas individualidades que fazem de Pessoa o ortónimo dos seus heterónimos,
assim contribuindo, cada um com o seu estilo, para dissimular e diversificar a figura
autoral a ponto de a tornar inseparável das vozes que a animam – ao contrário do
artifício do pseudónimo que, salvo o nome, coincidiria com o “autor em pessoa”. O
heterónimo encarna uma “personalidade literária”, numa aceção do termo – convém
recordar – introduzida por Pessoa para qualificar uma “totalidade textual” que muda
de sentido consoante o nome a que se associa: “Serei eu próprio toda uma literatura”,
lê-se noutro fragmento de 1915, onde Pessoa acrescenta “não publico tudo sob o meu
nome, porque isso seria contradizer-me” (PESSOA, 2009: 296 e 576; 2012: 142).
Em virtude de um princípio de atribuição – o “efeito-heterónimo”, como afirma
Fernando Cabral Martins – pelo qual o sujeito da enunciação se dissolve no enunciado,
é inevitável vincular um nome ao texto para ler a obra pessoana, na medida em que
a função autoral é entendida como um efeito do próprio texto (cf. MARTINS, 2012: 2223). A heteronímia – continua Cabral Martins – constitui, neste sentido, um vasto
repertório de formas em que se exprimem as flutuações, as aventuras e as desventuras,
da subjetividade, concebida através de um processo de proliferação do “espaço
interior” que destina a quase todas as páginas a construção de um sujeito singular
(MARTINS, 2012: 31); um sujeito que só se pode manifestar intermitentemente, no
intervalo entre os diferentes sujeitos que a escrita heteronímica instaura (cf. GIL,
1993) – à luz do que Pessoa parece sugerir na estrofe de um poema ortónimo de 1933:
Temos, todos que vivemos,
Uma vida que é vivida
E outra vida que é pensada,
E a única vida que temos
É essa que é dividida
Entre a verdadeira e a errada.
(PESSOA, 1960: 107)
O resultado desta oscilação, entre a simulação e a intensificação, da subjetividade
reside não só na encenação de “poetas-personagens”, como então sublinhava Octavio
PAZ (1965: 19), mas também na criação de “poetas-obras”, de acordo com o sentido
de “poesia dramática” que simboliza, para Pessoa, a realização da arte tout court –
como refere numa carta a João Gaspar Simões, a 11 de dezembro de 1931 (cf. PESSOA,
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1960: 714). “O ponto central da minha personalidade como artista é que sou um
poeta dramático”, Pessoa confessa, identificando as raízes do seu impulso numa
certa sobreposição entre a “exaltação íntima do poeta” e a “despersonalização do
dramaturgo”, com vista a um fim essencialmente estético: ser capaz de sentir
dissociado de si mesmo, construindo com base em diferentes estados de alma a
expressão de uma outra personalidade, de um eu inexistente – mas não insincero –
que sente e escreve de forma alheia ou, no limite, antitética ao eu original do poeta.
Escrever “dramaticamente” é sentir “na pessoa de outro”, confidencia Pessoa
em 1915 a Armando Cortês-Rodrigues, usando o exemplo de Shakespeare (PESSOA,
2009: 356; 2012: 138); um exemplo significativamente retomado num texto posterior,
provavelmente de 1932, em que Shakespeare é definido nos termos de um “supremo
despersonalizado” e Hamlet é transformado de personagem de um drama num
drama por si só ou, nas palavras de Pessoa, numa “simples personagem, sem drama”
que já não faz parte de um todo, com um estilo e uma visão próprios, através dos
quais se exprime o que o poeta não sente (PESSOA, 1966: 107-108; 2012: 269). Seria,
pois, ilegítimo, acrescenta Pessoa, procurar nas ficções de Hamlet uma definição dos
sentimentos ou pensamentos de Shakespeare, a não ser que se pretenda rebaixar
Shakespeare à categoria de “mau dramaturgo” – uma vez que o mau dramaturgo se
deixa desmascarar com demasiada facilidade, projetando-se, como uma sombra, nas
suas próprias personagens ficcionais (PESSOA, 1966: 108; 2012: 270).
Eis, em suma, os trilhos da chamada “viagem heteronímica”, imaginação e
despersonalização, através dos quais o eu se refrata numa variedade de figuras que
já não podem ser recompostas numa única singularidade, embora – é importante
notar – os críticos nem sempre tenham estado de acordo na interpretação do
significado deste fenómeno literário. Apesar das advertências de Pessoa para que
não se confundisse “arte” e “vida”, não faltaram exegeses a partir da psicopatologia,
auxiliadas, quase paradoxalmente, pelo próprio Pessoa que, ainda que en passant,
indicou a histeria e a neurastenia como possíveis etiologias do processo heteronímico
(SIMÕES, 1950). Recorrendo às contradições de uma época de crise, tentou-se também
uma interpretação sociológica, equiparando a proliferação de heterónimos a uma
espécie de fuga do mundo (SACRAMENTO, 1959). Procurou-se ainda garantir uma
unidade temática e estilística à poética pessoana através de uma abordagem de
índole histórico-literária que foi buscar os seus antecedentes e influências (COELHO,
[1949] 1963). A partir da década de 1970, optou-se finalmente por um paradigma
hermenêutico alternativo que reconheceu a escrita heteronímica como uma
expressão poética a pleno título, já não associada a um dispositivo literário exterior
ao texto (LOURENÇO, 1973). “Pessoa é heteronímia”, afirma, entre outros, Antonio
TABUCCHI, 1990: 24), na linha das tendências quase unânimes da crítica mais recente.
E a heteronímia, longe de ser uma criação a partir do nada, corresponderia ao
acontecimento que torna possível a proliferação ontológica da subjetividade, em
virtude da qual o ego, para se atestar, é paradoxalmente forçado a tornar-se plural;
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a viver várias vidas para viver verdadeiramente, para libertar, através da arte, a
potencialidade da vida, arrancando-a ao anonimato do viver que enfraquece a nossa
capacidade de sentir, de outro modo insuficiente para apreender o mistério da
existência humana.7
Metafísica sem metafísica
Para efeitos da nossa análise comparativa, uma interpretação particularmente
significativa é-nos oferecida pela leitura filosófica de José Gil, que concebe o
heteronimismo em termos de uma “metafísica das sensações” assente num mecanismo
literário de produção sensorial; um procedimento que Pessoa, desde 1912, ainda
antes de se apresentar publicamente como poeta, designaria como o aspeto mais
relevante da “nova poesia portuguesa”. “Encontrar em tudo um além”: uma distância
de ordem metafísica inervaria a textura da realidade, atuando como origem de um
“sentimento poético” através do qual, ao apreendermos uma coisa, hic et nunc,
apreendemos, ao mesmo tempo, o seu plus ultra (GIL, 1987).
Perante o facto nu da existência, apercebemo-nos do mistério abissal da própria
existência; a invocação do sentido do nosso ser entrelaça-se com a indiferença do ser
perante as nossas interrogações, como se relata, entre outros, num poema ortónimo
(“Trila na noite uma flauta”) em que o mistério da vida é comparado à sequência,
sem princípio nem fim, das notas de uma flauta suspensa na noite – “pobre ária [...]
tão cheia | De não ser nada!” (PESSOA, 2018: 99). A estética pessoana permitiria,
então, reformular a questão metafísica por excelência – porque há algo em vez de nada?
– partindo da gratuitidade de uma existência sem porquê, transformando a metafísica
em poesia. E a metafísica, como explicitado num texto de 1924, viria a ser redefinida
num duplo sentido como “atividade científica” e como “atividade artística”, pelo
menos segundo as teses do heterónimo Álvaro de Campos que, contrariando, e em
parte retificando, o próprio Pessoa, atribui à metafísica esteticamente entendida a
tarefa de sentir, e já não a de saber; de fazer do abstrato e do absoluto o objeto de um
sentimento capaz de conter em si uma coisa e o seu contrário – já que “tudo pode
ser, e é, sentido” (PESSOA, 1986: I, 11).
Caeiro representaria uma variante e, ao mesmo tempo, a exemplificação mais
autorizada desta visão que faz do “sentir tudo de todas as maneiras” o seu lema, não
sem paradoxo se considerarmos a postura declaradamente anti-metafísica dos seus
versos em O Guardador de Rebanhos. “Eu não tenho filosofia: tenho sentidos” (PESSOA,
2001: II, 24; 2016: 34); e, de forma não menos equívoca: “Que metafísica têm aquelas
Exemplar neste sentido é o que se afirma no Ultimatum de Álvaro de Campos: “Só tem o direito ou
o dever de exprimir o que sente, em arte, o indivíduo que sente por vários” (https://purl.pt/17263).
Para um estudo aprofundado da relação entre estética e poética em Pessoa, remetemos para as subtis
análises de GIANCARLI (2020).
7
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árvores?” (PESSOA, 2001: V, 30; 2016: 38). Mas os discípulos de Caeiro, incluindo
Pessoa, não hesitam em denunciar o “temperamento abertamente metafísico” do
mestre, apresentando-o como um “pure mystic” (PESSOA, 1966: 343; “místico puro”,
PESSOA, 2012: 309). A aporia – é fácil de demonstrar – é, no entanto, apenas aparente.
Basta perguntarmo-nos como é que o jogo poético pode continuar a ser produzido,
se nos mantivermos fiéis aos princípios de uma visão que, ao recusar todo o recurso
aos tropos (o símile, a metáfora, a metonímia etc.), achata o dizer em tautologia. Se
as árvores são árvores, o vento é vento e as coisas da natureza são apenas as coisas
da natureza, que mais há a dizer? E, sobretudo, porquê insistir em dizer, mesmo
poeticamente, uma existência que se basta a si mesma? A positividade absoluta, a
que nos convida a visão de Caeiro, não seria de modo algum exprimível sem a
referência ao seu contrário: a simplicidade daquele que não vê senão o visível
afirma-se contra o pano de fundo de um meta-discurso que insiste nas derivas
daqueles que, pelo contrário, teimam em ver apenas com a mente.
O saber ver sem estar a pensar anda de mãos dadas com uma “metafísica
negativa” ou, se quisermos, com uma “metafísica sem metafísica” – como sugere,
mais uma vez, José Gil – segundo a qual o que é, em todo o seu imediatismo, remete
para o que não é: “O luar através dos altos ramos” (PESSOA, 2001: XXXV, 59; 2016: 63)
não é mais que o luar através dos altos ramos. O princípio de individuação deve ser
procurado, poeticamente, naquilo que uma coisa não é, poderíamos observar para
salientar como a positividade do discurso caeiriano é apenas o efeito de uma negação –
uma negação que, numa análise mais atenta, não surge de uma oposição frontal à
metafísica, mas antes de uma tensão entre a rejeição da metafísica e a própria
metafísica. Positivo e negativo relacionam-se como as duas faces da mesma moeda –
“Porque o único sentido oculto das coisas | É elas não terem sentido oculto nenhum”
(PESSOA, 2001: XXXIX, 63; 2016: 66). Nesta tensão assenta, em última análise, o
princípio de transparência entre o ser e o parecer que orienta a vida poética do
guardador dos rebanhos:
Fig. 1. Versos do caderno do Guardador (BNP/E3, 145-33v).
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Um Husserl heterónimo de Pessoa
É mais estranho do que todas as estranhezas
E do que os sonhos de todos os poetas
E os pensamentos de todos os filósofos,
Que as coisas sejam realmente o que parecem ser
E não haja nada que compreender.
(PESSOA, 2001: XXXIX, 63; 2016: 66)
O dogma caeiriano da visão decorre diretamente deste princípio, cuja nuance
fenomenológica não é difícil de apreender: esse e percipi correspondem-se e não existe
discrepância. Seria, pois, enganador pensar a aparência como um modo da nossa
subjetividade, distinto e afastado do ser do que aparece. Se, pelo contrário, a aparência
é o modo pelo qual o ser é dado, poderíamos afirmar em termos estritamente
fenomenológicos: Soviel Schein, soviel Sein – “tanto de aparência como de realidade”
(HUSSERL, 1991: § 46).
Ao fazer da aparência a porta de entrada para o ser, a interrogação sobre o ser
ultrapassa, por princípio, os limites de qualquer interpretação do real; o ser,
poderíamos acrescentar, é mais real do que o real para aqueles que aspiram a abraçar
tudo o que é dado. Como, aliás, escreveu Husserl em 1907 numa carta a Hugo von
Hoffmansthal, tudo se torna “fenómeno” através do olhar do poeta capaz, tanto
quanto o fenomenólogo, de se indiferenciar perante o sentido da existência, para
captar o mistério da própria existência, a qual se afirma simples e indizível, presente
e inacessível, finita e sempre aberta; um mistério que faz do “ver” um ato afinal
anfíbio, simultaneamente sensível e concetual, natural e metafísico, numa tentativa
– talvez impossível (cf. MARTINS, 2001: 259) – de se adaptar ao que está dado antes de
qualquer instituição de sentido. “Perante cada coisa o que o sonhador deve procurar
sentir é a nítida indiferença que ela, no que coisa, lhe causa”, escreve Pessoa, num
texto da primeira fase do Livro do Desassossego (https://ldod.uc.pt/ | Pesquisa). A
“metafísica das sensações” é composta, não por acaso, de conceitos aparentemente
incongruentes, como assinala Jodarnon Garneri, tais como “sonho”, “imaginação”,
“simulação” e “despersonalização”, provando que o sentir pessoano não se pretende
redutor; não visa limitar, mas antes alargar as fronteiras da experiência através do
exercício de uma “imaginação performativa” (enactive imagination) que permite ao
sujeito perceber atualmente o efeito de uma experiência virtual; sonhar de outro
modo ao ponto de se sentir outro (GANERI, 2020: 44). O olhar pode, então, tornar-se
“azul como o céu” ou “calmo como a água ao sol” para quem sabe ver até as suas
próprias ideias, como um pastor sem rebanho que brinca, no sentido lúdico do termo
invocado por mais do que um comentador, com o ser e o aparecer, recorrendo a
expressões que não devem ser lidas em termos metafóricos. Somos porque vemos, e
quando, ao pensar, deixamos de ver ou, pior ainda, acreditamos que só há uma
forma de ver, afastamo-nos drasticamente, e também tristemente, de nós próprios.
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Conclusões
“Eu nem sequer sou poeta: vejo” (PESSOA, 2001: P.I., 90; 2016: 92) – eis a tese, tão
simples quanto prenhe de consequências, que nos permite apreender filosoficamente
o ponto mais relevante para efeitos da nossa leitura comparada: a pureza da visão
de Caeiro corresponde, nem mais nem menos, ao modo como Caeiro vê, e esse ver,
para se mostrar, tem de poder ser visto. Caeiro, para ser mais preciso, vê-se a si próprio
no próprio ato de ver; e ao ver exibe, conscientemente, o seu ver, distinguindo-se
dos outros – os “homens doidos” que se deixam incomodar pela vacuidade dos seus
pensamentos, como os que andam à chuva, “quando o vento cresce e parece que chove
mais” (PESSOA, 2001: I, 13; 2016: 32). A “metafísica sem metafísica” do mestre dos
outros heterónimos (e de Pessoa) concretiza-se numa reflexão sobre o ver em que o
sujeito, ao exteriorizar-se, se torna o objeto da sua própria visão. O ver é então uma
consequência, ou melhor, poderíamos dizer em termos propriamente fenomenológicos,
um momento intrínseco ao ato de ver, uma intencionalidade oblíqua que torna o ver
intuitivamente acessível. A aparente ingenuidade de O Guardador de Rebanhos assenta
numa visão reflexiva que não pretende afetar as coisas, mas a experiência das próprias
coisas; define as suas condições fenomenológicas de possibilidade, permitindo-nos
apreender no que vemos o modo como vemos – o “quê” no “como” da visão.
Detetamos, portanto, um quiasma entre o guardador de rebanhos e o guardador
do ser, entendido fenomenologicamente, em virtude de uma assonância mútua que
permite apreciar o impulso, por assim dizer, caeiriano da fenomenologia husserliana.
Evitando explicitamente qualquer forma de mediação, Caeiro recorre, quase de forma
despercebida, ao auxílio da reflexão para nos mostrar o imediatismo irrefletido do
ver, ao passo que o gesto fenomenológico, que decorre de uma atitude reflexiva,
aspira a ver o ver para poder descrever tudo o que é dado a quem pode ver de modo
verdadeiro. Tanto para o poeta como para o fenomenólogo, a origem é comum: a
intenção do olhar, se for livre de preconceitos, vem de outro lugar, e não desse do
observador. O dogma da visão descende diretamente das coisas, na medida em que
são as próprias coisas que tornam possível a visão, num mundo que se refrata através
de uma heterogeneidade irredutível de aparências, como num caleidoscópio – uma
nuvem no céu atravessada pela luz da manhã; o ar fresco do vento; uma cadeira à
soleira da porta; e até sensações, humores ou versos escritos numa folha de papel
que só existe na mente de um pastor imaginário (cf. PESSOA, 2001: I, 14; 2016: 32).
Perante a autoridade imperturbável do que é (“basta existir para se ser completo”),
é essencial ver e não dizer mais do que se vê – é a injunção do poeta que o
fenomenólogo, acenando com a cabeça, se apressaria a completar: ver para não
deixar de fora nada do que se vê. “A nossa única riqueza é ver” – confessa, aliás, o
guardador de rebanhos, para concluir: “mas isso exige um estudo profundo, uma
aprendizagem de desaprender” (PESSOA, 2001: XXIV, 46; 2016: 56). Não se aplicará o
mesmo à fenomenologia na sua forma husserliana? A ἐποχή, a suspensão da tese da
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Mariani
Um Husserl heterónimo de Pessoa
existência do mundo, a redução eidética e, depois, transcendental, que outra coisa
seriam senão as operações de um método que exige, por sua vez, um “estudo
profundo” que nos permitiria tirar os antolhos do hábito, dos preconceitos e das
teorias filosoficamente preconcebidas, do empirismo ao idealismo, que nos impedem
de apreciar o sentido de uma “visão pura” capaz de apreender reflexivamente tudo
o que é dado antes mesmo de começar a reflexão?8 À “metafísica sem metafísica” de
Alberto Caeiro, que se apoia na transcendência imanente das sensações, contrapõese a “filosofia sem filosofia” de Husserl, que marca o início da fenomenologia
transcendental, assente no dogma da intuição, em virtude do qual o dado precede e
orienta o pensamento teorizante.
O fenomenólogo e o poeta não partilham, no entanto, os mesmos objetivos. E
é aqui que os caminhos divergem de forma definitiva: a filosofia, para Husserl,
continua, apesar de tudo, a ser animada por um desejo de saber em sintonia com as
suas origens gregas e é ao título de ciência que ela aspira através da sua refundação
em bases fenomenológicas; a arte, pelo contrário, para Pessoa, não aspira a mais do
que sentir, e se, para sentir mais intensamente, for necessário o auxílio da filosofia,
será ainda assim uma filosofia plasmada esteticamente que não procura o sentido
das coisas – as coisas, se vistas verdadeiramente, não têm sentido, quando muito
existem (“as coisas não têm significação: têm existência”). Poderíamos então concluir,
de forma paradoxal, com as palavras que o próprio Husserl proferiu em 1916, por
ocasião da sua nomeação para a Universidade de Friburgo – palavras que teriam
provavelmente levado Caeiro, falecido apenas um ano antes, se nos cingirmos à
biografia de Pessoa, a captar uma ressonância entre os seus versos e os motivos
aparentemente distantes da fenomenologia husserliana. Colocado o problema do
conhecimento, Husserl parte em busca de uma certeza que fundamente, para além
de qualquer dúvida possível, a relação entre a imanência da experiência vivida e a
transcendência das coisas, formulando uma pergunta de tom surpreendentemente
caeiriano: “que importa ao ser o nosso conhecimento?” (HUSSERL, 1987: 138). A
Cf. Einleitung às Ideen I: “Die gesamten bisherigen Denkgewohnheiten ausschalten, die Geistesschranken
erkennen und niederreißen, mit denen sie den Horizont unseres Denkens umstellen, und nun in
voller Denkfreiheit die echten, die völlig neu zu stellenden philosophischen Probleme erfassen, die
erst der allseitig entschränkte Horizont uns zugänglich macht – das sind harte Zumutungen. [...] eine
neue, gegenüber den natürlichen Erfahrungs- und Denkeinstellungen völlig geänderte Weise der
Einstellung nötig ist. In ihr, ohne jeden Rückfall in die alten Einstellungen, sich frei bewegen, das vor
Augen Stehende sehen, unterscheiden, beschreiben zu lernen, erfordert zudem eigene und mühselige
Studien” (HUSSERL, 1976: 3). [Colocar fora de circuito todos os atuais hábitos de pensar, reconhecer e pôr
abaixo as barreiras espirituais com que eles restringem o horizonte de nosso pensar, e então apreender, em plena
liberdade de pensamento, os autênticos problemas filosóficos, que deverão ser postos de maneira inteiramente
nova e que somente se tornarão acessíveis a nós num horizonte totalmente desobstruído – são exigências duras. (...)
é necessária uma nova maneira de se orientar, inteiramente diferente da orientação natural na experiência
e no pensar. Aprender a se mover livremente nela, sem nenhuma recaída nas velhas maneiras de se orientar,
aprender a ver, diferenciar, descrever o que está diante dos olhos, exige, ademais, estudos próprios e laboriosos].
8
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Mariani
Um Husserl heterónimo de Pessoa
pergunta transcendental sobre a possibilidade do conhecimento surge perante a
indiferença do ser face à nossa própria interrogação, provando que de uma visão
comum ao fenomenólogo e ao poeta podem resultar efeitos diferentes, senão mesmo
opostos, como, de resto, nos ensina o heteronimismo de Pessoa que, continuando a
ser ele mesmo no outro, nos oferece, pelo menos virtualmente, o pretexto para uma
leitura heteronímica da fenomenologia, em nome da diferença radical que separa
Edmund Husserl de Fernando Pessoa e Alberto Caeiro.
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Um Husserl heterónimo de Pessoa
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Mariani
Um Husserl heterónimo de Pessoa
EMANUELE MARIANI formou-se na Universidade de Bolonha e doutorou-se em filosofia na
Universidade Sorbonne (Paris IV) sob a direção de Jean-Luc Marion. Depois de ter sido pós-doc
e investigador na Universidade de Lisboa, é atualmente investigador na Universidade de Bolonha,
onde trabalha sobre a fase alemã da fenomenologia (Brentano, Husserl, Heidegger), o aristotelismo
alemão do século XIX (Trendelenburg), o nascimento da psicologia moderna (Wundt, Dilthey,
Stumpf), o neo-kantismo e a relação entre fenomenologia e filosofia da religião. Para além de
vários artigos científicos sobre estes domínios de investigação, publicou a monografia “Nient’altro
che l’essere. Ricerche sull’analogia e la tradizione aristotelica della fenomenologia”.
EMANUELE MARIANI graduated at the University of Bologna and obtained a Ph.D. in Philosophy
at the Sorbonne University (Paris IV) under the supervision of Jean-Luc Marion. After being a
post-doc and researcher at the University of Lisbon, he is currently researcher at the University
of Bologna, where he is working on the German phase of phenomenology (Brentano, Husserl,
Heidegger), 19th century German Aristotelianism (Trendelenburg), the birth of modern psychology
(Wundt, Dilthey, Stumpf), neo-Kantianism and the relationship between phenomenology and
the philosophy of religion. In addition to several academic articles on these fields of research, he
published the monograph “Nient’altro che l’essere. Ricerche sull'analogia e la tradizione
aristotelica della fenomenologia”.
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610
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Miraglia
“Diário na Sombra”
Na “Apresentação” do volume Obra Completa de Álvaro de Campos (PESSOA, 2014), os
editores, Jerónimo Pizarro e Antonio Cardiello, enumeram e comentam dez textos
em verso que decidiram excluir, apesar de integrarem outras edições da poesia do
heterónimo, nomeadamente as organizadas por Cleonice Berardinelli e Teresa Rita
Lopes. Encabeça a lista de poemas “Diário na Sombra”, ou seja, o bifólio 88-13 e 13a,
cuja primeira publicação aconteceu há mais de trinta anos em volume da Edição
Crítica de Fernando Pessoa (PESSOA, 1992), mas sem o complemento do aparato
genético. Este facto, aparentemente curioso, deve-se às vicissitudes que rodearam o
aguardado lançamento do tomo inaugural dessa edição, Poemas de Álvaro de Campos
(PESSOA, 1990a). Com efeito, quando o volume já ia sair do prelo, surgiu nas livrarias
Vida e Obras do Engenheiro (PESSOA, 1990b), um pequeno livro preparado por Teresa
Rita Lopes que dava a conhecer numerosos textos do heterónimo, nessa altura
inéditos, sendo que doze deles não figurariam no volume da Imprensa NacionalCasa da Moeda (INCM). Para contornar o incómodo, a Equipa Pessoa, responsável
pelos volumes da edição crítica, resolveu avançar de imediato com a edição do volume
da chamada “série menor”, que viria à luz em 1992. Esse volume, além de acolher os
ditos doze poemas, acrescentaria ao corpus vinte e seis inéditos, entretanto localizados
graças a uma afincada investigação, pois, convém lembrá-lo, nesses tempos o espólio
à guarda da Biblioteca Nacional era ainda um imenso território a desbravar. Mas tais
textos, entre os quais se inclui “Diário na Sombra”, foram publicados sem “os
extensos comentários e as notas de natureza filológica que descrevem o estado dos
manuscritos e o modo como foram aproveitados para estabelecer o texto dos poemas”
(PESSOA, 1992: 311), atendendo às características editoriais da série.
Ora, enquanto a edição crítica corroborou sucessivamente a atribuição de
“Diário na Sombra” a Álvaro de Campos1, Teresa Rita Lopes, discordando dela, não
o incluiu nas suas edições da poesia do heterónimo e o texto voltaria a ser publicado
apenas por Richard Zenith, desta vez como sendo de autoria do ortónimo (PESSOA,
2006: 87-89). Do cotejo da transcrição constante do volume da série menor com a
que se lê na edição de Zenith ressaltam algumas divergências que redundam numa
leitura proveitosamente melhorada do documento original. Notável é, em particular,
o caso do verso 45, que, de “O meu grande interesse de impedir na infância,” passa
para “O meu garbo interior de imperador sem império,”. Merecem destaque igualmente outras decifrações mais consistentes como “Houve” em lugar de “Amo” no
verso 42 e, no verso seguinte, “gozo” e “dom” em lugar de “fim” e “dever”. Nas notas
Veja-se a “Introdução” ao volume I, tomo II da edição crítica da INCM, onde se explicam os critérios
de seleção dos poemas: “Ortónimo. Recebem este qualificativo todos os poemas que são acompanhados
pela assinatura ‘Fernando Pessoa’ ou que, na sua ausência, não são atribuíveis a algum heterónimo.
Dado que a criação dos principais heterónimos foi datada retrospectivamente por Pessoa de 4-3-1914,
compreende-se bem que muitos poemas do arco cronológica que interessa a este tomo não apareçam
aqui precisamente por causa de deslocações heteronímicas. Assim ‘Diario na Sombra’ [58-13 e 13a],
de 17-9-1916, foi publicado na série menor da poesia de Álvaro de Campos” (PESSOA, 2005: 8).
1
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
612
Miraglia
“Diário na Sombra”
que complementam o volume, Zenith, para além de lembrar que “a edição crítica
publicada pela INCM atribui o poema a Álvaro de Campos” (PESSOA, 2006: 475),
limita-se a assinalar uma única variante, “mostra” para “faz”, relativa ao verso 16.
A transcrição do documento 88-13 e 13a que se apresenta a seguir, e para qual
foi determinante o anterior trabalho de decifração levado a cabo por Berardinelli e
Zenith, assim como a colaboração generosa de Jerónimo Pizarro, diferencia-se fundamentalmente por reproduzir a grafia original de Fernando Pessoa, por ser acompanhada de aparato genético e por incluir uma anotação do autor à margem do poema.
Além disso, contém algumas leituras divergentes, sendo de realçar, entre outros
casos, o dos versos 19 e 35, onde “solo” passa para “sombra”, uma leitura que, sugerida pela grafia da parte final da palavra, onde em lugar da letra “l” parece estar
mais a letra “b”, encontra conforto, pelo que diz respeito à parte inicial do lexema,
na grafia da última palavra do verso 32, que também Berardinelli e Zenith leram
como “sombrio”.
Resta dizer que “Diário na Sombra” é uma composição atípica, singular,
porventura um hápax, na obra poética pessoana do ortónimo. Conhecem-se textos
em verso livre, escritos na sua maioria na década de 1910 e pertencentes à fase
modernista2, mas cuja linguagem é nitidamente distinta, e, de resto, terá sido
justamente o depurado coloquialismo desses versos a convencer Cleonice Berardinelli que o seu autor pudesse ser Álvaro de Campos. Por outro lado, os motivos que
levam a excluir “Diário na Sombra” do corpus poético do heterónimo baseiam-se
mais na sua evidente incongruência com o que se considera seguramente de Campos
do que em afinidades, semelhanças ou paralelismos com poemas de autoria do
ortónimo.
Mas compare-se também com o poema de cariz esotérico “Rondam ás vezes o meu espirito desprevenido”, que apresenta a mesma data de “Diário na Sombra” (PESSOA, 2005: 97-99).
2
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“Diário na Sombra”
Fig. 1. “Diário na Sombra”, p. 1 (BNP/E3, 58-13r).
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614
Miraglia
“Diário na Sombra”
Fig. 2. “Diário na Sombra”, p. 2 (BNP/E3, 58-13ar).
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615
Miraglia
“Diário na Sombra”
Fig. 3. “Diário na Sombra”, p. 3 (BNP/E3, 58-13av).
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616
Miraglia
“Diário na Sombra”
Fig. 4. “Diário na Sombra”, p. 5 (BNP/E3, 58-13v).
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Miraglia
“Diário na Sombra”
ANEXO
Edição crítica
[58-13 e 13a]
Materiais: Duas folhas manuscritas a lápis roxo. A data, sublinhada, encontra-se no rosto
do documento 58-13r, na margem superior à direita do título. Existe numeração, ao alto e ao
centro, no cabeçalho: 2, 3 e 4. O texto apresenta algumas emendas que, em dois casos, incidem
no começo de um verso, por isso na transcrição a primeira letra das palavras que deixam de
ser inicias passa para minúscula. Nos versos 48 e 49 desenvolve-se a abreviatura m/ que o
autor utiliza para “minha”.
Diario na Sombra
Lembras-te ainda de mim?
Tu conheceste-me3 ha muito tempo…
Eu era aquella creança triste de quem tu não gostavas,
E por quem depois, pouco a pouco, te fôste interessando.
(Pela angustia, e a tristeza, e mais qualquer cousa,)4
E de quem5 tu acabaste por gostar, quasi sem o saber;
Lembras-te? A creança triste que brincava na praia
Sozinha, longe6 dos outros socegadamente,
E de vez em quando lhes lançava um olhar triste mas sem pena…
Vejo que olhas para mim disfarçadamente de vez em quando …
Estas recordado? Queres ver se te recordas?7 bem sei…
Sem saber sentes ainda8 no meu rosto calmo e triste
[13ar] A creança triste que brincava sempre longe dos outros
E de vez em quando olhava tristemente para elles, mas sem pena?
Sei que olhas, e que não comprehendes qual a tristeza
Que me mostra9 triste…
Que não é pena, nem é saudade, nem desgosto, nem magoa…
3
<D>/T\u conheceste-me
O facto de todo o verso, incluída a virgula final, estar fechado entre parênteses indicia que o autor hesitou em
mantê-lo.
4
5
E [↑ de] quem
6
[↑ Sozinha] Longe
7
<ainda estás recordado?> [↑ Queres ver se te recordas?]
8
[↓ Sem saber] Sentes ainda
9
faz [↑ mostra] variantes alternativas.
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
618
Miraglia
“Diário na Sombra”
Ah, é a tristeza10
D’aquelle a quem, na grande sombra antenatal,
Deus disse o Segredo11 –
O segredo da vacuidade absoluta das cousas,
E da illusão do mundo –
A tristeza12 irreparavel
D’aquelle que sabe que nada serve ou vale,
Que o esforço é um absurdo desgaste,
Que a vida é um espaço vazio,
Por que13 a desillusão vem sempre atravez da illusão
[13av] E parece que a Morte é o sentido da Vida…
É isto, mas não é só isto, que tu vês no meu rosto
E faz com que olhes para mim, de vez em quando, disfarçadamente…
Ha, além d’isto,
Aquelle pasmo negro, aquelle arrepio sombrio,
Que deixa na alma
O ter havido um segredo de Deus
Dito na grande14 sombra antenatal, quando a vida
Não raiava ainda ao longe,
E todo o Universo luminoso e complexo
Era ainda um destino mentalmente a cumprir.
Se isto me não define, nada me define
E isto não me define –
Pois o segredo15 que Deus16 me disse não era só isto
[13v] Houve outra cousa que é hoje estar do lado do irreal,17
O goso que ha nisso, o meu dom de comprehender o incomprehensivel,
O meu sentimento d’aquillo que não se pode sentir,
O meu garbo interior de imperador sem imperio,
O dominio de sonhos architectados na luz.
Sim, é isto que põe
Uma velhice anterior á minha infancia na minha face,
10
<pena> tristeza
11
<s>/S\egredo
12
<pena> tristeza
13
<Que> Por que
14
<ante> [↑ na grande]
15
<no †> o segredo
16
<me> Deus
Na margem superior direita, e separada do texto por um traço, existe uma anotação do autor: Duvida sobre
titulo, por acabar
17
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
619
Miraglia
“Diário na Sombra”
E no meu olhar uma angustia18 interior á minha alegria.19
Olhas-me disfarçadamente, de vez em quando,
E me não comprehendes,
E tornas a olhar, disfarçadamente e sempre…
Sem Deus não ha nada senão vida
E não poderás nunca comprehender…
17-9-1916
18
E [↑ no meu olhar] uma angustia
19
alegria[.] <no meu olhar.>
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
620
Miraglia
“Diário na Sombra”
Bibliografia
PESSOA, Fernando (2014). Obra Completa de Álvaro de Campos. Edição de Jerónimo Pizarro e Antonio
Cardiello. Lisboa: Tinta-da-china.
_____ (2008). Poesia do Eu. Edição de Richard Zenith. Lisboa: Assírio & Alvim.
_____ (2005). Poemas 1915-1920. Edição crítica de João Dionísio. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da
Moeda.
_____ (2002). Álvaro de Campos – Poesia. Edição de Teresa Rita Lopes. Lisboa: Assírio & Alvim.
_____ (1993). Álvaro de Campos – Livro de Versos. Edição de Teresa Rita Lopes. Lisboa: Estampa.
_____ (1992). Poemas de Álvaro de Campos. Edição de Cleonice Berardinelli. Lisboa: Imprensa NacionalCasa da Moeda. Série menor, vol. I.
_____ (1990a). Poemas de Álvaro de Campos. Edição crítica de Cleonice Berardinelli. Lisboa: Imprensa
Nacional-Casa da Moeda. Série maior, vol. II.
______ (1990b). Vida e Obra do Engenheiro. Edição de Teresa Rita Lopes. Lisboa: Estampa.
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
621
Miraglia
“Diário na Sombra”
GIANLUCA MIRAGLIA é investigador do Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias
(CLEPUL) da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. No âmbito dos Estudos Pessoanos
publicou vários artigos, entre os quais: “Essay on Detective Literature & The Detective Story: dois
ensaios de Fernando Pessoa sobre a ficção policial”, in Pessoa Plural, n.º 13, primavera de 2018;
“The Reception of Futurism in Portugal”, in Portuguese Modernisms―Multiple Perspectives in
Literature and the Visual Arts, editado por Jerónimo Pizarro e Steffen Dix (Oxford: Legenda, 2010;
Routledge, 2017); “Londres, 1914 – Junho: a obra-prima do Futurismo”, in Pessoa Plural, n.º 11,
primavera de 2017; “Do ‘Dia Triunfal’ ao Orpheu: ascensão e queda de Alberto Caeiro”, in Pessoa
Plural, n.º 18, outono de 2020. Recentemente editou, de Álvaro do Carvalhal, Os Canibais e Outros
Contos (Lisboa: Porto Editora, 2021).
GIANLUCA MIRAGLIA is an Associate Researcher at the Center for Lusophone and European
Literatures and Cultures (CLEPUL), at the Faculty of Arts and Humanities of the University of
Lisbon. Within the field of Pessoan studies he has published several articles: “Essay on Detective
Literature & The Detective Story: dois ensaios de Fernando Pessoa sobre a ficção policial”, in Pessoa
Plural, no. 13, Spring 2018; “The Reception of Futurism in Portugal,” in Portuguese Modernisms:
Multiple Perspectives in Literature and the Visual Arts, edited by Jerónimo Pizarro and Steffen Dix
(Oxford: Legenda, 2010; Routledge, 2017); “Londres, 1914 – Junho: a obra-prima do Futurismo,”
in Pessoa Plural, no. 11, Spring 2017; “Do ‘Dia Triunfal’ ao Orpheu: ascensão e queda de Alberto
Caeiro”, in Pessoa Plural, n.º 18, Fall 2020. He has recently edited, by Álvaro do Carvalhal, Os
Canibais e Outros Contos (Lisboa: Porto Editora, 2021).
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
622
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Évora
O homem dos sonhos
En una biografía, el biógrafo no cuenta para nada y sus opiniones a nadie interesan, pero al
igual que este califica de excelsa la obra de Caeiro, de problemática la situación del país, o de
genial la violencia verbal de Campos, aquí el biógrafo no tiene más remedio que advertir y
calificar el lado que le resulta menos grato y atractivo de Pessoa. Porque el pensamiento
político de Pessoa es con suma frecuencia muy irritante y aquí no vale la argucia del relativismo
temporal. Su natural desconfianza en el pueblo y su ultraconfianza en las élites, de las que él
se siente parte, nos resultan fastidiosas y difícilmente asumibles.
(368)
Do mesmo modo, pode um leitor seguir, acompanhando um dos seus cidadãos, cuja
vida conhecerá e a importância reconhecerá, os tempos de desassossego em Portugal
e no mundo entre 1888 e 1935.
Este caminho de análise de Pessoa como homem do seu tempo, e inserido
numa história pessoal e familiar com laivos de tragédia, abre a porta à compreensão
da dimensão humana do mito. E esta será a grande força da obra: um Pessoa que
acaba por ser vítima do seu tempo. Um homem que fracassa em tudo na vida (exceto
na imortalidade, como se fosse de derrota em derrota até à vitória final), um homem
a quem as circunstâncias não favoreceram.
Neste caminho de Pessoa, Moya acentua (como Gaspar Simões mas mais do
que as biografias antes publicadas) a infância e a relação com a mãe, destacando os
tempos de Durban (o que podíamos já adivinhar em Lluvia oblicua). Recorda as suas
origens, determinantes também para as suas convicções políticas, as perdas familiares
em tenra idade, que lhe irão marcar a vida, os tempos na África do Sul. Segundo
Moya, Durban será determinante para Pessoa: é em Durban que se forma o Pessoa
anglófono, british (“El inglés será su lengua y su cultura, e inglesa será su manera de
entender el mundo, su manera de vestir, su pensamiento, su forma de relacionarse
e incluso sus expectativas”; 66); é em Durban que Pessoa descobre a literatura:
Milton, Carlyle, e, sobretudo, Shakespeare, autores que Moya disseca na influência
que exerceram no jovem Fernando, destacando o papel central de Shakespeare
(“Shakespeare significa también un punto de conexión con su propia experiencia de
la pluralidad y con sus intuiciones más íntimas e inexpresables. Una liberación.
Cuando Pessoa habla de su obra heteronímica como drama em gente, no tiene únicamente en la cabeza la numerosa cantidad de personajes shakespearianos y la lección
que supone para él cada uno de ellos, sino su comunidad”; 95); é em Durban que
conhece Mr. Nicholas, porventura o seu professor mais decisivo; finalmente, é em
Durban que Pessoa experimenta também a solidão, o ser estrangeiro, o “escapista”
(termo que Moya usa amiúde para o caracterizar), as dificuldades de relacionamento
com o outro, levantando-se a hipótese de ter sido vítima de intimidação, daquilo a
que hoje se chama bullying.
Momento a que Moya dá igualmente especial atenção é à breve passagem de
Pessoa pela ilha Terceira, em 1902 (cf., nesta revista, hkps://doi.org/10.26300/nwb32k64). No seu jornal manuscrito O Palrador parece eclodir a heteronímia pessoana,
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
624
Évora
O homem dos sonhos
ou proto heteronímia, no dizer de Pablo Javier Pérez López, citado por Moya. Na
Terceira, nascem 48 dos 136 personagens fictícios, fixados por Pizarro e Ferrari, em
Eu sou uma Antologia (Tinta-da-china, 2013). Momento de eclosão tão significativo
como o dos Açores, só acontecerá em 1914, com o trio de heterónimos mais conhecidos.
E, sobre este discutido assunto – o da eclosão do heteronimismo – Moya também se
posiciona, ou, pelo menos, entra na discussão. Aliás, é característica desta biografia
o autor não se furtar a nenhuma das polémicas em torno de Pessoa que têm ocupado
o meio académico. No tocante à eclosão da heteronímia, faz um ponto de situação
do estado da arte:
Se han escrito miles de páginas para tratar de explicar el fenómeno de la heteronímia en
Pessoa. Unos lo han hecho desde el campo de la filología, otros desde la psiquiatría o desde
una visión filosófica o sociológica, unos atisban en ese fenómeno la fragmentación del yo,
otros la disolución del ser, otros hablan del vacío o lo creen consecuencia de su trato com lo
oculto… En fin, hay tantas teorías como teóricos se acercan al problema. Casi todas son
aportaciones valiosas y bien traídas, pero todas analizan el fenómeno desde prismas que
privilegian un determinado ángulo teórico de visión, siendo así que casi siempre se nos
escapa la visión de conjunto.
(208)
Moya analisa detalhadamente as várias perspetivas, acabando por considerar que a
heteronímia resulta de um lento processo (um “rio”) e não de um click. Um processo
que passa por diversas fases, sublinhando Moya a estadia nos Açores, o regresso a
Durban, a influência de Shakespeare, a passagem pelo teatro.
Disse que Moya não se furta a polémicas em torno de Pessoa. Entre essas
polémicas, ou, pelo menos, controvérsias, contam-se a questão da sexualidade e do
alcoolismo. Em relação ao primeiro assunto, embora abordado, percebe-se uma
desvalorização de Moya: ao contrário do que poderá acontecer com outros autores,
a questão da sexualidade não será, no seu entender, determinante para avaliar a obra
pessoana. De qualquer maneira, analisa a relação com Ofélia e com Madge, assim
como a questão da “senhora loira”. Já no que respeita ao alcoolismo de Pessoa, não
adianta, segundo Moya, desvalorizá-lo, sendo notório que tal afetou Pessoa no final
da sua vida, seguindo a linha de João Gaspar Simões que, na sua Vida e Obra de
Fernando Pessoa, publicada pela primeira vez em 1950, abordou este assunto, gerando
alguma polémica (cf., nesta revista, em acesso aberto, https://doi.org/10.7301/Z0QJ7FJ9
e https://doi.org/10.26300/mfrw-sm68).
Há outros dois aspetos que não queria deixar de mencionar neste Pessoa, el
hombre de los sueños. O primeiro prende-se com a análise dos autores que conviveram
com ou influenciaram Fernando Pessoa. Depreende-se que os leitores desta obra não
serão todos especialistas em literatura, não conhecerão todos os autores de literatura
inglesa, ou a obra dos escritores da revista Orpheu. Ora, Moya faz uma análise, e
curta biografia, de todos eles. Das influências inglesas e portuguesas, mas também
dos contemporâneos de Pessoa (grande importância atribui à relação com Mário de
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
625
Évora
O homem dos sonhos
Sá-Carneiro) e dos seus estudiosos. Enfim, de todos os que tiveram importância, mais
ou menos significativa, para Pessoa. E este é um ponto que enriquece o livro. Outro
é a análise da obra de Pessoa: do ortónimo, dos seus heterónimos mais significativos,
do Livro do Desassossego (que Moya qualifica como “una epopeya del siglo XX”; 515),
da Mensagem (muito curiosa abordagem ao livro, que abre caminho a reinterpretações
com base, precisamente, na compreensão de Pessoa como homem do seu tempo). E
não resulta fastidiosa a análise de Moya, entrecortada com as deliciosas descrições
de Lisboa (também a relação entre Lisboa e o poeta merece na biografia uma reflexão
curiosa) e da época em que viveu.
No início da biografia, o autor propõe-se desmentir três ideias que se têm
usualmente de Pessoa e que considera falsas: a de que a sua singularidade heteronímica
se sobrepõe à qualidade (ou seja, o que faz de Pessoa um escritor único é a sua
multiplicidade de heterónimos e não, necessariamente, o valor da sua poesia); a da
sua “ausência de vida”, quer dizer, do seu apagamento social, do “homem sem
biografia” e, finalmente, o seu “caráter solitário e indolente”. Os objetivos de Moya
são plenamente conseguidos. Outra ideia feita, diria eu, combatida por Moya é a de
que a qualidade dos heterónimos se sobrepõe à qualidade do ortónimo; ou ainda
outra, que Moya insiste ao longo do livro: Pessoa foi admirado no seu tempo, pese
embora tenha editado pouco.
Por último, destacaria nesta biografia como aportação diferente das anteriores
que lhe são mais próximas: o abrir de caminhos interpretativos, de perspetivas de
Pessoa, da compreensão da sua personalidade. Isto transforma-o num livro primordial.
Em contrapartida, será, das três biografias recentes, a que nos revela menos novos
dados da vida de Pessoa.
No final de El hombre de los sueños fica-nos um Fernando Pessoa profundamente
humano, produto do seu tempo. Um homem a quem a vida fintou, que sofreu,
embora se visse como membro de uma elite. Um trabalhador que não foi bem
recompensado. Um tímido que era um polemista. Ainda assim, este homem que
morreu talvez alcoólico e despedaçado, foi genial na sua poesia. Talvez porque
ninguém tenha sonhado tanto como Fernando António Nogueira Pessoa.
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
626
Évora
O homem dos sonhos
FERNANDO ÉVORA (Faro, 1965). Escritor português, autor de obras como No País das Porcas-Saras
(2010), Amor e Liberdade de Germana Pata-Roxa (2012), O Mel e as Vespas (2015) e Hamsters de
Biblioteca (2016) (este em conjunto com o artista plástico Gonçalo Condeixa). Traduziu para
português Lluvia oblicua, de Manuel Moya.
FERNANDO ÉVORA (Faro, 1965). Portuguese writer, author, among others, of the books: No País
das Porcas-Saras (2010), Amor e Liberdade de Germana Pata-Roxa (2012), O Mel e as Vespas (2015) and
Hamsters de Biblioteca (2016) (this one with the plastic artist Gonçalo Condeixa). He translated
into Portuguese Manuel Moya’s Lluvia oblicua.
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
627
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Lacerda
““The aesthetic tie...”
natural that [Campos] should love the stronger better than the weak sensations, and
the strong sensations are, at least all selfish and occasionally the sensations of cruelty
and lust” (PESSOA, 1966: 342).
Writing on the aesthetic principles of sensationism in Fernando Pessoa’s The
Mad Fiddler, I have noted (LACERDA, 2023) how Álvaro de Campos writes against the
idea that art should be beautiful or emerge as a sensationist response to beautiful
things or experiences. Art, in his regard, should emerge from such elements as force,
disruption, and integration. Nothingness and emptiness, or, existence emerging
from a state of lack, provide the guiding tenets for the engineer’s poetry. And indeed,
as Pizarro and Cardiello remind us in their editorial introduction, one of Álvaro de
Campos’s first statements after emerging as a heteronym in 1914 is that Fernando
Pessoa, “properly speaking, did not exist.” In a countermove, Pessoa states, “Álvaro
de Campos is a character in a play; what’s missing is the play.” The two poets enact
a mise-en-scène where they poetically contain each other, one demanding the
acknowledgment of Nothing as a force for poetic creation, the other ensuring that
the only thing needed for the creation of a poetic world is the guiding principle of
the heteronymic self. In either case, the mood is set, and the set is staged: Álvaro de
Campos, in denying the facilities of certain emotional expressions, is the most wellsuited for the sensationist tendencies of the poet Fernando Pessoa.
In “Ode Marítima” (“Maritime Ode”), a “symphony of incompatible, analogous
sensations,” Campos follows a somber theme of violence and excess. The poem opens
with the poetic subject “Alone, on the deserted quayside,” contemplating the wharf on
a summer morning and asserting his anxiety to merge with the universe, which, in
this case, is maritime: “All the seas, all the straits, all the bays, all the gulfs, | I felt
like clutching them to me so as to feel them properly and then die!” The naval
elements of the poem become “the toys [he] played with in [his] childhood dreams”
which exist “outside of [his] inner world” (PESSOA, 2023: 45). Campos’s initial
exuberance devolves into a state of melancholy, suggesting that his taking in of items
that are purely his and his alone is insufficient. What matters is not to hold
everything, but to feel everything:
Tema de cantos meus, sangue nas veias da minha inteligência,
Vosso seja o laço que me une ao exterior pela estética,
Fornecei-me metáforas imagens, literatura,
Porque em real verdade, a sério, literalmente,
Minhas sensações são um barco de quilha pró ar,
Minha imaginação uma âncora meio submersa,
Minha ânsia um remo partido,
E a tessitura dos meus nervos uma rede a secar na praia!
The subject of my songs, the blood in the veins of my intelligence.
Be the aesthetic tie that binds me to the outside world,
Furnish me with metaphors, images, literature,
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
629
Lacerda
““The aesthetic tie...”
Because really, truly, literally,
My sensations are a ship with its keel in the air,
My imagination a half-submerged anchor,
My longing a broken oar,
And the fabric of my nerves a net left to dry on the beach!
(PESSOA, 2023: 45)
In this Whitmanian ode to the universe — and as Pessoa describes it, Campos “resembles
Whitman most of the three [heteronyms]” — the poet continues searching for real
experiences, his soul becoming a metaphoric sea, a source for aesthetic knowledge.
The hyperbolic enumerations, the diversity of onomatopoeia emulating the crash of
the waves against the boat, sailors’ salutes, and pirate songs all reflect the
overwhelming impulse of sensation sounding in Álvaro de Campos’s poetry. And
it is worth noting how, with an attention to detail fitting the poignancy with which
Álvaro de Campos selects his words, celebrated translators Margaret Jull Costa and
Patricio Ferrari excel in their English translations of the Portuguese poet’s work.
What most distinguishes the work of the two translators is attention to linguistic
accuracy and meter, rendering Campos’s works increasingly accessible to a growing
international readership of Fernando Pessoa’s heteronymic oeuvre.
As editors Pizarro and Cardiello highlight, this new edition provides full
translations of Álvaro de Campos’s “Book of Verses,” which Pessoa at one point
called “Intervals,” and “Book of Prose,” which he once deemed “Episodes.” Also
included are a selection of undated poems and Campos’ prose writings, which range
from philosophical to political. Opening the prose section is Campos’ 1917 “Ultimatum,” an avant-garde manifesto written as a satirical critique of European politics at
the turn of the century. And thereby lies a small issue with this collection: for its
extensive and thought-out translations of lesser-known works by the poet, The Complete
Works of Álvaro de Campos misses an opportunity in not including explanatory notes for
some of the author’s more complex texts—for instance, in explaining the turbulent
political contexts that engendered controversial texts such as the afore-mentioned
manifesto. While some poems and prose texts are accompanied by a brief explanatory
endnote for the occasional odd fact or translational difficulty, for the most part, the
collection of poems stands on its own. Perhaps just as well, as the beginner Álvaro
de Campos reader is incentivized to research context and form, jumping headfirst
into the poet’s orderly yet dissident poetic world.
In their introductory biographical note, translators Jull Costa and Ferrari
delve into Fernando Pessoa’s profound connection with Lisbon, his childhood home,
and the pivotal moments that left a mark on the Portuguese poet, such as the death
of his father in 1893, his 1895 move to Durban, South Africa with his mother and
stepfather, and his eventual return to Portugal, which he would never again leave,
in 1905. Jull Costa and Ferrari briefly note Pessoa’s professional ventures, like his
short-lived publication house, Ibis, and his writings at the poetic vanguard, dissemiPessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
630
Lacerda
““The aesthetic tie...”
nated in Porto and Lisbon throughout the 1910s, the same period during which his
heteronymic selves first came to life. The Complete Works of Álvaro de Campos—
alongside the companion volumes The Book of Disquiet (2017) and The Complete Works
of Alberto Caeiro (2021), both New Directions—thus provides a comprehensive
overview of Álvaro de Campos’s work in a way that encapsulates the essence of
Pessoa’s literary journey, providing a nuanced understanding of his diverse
contributions and the intricate interplay between his life and art.
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
631
Lacerda
““The aesthetic tie...”
Bibliography
LACERDA, Inês Forjaz de (2023). “‘By links of being past imagining’: Fernando Pessoa’s The Mad Fiddler
and Sensationism”. Pessoa Plural—A Journal of Fernando Pessoa Studies, n.º 23, Spring, pp. 1-17.
Brown Digital Repository, Brown University Library. https://doi.org/10.26300/837e-6245
PESSOA, Fernando (2023). The Complete Works of Álvaro de Campos. Edited by Jerónimo Pizarro and
Antonio Cardiello, translated by Margaret Jull Costa and Patricio Ferrari. New York: New
Directions Publishing.
_____ (1966). Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. Textos estabelecidos e prefaciados por Georg
Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho. Lisboa: Ática.
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632
Lacerda
““The aesthetic tie...”
INÊS FORJAZ DE LACERDA holds a bachelor’s degree in English and Comparative Literature from
Kenyon College (Ohio) and a master’s degree in Comparative Studies from the Faculty of Letters
of the University of Lisbon. An educator and translator, she is currently a doctoral student in
Luso-Brazilian literature and culture at Yale University (Connecticut), where she investigates
multimodal approaches to literature, as well as the construction of individual and collective
perspectives of the self through authorship in modern and contemporary literature emerging
from the Portuguese expansion in Asia.
INÊS FORJAZ DE LACERDA é licenciada em literatura inglesa e estudos comparados por Kenyon
College (Ohio) e mestre em estudos comparatistas pela Faculdade de Letras da Universidade de
Lisboa. Educadora e tradutora, atualmente é doutoranda em literatura e cultura luso-brasileira
na Universidade de Yale (Connecticut), onde investiga abordagens multimodais à literatura,
assim como a construção de perspetivas individuais e coletivas do ser através da autoria em
literatura moderna e contemporânea proveniente da expansão portuguesa na Ásia.
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633
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Ministro
Um estudo que não cessa
que esta pode alcançar um equilíbrio crítico é porventura o grande contributo
teórico-metodológico do livro – o que não é nada pouco.
Em termos mais particulares, merece igual destaque a desenvoltura e precisão
das sínteses que o autor nos oferece, por exemplo, do complexo cenário de escrita e
edição do LdoD. Ajuda a isto o dispositivo crítico elaborado ao longo do livro com
constantes súmulas contrastivas e exemplificações concretas e detalhadas. Em certos
casos, trata-se da comparação entre edições, noutros entre testemunhos, fragmentos,
teorias, pontos de vista e todos aqueles elementos que o autor traz à discussão à
medida que, paulatinamente, desenvolve o seu argumento.
De tudo isto resulta um estudo afinado da escrita, edição e leitura. Uma
perspetiva prismática, que nos permite inclusive afirmar que se trata de uma teoria
da edição como leitura, mas também da edição como escrita. Por exemplo, para
Giménez, “[e]l lector, si no tiene una sensación de ruptura es debido a las ediciones”
(108). Por outras palavras, são as edições do LdoD que dão uma certa unidade na
leitura àquilo que, em última instância, não o tem nem poderia ter na escrita. Invocando
várias classificações genológicas que têm sido feitas do LdoD, Giménez antepõe,
também aqui, a ideia de multiplicidade à de unidade: “si aceptamos que el Livro es
una novela, también tenemos que aceptar que es un texto suicida, que es un laboratorio
de escritura, que es un tratado de las pasiones humanas, que es un ensayo existencialista, etc.” (111).
Vale a pena percorrer de seguida os quatro capítulos do livro para melhor
observar as teses que estes enunciam, justificam e interligam.
No primeiro capítulo, Diego Giménez traça uma breve história das diferentes
fases de criação e edição do LdoD. O mote neste capítulo é o da “escrita que não cessa
de não se editar” e, com efeito, são conhecidos os planos atribulados da escrita do livro
por Pessoa e seus (semi-)heterónimos, como ainda o são mais os trabalhos sucessivos
de edição e reedição pelos especialistas pessoanos. Giménez discute a história do
LdoD através de todos os elementos que a seu ver constituem o Livro: os primeiros
fragmentos conhecidos, os indícios do projeto de livro em trocas de correspondência
de Pessoa, aquilo que a arca revelou e as listas dos planos de publicação confirmaram,
e, por último mas não menos importante, o que as diversas edições trouxeram à luz
uma e outra vez.
Partindo deste último aspeto, o segundo capítulo aprofunda a análise da
fragmentariedade do LdoD com especial ênfase no modo como os vários editores
lidaram com esse aspeto crucial da obra. A partir do mote “uma escrita que não cessa
de não se escrever”, o raciocínio de Giménez a respeito do fragmento reporta-se quer
à problemática de seleção e ordenação na obra entendida no seu conjunto, quer à
seleção e ordenação ao nível de cada fragmento. Nas palavras do autor, entre as
várias edições do LdoD “las diferencias se hallan no sólo en lo macro, es decir la obra,
sino también en lo micro, a saber, el fragmento” (76). Para entender o que isto implica,
Giménez orienta a sua análise de acordo com quatro categorias que, como refere,
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Ministro
Um estudo que não cessa
toma de empréstimo de Manuel Portela: “una fragmentación material, una fragmentación textual, una fragmentación con respecto a la obra y una fragmentación estética”
(83). Como já havia adiantado na introdução, estas categorias de fragmentação
correspondem às seguintes tipologias de fragmentos: “el fragmento como una pieza
de papel, el fragmento como una pieza de escritura, el fragmento como una pieza de
escritura de un todo y el fragmento como género” (53). A partir deste dispositivo
conceptual e das análises que permite, Giménez conclui de forma não dicotómica:
“si analizamos por separado los modos de fragmentariedad sería difícil sostener que
estamos ante una obra fragmentaria. Pero si nos atenemos al conjunto, resulta claro
que negar la importancia de la fragmentariedad en la interpretación de la obra es un
equívoco” (96).
Ainda neste capítulo, de um modo que inicialmente poderia parecer desavisado, Giménez reflete sobre a codificação informática de textos literários de acordo
com as práticas no campo das humanidades digitais. É particularmente interessante
a este respeito a observação do autor, logo na introdução, quando de algum modo
sintetiza as várias facetas dessa “escrita que não cessa de se escrever” a partir
justamente dos mecanismos de codificação informática do LdoD. São estes os termos
de Giménez: “Estos mecanismos llevan a pensar en las diferentes fases de composición
del texto en que cabe preguntarse si es el mismo el sujeto que escribe, el sujeto que
relee, el sujeto que corrige y el sujeto que publica” (31). Nesta mesma linha, há uma
segunda observação que reforça a hipótese apresentada pelo autor de que a
codificação e edição digital colocam em evidência algo sobre a escrita, a edição e a
leitura do Livro. Lemos no final do segundo capítulo: “La edición digital aúna los
rostros existentes y facilita las condiciones para que los potenciales rostros acontezcan,
ofreciendo una experiencia material de la pluralidad del texto sin cierre y, al mismo
tiempo, facilitando la experiencia del Livro como potencialidad” (102).
De forma a pensar sobre essa “escrita que não cessa de não se realizar”, o
terceiro capítulo recorre inicialmente a Octavio Paz, “que resumió la obra de Pessoa
como el tránsito de la irrealidad de su vida a la realidad de sus escritos” (104-105).
Sob este ponto de vista, sempre que Giménez se debruça sobre as edições, os testemunhos, os fragmentos, sempre que os compara, relaciona e interpreta, é para os
“escritos” que olha – uma escrita que é sempre leitura e reescrita do escrito.
Segundo esta mesma ordem de ideias, como assinala, também “[l]a relación
entre pensamiento y poesía en Fernando Pessoa pasa por la escrita” (107). Na
perspetiva do autor, “el Livro do Desassossego no expone un sistema filosófico, pero
que sí puede ser considerado como la expresión estética de una serie de fundamentos
filosóficos” (116). Em alguns desses fundamentos Giménez encontra um paralelismo
com as teorias idealistas e subjetivistas de George Berkeley sobre a percepção e a
representação do mundo. Para Berkeley como para Pessoa, o sensacionismo é
absolutamente central na medida em que “la realidad es equiparable a las
sensaciones” (122). Distingue-os, no entanto, o facto de Berkeley solucionar o
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636
Ministro
Um estudo que não cessa
problema da ordem das sensações, da hierarquia da experiência e do conhecimento
da realidade através da figura de Deus como garante de união e coerência do “eu” e
do “mundo”, enquanto Pessoa não o pode fazer (130-135). Como sublinha Giménez,
o lugar de Pessoa é do lado de uma filosofia da suspeita perante o fim dos grandes
relatos e a impossibilidade de completude. Ainda mais interessante, para Giménez,
este é um fracasso sem o ser. Segundo o autor, Pessoa resolve a ausência de Deus e
o descentramento do sujeito com a escrita: operação estética sobre a realidade por
via da intelectualização das sensações, como apontará mais adiante nas conclusões
(180). Estas sensações, contudo, relembra aí, “no cesan de no realizarse, por tanto,
no llegan al absoluto” (180).
A fechar o livro, e embora este inclua efetivamente uma excelente secção de
conclusões (173-185), podemos ver o quarto capítulo como uma espécie de ponto de
chegada da reflexão mantida antes, neste caso frente à possibilidade de “uma escrita
que não cessa de não se nomear”. Atestam este movimento construtivo do raciocínio
as várias remissões a pontos anteriores da reflexão, que o autor vai relembrando e
ligando na sustentação de um argumento de ordem progressiva. Quero, não obstante a
proliferação destes exemplos no livro, centrar-me apenas num, não só porque é
ilustrativo mas também porque é crucial no argumento geral. Ainda no primeiro
capítulo, mesmo no seu início, Giménez propõe que “[l]a identidad no parece ser un
punto de partida sino un resultado del acto de escribir” (44). Já no quarto capítulo
vai declarar que “[l]as identidades no son un punto de partida, sino la manifestación
del mismo proceso de construcción que es el que soporta la arquitectura de los
nombres” (141). O que isto mostra a partir dos casos de Vicente Guedes e Bernardo
Soares é que “Pessoa no parte de una identidad literaria definida, sino que dicha
identidad es el resultado del acto de producción” (146). Portanto, “[e]l intervalo que
hay entre él y él, es un intervalo de emergencia o de la toma de consciencia que da a
cada estilo una identidad diferenciada y en la que los procesos de lectura y reescritura
tienen un lugar predominante” (143). E, então, a identidade “es la escritura la que
termina por nominar” (148). A identidade é a escrita. A escrita é a leitura. A edição
é a escrita e a leitura.
Num cômputo geral, um aspeto menos positivo do livro, de foro editorial,
prende-se com o facto de as ilustrações nem sempre serem bem conseguidas. Alguns
testemunhos não têm qualidade de leitura. Também os gráficos das páginas 113-114
não cumprem o seu efeito visto que é impossível distinguir as cores que compõem
as diferentes frações. Se é de lamentar que assim seja, a verdade é que há uma
redundância que acaba por não prejudicar o argumento mesmo nestes momentos: o
importante da informação desses testemunhos e gráficos é também descrito (quando
não transcrito), analisado e interpretado pelo autor no texto.
Para terminar, gostaria ainda de assinalar um outro contributo do livro, até
porque o atravessa e torna operacionais as suas teses. Giménez parte da ideia de que
aos editores do LdoD lhes é pedido (exigido) que se transformem em coautores do
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Ministro
Um estudo que não cessa
livro ou mesmo heterónimos (Pizarro dixit) para depois propor, arriscando, um
movimento inverso: também Fernando Pessoa, mesmo sem terminar o Livro, atuou
no papel de editor, atendendo ao facto de fazerem parte do processo de escritaedição os atos de selecionar, ordenar, corrigir, etc. Como refere Giménez a determinado momento: “Un primer proceso en que la subjetividad del escritor queda fijada
en forma de cicatriz que señala cómo el proceso de escritura es un proceso de selección”
(77). Tudo se mistura, confunde, complexifica entre escrita e leitura e isso acontece
através da edição. Claro que a afetação entre papéis de autor e editor só se torna
mais visível porque, neste caso, Pessoa não acabou a sua seleção e são os editores
quem tem de o fazer à medida das suas possibilidades, interpretando algumas
cicatrizes, suturando outras que permaneceram abertas. Não há outra solução, nem
vale a pena apelar aos deuses para que, oxalá, fosse de outro modo: “De la misma
manera que afirmamos que de vivir Pessoa este hubiese terminado muchos de esos
proyectos, podemos afirmar con la misma solvencia y tranquilidad que de haber
vivido más hubiese multiplicado los proyectos por terminar” (82).1
Esta recensão foi escrita no âmbito da investigação desenvolvida no Instituto de Literatura
Comparada Margarida Losa, Unidade I&D financiada por fundos nacionais através da FCT –
Fundação para a Ciência e a Tecnologia (https://doi.org/10.54499/UIDB/00500/2020).
1
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638
Ministro
Um estudo que não cessa
BRUNO MINISTRO é investigador no Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa (Univ.
do Porto). É doutorado em Materialidades da Literatura (Univ. de Coimbra). A sua investigação
tem sido dedicada às múltiplas intersecções entre os estudos literários, a teoria dos meios e os
estudos culturais, com ênfase na intermedialidade e nos estudos comparados dos média. Nestes
contextos, tem trabalhado sobretudo com objetos híbridos da poesia experimental, copy art e
literatura eletrónica. O principal objetivo da sua investigação tem sido gerar um entendimento
abrangente e interdisciplinar do modo como as formas literárias se ligam a aspetos materiais e
tecnológicas dos meios em que se inscrevem.
BRUNO MINISTRO is a researcher at the Institute for Comparative Literature (University of
Porto). He holds a Ph.D. in Materialities of Literature (University of Coimbra). His research has
been dedicated to the multiple intersections between literary studies, media theory, and cultural
studies, with an emphasis on intermediality and comparative media studies. In these contexts,
he has primarily worked with hybrid objects of experimental poetry, copy art, and electronic
literature. The main objective of his research has been to develop a comprehensive and interdisciplinary understanding of how literary forms engage with the material and technological aspects
of the media in which they are inscribed.
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
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Leão
Um opus magnum
Por razões que ligam às minhas atividades académicas, fui acompanhando o
já longo percurso crítico pessoano de DVM, percurso esse desde logo marcado em
1994 pela publicação de uma obra de referência – Fernando Pessoa: Heteronímia e
Dialogismo –, resultado da sua dissertação de mestrado orientada por Carlos Reis.
Desde então, o autor foi publicando outras obras consideradas hoje de leitura
obrigatória. Para além de O Sujeito Modernista. Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro,
Almada Negreiros e António Ferro: Crise e Superação do Sujeito (2003) – obra que resulta
da sua tese de doutoramento, igualmente orientada por Carlos Reis –, lembro outras,
como, por exemplo: Introdução ao Modernismo (1994); Literatura em Discurso(s).
Saramago, Pessoa, Cinema e Identidade (2001); Estudos Pessoanos (2004); Sob o Signo de
Calíope. Sentidos Modernistas (2018); Il Modernismo Portoghese. Guida alla leNura con
antologia selezionata (2021). Entretanto, DVM foi convidado a proferir conferências
sobre Pessoa um pouco por todo o mundo, por conceituadas universidades europeias,
brasileiras e norte-americanas. E, ao longo deste percurso, foi igualmente publicando
em revistas de referência um conjunto extenso de ensaios, que comparecem neste
Fernando Pessoa: O Ser Verbal.
Em “Uma discursividade polifónica”, é abordada a problemática da heteronímia
pessoana, à luz das teses de Mikhail Bakhtine, procurando DVM dimensionar a
heteronímia como um espaço polifónico e pluridiscursivo –mostrando até que ponto
é admissível dimensionar a heteronímia como um espaço plural. Nesse sentido,
reflete sobre o vasto campo das Teorias do Sujeito e da Linguagem, de Bakhtine:
analisando e articulando os termos alteridade, dialogismo e polifonia / pluridiscursividade;
avaliando as consequências do contexto histórico-cultural e literário que envolve
Pessoa no discurso deste; enquadrando os heterónimos numa discursividade de teor
alteronímico, dialógico e polifónico, procurando considerar até que ponto os intuitos
inerentes à eficácia dos seus discursos visam a autonomia daqueles.
Já no ensaio anterior, o autor promove uma leitura dialógica entre dois poetas
geniais, no ensaio “Fernando Pessoa e a voz de Shakespeare”. Aí, reflete sobre o
sentido de emulação percetível em alguns textos de Pessoa, no que às relações que
com Shakespeare diz respeito. Neste ensaio, DVM aborda a relação de pensamento
e de admiração que Pessoa manteve, ao longo de toda a sua vida, com Shakespeare,
bem como a relação dialógica possível de deduzir nos procedimentos de criação
heteronímica pessoana e na criação de personagens shakespeareanas. Por essa perspetiva, concentra-se em diversas questões: no problema shakespeareano; na problemática
da alteridade; na conceção pessoana de poeta dramático, dos “graus da poesia lírica” e
da dinâmica dialógica inerente à heteronímia de Fernando Pessoa; no problema da
figuração psicológica inerente a Pessoa e a Shakespeare; na “ansiedade da influência”.
No segundo ensaio, “O instinto modernista”, desenvolve considerações
sobre a crise de valores que marcou os finais do século XIX e os princípios do século
XX, relembrando, por um lado, que essa crise se traduziu na necessidade de se ter
em consideração um quadro geral onde prevalece o valor de desterritorialização do
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Um opus magnum
discurso monológico, validado pelas noções de subversão, pluridiscursividade e de
decadência e, por outro lado, que a leitura dessa crise deve estar de acordo com a
precisão histórico-literária e teórico-metodológica, assim se apreender melhor o
gesto vanguardista.
Visão muito interessante é igualmente a que DVM oferece nos ensaios
seguintes. Em “Figurações e propósitos do processo autorreflexivo”, reflete sobre o
processo de produção poética de Pessoa, com incidência na sua consciência poética,
sublinhando o autor alguns dos pressupostos teóricos de Pessoa acerca do ato de
produção literária – pressupostos esses relacionados com um leque de noções, como,
entre várias outras, alteridade, desdobramento, verdade, mentira, fingimento, exotopia,
autoconsciência e interioridade reflexiva. Já em “A Arte e a nostalgia do encantamento”,
interpela a conceção de arte como forma de conhecimento, acentuando a vivência da
totalidade artística comprometida com o continuum entre o temporal e o eterno –
ideia compaginável com a tristeza essencial configurada no ato de produção artística
(Pessoa), com o paradoxo envolvido por esse ato no jogo permanente de perde-ganha
(Bourdieu), com a noção de negatividade subjacente à produção do objeto artístico
(Adorno), com a responsabilidade implicada pela sua produção e pela sua receção (Steiner)
e com a duplicidade histórica entre o desejo de encantamento e o de estranhamento
encerrados na sua finalidade. Nesse sentido, DVM insiste na conceção que Pessoa
tem da “Arte suprema” (que ele considera ser a Literatura), encarada como processo
de personalização e de despersonalização. E, orientado o autor por esta ideia, desenvolve
neste ensaio uma reflexão sobre o trabalho do artista e os propósitos da arte, para
terminar com uma leitura sobre as consequências (como, por exemplo, a dissolução
do encantamento do pensamento mágico adorniano) a que conduzirá a racionalização
subjacente ao positivismo lógico da Ciência.
Os quatro ensaios seguintes são fundamentalmente dedicados aos três
heterónimos pessoanos. Em “Alberto Caeiro e as lições de Fernando Pessoa” e em
“Alberto Caeiro e a terna perversidade poética”, o autor apresenta algumas reflexões
que assentam nas lições que Pessoa, pela voz do mestre Alberto Caeiro, nos ofereceu.
No primeiro, aborda a relação entre final / início de século e o perfil do professor de
Português e de Literatura, matizando esta problemática com algumas reflexões que
assentam fundamentalmente num ponto nuclear: as lições que podemos retirar do
poema VIII d’O Guardador de Rebanhos. Assim, lembra DVM o modo como Caeiro
acabou por edificar uma filosofia da imaginação, que permitiria aos seus leitores nunca
perder de vista a funcionalidade do discurso literário. E, quando o que está em causa
é um processo de ensino / aprendizagem, esse processo não se pode dissociar das
funções do professor de português e de literatura, de entre as quais se ressalta a de
consciencializar, a de corrigir e aperfeiçoar (desenvolvendo e estimulando a imaginação
do aluno), a de prolongar o encontro do aluno com as estabilidades que a língua e a
literatura portuguesas oferecem. No segundo, DVM apresenta a poética, paradoxal,
de Caeiro, no que diz essencialmente respeito ao seu objetivismo sensacionista, à sua
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desmistificação da Natureza naturante, à sua antifilosofia e antimetafísica, bem
como à lição última que, também com Caeiro e Pessoa, devemos aprender: a
perceção homeostática, vital, do humano e do não humano. No ensaio “Revisitando
a regra clássica de Ricardo Reis”, DVM sistematiza a poética deste heterónimo,
desenvolvendo, de forma muito estruturada, linhas axiais e programáticas que definem
o seu pensamento e a sua produção poética, de forma a perceber-se a dimensão
pedagógica neles presente. Já no último destes quatro ensaios, “Álvaro de Campos,
Pessoa, Almada e Sá-Carneiro: as frágeis resistências do eu total”, lembra o
contexto histórico europeu dos inícios do século XX, profundamente caracterizado
pelo triunfalismo excessivo e por um intenso desassossego – sensação diversamente
representada por Pessoa, Almada e Sá-Carneiro. Paralelamente, o discurso da subjetividade, o discurso da pluralidade e o vaticínio pessoano da ‘criação científica do
Super-Homem’ tornam-se, a este nível, questões incontornáveis, encontrando-se as
fórmulas paradigmáticas daqueles três modernistas na representação quer de uma
determinada totalidade, quer da impossibilidade dessa mesma fruição.
À Mensagem e ao Livro do Desassossego dedica igualmente DVM a sua atenção
em dois ensaios: “A Mensagem e o sentido do tangível” e “O Livro do Desassossego
e a essência literária da escrita”. Encara o texto ortónimo como domínio textual
onde variavelmente se manifestam múltiplas virtualidades de informação estética,
tendo essencialmente em conta o seu perfil de texto mítico-épico dos tempos
modernos, bem como, entre outras, algumas linhas temáticas centrais relacionadas
com a conceção quinto-imperialista e sebastianista. Quanto ao Livro do Desassossego,
reflete DVM sobre problemáticas importantes, como, por exemplo: a problemática
da referencialidade; o sentido de liberdade que se encontra na esfera do literário; o
modo como o Soares vai fixando a (re)constituição de um eu na sua “autobiografia
sem factos”; a desconstrução do autobiográfico e a compleição diarística que acaba
por determinar em parte o processo de representação do Livro; a busca identitária por
parte de Soares, que procura reconstruir-se através do vigor estético-literário com
que vai divagando constantemente sobre núcleos temáticos rubricados pela
angústia, pelo ceticismo.
O equacionamento da temática amorosa e da discursividade alteronímica
feminina comparece noutros três ensaios. Em “Pessoa e Eros”, DVM aborda a
figuração do erótico em Fernando Pessoa, enquanto espaço pluri-isotópico do interdito; em “Da essência amorosa à demanda da totalidade”, desenvolve a tese
segundo a qual podemos encarar o fenómeno amoroso como um fenómeno cuja
vivência é marcada por um registo de essencialidade, de fragmentação do sujeito e
de fingimento, permitindo-nos por aí considerar as estratégias pessoanas para
resgate da perfeição e da unidade do sujeito. Em “Alteridade e Discurso Feminino”,
escrito em 1993, desenvolve pertinente reflexão sobre um texto de Pessoa assinado
pelo pseudónimo feminino Maria José, operacionalizando-se a leitura desse texto no
âmbito hermenêutico dos Estudos Femininos.
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O pensamento de Pessoa sobre a língua portuguesa, as línguas universais, o
Quinto Império e o imperialismo cultural não são tão-pouco esquecidas. Em “Diálogo
com a lusofonia”, DVM segue o pensamento de Pessoa e trabalha sobre matrizes
operatórias configuradas por termos e conceitos como língua, discurso identitário,
unidade e diversidade, consolidando a noção que fundamenta o princípio de existência
de uma ampla Comunidade linguística lusófona traçada pelo diapasão da unidade.
No último texto, “Fernando Pessoa e a mitificação do génio”, o autor prova,
mais uma vez, cuidadosa e calculada sistematização, na disposição sequencial dos
seus ensaios; nele estuda as reflexões de Pessoa sobre as particularidades essenciais
da anima portuguesa, acabando por emprestar ao poeta dos heterónimos a possibilidade de nele comparecer a consciência da sua própria genialidade. Por esse prisma,
DVM empresta a Pessoa uma consciencialização da vitalidade, da memória e da
identidade coletiva dessa anima, lembrando o autor que o poeta dos heterónimos
acaba por registar, em diversos passos da sua produção, a consciência de clara
excecionalidade da sua própria obra, pelo contributo que ela traz para a Arte
Superior – cujo propósito, conforme Pessoa repetidamente diz, é “o aperfeiçoamento
subjectivo da vida”.
Fernando Pessoa: o Ser Verbal, opus magnum do autor, institui-se incontornável
e reconhecida referência no âmbito dos estudos pessoanos. E refiro-me a este
reconhecimento como forma subtil de hoje se poder considerar Dionísio Vila Maior
como um dos mais reputados pessoanos, como, aliás, sublinha Arnaldo Saraiva na
nota prefacial aposta – “Um ensaísta Polifónico” –, onde considera:
O filho de um crítico musical deixou-nos uma música superior, que o professor de literatura
e diretor artístico Dionísio Vila Maior vem polifonicamente analisando e promovendo há
quase três décadas. Hoje, podemos com razão considerá-lo um dos mais reputados sucessores de
pessoanos ilustres como – para citar só meia dúzia – Adolfo Casais Monteiro, João Gaspar
Simões, Jorge de Sena, Maria Aliete Galhoz, António Quadros e Eduardo Lourenço.
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Um opus magnum
ISABEL PONCE DE LEÃO é Professora Catedrática da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da
Universidade Fernando Pessoa, Porto, Portugal, membro do Centro de Estudos Globais (CEG – U.
Aberta), do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade (CECS – U. Minho), do Círculo de
Estudos do Centralismo (CEC) e do INfAST; vogal do Conselho de Administração da Cooperativa
Árvore e vice-presidente do Centro de Estudos Regianos. Como docente e investigadora colabora
com outras instituições de ensino superior, em Portugal, América Latina, sobretudo Brasil, e
vários países europeus. Faz parte do conselho editorial e / ou científico de várias revistas, jornais
e outras publicações e integra comissões científicas de colóquios, congressos e outros eventos,
que também promove, bem como júris académicos e de prémios literários aos níveis nacional e
internacional. A sua atividade estende-se à comunidade civil cooperando com diversas Câmaras
Municipais, particularmente com a do Porto, onde é Presidente da Comissão de Toponímia.
Áreas de investigação: Jornalismo Cultural, Antropoceno, Ecocrítica, Literatura Moderna e
Contemporânea e Interartes. É autora de inúmeras publicações, particularmente nas duas últimas
áreas referenciadas.
ISABEL PONCE DE LEÃO is a Full Professor at the Faculty of Humanities and Social Sciences of the
Fernando Pessoa University in Porto, Portugal. She is a member of the Center for Global Studies
(CEG – Open University), the Center for Communication and Society Studies (CECS – University
of Minho), the Center for the Study of Centralism (CEC), and INfAST. She serves as a board
member of the Árvore Cooperative and is the vice-president of the Center for Regian Studies.
As a teacher and researcher, she collaborates with other higher education institutions in
Portugal, Latin America, especially Brazil, and various European countries. She is part of the
editorial and/or scientific boards of several journals, newspapers, and other publications and
participates in scientific commicees for colloquia, conferences, and other events, which she also
promotes. She is also involved in academic juries and literary awards at the national and
international levels. Her activities extend to the civil community, collaborating with various
Municipal Chambers, particularly with the Porto Chamber, where she is the President of the
Toponymy Commission. Her research areas include Cultural Journalism, Anthropocene,
Ecocriticism, Modern and Contemporary Literature, and Interarts. She is the author of numerous
publications, particularly in the last two mentioned areas.
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Bothe
Aspects of a literary legacy
influential aspects of his poetry, namely his innovative free verse and the impersonality
of emotion in art —which as Martinho also refers, coincides with T. S. Eliot’s statement
in “Tradition and the Individual Talent” (133).
In the note that precedes Aspectos do Legado Pessoano, the author also explains
that the nature of its content is diverse. This nature, I gather, responds mainly to two
models. The first, to which the most copious group of texts may comply, responds
as Martinho himself puts it, to the task of approaching Pessoa in his relation to other
poets: “No meu trabalho crítico, quase sempre abordei [Campos] na sua relação com
a legião de herdeiros de Pessoa na moderna poesia portuguesa” (275). This approach
is sometimes a pairing of a poet with Pessoa or one of his heteronymous personae
to find his traces in their poetry, like he does with Sophia de Mello, Alexandre O’Neill,
Ruy Belo, Ana Hatherly, Mário Cesariny, and M. S. Lourenço. Other times, he goes
through a great group of poets in search of Pessoa’s presence among them, like he
does with the Surrealists and Neo-Realists. The studies dedicated to Casais Monteiro
and Eduardo Lourenço, should be considered separately, because here Martinho
deals with the critical reception of Pessoa by these two renowned writers to whom
Pessoa’s poetry owes a great deal of its dissemination.
The second is more of a close reading model, in which Martinho chooses a
topos or a poem and thoroughly studies it until he uncloses what he aims to discover.
These essays are very pleasurable readings and reveal not only the great critical insight
of Martinho, but also new critical horizons.
Towards the end of the book, there is also a single case of a memoir, in which
Martinho narrates his own experiences at the first Congress organized to analyse
and discuss Pessoa’s writings.
One thing, though, is common to all the texts contained in this book: they
arise from the notion of an intertext. Reading J. B. Martinho’s essays is like attending
a literary salon in which the most interesting conversations between a great number
of Portuguese poets of the 20th century, a selected number of foreign guests, and
Fernando Pessoa and his heteronymous poets take place.
The book is still full of little surprises and curious pieces of information. In
Uma Relação Ambivalente: Os Neo-Realistas e Pessoa [An Ambivalent Relation: The NeoRealists and Pessoa], Martinho mentions some Neo-Realist poets might have heard of
Pessoa’s “Ode Marítima” for the first time, when recited, unabridged, by Manuela
Porto in 1938, who at the time was a well-known diseuse, as the author refers to her.
These kinds of details leave the reader travel in time and remember that not only
books brought words about in times forgone.
The line I selected as an epigraph to this review comes from The Book of Disquiet,
as the name of the Livro do Desassossego has been translated. It appears quoted in two
different essays of Martinho’s book, who very much like Jorge Luis Borges, comes
back to certain motifs. Both essays are on The Book of Disquiet. The first time, on page
179, in “Reflexões sobre a Literatura no Livro do Desassossego de Bernardo Soares”
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Bothe
Aspects of a literary legacy
[Reflexions on Literature in Bernardo Soares’ The Book of Disquiet]; the second time, on
page 221, in “Autoconsciência Literária em Bernardo Soares, com uma Coda sobre o
Livro como Livro de Sabedoria [Literary Self-Awareness of Bernardo Soares, with a Coda
on the Book as a Wisdom Book]. The quote appears to illustrate the admiration Pessoa
felt for Vieira’s prose. This trait of Martinho’s style repeats itself with several other
motifs and makes the readers reach moments of pure delight, moving them steadily
into his leading thoughts. As to the second essay, “Literary Self-Awareness…”, I may
add, it advances a promising future project we are already very much expecting.
For those who have never heard of professor Martinho, the book closes with
a brief biographical note. But I don’t think reading the note will ever give the reader
an idea of the real credentials of the author.
Martinho’s essays are a journey through the Portuguese poetry of the second
half of the 20th century, and not only. Fernando Pessoa is the intertext, and pretext
to set out by the hand of a true connoisseur of the very best places to visit.
Reading this book has made me remember my days as a student of Martinho
at the University of Lisbon, where I took my very first steps in search of Pessoa, who
I still believe to be one of the best poetical figures of our world’s literature. I highly
recommend this book to anybody who is seriously interested in Pessoa Studies.
Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024)
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Bothe
Aspects of a literary legacy
PAULY ELLEN BOTHE é Doutora em Letras pela Universidad Nacional Autónoma de México;
Mestre em Literatura Comparada pela Universidade de Lisboa; e Licenciada em Letras Espanholas
pela Universidad de Guanajuato. Fez uma investigação de pós-doutoramento no Centro de
Linguística da Universidade de Lisboa (CLUL) de 2010 a 2012 (cf. Fernando Pessoa, Apreciações
Literárias. Lisboa: INCM, 2013). Colaborou no Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e
Europeias (CLEPUL). Trabalhou como professora da Licenciatura em Letras Portuguesas do Colegio
de Letras Modernas da Universidad Nacional Autónoma de México (UNAM). Foi professora
da área de Formação Humana e da Licenciatura em Lenguas Modernas e Interculturalidade da
Universidad La Salle Oaxaca e da Licenciatura em Humanidades do Instituto de Investigaciones
en Humanidades da Universidad Autónoma Benito Juárez de Oaxaca.
PAULY ELLEN BOTHE holds a Ph.D. in Literature from the National Autonomous University of
Mexico; a Master’s degree in Comparative Literature from the University of Lisbon; and a Bachelor’s
degree in Spanish Literature from the University of Guanajuato. She conducted post-doctoral
research at the Center for Linguistics of the University of Lisbon (CLUL) from 2010 to 2012 (cf.
Fernando Pessoa, Apreciações Literárias. Lisbon: INCM, 2013). She collaborated at the Center for
Lusophone and European Literatures and Cultures (CLEPUL). She worked as a professor in the
Portuguese Literature Bachelor’s program at the Colegio de Letras Modernas of the National
Autonomous University of Mexico (UNAM). She was a professor in the area of Human Formation
and in the Bachelor’s program in Modern Languages and Interculturality at Universidad La Salle
Oaxaca, and in the Bachelor’s program in Humanities at the Institute of Humanities Research at
the Benito Juárez Autonomous University of Oaxaca.
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Rodi
A segunda vida
seus cadernos deste período, referências a livros como L’Occultisme et le Spiritualisme,
de Papus (1902), ou La Synthèse chimique (1875), de Marcellin Berthelot, reputado
químico que se dedicou também ao estudo das origens e princípios da Alquimia.
Georg Rudolf Lind, crítico alemão que estudou a obra pessoana, escreveu, em
1962, no Diário de Notícias: “Às futuras gerações de filólogos, à procura das fontes
que inspiraram o maior poeta português desde Camões, recomendamos uma pesquisa
na biblioteca de Fernando Pessoa”. O apelo foi levado a sério, embora tenha demorado
anos a concretizar-se. Em 1988, a Câmara Municipal de Lisboa comprava à família
cerca de 1200 livros da sua biblioteca, e entre 2008 e 2009 era realizada a sua
digitalização integral por uma equipa coordenada por Jerónimo Pizarro. A Biblioteca
Particular de Fernando Pessoa encontra-se desde 2010 disponível no site da Casa
Fernando Pessoa, e são inúmeros os livros relacionados com temas místicos e ocultos
de autores como Mabel Collins, A. E. Waite ou Helena Blavatsky, de quem Pessoa
chegou a traduzir algumas obras. O poeta foi-se transformando através das leituras
que fez, e foi exatamente por aí que JCS iniciou a transformação do seu protagonista.
Ao decidir tirar um ano sabático para aceitar um trabalho de “invenção
literária”, muito bem pago, na aldeia do Freixo, um lugar “no fim do mundo” (21),
o protagonista do romance de JCS desconhecia ao que ia. Contratado por um
estranho homem de nome Sena, que lhe pedia que transcrevesse excertos de livros,
enquanto lhe dava outros a ler, foi-se moldando pouco a pouco àquilo que se
pretendia dele, sem que ele o soubesse: tornar-se Vicente Guedes. Os primeiros
autores que Sena lhe dá a ler são escritores que se cruzaram com Aleister Crowley,
a Besta, ocultista inglês “da linha cinzenta ou negra, em que o egoísmo predomina
sobre o altruísmo e os fins justificam os meios” (30). Crowley ficara impressionado
com os conhecimentos do poeta português, que lhe escrevera uma carta a corrigir
um horóscopo publicado numa revista inglesa, e resolveu visitá-lo em Lisboa, em
setembro de 1930, com a pretensão de o envolver na sua Ordem, mas também nos
seus negócios. Ao longo da primeira metade do romance, há referências a episódios
ocorridos nesses dias – as discussões entre Crowley e Hanni Larissa Jaeger, que o
acompanhava; o falso suicídio da Besta na Boca do Inferno e a forma como Pessoa
participou nessa blague, tendo em mente escrever um livro policial que nunca viu a
luz do dia –, talvez como prenúncio do que viria a acontecer ao protagonista: entrar
numa encruzilhada mística que envolvia uma alegada morte e uma intrincada
ressurreição, com vista à promoção de uma obra.
Mas vários outros prenúncios estão presentes no romance, revestidos de uma
carga simbólica que só se vai revelando numa leitura mais atenta. É o caso do palácio
onde Sena habita, no Freixo, que poderia ter pertencido a “ordens medievais
militares dos cavaleiros [...] Templários” (24). Já quando o protagonista é incumbido
de ir a um leilão arrematar a arca original de Fernando Pessoa, acaba por levá-la até
ao Freixo numa caravana de ciganos. Sabemos que esse leilão existiu, em 2008, e que
a arca de madeira se encontra nas mãos de um particular residente no norte do país,
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que bem podia ser Sena, o excêntrico habitante da aldeia do Freixo, “o ponto habitado
mais a norte” (21). E poderá esta arca remeter-nos para a Arca da Aliança, a relíquia
mais sagrada dos israelitas, que continha as tábuas dos 10 Mandamentos e simbolizava
a aliança deste povo (nómada, como os ciganos) com Deus? O paralelismo termina,
felizmente, no paradeiro das arcas físicas, já que o conteúdo da segunda, apesar de
muito procurado pelos arqueólogos, continua em parte incerta, enquanto o da
primeira se encontra na Biblioteca Nacional, com estatuto de tesouro.
O próprio nome Sena remete-nos para Jorge de Sena, um dos primeiros
escritores e investigadores a procurarem dar visibilidade à obra de Pessoa, tendo
ainda sido Jorge de Sena um dos primeiros a trabalhar na organização do Livro do
Desassossego. E, ao longo do romance, outros nomes saltam à vista: Adolfo, com quem
o protagonista se cruza (141), e que nos remete para Adolfo Casais Monteiro; e Ferreira
Gomes, alegado descendente do jornalista místico, amigo de Pessoa, que no romance
dá a conhecer ao protagonista os arquivos do Diário de Notícias, e depois o entrevista
já como Vicente Guedes, contribuindo assim para o seu reconhecimento público.
JCS conduz-nos assim por um labiríntico “jogo de espelhos” – como sugere o
escritor e investigador João Lopes, na frase partilhada na contracapa –, que é tanto
mais interessante, quanto melhor se conhecer a vida e obra de Pessoa. O que pode
parecer, à partida, uma limitação, faz, na verdade, jus à temática central do romance,
porque o conhecimento hermético não é para todos, exige um certo grau de Iniciação.
Confirmada a presença de uma malha simbólica no romance (a face visível
da Alquimia), resta saber se a operação alquímica engendrada por JCS foi bemsucedida. Centremo-nos nas três etapas de transformação definidas pelos alquimistas:
Nigredo, Albedo e Rubedo. O Nigredo consiste na morte espiritual, para dar lugar
ao novo. O Homem preso à matéria (elemento TERRA) seria como o chumbo, um
metal inferior que simboliza um estado de ignorância e pouca consciência em relação
à natureza divina. No despertar para a alegada verdade, que implica a morte do ego,
renasce o Homem novo, o Albedo (elemento ÁGUA). No romance, o protagonista ruma
à aldeia do Freixo (TERRA) num estado de grande inconsciência em relação ao que
está para vir, bem como às suas capacidades para o conseguir. Muitas sessões de
leitura e alguns caricatos episódios depois, o protagonista mergulha na Boca do Inferno
(ÁGUA), renascendo das ondas como Vicente Guedes. Foi também nesse lugar que a
Besta simulou o suicídio, assumindo-se como um profundo conhecedor dos símbolos,
mas também como uma fraude na sua execução prática, pretendendo apenas conquistar
a fama e libertar-se de dívidas pendentes. Já o protagonista do romance atirou-se, de
facto, para as águas turbulentas do local, que o devolveram a terra sem um arranhão,
mas o sentimento de fraude não deixou de estar presente: “Os poucos segundos
passados entre o momento em que perdi o pé e aquele em que me afundei na água
foram os suficientes para reler a Comédia até ao penúltimo dos seus nove cantos,
aquele que Dante intitulou como Fraude” (177).
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E terá o protagonista, agora como Vicente Guedes, atingido a terceira e última
etapa do processo alquímico? Nela nasce uma verdadeira consciência cósmica,
alcança-se a Pedra Filosofal. Mas o que se segue ao episódio na Boca do Inferno é
uma iluminação questionável, que parece apenas perpetuar a fraude. “Esse merdoso
(Vicente Guedes) vai ser um herói e, como os nossos grandes heróis, vai abandonar
o país e reencontrar-se. Depois, voltará e será reconhecido. É assim que gostam, é
isso que lhes vou dar” (201). E o protagonista ruma, com uma mulher de nome
Beatriz, até à Baía da Traição (o que remete mais uma vez para um dos círculos do
Inferno de Dante), embarcando numa viagem transatlântica com sósias de escritores
já falecidos, também eles fingindo ser quem não são: Proust, Joyce, Hemingway,
Virginia Woolf, Torga.
O próprio regresso de Vicente Guedes a Portugal, depois da sua delirante
viagem, o sucesso que faz no Martinho da Arcada e a discussão pública em torno da
sua candidatura ao Prémio Nobel, alegada consagração máxima para um escritor,
só funcionam no plano da Fraude e da Traição, já que a verdadeira transformação
alquímica tem pouco que ver com mutação exterior ou reconhecimento dos pares.
Mas JCS também não parece preocupado. A sua pretensão, para além de muito
divertida, é também legítima, à sua maneira: quem, minimamente conhecedor da
obra de Fernando Pessoa, não desejaria que ele tivesse tido esse reconhecimento no
tempo devido? E se o fizesse em nome de Vicente Guedes, que nunca teve direito à
vida, e foi até preterido como autor do Livro do Desassossego, melhor seria. JCS,
mesmo defraudando o divino, acaba por repor a justiça terrestre, como um Deus
farto de planos cósmicos impenetráveis, que de repente resolve intervir diretamente
na história do mundo. E não é esse (ou pode ser) o papel de um escritor?
JCS não deu muito crédito à verdadeira transformação alquímica, mas Pessoa
era mais crente. E, não tendo tido uma vida que nos permita falar propriamente num
percurso de iluminação – perdido que andava nos apelos da vida mundana e nas
contradições da mente, desgastado também pelos vícios do corpo –, deixou-nos pelo
menos uma obra que contém a capacidade de transformar quem a lê. A leitura tem
esse poder, como a História bem o comprova, através de episódios variados de
censura ou de imposição, que nos devem fazer questionar a liberdade do leitor.
Fernando Pessoa nada nos impôs ou censurou, mas parece ter atuado (se não sempre,
quando conseguiu essa lucidez) com um objetivo claro. Conforme escreveu a
Armando Côrtes-Rodrigues, em janeiro de 1915, “pouco a pouco, mas seguramente,
no divino cumprimento íntimo de uma evolução cujos fins me são ocultos, tenho
vindo erguendo os meus propósitos e as minhas ambições cada vez mais à altura
daquelas qualidades que recebi. Ter uma ação sobre a humanidade, contribuir com
todo o poder do meu esforço para a civilização vêm-se-me tornando os graves e
pesados fins da minha vida” (PESSOA, 2009: 355). Estará o seu plano em marcha?
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Bibliografia
CENTENO, Yvette (2022). O Pensamento Esotérico de Fernando Pessoa. Lajes do Pico: Companhia das Ilhas.
LAGE, Rui (2018). O Invisível. Lisboa: Gradiva.
MORAIS, Ricardo Belo de (2014). O Quarto Alugado. Lisboa: Verso de Kapa.
ROOB, Alexander (1997). Alquimia & Misticismo. Colónia: Taschen.
PESSOA, Fernando (2019). O Mistério da Boca do Inferno. Correspondência e novela policial. Edição de
Steffen Dix; traduções de Sofia Rodrigues. Lisboa: Tinta-da-china.
_____ (2015). Hermetistmo e Iniciação. Organização, prefácio e notas de Manuel J. Gandra. Sintra: Zéfiro.
_____ (2009). Sensacionismo e Outros Ismos. Edição crítica de Jerónimo Pizarro. Lisboa: Imprensa
Nacional-Casa da Moeda.
_____ (1998). Cartas entre Fernando Pessoa e os Directores da “presença”. Edição e estudo de Enrico
Martines. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda.
SARAMAGO, José (2016). O Ano da Morte de Ricardo Reis. Porto: Porto Editora.
SILVA, Freddy (2019). Os Grandes Mistérios da Iniciação. Lisboa: Alma dos Livros.
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Rodi
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SARA RODI é licenciada em Ciências da Comunicação. Publicou os dois primeiros romances no
ano de 2000, Frio e Sombra dos Anjos. Dedicou-se à literatura infanto-juvenil, com coleções como
“As Gémeas” e “Escola das Artes”, e escreveu dois romances históricos: D. Estefânia – Um Trágico
Amor e D. Teresa de Távora – A Amante do Rei. Como argumentista, tem trabalhado em dezenas
de produtos televisivos, como “Morangos com Açúcar”, “Crimes Submersos/Sequía” ou “Senhor
Rui – Um Homem do Povo” e adaptou a sua coleção “Escola das Artes” para cinema. Durante
dez anos, dedicou-se também à elaboração de biografias personalizadas com tiragens limitadas,
através da sua empresa “O Livro da Minha Vida”. Experimentou a apresentação em “Tenho um
Adolescente. E agora?”, no canal de saúde S+, e foi co-fundadora do movimento “Por Uma Escola
Diferente”, participando como oradora e moderadora em encontros dedicados à educação,
sustentabilidade e saúde. É membro do Clube das Mulheres Escritoras e escreve com frequência
para a imprensa sobre os temas que a movem. É autora do romance O Quanto Amei – Fernando
Pessoa e as Mulheres da Sua Vida (2021).
SARA RODI holds a degree in Communication Sciences. She published her first two novels in
2000, Frio and Sombra dos Anjos. She dedicated herself to children’s and young adult literature,
with collections such as “The Twins” and “School of the Arts,” and wrote two historical novels:
D. Estefânia – Um Trágico Amor and D. Teresa de Távora – A Amante do Rei. As a screenwriter, she
has worked on dozens of television productions, such as “Morangos com Açúcar”, “Crimes
Submersos/Sequía” or “Senhor Rui – Um Homem do Povo”, and adapted her collection “School
of the Arts” for cinema. For ten years, she also dedicated herself to the elaboration of
personalized biographies with limited editions, through her company “The Book of My Life.”
She experimented with hosting “I Have a Teenager. And Now?” on the S+ health channel, and
was a co-founder of the “For a Different School” movement, participating as a speaker and
moderator in meetings dedicated to education, sustainability, and health. She is a member of the
Women’s Writers Club and frequently writes for the press about the topics that move her. She
is the author of the novel O Quanto Amei – Fernando Pessoa e as Mulheres da Sua Vida (2021).
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