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Pessoa Plural―A Journal of Fernando Pessoa Studies, Issue 25

2024, Pessoa Plural―A Journal of Fernando Pessoa Studies

Pessoa Plural―A Journal of Fernando Pessoa Studies, Issue 25, Spring, 2024. https://doi.org/10.26300/j2dj-x992

n. 25 o Pessoa Plural A Journal of Fernando Pessoa Studies issn: 2212-4179 GUEST EDITOR Marcelo Mello EDITOR-IN-CHIEF Jerónimo Pizarro CO-EDITORS Onésimo Almeida Paulo de Medeiros "#$$%&!"'()&'*+!,%()-&'!%.!/#)-&-0%!"#$$%&!12(03#$ 4)%5-!6-37#)$3289!6-37#)$328!%.!:&)53;<9!6-37#)$30&0!0#!'%$!+-0#$ 555=>#$$%&>'()&'=;%? @ABC!DD!4EF1+!G=A H032%)F3-F;I3#.J! ,#)K-3?%!"3L&))% D%F#032%)$J! M-N$3?%!+'?#30&!O!"&('%!0#!P#0#3)%$ 1>#;3&'!Q$$(#!R(#$2!H032%)J!!P&);#'%!D%)0#3)%!0#!P#''% 4%%<!S#73#5!H032%)$J! "&2)T;3&!P&)23-I%!/#))#3)&!O!+-2%-3%!D&)03#''% +$$3$2&-2!2%!2I#!H032%)$J! 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Table of Contents Issue 25, Spring 2024 Número 25, Primavera de 2024 [PART 1: SPECIAL ISSUE / NÚMERO ESPECIAL] Como o cinema descobriu Fernando Pessoa .................................................................................. 1 [How cinema discovered Fernando Pessoa] Marcelo Cordeiro de Mello [ARTICLES / ARTIGOS] Lisboa, a cidade mítico-poética de Pessoa ................................................................................ 11 [Lisbon, Pessoa’s mythical-poetic city] Leonardo de Atayde Pereira / José Eduardo Leão Franchi Ferreira Eugène Green encontra Fernando Pessoa ................................................................................ 35 [Eugène Green meets Fernando Pessoa] Sabrina Sedlmayer Cadernos diários de Edgar Pêra: uma leitura pessoana ......................................................... 56 [Edgar Pêra’s daily notebooks: a Pessoan reading] Teresa Lima Não Sou Nada (2023): Uma análise das representações mediáticas ..................................... 78 [Não Sou Nada (2023): An analysis of media representations] Teresa Lima Imaginar, especular, subverter (através de sonhos, visões, alucinações) Fernando Pessoa, Edgar Pêra e a inteligência artificial ......................................................... 97 [Imagining, Speculating, Subverting (through dreams, visions, hallucinations) Fernando Pessoa, Edgar Pêra, and artificial intelligence] Bruno Ministro Quaresma, realizador: Sobre uma adaptação cinematográfica dos contos policiais de Pessoa realizada por Luísa Costa Gomes ..................................... 116 [Quaresma, filmmaker: On a cinematic adaptation of Pessoa’s detective stories by Luísa Costa Gomes] Simone Celani Pessoa transfictionnel : À propos de Não Sou Nada, scénario inédit de Luísa Costa Gomes 129 [Transfictional Pessoa: About Não Sou Nada, unpublished screenplay by Luísa Costa Gomes] Régis Salado A pluralidade de Pessoa em filmes de animação e histórias em quadrinhos ................. 159 [The plurality of Pessoa in animated films and comic books] Pedro Moura O mistério da Boca do Inferno: O encontro curioso entre Pessoa e Crowley .................. 189 [The Mystery of the Mouth of Hell: The curious encounter between Pessoa and Crowley] Steffen Dix Victor Belém y sus foto-ficciones: Fernando Pessoa vs. Aleister Crowley ...................... 202 [Victor Belém and his photo-fictions: Fernando Pessoa vs. Aleister Crowley] Catalina María Gutiérrez-Giraldo O Mistério da Boca do Inferno: O filme de José de Pina que opõe Pessoa a Crowley ... 223 [O Mistério da Boca do Inferno: The film by José de Pina that contrasts Pessoa with Crowley] João Céu e Silva Boca do Inferno: Adaptação cinematográfica da novela policial que Fernando Pessoa não escreveu .......................................................................................... 249 [Boca de Inferno: Film adaptation of the detective novel that Fernando Pessoa didn’t write] Gianluca Miraglia Fernando Pessoa na Boca do Inferno: Dá a surpresa de ver um filme erótico detetivesco . 278 [Fernando Pessoa in Hell’s Mouth: The astonishment of watching a detective erotic movie] Ana Clara Magalhães de Medeiros Um Jantar Muito Original: Recontextualização e amplificação ......................................... 312 [A Very Original Dinner: Recontextualization and amplification] Maria de Lurdes Sampaio O Ídolo à luz das novelas policiarias de Fernando Pessoa .................................................. 328 [O Ídolo in the light of Fernando Pessoa’s detective fiction] Marcelo Schincariol [DOCUMENTS / DOCUMENTOS] Vestígios de ninguém: As referências pessoanas na obra do cineasta Julio Bressane ........ 376 [Traces of nobody: References to Pessoa in the work of filmmaker Julio Bressane] Ruy Gardnier Dossier Ophiussa: Materiais de um filme com Pessoa ........................................................ 392 [Dossier Ophiussa: Materials from a Film with Pessoa] Ida Alves À propos de Le songe de B. Soares ............................................................................................ 428 [About Le songe de B. Soares] Thibault Chollet Paisagem-Pessoa: Apresentação de uma paixão em processo ............................................ 449 [Paisagem-Pessoa: Presentation of a Passion in Progress] Susana Ventura A Confissão de Laerte: Uma leitura da história em quadrinhos “O Poeta” .................... 461 [Laerte’s Confession: A reading of the comic book “O Poeta”] Ermelinda Maria Araújo Ferreira Pessoa e o Cinema? ..................................................................................................................... 476 [Pessoa and cinema?] José-Manuel Xavier Unas notas sobre Perplejidad .................................................................................................... 492 [Some notes on Perplejidad] Carlos Atanes Um Jantar Muito Original: O guião do filme de Ferreira e Simal ..................................... 504 [Um Jantar Muito Original: The film script by Ferreira and Simal] Maria de Lurdes Sampaio / André Almeida [FILM REVIEWS / CRÍTICAS] O estranho caso do assassino de heterónimos ....................................................................... 545 [The Strange Case of the Killer of Heteronyms] Recensão do filme Não Sou Nada – The Nothingness Club (2023) Manuel Halpern Cinema oculto sem filmar ......................................................................................................... 550 [Unfilmed hidden cinema] Recensão de Aleister Crowley en la Boca del Infierno: El guión nunca filmado (2013) Diego Giménez Pessoa e a cidade, em rigor ........................................................................................................ 556 [Pessoa and the city, in rigor] Recensão do filme Ophiussa – Uma Cidade de Fernando Pessoa (2012) João Macdonald Da escrita de imagens do filme Au bord du monde ............................................................... 562 [On the image writing of the film Au bord du monde] Recensão do filme Au bord du monde – Fernando Pessoa (1992) Joanise Levy [PART 2: REGULAR ISSUE / NÚMERO REGULAR] [ARTICLES / ARTIGOS] Um Husserl heterónimo de Pessoa: entre a atitude poética e a atitude fenomenológica .... 584 [A Husserl heteronym of Pessoa: Between poetic attitude and phenomenological attitude] Emanuele Mariani [DOCUMENTS / DOCUMENTOS] “Diário na Sombra”: A edição crítica que faltava ................................................................. 611 [“Diário na Sombra”: The critical edition that was missing] Gianluca Miraglia [BOOK REVIEWS / CRÍTICAS] O homem dos sonhos ................................................................................................................. 623 [The man of dreams] Recensão do livro Pessoa, el hombre de los sueños, 2023 Fernando Évora “The aesthetic tie that binds me to the outside world”: From intervals to episodes ..... 628 [“Vosso seja o laço que me une ao exterior pela estética”: De intervalos a episódios] Recensão do livro The Complete Works of Álvaro de Campos, 2023 Inês Forjaz de Lacerda Um estudo que não cessa de não se estudar .......................................................................... 634 [A study that never ceases not to be studied] Bruno Ministro Recensão do livro Fernando Pessoa: irrealidad, escritura y desasosiego, 2023 Um opus magnum ........................................................................................................................ 640 [An opus magnum] Recensão do livro Fernando Pessoa: O Ser Verbal, 2023 Isabel Ponce de Leão Aspects of a literary legacy ........................................................................................................ 646 [Aspectos de um legado literário] Recensão do livro Aspectos do Legado Pessoano, 2022 Pauly Ellen Bothe A segunda vida de Fernando Pessoa ........................................................................................ 650 [Fernando Pessoa’s second life] Recensão do livro A Segunda Vida de Fernando Pessoa, 2020 Sara Rodi !"#"$"$%&'(#)$*(+%",-&.$/(-')'*"$0(++") 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Essa produção diversa, escrita há um século, compõe a evidência do interesse – difuso, porém persistente – do escritor português pelo cinema. Agradeço aos editores da revista Pessoa Plural pelo convite para a organização deste número especial. Ele é resultado de um trabalho iniciado em 2011 com minha dissertação de Mestrado, em que estudei a relação entre Pessoa e o cinema (MELLO, 2011). Faltava inverter a ordem e investigar o interesse do cinema por Pessoa, ou seja, recensear os filmes e cineastas que se inspiraram em sua vida e obra. Desde 2023, meu trabalho tomou forma numa pesquisa pós-doutoral – financiada pelo CNPq, e realizada na Universidade de São Paulo, sob a supervisão do professor Caio Gagliardi. Mais recentemente, a partir de 2024, também com financiamento do CNPq, e sob supervisão da professora Ana Clara Magalhães de Medeiros, da Universidade de Brasília, iniciei uma pesquisa sobre o mesmo tema que terá períodos de investigação na Brown University (EUA), na Universidade do Algarve (Portugal) e na Universidad de los Andes (Colômbia). Ao longo desta pesquisa, o corpus fílmico mais que triplicou de tamanho. Ao todo já são mais de cinquenta filmes relacionados com Fernando Pessoa na lista que tenho em construção1. Neste dossiê especial, é dado a conhecer um recorte amostral desse corpus, com o intuito de discutir e suscitar a pesquisa sobre essa produção. É surpreendente que, dentro de um panorama tão vasto como o da crítica pessoana, o tema do cinema tenha ocupado um lugar tão marginal. A proposta desta edição especial da revista Pessoa Plural é suprir essa lacuna e dar a conhecer ao público e à crítica acadêmica uma produção desconhecida de filmes inspirados na vida e na obra de Fernando Pessoa. Existe um cinema pessoano? Já há muitos estudos a respeito da influência pessoana dentro da própria literatura, especialmente na prosa (cujo mais notável expoente é o escritor Antonio Tabucchi). Há também trabalhos sobre a imagética da figura de Pessoa nas artes visuais (por exemplo: LOURENÇO, 1986 ou FERREIRA, 2007). Faltava um estudo longo – ou uma coletânea de estudos, como é o caso aqui – sobre as obras audiovisuais relacionadas a Pessoa: à sua vida, sua figura e, muito especialmente, à sua obra: seja à metaficção do “drama em gente” heteronímico, seja à obra poética que o imortalizou, ou, ainda, à produção marginal ao cânone dos quatro heterônimos mais conhecidos, categoria em que podem ser incluídos seus escritos em prosa e seus argumentos para filmes. A lista abrange muitas décadas e vários países. Apresentei uma visão panorâmica dela no curso “Cinema Pessoano: os filmes inspirados na vida e na obra de Fernando Pessoa”, oferecido no Cinema da Universidade de São Paulo (CINUSP), entre 9 e 21 de novembro de 2023. 1 Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 2 Mello Como o cinema descobriu Fernando Pessoa Diante do diagnóstico a respeito da crítica2 sobre esses filmes pessoanos, surgiu a necessidade de se criar um volume que inaugurasse o desbravamento do campo de estudo, convidando estudiosos a refletir sobre certas obras audiovisuais. Foi surgindo, colateralmente aos filmes propriamente ditos, uma miríade de outros documentos cinematográficos: roteiros (ou guiões) de filmes (já realizados ou ainda a ser realizados), storyboards e outros tipos de estudos visuais, fotografias de set, (e outros tipos de fotografia de viés cinematográfico) e alguns documentos inclassificáveis (até então). Este amplo e inédito material ajudou a formar, ao lado dos filmes, a matéria-prima sobre a qual mais de vinte estudiosos se debruçaram, tendo por resultado este dossiê com quase 30 contributos. Os documentos de texto, imagem e som ora incluídos suscitaram uma ampla gama de questões que refletem as mil faces do poeta da multiplicidade. Algumas dessas questões são: É possível adaptar a poesia? Que tipo de pensamento audiovisual deriva de uma obra como a de Pessoa? Como autores cinematográficos atenderam ao desafio de responder a Pessoa? E qual foi o Pessoa que cada diretor criou? De que maneira a imagem exterior do poeta – o fantasma de chapéu, óculos e bigode – ronda certos filmes? Como cada cineasta interpreta a opinião do próprio Pessoa sobre o cinema – dispersa em sua obra menos conhecida, mas também aludida em sua poesia? Quais são as potências intertextuais da obra de Pessoa para além do espaço literário? Como a produção cinematográfica pessoana tratou, especificamente, o seu interesse por gêneros como o policial – tão ligado ao cinema? Além do gênero policial e de mistério, foi dedicada aqui atenção especial aos desenhos animados pessoanos. Este dossiê especial procurou acolher a diversidade do cinema pessoano, incluindo filmes e outros materiais que podem ser enquadrados nas mais diferentes categorias e subcategorias, e dão ao leitor uma amostra do vasto panorama que compõe o cinema pessoano. Este material, é claro, foi tratado sob uma grande pluralidade de abordagens, entre as quais pode se dizer que existe certa complementaridade, e possibilidades de diálogos férteis. A abundância presente tanto no corpus fílmico quanto nos textos críticos impõe a consideração de um novo campo de estudo. Os filmes e documentos fílmicos inspiraram textos críticos, cada qual ocupando sua respectiva seção. Um arquipélago de documentos cinematográficos e textos críticos é apresentado a seguir. Esta apresentação procura traçar pontes entre esses textos, convidando o leitor a mergulhar nesse universo caleidoscópico. Esta é a filmografia que este dossiê esmiúça: Parcial, ainda assim, com bons estudos sobre filmes pessoanos, por exemplo: MARTINHO (2015), MATTOS-CRUZ (2017), MEDEIROS (2001), PETERLE (2005), SANTANA (2008), SEDLMAYER (2023) e SOARES (2021), para referir apenas alguns. Cito, ainda, dois dos meus trabalhos: MELLO (2021a) e MELLO (2021b). 2 Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 3 Mello Como o cinema descobriu Fernando Pessoa • • • • • • • • • • • • • • O Mistério da boca do inferno (1989), de José Pina Au bord du monde (1992), de Valérie Upscheid 28 (2009), de José-Manuel Xavier O batuque dos astros (2012), de Júlio Bressane Eu, Fernando Pessoa (2013), de Eloar Guazzelli Ophiussa (2013), de Fernando Carrilho Pessoas (2015), de José-Manuel Xavier A cidade dos piratas (2018), de Opo Guerra e Laerte Coutinho Como Fernando Pessoa salvou Portugal (2018), Eugène Green Desassossego (2018), de José-Manuel Xavier Le Songe de B. Soares (2019), de Thibault Chollet Boca do Inferno (2019), de Luís Porto O ídolo (2021), de Pedro Varela Um jantar muito original (2021), de Leandro Ferreira A seguir são sugeridos alguns caminhos possíveis para guiar o seu olhar. Luzes, câmera… Ação! Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 4 Mello Como o cinema descobriu Fernando Pessoa Figs. 1 a 14. Filmografia do número especial. Embora já tenha sido considerado um “poeta sem biografia”, o fato é que a vida concreta e real de Pessoa inspirou muitas obras cinematográficas, que exploram o gênero fílmico do biopic. Em Ophiussa, quatro atores diferentes interpretam Pessoa em diferentes períodos de sua vida, da infância à maturidade. O filme explora particularmente a relação do poeta com a cidade de Lisboa. Neste dossiê especial, quatro autores analisam diferentes aspectos de Ophiussa em três textos: João Macdonald insere o filme no panorama do cinema pessoano biográfico, enquanto Leonardo Pereira e José Eduardo Ferreira exploram o aspecto urbano. Já o texto de Ida Alves apresenta e discute alguns documentos ligados ao filme, como o roteiro integral (orientando a filmagem a partir da passagem das quatro estações) e uma nota de intenções do diretor Fernando Carrilho. Outros filmes biográficos exploram acontecimentos inusitados (porém factuais) da vida de Pessoa, frequentemente tida como banal, como se sabe. É o caso de Como Fernando Pessoa salvou Portugal, de Eugène Green, que conta a história real do slogan publicitário criado por Pessoa para a Coca-Cola em pleno salazarismo, e suas implicações políticas e morais. Estes e outros pontos são analisados no artigo de Sabrina Sedlmayer, que traz em anexo o roteiro integral e o cartaz que aparece no filme. Um outro acontecimento biográfico insólito teve grandes repercussões cinematográficas3: refiro-me ao encontro do poeta com o mago Aleister Crowley em 1930, e a simulação de suicídio de Crowley. Este bizarro episódio é apresentado ao leitor neste número especial pelo texto de Steffen Dix. Observe-se, de passagem, que a história carrega em si certo caráter próprio do cinema: a figura de Crowley remete ao Mabuse de Friw Lang, ou ainda a The Magician (1958) de Bergman. O cadáver “desaparecido” no mar, por sua vez, é elemento de histórias policiais como Rebecca (1940) de Hitchcock. Note-se, ainda, que os filmes listados a seguir adaptam tanto o fato histórico do encontro entre Crowley e Pessoa quanto The Mouth of Hell (PESSOA, 2019), novela “policiária” escrita por Pessoa, baseada no desaparecimento de Crowley: há nela elementos típicos do gênero policial (como um falso-Crowley e um falso-Pessoa) que, curiosamente, também remetem à obra poética de Pessoa. O primeiro filme pessoano a tratar do encontro com Crowley foi O mistério da Boca do Inferno, que é apresentado aqui por João Céu e Silva a partir de uma entrevista Além das obras citadas no corpo do texto, mencione-se ainda a existência de Hino a Pã – O Último Sortilégio, filme dirigido por António Cunha. 3 Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 5 Mello Como o cinema descobriu Fernando Pessoa com o diretor José Pina, num texto acompanhado de trechos do roteiro e do storyboard originais, além de fotografias de estúdio inéditas. Alguns anos antes, o encontro Crowley-Pessoa já havia sido tema da série de fotografias Fernando Pessoa versus Aleister Crowley do artista visual Victor Belém: essas imagens estáticas (que dialogam com o cinema) são tema de um artigo de Catalina Gutiérrez. O episódio continuaria inspirando cineastas: Boca do Inferno, de Luís Porto, reencena o encontro, numa cinematografia repleta de elementos teatrais. O filme é abordado em artigos de Gianluca Miraglia e Ana Clara Medeiros, e é também Medeiros quem apresenta uma série de depoimentos dados pela equipe do filme. O encontro com Crowley também foi tema de dois textos cinematográficos do diretor Carlos Atanes: o roteiro Aleister Crowley en la Boca del Infierno, analisado aqui por Diego Giménez, e Perplejidad, uma versão romanceada da mesma história (escrita pelo diretor em resposta à provocação ensejada pela organização deste número especial), da qual é publicado aqui um trecho, com apresentação do próprio cineasta. O gênero policial está representado também por outro roteiro cinematográfico (ainda) não-filmado: O Decifrador, escrito por Luísa Costa Gomes, baseado nas histórias pessoanas do personagem (ou autor fictício?) do detetive Quaresma. O roteiro é analisado aqui por Simone Celani. Já o thriller policial O ídolo, de Pedro Varela, é objeto de um longo ensaio de Marcelo Schincariol, que analisa o filme tendo por base o argumento cinematográfico pessoano no qual ele se baseia. O gênero de mistério, correlato ao policial, está aqui representado pelo filme Um jantar muito original, de Leandro Ferreira, adaptado a partir do conto homônimo escrito por Fernando Pessoa. Um artigo de Maria de Lurdes Sampaio disseca o filme, e o respectivo roteiro é apresentado também por Sampaio, desta vez acompanhada por André Almeida. No extremo oposto, em um registro mais ameno e caricatural, a presença de Pessoa no gênero dos desenhos animados é tratada em vários textos críticos deste dossiê. Um biógrafo descreveu Pessoa como “um senhor de bigode chaplinesco e óculos redondos” e o comparou a um personagem de Jacques Tati (ZENITH, 2022: 925 e 705): como se vê, não é disparatado atribuir-lhe uma imagem cômica. O texto crítico mais abrangente sobre esses desenhos animados pessoanos é o artigo de Pedro Moura, em que são analisados: um booktrailer de curtíssima-metragem de Eloar Guazzelli (Eu, Fernando Pessoa) e um storyboard inédito do mesmo artista, três curtas pessoanos de José-Manuel Xavier (28, Desassossego e Pessoas), um curta de Thibault Chollet (Le songe de B. Soares) e o longa-metragem A cidade dos piratas, dirigido por Opo Guerra a partir da história em quadrinhos (ou banda desenhada) de Laerte Coutinho. A revista apresenta documentos inéditos desses realizadores: a história em quadrinhos “O Poeta” de Laerte Coutinho, protagonizada por um Fernando Pessoa caricatural, é publicada aqui na íntegra, com apresentação de Ermelinda Ferreira. O storyboard inédito (sem título) de Guazzelli é apresentado por Susana Ventura. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 6 Mello Como o cinema descobriu Fernando Pessoa O próprio diretor Thibault Chollet apresenta materiais de produção de seu curta, enquanto José-Manuel Xavier publica um texto inédito sobre a relação de sua obra com Pessoa. O recorte histórico deste dossiê atravessa cinco décadas, e contempla filmes bastante recentes, como Não sou nada de Edgar Pêra, objeto de uma resenha (ou recensão) de Manuel Halpern. A repercussão do filme na imprensa é analisada por um artigo de Teresa Lima. A mesma autora, noutro artigo, se debruça sobre os cadernos de trabalho do mesmo diretor. Régis Salado analisa a versão original (e significativamente diferente) do roteiro de Não sou nada, de autoria de Luísa Costa Gomes. Concebido em meio ao salto tecnológico da geração de imagens apoiada por inteligência artificial, este número especial não poderia deixar de abordar essa nova faceta da criação artística e cinematográfica, que desperta tanto admiração quanto preocupação. Um ensaio de Bruno Ministro analisa as imagens geradas pelo diretor Edgar Pêra para seu futuro filme, Cartas telepáticas, que imagina um encontro entre Fernando Pessoa e H. P. Lovecraft. Joanise Levy analisa e apresenta o roteiro cinematográfico que deu origem a Au bord du monde, curta-metragem pessoano onírico. O crítico Ruy Gardnier analisa O Batuque dos Astros de Júlio Bressane, documentário que repassa, numa colagem de autocitações, as inúmeras referências a Pessoa nos filmes de Bressane (especialmente das décadas de setenta e oitenta): essas citações de Bressane-Pessoa foram transcritas e são apresentadas em anexo acompanhadas de imagens still dos filmes. Como o leitor pode constatar, embora este dossiê privilegie os filmes, também há espaço para vários tipos de documentos intermediários. São contemplados aqui desde roteiros cinematográficos – textos feitos para gerar imagens e som –, sejam eles filmados (como Au bord du monde, Como Fernando Pessoa salvou Portugal, Um jantar muito original e Ophiussa) ou não filmados (O Decifrador, Aleister Crowley en la Boca del Infierno e Perplejidad), bem como um roteiro em estágio intermediário: a versão de Gomes de Não sou nada, que remete parcialmente ao resultado fílmico. Ainda no universo das imagens, há fotografias de filmagens, storyboards de filmes realizados (Eu, Fernando Pessoa e O mistério da Boca do Inferno) e não realizados (o projeto sem título de Guazzelli); há imagens geradas por inteligência artificial a partir de prompts textuais (Cartas telepáticas), e também uma série de fotografias (Fernando Pessoa versus Aleister Crowley do artista Victor Belém). Há, ainda, objetos híbridos como os cadernos de trabalho de Edgar Pêra ou a história em quadrinhos “O Poeta” de Laerte Coutinho. Isso sem falar em entrevistas, depoimentos, notas de intenções e outros tipos de documentos de trabalho. O mosaico cinematográfico aqui explorado suscita muitas formas de diálogos entre filmes. Propositadamente, não foi imposta aqui uma diferenciação tão estrita entre filmes produzidos e lançados comercialmente (por exemplo, Não sou nada e A cidade dos piratas) e outros apenas veiculados em festivais (Au bord du monde e Boca do inferno), filmes de viés publicitário (O ídolo e o booktrailer Eu, Fernando Pessoa), um Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 7 Mello Como o cinema descobriu Fernando Pessoa filme para a televisão (Um jantar muito original), um filme-ensaio (Ophiussa), entre outros exemplos. Há aqui desde filmes realizados por equipes grandes (Não sou nada e Boca do inferno) até projetos realizados quase totalmente por um só indivíduo (como os de Xavier e de Chollet). Há referência aos mais diversos heterônimos, bem como ao ortônimo, tanto em poesia quanto em prosa. A renovação do olhar concebida por Alberto Caeiro pode dialogar com muitos cineastas e teorias cinematográficas. Álvaro de Campos fantasiou com uma “loura falsa” com “gestos de distinção cinematográfica” (PESSOA, 2014: 275). No Livro do desassossego lê-se que “o sonho tem grandes cinemas” (PESSOA, 2017: 325), e seu autor considerava que, mesmo se “fosse actor prolongado de cinema […], ficaria longe de saber o que sou do lado de lá” (PESSOA, 2017: 277). Mas, afinal, de que maneira aquilo que Pessoa escreveu ressoou no cinema? As luzes se apagam e a sessão vai começar. Boa leitura! Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 8 Mello Como o cinema descobriu Fernando Pessoa Bibliografia FERREIRA, Ermelinda Maria Araújo (2007). A mensagem e a imagem: literatura e pintura no primeiro modernismo português. Recife: Editora Universitária UFPE. LOURENÇO, Eduardo (1986). “A imagem à procura de Pessoa”. O Espelho Imaginário, Pintura, antipintura, não-pintura, Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda. 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São Paulo: Companhia das Letras. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 9 Mello Como o cinema descobriu Fernando Pessoa MARCELO CORDEIRO DE MELLO é professor e pesquisador das áreas de literatura e cinema. Atualmente é pesquisador de Pós-Doutorado no Exterior (CNPq / Universidade de Brasília) com o projeto “Pessoa Intercontinental”. Publicou artigos no Brasil, em Portugal, na França e nos Estados Unidos. Doutor em Estudos Literários pela Universidade Federal de Minas Gerais, com a tese “Espetáculo e resistência no roteiro cinematográfico inédito de ‘A hora dos ruminantes’”, defendida em 2019 (Bolsa CAPES / PROEX e Bolsa Doutorado Sanduíche no Exterior – University of Texas at Austin). Mestre em Línguas, Literaturas e Civilizações Estrangeiras pela Université Paris IV, Sorbonne, com a dissertação “Fernando Pessoa et le cinéma”, defendida em 2011. É pesquisador dos grupos: Cartografias de roteiros (FAP/DF), Estudos Pessoanos (USP) e Crítica Polifônica (UnB). Colaborou como consultor de roteiro em obras audiovisuais. MARCELO CORDEIRO DE MELLO is a professor and researcher in the fields of literature and cinema. Currently, he is a Post-Doctoral Researcher Abroad (CNPq/University of Brasília) with the project “Intercontinental Pessoa”. He has published articles in Brazil, Portugal, France, and the United States. He holds a PhD in Literary Studies from the Federal University of Minas Gerais, with the thesis “Spectacle and resistance in the unpublished screenplay of ‘A hora dos ruminantes’”, defended in 2019 (CAPES/PROEX Scholarship and Doctoral Exchange Scholarship – University of Texas at Austin). He holds a Master’s degree in Foreign Languages, Literatures, and Civilizations from Université Paris IV, Sorbonne, with the dissertation “Fernando Pessoa et le cinéma”, defended in 2011. He is a researcher in the groups: Cartographies of Screenplays (FAP/DF), Pessoan Studies (USP), and Polyphonic Criticism (UnB). He has collaborated as a screenplay consultant on audiovisual works. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 10 !"#$%&'(&()"*&*+(,-.")%/0%1.")&(*+(2+##%& !!"#$%&'()*##%+,#(-./0"1+234%*/"1(1"/."# !"#$%&'#('"()*%+'"(,"&"-&%!(( .#/0(1'2%&'#(!"3#(4&%$56-(4"&&"-&%!! !"#"$%"&'()"$* "#$%&%'(!)#**(&+!!"#$%&&'+!,-%#.&!)($/0102*+!3-*4(&+!"#$%&%'(!,&$$-56(7 +*&,-. 8!&$/-1(!/#.!9($!(4:#/-;(!&%&5-*&$!(!<-5.#!'#!"#$%&%'(!,&$$-56(!-%/-/05&'(!!"#$%&&'() *+'( ,$-'-.(-.(/.01'1-2(3.&&2'+!'#%/$(!'#!*0&*!9(/#%=-&5-'&'#*!-.&1>/-=&*!=(.(!?=-%#.&!'#!9(#*-&@ #!&!9&$/-$!'#!#A=#$/(*!'(!/#A/(!9#**(&%(!B0#!*0$1#.!&(!5(%1(!'(!<-5.#7!C!3-*4(&!&9$#*#%/&'& 9#5(! =-%#&*/&! =(%<-10$&D*#! =(.(! #*9&E(! 9(>/-=(! =(%*/$0F'(! 9($! 0.&! *>$-#! '#! -.&1#%*! '(*! '-;#$*(*!=#%G$-(*!#!'&*!9#$*(%&1#%*!B0#!=(.9H#.!&!=-'&'#+!#!B0#!&=&4&.!1&%6&%'(!0.&! (0/$&! '-.#%*I(! =(.! &! 9$#*#%E&! '#! )#**(&7! C! <-.! '#! =&9/&$! #**&! /$&'0EI(! 5&4-$F%/-=&! '#! *-1%-<-=&'(*!'(!#*9&E(!0$4&%(+!<(-!<#-/&!0.&!&%G5-*#!'#/&56&'&!'#!&510.&*!=#%&*!'(!<-5.#+! 9&$/-=05&$.#%/#!&B0#5&*!B0#!#%<&/-J&.!&!.05/-95-=-'&'#!'#!;-;2%=-&*!=(%=$#/&*!#!(%F$-=&*!'#! 3-*4(&7! 89/(0D*#! 9($! $#*1&/&$! &! ($-1#.! .F/-=&+! (! 9#$=0$*(! 6-*/K$-=(! #! &*! /$&%*<($.&EH#*! ;-;#%=-&'&*! 9#5&! =-'&'#+! &! 9&$/-$! '(! (56&$! 9#**(&%(! 9$#*#%/#! %(! 4$502( -2( 6.&'&&2&&.72+! %(! 9(#.&!?L&4&=&$-&@!'#!M5;&$(!'#!,&.9(*!#!#.!#A#.95(*!'&!9(#*-&!($/N%-.&7 0*12.%3&/ "#$%&%'(!)#**(&+!!"#$%&&'+!)($/010#*#!,-%#.&+!3-*4(%+!"#$%&%'(!,&$$-56(7 45&6%"(6 L6#!&$/-=5#!&-.*!/(!&%&5OJ#!"#$%&%'(!,&$$-56(P*!<-5.!/-/5#'!!"#$%&&'() *+'(,$-'-.(-.(/.01'1-2( 3.&&2' -%! /#$.*! (<! -/*! -.&1-*/-=! 9(/#%/-&5! &*! ?9(#/$O! =-%#.&@! &%'! 4&*#'! (%! #A=#$9/*! <$(.! )#**(&P*! /#A/*! /6&/! &99#&$! /6$(016(0/! /6#! <-5.7! 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'$&R-%1!<$(.!)#**(&P*!9#$*9#=/-;#!9$#*#%/!-%!/6#!4$502(-2(6.&'&&2&&.72+!/6#!9(#.!?L&4&=&$-&@! 4O!M5;&$(!'#!,&.9(*+!&%'!#A&.95#*!<$(.!($/6(%O.(0*!9(#/$O7 T U%-;#$*-'&'#!"#'#$&5!'#!VI(!)&05(+!3#/$&*7 TT!U%-;#$*-'&'#!'#!VI(!)&05(+!""3,W+!X3,Y+!3#/$&*7 Pereira & Ferreira Lisboa, a cidade mítico-poética O filme Ophiussa – Uma Cidade de Fernando Pessoa, do diretor Fernando Carrilho1, tem a intenção de ser uma viagem pela cidade de Lisboa a partir de textos e de poemas de Fernando Pessoa, de seus heterônimos e semi-heterônimos. Além disso, são apresentados no filme tanto locais concretos de passagem e permanência do autor quanto a Lisboa poética de seu imaginário. O presente artigo pretende, pois, acompanhar esse percurso por Lisboa proposto pelo diretor, relacionando-o com alguns textos do poeta – de sua produção em prosa do Livro do Desassossego e de sua poesia ortônima e heterônima –, no que diz respeito a duas possíveis dimensões oferecidas pela cidade para o viajante que embarca no filme e nos textos pessoanos: a mítica e a geográfica. Antes, no entanto, de explorar a “cidade mítico-geográfica” de Lisboa, cabe tecer algumas considerações gerais a respeito do filme de Carrilho. Adotar-se-á, no presente estudo, uma junção do termo pasoliniano “cinema de poesia” ao termo “filme-ensaio” para definirmos a obra Ophiussa. Para Pasolini, há o “cinema de prosa” e o “cinema de poesia”. A diferença entre ambos consiste em: O cinema de prosa é um cinema no qual o estilo tem um valor não primário, não tão à vista, não clamoroso, enquanto o estilo no cinema de poesia é o elemento central, fundamental. Em poucas palavras, no cinema de prosa não se percebe a câmera e não se sente a montagem, isto é, não se sente a língua, a língua transparece no seu conteúdo, e o que importa é o que está sendo narrado. No cinema de poesia, ao contrário, sente-se a câmera, sente-se a montagem, e muito. (PASOLINI, 1986a: 104) Em Ophiussa – Uma Cidade de Fernando Pessoa, câmera, montagem, trilha sonora e fotografia se fazem sentir como a linguagem poética em que Lisboa, ou, mais especificamente, a Lisboa de Pessoa, aparece em cena. Não se trata, portanto, no filme (construído de modo que os planos-sequência são sempre acompanhados de fragmentos da obra pessoana, na maioria das vezes, do Livro do Desassossego) de a câmera ser uma mera ilustração, ou legenda às avessas dos trechos recitados, mas, sobretudo, de realizar um esforço estilístico de colocar o espectador em presença da Lisboa poética de Pessoa. Segundo Pasolini, [...] o cinema é muito mais ambíguo do que se pode imaginar. Eis o porquê: o cinema é um plano-sequência infinito que exprime a realidade com a realidade. Existe sempre na frente de cada um de nós uma eventual e virtual câmera de cinema, com um chassis inesgotável, que registra a nossa vida desde que nascemos até morrermos. Porque a nossa linguagem PRIMEIRA E PURA é a nossa presença, realidade na realidade. (PASOLINI, 1986b: 107) A emissora pública RTP tornou disponível uma versão reduzida do filme em seu site. Cf. Ophiussa – Uma Cidade de Fernando Pessoa; RTP: https://arquivos.rtp.pt/conteudos/ophiussa-uma-cidade-defernando-pessoa/ 1 Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 12 Pereira & Ferreira Lisboa, a cidade mítico-poética Afinal, pôr em presença a Lisboa de Pessoa, por meio de um ensaio poético-fílmico, não é documentar de maneira arqueológica a cidade, ou filológica o texto, mas atualizar os sentidos neles imbricados, multiplicando-os. De fato, Gadamer, em um ensaio sobre a poesia de Ernst Meier e, por extensão, sobre a poesia lírica contemporânea, estabelece algumas semelhanças entre poesia e diálogo (GADAMER, 2010: 379-381). Para o filósofo alemão: Ser atualização do sentido parece-me ser a formulação mais sucinta do milagre e do enigma da linguagem [...]. Se a linguagem é sempre a tal ponto atualização do sentido – qual é afinal a diversidade da linguagem do diálogo, qual é a diversidade do modo cristalino da aparição da linguagem no poema? Neles, não acontece apenas a atualização de um sentido duradouro na palavra que se volatiza. Ao contrário, é a presença sensível da palavra que conquista duração [...]. Tenho em vista aqui a palavra “tom” [...] no sentido de “tensão”, tal como a tensão da corda estendida a partir da qual soa o som harmônico. O fato de os versos possuírem um “tom” é a distinção incomparável do real poema. É o tom que se sustém que leva a termo o milagre, que faz com que o poema “se assente sobre si”, para falar como Hölderlin, em suma: que haja algo que se mantém no momento fugidio. (GADAMER, 2010: 381) Daí que se possa afirmar, em linhas gerais, que Ophiussa – Uma Cidade de Fernando Pessoa se enquadra no termo “cinema de poesia”, assim chamado por Pasolini, pois o “tom”, a “tensão” de que Gadamer fala, própria da “atualização de sentido” que “conquista sua duração”, está presente nas escolhas estilísticas do diretor para além da preocupação em documentar a Lisboa de Pessoa, propondo atualização dialógica. Feita de modo que as escolhas de planos, de fotografia, das trilhas sonoras significam muito e, portanto, não podem ser trocadas por outras, a obra se abre para que a Lisboa de Pessoa e a poética de Pessoa mantenham-se múltiplas em atualizar sentidos. No que diz respeito ao “filme-ensaio”, um de seus principais teóricos, Timothy Corrigan, atesta que uma de suas principais características é a presença de uma “subjetividade expressiva” (CORRIGAN, 2015: 33). Essa “subjetividade expressiva” pode tanto ser percebida através da presença e da voz do cineasta como pelas de um substituto (CORRIGAN, 2015: 33). Segue o teórico: Assim como a presença da primeira pessoa muitas vezes se origina de uma voz e perspectivas pessoais, os filmes-ensaio caracteristicamente destacam uma persona real ou ficcional cujas buscas e questionamentos moldam e dirigem o filme no lugar de uma narrativa tradicional e frequentemente complicam a aparência documentária do filme com a presença de uma subjetividade ou posição enunciativa pronunciada. (CORRIGAN, 2015: 33) Uma “posição enunciativa pronunciada” pode, justamente, ser analisada no caso de Ophiussa. Ora, para a análise que proporemos neste ensaio, é importante destacar que as nuances significativas propostas por Fernando Carrilho, desde o nome pelo qual Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 13 Pereira & Ferreira Lisboa, a cidade mítico-poética identifica a cidade, se faz por caminhos sinuosos, como o feito pela serpente (tendo em vista que o nome “Ophiussa” significa “terra das serpentes”), recusando – e, assim, dialogando com a estrutura do Livro do Desassossego – linearidades totalizantes. Para Corrigan: O pensamento ensaístico, assim, torna-se uma refeitura conceitual, figural, fenomenológica e representacional de um eu enquanto ele encontra, testa e experimenta alguma versão do real como “outro lugar” público. O pensamento ensaístico se torna a exteriorização da expressão pessoal, determinada e circunscrita por um tipo, qualidade e número sempre variáveis de contextos materiais em que pensar é multiplicar os eus. (CORRIGAN, 2015: 39) Se no filme-ensaio e no ensaísmo em geral “pensar é multiplicar os eus”, a obra de Fernando Carrilho realiza – com a adoção da perspectiva de um eu, o do poeta Fernando Pessoa, cuja experiência radical dessa multiplicação não tem paralelo na história da Literatura – retrato fiel, porquanto não de escola realista, da Lisboa de Pessoa. Por isso, sem deixar de ser o que é, a saber, uma cidade concreta e com tessituras sociais construídas e tensionadas historicamente, Lisboa é Ophiussa, cidade oculta em que tudo, de certa forma, é símbolo e realidade outra, é vida no pulsar cotidiano, mas é transubstanciação artística do real. A cena inicial de Ophiussa nos dá uma breve amostra de como Fernando Carrilho constrói seu filme-ensaio: um pequeno Pessoa observa da janela o Teatro São Carlos, em Lisboa, e, de lá, ouve o som de uma ópera, O Holandês Voador, de Wagner. De seu quarto, vê a burguesia que entra no teatro. Depois de um tempo, afasta-se da janela e, ainda ao som de Wagner, deita, olhando, como se sonhasse acordado, para o teto escuro. Nessa tomada, pode-se contemplar os movimentos interiores do menino Pessoa e os exteriores da cidade em atividade cosmopolita. Sem precisar que um dos narradores do filme faça, neste ponto, qualquer inserção, a cena evoca trecho do poema “Tabacaria” – não mais pela lente do engenheiro Álvaro de Campos, mas pela contemplação do menino – em que se diz: “Janelas do meu quarto, | Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é” (PESSOA, 1990: 362) (ver: Fig. 1). Partindo de sua metáfora, como no poema “Tabacaria”, a janela que o filme abre, na cena inicial, nos dá acesso tanto a dados biográficos (Pessoa morou, na infância, em frente ao Teatro São Carlos, e seu pai foi crítico de ópera e entusiasta de Wagner), como também à formação do artista e de seus motivos e temas. De Wagner, temos o motivo da vida como obra de arte, a arte total, a preferência decadentista pelo sonho e o acastelamento do eu. Fernando Pessoa e sua cidade, Lisboa-Ophiussa, no filme, são todas essas coisas multiplicadas e amalgamadas. Como será argumentado ao longo deste artigo, a “cidade de Fernando Pessoa” é, ao mesmo tempo, a da decadência explorada pela figura do flâneur, a das relações cotidianas banais e, além disso, a que se ergue Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 14 Pereira & Ferreira Lisboa, a cidade mítico-poética miticamente como propiciadora do sonho. Dito isso, sigamos às dimensões de Lisboa no filme e ao diálogo com a obra pessoana. Fig. 1. Pessoa olhando na janela (cena de perfil). Lisboa de geografia íntima e urbana O filme de Fernando Carrilho, da mesma maneira que apresenta a cidade de Lisboa “mítico-poética”, também revela a imagem particular de Fernando Pessoa como alguém que é, ao mesmo tempo, observador do pulsar urbano e integrante dele, já que também faz parte desse espaço real e imaginário de Lisboa. Na obra, todas as tomadas da cidade, sejam de suas construções, do seu povo ou do rio Tejo, têm uma intenção oculta: captar o olhar poético pessoano. Através desse exercício interpretativo, procura-se desvendar o pensamento íntimo do cidadão lisbonense que foi Pessoa. Por meio da imagem de um poeta reflexivo que percorre os espaços do seu quarto, deitado na cama ou em pé, observando seus escritos em construção, Carrilho também faz com que Pessoa percorra, naquele instante, os inúmeros espaços urbanos de Lisboa. Então surge, poeticamente, uma cidade diferente. A Lisboa pessoana não é apenas fruto da observação diária, dos momentos em que o poeta passa em cafés e em restaurantes, mas também de um exercício de reflexão intelectual e de construção emocional. Essa nova cidade está presente tanto no poema “Tabacaria” de Álvaro de Campos quanto nos fragmentos de prosa poética presentes no Livro do Desassossego, de Vicente Guedes e Bernardo Soares, ambos os escritos mencionados ao longo da película de Fernando Carrilho (Fig. 2). Como homem de seu tempo, Fernando Pessoa vivenciou uma mudança paradigmática na organização dos espaços urbanos das sociedades europeias do final do XIX e início do século XX. Com o avanço do desenvolvimento técnicocientífico, atrelado à lógica de produção econômica capitalista, novas dinâmicas sociais e um novo modo de encarar a realidade eclodem nos grandes centros Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 15 Pereira & Ferreira Lisboa, a cidade mítico-poética europeus, transformações que foram captadas e analisadas nas produções literárias dos autores finisseculares. Em alguns trechos do Livro do Desassossego, há impressões e reflexões sobre a existência urbana lisboeta, que partem de um simples observar de transeuntes e de ambientes que emolduram a cidade, até a construção de uma Lisboa poética captada por um olhar interno e particular. Fig. 2. Pessoa olhando a janela no quarto escuro (plano americano). Esse duplo movimento de observação urbana, muito bem captado no filme de Fernando Carrilho, faz lembrar tanto o flâneur baudelairiano – uma espécie de cúmplice dos diversos espaços urbanos e integrado ao cotidiano da multidão como observador diário – quanto uma espécie de personagem “antimoderna”, que habita e almeja um ambiente diverso daquele como alvo dos seus olhares e reflexões. O flaneurismo em relação à Lisboa salta aos olhos do leitor do Livro do Desassossego e do espectador do filme Ophiussa, mas também revela uma sintonia com a leitura social oriunda da experiência simbolista e decadentista francesa. Essa espécie de percepção da realidade, fragmentada em tendências estéticas finisseculares, aparentemente independentes, grosso modo, revelavam, tanto o entusiasmo ante as possibilidades oferecidas pela modernidade, quanto um latente sentimento de crise social e de inadequação do citadino dentro da dinâmica metropolitana europeia do final do século XIX. Essa relação entre Pessoa e essas correntes literárias foi muito bem pontuada pelo crítico Robert Bréchon, em sua biografia sobre o autor de Mensagem: Toda essa literatura decadente do início da década de 1880 foi para o jovem Pessoa de 19081910 um espelho de sua própria alma, mergulhada nas contradições e nos jogos estéreis de uma poesia pós-romântica em que já não acredita absolutamente. É nesse clima de fim de civilização que em 1912 se vai dar seu encontro com os amigos do Orpheu, [...]. As analogias entre Bernardo Soares, o narrador do Livro do Desassossego, começado em 1908 ou 1909, e o herói de Huysmans, Des Esseintes são evidentes. Soares parece o duplo plebeu do aristocrata Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 16 Pereira & Ferreira Lisboa, a cidade mítico-poética Des Esseintes cujo modelo é, entre outros Robert de Montesquiou, em quem também Proust se inspirou para criar a personagem do barão de Charlus. Seu programa de vida é o mesmo: sonhar a vida, viver o sonho, requintar as sensações, “quintessenciá-las”; pensar as sensações e sentir os pensamentos etc. (BRÉCHON, 1998: 130-131) O protagonista da obra À rebours, de 1884, do escritor Huysmans, Jean des Esseintes, assim como os semi-heterônimos pessoanos que escrevem o Livro do Desassossego, vive uma existência de recusa da realidade observada, “vive pelo e para o espírito, de modo que a realidade passe a ser aquilo que ele cria pela imaginação” (GOMES, 2016: 15). Homens enfastiados pelo fim do século e que, à maneira deles, criam paraísos artificiais particulares, ativados seja pela experiência das sensações ou por meio da atividade incessante do sonhar. Fig. 3. Pessoa sentado em sua escrivaninha de trabalho de olhos fechados. Tanto Vicente Guedes quanto Bernardo Soares pontuam a importância do sonho como medida julgadora da realidade por vários trechos do Livro do Desassossego. O sonho só surge porque revela ausência, estranhamento, perda, melancolia e saudade resultantes da experiência de observar o quadro da vida moderna lisboeta. O sonho é a salvação para o indivíduo que vive em Lisboa e almeja construir, mesmo por devaneios, uma nova cidade. Na minha alma ignóbil e profunda registro, dia a dia, as impressões que formam a substância externa da minha consciência de mim. [...] Quando escrevo, visito-me solenemente. Tenho salas especiais, recordadas por outrem em interstícios da figuração, onde me deleito analisando o que não sinto, e me examino como a um quadro na sombra. Perdi, antes de nascer, o meu castelo antigo. Foram vendidas, antes que eu fosse, as tapeçarias do meu palácio ancestral. O meu solar de antes da vida caiu em ruína, e só em certos momentos, quando o luar nasce em mim de sobre os juncos do rio, me esfria a saudade [...]. (PESSOA, 2023: 363) Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 17 Pereira & Ferreira Lisboa, a cidade mítico-poética O devaneio, como norteador crítico da realidade, aparece muito mais arraigado dentro do cotidiano lisboeta a partir do estabelecimento de uma maior proximidade com a poesia de Cesário Verde. A partir do fragmento 169,2 o texto de Bernardo Soares passa por uma espécie de “reajuste estético” (PIZARRO, 2020: 144) e adquire um estilo mais claro, mundano e objetivo, se afastando da tonalidade vaga, atemporal e até mesmo exótica dos fragmentos decadentistas de Vicente Guedes e de Barão de Teive. Essa relação de intimidade estética com Cesário Verde proporciona ao Livro do Desassossego um novo olhar para a Lisboa de Fernando Pessoa. A quimérica cidade do passado ganha um contorno mais real e pulsante com a presença das dinâmicas sociais advindas das novas vivências da modernidade lisboeta e entram em sintonia com a poesia de um Álvaro de Campos tardio (PIZARRO, 2020: 146). Em Fernando Pessoa, a melancolia transmuta-se na reconstrução poética do passado português no livro Mensagem e no sentimento de tédio que ronda o olhar perscrutador da modernidade presente no Livro do Desassossego, principalmente com o texto renovador de Bernardo Soares e no poema “Tabacaria” de Álvaro de Campos. Exemplos da obra pessoana que devem ser lidos em conjunto para o completo entendimento do corpus poético em torno da Lisboa “mítico-poética”. Sua Lisboa é um labirinto espiritual, mágico e maldito, por onde ele erra em busca de sensações, de impressões, de verdades, de encantamentos e de metamorfoses. A única saída que poderá revelar-se é o mito. A Lisboa de Pessoa é a de Ulisses, lendário fundador epônimo da cidade [...]. É a de Vasco da Gama e dos demais navegadores da época dos Descobrimentos, os quais partiam do porto de Belém; a de D. Sebastião, o rei “encoberto” à espera do momento em que irá reaparecer, numa manhã de nevoeiro, no estuário do Tejo, para reatar o destino português interrompido e fundar o “Quinto Império”, que é a reconquista do sentido da vida. (BRÉCHON, 1998: 18) Para o poeta, a construção de uma nova Lisboa a partir de uma leitura pessoal – herdeira de uma tradição poética que perpassa Camões, os românticos oitocentistas, a Geração de 1870, Teixeira de Pascoaes e Cesário Verde –, e da observação da “matéria do mundo tangível” (PIZARRO, 2020: 147), é, na verdade, o sonho de reconstrução mítica do destino português. Essa Lisboa “mítico-poética” representa: [...] a mitologia portuguesa no seu conjunto – desde Ulisses a Viriato, de Nunes Álvares a D. Sebastião, de Bandarra a Vieira – que deve despertar da sua ‘falsa morte’, abandonar a sua pequena casa lusitana e fundir-se, como outrora o fizera em nome de um Cristo conquistador, “Aceitemos esse fragmento, ‘Amo, pelas tardes demoradas de verão’, como um convite para entrar no segundo ‘Livro’, um conjunto de textos mais pobres em princesas, cisnes e bosques, porém mais ricos em ruas, provedores e moços de cargas. Nesta segunda parte, a palavra Lisboa não está muito presente, mas não precisa de estar, porque tudo indica em que cidade é que o leitor de repente se instalou” (PIZARRO, 2020, p. 142). 2 Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 18 Pereira & Ferreira Lisboa, a cidade mítico-poética travestido pelo fanatismo e a ignorância, num Império que não pode morrer, o da ‘guerra sem guerra’, no qual conheceremos, por fim, o nosso verdadeiro nome. (LOURENÇO, 1999: 147) A cidade mítica Lisboa-Pessoa A epopeia sui generis que é Mensagem renova, na chave messiânica própria do sebastianismo pessoano, o mito da fundação de Lisboa por Ulisses: II. Os Castelos Primeiro | Ulysses O mytho é o nada que é tudo. O mesmo sol que abre os céus É um mytho brilhante e mudo – O corpo morto de Deus, Vivo e desnudo. Este, que aqui aportou, Foi por não ser existindo. Sem existir nos bastou. Por não ter vindo foi vindo E nos criou. Assim a lenda se escorre A entrar na realidade. E a fecundá-la decorre. Em baixo, a vida, metade De nada, morre. (PESSOA, 1990: 72) A reconstituição do mito de Ulisses na pena de Pessoa se assenta na ideia de que, para a história e constituição de um império, contribuem tanto ou mais que os feitos militares, políticos e de empresa, os seus mitos fundadores, fonte de sentido para o qual o destino imperial aponta e busca se realizar. Assim, tanto na obra pessoana como em diferentes momentos históricos e com diferentes intencionalidades, foi erguida, com maior ou menor penetrabilidade naquilo que se costuma chamar de imaginário coletivo, a tese de que a cidade de Lisboa teria sido fundada por Ulisses. Uma das legendas da General Estoria, feita sob encomenda por Alfonso X, o Sábio, por exemplo, ensina que: Y Ulixes andudo por aquella tierra y víola muy buena y muy complida de aguas y de montes y de frutas y de heredades, y que serié abondada de todos bienes si poblada fuese, ca tierra de Portogal non era aun estonces poblada. Y cató el mejor lugar y más guisado y pobló en la ribera de la mar una cibdat. E porque le semejó aquel lugar mejor que él fasta allí avía fallado tomó d'este su nombre Ulixes y este otro bona y ayuntólos y fizo dende uno, y púsole aquella Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 19 Pereira & Ferreira Lisboa, a cidade mítico-poética cibdad que fazié y llamóla Ulixbona, y mandóla así llamar a todos de'allí adelanté, y así la llamaron, y este nombre á oy en día, y éste á ella, maguer que el común de gente le dizen Lixbona. (ALFONSO X, 2009: III, 259-260) [E Ulisses andou por aquela terra e a achou muito boa e muito farta de águas, montes, frutas e fazendas, e que seria repleta de muitos bens se estivesse povoada, pois a terra de Portugal não era povoada então. E, então, escolheu o melhor e mais ajeitado lugar e povoou em sua ribeira uma cidade. E porque lhe pareceu aquele lugar melhor que outros pelos quais havia perambulado, tomou de seu próprio nome, “Ulisses” e este outro “bona” e os juntou, fazendo-os um só, e pondo o nome àquela cidade que construía, chamando-a de “Ulixbona”, mandou que, dali para a frente todos assim também a chamassem. E, assim, chamaram-na, e este nome ainda existe hoje em dia, embora as pessoas comuns a pronunciem como “Lixbona”.] (Tradução livre feita pelos autores do artigo) Derivando e fabulando etimologicamente sobre o nome de Lisboa como “Ulixbona”, isto é, “Boa Ulisses”, esta lenda, assim como outras narrativas fundacionais a respeito da vinda, permanência e ação criadora do povo português feita pelo herói grego, “[...] escorre | a entrar na realidade, | e a fecundá-la decorre”, restando à vida comum e à História que não é símbolo ou figura de o Encoberto serem menos que o nada: “Em baixo, a vida, metade | De nada, morre” (PESSOA, 1990: 72). Vale lembrar que a vida para Pessoa, nos seus desdobramentos íntimos e dramáticos, é absurda e sem sentido caso não esteja tomada pela visão de Gênio (da qual trataremos adiante). Cabe ao “mytho”, portanto, que é “nada”, “ser tudo” (PESSOA, 1990: 72). Diante disso, é mais que compreensível uma viagem à Lisboa de Pessoa, como pretende ser o ensaio-poético-cinematográfico que é o filme Ophiussa, nomear a cidade com um de seus títulos míticos, como “Ulixbona”, ou mesmo, “A boa Ulysses”. Tal nomeação poderia, de antemão, acenar para um diálogo direto com o famoso poema de Pessoa e, ainda mais, ratificar a grandiosidade mítica lisboeta e, por fim, intensificar as relações do filme com o imaginário criado pela arte e literatura. Fernando Carrilho, no entanto, opta por nomear seu filme como “Ophiussa”. Por si só, o título da obra mantém a “aura mítica” de Lisboa, mas sob outro aspecto. Referida pelo seu nome pretérito (cf. MANUEL, 2007: 28-53) por ser anterior ao do domínio romano, Lisboa como Ophiussa não só evoca etnografias antigas e de forma paulatina redescobertas, mas também, pela simbologia serpentina apresentada em si, registra outra Lisboa: oculta e de caminhos sinuosos. É pelo “caminho da serpente”, pois, que o ensaio-poético-documental de Ophiussa nos convida a visitar Lisboa. Fazendo eco a um dos fragmentos ocultistas de Fernando Pessoa, o “cinema de poesia” de Carrilho pretende pôr em presença a Lisboa que – no entrecruzar de sua imagem concreta das relações humanas e de suas paisagens deslumbrantes chamativas para o turista, de sua cotidianidade banal e de mítica imperial, de lar e de lugar impossível, irrealizável, “inacessível a todos os pensamentos” (PESSOA, 1990: 362), de degradação, de degenerescência, mas virtualmente prenhe de poder evocativo criador – dialoga com diferentes realidades promovidas pelas sensações, Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 20 Pereira & Ferreira Lisboa, a cidade mítico-poética sem, no entanto, aderir a ilusões falsas que uma exaltação ufanista da cidade poderia acarretar. O filme, portanto, escolhe um caminho difícil, assim como o é o da serpente no fragmento a que nos referimos: A ilusão é a substância do mundo, e, segundo a Regra, tanto no mundo superior como no mundo inferior, no oculto como no patente. Assim, quando fugimos do mundo inferior, por ele ser ilusório, o mundo superior, onde nos refugiamos, não é menos ilusório; é ilusório de outra, da sua, maneira. Só a Serpente, contornando os infinitos abertos – ou os círculos “incompletos” – dos dois mundos foge à ilusão e conhece o princípio da verdade. (PESSOA, 1986: 215) Sobre o “simbolismo da serpente”, Gaston Bachelard afirma o seguinte: A serpente é, em nós, um símbolo motor, um ser que não tem “nadadeiras, nem pés, nem asas”, um ser que não confiou suas capacidades motoras a órgãos externos, a meios artificiais, mas que se fez o móvel íntimo de todo o seu movimento. Se acrescentamos que esse movimento fura a terra, perceberemos que, tanto para a imaginação dinâmica como para a imaginação material, a serpente se mostra um arquétipo terrestre. (BACHELARD, 2003: 203) Aplicado ao filme o que Pessoa considera ser o “caminho da Serpente”, pode-se dizer que as diferentes formas de composição das cenas contornam “infinitos abertos”, ou “círculos incompletos”, duma Lisboa que se fragmenta multiplicando-se. Esta fragmentação multiplicadora, em refrações da estética sensacionista, acompanha, além da cidade, a construção da persona-Pessoa ao longo do filme. Antes de seguirmos com a cidade, vale, num breve interregno, acompanhar o filme sob este processo de construção. As cenas 3 e 4 do filme trazem a narração, com as vozes do intérprete de Bernardo Soares na primeira e do intérprete de Vicente Guedes na segunda, dos seguintes trechos do Livro do Desassossego. Cena 3, voz de Bernardo Soares, Pessoa no interior do quarto: O patrão Vasques, o guarda-livros Moreira, o caixa Borges, os bons rapazes todos, o garoto alegre que leva as cartas ao correio, o moço de todos os fretes, o gato meigo – tudo isso se tornou parte da minha vida; não poderia deixar tudo isso sem chorar, sem compreender que, por mau que me parecesse, era parte de mim que ficava com eles todos, que o separar-me d’eles era uma metade e semelhança da morte. Aliás, se amanhã me apartasse de eles todos, e despisse este trajo da Rua dos Douradores, a que outra coisa me chegaria – por que a outra me haveria de chegar? de que outro trajo me vestiria – por que de outro me haveria de vestir? (PESSOA, 2023: 251-252) Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 21 Pereira & Ferreira Lisboa, a cidade mítico-poética Na Cena 4, na voz de Vicente Guedes, os trechos narrados, com Pessoa no interior do quarto, são: “Cada pessoa é apenas o seu sonho de si próprio. Eu nem isso sou. [...] Sou bocados de personagens de dramas meus” (PESSOA, 2023: 98-99). Fig. 4. Pessoa sentado escrevendo. Ao som da Abertura 1812, de Tchaikovski, iniciada na cena anterior, a câmera se abre trazendo à cena um Fernando Pessoa jovem, mas adulto, sentado à escrivaninha. A câmera o vê de costas. Entra uma fraca luz amarelada pela janela, posicionada na lateral de Pessoa, deixando metade do quarto na penumbra. A narração do trecho “O patrão Vasques” começa neste momento. A leitura vai até “parte da minha vida”. Numa breve pausa na narração, escutam-se os ruídos do quarto de Pessoa, mas também o som de passos na rua. Retoma-se a narração e a câmera avança lentamente pela metade em penumbra do quarto em direção ao poeta, já sem a trilha sonora. Pessoa olha em direção à janela e os barulhos externos, de uma carroça em movimento, insinuam-se para dentro do quarto turbando sua escrita. A câmera, paulatinamente, vem se acercando pela parte mais escura do quarto, da lateral do poeta, que está em oposição à janela, e para em seu perfil no exato momento em que a narração diz “por que outro me haveria de vestir?”. A cena é cortada e, de imediato, temos a cena 4, ainda captando Fernando Pessoa lateralmente, mas com este, agora, de pé em frente à janela. Os barulhos externos permanecem, Pessoa bruscamente sai de cena, a trilha volta e sua sombra é insinuada na parede ao fundo enquanto veste seu paletó. Inicia-se a narração de “cada pessoa é apenas seu sonho de si própria” e, com a sombra no fundo se multiplicando em três, lê-se justamente o fragmento “sou bocados de personagens de dramas meus”. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 22 Pereira & Ferreira Lisboa, a cidade mítico-poética Fig. 5. Três sombras de Pessoa. O primeiro ponto a ressaltar da cena é a escolha da trilha sonora. A Abertura 1812, de Tchaikovski, trata, em linhas gerais, da expulsão das tropas napoleônicas do território russo. Caso não se considere a escolha da trilha como mera gratuidade, pode-se especular que o leitmotiv napoleônico, migrando do contexto original da obra de Tchaikovski para um fragmento de diálogo com a obra de Fernando Pessoa, apresenta uma tensão entre a realidade construída pela ação e a realidade sonhada. Para Pessoa, Napoleão, mais que um homem estritamente de ação, é um sonhador. No poema “Tabacaria”, por exemplo, é ele o modelo de sonhador contrastado pelo eu lírico “Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez” (PESSOA, 1990: 363). Além disso, Pessoa, à maneira milenarista e interpretando as profecias de Bandarra, muitas vezes localizou em Napoleão pontos de referência de datas para a realização do que “o sapateiro de Trancoso” profetizou: A “águia imperial”, no primeiro caso é Napoleão, pois que A às avessas e com a perna do meio tirada e posta atrás dá N, inicial daquele nome. No segundo caso é D. Pedro IV, que fundou o Império do Brasil, e o A às avessas dá V, e pondo atrás a perna do meio dá IV. Os “seus filhos” no caso de Napoleão são as consequências da invasão — as ideias liberais, que se espalharam então aqui. No caso de D. Pedro IV, e 1.° do Brasil, [...]. (PESSOA, 1979) A música nos traz, portanto, a figura do Napoleão sonhador de Pessoa, figura que é, de certa maneira e pela interpretação hermética do poeta, anúncio para o Encoberto, mas, ao mesmo tempo, é a derrota de Napoleão que a música celebra. Derrotado ou não, é pela grandeza dos sonhos que sonha a medida última de valorização da vida humana, pois “sem a loucura que é o homem | mais que a besta sadia | cadáver adiado que procria?” (PESSOA, 1990: 76). Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 23 Pereira & Ferreira Lisboa, a cidade mítico-poética Em “Tabacaria”, por exemplo, feitas as negações que contrariam os elementos próprios da ordem do ser na metafísica clássica de matriz aristotélico-tomista – “Não sou nada” (PESSOA, 1990: 362), negação do ser como tal; “Nunca serei nada” (PESSOA, 1990: 362), negação da potência; “Não posso querer ser nada” (PESSOA, 1990: 362), negação da vontade (elemento que, na metafísica tradicional, permite ao livrearbítrio fazer a passagem da potência para o ato) – resta ao que não é, não será e não tem vontade para realização do movimento da potência para o ato, o sonho como habitação desconfortável do ser, “À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo” (PESSOA, 1990: 362), mas que, como diz o fragmento do “Caminho da serpente”, também é ilusão a seu modo. Voltando às cenas 3 e 4, percebemos que o movimento da câmera para se aproximar de Pessoa busca, aos poucos e pela penumbra, captar, na intimidade do quarto fechado, o movimento interior de Pessoa. A rua, lá fora, dá seus sinais de vida corrente e, perturbando o poeta, mistura-se aos seus sonhos. Daí surgem pela narração os tipos humanos banais, concretos e, de certa forma, correlativos-objetivos para a dispersão do eu em direção ao sonho. “O patrão Vasques”, “o guarda-livros Moreira”, o “caixa Borges” etc., exemplos de gente comum e, portanto, em parte contrastantes com o modelo sonhador que é Napoleão, são, contudo, parte da inexorabilidade que é, para o poeta, o correr da vida cotidiana. Fig. 6. Cena do cotidiano. O que resta, e assim o filme constrói a cena 4, é vestir os trajes da vida e se perder nos labirintos por ela oferecidos. É possível, no entanto, realizar a vida? Como se habita um “eu” que já se sabe a priori resultado de ficções e máscaras? Enquanto o Pessoa do filme veste seu paletó, a narração diz “Cada pessoa é apenas o seu sonho de si próprio. Eu nem isso sou” (PESSOA, 2023: 98). E, ao sair de cena, quando se projetam três sombras no fundo do quarto, “Sou bocados de personagens Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 24 Pereira & Ferreira Lisboa, a cidade mítico-poética de dramas meus” (PESSOA, 2023: 98-99). Em outro fragmento do Livro do Desassossego, não presente no trecho do filme que vimos comentando, Bernardo Soares diz: “Escrever é esquecer. A literatura é a maneira mais agradável de ignorar a vida” (PESSOA, 2023: 488). Do que foi posto até agora, poder-se-ia concluir que a obra de Fernando Pessoa e o filme de Fernando Carrilho retratam a cidade de modo a haver uma cisão entre ela e o artista, acastelado em sua imaginação como se esta fosse uma Torre de Marfim, incontornável e irredimível. É de se notar, no entanto, que parte da crítica pessoana tem apontado para o contrário disso. O ensaísta Fernando Guimarães, comparando o entendimento de Teixeira de Pascoaes a respeito do Saudosismo ao de Pessoa, afirma que: Pascoaes, em Verbo Escuro, dirá: “poetas, cantai fantasmas; quero eu dizer, o que é eterno... Cantai o que não existe”. Mas esta ausência foi assumida por Fernando Pessoa duma maneira diferente: não enquanto canto fantasmático do que não existe, mas enquanto voz que, mesmo pelo insistente recurso à negação, se torna reveladora da própria ficção que há na existência humana quando ela se desdobra mediante uma linguagem criadora. O homem [...] transforma-se nas múltiplas consciências que criam os seus mundos de linguagem e que se desvelarão através da fragmentação do poeta em seus heterônimos. (GUIMARÃES, 1988: 33) Já Pizarro, para quem Lisboa é a personagem principal da segunda parte do Livro do Desassossego, diz: Em síntese, Lisboa é a localização-chave do Livro; é um miradouro donde se vê o mundo [...]; é uma harmonia entre o natural e o artificial; é o cenário de uma epopeia sem grandes feitos, ou até mesmo sem eles; é a cidade e o campo, pois as praças assemelham-se a clareiras no bosque de casas multicolores; é uma certa luz, uma série de sons, determinados cheiros e, por fim, todo um microcosmos que faltava ao Livro, na sua primeira fase. (PIZARRO, 2023: 155) A conciliação entre a vida concreta da cidade e o poeta passa por aquilo que Pessoa chamou, em carta a Armando Cortês-Rodrigues (PESSOA, 1986: 43-48), de sua “vocação religiosa”. Por ora, retomaremos o Livro do Desassossego: Reparo subitamente que o ruído é muito maior, que muito mais gente existe. Os passos dos mais transeuntes são menos apressados. Aparece, a quebrar a sua ausência e a menor pressa dos outros, o correr andado das varinas, a oscilação dos padeiros, monstruosos de cesto, e a igualdade divergente das vendedeiras de tudo mais desmonotoniza-se no conteúdo das cestas, onde as cores divergem mais que as coisas. Os leiteiros chocalham, como chaves ocas e absurdas, as latas desiguais do seu ofício andante. Os polícias estagnam nos cruzamentos, desmentido fardado da civilização ao movimento invisível da subida do dia. (PESSOA, 2023: 357) Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 25 Pereira & Ferreira Lisboa, a cidade mítico-poética O excerto supracitado aparece no fragmento 298 da edição do Livro do Desassossego organizada por Jerónimo Pizarro (PESSOA, 2023: 356-358). Antes do excerto, presente no quinto parágrafo do fragmento, Bernardo Soares acompanha o amanhecer do bairro da Baixa com seus ruídos e, como de costume para o semi-heterônimo, os sons e imagens da vida cotidiana ao redor acabam por servir de transporte para a análise minuciosa das sensações do próprio Bernardo Soares. Duas palavras, no entanto, parecem, senão quebrar, ao menos tensionar a contemplação íntima do sujeito: “reparo” e “subitamente”. Perdido, até então, embora à maneira interseccionista, no seu mundo interior, escapava a Bernardo Soares que o ruído da vida era talvez mais intenso que o de suas próprias sensações. Com a violência do “reparar” que o toma “de súbito”, formas, sons, cores, relações humanas etc., se impõem, perturbando a consciência-sensação desse eu que, por conta dessa mesma perturbação, se abrirá, na continuação do fragmento, para uma nova série de sensações e transformações do “eu” desencadeadas por essa primeira violência do “reparar subitamente”. No fragmento em questão, a violência da visão súbita de Soares e o desfile de personagens concretas, às vezes “monstruosas”, mas sempre dignas de simpatia, remetem a dois poetas finisseculares que impactam, em certa medida, a produção do Livro: António Nobre e Cesário Verde. Do primeiro, e de maneira indireta, a passagem remete ao “Lusitânia no bairro Latino”. No poema, o sujeito poético tem como interlocutor um francês de nome Georges, a quem, suplicante, apela: “Georges! Anda ver meu país de Marinheiros, | O meu país das Naus, de esquadras e de frotas!” (NOBRE, 2009: 78). Mais adiante, o texto enumera enfermidades sociais e conclama os pintores de seu país a representá-las: Tísicos! Doidos! Nus! Velhos a ler a sina! Etnas de carne! Jós! Flores! Lázaros! Cristos! Mártires! Cães! Dálias de pus! Olhos-fechados! Reumáticos! Anões! Deliriuns-Tremens! Quistos! Monstros, fenômenos, aflitos, aleijados, Talvez lá dentro com perfeitos corações: Todos, a uma mugem roucas ladainhas, Trágicos, uivam “uma esmola p’las alminhas Das suas obrigações!” Pelo nariz corre-lhes pus, gangrena, ranho! E, coitadinhos! Fedem tanto: é de arrasar... Qu’é dos Pintores do meu país estranho, Onde estão eles que não vêm pintar? (NOBRE, 2009: 84) Embora se deva reconhecer que o que segue é conjectural, é possível que Fernando Pessoa, não só sob a pena de Bernardo Soares, tenha arrogado para si a missão de Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 26 Pereira & Ferreira Lisboa, a cidade mítico-poética responder ao apelo de Nobre de ser o “pintor de seu país”3. O modo de fazer isso no Livro do Desassossego, particularmente no trecho 298, e a maneira como Carrilho representa esse modo no filme passam, necessariamente, por Cesário Verde. De Cesário, o trecho nos remete aos poemas “Contrariedades” e “Num bairro moderno”. Em “Contrariedades”, são interseccionadas às sensações do sujeito poético imagens banais e grotescas da população mais pobre da cidade: “Deu meia-noite; e em paz pela calçada abaixo, | Soluça um sol-e-dó. Chuvisca. O populacho | Diverte-se na lama” (VERDE, 1983: 62); mais especificamente, à visão de uma moça jovem e tísica que, para sobreviver, trabalha como engomadeira: Sentei-me à secretária. Ali defronte mora Uma infeliz, sem peito, os dois pulmões doentes; Sofre de faltas de ar, morreram-lhe os parentes E engoma para fora. Pobre esqueleto branco entre as nevadas roupas! Tão lívida! O doutor deixou-a. Mortifica. Lidando sempre! E deve a conta na botica! Mal ganha para sopas... (VERDE, 1983: 61) No poema, enquanto o eu lírico contempla o espetáculo deplorável da situação da jovem tísica, a lembrança de que certo jornal lhe negara a publicação de uns versos perturba sua sensibilidade de duas formas. Levando-se em consideração o título do poema, “Contrariedades”, há entre o poeta ressentido e a jovem doente uma cisão profunda no que tange ao tipo de miséria que cada um sofre. A dele, a princípio, vaidosa e fútil; a dela, miséria social. Por outro lado, e é isso que provoca o furor do eu lírico, a indigência intelectual da imprensa que lhe recusa os versos – “a crítica segundo o método de Taine | Ignoram-na” – desloca o verdadeiro artista para a condição de outsider. Se, portanto, no poema, para a jovem não parece haver remédio, para o artista autêntico não há possibilidade alguma de reconhecimento. Em “Num bairro moderno”, também o artista comparece ao poema, porém não mais representado como o sujeito, um tanto prático, preocupado com o destino de suas publicações e carreira. É, pois, representado em ato criador e transfigurador do universo que o cerca: Vale a ressalva de que tanto para Nobre quanto para Pessoa, o “retrato do país” não pretende ser “o espelho do real” à maneira realista-naturalista nem o retrato autobiográfico do sujeito empírico na nação. Para os autores deste artigo, a “lição” de Nobre, que Pessoa parece seguir, é a de que o artista transforma o real com sua visão única e, por vezes, irônica (cf. ALVES, 2001: 103-115). Há, portanto, a possibilidade de estendermos alguns paralelos entre a poesia de Nobre e a estética do fingimento de Pessoa. Por conta, no entanto, das semelhanças, inclusive lexicais, de trechos do Livro do Desassossego com a poesia de Cesário, preferimos nos deter mais demoradamente nas relações do Livro com alguns poemas de Cesário Verde. 3 Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 27 Pereira & Ferreira Lisboa, a cidade mítico-poética Subitamente – que visão de artista! – Se eu transformasse os simples vegetais, À luz do Sol, o intenso colorista, Num ser humano que se mova e exista Cheio de belas proporções carnais?! [...] E eu recompunha, por anatomia, Um novo corpo orgânico, aos bocados. Achava os tons e as formas. Descobria Uma cabeça numa melancia, E nuns repolhos seios injetados. (VERDE, 1983: 68) Não nos parece coincidência que a visão iluminadora do artista, tanto no fragmento 298 do Livro do Desassossego como no trecho citado de “Num bairro Moderno”, aconteça “subitamente”, como se tal visão obsediasse o poeta de gênio e dele tomasse conta, impondo-se. O êxtase visionário que, em Cesário, parece recompor o universo e seus sentidos, em Bernardo Soares, raciocinador melancólico, é feito de dicotomias aparentemente insolúveis: o artista pode ver, tomado pela figura impessoal do gênio, nas pessoas comuns, um transporte para um mundo de sonho que lhe propicia um Além; este Além, no entanto, é ainda um Aquém, pois não é a visão imediata de Deus, visão última e despida de todas as máscaras. No parágrafo posterior ao excerto do fragmento 298 citado acima, Bernardo Soares lamenta: Quem me dera, neste momento o sinto, ser alguém que pudesse ver isto como se não tivesse com ele mais relação que o vê-lo – contemplar tudo como se fora o viajante adulto chegado hoje à superfície da vida! Não ter aprendido, da nascença em diante, a dar sentidos dados a estas coisas todas, poder vê-las na expressão que têm separadamente da expressão que lhes foi imposta. Poder conhecer na varina a sua realidade humana independentemente de se lhe chamar varina, e de saber que existe e que vende. Ver o polícia como Deus o vê. Reparar em tudo pela primeira vez, não apocalipticamente, como revelações do Mistério, mas diretamente como florações da Realidade. (PESSOA, 2023: 357-358) Veja-se o tom melancólico de aparente fracasso expresso por Soares. Antes de prosseguirmos com este assunto, vale analisar um pouco o modo como Carrilho constitui a cena em que o trecho do fragmento 298, que começa com “Reparo subitamente”, é construída. Na tela, vemos fotografias de arquivo de varinas, padeiros, leiteiros, lojas, restaurantes da Baixa etc., sucedendo-se vagarosamente. Os sons da cidade, no entanto, permanecem ininterruptos, marcando o fluir da passagem do tempo. Assim, temos dois planos significantes construídos pela montagem: o visual, caracterizado pela “objetividade essencial da fotografia” (BAZIN, 1991: 22); e o sonoro, Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 28 Pereira & Ferreira Lisboa, a cidade mítico-poética registro da fluidez. Entre ambos se opera uma coexistência de divergência e identidade. Se o tempo da fotografia é o da captação do instante e do registro histórico, o dos sons urbanos na cena é o da expansão e do prolongamento. Por outro lado, suspensas do tempo pelo registro histórico da objetividade fotográfica, as pessoas retratadas, libertas de seus afazeres cotidianos, erguem-se em estatuária totêmica de LisboaOphiussa, como corpos substitutos de corpos já extintos; enquanto o som, no seu dinamismo de registros, torna-se dispersivo e fugaz. Essa mistura de planos multiplicadora de perspectivas – própria, aliás, do ensaístico no cinema –, na obra de Carrilho, corresponde à maneira como a vida lisboeta vai se desdobrando aos olhos do desiludido sonhador Bernardo Soares que, por sua vez, aprendeu a ver com Cesário Verde. Assim, tudo ao redor pode até ser fugaz ou estagnação, banalidade ou obra de gênio, preconceito ou iluminação íntima, mas é, mais do que qualquer compreensão possível, vida: “Isto agora não é já a Realidade: é simplesmente a Vida” (PESSOA, 2023: 358). Não obstante ao que foi posto, é de referir que a certeza do fracasso não é, em Pessoa, o mesmo que ausência de grandeza. Em carta a Armando Cortês-Rodrigues, de 19 de janeiro de 1915, confessava Pessoa ao amigo que “você é, como eu, fundamentalmente um espírito religioso” (PESSOA, 1985: 43). O “espírito religioso” não é algo buscado, mas recebido, e tal concessão divina indica a “missão” que o homem de gênio deve exercer no mundo: “[...] à minha sensibilidade cada vez mais profunda, e à minha consciência cada vez maior da terrível e religiosa missão que todo o homem de gênio recebe de Deus com o seu gênio” (PESSOA, 1985: 44). Ter diante de si a clareza da missão é, por sua vez, “uma consequência de encarar a sério a arte e a vida” (PESSOA, 1985: 45) e, por fim, “outra atitude não pode ter para com a sua própria noção-do-dever quem olha religiosamente para o espetáculo triste e misterioso do Mundo” (PESSOA, 1985: 45). Para Eliade, o homem religioso [...] assume uma humanidade que tem um modelo transumano, transcendente. Ele só se reconhece verdadeiramente homem quando imita os deuses, os Heróis civilizadores ou os Antepassados míticos. Em resumo, o homem religioso se quer diferente do que ele acha que é na sua existência profana. O homem religioso não é dado: faz-se a si próprio ao aproximar-se dos modelos divinos. Estes modelos, como dissemos, são conservados pelos mitos, pela história das gestas divinas. Por conseguinte, o homem religioso também se considera feito pela História, tal qual o homem profano. Mas a única História que interessa a ele é a História sagrada revelada pelos mitos, quer dizer, a história dos deuses, ao passo que o homem profano se pretende constituído unicamente pela História humana – portanto, justamente pela soma de atos que, para o homem religioso, não apresentam nenhum interesse, visto lhes faltarem os modelos divinos. É preciso sublinhar que, desde o início, o homem religioso estabelece seu próprio modelo a atingir no plano transumano: aquele revelado pelos mitos. O homem só se torna verdadeiro homem conformando-se ao ensinamento dos mitos, imitando os deuses. (ELIADE, 2011: 88-89) Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 29 Pereira & Ferreira Lisboa, a cidade mítico-poética Ser receptáculo, condutor e propagador da história “revelada pelos mitos”, uma maldição reservada ao “homem de gênio”, é captar o que à alma nacional está encoberto. Para Pessoa, “os homens de gênio são os representantes d’essa alma íntima dos povos; falam alto o que a si mesma a dispersa alma nacional segreda no divino silêncio do ser” (LOPES, 1990: II, 72). Em Ophiussa, ao adotar, nos termos de Timothy Corringan presentes no Preâmbulo deste artigo, a “subjetividade pronunciada” de Pessoa, num projeto de filme-ensaio “em que pensar é multiplicar os eus”, para representar LisboaOphiussa, Carrilho – sem subverter a perspectiva pessoana, mas desdobrando-a em releituras possíveis – dá à cidade um tom em que ela se transubstancia em outro projeto, ao modo heteronímico, de Pessoa ser. Empregam--se, para esse fim, variadas composições de cena, que podem se dar na representação de Pessoa em ambientes fechados, em planos panorâmicos da cidade, na câmera na mão em atitude flâneur pelas ruas, em imagens de fotografias de arquivo, na contemplação estática de paisagens melancólicas, no captar o movimento da cidade de dentro do bonde, da dispersão de um close de câmera que nos leva ao mundo feminino do trabalho, em suma, em fragmentos do real que, ao modo da serpente, penetram o solo da deusa Ophiussa. Considerações finais O filme Ophiussa – Uma Cidade Fernando Pessoa, está disponível, conforme já informado em nota neste artigo, gratuitamente no site da emissora RTP, pois também é uma obra feita para difusão da cultura portuguesa e da obra pessoana. É louvável, portanto, que o diretor tenha optado, em vez do tom didático e laudatório, apresentar a Lisboa de Pessoa percorrendo os caminhos da obra do poeta atualizando os sentidos de uma obra que se caracteriza, sobretudo, pela multiplicidade. O filme-ensaio poético de Fernando Carrilho, assim, presta homenagem à cidade e ao poeta por tornar presente e, por isso, viva, a experiência da relação com Pessoa, em vez de cair nas armadilhas de cinebiografias que tendem a direcionar excessivamente o olhar do espectador. José Gil considera que, ao fim e ao cabo, é esta a lição de Pessoa: Uma coisa é certa: toda a investigação e experimentação de Pessoa (expressa e descrita, sobretudo por Bernardo Soares) visam produzir Vida – mesmo que seja necessário passar pela aparente negação ou, mais exatamente, pelo “pôr entre parênteses” da vida comum e da ação. [...] Tantas experiências extraordinárias sobre si próprio, tantas vidas vividas em tão pouco tempo [...], tantas regiões incríveis da alma visitadas, tanta inteligência consagrada à criação de dispositivos geradores de fluxos de vida, tanta arte na construção de todos os tipos de sensações – de plenitude e de vazio, de vida e de ausência de vida, de amor e de desertificação de si [...], da ternura mais pungente ou da mais extrema ausência de ternura e de humanidade no seu formidável devir-inumano – tanta atividade, tanta produtividade, um tão incessante Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 30 Pereira & Ferreira Lisboa, a cidade mítico-poética trabalho concentrado numa obra, não puderam realizar-se sem uma enorme capacidade de sentir, de pensar, de assimilar a vida para a preservar, a aumentar e a recriar. (GIL, 2020: 234) Há na obra poética-visual do cineasta Fernando Carrilho uma pluralidade de versões da cidade de Lisboa. Essa multiplicidade permanece em contínuo movimento nas imagens captadas pelo olhar do espectador ao longo do filme e ganham uma dimensão própria a partir da interiorização dessa variedade de significados ontológicos em torno da realidade viva e pulsante da cidade. No filme, Lisboa é Ophiussa, a entidade mítica fundadora do fado ou destino marítimo português, a detentora das glórias e da decadência de todo um povo, e o espaço das relações prosaicas da modernidade. Contudo, essa miríade de vivências da cidade adquire uma unidade simbólica a partir do olhar pessoano, ao mesmo tempo perscrutador da realidade urbana, do passado histórico e das possibilidades oníricas da construção poética. Fig. 7. Pessoa debruçado no parapeito da janela. Fig. 8. Rio Tejo. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 31 Pereira & Ferreira Lisboa, a cidade mítico-poética Bibliografia ALFONSO X, El Sabio (2009). General Estoria. Coordenação de Pedro Sánches-Prieto Borja. 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Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 33 Pereira & Ferreira Lisboa, a cidade mítico-poética LEONARDO de ATAYDE PEREIRA é Licenciado em História pela Universidade de São Paulo (USP), Mestre em História Social pela USP, Doutor em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa pela USP. Atualmente desenvolve pesquisa pós-doutoral na UNIFESP (Universidade Federal de São Paulo) na área de Literatura Portuguesa. Sua produção acadêmica concentra-se nos seguintes temas: Romantismo Português; Historiografia Portuguesa; Romance Histórico; Literatura Gótica, Cinema e Modernidade. LEONARDO de ATAYDE PEREIRA holds a Bachelor’s degree in History from the University of São Paulo (USP), a Master’s degree in Social History from USP, and a Ph.D. in Comparative Studies of Portuguese Language Literatures from USP. Currently, he is conducting post-doctoral research at UNIFESP (Federal University of São Paulo) in the field of Portuguese Literature. His academic work focuses on the following themes: Portuguese Romanticism, Portuguese Historiography, Historical Novel, Gothic Literature, Cinema, and Modernity. ––– JOSÉ EDUARDO LEÃO FRANCHI FERREIRA é Mestre em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP), Professor de Português e Literatura para o Ensino Básico e presta serviços de revisão para diferentes editoras. É autor do capítulo “Uma poética da Biblioteca em Marco Lucchesi”, publicado no livro Marco Lucchesi: Estética do Interdisciplinar. JOSÉ EDUARDO LEÃO FRANCHI FERREIRA holds a Master’s degree in Portuguese Literature from the University of São Paulo (USP) and works as a Portuguese and Literature teacher for Basic Education. Additionally, he provides editing services for various publishing houses. He is the author of the chapter “A Poetics of the Library in Marco Lucchesi,” published in the book Marco Lucchesi: Aesthetics of Interdisciplinarity. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 34 !"#$%&'()&&% &%*+%,)-'.&)%-%/+'0&11+!"#$%&'()*''&(+'',-(.'*&/&01(2'--1/3 !"#$%&"'!()*+",($!"#"$%"&'()"$* !"#$%$&'()"**'%+(,-./$"(0#""$+()-12343&%&"+(5%637%23*8'9 ,*&-./ :( 7";7'( %$%23*%( '( 4-#7%<8"7#%."8( !"#"$ %&'()(*"$ +&,,")$ ,)-."/$ +"'0/1)-+( &"( ,-.=$"( 0#""$+( 2">%$&'( "8( 4'$*3&"#%?@'( %*6"47'*( 6'2A734'*+( "*7=734'*( "( 3&"'2B.34'*( &%( 7#%&-?@'( 43$"8%7B.#CD34%(*'1#"(-8("*6"4AD34'(D%7'(E3*7B#34'F('(,-"1)( 6-123437C#3'(4#3%&'(6'#(!"#$%$&'( )"**'%+( $'( D3$%2( &"( GHIJ+( 6%#%( %( 6#38"3#%( 4%86%$E%( &"( &3>-2.%?@'( &'( #"D#3."#%$7"( $'#7"< %8"#34%$'+(%(5'4%<5'2%+("8()'#7-.%29 0*12/%3& !"#$%$&'()"**'%+(,-./$"(0#""$+ K&>"#73*3$.+(5%637%23*89 45&6%"(6 LE3*( %$%2M*3*( &"2>"*( 3$7'( 7E"( *E'#7( D328( 2"3$ %&'()(*"$ +&,,")$ 4).&*$ +"'0/1)-+( &3#"47"&( 1M( ,-./$"( 0#""$9( N7( ";%83$"*( 7E"( 6'23734%2+( %"*7E"734+( %$&( 3&"'2'.34%2( D%4"7*( 'D( 7E"( 43$"8%734( #"6#"*"$7%73'$(#".%#&3$.(%(*6"43D34(E3*7'#34%2(">"$7(O $%8"2M+(!"#$%$&'()"**'%P*(4#"%73'$('D( %$( %&>"#73*3$.( *2'.%$( 3$( 7E"( 2%7"( GHIJ*( D'#( 7E"( 3$%-.-#%2( 6#'8'73'$%2( 4%86%3.$( 'D( 7E"( K8"#34%$(*'D7(&#3$Q+(5'4%<5'2%+(3$()'#7-.%29 R S!T0U5V)W9()#'D"**'#%(L37-2%#(&%(!%4-2&%&"(&"(X"7#%*(&%(S!T0(YS$3>"#*3&%&"(!"&"#%2(&"(T3$%* 0"#%3*Z("(['2*3*7%(&"()#'&-73>3&%&"(&'(5V)W9 Sedlmayer Eugène Green encontra Fernando Pessoa O curta Como Fernando Pessoa salvou Portugal (2018), do diretor franco-americano Eugène Green, tem menos de 30 minutos, mas, como observa Inácio ARAÚJO (2018), “tem mais cinema do que em quase todos os longas metragens que se tem visto nos últimos tempos. Há mais comédia do que em muita comédia. Há mais drama do que em muito drama”. A história do filme pode sucintamente ser descrita assim: no final de 1920, o escritor Fernando Pessoa foi incumbido de criar um slogan para a campanha publicitária de lançamento da Coca-Cola em Portugal. Com o dístico criado, conseguiu a proeza de interditar a oferta do refrigerante por quase meio século em todo o território nacional. Se o resumo deste fato histórico é relativamente simples e soa como uma espécie de chiste, a leitura do filme é mais engenhosa e demanda uma exegese atenta. Em parte, porque o filme segue uma escolha estética apoiada na recuperação de signos intrinsecamente relacionados à identidade portuguesa e à obra pessoana, principalmente no que tange à heteronímia (ou “heteronimismo”, como escreveu Pessoa). Mas também porque Green, cujo trajeto anterior era o teatro, com interesse particular pelas tragédias do século XVII, é um estudioso declarado de literatura, com graduação no Curso de Letras, inclusive. Flaubert já tinha sido evocado e trabalhado por ele anteriormente. Já no filme aqui considerado, é Pessoa que surge como espécie de loser capaz de profanar a religião chamada capitalismo. Se sabíamos que, além (e sobretudo) poeta, o escritor português fazia bicos como tradutor, crítico literário, editor, jornalista, astrólogo e comentarista, aqui conhecemos a faceta de publicitário. E nesta seara, a noção de erro, de fracasso – num universo em que a publicidade começava a devorar a cultura – adquire outros contornos. Talvez aí resida um dos pontos cruciais desta breve e bem-sucedida narrativa: com o slogan, Pessoa conseguiu profanar o improfanável. Sabe-se que na primeira agência de publicidade de Portugal, a “Agência Hora”, Fernando Pessoa havia sido contratado como responsável pela correspondência em inglês e francês, idiomas que dominava de forma excepcional. E que, ao longo das tarefas de tradução, foi que surgiu o convite para que inventasse frases objetivas, sintéticas e eficazes, capazes de atiçar a venda de certos produtos. A peça criada para a Coca-Cola não foi a sua primeira empreitada como redator publicitário. Antes já havia bolado um anúncio para um verniz norte-americano, específico para automóveis, como também textos para a venda de espartilhos e cintas destinadas às raparigas portuguesas. Porém, no caso da propaganda do refrigerante, que fora aprovada inclusive pelo cofundador da agência, Sr. Manuel Martins da Hora, ocorreu tudo completamente diferente em termos de receção: o slogan criou uma azáfama tão poderosa que, pouco tempo após ser lançada, a bebida foi totalmente embargada pelo governo português. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 36 Sedlmayer Eugène Green encontra Fernando Pessoa Para melhor nos aproximarmos do filme do Green, proponho primeiramente indagar em que medida o uso do advérbio “como”, no título do curta, promete a explicação das circunstâncias, dos motivos e razões que fizeram com que a bebida americana não fosse consumida em Portugal e de como Pessoa se tornou uma espécie de hacker que minou tal disseminação. Questionar depois como a ambiguidade do primeiro anúncio lusitano do refrigerante lança o expectador num intricado novelo de aporias: Fernando Pessoa salvou Portugal de quê? De quem? Porquê? A abertura à experiência do gosto, o livre comércio de uma bebida estrangeira relaciona-se, no filme, à liberdade política? O que seria vitória e o que seria derrota neste país que, na altura, também colonizava parte da África, mantendo, hipocritamente, a velha ideologia seiscentista da propagação da civilização e da fé cristã? O encoberto, a referência direta ao Sebastianismo, é lido como luz ou treva neste filme? A interdição da bebida é uma negativa ao imperialismo norte-americano? Fig. 1. A rua do Desassossego. Ler os sinais As imagens do início do filme (cf. Fig. 1), cuidadosamente enquadradas, demonstram não só um forte apego à fotografia, como também o fato de Green distribuir vestígios que remetem tanto à poesia de Fernando Pessoa quanto à identidade portuguesa. É como se solicitasse ao espectador que se tornasse um leitor e encontrasse pistas. Que lesse bem de-vagar (como propôs décadas depois, como método de leitura, Herberto HELDER, 1973: 148) as imagens. As cenas de abertura convidam, desta forma, o espectador a revisitar a “ilha saudade” Portugal (LOURENÇO, 1999: 14) e a conhecer as condições e a produção do anúncio do refrigerante. As badaladas do sino da Igreja dos Mártires, no Chiado, as Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 37 Sedlmayer Eugène Green encontra Fernando Pessoa suas pancadas, são ritmicamente acompanhados pela leitura em off de “Ó sino da minha aldeia”, atribuído ao ortônimo. Neste poema simples (que teve por título “O Aldeão”), metricamente rimado em redondilha maior, o sujeito lírico se dirige ao sino para dizer que quanto mais longe está o passado, mais perto está a saudade. Ó sino da minha aldeia, Dolente na tarde calma, Cada tua badalada Soa dentro da minha alma. E é tão lento o teu soar, Tão como triste da vida, Que já a primeira pancada Tem o som de repetida. Por mais que me tanjas perto, Quando passo, sempre errante, És para mim como um sonho, Soas-me na alma distante. A cada pancada tua, Vibrante no céu aberto, Sinto mais longe o passado, Sinto a saudade mais perto.1 Eis a primeira tese lançada sub-repticiamente no filme: o sino (como o mar de Vigo), canta um tempo imóvel, canta a repetição. O ir e vir das ondas do mar, presente na lírica trovadoresca que chora a falta do amigo são similares às suas pancadas. O passado, muito longe e para sempre perdido, é trazido, com nostalgia e melancolia, pelas batidas ritmadas deste som. Sino, no latim signum, quer dizer sinal. Se é o objeto que marca a passagem do tempo, também alerta e chama. Não parece ser à toa que logo depois do poema declamado segue o fado “Sopra demais o vento”, na voz de Camané, cuja letra são também conhecidos versos de autoria pessoana. Poema de 8 de abril de 1911, publicado em 1914 e 1924 em vida de Pessoa, sobre o qual Jerónimo Pizarro indica o seguinte, em Antologia Mínima – Poesia (PESSOA, 2018: 311): “Num apontamento manuscrito, junto à última estrofe do poema e ao seu primeiro verso, lê-se: ‘Da m[inha] aldeia é como quem diz, isto é, como quem mente. Nasci num 4.° andar do Largo de S. Carlos, em Lisboa, dois andares acima de onde o C[entro] E[leitoral] R[epublicano] ainda não estava. Teve este aldeismo o meu nascimento’ (119-11ar). Veja-se também uma carta de 11 de dezembro de 1931 para João Gaspar Simões a este respeito”. 1 Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 38 Sedlmayer Eugène Green encontra Fernando Pessoa Sopra de mais o vento Para eu poder descansar... Há no meu pensamento Qualquer cousa que vai parar... Talvez esta cousa da alma Que acha real a vida... Talvez esta cousa calma Que me faz a alma vivida... Sopra um vento excessivo... Tenho medo de pensar... O meu mistério eu avivo Se me perco a meditar. Fig. 1. Poema de 5-11-1914, enviado em carta de 19-1-1915 (PESSOA, 2009: 353 et seq.) Vento que passa e esquece, Poeira que se ergue e cai... Ai de mim se eu pudesse Saber o que em mim vai! Os créditos vão surgindo lentamente e as imagens adquirem a imobilidade da fotografia. Planos estanques. Tudo à primeira vista parece estar afinado com as imagens identitárias da nação: Portugal, país preso ao passado que não passa, que não se moderniza e nem é seduzido pela novidade da técnica. Nação que espera o retorno de D. Sebastião, imóvel no tempo. Enquanto dura a música, enquanto duram os letreiros, surgem outras imagens para a caracterização da identidade portuguesa: uma oliveira ancestral (árvore que fornece matéria-prima para os azeites, mas também com forte valor simbólico nas religiões monoteístas) a placa indicativa da Rua dos Douradores (onde viveu e trabalhou o ajudante de guarda-livros Bernardo Soares); os azulejos brancos e azuis (herança mourisca e que ironicamente identificam o revestimento da casa portuguesa); as abóbodas do restaurante Martinho da Arcada (local onde Pessoa tomou muitos copos de aguardente e se encontrou com os companheiros de Orpheu); o interior art noveau do Café A Brazileira (hoje cartão postal de Lisboa, com a estátua do poeta junto a um banco convidativo para os turistas de Smartphone, a frente do hospital São Luís dos Franceses (local onde Pessoa morreu em 29-11-1935); os óculos redondos similares ao do escritor (segundo os biógrafos, a última fala dele foi “Dá-me os óculos” e, em seguida, escreveu “I know not what to-morrow will bring”), o bondinho amarelo com seus transeuntes habituais (transporte que também virou “patrimônio turístico”), a máquina datilográfica Royal (exatamente a marca que o poeta usava)... (cf. Fig. 2) enfim, uma fileira de decalques que acentuam a dimensão de certos índices que são materiais e, ao mesmo tempo, abstratos. Significantes que se tornaram, após a sua morte, como os livros, patrimônio nacional, ou seja, mercadoria (cf. Fig. 3). Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 39 Sedlmayer Eugène Green encontra Fernando Pessoa Fig. 2. Pessoa, com sua habitual máquina datilográfica Royal. Fig. 3. O Café A Brazileira, local de encontro da geração Orpheu. Sentir tudo de todas as maneiras Primeiro estranha-se. Depois entranha-se, tal como a poesia, poderíamos emendar. O slogan pessoano provoca ruído, embaraça, carrega Eros como o bom poema que nada quer comunicar. Segundo Carlos Pittella e Jerónimo Pizarro, ocorreu o seguinte: O famoso refrigerante chegaria a Portugal em 1929 – se não fosse Fernando Pessoa. Em fins da década de 1920, o poeta trabalhava com Manuel Martins da Hora, fundador da primeira agência de publicitária portuguesa, e com Carlos Moitinho de Almeida, encarregado de representar a Coca-Cola em Portugal. Segundo Luís Moitinho de Almeida, filho de Carlos, cabia a Pessoa criar o slogan português. [...] Segundo Almeida, Pessoa concebeu: “Primeiro estranha-se. Depois entranha-se”. Ao tomar conhecimento do slogan, o celebrado cientista Ricardo Jorge, então diretor de Saúde de Lisboa, teria decretado a proibição do produto...” (PITTELLA e PIZARRO, 2016: 72) Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 40 Sedlmayer Eugène Green encontra Fernando Pessoa Na mais recente biografia de Fernando Pessoa, Richard Zenith esclarece que antes de criar o anúncio para a Coca-Cola, Pessoa já havia escrito outros textos publicitários, e havia obtido sucesso, por exemplo, na propaganda de cintas e espartilhos, mas, apesar disso, ao lançar uma outra peça de propaganda para uma cera de automóveis, “o texto que escreveu é tão literário que um de seus editores póstumos o publicou como conto” (ZENITH, 2022: 757). No caso do refrigerante, o biógrafo pontua duas diferenças em relação às informações anteriores: primeiro, que a “célebre bebida americana” chegou a Portugal em 1927 (e não 1929); e, segundo, que o slogan foi: “No primeiro dia: Estranha-se. No quinto dia: Entranha-se” (ZENITH, 2022: 758). E completa: A campanha publicitária continuou, e a bebida vendeu a bom ritmo até que, poucos meses depois de ser lançada, sua importação foi abruptamente embargada. É provável que se tratasse de uma medida protecionista, para incentivar as indústrias nacionais e ajudar a conter o déficit comercial do país, mas, quando as autoridades norte-americanas pediram ao governo português uma justificativa para a proibição, apontando que os próprios testes do produto feitos em Portugal haviam mostrado que ele não continha cocaína, foi o ministro da Saúde que apresentou um argumento irrefutável: ou continha vestígios difíceis de detectar de cocaína, a qual era uma substância ilegal, ou não continha nenhuma cocaína e era culpada de propaganda enganosa. O ministro citava o slogan de Pessoa, chamando-o de um inaceitável “convite ao vício”. (ZENITH, 2022: 758) A diferença entre os dois anúncios é que a versão de Zenith parece acentuar a passagem do tempo para que haja a assimilação viciante do gosto da bebida. Já a que Eugène Green adota (aquela que era conhecida na altura), além de ser mais concisa, tem mais ritmo. Fig. 4. Álvaro de Campos, elegantemente trajado. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 41 Sedlmayer Eugène Green encontra Fernando Pessoa No filme, Green traz, para ilustrar a criação do anúncio, o heterônimo Álvaro de Campos (cf. Fig. 4). A essência do processo heteronímico é performada nessa cena: a experiência em travar um diálogo com alguém que não sente como aquele que escreve. O ator Carloto Cotta é irrepreensível em ambos os papéis: guarda o silêncio tímido de Pessoa, solta a arrogância do engenheiro vanguardista que anda sempre em luta com a metafísica. No diálogo com Pessoa, o engenheiro naval, que sentia tudo de todas as maneiras, que amava meninos e meninas e se jogara há tempos no ópio e na errância é, em tudo, diverso do ortônimo. Contradição, paradoxo e diversidade são motores para entender a obra de um autor que, parodicamente, deixou mais de cem assinaturas, com nomes próprios diferentes, com estilos diferentes, com obras diferentes, pois fingir é conhecer-se, disse um dia.2 Com misto de escárnio e proteção, Campos lembra a seu duplo que ele nunca terá lucro nem fortuna, que o sucesso não faz parte do seu destino. Mas o aconselha a prosseguir com o anúncio. Quando publicado o slogan, através da estampa mulher + bebida (cf. Fig. 5), o Governo localiza ameaça contra a moral e a saúde dos portugueses. Uma obscenidade, uma possessão capaz de invadir o território imperial português, dizem os funcionários e o hilário padre jesuíta, encarregado de exorcizar (cf. Fig. 6) o poderio do refrigerante. Pessoa havia conseguido inserir o Unheimilch na bebida destinada à mesa portuguesa. Fig. 5. A modelo com a garrafa da Coca-Louca (making-of da propaganda). Assim termina “Ambiente”, texto em prosa atribuído a Álvaro de Campos e publicado na revista Presença, n.º 5, em junho de 1927. 2 Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 42 Sedlmayer Eugène Green encontra Fernando Pessoa Fig. 6. O poder político e o religioso, juntos, exorcizando os demônios gasosos. Sinta quem lê! Primeiro estranha-se. Depois entranha-se. No filme de Green, o refrigerante se chama “Coca Louca”. A alteração do produto Coca-Cola para Coca-Louca parece ter relação com outro episódio europeu: a vaca-louca. A aglutinação nos faz lembrar do surto de contaminação que ocorreu no final do século XX e o medo da transmissão da doença nos seres humanos. A carne de vaca parou de ser consumida por tempos como modo de impedir a contaminação, ou seja, o entranhamento da doença degenerativa Outro ponto importante no filme é o que acerta o acordo da tarefa de criação do anúncio entre o poeta e o empresário. O dono da agência de publicidade (chamado respeitosamente por “senhor patrão” pelo poeta-funcionário) conta como o refrigerante é um produto muito bem-sucedido na América do Norte. Pessoa indaga se se trata de uma aguardente, ao que o distribuidor da bebida responde resolutamente que não, já que os americanos são um povo puro, e que álcool lá é pecado; trata-se, assim, “de uma bebida com o efeito do álcool, mas sem pecado”. Sabemos que, na altura, nos EUA, a lei seca vigorava, mas não em Portugal, o que explica em parte o forte tremor das mãos do patrão ao entregar o copo de CocaLouca ao poeta (que também amava as bebidas etílicas!). Ambos pecadores e criminosos, na visão norte-americana, mas em Lisboa, “a publicidade encontrara seu poeta”, diz contente o empresário. Pessoa, entretanto, não apreciou o gosto. E reconheceu, ali, o traço cultural de quem a produziu. O adjetivo “infecta” é utilizado pelo poeta para caracterizar a experiência, a degustação do refrigerante. Importa lembrar que a política, que mudaria o destino de Portugal por quase um século se instalava na mesma época da tentativa da entrada da bebida norteamericana: o Estado Novo. Salazar, na altura da criação do anúncio, já tinha sido ministro das Finanças por um tempo e o clima de austeridade se instalara no país. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 43 Sedlmayer Eugène Green encontra Fernando Pessoa Pessoa se ressentia com a limitação da liberdade e, apesar de ter morrido em 1935, percebeu o cerco fascista e fez, inclusive, inúmeros poemas contra o “sal-azar” (como fez referência ao ditador num poema do último ano de vida). Logo depois da proibição do anúncio, na década de 1930, veio Salazar e a política do Estado Novo. O moralismo, a ditadura e a repressão só aumentaram. Antes do texto de Pessoa, os anúncios do refrigerante nunca tiveram nenhuma menção à sensualidade. Relacionavam à natureza, à amizade, à família, à sede na tentativa de atrelar o gosto à liberdade e à felicidade (não é idêntica à promessa feita pelo capitalismo?) pessoal, econômica e política. Se há pouco ficamos sabendo desta história portuguesa, o filme de Eugène Green ironicamente, com humor e linguagem técnica assombrosa, vai muito além da anedota. Com planos frontais equilibrados, claros, harmônicos, imagens com pouquíssimo movimento, quase retratos, vem para nos fazer lembrar que um dístico é poderoso e às vezes capaz de solapar o “é isto aí”. A fotografia impressiona e emociona. A fotografia entranha. Instala a força do erro, do ruído e do fracasso. Portugal, no filme de Green, é retratado como um lugar cheio de contradições. Uno e diverso, paradoxal e contraditório, inerte e ativo, cômico e trágico, religioso e profano, como Fernando Pessoa. E a cena final (cf. Fig. 7) nos faz ver o mar português não para endossarmos a espera do encoberto que irá trazer novamente o esplendor do império perdido, mas muito mais para nos lembrar que os impérios um dia acabam, mesmo que demorem a cair. A bebida infecta, a vaca louca, nada saudável, nada nutritiva, teve uma pausa refrescante nas terras lusitanas. No neoliberalismo atual, que vende toda a ilha saudade como mercadoria, Coca-Cola acompanha lado a lado os pastéis de Belém. Mas o que o pequeno filme de Green nos faz enxergar é como, mesmo no nevoeiro, há luz quando acontece certa afinidade eletiva entre a poesia e a história. Um raro curto-circuito. Fig. 7. Fernando Pessoa e o além-mar. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 44 Sedlmayer Eugène Green encontra Fernando Pessoa ANEXO Eugène Green, Como Fernando Pessoa salvou Portugal Guião e projecto de mini-filme G5 – Ext. dia; portão do hospital de São Luís dos Franceses De face, o portão do hospital de São Luís dos Franceses no Bairro Alto, onde Pessoa faleceu. G6 – Int, dia; mesa com um par de óculos Visto de cima e de perto, a parte de cima de uma mesa, com um par de óculos cuja armação é fina e de metal, como os que Pessoa pedira mesmo antes de morrer. cartão: COMO FERNANDO PESSOA SALVOU PORTUGAL cartão: 1927 S1 – Ext. dia; paragem do eléctrico 28, perto da Basílica da Estrela Perto da Basílica da Estrela, vê-se Fernando Pessoa, com trinta e oito anos de idade, que aguarda o eléctrico, de pé, na paragem. O veículo chega, ele sobe, e o eléctrico volta a partir. GENÉRICO G1 – Ext. dia; Largo de São Carlos A partir do lado da rua dos Duques de Bragança, vemos a fachada do Teatro de São Carlos. O nosso olhar roda e sobe para enquadrar o sino da igreja de Nossa Senhora dos Mártires. G2 – Int. dia; café A Brasileira no Chiado A partir da porta, vista da sala do café A Brasileira no Chiado, vazia. G3 – Ext. dia; Terreiro do Paço A partir da rua Augusta, vista sobre as arcadas do Terreiro do Paço em direcção à rua da Alfândega. G4 – Int. dia; o Martinho da Arcada Vista da sala do restaurante Martinho da Arcada, vazio, em direcção ao muro com o relógio, com, se possível, uma pequena mesa de café ao meio, como era o caso na época de Pessoa. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) S2 – Ext. dia; placa sobre um prédio da Baixa Vê-se de perto uma placa num prédio da Baixa: Moitinho de Almeida Ltda. S3 – Int dia; escritório no Moitinho de Almeida Ltda. 1. Visto de cima, Fernando, de frente e enquadrado a partir da cintura, debruçado sobre uma máquina de escrever. Sobre a mesa do escritório, uma folha para onde lança de vez em quando um olhar, à medida que carrega nas teclas. Por trás de nós, ouve-se uma voz masculina. VOZ Sr. Fernando. Fernando levanta o olhar. FERNANDO Sr. patrão. 45 Sedlmayer Eugène Green encontra Fernando Pessoa Veremos, em alternância, Fernando, visto de cima, e o seu patrão, Sr. Moitinho de Almeida, visto de baixo, os dois em face um do outro, enquadrados a partir da cintura. O homem que está de pé tem nas mãos um copo cheio de um líquido escuro. 5. Vêem-se ambos de perfil, Moitinho a partir da cintura, Fernando a partir do peito. 2. MOITINHO DE ALMEIDA Sr. Fernando, ocupa-se muito bem da nossa correspondência em língua estrangeira, mas eu sei que tem outros dons. Fernando levanta-se, e o seu patrão estende-lhe o copo por cima da mesa do escritório. Ele pega nele, prova, faz uma careta, depois devolve o copo a Moitinho. 1. FERNANDO É então uma das raras pessoas em Portugal a deter essa informação. Mas creio que se engana. FERNANDO É infecto. MOITINHO DE ALMEIDA Prove, se não se importa. MOITINHO DE ALMEIDA O gosto cultural forma-se. 2. MOITINHO DE ALMEIDA Eu nunca me engano: foi por isso que fui bem sucedido. Neste momento, tenho precisamente em mãos um negócio importante. FERNANDO No caso presente, seria preciso deformá-lo. 1. FERNANDO Qual? MOITINHO DE ALMEIDA Os Estadunidenses adoram. 2. MOITINHO DE ALMEIDA Negociei um monopólio para importar para Portugal a Coca-Louca, bebida nacional dos Estadunidenses. FERNANDO Não creio que esta bebida possa ter sucesso em Portugal. Em alternância, cada um de face, e enquadrados a partir dos ombros. 3. FERNANDO Trata-se de uma aguardente? 4. MOITINHO DE ALMEIDA Não. Os Estadunidenses, que é um povo muito puro, condenam o álcool como sendo um pecado. No país deles, é até proibido agora. 3. FERNANDO No país deles eu seria então um grande pecador, e até mesmo um grande criminoso. 4. MOITINHO DE ALMEIDA Dizem, no entanto, que esta bebida pode produzir os mesmos efeitos que o álcool, sem pecado. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 4A. De face, e a partir dos ombros, Moitinho. MOITINHO DE ALMEIDA Ignora o poder da publicidade, meu amigo. É o caminho do futuro. Já não se conquistarão impérios pela força das armas, mas através de campanhas publicitárias. 5A. Voltamos a vê-los ambos de perfil e a partir da cintura. FERNANDO Certamente tem razão, Sr. patrão. MOITINHO DE ALMEIDA Eu tenho sempre razão. Mas é pena que esta bebida não lhe agrade. FERNANDO Porquê, Sr. patrão? 46 Sedlmayer Eugène Green encontra Fernando Pessoa Em alternância, cada um de face e a partir do peito. 6. MOITINHO DE ALMEIDA Disseram-me que era poeta. 7. FERNANDO Faço rimas… como muitas senhoras devotas e muitos senhores reformados. 6. MOITINHO DE ALMEIDA É demasiado modesto, meu caro amigo. 7. FERNANDO Qual a relação com este seu negócio? Cada um de face e a partir dos ombros. 4B. MOITINHO DE ALMEIDA A meu ver, para dar à publicidade a sua inteira potência, é preciso casá-la com a poesia. 3A. FERNANDO A meu ver, esse casamento não seria muito católico, e não poderia ser celebrado na Igreja. 4B. MOITINHO DE ALMEIDA Sendo de espírito muito aberto, admito a união livre. 3A. FERNANDO E então? 4B. MOITINHO DE ALMEIDA Gostaria de lhe propor pôr em prática os seus dons de poeta concebendo um anúncio publicitário para esta bebida. Mas se ela não lhe agrada… Em alternância, os rostos de ambos, de face. 8. FERNANDO Seria isso, justamente, que me permitiria conceber algo de bom. 9. MOITINHO DE ALMEIDA Ora explique-se. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 8. FERNANDO Um poeta é por natureza um fingidor: só consegue algo quando finge acreditar no que diz. 9. MOITINHO DE ALMEIDA Então aceita? 8. FERNANDO Com muito gosto. 9. MOITINHO DE ALMEIDA Será bem remunerado… Não de imediato, claro, mas terá uma percentagem nas vendas. 8. Fernando responde com um sorriso irónico. S4 – Ext. dia; jardim São Pedro de Alcântara 1. Sob uma luz de fim de tarde, no jardim de São Pedro de Alcântara, Fernando, de face e partir do peito, contempla a cidade em baixo. 2. Por cima do seu ombro, o pôr-do-sol sobre o Tejo. S5 – Int. noite; quarto de Pessoa 1. Visto de cima, e de três quartos de costas, a partir da cintura, Fernando, de pé, em frente a uma cómoda, sobre a qual se encontra uma folha branca. Tem uma caneta na mão, como se estivesse prestes a escrever, mas não faz senão reflectir. Por trás dele ouve-se uma voz masculina. VOZ Se tem tanta dificuldade em escrever, é sem dúvida porque é você mesmo. Fernando pousa a sua caneta e volta-se, de maneira que o vemos de três quartos, ainda a partir da cintura. FERNANDO Por vezes de facto sou eu próprio, acontece que esta noite o sou. Mas não estou a tentar escrever um poema. Vemo-lo em alternância com outro homem, ambos de face e a partir da cintura. O seu interlocutor está vestido de forma elegante, e usa um monóculo. Não obstante a diferença indumentária, assemelham-se muito. 47 Sedlmayer Eugène Green encontra Fernando Pessoa 2. HOMEM Parece admirado de me ver. 5. ÁLVARO O sucesso não faz parte do seu destino. 1. FERNANDO Pensava que estava na Escócia, Álvaro. 6. FERNANDO Aconselha-me então a desistir. 2. ÁLVARO E estava. Em breve estarei lá de novo. Mas esta noite, sentia que precisava de mim. 5. ÁLVARO Pelo contrário, é absolutamente necessário ir até ao fim. 1. FERNANDO Não sei se essa intuição era justa. 6. FERNANDO Nunca teve receio de se contradizer. 2. ÁLVARO O que faz, se não está a tentar escrever um poema? Em alternância, cada um de face e a partir do peito. 3. FERNANDO Encontrei finalmente uma actividade lucrativa. Vou fazer fortuna. 4. ÁLVARO Muito me admiraria. 3. FERNANDO E porquê? Em alternância, ambos os rostos de face. 7. ÁLVARO Sabe-o melhor do que eu. Quando o Encoberto regressa, ele não é reconhecido. Mas das suas derrotas nasce a luz de Portugal. 8. O rosto de Fernando ilumina-se. FERNANDO Descobri! 7. ÁLVARO O quê? 8. FERNANDO O anúncio. 4. ÁLVARO Nenhum dos seus negócios jamais teve sucesso. Fecha os olhos, depois volta a abri-los antes de falar. 3. FERNANDO Há sempre uma primeira vez. FERNANDO “Primeiro, estranha-se, depois, entranha-se”. Em alternância, cada um de face e a partir dos ombros. 9. Os dois homens, ainda face a face, de perfil, só dos pés até a cintura. 5. ÁLVARO Qual é o seu projecto? 6. FERNANDO Vou conceber um anúncio publicitário. 5. Álvaro ri. 6. FERNANDO Porque é que eu não haveria de ter sucesso ? Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) FERNANDO (do qual não se vê o rosto) Este achado, é obra sua. ÁLVARO (do qual não se vê o rosto) Espero então que ele seja reconhecido como tal. FERNANDO (do qual não se vê o rosto) Evidentemente. 48 Sedlmayer Eugène Green encontra Fernando Pessoa ÁLVARO (do qual não se vê o rosto) Eu tinha totalmente razão. 3. MOITINHO DE ALMEIDA Mas quem, então, é o autor genial? Em alternância, cada um de face e a partir da cintura. 2. FERNANDO Um amigo, o engenheiro naval Álvaro de Campos, que nas suas horas vagas é também poeta. 1A. FERNANDO Em relação a quê? 2A. ÁLVARO É graças a si que Portugal será salvo. 1A. Fernando, que volta-se e debruça-se sobre a cómoda para escrever. 10. Por cima da sua cabeça, vemos o quarto na sua totalidade. Fernando encontra-se agora sozinho. S6 – Ext. dia; paragem do eléctrico 28 na Baixa 1. Numa paragem do eléctrico 28 na Baixa. Visto de cima, o veículo chega e pára. Temos no nosso campo de visão a porta traseira. Esta abre-se e, por entre os pés dos passageiros que descem, reconhecem-se os de Fernando, que usa polainas. S7 – Int. dia; escritório pessoal do Sr. Moitinho de Almeida 1. No escritório do Sr. Moitinho de Almeida, descobrimos, a partir da cintura e de três quartos de costas, Fernando e, diante dele, visível de três quatros de face e a partir do peito, o seu patrão, que está a examinar um papel que tem na mão. De seguida, ergue a cabeça. MOITINHO DE ALMEIDA Com toda a evidência, Sr. Fernando, eu tinha razão: a publicidade encontrou o seu poeta! Em alternância, cada um de face e a partir dos ombros. 2. FERNANDO Para dizer a verdade, Sr. patrão, não sou eu o autor deste… Hesita. 3. MOITINHO DE ALMEIDA Deste poema, Sr. Fernando. 2. FERNANDO É como diz, Sr. patrão. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) Em alternância, ambos os rostos de face. 4. MOITINHO DE ALMEIDA Poeta é, com efeito. Este texto é magnífico! Poderia propor-lhe um lugar permanente de publicista. 5. FERNANDO Não creio que o possa interessar. Prefere viver na Escócia. 4. MOITINHO DE ALMEIDA Mas, neste momento, está em Lisboa? 5. FERNANDO Estava, ontem à noite. 4. MOITINHO DE ALMEIDA Então, porque é que não foi ele próprio a vir apresentar-me o seu trabalho? 5. FERNANDO Sou eu que trato dos seus interesses em Portugal. S8 – Int. dia; atelier d’artista 1. Num atelier, vemos um cavalete e, de três quartos de costas, a partir da cintura, um pintor que está a realizar o cartaz publicitário para a Coca-Louca. Um pouco mais longe, visível de três quartos de face e a partir da cintura, encontra-se a sua modelo, uma jovem mulher com um decote vermelho, que tem na mão um copo cheio da bebida em questão. PINTOR Está possuída! Possuída! 2. De três quartos de face e a partir dos ombros, a modelo, que lança ao pintor um olhar de incompreensão. 49 Sedlmayer Eugène Green encontra Fernando Pessoa PINTOR (hors champ) Deite a cabeça para trás, como uma bacante em transe. Ela obedece. PINTOR (hors champ) Esplêndido! S9 – Ext. dia; painel para cartazes 1. Num painel para cartazes, vemos o cartaz terminado. Em torno da imagem do modelo com a cabeça atirada para trás, e os olhos revirados, lê-se: “Primeiro, estranha-se, depois, entranha-se”. Por cima, “Beba Coca-Louca”. S10 – Ext. dia; entrada do Ministério da Saúde 1. Na entrada do edifício, vemos a placa “Ministério da Saúde”. S11 – Int. dia; escritório do ministro da saúde 1. Por cima do ombro de um homem sentado num escritório imponente, vemos de face e a partir da cintura um outro homem, que traz debaixo do braço uma grande folha enrolada. A sua expressão é a de um funcionário que se encontra numa situação grave. HOMEM SENTADO (do qual não se vê o rosto) O que há, Mourinho? MOURINHO Sr. ministro, trata-se de uma ameaça muito grave que pesa sobre a saúde e a moral da nação e, por consequência, sobre a sua posição no mundo, e sobre a sua capacidade para defender o território sagrado do império. MINISTRO (do qual não se vê o rosto) Qual é essa ameaça? Mourinho desenrola a grande folha, que é um exemplar do cartaz. MINISTRO Mas o que é esta obscenidade? 1A. Descobrimos, por cima do ombro do ministro, Mourinho, de face e a partir da cintura. Ele volta a enrolar o cartaz, mas sem deixar de olhar para o seu chefe. MOURINHO Trata-se da campanha publicitária de uma bebida estadunidense, que contém uma droga poderosa, e que um tal Sr. Moitinho de Almeida começou a importar para Portugal. A Liga moral dos estudantes ameaça depositar uma queixa. Em alternância, ambos de face, e a partir do peito. 3. MINISTRO Não será necessário. Saberemos cumprir o nosso dever. A possessão, contudo, não é uma questão de droga, mas de maus espíritos. É, pois, necessário consultar um exorcista. 4. MOURINHO Devo pedir às autoridades eclesiásticas que nos ponham em contacto com a pessoa adequada? 3. MINISTRO Não vale a pena. Conheço o maior dos exorcistas, o P. Marinheiro Bicha da Horta. Ele fornecer-nos-á a prova necessária de que esta bebida induz a possessão, e justificará deste modo a sua proibição. 4. MOURINHO Mas e se o P. Marinheiro Bicha da Horta não encontrar maus espíritos? MINISTRO (do qual não se vê o rosto) “Primeiro, estranha-se, depois entranha-se”. 3. MINISTRO Não tema. Sou eu que lhe faço o pedido, e ele é jesuíta. 2. Descobrimos o ministro de face e enquadrado a partir dos ombros, os olhos arregalados, que contempla ainda o cartaz. S12 – Ext. dia; entrada do centro de exorcismo 1. Na entrada de um edifício, vemos de perto uma placa: “Centro Santo-Inácio de purificação espiritual”. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 50 Sedlmayer S13 – Int. dia; no exorcista 1. Num salão de um certo aparato, vemos de face e a partir da cintura, o P. Marinheiro Bicha da Horta, ladeado pelo ministro da Saúde e por Mourinho, visíveis, estes, de três quartos de face. Sobre uma mesa estilo “guéridon”, diante do exorcista, encontra-se uma garrafa de Coca-Louca e uma cruz. O jesuíta estende as mãos por cima da garrafa. P. MARINHEIRO BICHA DA HORTA Sinto que está preso nesta garrafa o espírito de um poderoso jansenista, que tenta arrastar Portugal para uma espiral de heresia, procurando assim afastá-lo da via do Senhor. Mas o demónio, que renunciou à graça suficiente, seria incapaz de resistir à força das armas dos grandes santos da nossa Companhia. Levanta a garrafa, afastando-a de si, e recita a sua encantação. Eugène Green encontra Fernando Pessoa poderei exorcizar uma a uma cada garrafa desta bebida infame. 3. MINISTRO Evidentemente que não. Mourinho! Redija um decreto ministerial que eu assinarei. 4. MOURINHO Diga-me o texto, Sr. ministro, e é como se já estivesse feito. 3. MINISTRO “Em nome da saúde pública, física e moral de Portugal, toda a garrafa de Coca-Louca encontrando-se no solo da pátria, continental, marítima e do ultramar, deve ser imediatamente destruída, sem compensação financeira para o possessor, ao que acresce a proibição de importação futura, os infractores ficando sujeitos a uma pena de prisão não inferior a três anos.” P. MARINHEIRO BICHA DA HORTA Demónio jansenista, infame espírito que renunciaste à graça suficiente, e que te condenaste a ti mesmo ao inferno, em nome de Santo Inácio de Loyola, de São Francisco Xavier, e de São Luís de Gonzaga, sai desta garrafa, sai de Portugal, e volta para o teu mestre! 4. MOURINHO O decreto aguardará assinatura em cima da mesa do escritório do Sr. ministro, e será adoptado hoje mesmo. Abana a garrafa em todos os sentidos, como se lutasse contra um espírito resistente, acabando finalmente por pousá-la em cima da mesa “guéridon” e, agarrando na cruz, cuja parte de trás tem, na junção dos braços, um abre-garrafas, solta a cápsula. A espuma transborda por todo o lado. 4. MOURINHO Já me informei, Sr. ministro. Trata-se de um tal Álvaro de Campos, poeta decadente e pederasta, educado nos jesuítas. P. MARINHEIRO BICHA DA HORTA O demónio desfez-se num último acto de fornicação, e foi vencido. Volta-se para o ministro da Saúde. Veremos cada um dos três homens a partir dos ombros, e mais ou menos de face, a cabeça orientada em direcção da pessoa a quem se dirige. 2. P. MARINHEIRO BICHA DA HORTA Como é evidente, com tantos outros demónios que sou obrigado a perseguir, não Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 3. MINISTRO Quem é o autor deste infame anúncio? 2. P. MARINHEIRO BICHA DA HORTA Não foi certamente connosco que apanhou tais vícios. 3. MINISTRO Certamente que não, padre. 1A. Voltamos a ver os três homens a partir da cintura. MINISTRO Que esse tal Campos seja preso. MOURINHO Amanhã o mais tardar, a sua carreira de publicista estará terminada. 51 Sedlmayer O P. Marinheiro levanta os olhos ao céu. P. MARINHEIRO BICHA DA HORTA Para maior glória de Deus. Os três homens fazem o sinal da cruz. S14 – Ext. dia; painel para cartazes 1. Vemos de perto o cartaz colado num painel. Surge uma mão, que o arranca. S15 – Ext. dia; uma floresta 1. Vista geral de uma bela e verde floresta. 2. De perto, mãos que esvaziam garrafas de CocaLouca sob as árvores. 3. De novo uma vista geral da floresta: todas as árvores estão mortas e secas. S16 – Int. dia; escritório pessoal do Sr. Moitinho de Almeida 1. De pé, atrás da mesa do escritório, visível de três quartos de face e a partir da cintura, o Sr. Moitinho de Almeida. Fernando entra no nosso campo de visão pelo lado oposto do móvel, onde o vemos de três quartos de costas e a partir da cintura. Eugène Green encontra Fernando Pessoa 3. MOITINHO DE ALMEIDA Então sou sobretudo eu que tenho de me queixar. 2. FERNANDO Lamento muito. Mas permita-me, Sr. patrão, perguntar-lhe o que aconteceu? 3. MOITINHO DE ALMEIDA O ministro da saúde confiscou e destruiu todo o meu stock de Coca-Louca, sem compensação financeira. 2. FERNANDO E com que motivo? 3. MOITINHO DE ALMEIDA Alegando que esta bebida conteria maus espíritos, ou uma droga, ou ambos, que induziria a um estado de possessão quem a consumisse. 2. FERNANDO O nosso anúncio publicitário podia dar origem a essa interpretação. FERNANDO Queria falar comigo, Sr. patrão? 3. MOITINHO DE ALMEIDA Nesse caso, foi notavelmente eficaz. MOITINHO DE ALMEIDA Permito-me informá-lo, Sr. Fernando, que o Sr., ou o seu amigo o engenheiro Álvaro de Campos, arruinaram-me. 2. FERNANDO A eficácia, em princípio, é o objetivo de um anúncio publicitário. FERNANDO Não era nosso intuito, Sr. patrão. MOITINHO DE ALMEIDA Eu sei. É por isso que conservo por si a minha amizade. Quanto ao Sr. Campos, é procurado pela polícia. Em alternância, cada um de face e a partir do peito. 2. FERNANDO Não corre qualquer risco, pois já voltou para a Escócia. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) Cada um de face e a partir dos ombros. 4. MOITINHO DE ALMEIDA Enganei-me pois. 5. FERNANDO É algo que lhe acontece, Sr. patrão? 4. MOITINHO DE ALMEIDA Foi a primeira vez. 5. FERNANDO Qual foi o erro? 52 Sedlmayer 4. MOITINHO DE ALMEIDA Casar a poesia com a publicidade: são inimigos irreconciliáveis. 5. FERNANDO É talvez a razão pela qual eu não sou capaz fazer fortuna, Sr. patrão. S17 – Ext. dia; passeio diante do prédio dos escritórios de Moitinho de Almeida Ltda 1. Sob uma luz de fim de tarde, vemos a parte de baixo da porta do prédio onde se encontram os escritórios de Moitinho de Almeida Ltda, assim como o passeio que a precede. A porta abre-se, os pés de Fernando saem e partem, depois a porta volta a fechar-se. S18 – Ext. dia; cais do Terreiro do Paço Eugène Green encontra Fernando Pessoa 1. Por cima dos ombros de Fernando, que está no cais do Terreiro do Paço, o que ele contempla: o Tejo sob a luz de fim de dia. 2. De face e a partir dos ombros, Fernando. FERNANDO É verdade que era uma bebida infecta. Então salvei Portugal. Mas porque é que nunca reconhecem o Encoberto? Faz um pequeno sorriso triste, suspira, e responde à sua própria questão. FERNANDO Porque está escondido. Ele sai do nosso campo de visão. 3. Descobrimos o cais vazio e, mais longe, o rio e a costa em frente, sobre os quais em breve cairá a noite. Fim Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 53 Sedlmayer Eugène Green encontra Fernando Pessoa Bibliografia ARAÚJO, Inácio (2018). “Como Fernando Pessoa salvou Portugal” apresenta poesia e história. Folha de São Paulo, 17 de outubro. https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2018/10/como-fernandopessoa-salvou-portugal-apresenta-poesia-e-historia.shtml HELDER, Herberto (1973). Poesia Toda. Lisboa: Plátano. LOURENÇO, Eduardo (1999). Mitologia da saudade: seguido de Portugal como destino. São Paulo: Companhia das Letras. PESSOA, Fernando (2018). Antologia Mínima – Poesia. Edição de Jerónimo Pizarro. Lisboa: Tinta-dachina. Coleção Pessoa. _____ (2009). Sensacionismo e Outros Ismos. Edição crítica de Jerónimo Pizarro. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda. _____ (1974). Obra poética. Organização, introdução e notas de Maria Aliete Galhoz. Rio de Janeiro: José Aguilar Editora. Volume único. PITTELLA, Carlos; PIZARRO, Jerónimo (2016). Como Fernando Pessoa pode mudar a sua vida. Rio de Janeiro: Tinta-da-China Brasil. ZENITH, Richard (2022). Pessoa, uma biografia. Tradução de Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 54 Sedlmayer Eugène Green encontra Fernando Pessoa SABRINA SEDLMAYER é professora titular da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq. As suas pesquisas situam-se no campo da literatura comparada, com ênfase nas literaturas de língua portuguesa e na teoria das culturas de língua portuguesa, atuando principalmente na linha de pesquisa “Políticas do Contemporâneo”. É autora de diversos livros nas interfaces literatura & filosofia e literatura & alimentação. SABRINA SEDLMAYER is a full professor at the Faculty of Letters of the University of Minas Gerais (UFMG) and a research fellow at the National Council for Scientific and Technological Development (CNPq). Her research is in the field of comparative literature, with emphasis on Portuguese-language literatures and the theory of Portuguese-language cultures, particularly in the research line “Politics of the Contemporary”. She has authored several books at the intersection of literature & philosophy and literature & food. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 55 !"#$%&'()#*+%*'()#$),#-"%)./%"0) !"#$%&'(!)#$*&++,#-# !"#$%&'()&%*+'#%,-.'/0123004+5' !"#$%%&!'"($!)*'+6 !"#"$%&'()%* !"#"$%"&'()"$* "#$%&'(!)%*%$+,*(!-./'0!120'(!3#40,*!.%!'05#*5'(!!"#$%#&$!'(' 6 )*+$!#,*-./.+00$12&37 ,*&-./ 1%08,00%$.,!,*!8'.%0$,*!9%**,'#*!.%!-./'0!120'(!':%#0'&,*!,!90,8%**, 80#'5#4,!.,!0%';#<'.,0(! '**#&! 8,&,! '*! *='*! #$>=2$8#'* '05?*5#8'*7! @%*5%! =$#4%0*,(! A%0$'$.,! 1%**,'! B! =&'! 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De entre as dezenas de diários que constam do arquivo pessoal do realizador, focamos a nossa atenção em dois subtipos: nas referências que, ao longo dos anos, Edgar Pêra foi fazendo a Fernando Pessoa e nos cadernos do filme Não Sou Nada. A análise irá começar por detalhar as características formais dos objetos, para se deter no conteúdo dos mesmos. Sem negar a essência ontológica (o que são), proponho percorrer com o nosso olhar uma abordagem pragmática – como SHUSTERMAN (2000) e HEINICH (1998) – e dialógica (BAKHTIN, 1986), tentando recriar, por essa via, um renovado ponto de vista sobre os documentos disponíveis, isto é, sobre as representações que nos oferecem ou que lhes fornecemos. Unidades fragmentadas Fig. 1. Coleção de cadernos Não Sou Nada (2014-2022). Convém, antes de mais, situar as circunstâncias da existência da amostra em análise, que tem duas origens. Por um lado, resulta de consultas regulares ao arquivo pessoal do realizador, efetuadas entre novembro de 2021 e julho de 2023, no âmbito de uma tese de doutoramento, em curso, sobre arte, comunicação e história de vida, a partir do caso de Edgar Pêra. Simultaneamente, para efeito da mesma investigação, foram sendo selecionados e enviados, ao longo deste tempo, pelo próprio autor, blocos Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 57 Lima Cadernos diários de Edgar Pêra completos de cadernos digitalizados ou páginas avulsas, desde os primeiros anos de atividade (1977) até ao presente. Os excertos referentes a Fernando Pessoa, assim como aos cadernos Não Sou Nada, integraram essas remessas regulares, que se destinavam a informar a tese. Temos, pois, como ponto de partida, um corpus quase integralmente escolhido pelo produtor. O que poderia ser considerado um obstáculo metodológico à análise e consequente redação deste artigo passou a assumir-se como um desafio interpretativo. Explicando: tal como foi recolhido, este material acentua o caráter fragmentário dos documentos, permitindo recriar um meta-discurso (no duplo sentido do autor, que os reordena por força destas seleções, e de quem os interpreta) em cima da produção original integral. Sem prejuízo de um muito necessário trabalho de inventariação sistemática de toda a documentação em causa, optei, para os propósitos deste artigo, por assumir estes pedaços algo desconexos de informação, por vezes descontextualizada, como um revelador e intencional elemento discursivo. Tomar esta opção metodológica implica aceitar o “emaranhado” (KIFFER, 2018: 99) que os originou e perpetua, limita-nos a capacidade interpretativa, remetendonos para a justa medida da complexidade intrínseca e inextricável com que se travestem estas mensagens. Adicionalmente, posiciona estes documentos como um processo dialogante em constante mutação, afastando-nos da ilusão fácil de os aceitarmos tão só como uma fabulosa e estanque fonte de informação sobre uma obra, que, não obstante, o são. Fig. 2. Carantonhas ou Egos. Fonte: Caderno 035, 2000. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 58 Lima Cadernos diários de Edgar Pêra Fig. 3. Carantonhas ou Egos. Fonte: Caderno 035, 2000. Foram também integradas na análise anotações que não se relacionam diretamente com nenhum dos dois tópicos enunciados, mas que remetem de forma indireta para estes, como sejam as temáticas da fragmentação, da loucura ou do abismo ou outro tipo de dados que nos ajudam a situar esta produção diarística. Uma vez que nem sempre os objetos digitais foram acompanhados de elementos contextuais (como uma data precisa), foi elaborada uma descrição individual de cada uma das imagens, procurando reconstituir a ordem pré-existente. A tarefa compôs-se como uma estranha arqueologia do presente, já que nada impede a verificação in loco entre o existente e o recriado ou pós-selecionado. Arqueologia implica reconstituição, com a certeza de que nada se configura como na origem. Encontrei-me, posto isto, perante imagens total ou parcialmente repetidas, súmulas de cadernos organizadas pelo autor, páginas isoladas cujo teor (após visualizações insistentes e registos identificadores) se recuperam em cadernos completos, numa conjugação de pedaços, como num vaso quebrado. Também acontece amiúde Edgar Pêra selecionar apenas uma parte da página, destacando uma frase ou imagem, o que suscita curiosas interpretações divergentes entre a parte e o todo revelado. Vale a pena realizar um pequeno desvio para exemplificar. Nos Diários Cine-Tese (uma das súmulas de cadernos diários não publicados, com textos reflexivos sobre o cinema), surge uma digitalização de uma folha, com a frase: “Não penso no futuro destes cadernos, mas não filmo desta forma os meus pensamentos” (p. 207). Noutro ponto do documento, consta a mesma página, com uma percentagem maior da folha, pelo que é possível ler toda a frase redigida: “O que não quer dizer que não penso no futuro destes cadernos, mas não filmo desta forma os meus pensamentos” (p. 210). Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 59 Lima Cadernos diários de Edgar Pêra Fig. 4. “Poderes ácydos”. O início de Artur Cyaneto. Fonte: Caderno 035, 2000. É neste ponto que estes assincronismos aparentemente estéreis nos conduzem à crença de que haverá um qualquer ângulo de análise a defender. Que pode ser este: receber os cadernos como objetos encontrados confirma que estes mais não são do que infinitos mapas mentais caracterizados pelas centenas de hipóteses combinatórias que os ligam entre si. Mais ainda quando o próprio autor faz por torná-los perdidos, para deles se apropriar, ampliando as múltiplas possibilidades simbólicas neles contidos. Assim sendo, temos que a lenta e fria recolha científica, unidade a unidade, ajuda certamente a construir a preciosa ordem original, mas poderá diluir o caos que os torna, ainda hoje, vivos testemunhos inacabados. Prossigamos, pois, nessa via mais dispersiva. O universo de onde foi extraído o corpus de análise tem como limite temporal os anos de 1977 a 2022 e compõe-se dos seguintes núcleos documentais: um conjunto de objetos digitais enviados por Edgar Pêra entre julho e agosto de 2022, agregando referências a Fernando Pessoa, elementos biográficos e os cadernos do filme Não Sou Nada; o já referido ficheiro intitulado Diários Cine-Tese [2016?]; um ficheiro intitulado Fotos Cadernos Ego – NSN (2018-2021); um ficheiro designado Cadernos Ego Junho 2019 a Maio de 2020; além de 44 cadernos digitalizados na totalidade. Resulta que, desta seleção, foram identificados 110 registos alusivos a Fernando Pessoa, que foram classificados como “influências prévias”, constituindo-se por um friso cronológico que começa em 1988 e se estende até 2013. Quanto aos cadernos Não Sou Nada, o seu registo começa em 2014 e prolonga-se até 2022, tendo sido registadas 460 entradas. A identificação destes conteúdos foi auxiliada por um documento de trabalho em progresso, correspondendo a um inventário dos cadernos de Edgar Pêra. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 60 Lima Cadernos diários de Edgar Pêra Cadernos, diários, livros de artista? Mas, afinal, como poderemos classificar estes objetos? São diários, são rascunhos de projetos, são obras de arte? São documentos de arquivo? Conjugando a banalidade e a singularidade (KIFFER, 2018), que características formais lhes podem ser apontadas? Iniciados como diários exclusivamente pessoais, no início da vida adulta, os cadernos de Edgar Pêra começaram a ser progressivamente utilizados como dispositivos mentais ou organizadores de pensamentos, direcionados para a atividade intelectual e artística. Como é próprio deste tipo de registos (REIS, 2021), a volatilidade da sua natureza torna difícil qualquer intuito de definição. Também no caso dos cadernos de Pêra, vários elementos se combinam para a construção de uma amálgama de forma e de conteúdo. Se, no início da produção, obedeciam a um modelo mais formatado (caderno A4 pautado, com apontamentos escritos), ao longo dos anos evoluíram para um evidente estado de hibridismo. Neles, passaram a marcar presença desenhos (bonecos Ego, focados adiante neste texto), grafismos, esquemas, colagens (etiquetas com preços, autocolantes de super-heróis, avisos de receção dos correios), apêndices (bilhetes de cinema, talões de multibanco, faturas), como é visível na Fig. 5. Fig. 5. “NSN shoping”. Colagens misturadas com grafismos. Fonte: Caderno 080, 2018. Ao mesmo tempo, cruzam-se ideias para filmes, com notas do quotidiano, lembretes de tarefas ou contactos telefónicos. Para aumentar a confusão, também se misturam, frequentemente, sequências temporais, uma vez que Edgar Pêra volta a estes registos de forma constante, introduzindo novos comentários, anotando ou Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 61 Lima Cadernos diários de Edgar Pêra sublinhando apontamentos ou colorindo os cadernos. Esta singularidade confere, mesmo aos registos iniciais, um estatuto de arquivo aberto, o que corrompe inteiramente a ideia comum do arquivo como conjunto cuja produção é fixada temporalmente, propiciando, por vezes mesmo ainda em vida do produtor, a consulta do investigador. Uma vez mais, o que poderia ser encarado como um engulho (não só a documentação não está controlada em termos de descrição, como muda constantemente de lugar físico e de conteúdo), apresenta-se como uma riqueza informacional. Isto porque nos dá a oportunidade de apreender os fluxos presentes, registando dinâmicas que esperamos valiosas para os vindouros. Se, por norma, as consultas aos arquivos são realizadas numa fase intermédia ou definitiva (quando o uso é escasso), tal não significa que o estatuto de documento (resultado da produção de uma entidade, independente do seu suporte, que serve de registo e prova às atividades realizadas) possa ser negado a estes cadernos. Sendo, em termos genéricos, um documento de arquivo, os diários identificam-se com outras tipologias, que tentarei designar. Embora se possam enquadrar no crescente individualismo que surgiu com a modernidade e teve continuidade para a pós-modernidade (MACEDO, 2014), favorecendo a escrita pessoal, não podemos reduzi-los a diários íntimos ou egodocumentos, isto é, a registos do quotidiano, que refletem o eu e a comunidade, sem qualquer objetivo literário ou artístico. Surgindo, portanto, na complementaridade de uma obra, tornam-se, como esta, objetos de mediação entre o individual e o universal. Esse lado mediador e polissémico dos livros de artista, como assinala Isabel Baraona em entrevista à ROMANA (2017a), faz com que a sua apreensão se estenda por distintas sequências temporais, auxiliada pela própria manipulação tátil e visual do objeto, a que se refere o curador Delfim Sardo, também em entrevista à ROMANA (2017a). O que encaminha estes exemplares para a definição (igualmente difusa) de livros de artista. Os cadernos de Edgar Pêra encaixam no conceito de múltiplos de arte (ROMANA, 2017b), já que são abordagens diferenciadas (não obstante complementares) prévias ou simultâneas a uma obra, na sua maioria, fílmica, mas não apenas. Recorde-se que, além de realizar filmes, Edgar Pêra também pinta (os quadros do consultório psiquiátrico do Não Sou Nada são da sua autoria), sendo que algumas das suas pinturas são sucedâneos dos bonecos Ego dos cadernos. Essa vertente da multiplicidade é própria, de resto, dos livros de artista. Uma característica, convém sublinhar, que é igualmente relevada por ROMANA (2017b), ao tipificar (entre outros fatores) o livro de artista como intermédia, isto é, como um objeto que surge na interdependência de outras expressões artísticas. É verdade que, no caso do realizador, não há uma reprodução das obras em publicações com tiragens limitadas em edições alternativas, como acontece com muitos livros de artista. No entanto, outros sinais direcionam estes objetos para esta categorização. Sardo (a Romana) aponta a dimensão dialógica como um elemento identificativo do livro de artista que, segundo o autor “tem sempre embebido em si uma compulsão participativa”. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 62 Lima Cadernos diários de Edgar Pêra Isto, mesmo se (como acontece, inegavelmente, com os cadernos em análise) essa compulsão é “normalmente remetida para uma relação de intimidade, não para a relação coletiva” (ROMANA, 2017a: 8). Intimidade do produtor e do leitor, que acede a estes objetos como se entrando num espaço privado. No que é confirmado por Romana, que afirma: “na relação com o livro de artista somos leitores e espectadores em simultâneo, assistimos ao desenvolver de uma obra de arte no tempo e no espaço” (ROMANA, 2017b: 34). Porque se prestam, na maior parte das vezes, a auxiliar a atividade criativa, não há propriamente regras para os livros de artista, que roubam o conceito de livro tradicional (um objeto tridimensional com fólios) para criar algo que está muito para lá desta padronização editorial. Há, ainda assim e mesmo levando em conta a faceta algo imprevisível dos cadernos de Edgar Pêra, algumas linhas facilmente identificáveis. Por exemplo, a partir de certa altura, o formato A4 foi sendo substituído por pequenos cadernos de folhas brancas de encadernação rígida, embora se encontrem exceções, como cadernos de maiores dimensões para o filme A Janela (Maryalva Mix) (PÊRA, 2001), ou cadernos de argolas, de capas metálicas; quase todos têm um menu de abertura (ver Fig. 6), que funciona como índice do conteúdo; e estão redigidos, maioritariamente, a tinta preta (com canetas sakura graphic 3), ainda que haja exceções à regra (verde, azul ou vermelho). Fig. 6. Menu de caderno de Edgar Pêra. Fonte: Caderno 091, 2019. É curioso verificar que também a caligrafia sofre mutações, não só temporais (letra mais desenhada e legível no início da produção), mas também ocasionais, parecendo que, o autor se posiciona em distintos papéis, incorporados no grafismo da escrita. Ou são simplesmente resultados prosaicos do tempo e do lugar do registo, já que aparecem anotações no metro, no comboio, em esplanadas, nas viagens de avião. Habitualmente, os cadernos de Edgar Pêra pouco se assemelham a livros, no sentido editorial do termo, exceto num caso. Em 2020, o realizador imergiu no espírito pessoano, escrevendo à máquina citações datilografadas de textos de Pessoa. Dessas investidas, surgiu um caderno em formato de livro, misturando estes excertos Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 63 Lima Cadernos diários de Edgar Pêra com os bonecos Egos dialogantes. Este é, talvez, o exemplar que mais se aproxima do formato dos livros de artista, enquanto objeto físico. Ao integrarmos os cadernos de Edgar Pêra na categoria de livros de artista, estamos a considerá-los como obras de arte, na aceção destas como objetos cujo suporte é o seu próprio sentido como os define a artista Isabel Baraona em entrevista à Romana (Baraona em entrevista a ROMANA, 2017a). Adicionalmente, tal como acontece com uma obra de arte, podem descrever-se como extensões físicas de uma atividade mental de relação com o mundo. Se considerarmos o corpo (soma) como uma ferramenta estética (SHUSTERMAN, 2012), temos que, efetivamente, estes cadernos (e os filmes que lhes sucedem) resultam de um prolongamento indesmentível de um olho-máquina (cinema), de uma manualidade artística (desenhos dos cadernos) e de uma concetualização estética. Resumindo: estamos perante documentos de arquivo pessoal, que encaixam, genericamente, no tipo diário, mas que também podem ser considerados documentos de apoio de projetos (maioritariamente filmes) e, em simultâneo, artefactos artísticos, pela dimensão visual que registam, mas também pelos pensamentos (uma teorização sem intuitos científicos, que se experimenta e valida em obras) que neles se inscrevem. Falam para quem? – diálogo em espiral Fig. 7. “A importância d’ OS CADERNOS”. Fonte: Caderno 048, 2016. Porventura, tentar decifrar que mensagens veiculam estes cadernos, cristalizando as suas intenções primordiais, pode ser um erro com vários graus de equívocos. Logo a começar pelo facto de, como referido, as inscrições não se esgotarem no momento do primeiro registo, mas serem um objeto de transformação periódica. A 22 de julho de 2022, Edgar Pêra voltou a um caderno de 1991, anunciando-se com um dos bonecos Ego: “I’m back!”. Se há fator a sublinhar nesta torrente de pendor diarístico é a sua natureza dialógica, sendo este o argumento mais consistente na defesa de que qualquer tentativa de fixação poderá ser enganosa ou, quando muito, restritiva. O diálogo é estabelecido, em primeiro lugar, entre o realizador e si próprio ou as Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 64 Lima Cadernos diários de Edgar Pêra múltiplas personas por ele criadas. No volume Fotos Cadernos Ego, na p. 53, surgem vários bonecos e a frase: “Tenho de dar nomes aos meus bonecos”. Figuram neste desfile Cyaneto (alter-ego musical de Edgar Pêra, referido na fig. 4), Eduardo (há um entrevistador fictício de Edgar Pêra nomeado Eduardo Ego) e Duas Tolas, um boneco bicéfalo. Também há espaço (muito espaço mesmo) para diferentes figurações de Fernando Pessoa (ver Fig. 8). Um dos elementos mais persistentes dos cadernos Não Sou Nada são os diálogos de dois ou mais Egos à esquina (ver Figs. 9 e 17), trocando ideias sobre o filme. Também pode acontecer serem dois monólogos disfarçados de conversa, com um deles a falar de Pessoa e outro a responder com uma banalidade do quotidiano ou um outro projeto em curso, sem relação aparente com o mote instigador da conversa. Fig. 8. “He that loves must not love truth also, for truth kills love”. Figurações pessoanas. Fonte: Caderno 081, 2021. A partir de dado momento (pelo menos, desde 2015, altura em que aparecem registos que aludem diretamente aos cadernos), Edgar Pêra começou a elaborar um meta-discurso sobre os mesmos, refletindo (como se de fora) acerca desta produção, o que confere um segundo nível dialógico. A 6 de junho de 2015, o autor compara estes registos a livros de receitas, “diários de ideias que excluem o eu”. A anotação foi realizada 23 anos depois, já que o caderno é datado de 1992. Já em 2016, os cadernos são associados a “trampolins de ideias” (ver Fig. 7), coincidindo com o ano em que os cadernos de Edgar Pêra saíram do anonimato, numa retrospetiva sobre o realizador, na Fundação de Serralves1, que incluía uma exposição documental. Há uma ligação óbvia entre este fator e a crescente autorreflexão que se lhe seguiu. Apenas podemos especular sobre o que terá mudado na produção diarística. Embora seja seguro afirmar que a maior consciência sobre esta prática foi incorporada por Edgar Pêra nos seus próprios registos, numa estratégia auto-devoradora que caracteriza, de resto, a praxis artística. 1 Ver: https://www.serralves.pt/arquivo-evento/edgar-pera-uma-retrospetiva/ Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 65 Lima Cadernos diários de Edgar Pêra Fig. 9. “Escrevendo assim… | Desta forma fragmentada | (mas) quase lapidar | Faz-me pensar de outra maneira | Nem distingo bem entre as palavras | E as imagens…”. Meta-discurso. Fonte: Caderno 046, outubro de 2016. Fig. 10. “Serão | poemas ilustrados | ou BDs poéticas? | Ou…”. Meta-discurso. Fonte: Caderno 046, outubro de 2016. Fig. 11. Caderno da pandemia. Fonte: Caderno 078, 2020. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 66 Lima Cadernos diários de Edgar Pêra No caderno 053, datado de dezembro de 2016, o autor escreve: “Até há pouco escrevia de forma a ocultar os meus pensamentos, hoje escrevo e desenho nestes cadernos a pensar num outro a quem decifro esses mesmos pensamentos”. Antes disso, em outubro de 2016 (caderno 046), reflete: “Começo a escrever sobre a minha vida e páro. Olho para trás e está alguém no meu ombro. Invisível, mas sei que lá está”. E continua: “Essa consciência altera profundamente a natureza destes cadernos? Acho que não”. É inevitável concluir, portanto, que a disseminação deste material não só é suscetível de criar novos sentidos mediante a interpretação de quem a eles acede (introduzindo outro nível dialógico), como suscita uma reação do produtor, que se descobre acompanhado na até então solitária tarefa de verter pensamentos para páginas em branco. Fig. 12. ”Koka-drink ou Koka-Tola ou Coca-Tola?”. Monólogo de um Ego. Fonte: 078, 2020. Por fim, dizia que fixar uma única linha interpretativa para os cadernos nos pode induzir a um caminho erróneo, o que se explica nos inúmeros diálogos que neles pululam. Falta acrescentar (e este é um argumento com um peso considerável) que os caminhos interpretativos deste material são tantos (como, aliás, o prova o corpus em análise) que dificilmente conseguiremos atingir, pela limitação de um sentido original, uma linha coerente, nem talvez seja desejável que assim aconteça. Uma leitura transversal de toda a produção diarística, independentemente das oscilações temáticas ou de conteúdo, permite aferir os cadernos como externalizações do vozerio interior. Como se tanta coisa não coubesse dentro de um armário, que é urgente esvaziar e organizar. Essa (de)organização em forma de livros de notas adquire uma feição quase exclusivamente visual, mesmo na sua escrita. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 67 Lima Cadernos diários de Edgar Pêra Oráculos visuais É por demais notório que a primeira década e meia de registos se aproxima do monólogo e do tipo diário íntimo, o que coincide com os anos prévios à atividade artística. Desde os primeiros projetos (crónicas semanais que o realizador escreveu no jornal semanário O Independente, entre 1989-1994, com interregnos esporádicos entre 1992 e 1993), que o fluxo registador começou a aumentar, sempre com a função de servir a organização das ideias, criando um rascunho do projetado, quando todas as possibilidades estão em cima da mesa. Nesta fase, as anotações escritas eram predominantes, ainda que pontuadas por grafismos (setas, por exemplo) ou esquemas concetuais, como aconteceu com o “mapa” (ver fig. 15) do filme Zombietown 23 (PÊRA, 1998). Nestes exemplos, o dialogismo está implícito na própria rotina de escrita, que é, maioritariamente, como refere Ana Maria da Costa MACEDO, “afirmação de uma individualidade que se assume como autoexame permanente” (2014: 51). À medida que as formas visuais foram ganhando espaço, o diálogo (que continua, na prática, a ser interior) projeta-se desta forma gráfica, personificando-se nos Egos, que como que incorporam os pensamentos. É curioso estabelecer aqui um paralelismo entre estes desenhos (que falam com balões que saem da boca ou com balões que podem ser toda a cabeça ou o seu corpo todo) e a Banda Desenhada, uma forma de arte a que Edgar Pêra se dedicou desde os primeiros anos de vida, enquanto leitor, e que tem levado para o cinema, como o prova o exemplo expressivo do projeto CINEKOMIX!!!, uma série de 13 episódios, a autores de Banda Desenhada. De resto, REIS (2021) alude justamente à relação entre a BD e os livros de artista, salientando os espaços vazios entre imagens ou textos como um elemento comum, expressivo da componente fragmentária de ambos. Fig. 13. “A vida é devorar”. Egos e Homens-Kâmara. Fonte: Caderno 090, 2020. Podemos identificar dois tipos de bonecos: os Egos e os Homens-Kâmara. Os bonecos Ego, que transitaram para a pintura e que fazem parte dos cadernos de Edgar Pêra, surgem como mestres-sala do processo criativo do Não Sou Nada, já que Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 68 Lima Cadernos diários de Edgar Pêra são eles que verbalizam grande parte dos pensamentos, ideias, hesitações e exploração de caminhos do realizador. Posicionando-se frente a frente, num diálogo à esquina, com frases encaixadas em balões, estas figuras de perfil são Pessoa (em versão vermelho ou azul ou preto ou laranja), Álvaro de Campos, Ego (vulgo Edgar Pêra), personagens anónimas, com formato tosco e inconfundível. Quando não estão à esquina, podem apresentar-se alinhadas em fila ou como que caminhando, cada uma para seu lado. Parecem sempre inquietas, assomadas pelos milhares de projetos que por elas transitam. São o canal de comunicação. Quase sempre com uma cabeça oval, duas pernas e dois braços, os bonecos Ego são, na verdade e em rigor, multiformes. Acontece serem só uma boca ou uma cabeça cheia de frases, há imagens de Egos com a cabeça afunilada ou muitas cabeças e bocas malformadas vociferando. Também aqui, Edgar Pêra usa o material para vazar um discurso autorreflexivo. Vejamos os Homens-Kâmara (ver Fig. 19). Há desenhos que expressam a tirania do H-K (“Marxe!”), ou o sorvedouro visual que ele representa “Don’t shoot me!”. Como não poderia deixar de ser, há momentos em que Egos e Homens-Kâmara se cruzam nas esquinas e o resultado pode resultar puramente visual (mesmo se indiciando um referente literário), como quando trocam apenas “!!” e “??”. Os registos veiculados pelos Egos podem ir do mais genérico ao mais pormenorizado. A reescrita do guião do Não Sou Nada com os seus imensos caminhos narrativos, passa pela voz da bonecada, que não se cansa de enumerar diversas hipóteses. Fig. 14. “Esquecer o guião. Concentrar nos pormenores que desejo desenvolver”. Cine-receita, notas para um projeto inacabado. Março de 2008. Pelos bonecos também transitam os perfis dos distintos personagens, anotações de pormenores a aperfeiçoar ou múltiplas intenções, algumas das quais abandonadas na concretização do projeto. Os Egos estão sempre ao serviço do Sr. Ego, sendo escassas as páginas deste período de concetualização e realização do Não Sou Nada, em que eles não se apresentem para regurgitar uma ideia. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 69 Lima Cadernos diários de Edgar Pêra Antes de Pessoa: Pessoa, claro está! Descobrir o universo de Fernando Pessoa nos cadernos de Edgar Pêra durante os anos do Não Sou Nada (cujo projeto foi apresentado formalmente a concurso em 2014) é fascinante, mas não surpreendente. Buscar, nos cadernos, as influências de Fernando Pessoa ao longo dos anos e antes de Não Sou Nada, é revelador. As primeiras referências encontradas ocorrem no início dos anos 90, mas é possível que outras venham a ser descobertas, num levantamento mais apurado dos cadernos produzidos. Nestes primeiros apontamentos, Fernando Pessoa surge misturado com projetos em curso ou em idealização, nem sempre sendo coerente a relação (se é que existe) entre estas notas do quotidiano e as invocações de Pessoa. Certo é que o poeta se torna omnipresente, ao ponto de não ser necessário explicar porque é que aparece. Ele está lá. No início dos anos 90, Edgar Pêra dedicou-se a transcrever pedaços de textos de Pessoa sobre Portugal. Estas citações juntam-se, nos cadernos da época, aos projetos em que se desdobrava: festival de cinema Fantasporto, documentário sobre o Rock, a rubrica Ficção & Realidade para o semanário O Independente. Nas notas deste período, também aparece o Português Sohniko, um sistema linguístico inventado por Pêra e que o leva, ainda hoje, a escrever peculiarmente com k, y ou grafismos sonoros como o ph em vez do f ou o x em vez do ch. Podemos identificar em Pêra a influência das vanguardas russas do início do século XX (CARLOS, 1998) que é presumida no caso do Português Sohniko – uma ortografia sonora e sinestésica nascida da intuição cujo referente é muito semelhante aos poemas sonoros russos – e absolutamente evidente no Homem-Kâmara, primeiro dos alter egos de Edgar Pêra (em meados da década de 80 do século XX), que assim mimetizava o Homem da Câmara de Filmar, de Vertov. De resto, observamos esta mesma atração pela fixação de sons ou de ideias através da corrupção dos seus grafismos, no também realizador Glauber Rocha (JUNIOR, 2011). Mas, o que é que o Português Sohniko tem a ver com Fernando Pessoa? Nada, supostamente. O facto é que as anotações sobre Portugal e “O Pessoalismo” andam a par das reflexões sobre o sónico. A ortografia sónica é descrita como “paganismo superior; politeísmo supremo; Invisionahvel”. Algumas páginas à frente, no mesmo caderno, a “Ortugrafia sohnika” conjuga-se como uma variação do português (“Latim + Árabe), confirmando-se como um “Imperialismo de Puetas”. Mais recentemente, Pêra recuperou (comparando com o seu sónico) palavras de Soares/Pessoa, com k e y, como “Kaleidoscópio” e “apocalyptico” (janeiro 2020). E não será demais anotar que Fernando Pessoa não embarcou nas alterações ao acordo ortográfico de 1911 e que é sua a grafia de “desassocego” que aparece no genérico de Não Sou Nada. Quanto a Edgar Pêra, mantém-se fiel à sua idiossincrasia ortográfica, deixando-se influenciar por Pessoa, mas gerando os seus próprios símbolos, já que desassossego surge, por vezes, grafada como “dezassossego” (ver Fig. 15). Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 70 Lima Cadernos diários de Edgar Pêra Fig. 15. Esquema Zombie Town 23 (1998?). As leituras dos cadernos encaminham-nos, igualmente, na convicção de que Não Sou Nada é uma passagem concentrada de um estudo obsessivo e aprofundado da obra pessoana com reverberações temporais justapostas, que desaguam de forma ora direta ora subliminar num filme. O realizador estabelece teias onde poucos veriam ligações lógicas, unindo um poeta do modernismo com um xamã de fim de século XX. Em janeiro de 2000 (caderno 019), anota: “Fernando Pessoa enkontra Aleister Crowley Terence McKenna encontra Bernando Soares”. Pêra junta-os em Zombietown 23, explorando as temáticas da realidade sensorial, da perceção e dos mundos paralelos e do tempo tão presentes no seu cinema, antes e depois de Zombietown 23. Outros fragmentos são estonteantemente premonitórios. Como a personagem Beth (figura de um projeto nunca concretizado, de 2007, intitulado Peregrino, que associa Pessoa a Bosch), que é descrita por Edgar Pêra como “o feminino em Pessoa”, uma mulher com instintos assassinos, pairando num projeto de filme em que também entra Quaresma e no qual Pessoa é padre. Pondo de parte a faceta homicida da personagem feminina (que, no Não Sou Nada, é direcionada para Álvaro de Campos, embora também possa existir, num sentido metafórico, em Ofélia), vemos que a indefinição sexual de Pessoa foi pensada em 2007 e concretizada quase década e meia depois. Em 2016, já com a cabeça no Não Sou Nada, Edgar Pêra anota: “Mas o co-protagonista também poderia ser uma mulher vestida de homem. Pessoa invertido. O negativo de Pessoa”. As anotações de projetos inacabados dir-se-iam ensaios abandonados e esquecidos, cujas raízes se ramificam cronologicamente. Sem falar nos projetos realizados – Lisbon Revisited (2014), o já nomeado Zombietown 23, Caminhos Magnétykos (2018) – por onde Pessoa se passeia. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 71 Lima Cadernos diários de Edgar Pêra Fig. 16. The angry director (1991-1993). Em 2007, Edgar Pêra dedicou-se a fazer uma lista de influências literárias por décadas. Os primeiros anos (década de 60) foram marcados pela BD (Stan Lee, a quem Pêra foi buscar a ideia de um escritor que recorre a um exército de criativos a trabalhar anonimamente). Nos anos 70, Álvaro de Campos surge em lugar cimeiro, junto com Mário de Sá-Carneiro. Na década seguinte, era publicado, pela primeira vez, o Livro do Desassossego e Bernardo Soares encabeça a lista, que fecha com outra grande influência em Edgar Pêra: Howard Phillips Lovecraft. Soares transita para os anos 90 e 2000, juntamente com Agostinho da Silva, Branquinho da Fonseca e Alberto Pimenta. Todos eles estimularam um ou mais filmes de Edgar Pêra. Pré-conclusão – busca da identidade Fig. 17. Egos. Fonte: Caderno 046. Outubro de 2016. A manipulação tátil dos cadernos, assim como a sua leitura repetida, confirma o seu produtor como um artista e estes livros como objetos estéticos. A constatação não é tão simplista como se possa pensar à partida. Com isto, queremos significar que Pêra não se limitou a investir com intuitos académicos ou didáticos na leitura sistemática de Fernando Pessoa, durante quase meio século, que é a maioria substancial da sua vida, até ao momento. O autor incorporou Fernando Pessoa no seu sistema de sonhos, Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 72 Lima Cadernos diários de Edgar Pêra desenhando imaginários, pela arte. O resultado é transformador ao ponto de Pêra se sobrepor a Pessoa ou de Pessoa se apoderar postumamente de Pêra, numa infusão onde já pouco importa o que é de quem ou mesmo quem é quem. Uma vez que os cadernos são, como os filmes, materializações visuais e poéticas dessa relação artística, defendemo-los como declarações estéticas autónomas e também como fabricações identitárias. Com ou sem Pessoa por perto (isto é, sabemos que paira, mas por vezes apenas se adivinha a sua presença), Edgar Pêra ressoa-o, espelhando-se. Assomamos a interpretação destes cadernos, orientados pelas sensações estéticas que eles nos convocam. Não procuramos explicar, nem compreender na totalidade, até porque não são unos. Como acontece com a fruição de qualquer objeto estético, aceitamos as distintas camadas temporais que os revestem, enquanto acrescentamos significados a cada leitura e em sucessivas contextualizações, por vezes desfasadas nas suas intenções. Comecemos por traçar o fio destas linhas identitárias, com os primeiros anos de registos. A 6 de janeiro de 1978, Edgar Pêra questiona-se: “Será possível viver noutra realidade que não esta?” Os universos paralelos e o tempo são tópicos que passaram a ocupar muitos dos filmes do realizador (exemplo: Manual de Evasão Lx 94), que em 1978 ainda não realizava filmes, mas já se apresentava dúvidas que explorou ciclicamente ao longo dos anos e em variados materiais. “Eu sou estas páginas ou cada página é um eu?”, pergunta-se a 7 de julho de 1978, abeirando-se do conceito de fragmentação do eu, que pontua inúmeras anotações dos cadernos além de tomar por completo conta de filmes, como acontece com A Janela (Maryalva Mix) (PÊRA, 2001) e Não Sou Nada. É nos anos de A Janela (Maryalva Mix), no caderno 019, datado de janeiro de 2000, que regista “um espelho que tomba” e “um espelho estilhaçado”, antecipando um objeto simbólico do Não Sou Nada. Fig. 18. Ego: “As vozes ensurdecyam os seus pensamentos”. Fonte: Caderno 015 (1999, colorido em 2015) Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 73 Lima Cadernos diários de Edgar Pêra A inquietação é permanente, produzindo resultados que têm tanto de centrífugo (disparando para vários sentidos, na tentativa de abarcar o todo ou as imensas hipóteses nele contidas), como de concentrado e imutável, pela repetição obstinada de ideias. Afinal, “a vida é devorar” (28-1-2020), é necessário extravasar as limitações físicas do corpo, do espaço e do tempo. A voragem é tão avassaladora que, às tantas, se desemboca no precipício. A 19 de março de 2019, desenha várias sequências com a palavra “abysmo”. Quer nos cadernos, quer nas pinturas, surgem espirais, que tanto parecem atrair, como repelir. “O que procuro é invisível e está em todo o lado” (25 de fevereiro de 2021). Mas é preciso “sonhar com os olhos abertos, lúcido, fascinado” (25 de fevereiro de 2021). Abrir os olhos para o incomunicável, ver o que outros ignoram, insistir num sistema onírico (transracional?) ou simplesmente inverter a ordem das variáveis, por puro tédio da arrumação pré-existente. “Apaziguar os deuses da insatisfação” (29-1-2020) e voltar repetidamente ao início, uma vez que as respostas nunca são dadas todas de uma vez e, ao acabar, descobre-se que esse é um novo ponto de partida. Até porque parte deste método implica o teste a cada uma das revelações do caminho. No caderno de outubro de 2019, registou um trecho do Livro do Desassossego: “Tenho sido sempre um sonhador yróniko ynfiel às promessas interiores”. Da filmografia de Edgar Pêra constam adaptações literárias, totais ou parciais, algumas delas de pendor biográfico, sempre de fronteira entre o real e o ficcionado. Assim aconteceu com Amadeo de Souza Cardoso (Crime Abismo Azul Remorso Físico, 2007), Almada Negreiros (SWK4, 1993), António Pedro (O Homem-Teatro, 2001), H. P. Lovecraft (Kinorama, 2019), Branquinho da Fonseca, como Rio Turvo (2007), O Barão (2011), Caminhos Magnétykos (2018). Em todos os projetos, o autor aborda a obra de outros evitando a reprodução mimética, procurando mergulhar nas peças literárias com um olhar que tem tanto de questionador e aberto à diferença, como de antropofágico, já que produz, invariavelmente, visões que ampliam as suas próprias reflexões. Fernando Pessoa é, sem dúvida, o autor que mais estruturalmente influenciou Edgar Pêra. A identificação é profunda e estende-se a gradações que aglutinam o estético, o artístico e o pessoal. Se é que é possível distinguir os diferentes campos. Em Fernando Pessoa, como em Edgar Pêra, a fusão é de tal ordem, que a arte se confunde com a vida, suplantando-a quando esta não devolve as respostas necessárias. Assim se explica a obediência a mestres? Evitemos os psicologismos, contornando-os, para tropeçar noutra temática que atravessa estes cadernos: a loucura. Trata-se de um conceito que povoa os registos de Edgar Pêra desde as primeiras anotações e, não surpreendentemente, muitas das anotações do Não Sou Nada. Em dezembro de 2019, regista: “Apenas sigo a sua loucura e os seus sonhos”. A 20 de janeiro de 2020, continua neste universo: “Ao ler Pessoa escrever sobre a sua loukura, o seu medo da loukura, a sua definição da sua própria loukura, komeço também a tentar entender melhor a minha loukura. Procurar uma typologia”. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 74 Lima Cadernos diários de Edgar Pêra Nesta tentativa de interpretação dos cadernos de Edgar Pêra como manifestações artísticas e identitárias, arriscamos a defini-los como passos de um caminho cujo rasto se descobre percorrendo-o. Pegadas que criam uma linha, ténue, a princípio, e sucessivamente definida pelo calcorrear original e alheio. Fig. 19. Homens-Kâmara. Fonte: Caderno 065. Janeiro de 2017. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 75 Lima Cadernos diários de Edgar Pêra Bibliografia BAKHTIN, Mikhail Mikhailovich (1986). Speech Genres and Other Late Essays. Translated by Verne W. McGee. Austin: University of Texas Press. CARLOS, Luís Adriano (1998). “Poesia moderna e dissolução”. Revista da Faculdade de Letras-Línguas e Literaturas, n.º 6, Porto pp. 249-261. hlps://ojs.letras.up.pt/index.php/rll/issue/view/576 HEINICH, Nathalie (1998). Ce que l'art fait à la sociologie. Paris: Les Éditions Minuit. JUNIOR, Arlindo Rebechi (2011). “Glauber Rocha ensaísta”. Remate de Males, vol. 31, n.º 1-2, Campinas, pp. 321-340. https://doi.org/10.20396/remate.v31i1-2.8636236 KIFFER, Ana (2018). “O rascunho é a obra: o caso dos cadernos”. Estudos de literatura brasileira contemporânea, n.º 55, Brasília, pp. 95-118. http://dx.doi.org/10.1590/10.1590/2316-4018556 MACEDO, Ana Maria da Costa (2014). “Dos diários privados aos blogues: uma expressão”. Tempos Sociais e o Mundo Contemporâneo – As crises, As Fases e as Ruturas, editado por Emília Araújo, Eduardo Duque, Mónica Franch e José Durán. Braga: Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade / Universidade do Minho. hlps://hdl.handle.net/1822/45829 REIS, Lucas Muniz (2021). Fronteiras entre histórias em quadrinhos e livros de artista: experimentações nos campos da arte e do design. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Comunicação Visual-Design). Rio de Janeiro: UFRJ. hlps://pantheon.ufrj.br/handle/11422/16958 ROMANA, Ana João (2017a). Estórias do Livro de Artista. S.l. [edição de autor.] _____ (2017b). Publicar a Estória / História do Livro de Artista em Portugal. Tese de Doutoramento. S.l.: FCHS da Universidade do Algarve. hlp://hdl.handle.net/10400.1/10827 SHUSTERMAN, R. (2012). Thinking Through the Body: Essays in Somaesthetics. New York: Cambridge University Press. _____ (2000). Pragmatist Aesthetics: Living Beauty, Rethinking Art. 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SWK4. Companhia dos Filmes do Príncipe Real. https://www.youtube.com/watch?v=1JH1BFVHOu8 Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 76 Lima Cadernos diários de Edgar Pêra TERESA LIMA integra o grupo de investigadores doutorandos do CECS/UMinho, estando a realizar o Doutoramento em Ciências da Comunicação. Com uma Licenciatura em Comunicação Social pela Universidade do Minho, fez uma incursão pelo jornalismo (Público) e obteve o Diploma em Estudos Avançados em História Contemporânea, na Universidade de Santiago de Compostela. Profissionalmente, tem exercido atividade nas Ciências da Informação. Atualmente, estuda a relação entre biografia, discurso e comunicação, partindo da história de vida do realizador Edgar Pêra. Integra, igualmente, o grupo de investigadores da Passeio – Plataforma de Arte e Cultura Urbana (www.passeio.pt), do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade (CECS), da UMinho. TERESA LIMA is a member of the group of doctoral researchers at CECS/UMinho, currently studying for her PhD in Communication Sciences. She has a degree in Social Communication from the University of Minho, a career in journalism (Público) and a Diploma in Advanced Studies in Contemporary History from the University of Santiago de Compostela. Professionally, she has worked in the Information Sciences. She is currently studying the relationship between biography, discourse, and communication, based on the life story of film director Edgar Pêra. She is also a member of the Passeio – Plataforma de Arte e Cultura Urbana (www.passeio.pt) group of researchers at UMinho’s Centre for Communication and Society Studies (CECS). Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 77 !"#$%#&$!'('!"#$#%&'! !"#$#%&'()*$+#)$,*-,*)*%.#/0*)$"*+(&.(1#)$ !!"#$%#&$!'(' #$%$&'(" !"#$"$%&'('#)*#+,-($#.,/.,',"0$0()"')" !"#"$%&'()%*& !"#"$%"&'()"$* "#$%&!'(&%)!!"#$%#&$!'('$)$*+,$!#-+./0/,11$23&4)!*+#,%)!-,./0%)!-&12,3%!#/!450/67 +*&,-. 8! %29%5! :/6;9,6%! 3/.2&<9=6/! .%! &/3<5>%! #/! .<213,%6! .%3,<.%,6! /! ,.2/&.%3,<.%,6! &/5%3,<.%#%6! 3<0!<!450/!!"#$%#&$!'('$)$*+,$!#-+./0/,11$23&4) #<!&/%5,?%#<&!:<&29$9(6!"#$%&!'(&%)!2/.#<! 3<0<! 5,0,2/! 2/0:<&%5! @95><! #/! ABAB! /! %C&,5 #/! ABAD7! E/! %3<&#<! 3<0! %! 0<2,F%GH<! ,.,3,%5)! :&<39&I0<6! :/&3/C/&)! %2&%F+6! #<! 450/)! ;9/! 2,:<! #/! &/:&/6/.2%GJ/6! <6! 0+#,%! #/#,3%F%0! %! 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O artigo surge da intenção de identificar que tipo de entidades (órgãos de comunicação social, instituições, blogues ou sites culturais) deram cobertura ao filme e a que fontes de informação recorreram para o fazer. Procurámos, em simultâneo, indagar qual o pretexto para a divulgação e a abordagem seguida na mesma. Adicionalmente, o presente artigo tem, ainda, os seguintes objetivos: identificar os principais temas enunciados a propósito de Não Sou Nada; apurar se são focadas questões identitárias e quais na crítica ao filme; avaliar como é representado Fernando Pessoa a partir de Não Sou Nada; aferir se há comparações entre The Nothingness Club e outros filmes do realizador; perceber se as críticas incidem mais nos comentários sobre a técnica cinematográfica ou na estrutura narrativa do filme. Além destes objetivos, também queremos questionar a relação entre a obra de arte e o significado da sua receção junto da esfera pública, tendo como mediação os órgãos de comunicação social. Comecemos por identificar os critérios de recolha. A seleção dos dados partiu de uma pesquisa realizada no Google, entre 2 de novembro e 22 de dezembro de 2023, com as seguintes palavras-chave: Não Sou Nada filme; Não Sou Nada estreia; The Nothingness Club; Não Sou Nada Edgar Pêra. Para o efeito desta recensão, foram selecionadas todas as publicações referentes ao filme, provenientes das seguintes fontes: sites culturais, plataformas especializadas em cinema, sites de festivais de cinema, agendas culturais, notícias de rádio, TV, programas de entretenimento, jornais e revistas generalistas, jornais ou outros órgãos locais, blogues. De forma simultânea, foram solicitados ao realizador (assistentes e equipa de produção) os seguintes elementos: dossier de imprensa distribuído aos média ou nos festivais de cinema, dossiers de imprensa dos festivais de cinema ou outros clippings, a existir. Para além do limite temporal identificado, foram sendo colhidas, de uma forma avulsa, notícias sobre o filme, tendo a recolha sido concluída em janeiro de 2024. No final, foram registadas 112 entradas, entre 27 de julho de 2020 e 15 de abril de 2024. Com esta delimitação temporal, pretendemos abarcar o primeiro momento em que o filme foi referido nos média (ainda numa fase de pré-rodagem), passando pelo impacto da estreia, o circuito dos festivais de cinema e, por fim, as sessões especiais realizadas um pouco por todo o país. É importante referir que foram excluídos desta amostra os registos que se referiam apenas a uma informação de agenda (cartaz de cinema ou agenda cultural cumprindo somente essa mesma função, por exemplo). De acordo com os objetivos enunciados anteriormente, procurámos perceber que tipo de fontes noticiavam Não Sou Nada, tendo concluído que 40 registos dizem respeito a órgãos de informação no sentido mais tradicional do termo, como jornais (Público, Expresso, Observador), rádios (Rádio Vizela, Antena 3), televisões (RTP, SIC, Santo Tirso TV). Outros (dez registos), referem-se a publicações especializadas, como a Sight & Sound, Cineuropa, C7nema. Há, paralelamente, menções ao filme em sites Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 79 Lima Não Sou Nada (2023) institucionais (Município de Santo Tirso) e até mesmo em contexto de divulgação literária, como a página da internet da Bertrand. Quatro publicações destacam o momento preparatório da rodagem do filme. Entre estas, duas referem-se a notícias de origem local (site Free Pass [1] e o jornal Vila Nova [2]) e outras duas da imprensa especializada (Cinema7arte [3] e Portal Cinema [4]), com os dois primeiros casos a darem relevância à questão geográfica (um filme sobre Fernando Pessoa rodado em Santo Tirso) e os seguintes enfatizando a adaptação da obra pessoana. O tipo de divulgação selecionada divide-se entre a informação telegráfica (nome do filme, sinopse, realizador, produtor), a notícia, entrevista e a crítica. Do todo recolhido, 13 publicações têm como pretexto o Festival Internacional de Cinema de Roterdão, na Holanda, onde o filme estreou em janeiro de 2023. Foram, ainda, identificados mais 12 registos relacionados com festivais de cinema, entre os quais, Caminhos do Cinema Português, DocLisboa, Cork Film Fest, Festival de Cinema de Valência, de Moscovo, Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e Festival Internacional de Cinema de Oldemburgo. Há, também, a assinalar 10 entrevistas, a que se juntam 18 críticas e quatro notícias referentes a sessões com o realizador. O momento da estreia condensou o maior volume de notícias, com 22 publicações. Um olhar transversal a todos os registos selecionados permite traçar os fluxos informativos que rodearam o filme, no corte temporal definido. Há uma primeira fase, relativa à pré-rodagem e rodagem, a que se segue a presença nos Países Baixos, para logo depois quase toda a atividade noticiosa se concentrar na estreia. O principal dado a reter destes movimentos relaciona-se com a origem das notícias. Ou seja, claramente, as oscilações na cobertura mediática refletem estratégias de divulgação, quer da produtora, quer da distribuidora, anunciando o lançamento de um novo filme em preparação, fazendo publicidade da presença em Roterdão ou criando um acontecimento mediático com a estreia. A estreia – imprensa local e nacional As notícias relativas à estreia do filme (que foi apresentado a 25 de outubro no DocLisboa e estreou comercialmente a 26 de outubro), estendem-se aos jornais nacionais generalistas (Jornal de Notícias, Diário de Notícias, Observador, Público), aos jornais locais (situados em Santo Tirso, Leiria, Caldas da Rainha, Faro, Funchal), passando pelas rádios (Antena 3, enquanto rádio promotora do filme), pela televisão (SIC, RTP) e por sites direcionados para informações de agenda, como itmustbegood, Time Out ou Unimado. Nestas publicações, são facilmente identificados dois textostipo: um referindo a estreia do filme nas salas de cinema e outro abarcando os eventos promocionais do mesmo, nomeadamente as sessões com o realizador e o evento que consistiu na circulação de atores representando múltiplos Fernandos Pessoa no Chiado (Figs. 1 e 2). A maioria das notícias consiste numa replicação da Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 80 Lima Não Sou Nada (2023) sinopse e press release divulgados, pelo que são comuns a quase todos os textos palavras ou frases como “thriller”, “cinenigma”, “cabeça de Pessoa”, “manancial cinematográfico” para descrever o filme. Também surge, com frequência, uma citação de Edgar Pêra (em declarações à Agência Lusa), referindo tratar-se do filme em que mais se projetou, assim como a chamada de atenção para o elenco “de luxo”. Os títulos destacam a figura de Fernando Pessoa (o facto de haver um novo filme sobre o escritor), sendo que, assiduamente, Pessoa e Edgar Pêra surgem combinados, chamando-se para o título a autoria do filme, assim como a sua denominação. Em sequência, surgem formulações tais como “Cinema sobre Fernando Pessoa” (Jornal das Caldas [5]), “Não Sou Nada: já estreou o filme português sobre Fernando Pessoa e os seus heterónimos” (NIT [6]), “Edgar Pêra leva-nos a uma visita guiada ao interior da mente de Fernando Pessoa” (JN [7]). Também a circulação de inúmeros falsos Fernandos Pessoa pela Baixa (Figs. 3 e 4) induzindo a ideia de heteronímia ou heteronimismo, pareceu cativar os média, que assinalam “Fernando Pessoa passeia pela Baixa de Lisboa no dia de estreia de Não Sou Nada” (Sapo [8]), sendo a mesma ideia (com o mesmo tipo de alocuções), constante da rubrica cultural Domínio Público [9], na Antena 3. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 81 Lima Não Sou Nada (2023) Figs. 1-4. Múltiplos Fernandos Pessoa na Baixa de Lisboa, out., 2023. Créditos: Ana Soares. Surgem, igualmente, referências (se bem que menos consistentes e quase nunca na abertura dos textos noticiosos) ao facto da maioria dos diálogos se apoiar em textos do próprio Fernando Pessoa. Excecionalmente, a SIC Notícias publicou, a 13 de junho de 2023, uma notícia, onde essa anotação é destacada logo a abrir o texto [10]. É interessante, além do mais, registar a dimensão local do projeto que, tendo sido filmado numa antiga fábrica em Vila das Aves (Santo Tirso) chegou a suscitar a curiosidade da imprensa e levou a uma maior cobertura, não só em termos de número de notícias, como também na proliferação do tipo de média. Repare-se que a exibição de Não Sou Nada no Centro Cultural Municipal de Vila das Aves saiu (com textos muito semelhantes) no jornal Entre Margens [11], no site oficial da Câmara de Santo Tirso [12] e na Santo Tirso TV [13]. Ressalta, desde logo, um tom monocórdico e repetitivo na maioria das publicações, resultado de uma reprodução acrítica de comunicados de agências noticiosas (como a Lusa) ou de uma cópia dos comunicados distribuídos. Contudo, as principais ideias subjacentes à promoção de Não Sou Nada são, efetivamente, veiculadas, incluindo os conceitos de thriller, cinenigma, mente de Pessoa e ainda heteronimismo. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 82 Lima Não Sou Nada (2023) Festivais de cinema Outro subtipo de cobertura que é incontornável destacar no domínio dos média é o dos festivais de cinema. Neste ponto, há distintos níveis de análise. Um deles advém da própria divulgação que os festivais realizam dos seus eventos e outro da disseminação destas notas na imprensa generalista ou especializada. Alguns meses antes da estreia nas salas comerciais, The Nothingness Club apresentou-se no Festival Internacional de Cinema de Roterdão, que decorreu entre 25 de janeiro e 4 de fevereiro de 2023. A presença na mostra (onde o filme integrou a Big Screen Competion) foi veiculada no Observador [14], no Público [15], Bom Dia Europa [16], Rádio Vizela [17] e RTP [18], a partir de uma nota da Agência Lusa. O conteúdo das notícias enfatiza a presença em Roterdão, focando a heteronímia expressa “nos múltiplos universos de Fernando Pessoa”. Para lá destas notícias, de caráter puramente informativo (à semelhança do já ocorrido com notas da estreia), destacamos a reportagem/crítica do Público, intitulada “Fernando Pessoa joga matraquilhos com os heterónimos” [14]. Roterdão, de resto, é um evento em relevo neste jornal que, em dezembro de 2022, antecipava a presença portuguesa na Holanda [19]. A 30 de janeiro de 2023, o Público (através do jornalista e crítico de cinema Jorge Mourinha) dá conta do filme néo noir, direcionando o olhar para a personagem de Ofélia, fornecendo detalhes sobre a narrativa do filme e construindo uma interpretação individual sobre o mesmo, ao estabelecer ilações entre o escritor Pessoa e o realizador: “E Pêra mergulha de tal modo a fundo na multiplicidade de Pessoa que o resultado faz jus à célebre frase ‘o poeta é um fingidor’ – e, no caso, o cineasta é um fingidor” [14]. O impacto da presença em Roterdão estendeu-se, adicionalmente, à televisão. A 8 de fevereiro de 2023, o realizador deu uma entrevista ao Jornal 2 [20], na qual apresentou o filme como uma viagem à mente de Fernando Pessoa. Tentemos, agora, avaliar de que forma Não Sou Nada foi tratado pela organização do festival e como esta abordagem se repercutiu na imprensa generalista ou especializada. Descrito, por Callum McLean, como um “um surreal thriller psicológico para nos perdermos” [21], o filme ecoou na Sight and Sound [22], Cineuropa [23], The Film Verdict [24] e Filmuforia [25]. O site Cineuropa, por exemplo, dedica uma entrevista [26] (em análise mais abaixo nesta recensão) e um artigo/crítica [27], que destaca os “paradoxos”, que impedem a “plenitude”. O jornal Svoboda [28] elege The Nothingness Club como um dos melhores de Roterdão, assinalando que “o grande escritor português Fernando Pessoa entra numa relação confusa com os seus heterónimos, figuras literárias imaginárias morrem tragicamente e uma máquina de escrever parte espetacularmente um espelho”. Os textos provenientes de um tipo de público / jornalista especializado (e, ainda para mais, supõe-se, com um maior grau de distanciamento em relação ao percurso do autor) resultam em interpretações mais ricas, como acontece com este artigo, que exprime curiosidade sobre as questões identitárias presentes em Não Sou Nada, bem como sobre a história do poeta Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 83 Lima Não Sou Nada (2023) português. Já na Sight and Sound [29], por exemplo, é dada relevância a Fernando Pessoa (apresentando o poeta como um gigante da literatura, com diversos heterónimos), enquanto sublinha a “adaptação noir luminosa” de Edgar Pêra. Estreado em Roterdão, Não Sou Nada passou, ainda, pelo Doc Lisboa e pelos Caminhos do Cinema Português, em Coimbra. No caso do Doc Lisboa, o realizador voltou a concorrer na secção Riscos, o mesmo tendo ocorrido em 2021, com Kinorama (2019). No site do evento, Não Sou Nada é apresentado reproduzindo ideias e frases da sinopse: “Um ‘cinenigma’ de Edgar Pêra, protagonizado pelo mais complexo ‘artista de palavras’ do seu tempo, Fernando Pessoa” [30]. A passagem pelo festival suscitou uma crítica do blogue de cinema Cineblog [31] (cujos comentários reproduzimos mais à frente neste artigo), um destaque na já referida rubrica cultural Domínio Público [9] e a presença do realizador (junto com a atriz Victória Guerra e o diretor do Doc Lisboa, Miguel Ribeiro) no programa de entretenimento Alô Portugal [32], da SIC. Também presente no festival Caminhos do Cinema Português, em Coimbra, Não Sou Nada teve dois momentos de divulgação, da parte da organização. Um primeiro, assinalando a apresentação do filme, com a presença do realizador [33]. Numa segunda vez, o festival anuncia (e os média acompanham a novidade) que o filme ganhou o Prémio do Público e de melhor direção artística, atribuída a Ricardo Preto. A notícia foi publicada pelo jornal Notícias de Coimbra [34], pelo Observador [35], Filmspot [36] e Público/Lusa [37]. Entrevistas Tendo-se desdobrado em declarações e sessões de apresentação cujos conteúdos foram parcialmente integrados nas notícias dos jornais, Edgar Pêra também realizou, durante este período, diversas entrevistas. Ao contrário da informação noticiosa pura e dura, verifica-se que a entrevista acabou por funcionar como um espaço de contextualização não só do filme (as suas intenções e processo de produção), como também da obra do realizador. É o que acontece, por exemplo, com a entrevista ao site Cineuropa [25], na qual Edgar Pêra tem terreno para falar sobre o processo criativo do Não Sou Nada, alargando-se a conversa à experiência fílmica antecedente, nomeadamente, com o 3D. As entrevistas permitem, além disso, ir de encontro ao potencial público leitor, convergindo nos seus interesses e necessidades informacionais. Veja-se que, se no Cineuropa o enfoque está no meio cinema, já no Jornal das Letras [38], que publicou uma entrevista na edição de 18 a 31 de outubro de 2023, Pessoa (a sua dimensão literária) está no centro da entrevista. Tanto numa publicação como noutra, as entrevistas beneficiam do facto de serem realizadas por jornalistas que demonstram conhecer a obra de Edgar Pêra, conduzindo a conversa num sentido mais lato e de enquadramento da informação produzida. É o que sucede com a nomeação do filme A Janela (Maryalva Mix) (2001), que é introduzido por Edgar Pêra nas entrevistas do JL, do blogue Esquerda.net [39], do Jornal de Notícias [40], nalgumas Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 84 Lima Não Sou Nada (2023) notícias de jornais e ainda no podcast Os Cinéfilos que Ninguém Pediu [41]. Neste último em particular, que juntou a entrevista à crítica ao filme, o realizador teve oportunidade para falar sobre outros projetos em curso (como o filme Cartas Telepáticas), enquanto os entrevistadores (João Torgal e Daniel Mota), estabeleceram comentários comparativos com outros trabalhos de Edgar Pêra, nomeadamente o documentário biográfico Movimentos Perpétuos (2006), que consistiu num tributo a Carlos Paredes. Neste âmbito das entrevistas, talvez aquela em que Edgar Pêra teve mais margem para se desviar do habitual modelo de perguntas, foi a realizada ao Diário de Notícias [42], a propósito do Screenings Funchal, onde o autor é presença habitual. O maior interesse desta entrevista prende-se com a alusão direta à questão da identidade, tendo partido da jornalista a iniciativa de remeter para o filme A Janela (Mayalva Mix) – que também passou pelo Screenings – a propósito da fragmentação do eu. A referência deu mais abertura ao entrevistado para se referir explicitamente à identidade, como uma busca centrada na multiplicidade do eu. Pode-se concluir, deste modo, que a atenção dada a um fenómeno (particularmente, um filme sobre Fernando Pessoa) através da entrevista, provoca efeitos colaterais no discurso mediático do realizador, que dispõe do espaço concedido para se expressar, bem como à sua obra. As críticas ao filme Consideramos críticas ao filme as publicações explicitamente designadas como tal e os textos aprofundados, distintos das notícias no tamanho e na abordagem, mais subjetiva. Identificámos, no âmbito das críticas, uma maior preocupação em tipificar Não Sou Nada, inscrevendo-o no género noir ou neo-noir. Por norma, a crítica de cinema ocupa-se não apenas do efeito dos filmes sobre o espectador, mas também sobre a técnica que lhe está implícita. Por isso, não surpreende que, muitos dos comentários se dirijam a esses aspetos, questionando a estética do cinema de Edgar Pêra. Deste modo, o Jornal Referência [43] destaca a “paleta de cores vibrantes”, enquanto o Cineblog [29], do Instituto de Filosofia da Universidade Nova, regista “um cinema criador de dimensões imaginárias a partir de dimensões técnicas”. Mas, para além dos aspetos formais do filme, a relação (quase tête-à-tête) entre Fernando Pessoa e Edgar Pêra é o principal tema esmiuçado pela crítica. Francisco Ferreira, no Expresso [44], assinala que “a ideia que se quer sublinhar é a de que há, se calhar sempre houve, uma coerência entre escritor e cineasta, ‘Não Sou Nada’... tem sobre este aspeto várias cartas a pôr na mesa.”. No mesmo sentido, João Lopes (DN [45]) refere: “São encarnações vivas das palavras que foram escritas, ao mesmo tempo que circulam como fantasmas de uma narrativa que o poeta lançou e o cineasta transfigurou”. Manuel Halpern, na Visão [46], vai um pouco mais longe na analogia, descrevendo o filme como um caminho para chegar à cabeça de Fernando Pessoa, mas também de Pêra. “O objetivo inalcançável do filme é mesmo transportar-nos Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 85 Lima Não Sou Nada (2023) para o interior da cabeça de Fernando Pessoa e encontrar uma multidão de heterónimos. Mas sabemos à partida que, quando muito, seremos transportados para a cabeça do próprio realizador”, conclui. Outras leituras são, efetivamente, curiosas na forma como fazem coincidir um olhar externo com o percurso do realizador. Elisa Andrade Buzzo, no Digestivo Cultural [47] afirma que “bem ou mal, lembro do Fernando Pessoa em cenário encarnado de Almada Negreiros”. Não denunciando se esta foi uma observação condicionada pelo conhecimento prévio da obra de Edgar Pêra, certo é que a autora fixou na crítica publicada uma similitude coincidente com os interesses intelectuais do realizador. É preciso não esquecer que Pêra é autor de SWK4 (1993), um documentário sobre Almada Negreiros, algo, aliás, que é recordado por Francisco Ferreira, na crítica já citada no Expresso [48]. Analisando as críticas publicadas, descobrem-se outras afinidades. Catarina Gerardo descreve a “embriaguez alucinogénia” (Cineblog [49]). Em contrapartida, Jorge Mourinha, enuncia “o sistema de filtros psicotrópicos de Pêra” [50]. Ambos os textos encaminham The Nothingness Club para o domínio do filme que toma conta da mente do espectador, como se de uma droga de tratasse. “Psicadélico” e “psicotrópico” foram adjetivos também usados pela dupla Torgal / Mota [39]. O que emenda, de certo modo, com o tópico da loucura que Eurico de Barros (Time Out [51]) considera excessivo, no filme: “Pêra dá demasiado tempo de antena ao tema da loucura associada a Pessoa, com sequências a mais, e muito prolongadas, no hospício”. Por sua vez, Sebastião Maia (Jornal Referência [52]) entende que o filme “catapulta o espectador para a loucura da mente de um homem”. Uma leitura da colisão Identificámos, na leitura do material selecionado, cinco questões principais: o filme como uma incursão na mente de Fernando Pessoa; a relação, indiciada através de Não Sou Nada, entre Pessoa e Pêra; o efeito psicadélico do filme; o tema da loucura; o modo como o cinema é perspetivado a partir de Não Sou Nada. Cabe, no âmbito desta recensão e antes mesmo de avaliarmos teoricamente as sugestões deixadas por esta recolha, inserir uma constatação. Refiro-me a uma espécie de fenómeno de inbreeding encontrado em parte das publicações selecionadas. Esta clonagem pode verificar-se por via do conteúdo (veja-se a crítica de João Lopes no DN [43], que foi também publicada no blogue Sound Vision [47]) ou da autoria. Voltando a João Lopes, além da crítica, o jornalista assina uma entrevista a Edgar Pêra, no DN [48]. Da mesma forma, Rodrigo Fonseca publica duas entrevistas ao realizador, uma no Correio da Manhã [49] e outro no site C7nema [50]. Já Eurico de Barros assina três críticas, uma no Observador [51]e outra na Time Out [46] e O Jornal Económico [52]. Quanto a Paulo Portugal, escreve uma crítica para o site Insider Film [51] e faz uma entrevista (já referida) para o blogue Esquerda.net [37]. Por fim, Manuel Halpern publica a já nomeada entrevista no Jornal de Letras [36] e assina uma crítica Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 86 Lima Não Sou Nada (2023) na Visão [53]. A menção fica registada neste artigo, como um valor referencial, que nos faz lembrar que as publicações dos média não são só condicionadas por critérios editoriais. Quando se analisa, como é o caso, um universo temporal e temático, é possível detetar que dimensões como o contexto restrito dos profissionais do jornalismo no país, ainda mais numa crítica a uma forma artística específica como é o cinema, redunda, por vezes, num falso fenómeno de pulverização da receção. Tratando-se esta de uma recolha sobre a receção ao filme Não Sou Nada nos média e derivados, privilegiámos uma abordagem que assenta na construção do valor social do mesmo. Significando isto que tencionámos inscrever Não Sou Nada como um espaço de (re)simbolização, colisão e disputa. Sendo um produto que resulta de um investimento financeiro considerável – o projeto foi aprovado pelo Instituto de Cinema e Audiovisual em 2014, com uma verba de 30.000 euros (ICA, 2014) –, quer na fase de produção e realização quer no momento da distribuição, será interessante pensar no filme como uma brecha, criada porque todas as condições de possibilidade se juntaram para a concretização do conceito de “affordance”. Uma convergência, em suma, de “modos de ser e de fazer” (DENORA, 2003: 170), em que a experiência individual e social se encontram. Não está aqui tanto em causa o valor intrínseco de uma obra, mas antes o valor social que esta conquista. Deste modo, colocámo-nos no terreno da Sociologia da Arte, no entendimento de que dela fazem GUERRA e FIGUEIREDO (2023). Isto é, não procuramos na obra de arte o seu valor dado e exclusivamente o seu consequente reconhecimento social, mas antes os processos identitários, simbólicos e de ressignificação que esta instiga. Estamos a falar, pois, de embate e não tanto de consenso. Neste sentido, as obras (como os média) são fontes de mediação, através dos quais estes processos de disputa (de comunicação) se jogam, revitalizando a comunidade e forçando a existência de fissuras grupais. Em outubro de 2023, a Mostra de Valência dedicou uma retrospetiva à obra de Edgar Pêra [54]. Para lá do ciclo que caracteriza eventos deste género (uma amplificação de um trajeto no momento preciso em que o festival decorreu, para se desvanecer nos meses subsequentes), será talvez proveitoso realizar um exercício de análise posterior, já distante do clímax que estas iniciativas sempre suscitam. Num texto retrospetivo publicado na revista Caiman [55], Fran Benavente y Glòria Salvadó Corretger sinalizam o cinema de Edgar Pêra como underground. Colada com a contracultura, a arte de Pêra constituirá “outro modo de pensar, entender, perceber e sentir a realidade”. Não Sou Nada foi, inevitavelmente, motivo de análise neste texto, que (à semelhança de outras críticas aqui referidas) estende o imaginário pessoano a um sentir pereano. Um modo de ver e fazer que será ensaístico na criação artística. Seguindo nesta ordem de ideias, tudo se encaminha para confirmar a tese da obra como colisão, dado que, no entender dos autores, Pêra se mantém como um criador contra-corrente, ao mesmo que (acrescentamos nós) apresenta comercialmente um filme cuja divulgação aposta no alargamento de públicos. Mas antes de Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 87 Lima Não Sou Nada (2023) assentirmos apressadamente numa conclusão tão óbvia, ponhamos outras premissas em cima da mesa. Não Sou Nada será, no conjunto do percurso de Edgar Pêra, um filme mais alinhado e, por isso, mais propício ao reconhecimento social? Ou, pelo contrário, a crítica estaria mais recetiva a um filme com estas características? A reflexão anterior leva-nos a introduzir as estatísticas oficiais de receção de Não Sou Nada, esclarecendo outro dos objetivos apresentados. Reportamo-nos aos dados divulgados pelo Instituto do Cinema e do Audiovisual (ICA), registando que, até ao final de dezembro de 2023, Não Sou Nada foi exibido em 38 salas (ICA, 2023a). As estatísticas publicadas pelo ICA demonstram que o filme percorreu diversas zonas geográficas, incluindo Setúbal, Penafiel, Viseu, Montemor-O-Novo, Seia, Oliveira do Bairro ou Coimbra, tendo ocorrido (pela informação colhida nos média) nove sessões especiais de apresentação com o realizador, que foram desde o Porto, a Santo Tirso, ao Algarve, passando pelo Funchal. Em 2023, The Nothingness Club foi visto por 7.254 espectadores, que se dividiram por 435 sessões (ICA, 2023a). Comparativamente a outros filmes do realizador, excetuando o êxito comercial Virados do Avesso (2014) – que chegou aos 106.736 espectadores –, esta foi, até agora, a obra mais vista de Edgar Pêra. Uma nota adicional para os dados de A Janela (Maryalva Mix), reveladores de algumas incongruências, já que os números disponibilizados no ICA (2023a), referem uma exibição, com 40 espectadores, enquanto que CAMPOS (2022), baseado na mesma fonte, indica 9900 espectadores, sem referir número de exibições ou explicitamente remeter para a origem dos dados. Sublinhe-se que, no universo da produção nacional, The Nothingness Club ocupa o oitavo lugar do ranking 2023 (ICA, 2023b). Nestes dados, não entram os números dos festivais internacionais de cinema, dos cineclubes, nem as exibições posteriores a 2023. Interligando o impacto mediático de Não Sou Nada com os números da receção disponíveis até ao momento, facilmente depreendemos que estamos, sem dúvida, perante uma confluência de fatores: investimento financeiro, investimento criativo e pessoal (a presença de Pessoa em Pêra radica nos anos de formação entre o fim da adolescência e o início da idade adulta), investimento de marketing e divulgação e receção positiva na esfera pública. Conclusão Propusemo-nos, neste artigo, analisar o impacto mediático do filme Não Sou Nada, num limite temporal que antecedeu as rodagens (2020) e se estendeu até janeiro de 2024. Neste trabalho, desviamo-nos da tentação de julgar The Nothingness Club em si mesmo, enquanto objeto estético, para nos centrarmos nas representações mediáticas do mesmo. Nesse sentido, concluímos que, genericamente, as notícias repetem as temáticas relativas ao género (thriller, neo-noir), à biografia (cabeça de Pessoa), ao cinenigma (enigma na forma de filme) e à personalidade (heteronimismo e multiplicidade do ser). Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 88 Lima Não Sou Nada (2023) A análise foi surpreendida por alguns aspetos, que é relevante indicar. Desde logo, a reprodução inquestionada de textos inteiros (via agência noticiosa ou comunicados de imprensa), disfarçada, a mais das vezes, por elos estilísticos cuja finalidade será fugir da estrita informação noticiosa, tentando uma via mais apelativa e expressiva de um certo sentido crítico. De resto, não só identificámos, em quase todas as notícias da estreia, uma cópia zelosa de comunicados de imprensa, como, em alguns casos, foi disseminada (e repetidamente reafirmada) a informação errónea de que Paulo Furtado (Legendary Tyger Man, Oswald Kent no filme) seria o autor da banda sonora, que, na realidade, coube a Jorge Prendas e Artur Cyaneto, com montagem de som e misturas de Pedro Góis. Para além disto, a já citada endogamia da crítica de cinema no país foi outro dos pontos que se manifestou na análise. Tanto uma como outra evidência levou-nos a refletir sobre a importância dos média como uma voz dialogante, não necessariamente consonante. Num cenário pouco curioso acerca do que, na comunidade, se faz e de como se faz, que território resta para a diversidade e a rutura? E o que é que estes contextos deixam transparecer sobre a possibilidade de atualização cíclica das comunidades imaginadas de ANDERSON ([1983] 2016), bem como sobre a emergência de contra-culturas? Será a cobertura mediática dispensável a essas correntes marginais? Ou apenas o que aparece mediaticamente existe? Que papel jogam os agentes culturais na formação de públicos e qual a dimensão dos média (excluindo redes sociais, que não foram aqui levadas em conta) na cadeia de promoção, divulgação e criação de um fenómeno? Se é de disputa que estamos a falar (e não de hábito, legitimação ou reconhecimento), é expectável que este embate se processe por aglutinação ou por auto-exclusão? As perguntas surgem em catadupa, estimuladas pelos dados recolhidos e a análise realizada. Mesmo que sobre elas não repousem teorias suficientemente esclarecedoras ou respostas de sentido único, será bom que não fujam da linha do nosso horizonte teórico e observacional. A este propósito, valerá a pena remeter para a argumentação de Américo Santos, da Nitrato Filmes e Cinema Trindade (Porto). Em declarações ao Público, este agente cultural lembra que o investimento na programação atual terá efeitos, previsivelmente, no futuro já que, se de momento o público é ainda muito conservador, a insistência num modelo de programação poderá ter resultados a longo prazo: “Daqui a dez anos, os distribuidores poderão apostar em filmes arriscados” [55]. O promotor valoriza a dimensão social do cinema (da cultura, em sentido lato), que é, justamente, o que há a relevar na troca dialogante entre média, consumidores, artistas e outros agentes culturais. “Vejo, o que há muito não via, pessoas a falarem sobre os filmes no átrio do cinema com velhos amigos que reencontraram”, assinala Américo Santos. [56] Dando continuidade à análise, nomeadamente, na identificação de conceitos para qualificar Não Sou Nada, vimos que os mesmos ressoam à ideia principal transmitida pelas estratégias de divulgação do filme ou surgem de tentativas de categorizar, quer do produto final, quer do seu autor. A sinalização destes tópicos Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 89 Lima Não Sou Nada (2023) encaminha-nos no sentido das representações identitárias que lhes estão subjacentes, uma vez que: o género (sobretudo as apreciações ao neo-noir, que constam tanto da crítica nacional como internacional) tem a função de tentar encaixar o realizador numa classificação estética; a explicação do que Pessoa terá sido (por via do filme, incluindo a loucura, a mente tortuosa e torturada, a imaginação delirante) surge, na maioria das vezes, como um canal para também perceber a mente de Edgar Pêra; o cinema é encarado, na avaliação crítica ao filme, como uma personagem implícita e simultânea à poesia e à prosa pessoanas e, por fim, os desvios de personalidade atribuídos a Fernando Pessoa fazem ricochete para o espectador (crítico) suscitando uma reflexão sobre o heteronimismo, que dificilmente caberia fora do contexto de uma obra de arte. Um pouco surpreendentemente, as críticas ao filme parecem fazer tábua rasa de possíveis pré-definições acerca de Fernando Pessoa, para embarcar na aventura heteronímica proposta em Não Sou Nada. Será isto suficiente para transmutar os pré-conceitos acerca da obra pessoana? Será, sequer, aceitável pedirse a uma obra que tenha esta função pedagógica? A recolha realizada permite concluir que a interpretação de Fernando Pessoa por Edgar Pêra se sobrepõe a qualquer tipo de generalização acerca da vida e obra do poeta, pelo que esta perspetiva quase não é questionada ou sujeita a validação. Jorge Mourinha, no Público, comenta que o filme é “profundamente respeitador da obra pessoana, mesmo quando a trai abertamente” [15]. Quisemos, igualmente, indagar se há comparações entre Não Sou Nada e outros filmes do realizador. A resposta é afirmativa e surge por diferentes vias. Por vezes, as experiências fílmicas passadas são explicitamente referidas pelos críticos ou jornalistas, noutras situações, estas relações são introduzidas pelo próprio autor. Finalmente, considerámos relevante compreender se as críticas se dirigem mais à técnica ou preferencialmente à narrativa, sendo que não há uma resposta exclusiva para esta demanda. Se é certo que há atributos técnicos (como a luz, a cor, a banda sonora) que são focados, genericamente, nos textos analisados, também é verdade que a narrativa (isto é, o enquadramento da ficção, desde a existência de um clube em forma de editora, até ao hospício e o papel de elementos narrativos mais fortes, como a figura de Ofélia e Álvaro de Campos) contrabalança com esta apreciação técnica. O que é sintomático é a forma como Não Sou Nada é dissecado como um todo, que abriga a complexidade de um poeta, se pressupõe como um espelho do seu autor e se embrulha numa peculiar estética imbuída de minucioso trabalho técnico. Não dispondo, de momento, de dados que permitam compreender o efeito de longo prazo de Não Sou Nada na esfera pública (só pela futurologia podemos conjeturar o que irá acontecer a este objeto artístico), podemos, isso sim, refletir sobre a ação do artista (e da obra) como um produto coletivo que, por vezes, rompe na comunidade, criando (pelo diálogo que estimula) novos processos simbólicos. Em abril, Não Sou Nada teve 15 nomeações para os Prémios Sophia 2024, da Academia Portuguesa de Cinema (“Nomeados Prémios Sophia 2024”, s.d.). O anúncio colocou Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 90 Lima Não Sou Nada (2023) o filme na liderança das nomeações, reforçando a ideia de completude da obra, já que estas abarcam as distintas peças que o constituem: melhor realização, melhor argumento original, melhor montagem ou melhor direção de arte, melhor banda sonora, entre outras. As nomeações, independentemente do resultado, sinalizam Não Sou Nada como um produto que, diferentemente de outros filmes do autor, conquista um espaço nos meios mais institucionalizados. Não sabemos, por enquanto, o que isso significa no jogo das forças de poder que caracterizam a sociedade e a indústria cultural. Nem é intenção deste artigo apurar se se trata de maior adequação ou mainstream ou, inversamente, uma absorção deste pelos produtos ‘alternativos’. No sistema sócio-cultural descrito, os média prestam-se a serem uma voz a mais, uma voz com um lugar de fala privilegiado, sem dúvida. Em vez de tentarmos supor o poder que se julga que têm, talvez seja interessante encará-los como um interlocutor, entre outros na sociedade, que ajuda a construir novas realidades e não apenas a representá-las. Seguindo esta ordem de ideias, outros agentes poderiam ser considerados na avaliação da receção de Não Sou Nada. Por exemplo, os comentários do público que participou nas sessões com o realizador, nas apresentações nos festivais de cinema ou nas sessões direcionadas para o público escolar. Em resumo, podemos concluir que a consistência do trabalho de divulgação materializa-se, fundamentalmente, no impacto mediático deste filme, embora outros estudos comparativos (e uma maior distância temporal) sejam necessários para extrapolar no sentido de perceber que lugar este ocupa no universo cinematográfico nacional e na carreira artística de Edgar Pêra. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 91 Lima Não Sou Nada (2023) Bibliografia ANDERSON, Benedict ([1983] 2016). Imagined Communities: Reflections on the origin and spread of nationalism. London: Verso. CAMPOS, Luís (2022). O Passado e o Presente de uma Cinematografia Resistente – Tríptico sobre o fatalismo do cinema português. Tese de doutoramento. 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Não Sou Nada. Bando À Parte. hfps://www.youtube.com/watch?v=__LuO4umRiQ Kinorama. Bando À Parte. hfps://www.youtube.com/watch?v=KFVUYnxI5SY Virados do Avesso. Cinemate. hfps://www.youtube.com/watch?v=g0eySTgwa8U Movimentos Perpétuos – Cine-Tributo a Carlos Paredes. hfps://www.youtube.com/watch?v=MdZoizp2sSI (2001). A Janela (Maryalva Mix). Paulo Branco. hfps://www.youtube.com/watch?v=w8W0XIdMo40 (1993). SWK4. Companhia dos Filmes do Príncipe Real. https://www.youtube.com/watch?v=1JH1BFVHOu8 Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 95 Lima Não Sou Nada (2023) TERESA LIMA integra o grupo de investigadores doutorandos do CECS/UMinho, estando a realizar o Doutoramento em Ciências da Comunicação. Com uma Licenciatura em Comunicação Social pela Universidade do Minho, fez uma incursão pelo jornalismo (Público) e obteve o Diploma em Estudos Avançados em História Contemporânea, na Universidade de Santiago de Compostela. Profissionalmente, tem exercido atividade nas Ciências da Informação. Atualmente, estuda a relação entre biografia, discurso e comunicação, partindo da história de vida do realizador Edgar Pêra. Integra, igualmente, o grupo de investigadores da Passeio – Plataforma de Arte e Cultura Urbana (www.passeio.pt), do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade (CECS), da UMinho. TERESA LIMA is a member of the group of doctoral researchers at CECS/UMinho, currently studying for her PhD in Communication Sciences. She has a degree in Social Communication from the University of Minho, a career in journalism (Público) and a Diploma in Advanced Studies in Contemporary History from the University of Santiago de Compostela. Professionally, she has worked in the Information Sciences. She is currently studying the relationship between biography, discourse, and communication, based on the life story of film director Edgar Pêra. She is also a member of the Passeio – Plataforma de Arte e Cultura Urbana (www.passeio.pt) group of researchers at UMinho’s Centre for Communication and Society Studies (CECS). Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 96 !"#$%&#'()*+,*-./#'()+.01*'2*') 3#2'#14+)5*)+6&76+()1%+8*+()#/.-%&#98*+:) !"#$%$&'()"**'%+(,&-%#().#%("(%(/$0"1/-.$2/%(%#0/3/2/%1( !!"#$%&%&$'()*+,-.#/%&$'()-01+2/%&$ 3/425-$4(62+#"7'(1%7%5&7'(4#..-,%&#/%5&78 #$%&'&()"*$++)',"-(.'%"*/%',"'&( '%012131'4"1&0$441.$&3$5 !"#$%&'($()*"%+& !"#"$%"&'()"$* "#$%&!'(&%)!*+&,%,#-!'+..-%)!/,0+12$(,32%!4&025232%1)!6-#+1-.!#+!7+80-9:%&%9/;%$+;)!<+20=&% >!".3&20%!#%!6?@=2,%)!".0=#-.!A&B023-.!#-!!"#$%&'(C! ,*&-./ D+.0+!+,.%2-!%:&+.+,0-!+!%,%12.-!)&'*($+)!=;!3-,E=,0-!#+!2;%$+,.!+.0?023%.!3&2%#%.!:-&!"#$%&! 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Na sua produção cinematográfica, prolífica e diversificada, essa máquina tem-se ligado com frequência a outras máquinas, assim como a vários meios, suportes, ferramentas e técnicas, de que é exemplo mais visível a sua exploração do formato estereoscópico. Como o próprio tem afirmado em entrevistas e noutros testemunhos, há no seu cinema um interesse por todo o tipo de ferramentas e formatos que possam ser usados para a criação de imagens que estimulem a perceção dos espectadores. No formato estereoscópico, por exemplo, Pêra tem mexido com o córtex do espectador através da sua retina, mas tem também deixado muito espaço para a imaginação. Em boa verdade, o segundo decorre de facto do primeiro. De resto, podemos aplicar tudo isto também às mais recentes criações de imagens com recurso a inteligência artificial que, sob o título Variety, se publicam pela primeira vez neste número da Pessoa Plural—A Journal of Fernando Pessoa Studies. Pessoa é um excelente exemplo de escritor que merece ser pensado hoje na ligação com a inteligência artificial (ILIEVSKA, 2023; GIMÉNEZ, 2023). É-o, desde logo, pelas ligações que podemos ver com a heteronímia (ou heteronimismo, como ele escreveu), a fragmentariedade do pensamento, a multiplicação de vozes e pontos de vista, o fingimento, a simulação, a dissimulação, e poderíamos continuar. Por exemplo, poderíamos falar da multiplicidade de personas em Pessoa num paralelo com a capacidade da inteligência artificial de simular diferentes estilos ou “identidades” ao gerar textos, imagens e vídeos. Estes sistemas não sabem semântica, não conseguem ver, nem são sencientes – mas conseguem fingir. Na base da inspiração de Pêra em Variety está uma fulminante citação-recorte de Pessoa, que escreve em Erostratus: “Variety is the only excuse for abundance. No man should leave twenty different books unless he can write like twenty different men. [...] If he can write like twenty men, he is twenty different men” (PESSOA, 1967: 208-209; cf. 258, em tradução). Partindo também eu deste mote para alguns comentários a Variety, de Pêra, quero desde logo perguntar: quantos Pessoas há na inteligência artificial? Além do meu prazer pessoal em poder ver em primeira mão algumas dessas criações – que ilustram o presente ensaio – parece-me particularmente feliz o timing que me é dado para escrever algumas linhas sobre os trabalhos que Pêra tem em curso depois de The Nothingness Club – Eu Não Sou Nada (2023) e ainda antes de Cartas Telepáticas (em preparação, mas do qual se conhece um “projecto de livro-filme”; Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 98 Ministro Imaginar, especular, subverter PÊRA, 2022). Ora, se o primeiro é um “cinenigma” que imagina como seria juntar todos os heterónimos pessoanos num clube / editora como assalariados do ortónimo, já o segundo é um livro-filme assente num conjunto de cartas imaginárias entre Pessoa e Howard Philips Lovecraft. Entre o enigma e as cartas, há também muito espaço para outras formas de gerar o mistério e usar a imaginação. Figs. 1-8. Variety, de Edgar Pêra. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 99 Ministro Imaginar, especular, subverter A este respeito, uma das motivações de Pêra para criar o livro-filme Cartas Telepáticas, igualmente com recurso a inteligência artificial, reside no facto de tanto Pessoa como Lovecraft explorarem o mundo dos sonhos, das visões, da psique, isto é, do mundo dentro do pensamento – ou mesmo do mundo dentro do pensamento do mundo. Por isso, Pêra questiona: “O que seria do pensamento de Pessoa e Lovecraft se tivessem trocado essa correspondência imaginária?” (PÊRA, 2022: 447). Aguardemos pela estreia de Cartas Telepáticas, seguros de que a resposta a esta pergunta virá sobretudo da imaginação dos espectadores. Tal como as cartas, as imagens que, por agora, Edgar Pêra nos apresenta em Variety são imagens impossíveis (cf. Figs. 1-8). Num certo sentido, lembram o que nos disse Abraham Moles acerca das imagens geradas por computador muito antes do advento da inteligência artificial ou, pelo menos, antes da sua emergência como hoje a conhecemos. Segundo Moles, a imagem computada resulta, na sua génese, de uma interrupção fundamental na cadeia que liga o objeto ao referente. Assim, a imagem sintética produzida pelo computador “sugere um escândalo ontológico, pois ela é susceptível de pré-existir ao objecto que representa” (MOLES, 1990: 144). Em que ponto estamos, porém, com as formas emergentes de produção de imagens computacionais por via de sistemas de inteligência artificial? Em rigor, estas imagens são mais o resultado de uma gigante acumulação de bancos de imagens e seu processamento computacional do que propriamente a criação de algo inteiramente novo ou previamente inexistente em termos absolutos. Por exemplo, Pessoa existiu, nada há mais empírico que isso, e um prompt explícito o suficiente pode ativar a procura nos datasets do modelo por retratos seus que sirvam de base à nova imagem. O que isto quer dizer é que, como se diz, foi “treinado” com imagens de Pessoa mesmo que não abundem os seus registos fotográficos. Por outras palavras, há, também sob esse ponto de vista, algo de “escandaloso” na multiplicação das imagens que Edgar Pêra nos apresenta. Embora possa parecer vir a despropósito, vale a pena fazer um ligeiro desvio para algumas palavras sobre o conceito de “cine-koncerto”, criado e praticado por Pêra desde os anos 1990. Este é um formato de cinema improvisado em palco no qual a captação e manipulação ao vivo se (re)mistura com filme de arquivo. Não é por norma uma prática individual, resultando antes de colaborações que incluem música e outras linguagens produzidas no próprio momento e que, nesse sentido, também integram os espectadores como participantes. Por tudo isto, um “cine-koncerto” é irrepetível, como qualquer performance experimental. Neste caso, o que é interessante e justifica estes parênteses, é que o “cine-koncerto” assenta em processos que podemos aproximar de algum modo à geração de imagem ou texto com recurso a inteligência artificial: multiplicação, improvisação, jogo permutativo, recombinação, remistura, aleatoriedade; de onde decorre que tudo nesses processos e nos objetos resultantes é marcado mais pela variação do que pela repetição. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 100 Ministro Imaginar, especular, subverter A inteligência artificial na sua configuração atual apresenta-se como uma novidade com enorme impacto sobre várias esferas da produção cultural. Embora seja de facto uma novidade a vários níveis, a verdade é que ela é também o resultado de um longo percurso técnico, social e discursivo que vem pelo menos desde a primeira vaga da cibernética dos anos 1940. Mesmo com a cautela que um olhar retrospetivo nos exige que não treslamos esta história de forma simplista, não é despiciendo lembrar o subtítulo de um texto fundacional da cibernética de Norbert Wiener, dedicado ao “estudo científico do controlo e comunicação no animal e na máquina” (1948). A formalização da linguagem como modo de controlo da comunicação está na base do projeto da cibernética tal como está nas suas atualizações sucessivas nas diversas vagas da inteligência artificial. Um workshop realizado no Dartmouth College em 1956 é hoje considerado por muitos como o evento fundacional no campo da inteligência artificial. Contribui para isso o facto de ter sido nessa ocasião que o organizador do evento, John McCarthy, criou o termo e correspondente orientação conceptual para o desenvolvimento do campo. Os principais objetivos do grupo, que também incluía por exemplo Claude Shannon, são descritos na proposta do workshop nos seguintes termos: “An attempt will be made to find how to make machines use language, form abstractions and concepts, solve kinds of problems now reserved for humans, and improve themselves.” (MCCARTHY et al., 1955: 2). Inicialmente previa-se que estas atividades ocupassem dez indivíduos durante dois meses no verão de 1956. Dado o objetivo exigente, como comenta Hannes Bajohr com humor, quase 70 anos volvidos, os progressos não foram assim tantos: “even today Dartmouth’s goal has not been achieved – for all their successes, GPT-4 et al. do not operate on a human level. Such fantasies are part of the hype around AI, which ultimately serves the companies that develop it.” (BAJOHR, 2023: par. 4). Por maior que seja a sua novidade e impacto na década de 2020, a inteligência artificial, como sempre acontece com todas as tecnologias e ferramentas, tem uma história que não responde apenas a desenvolvimentos de natureza estritamente técnica. Neste caso, como sublinha Matteo PASQUINELLI (2023), olhar em perspetiva para a história social da inteligência artificial implica compreender como os algoritmos (computacionais ou não) sempre imitaram, através das suas formalizações técnicas específicas, as relações sociais e do trabalho. Segundo Pasquinelli, isto torna-se particularmente patente se tivermos em conta os contributos de Charles Babbage para a invenção da computação informática, que justamente propunha automatizar e disciplinar o trabalho nas plantações industriais do século XIX. A este respeito, Meredith Whittaker lembra também as teorias económicas de Adam Smith sobre a divisão do trabalho para afirmar que “Babbage didn’t invent the theories that shaped his engines, nor did Smith. They were prefigured on the plantation, developed first as technologies to control enslaved people.” (WHITTAKER, 2023: par. 2). Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 101 Ministro Imaginar, especular, subverter Mas como imagina a máquina? E como podemos imaginar com ela? /imagine Fig. 9. Variety, de Edgar Pêra. /describe 1. many faces of a man in glasses and hats, in the style of film noir-inspired, 8k resolution, colorized, escher-inspired, mamiya 7 ii, surrealistic poses, photo-realistic techniques --ar 128:71 2. six hats and glasses the eyes of the human face, in the style of hugh kretschmer, film noir-esque, manjit bawa, colorized, pensive poses, 8k resolution, dod procter --ar 128:71 3. a man wears a hat and other various glasses, in the style of dark and dramatic chiaroscuro portraits, 8k resolution, sliman mansour, photo montage, orderly symmetry, sacha goldberger, group f/64 --ar 128:71 4. a collage of multiple portraits with one man in a wide brimmed hat, in the style of realistic chiaroscuro lighting, 8k resolution, escherinspired, nabis, vintage lens, optical, rendered in cinema4d --ar 128:71 A imagem de Edgar Pêra reproduzida acima é acompanhada por quatro descrições dessa mesma imagem geradas por mim através do que podemos denominar como visão da máquina ou visão computacional (machine / computer vision). Neste caso muito concreto, tomam a forma de reverse prompt. No fundo, um prompt é a instrução linguística dada ao software de inteligência artificial para que ele gere uma imagem num sistema de “texto-para-imagem”; por seu turno, um reverse prompt reflete a capacidade de alguns desses softwares gerarem uma descrição de uma dada imagem sob a forma de um novo prompt. O que isto significa é que, idealmente, esse descritivo poderia ser depois usado como novo comando para a geração de uma imagem igual ou pelo menos semelhante. Não é de todo isso que acontece, mas já lá iremos. Algo que os reverse prompts atrás reproduzidos não revelam, mas que outras experiências e testes me mostraram foi que, como antes dizia, o modelo conhece a figura de Pessoa sem ser pela via da especificação direta dos seus traços fisionómicos. Por exemplo, é o que acontece se dermos ao programa um prompt que lhe peça para imaginar “the Portuguese poet Fernando Pessoa” nesta ou naquela situação. Não quer isto dizer que assim terão sido os prompts originais de Pêra. Como tive oportunidade para saber pelo próprio, em certos dias de intensa geração de imagens para Variety bastava apenas incluir “man” no prompt e lá surgia Pessoa. Isto por si só representa um outro tipo de “escândalo”, mas aqui estamos à margem dos termos de Moles como os referi antes e mais no domínio da arquitetura sórdida do algoritmo preditivo. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 102 Ministro Imaginar, especular, subverter O mesmo se pode aplicar às várias referências explícitas em que os reverse prompts assentam: é curioso, mas não surpreendente, verificar a preponderância das referências a estilos de artistas e movimentos, assim como a técnicas fotográficas e cinematográficas. De resto, este aspeto tem gerado um intenso debate na esfera pública, uma vez que este tipo de parâmetros comprova que os modelos de inteligência artificial foram treinados com recurso a muitas imagens cuja apropriação levanta questões legais e éticas. Retomando o nosso exercício: se fizermos de facto o teste de introduzir no sistema as descrições geradas por reverse prompt como um novo prompt, constatamos que as imagens são muito diferentes daquela de Pêra. Podemos talvez afirmar que o exercício de reverse prompt é escusado e até espúrio neste caso. No entanto, o que com ele quero demonstrar de maneira muito clara é que o input que é dado à máquina para que ela imagine um output tem ele mesmo de ser imaginativo, por um lado, e altamente conceptualizado, por outro. Sem a imaginação do humano – e como podemos depreender daquelas quatro descrições – de pouco nos vale a imaginação da máquina. De um ponto de vista técnico-medial, o que este exercício também permite comentar é que há uma especificidade diagramática na raiz destes sistemas que os influencia em toda a escala dos possíveis campos de geração de imagem. Em termos concretos, nos modelos de difusão (diffusion models), a criação de uma nova imagem parte de um quadro de ruído geral para o desenho progressivo da imagem até chegar ao resultado final. É sobretudo por isto que todas as imagens produzidas a partir de um mesmo prompt são sempre diferentes. O caminho do “caos” da informação até à formação de uma imagem é “limpo” de maneira diferente a cada iteração algorítmica. Assim, o que pretendo destacar é que é a própria ecologia dos programas de geração de texto-para-imagem que assenta em estratégias de repetição e de variação. Isto acontece ao nível algorítmico do funcionamento dos programas difusores, mas também nas próprias interfaces desses programas. Por exemplo, o software usado por mim para a descrição da imagem (que é o mesmo usado por Pêra) gera por defeito quatro possibilidades de reverse prompt. Por sua vez, qualquer prompt que seja declarado pelo utilizador dá por defeito origem a quatro imagens, variantes essas que dispõem, ainda, de um parâmetro direto, sob a forma de botão, para produzir automaticamente novas variações. O que isto nos mostra é não só que os próprios programas são desenhados a partir de uma ideia de repetição / variação enquanto meio de experimentação exploratória ao dispor daquele que com eles experimenta, mas também – e em sentido contrário a certas opiniões curiosamente arreigadas em noções de originalidade essencialistas – que a inteligência artificial tem botões e comandos para imaginar, mas verdadeiramente não pode imaginar sozinha. Imaginemos um pouco mais com ela. Falamos, nestas e em todas as outras imagens de Variety, de um Pessoa múltiplo porque multiplicado na sucessão das várias Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 103 Ministro Imaginar, especular, subverter imagens da série, mas também na moldura de cada uma das imagens. Pensamos no heteronimismo, mas fazemo-lo com a certeza de que Edgar Pêra não recorre à conhecida descrição física dos heterónimos. Não é disso que aqui se trata. Há, de qualquer dos modos, uma estratégia frequente, certamente por indicação do autor das imagens, de colocar em primeiro plano uma figura central acompanhada por várias outras, diríamos miniaturizadas, em pano de fundo. No conjunto da série não é raro ver este efeito repetido entre várias imagens (cf. Figs. 2, 4, 5 e 10), ainda que todas elas sejam bastante distintas entre si. Diríamos, por isso, que há uma serialidade coconstituinte que guia o processo de geração das imagens. Repare-se que isto não deixa de se aplicar a algumas das imagens reproduzidas abaixo (Figs. 11-13) e que, por comparação, poderiam ser tidas como fora de série na sua diferença. Figs. 10-13. Variety, de Edgar Pêra. Com efeito, se pensarmos em Variety enquanto série, notamos que há um efeito de transformação contínua das semelhanças que abre caminho para a produção das diferenças. Em inúmeros casos, essa transformação dá mesmo lugar à deformação. São linhas que fogem ao esperado, traços que se desagregam, rostos que se dissolvem, mãos que se esboroam ou aparecem onde não é o seu lugar, há óculos sobre óculos, olhos que apontam em diferentes direções ou simplesmente desaparecem (cf. Figs. 8, 10 neste ensaio, assim como várias apensadas no final). Com isto, explora-se o erro da imaginação da máquina de maneira criativa na imaginação humana. O uso expressivo da distorção nada tem de novo na história das artes. Todavia, aquilo que, por exemplo, para as vanguardas do início do século XX era uma exploração consciente da deformação, nomeadamente por oposição ao traço figurativo, configura, hoje e neste caso em particular, um aproveitamento criativo Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 104 Ministro Imaginar, especular, subverter de um erro da máquina. Por outras palavras, os sistemas de inteligência artificial não produzem lapsos, erros e alucinações propositadamente. Já o utilizador humano que não descarta os erros da máquina e os inclui nos processos e resultados, isso sim, fá-lo de forma deliberada. Nas imagens de Edgar Pêra salta ainda à vista o facto de haver heterónimos identificados por cores mais vivas que Pessoa em primeiro plano (cf. Figs. 1 e 3). Mas será mesmo que se trata de um jogo de ortónimo / heterónimos? Porquê o ortónimo ao centro e os restantes atrás? Não podia ser ao contrário? Por que é que a máquina há de ver como eu vejo? Conhecerá a máquina o drama em gente pessoano? Foi treinada nele, processou-o, acumulou-se, explorou-o, esgotou-o e está a reproduzi-lo? Fá-lo com conhecimento ou desconhecendo o questionamento de que essa teoria tem sido alvo por parte dos estudos pessoanos? Adiciona alguma coisa às discussões? Embora esta formulação seja francamente incorreta, torna-se difícil que a minha linguagem não se refira a “Pessoas”, no plural, para descrever aquilo que os meus olhos veem. Já me repetindo, pergunto novamente: quantos Pessoas há na inteligência artificial? A pergunta é retórica, no entanto poderia responder: muitos e de todas as formas; ou “vinte homens diferentes” já que “a variedade é a única desculpa para a abundância”, se quisermos relembrar Erostratus. Em Variety, além das imagens de aspeto mais realista que apresentam pequenas deformações, há também um conjunto de imagens cuja estética assenta sobretudo na exploração criativa de um certo deslize do figurativo. Algumas dessas imagens imaginam traços desenhados, montagens impossíveis, figurações surrealizantes. Poderíamos dizer que são as imagens deste tipo que mais se aproximam do sonho, do onírico, da alucinação. Todavia, a verdade é que em todas elas, mais ou menos realistas, há um desvio de cisão do real trabalhado pela imaginação da máquina e do humano. Como tem sido profusamente demonstrado desde o chamado “boom da inteligência artificial” da nossa década, a máquina produz com frequência alucinações do texto e da imagem. Cabe-nos a nós alucinar com ela. Edgar Pêra ajuda-nos a alucinar: alguns Pessoas parecem ter ido ao cinema, outros a um photobooth. Todos foram captados pela “lente”. Esta é, em rigor, uma lente simulada na simulação que simula os Pessoas simulados na imaginação da máquina. Simulação é um termo-chave no estudo recente que Manuel Portela dedicou à modelação computacional do Livro do Desassossego. De forma muito sucinta, para Manuel Portela, a “simulação literária” agenciada pelo Arquivo LdoD está ligada à performatividade literária e editorial daquela obra. Como especifica: “Once we began to model the relation between those two perspectives, our focus shifted from representing the actuality of those relations as documented in the work’s authorial and editorial archive to simulating the processes through which a work becomes a work.” (PORTELA, 2022: 3). No contexto do livro de Portela, estas são algumas das condições que permitem equacionar novos cenários imaginativos para as abordagens técnico-humanísticas do campo de estudos das humanidades digitais. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 105 Ministro Imaginar, especular, subverter Embora numa outra perspetiva e contexto, também Pedro Barbosa se reportou a questões de simulação e imaginação nas práticas de leitura e escrita mediadas por computador. Além de ter traduzido e comentado o texto que já citei de Abraham Moles, com quem de resto trabalhou em Estrasburgo, Barbosa foi sobretudo criador e teorizador do que chamou de literatura cibernética, nos anos 1970, e que mais tarde viria a apelidar de ciberliteratura. Para Barbosa, a criação assistida por computador – seja ela literária ou artística em geral – funciona através da conjugação de reportórios de sinais e regras acionados pelo algoritmo enquanto “simulador da Imaginação” (BARBOSA, 2002: 227). Se o algoritmo não é a imaginação, ele pode, ainda, atuar enquanto simulação dessa imaginação no sentido em que prolonga a imaginação da máquina e do humano. Dito de outro modo, para usar uma expressão do próprio Barbosa, o computador é sempre um “amplificador das capacidades do cérebro humano”, não um seu substituto. É claro que o que isto também implica é que os meios e os programas, mesmo tendo um grande reportório de cenários potenciais, tendencialmente infinitos, à disposição do seu output, em rigor só podem “imaginar” aquilo que estão à partida desenhados para “imaginar”. Com isto, retomo um ponto anterior. Mencionei antes a possibilidade de usar as quatro descrições por mim geradas de forma automática a partir de uma das imagens de Edgar Pêra como novos prompts para outras imagens. Vou, no entanto, poupar o leitor às imagens geradas por mim nesta experiência, deixando-o apenas com as estimulantes criações de Pêra. Quero, ainda assim, comentar de seguida com maior detalhe algumas das implicações que tudo isto tem. Num primeiro momento, um pensamento ingénuo levar-nos-ia a pensar que é possível a replicação da mesma imagem a partir da descrição submetida como novo prompt. Ora, isto aconteceria só e apenas se a linguagem, seja ela verbal ou visual, não fosse algo que nos foge sempre debaixo dos pés. Ou se quisermos usar outra analogia, ainda rente ao chão, se a linguagem não nos tirasse sempre o tapete. Fazendo esse exercício de introduzir a descrição como comando para a geração de uma nova imagem, o que nos surge diante dos olhos é uma imagem completamente diferente. Constatamos então, pela prática, que as imagens são produtos de certas engrenagens dentro da imaginação aleatória da máquina. Chamar-lhe imaginação é um ato abusado de linguagem. Mas como não o fazer se é ela quem abusa da própria aleatoriedade do output-imagem perante o meu input-linguagem? Como não imagina a máquina? Como podemos imaginar contra ela? O teórico e filósofo dos média Vilém Flusser bem viu o que estava para vir. E viu-o no seu tempo, que para todos os efeitos é um tempo fora de tempo. Há na sua imaginação dos futuros mediáticos uma clarividência atemporal, sobretudo porque Vilém Flusser não podia efetivamente antever a inteligência artificial. Ainda assim, o seu exercício de imaginação teórica é muito mais certeiro e menos aleatório que a Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 106 Ministro Imaginar, especular, subverter imaginação da máquina que hoje nos é dada. Isto obviamente deve-se ao conhecimento profundo que Flusser detinha das evoluções das teorias da informação, da cibernética e dos sistemas computacionais, nomeadamente nas propostas de Wiener, McCarty, Shannon e Moles, todos eles já comentados antes neste ensaio. Para Flusser, o “futuro da escrita” assentaria numa relação intrincada, mas problemática, entre textos e imagens técnicas: The easiest way to imagine the future of writing [...] is to imagine culture as a gigantic transcoder from text into image. It will be a sort of black box that has texts for input and images for output. All texts will flow into that box […], and they will come out again as images […] which is to say that history will flow into the box, and that it will come out of it under the form of myth and magic. (FLUSSER, 2002: 67) Um dos aspetos que mais me interessa na filosofia da “caixa negra” de Flusser, tanto como no exercício de reverse prompt, é o paradoxo e correspondente colapso. O paradoxo é fácil de explicar: tudo é replicação de textos e de imagens acumuladas, combinadas e recombinadas, transformadas; mas a replicação, sabemos, é impossível. Daí o paradoxo, precisamente porque a repetição transforma o igual em semelhante e o semelhante em diferente. Já o colapso é mais difícil entender. De todos os modos, e como já afirmei, talvez só seja difícil compreender ao nosso olhar desavisado ou, se quisermos, àquele olhar que ignora a potência ambígua da linguagem e a sua queda para a falha da própria comunicação e colapso dos seus sistemas. Afinal, a linguagem é a não comunicação e, para todos os efeitos, é a linguagem (verbal) que está sempre na raiz de ferramentas de geração de imagens, tanto estáticas como em movimento. Quem, no entanto, evita estas últimas conclusões e prefere focar-se em promessas de modelação perfeita, transparência e funcionalismo são os gatekeepers da linguagem do século XXI (KAK e WEST, 2023; BAJOHR, 2023). Isto é, as cinco ou seis companhias multinacionais que, diretamente ou através de empresas subsidiárias, controlam o desenvolvimento tecnológico de alto investimento representado pelos últimos avanços na inteligência artificial, exemplificado pelos grandes modelos da linguagem (LLMs, na sigla em inglês), e, para todos os efeitos, também pelos programas similares focados na geração automática de imagens. Qualquer bom prompt pode gerar imagens fascinantes. Em Variety, a diferença está na capacidade de Edgar Pêra para produzir imagens críticas (especulares e não “espetaculares”, no sentido debordiano) que permitem questionar até os próprios mecanismos e discursos tecnológicos de criação dessas mesmas imagens. No fim de contas, talvez especular através da imaginação da máquina e da nossa própria imaginação seja a única forma de subverter o mundo voraz das inteligências mais ou menos artificiais. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 107 Ministro Imaginar, especular, subverter Anexo Apresentação Variety é o título dado por Edgar Pêra a um conjunto de imagens concebidas com recurso a inteligência artificial que, segundo o autor, funcionam como heterónimos visuais de Fernando Pessoa. Inclui-se aqui apenas uma seleção desse corpo de trabalho mais vasto, realizado entre 2023 e 2024, ainda que se procure oferecer uma mostra ampla e o mais diversificada possível no que respeita às abordagens visuais. Para o seu trabalho, Pêra partiu de um mote dado por Pessoa em Erostratus: “Variety is the only excuse for abundance. No man should leave twenty different books unless he can write like twenty different men. [...] If he can write like twenty men, he is twenty different men” (PESSOA, 1967: 208-209; cf. 258, em tradução). A partir desse mote, podemos também perguntar: Quantos Pessoas há na inteligência artificial? Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 108 Ministro Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) Imaginar, especular, subverter 109 Ministro Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) Imaginar, especular, subverter 110 Ministro Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) Imaginar, especular, subverter 111 Ministro Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) Imaginar, especular, subverter 112 Ministro Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) Imaginar, especular, subverter 113 Ministro Imaginar, especular, subverter Bibliografia BAJOHR, Hannes (2023). “Whoever controls language models controls politics”. 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NOTA Este ensaio foi escrito no âmbito da investigação desenvolvida no Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa, Unidade I&D financiada por fundos nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia (https://doi.org/10.54499/UIDB/00500/2020). Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 114 Ministro Imaginar, especular, subverter BRUNO MINISTRO é investigador no Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa (U. Porto). É doutorado em Materialidades da Literatura (U. Coimbra). A sua investigação tem sido dedicada às múltiplas intersecções entre os estudos literários, a teoria dos meios e os estudos culturais, com ênfase na intermedialidade e nos estudos comparados dos média. Nestes contextos, tem trabalhado sobretudo com objetos híbridos da poesia experimental, copy art e literatura eletrónica. O principal objetivo da sua investigação tem sido gerar um entendimento abrangente e interdisciplinar do modo como as formas literárias se ligam a aspetos materiais e tecnológicas dos meios em que se inscrevem. BRUNO MINISTRO is a researcher at the Institute for Comparative Literature (University of Porto). He holds a Ph.D. in Materialities of Literature (University of Coimbra). His research has been dedicated to the multiple intersections between literary studies, media thery, and cultural studies, with an emphasis on intermediality and comparative media studies. In these contexts, he has primarily worked with hybrid objects of experimental poetry, copy art, and electronic literature. The main objective of his research has been to develop a comprehensive and interdisciplinary understanding of how literary forms engage with the material and technological aspects of the media in which they are situated. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 115 !"#$%&'#()$%#*+,#-.$/ !"#$%&'()&)*)+,)-."&/01%(),"2$340/)&*"5&/"1,"5& +"60/0)05&*%&7%55")&$%)608)*)&+"$&9':5)&;"5,)&<"(%5 !"#$%&'($)*+,-(($.&%/ !"#$#%&"'($)&%#$*$+)$)&,"#,-#.'//,$0/# *')'%)&1'#/),2&'/#34#567/$#8,/)$#9,('/0 !"#$%&'(&)*%"+ !"#"$%"&'()"$* "#$%&%'(! )#**(&+! !"#$%&'#( )%*+,$#-.$+! ,(-#.&*! /(.0102$0&*+! 345*&! 6(*7&! 8(9#*+! :$&'4;<(! 0%7#$*#90=701&+!>'&/7&;<(!/&$&!10%#9&? ,*&-./ @!&$70A(!B!'#'01&'(!C!.0A&;<(!#%7$#!&!/$('4;<(!%&$$&70-&!'#!)#**(&+!#9!/&$7014.&$!(*!1(%7(*! /(.010&0*+!#!(!10%#9&D!(!(EF#7(!1#%7$&.!'#!&%2.0*#!*<(!&.A4%*!G$&A9#%7(*!'#!49!A40<(!#*1$07(! /($!345*&!6(*7&!6(9#*!%(!H9E07(!'#!49&!&'&/7&;<(!7#.#-0*0-&!'&!*B$0#!!"#$%&'#/()%*+,$#-.$?! @!(EF#70-(!B!0'#%70G01&$!&*!G(%7#*!#!$#G.#70$!*(E$#!(!/$(1#**(!'#!7$&'4;<(!0%7#$*#90=701&!.#-&'(! &!1&E(!/#.&!&47($&? 0*12/%3& "#$%&%'(!)#**(&+!!"#$%&'#()%*+,$#-.$+!I#7#170-#!*7($0#*+!345*&!6(*7&!8(9#*+!J%7#$*#90(701! 7$&%*.&70(%+!"0.9!&'&/7&70(%? 45&6%"(6 :K#!&$701.#!0*!'#'01&7#'!7(!7K#!1(%%#170(%!E#7L##%!)#**(&M*!%&$$&70-#!/$('4170(%+!/&$7014.&$.N! 7K#!'#7#170-#!*7($0#*+!&%'!10%#9&?!:K#!1#%7$&.!(EF#17!(G!&%&.N*0*!1(%*0*7*!(G!*(9#!G$&A9#%7*! G$(9!&!*1$0/7!L$077#%!EN!345*&!6(*7&!8(9#*!&*!/&$7!(G!&!7#.#-0*0(%!&'&/7&70(%!(G!7K#!*#$0#*! !"#$%&'#/()%*+,$#-.$?!:K#!&09!0*!7(!0'#%70GN!7K#!*(4$1#*!&%'!$#G.#17!(%!7K#!/$(1#**!(G 0%7#$*#90(701 7$&%*.&70(%!4%'#$7&O#%!EN!7K#!&47K($? P Q&/0#%R&!S%0-#$*07C!'0!T(9&+!"&1(.7C!'0!3#77#$#!#!"0.(*(G0&+!I0/&$709#%7(!'0!Q74'0!U4$(/#0+!>9#$01&%0 #!J%7#$14.74$&.0? Celani Quaresma, realizador Não é por acaso que, dos textos fílmicos de Pessoa publicados há alguns anos por Patricio Ferrari e Claudia J. Fischer (PESSOA, 2011), os mais extensos e desenvolvidos se referem ao género thriller ou crime. De facto, o crescimento paralelo da popularidade do género nas esferas cinematográfica e literária não lhe deve ter escapado, e dado que grande parte da sua produção narrativa fragmentária está ligada ao género “policiário”, é fácil compreender por que razão escolheu precisamente esses temas para as suas experiências esporádicas no campo da sétima arte. O cinema é, por outro lado, um exercício de storytelling e, embora Pessoa seja geralmente considerado um contador de histórias falhado, é famoso por ter dedicado muito tempo, tinta e papel à arte de contar histórias. Por contraste, se sairmos dos limites das obras consideradas propriamente narrativas, apercebemo-nos de que a capacidade de Pessoa para contar uma história não era assim tão limitada. Basta pensar, para dar um exemplo óbvio, no vasto corpus de escritos dedicados às muitas vicissitudes dos heterónimos, que, embora sejam um fenómeno mais amplo, partilham vários aspetos com as personagens de um romance ou de um conto: um contexto, uma biografia, uma descrição física e psicológica, os acontecimentos que os envolvem, as interações mútuas, os diálogos. No caso da produção narrativa propriamente dita, nota-se, porém, um certo desequilíbrio a favor das secções relacionadas com a reflexão ou a teorização, como já acontece em Um Jantar Muito Original, ou em O Banqueiro Anarquista, ou ainda nas novelas da série Quaresma, Decifrador, a começar pela obra maior, “O caso Vargas”, que contém numerosos fragmentos dedicados a uma extensa teorização do protagonista sobre a “psychologia patológica” do criminoso (PESSOA, 2008: 90-124). Além disso, o interesse de Pessoa pela produção de histórias não é, obviamente, mais do que um reflexo da sua paixão por obras de ficção, que lia constante e avidamente, começando precisamente pelas detective stories. A mesma paixão que o terá levado a aproximar-se, ainda que de forma esporádica e muitas vezes também crítica, do cinema. Para além dos já citados textos editados por Patrício Ferrari e Cláudia Fischer, referências à relação entre Pessoa e o cinema podem ser encontradas na biografia de Richard Zenith, que escreve: “Sensível aos novos desenvolvimentos nas tecnologias da comunicação, Pessoa também pensou em enveredar pela actividade cinematográfica, por via de uma empresa titulada ECCE film […] mas a ECCE film nunca passou de um esboço para um logótipo perdido num conjunto de documentos [leia-se: o espólio pessoano]” (ZENITH, 2022: 703-704). Se a relação de Pessoa com o cinema foi ocasional, mas ainda assim presente, a relação do cinema com Pessoa também foi, por muitos anos, episódica, embora crescentemente mais forte. Agora existem produções cinematográficas e de banda desenhada feitas a partir das suas criações narrativas, e, sobretudo, a partir das histórias policiais, um dos géneros fundadores da arte do cinema, como, por exemplo, Não Sou Nada – The Nothingness Club, de Edgar Pêra. Este filme não é propriamente policial, Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 117 Celani Quaresma, realizador mas se insere largamente no género thriller e explora as potencialidades narrativas presentes no drama-em-gente, acima referidas. Na escrita do guião do filme colaborou também a escritora Luísa Costa Gomes, que já tinha estado envolvida em projetos audiovisuais relacionados com a obra de Pessoa, embora (ainda) não concluídos. Em particular, tal como o refere numa entrevista de 2008, falou numa adaptação televisiva da série policial Quaresma, Decifrador1, originalmente produzida na RTP. O projeto não se concretizou, mas graças ao contacto direto com a autora, foi possível ter acesso a alguns pequenos excertos do guião. O que nos interessa aqui não é fazer uma análise global do projeto, que está incompleto (embora pareça estar em vias de ser renegociado), mas partir dos fragmentos que a autora disponibilizou para fazer uma primeira reflexão sobre o processo criativo que permitiu a reelaboração da obra de Pessoa no sentido da sua tradução intersemiótica. Antes de entrar na análise do processo de adaptação levado a cabo por Luísa Costa Gomes (ver o ANEXO), vale a pena dar uma breve informação sobre a relação de Pessoa com a literatura policial e as séries narrativas ligadas à figura de Quaresma. Sobre a questão do valor que as detective stories tinham para Pessoa talvez não seja necessário voltar em pormenor; basta aqui recordar que o seu interesse pelo género tem raízes profundas e remonta, como o próprio admite, à infância (FREITAS, 2016: 119-120). Evidências de uma continuidade de leitura e de frequentação podem também ser encontradas em livros do género ainda conservados na Biblioteca Particular, entre os quais figuram obras de Chesterton, van Dine, Conan Doyle, Fielding, Morrison e o muito amado Poe, para citar apenas alguns (PESSOA, 2006: 1516; FREITAS, 2016: 122-124). Também do ponto de vista produtivo, a diacronia é muito ampla, indo desde os primeiros esboços de contos datados de 1903 ou 1904 (FREITAS, 2016: 169) até 1935 quando, como se sabe, Pessoa escreve a Adolfo Casais Monteiro, na carta em que trata da génese dos heterónimos: Quando às vezes pensava na ordem de uma futura publicação de obras minhas, nunca um livro do género de Mensagem figurava em número um. Hesitava entre se deveria começar por um livro de versos grande — um livro de umas 350 páginas —, englobando as várias subpersonalidades de Fernando Pessoa ele-mesmo, ou se deveria abrir com uma novela policiária, que ainda não consegui completar. (PESSOA, 1999: 338) É muito provável que o texto referido seja um dos atribuídos à série Quaresma, Decifrador, quase certamente “O caso Vargas”. Cf. “Congresso/Pessoa: Luísa Costa Gomes adapta novelas policiárias de Quaresma, Decifrador para televisão”. (28-11-2008; Jornal de Notícias): https://www.jn.pt/feeds/lusa/congressopessoa-luisa-costagomes-adapta-novelas-policiarias-de-quaresma-decifrador-para-televisao-1051249.html/. 1 Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 118 Celani Quaresma, realizador A série representa o esforço mais extenso e continuado de Fernando Pessoa na escrita de histórias policiais. No espólio pessoano encontramos referências a nada menos do que catorze títulos (FREITAS, 2016: 205), de treze dos quais dispomos de fragmentos mais ou menos extensos, a que se juntam os pertencentes a esse texto introdutório intitulado “Prefácio a Quaresma” (PESSOA, 2008: 31-38). Trata-se, pois, de um corpus quantitativamente muito vasto, que representa provavelmente a maior evidência de escrita explícita ou diretamente narrativa produzida por Pessoa. Finalmente, no que diz respeito à adaptação audiovisual, contactada por e-mail, quando questionada especificamente sobre a sua abordagem ao argumento, Luísa Costa Gomes respondeu: Sei que na altura falei bastante com a Ana Maria Freitas, que pesquisou e organizou a edição das novelas policiárias de Pessoa. E também tive a colaboração do Victor Calvete, que foi comigo conversando, sobretudo no que diz respeito às questões lógicas, “raciocinadoras”, de cruzadismo e enigmas detectivescos em geral. […] Se bem me lembro, usei no guião material de quatro das novelas, que são ou incipientes ou incompletas. A mais completa é uma tematização do “quarto fechado” do Poe, e esse é um fio condutor do guião – o quarto fechado onde Quaresma vive a raciocinar, o quarto fechado onde acontece o crime, o quarto fechado onde os vizinhos existem misteriosamente. O conto explicitamente mencionado é “O caso do quarto fechado”, cujo ponto de partida é “The murders in the Rue Morgue”, de Edgar Allan Poe. Por outro lado, não há referências diretas às outras três novelas, a não ser a de que são “incipientes ou incompletas”; tendo em conta que esta última é uma caraterística comum a todas as novelas da série, talvez possamos inferir que se refere a algumas das menos extensas, ou mais em fase de esboço, elemento que pode ter favorecido uma maior liberdade criativa, bem como um desafio mais interessante. A autora disponibilizou generosamente algumas páginas do guião, das quais se podem extrair mais reflexões sobre o trabalho de reformulação ou, se preferir, de tradução que realizou. Falo de tradução referindo-me, naturalmente, àquilo a que Jakobson chamou “intersemiotic translation or transmutation”, que consiste numa “interpretation of verbal signs by means of signs of nonverbal sign system” (JAKOBSON, 1966: 233). O caso da transição do livro para o filme, através da intermediação híbrida do guião, enquadra-se nesta definição, uma vez que envolve uma mudança de fronteira intersemiótica entre uma linguagem exclusivamente verbal e um sistema de signos mais complexo, que combina língua, imagem e música. Peeter Torop chama também à tradução intersemiótica extratextual ou deverbalizante: [...] legata alla trasmissione di un testo in linguaggio naturale mediante codici diversi, verbali e non verbali. Il testo esce da sé stesso, per poi scorrere lungo vari canali, e la comparazione di prototesto e metatesto (per esempio, di un romanzo e della sua traduzione filmica) esige Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 119 Celani Quaresma, realizador un’introduzione di parametri diversi per innalzare il livello di raffrontabilità. Nella traduzione deverbalizzante cambia non solo il testo, ma anche la sua natura. (TOROP, 2010: 12) Trata-se, portanto, de uma “passagem de estado” extremamente delicada, que exige, sem dúvida, um nível de interpretação crítica e criativa muito avançado. Num caso como este, a passagem de uma linguagem (verbal) para outra (audiovisual) implica uma mudança estilística, mas também de fruição, que influencia fortemente o resultado final. Daí a necessidade, expressa por Luísa Costa Gomes, de usar livremente os materiais disponíveis, para recriar não só uma história, mas também uma rede de referências intra e intertextuais. Um exemplo concreto pode ser encontrado na primeira das cenas da adaptação disponibilizada pela autora. Quaresma está em casa, sentado, a ler. Ao seu lado está Eduarda, uma rapariga de dezoito anos, personagem de que não há vestígios nas histórias de Pessoa, embora, juntamente com a mãe que aparece pouco depois, seja provavelmente um reflexo da filha da dona da casa do protagonista, que aparece no conto “A carta mágica” (PESSOA, 2008: 231). Eduarda está a ler um livro em inglês, que não é outro senão The Murders in the Rue Morgue, de Poe. O seguinte diálogo tem lugar entre as duas personagens: QUARESMA: Então? EDUARDA: Muito bom. QUARESMA: Quantos erros detectou? EDUARDA: Dois. Grandes. QUARESMA: Primeiro. EDUARDA: A coincidência. Quando se dão os crimes na Rua Morgue, vão a passar nada menos do que cinco estrangeiros de países diferentes! QUARESMA: E cada um deles interpreta o que ouviu à sua maneira, de acordo com a sua própria língua. Cinco estrangeiro é de facto muita coincidência. EDUARDA: (com ironia) Seria algum congresso, porventura. QUARESMA sorri. Tem orgulho na sua discípula. QUARESMA: Segundo erro? EDUARDA: A mola na janela! QUARESMA bate com a mão na perna, satisfeito. QUARESMA: A mola na janela! Isso mesmo, Maria Eduarda! Quando o bicho foge depois de ter assassinado as duas mulheres, a janela fecha-se por dentro em virtude de uma mola, dando a ilusão de que não há saída! A mola na janela é um truque indigno do nosso grande Edgar Allan Poe! EDUARDA: (sorri, satisfeita, baixa os olhos). Quem procurar este diálogo num dos contos da série ficará desiludido; a fonte direta é, de facto, outra e coincide com alguns fragmentos do ensaio pessoano Detective Story, também editado por Ana Maria de Freitas e, mais tarde, por Gianluca MIRAGLIA (2018). No texto, Pessoa afirma que “A perfect detective story has not yet been written, though the Murder in the Rue Morgue of Poe comes very near the ideal” Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 120 Celani Quaresma, realizador (PESSOA, 2012: 252); no entanto, identifica uma série de erros na obra, que coincidem precisamente com os identificados por Eduarda. O primeiro erro é assim identificado por Pessoa: Coincidence is always disastrous, but it is peculiarly irritating when, as indeed sometimes happens, it is unnecessary. The classic lapse in this respect is in Poe’s Murders in the Rue Morgue, where a unique assortment of foreigners happens to be passing the house where the crime is committed. And mere Frenchmen, each supposing a different language to be muttered, would have amply and naturally served the author’s purpose. One foreigner, perhaps, would not have been scandalous. (PESSOA, 2012: 239; BNP/E3, 100-30r) Num outro trecho do mesmo ensaio, o segundo erro é igualmente detetável: Edgar Allan Poe himself, great as was his imagination, failed overcome this obstacle. He ought to have reasoned that, if he could not overcome this obstacle, he would not create it at all. In the Murders in the Rue Morgue, he very lamely attempts to make the crime obscure by the introduction of a spring in a window, when such a spring was not necessary. (PESSOA, 2012: 246; BNP/E3, 146-53r) O mesmo conceito é também reiterado noutra passagem: “The Murders in the Rue Morgue, strong and original as it is, has nevertheless a few faults. One of these is the introduction of a spring in a window, a mechanical device, palpably violating our third rule” (PESSOA, 2012: 251; BNP/E3, 146-78r). O tema da coincidência, como vimos o alvo polémico de Pessoa (e de Quaresma), regressa também na segunda cena fornecida por Luísa Costa Gomes, que de facto, mais uma vez por e-mail, escreveu: “As cenas não são muito características, mas têm em comum o tema da coincidência na investigação, um assunto eminentemente literário na construção da narrativa policial” (comunicação pessoal). Esta segunda cena apresenta outra personagem recorrente na série, o chefe Manuel Guedes: CHEFE GUEDES: O senhor esteve ontem nas Picoas, junto à casa do malogrado Jorge Branco. MÁRIO: Ia a passar! Foi um acaso! CHEFE GUEDES: Encontrou o telefone que foi atirado pela janela. MÁRIO: Encontrei! Isso é crime? CHEFE GUEDES: Não, de modo nenhum. Já o facto de irem a passar exactamente naquele momento... é uma coincidência que deve ser tirada a limpo! MÁRIO: Apenas uma coincidência que é uma coincidência. CHEFE GUEDES: Não conhecia a vítima? MÁRIO (quase a chorar): Não! Claro que não! A circunstância do telefone atirado pela janela remete-nos imediatamente para uma história específica, que na edição de Ana Maria de Freitas tem o duplo título de “Tale Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 121 Celani Quaresma, realizador X / A morte de D. João” (PESSOA, 2008: 189-213). O conto começa com um objeto a voar de uma janela do segundo andar, partindo o vidro: Um dos rapazes, ou mais atrevido ou mais bêbado, metera-se dentro do jardim, e, talvez com aquele instinto especial que os bêbados possuem, estava remexendo ao pé da grade que separava a casa da rua. De repente teve uma exclamação: – E-na pai, olha pr’a isto! Ó sr. guarda, aqui está a máquina que estoirou a janela! E ergueu, com certo cuidado, qualquer coisa de entre a base dos arbustos apertados que se encostavam ao gradeamento. Todos se aproximaram, e, a princípio, não se via na cara de ninguém que percebesse, através do escuro, que objecto era o que o achador erguia. Mas de perto havia luz bastante para todos verem, e pasmaram todos. – Essa é boa, disse o guarda. – Um telefone! (PESSOA, 2008: 192; BNP/E3, 274 P-3r) Figs. 1 e 2. Trecho de Quaresma, “Tale X” (BNP/E3, 274 P-2r e 3r). A personagem do rapaz não tem nome no conto, mas é evidente que coincide com o Mário Louro do guião. Por outro lado, a vítima também tem um nome no texto de Pessoa, que nalguns fragmentos é Valle e noutros precisamente Branco, enquanto o crime se passa em Picoas. A cena do interrogatório de Mário não está presente no conto, mas é relevante por outra razão, nomeadamente a presença do chefe Guedes, o companheiro de Quaresma, o seu Dr. Watson. Da cena, depreendemos algo do seu carácter, dos seus modos diretos, “bruscos e frontais”, que lhe valeram a alcunha de “O Guedes bruto” (PESSOA, 2008: 220; FREITAS, 2016: 259); trata-se de uma figura que é o contrapeso ao magro, esquelético e pálido Quaresma: Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 122 Celani Quaresma, realizador As duas personagens são opostas física e psicologicamente, mas, como em muita aliança de opostos, completam-se, pois a actividade física de Guedes permite a actividade mental de Quaresma, a sua qualidade estática. Se um personifica a actividade intelectual, em que o corpo físico fica esquecido, o outro personifica o material, a acção, a emoção e o impulso. Manuel Guedes é o Sancho Pança do D. Quixote Abílio Quaresma. Dá-lhe humanidade e puxa-o para o plano terreno, fornece ao leitor episódios cómicos que suavizam a frieza das longas exposições. (FREITAS, 2016: 259) É muito provável que seja esse o papel que a personagem adquire na adaptação de Luísa Costa Gomes. Guedes é também o protagonista da última cena proporcionada pela autora, em que a ação se desloca para o Palácio do Governo Civil, onde está instalada a Segunda Secção de Investigação Criminal, de que é membro. E aqui é convocado pelo Diretor Geral, numa cena que nos faz compreender, através da sua atitude recalcitrante, algo mais do seu carácter: O CHEFE GUEDES entra e sobe ao primeiro andar. Quando vai a entrar no Gabinete, o AGENTE NORONHA aborda-o, com alguma urgência. AGENTE NORONHA: O senhor director... CHEFE GUEDES: O que é que ele quer? O AGENTE NORONHA faz uma expressão que significa que não sabe. CHEFE GUEDES: Diz que já lá vou. O AGENTE NORONHA não arreda pé. CHEFE GUEDES: Tem de ser agora? O AGENTE NORONHA faz-lhe sinal para que o acompanhe. A breve conversa entre Guedes e o Diretor Gomes é a cena clássica em que um superior pede ao subordinado respostas sobre os resultados da investigação, que evidentemente não são satisfatórios: DIRECTOR GOMES: Vestígios? Nenhum. Indícios? Nenhum. Pistas? Nada. Digo bem? CHEFE GUEDES: Já tenho lá uma equipa a trabalhar. Antes do mais, quis tirar a limpo o Cabo Reis. Não seria o único oficial de polícia a cair fora da lei. Este pequeno fragmento retoma, de forma concisa, o capítulo II da novela, embora aqui o chefe não se chame Guedes, mas Tavares. Mais uma vez, a investigação parece ter-se centrado inicialmente no cabo Reis, ou seja, no polícia que se encontrava no local do crime quando o telefone foi atirado, mas que parece estar acima de qualquer suspeita. Serão as subsequentes investigações inconclusivas que levarão ao envolvimento de Quaresma, que resolverá o mistério, mas por puro gozo, já que, numa reviravolta final, não entregará o culpado à justiça. Em conclusão, as cenas fornecidas por Luísa Costa Gomes, embora breves e aparentemente desconexas, lançam luz sobre um processo específico de tradução Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 123 Celani Quaresma, realizador intersemiótica, que parte de uma análise cuidada dos textos literários, mas também dos textos críticos, bem como de um intercâmbio com especialistas, para chegar a uma reelaboração que cria segmentos não presentes nos textos originais sem trair o seu espírito, mas procurando levá-los a um grau de completude que esses textos não possuem. A inclusão de elementos não só das novelas da série Quaresma, Decifrador, mas também do ensaio Detective Story permite-nos vislumbrar uma leitura aprofundada, competente e conhecedora da personagem e do seu autor, sugerindo plasticamente a ideia de que, ouvindo e vendo Quaresma, estamos, no entanto, perante uma outra “variante” de Pessoa. Como escreveu Ana Maria de Freitas, “A figura de Quaresma e o modo como é mais do que personagem e menos do que heterónimo é reveladora do processo pessoano de construção da obra. A ficção das personagens e a realidade do autor interpenetram-se e renegam convenções” (FREITAS, 2016: 324). Se Quaresma representa assim mais uma faceta da arte criativa de Pessoa, a tradução para a linguagem audiovisual da série representa uma nova maneira de entrar em diálogo com a sua inesgotável obra, bem como uma forma de concretizar de algum modo um dos muitos projetos falhados de Pessoa, nomeadamente o de escrever para cinema. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 124 Celani Quaresma, realizador ANEXO Nota de intenções (Luísa Costa Gomes) As treze “novelas policiárias” da série Quaresma, de Fernando Pessoa, foram finalmente publicadas em 2008 pela Assírio & Alvim com texto fixado por Ana Maria Freitas. Embora na sua grande maioria fragmentárias e inacabadas, as novelas são um desafio demasiado provocador e interessante para ser ignorado. Primeiro ponto de interesse: é óbvio, ao ler as elaborações de Abílio Quaresma, o Decifrador, que Pessoa procurava escrever não apenas mais um policial, mas inventar ab ovo o Grande Policial Português e estabelecer os fundamentos da “requalificação” literária de um género considerado menor. É aparente que a sua maneira de fazer policial procura a convenção do género, lugares comuns como “crime no quarto fechado”, “o documento roubado”, etc.; mas, por outro lado, e porque se trata de um escritor maior, com o talento da inovação permanente, Pessoa procura a fuga à convenção. Do ponto de vista da escrita, temos por um lado um registo coloquial, com diálogos rápidos e credíveis, e por outro, passagens cujo valor literário mais ambicioso é indiscutível. Segundo ponto de interesse: a personagem criada por Fernando Pessoa, Abílio Quaresma, é um original. Não é simpático, não é sociável, não faz compromissos. Mas também não é um intelectual, não é um artista. É um charadista que conhece bem as regras dos enigmas e das adivinhas. A sua força é esse tipo de inteligência minuciosa e paciente, que ele aplica na “construção do facto essencial” à investigação. O Chefe Guedes, o “Guedes Bruto” é a força primária que faz o contraponto ao depuramento mental de Quaresma. Terceiro ponto: embora pertencendo à família dos raciocinadores como Dupin e Holmes, Quaresma é absolutamente português e é absolutamente da Baixa lisboeta. Ninguém escrevia policiais desta maneira em Portugal e durante muito tempo, não escreveu. Fazer género, mas adaptando-o às condições humanas e até judiciais existentes no Portugal dos anos dez e vinte era o intento de Pessoa. Mas a série Quaresma é também uma homenagem à Idade de Ouro do policial e a um género que na altura tinha pouco mais de cinquenta anos. Arthur Conan Doyle, Arthur Morrison, Austin Freeman, Agatha Christie, entre muitos outros, estabeleciam então os cânones de um dos géneros mais populares de sempre. Das treze novelas escolhi três (fragmentárias) que poderão ligar-se entre si e constituir uma longa-metragem. A primeira, Tale X – A Morte de D. João, já serviu de base ao episódio-piloto de uma série televisiva cujo projecto nunca chegou sequer a ver a luz de uma sala de reuniões em qualquer dos canais estatais. É um enredo de típico “quarto fechado” e começa de forma espectacular com um telefone a ser atirado da janela de um primeiro andar. Gira em volta do inexplicável e brutal homicídio do dono da casa. A segunda novela é O Desaparecimento do Dr. Reis Gomes, caso intrigante em que Quaresma tem uma prestação raciocinante quase delirante, mas afinal absolutamente adequada. A terceira é a novela com o título Crime, que põe em cena Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 125 Celani Quaresma, realizador o suicídio / homicídio involuntário de Augusto Monteiro, das Juventudes Católicas, conhecido de bairro de Quaresma; a novela alude a um Portugal raras vezes tematizado, dividido em livres-pensadores e jesuítas, e em que se adivinha a confrontação política, através de uma personagem obscura que será um emigrado político em Espanha. Talvez seja possível ainda ligar com esta o fragmento relativo ao Assassinato de Sidónio Pais. As três novelas apontam para algumas das áreas temáticas menos celebradas em Pessoa e que nos dão dele, através de Quaresma, uma imagem nova e positiva: o interesse pelo policial puro e duro, do raciocínio abdutivo, da construção do facto e a luta pedagógica contra o obscurantismo, o clericalismo, as grandes evidências morais que se reduzem, afinal, a preconceitos – é o Pessoa racional, pensador, quase professor de lógica e anti-ocultista; na segunda novela temos a desmistificação do secretismo e do obscurantismo, a atenção ao subterrâneo das aparências, ao inimaginável que se passa no andar ao lado, em casa do vizinho de vida dupla – é uma reflexão sobre a moralidade dúplice e os códigos sociais vigentes. E a terceira novela permite-nos ver o seu interesse pela luta política, pondo em cena duas famílias de quadrantes opostos, e a influência imensa da Igreja nas consciências. Na terceira novela o crime não é propriamente um crime, mas é antes um pecado. Do ponto de vista da escrita do argumento, constituirá um desafio interessante a integração no enredo destes três fios condutores, que aliás são desencadeados em momentos diferentes. O objectivo é construir uma história bem estruturada, ancorada na vida do protagonista, a quem o Chefe Guedes recorre, em cujo prédio se dá um desaparecimento, cujo conhecido aparece morto no rio. É Quaresma a força do filme como personagem e como motor do argumento. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 126 Celani Quaresma, realizador Bibliografia CLÜVER, Claus; WATSON, Burton (1989). “On intersemiotic transposition”. Poetics Today, vol. 10, nº. 1, Primavera, pp. 55-90. FREITAS, Ana Maria de (2016). O Fio e o Labirinto. A Ficção Policial na Obra de Fernando Pessoa. Lisboa: Colibri. FRIAS, Joana Matos (2008). “Cinema”. Dicionário de Fernando Pessoa e do Modernismo Português. Fernando Cabral Martins (coord.). Lisboa: Caminho, pp. 162-167. JAKOBSON, Roman (1966). “On linguistic aspects of translation”. 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SIMONE CELANI is Full Professor of Portuguese and Brazilian Language and Translation at the University of Rome La Sapienza. His main areas of research are related to linguistic historiography, translation, literary linguistics, philology of contemporary works (particularly Fernando Pessoa), and Lusophone Africa. He has more than a hundred publications to his credit; among the most recent ones are O Espólio Pessoa (INCM, 2020) and, in collaboration, Culture di lingua portoghese (Hoepli, 2023). Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 128 !"##$%&'(%)#*+,'+$))"- . ! #$%#%&"'("!"#$%#&$!'(')"&*+,-$.%" .,+'./"'("012&-"3%&/-"4%5(& !"#$%&'()*(+%$,-./&&+$0!"#$%&!"#$%#&$!'(''&$()$"*+,-./& ,01..()*23&"3&4$5,2&6#,%2&7#8.,1 !"#$%&'()(*+, !"#$%&'( "#$%&%'(!)#**(&+!,$&%*-./0.(%%&1.02+!345*&!6(*0&!7(8#*+!9/2%&$.(+!:22/$.04$#+!;#4!1.002$&.$#< *($+,( =!>&$0.$!'#!1&!%(0.(%!'#!0$&%*-./0.(%%&1.02!?9!"#$@7%&!"'+!ABCCD+!(%!*#!>$(>(*#!'E&%&1F*#$!!"#$ %#&$!'('+!*/2%&$.(!.%2'.0!'#!345*&!6(*0&!7(8#*!>$2>&$&0(.$#!&4!-.18!'EG'H&$!)I$&!!"#$%#&$ !'(')$*+,$!#-+./0/,11$23&4 ?ABAJD< G%K.*&H2!/(88#!4%#!-./0.(%!*#/(%'#!21&L($2#!#%!$2-2$#%/# M! 1&! -./0.(%! >$#8.N$#! O4#! /(%*0.04#! 1EP202$(%F8.#! >#**(#%%#+! 1#! */2%&$.(! #*0 'E&L($'! &%&1F*2! '&%*!*&!'.8#%*.(%!%&$$&0.K#+!O4#!/&$&/02$.*#%0!M!1&!-(.*!'#*!2/&$0*!*>#/0&/41&.$#*!>&$!$&>>($0! M!1E4%.K#$*!>#**(#%+!#0!4%!/#$0&.%!%(8L$#!'#!>&**#$#11#*!'.2H20.O4#*!$#1.&%0!1#*!'#4Q!8(%'#*! -./0.(%%#1*<! R&%*! 4%! *#/(%'! 0#8>*+! (%! 20&L1.0! /(88#%0! 1E2/$.04$#! 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Concebido como uma ficção secundária elaborada em referência à ficção primária que constitui a heteronímia de Pessoa, o guião é primeiro analisado na sua dimensão narrativa, caracterizada tanto por desvios espetaculares em relação ao universo pessoano, quanto por uma série de pontes diegéticas que ligam os dois mundos ficcionais. Em segundo lugar, estabelecemos como a escrita de Não Sou Nada se baseia em um trabalho altamente concertado de empréstimos, edição e subversão a partir do material textual de Pessoa, o que determina a dimensão intrinsecamente textual da relação transficcional implementada por Luísa Costa Gomes. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 130 Salado Pessoa transfictionnel Un singulier devenir fictionnel caractérise l’œuvre plurielle de Fernando Pessoa. Les écrits de Pessoa ont en effet engendré un nombre considérable de fictions qui développent, prolongent, transposent, visitent et revisitent ce vaste corpus, contribuant à lui conférer un dynamisme propre, que ce soit sur le plan de la création littéraire ou cinématographique1. Ce phénomène, qui s’inscrit globalement dans le domaine de la « transfictionnalité » étudié par Richard Saint-Gelais dans son essai Fictions transfuges2, peut certes s’observer à propos de nombreuses œuvres littéraires ou filmiques, mais il rencontre des conditions spécifiques, et assurément favorables, dans le cas de l’œuvre pessoenne, du fait de deux de ses caractéristiques fondamentales : d’une part la démultiplication des figures d’auteurs fictifs, qui permet de considérer le dispositif hétéronymique comme une fiction en soi, d’autre part l’inachèvement constitutif de cette œuvre. L’hétéronymie, surtout quand on l’envisage dans son extension maximale3, place toute l’œuvre pessoenne sous le signe de la fictionnalité, dès lors que cette œuvre se présente pour une grande part comme la production de personnages d’auteurs fictifs. Dotés d’un certain nombre des attributs typiques du personnage de fiction, à commencer par le nom propre, les auteurs inventés par Pessoa composent un vaste répertoire de personnages potentiellement disponibles pour des développements fictionnels ultérieurs 4. Développements qui sont d’autant plus suscités par le dispositif hétéronymique que celui-ci contient déjà, au-delà de la nature fictive des auteurs, des éléments fictionnels, comme le suggère la formule « drama em gente » à laquelle recourt Pessoa pour présenter ce dispositif dans la « Tábua bibliográfica » qu’il donne à la revue Presença en 19285. La mise en place de tout un système relationnel entre les trois hétéronymes « de plein droit » que sont Caeiro, Reis et Campos, de même que l’implication de Pessoa en personne dans ce système de relations où il apparaît au même degré de réalité, c’est-à-dire de fictionnalité, que les autres protagonistes, fondent en fiction l’hétéronymie, dont le déploiement En témoignent, pour s’en tenir à des exemples canoniques, le roman O Ano da morte de Ricardo Reis (1984) de José Saramago ou le récit Requiem (1991) d’António Tabucchi et leurs adaptations cinématographiques respectives par João Botelho (2022) et Alain Tanner (1998). 1 Dans l’introduction de cet essai, Richard Saint-Gelais propose la définition suivante : « Par ‘transfictionnalité’, j’entends le phénomène par lequel au moins deux textes, du même auteur ou non, se rapportent conjointement à une même fiction, que ce soit par reprise de personnages, prolongement d’une intrigue préalable ou partage d’univers fictionnel » (SAINT-GELAIS, 2011: 7). 2 Selon cette conception étendue de l’hétéronymie, on considérera l’ensemble des auteurs fictifs comme faisant partie de la fiction hétéronymique pessoenne, y compris Fernando Pessoa lui-même quand il est mentionné dans le discours d’un de ses hétéronymes, comme c’est le cas par exemple dans les Notas para a recordação do meu mestre Caeiro (algumas delas) signées du nom de Álvaro de Campos et publiées dans Presença, n.º 30, Jan.-Fev. 1931 (PRESENÇA, tomo II, 1993). 3 4 Ce répertoire est disponible dans PESSOA (2013a). « Tábua bibliográfica » paraît dans le numéro 17, Dez. 1928, de la revue publiée à Coimbra (PRESENÇA, tomo I, 1993: 10). 5 Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 131 Salado Pessoa transfictionnel s’effectue non seulement par le jeu des attributions textuelles aux différents auteurs fictifs, mais aussi par les textes qui développent la fiction du « drama em gente »6. À cet égard, on peut tenir l’invention hétéronymique et les développements diégétiques que lui a donnés Pessoa comme la fiction première à partir de laquelle des fictions secondes sont susceptibles d’entrer en relation transfictionnelle, selon le principe de « migration » des personnages et des données diégétiques d’un monde fictionnel à un autre.7 Outre sa nature fictionnelle liée à l’hétéronymie, l’œuvre de Pessoa est marquée par sa condition d’inachèvement, autre caractéristique propice à des prolongements transfictionnels. L’abondant personnel fictif pessoen nous est en effet parvenu sous la forme d’un work-in-progress marqué à la fois par l’incomplétude et l’instabilité : incomplétude des données diégétiques associées aux personnages d’auteurs fictifs, dont certains ont à peine été esquissés par leur créateur, instabilité de ces données elles-mêmes, comme l’attestent par exemple les variations dans les attributions d’autorité des textes. Autrement dit, pour qui s’empare de ces personnages afin d’en « faire fiction » à son tour, les possibilités de redistribution des cartes sont sans doute plus ouvertes que si le point de départ du jeu transfictionnel était une œuvre close présentant un univers diégétique cohérent et achevé.8 Ce sont ces possibilités qu’explorent deux œuvres qui ont récemment enrichi le corpus des fictions « post-pessoennes » : le film d’Edgar Pêra, Não Sou Nada. The Nothingness Club (2023) et le scénario inédit de Luísa Costa Gomes qui a précédé ce Les Notas d’Álvaro de Campos précédemment mentionnées sont tout à fait représentatives de la façon dont s’est déployée la fiction pessoenne de l’hétéronymie : elles donnent consistance aux personnages d’auteurs fictifs en rapportant des éléments concernant leur vie, les circonstances dans lesquelles ils se sont fréquentés, et les échanges auxquels leurs rencontres ont donné lieu. Dans ce texte, Pessoa vu par Campos apparaît bien avec le même statut ontologique que les autres hétéronymes mentionnés – Caeiro, Reis, ou Mora –, il est un personnage parmi d’autres. Que le Pessoa qui apparaît dans la fiction hétéronymique ne soit ni plus ni moins réel que les hétéronymes est d’ailleurs suggéré dans la « Tábua bibliográfica » publiée quelques mois avant les Notas dans la même revue Presença : « (Se estas tres individualidades são mais ou menos reais que o próprio Fernando Pessoa — é problema metafísico, que este, ausente do segredo dos Deuses, e ignorando portanto o que seja realidade, nunca poderá resolver.) » (PRESENÇA, tomo I, 1993: 10). 6 C’est par le terme de « migration » que Richard Saint-Gelais spécifie le phénomène de transfictionnalité par rapport au phénomène d’hypertextualité analysé par Gérard Genette dans Palimpsestes. La littérature au second degré (GENETTE, 1982) : « L’hypertextualité est une relation d’imitation et de transformation entre textes ; la transfictionnalité est une relation de migration (avec la modification qui en résulte presque immanquablement) de données diégétiques » (SAINT-GELAIS, 2011: 10-11). 7 Il va de soi que les notions d’œuvre « close » ou d’univers diégétique achevé sont à nuancer : tout monde fictionnel est affecté d’une part d’incomplétude, aucune description exhaustive de monde n’étant possible. Toutefois, le haut degré de fragmentation de l’œuvre plurielle de Pessoa la rend plus disponible que d’autres à des opérations transfictionnelles, dans la mesure où les contraintes liées à la fiction première sont moindres qu’elles ne le sont dans le cas d’un roman publié de Flaubert ou de Zola par exemple, où le caractère achevé de la diégèse conditionne davantage ces opérations. 8 Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 132 Salado Pessoa transfictionnel film, Não Sou Nada, daté octobre 2015 / Juillet 20189. Considérant que ce texte constitue une œuvre en soi, indépendamment de l’usage partiel qui a pu en être fait pour le film ensuite, on se propose ici d’interroger les formes que prend le processus transfictionnel dans le seul scénario de Luísa Costa Gomes. Après un premier temps consacré à la diégèse, aux écarts mais aussi aux liens que celle-ci manifeste par rapport aux données de la fiction hétéronymique pessoenne, on verra ensuite comment Luísa Costa Gomes manipule les écrits de « Fernando Pessoa & Companhia Heterónima »10 dans son propre texte, examen qui nous permettra de caractériser la transfictionnalité mise en œuvre dans le scénario comme un jeu littéraire d’une grande sophistication, fondé sur des opérations d’emprunts, de montage, et parfois de détournement du matériau textuel mobilisé par l’écrivaine.11 Mise en intrigue : Campos revisité Au commencement était Campos : les mots du titre, Não Sou Nada, inscrivent au seuil du texte la prépondérance de l’hétéronyme dont l’un des plus célèbres poèmes, « Tabacaria », s’ouvre précisément par ces trois mots. Le caractère principiel de Campos est confirmé par la première séquence du scénario, qui montre l’élégant Ingénieur débarquant le premier du Lusitânia-Sud Express à la gare du Rossio, suivi de près par Charles Anon et Alexander Search (COSTA GOMES, 2015-2018: scènes 2-3). C’est avec l’arrivée de Campos que va s’enclencher la diégèse, que diverses indications du scénario permettent de situer au début des années vingt12. A cet égard, un sous-titre possible pour le récit imaginé par Luísa Costa Gomes Le générique du film porte l’indication suivante : « Argumento. Luísa Costa Gomes & Edgar Pêra ». Cette présentation corrobore l’hypothèse que le scénario original a été remanié pour le film, qui, de fait, présente des différences très sensibles, sur le plan narratif et dans les dialogues, avec le texte de Não Sou Nada. L’analyse de ces différences mériterait une étude spécifique qu’on ne mènera pas dans le cadre de cet article exclusivement consacré au scénario. 9 On reprend ici la didascalie de la scène 7 : « Plano da porta da casa de FERNANDO PESSOA. É uma porta de cariz comercial. As letras negras sobre o vidro branco fosco dizem: FERNANDO PESSOA & COMPANHIA HETERÓNIMA » (COSTA GOMES, 2015-2018). 10 Plusieurs scénarios de Pêra ont été écrits à partir du scénario de Gomes. Il faut également avoir à l’esprit que le film résulte d’un important travail de montage effectué à partir d’un nombre d’heures de tournage très supérieur à la durée du film lui-même. 11 On reprend ici la didascalie de la scène 2 qui précise que Campos a « trinta e poucos anos », ce qui permet de situer la scène au début des années vingt, si l’on tient compte de la date de naissance attribuée par Pessoa à son hétéronyme, qui a vu le jour à Tavira le 15 octobre 1890 ; cette hypothèse est confirmée à la fois par la didascalie qui ouvre la scène 7, où il est également précisé que « PESSOA vai nos trinta e poucos anos », et par l’échange qui suit entre Campos et Pessoa, quand ce dernier déclare, en référence à la première Guerre Mondiale : « A guerra já veio et já foi ». En situant dans son scénario le retour de Campos à Lisbonne au début des années vingt, Luísa Costa Gomes a donc repris une donnée de la fiction hétéronymique pessoenne, fiction seconde et fiction première coïncident sur ce point. 12 Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 133 Salado Pessoa transfictionnel serait « Álvaro de Campos : The Return », formule qui entre évidemment en résonance avec les données de la fiction hétéronymique élaborée par Pessoa, qui voit Campos faire son retour sur la scène publique en poésie, après plusieurs années de silence, par le poème « Lisbon Revisited (1923) »13. Il est d’ailleurs fait explicitement allusion au titre de ce poème un peu plus avant dans le scénario, dans l’échange entre Campos, Search et Anon qui voyageaient dans le même train : CAMPOS: – Is this your first time in Lisbon? ANON: – Yes. SEARCH: – I was born here. I am visiting… CAMPOS (corta): – Lisbon is never to be visited, always revisited! 14 (COSTA GOMES, 2015-2018: scène 6) La fiction du retour dont il s’agit dans Não Sou Nada est toutefois bien différente de ce qui se joue dans la fiction hétéronymique telle qu’elle se présente chez Pessoa, où, revenant à Lisbonne, Campos apparaît lassé de l’existence et dépourvu de la rugissante énergie comme de l’ambition démesurée qui caractérisaient l’écriture torrentielle des Grandes Odes15. Selon la fiction pessoenne, « O Engenheiro sensacionista » a cédé la place au « Engenheiro metafísico »16, qui se présente comme un sujet en retrait du monde, livré au désœuvrement et dominé par des affects mélancoliques où l’on perçoit d’évidentes affinités avec la production poétique de Fernando Pessoa « en personne », le poète orthonyme, mais aussi avec certains fragments en prose du Livro do Desassossego. Or, dans le scénario élaboré par Luísa Costa Gomes, une spectaculaire bifurcation intervient par rapport à cette évolution. Dans Não Sou Nada, le Campos qui revient à Lisbonne, plus batailleur que jamais, Publié dans Contemporânea, 8, Fevr. 1923, soit près de huit ans après la publication de « Ode Marítima » dans Orpheu, 2, Abril-Maio-Junho 1915. Campos a certes écrit des poèmes entre ces deux dates, mais ils n’ont pas été publiés par Pessoa, ce qui accrédite la fiction du retour de Campos après des années de silence. 13 Avant même cet échange, l’adresse de Caeiro abordant Campos à la sortie de la gare – « Então, já cá estás outra vez ? » (scène 5) – avait fait résonner discrètement le poème « Lisbon Revisited (1926) », dont toute la partie finale est scandée par l’anaphore « Outra vez te revejo ». Cette partie finale du poème sera ensuite reprise sous la forme d’un monologue de Campos à la scène 16. 14 Ce changement de disposition du « Je » poétique de Campos est bien figuré par la mise en regard d’une part de « A Passagem das Horas », ode inachevée des années 1915-1916 qui s’avance sous le signe inaugural de l’exaltant programme « Sentir tudo de todas as maneiras », et d’autre part des premiers vers d’un poème daté d’avril 1923 qui se présente comme un fragment tardif de cette ode, mais où l’on perçoit d’emblée la retombée de l’élan initial: « Nada me prende, a nada me ligo, a nada pertenço. | Todas as sensações me tomam e nenhuma fica » (PESSOA, 2013b: 191 et 273 respectivement). « Lisbon Revisited (1926) » s’ouvre également par les mots du fragment d’ode non publié : « Nada me prende a nada » (PESSOA, 2013b: 300). 15 « O Engenheiro sensacionista (1914-1922) » et « O Engenheiro metafísico (1923-1930) » sont les titres des 2ème et 3ème sections qui organisent le volume Poesia de Álvaro de Campos (PESSOA, 2013b: 79 et 269). 16 Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 134 Salado Pessoa transfictionnel débarque dans la capitale pour prendre sa revanche et régler ses comptes, suivant en cela une topique narrative bien connue, celle qui associe la figure du « revenant » à celle du vengeur17. La mise en intrigue va donc se faire dans la fiction seconde en référence à un « scénario type » que ne laissaient guère prévoir les éléments concernant le personnage de Campos dans la fiction première de l’hétéronymie. En effet, nulle part dans les écrits de Pessoa relatifs aux hétéronymes il n’est indiqué que l’auteur sensationniste, une fois revenu à Lisbonne, persécute son créateur pour obtenir que lui soit attribuée l’exclusivité de sa production littéraire, puis se lance dans une entreprise d’élimination systématique de ses confrères en hétéronymie, considérés comme des rivaux à écarter par tous les moyens. C’est pourtant bien cette ligne narrative que développe Luísa Costa Gomes dans son scénario, en suivant pour cela une progression parfaitement claire, et, on va le voir par le résumé simplifié qui suit, tout à fait radicale. Exigeant de Pessoa qu’il lui consacre l’essentiel, voire l’intégralité de son activité créatrice, afin que soit achevée l’œuvre qui lui revient – « Quero o meu Arco do Triunfo […] Quero o meu livro, com o meu nome na capa ! […] Não quero ser só o primeiro, quero ser o único » (scène 7) –, maladivement jaloux des autres hétéronymes, et singulièrement de Caeiro auquel il se heurte à la sortie de la gare dès la scène 5, Campos harcèle Pessoa pour qu’il l’écrive – « escreve-me » (scène 21) –, et qu’il l’écrive lui seul18. Le personnage de Campos créé par Luísa Costa Gomes apparaît ici, selon un paradoxe piquant, comme l’hétéronyme qui veut en finir avec l’hétéronymie et en revenir à une œuvre unitaire dont il serait l’unique auteur. À cet égard, le conflit fondamental qui sous-tend toute l’intrigue de Não Sou Nada oppose deux forces irréconciliables : celle, égocentrique et monomaniaque, dont le personnage de Campos est le vecteur, et celle, Entre autres exemples archétypiques de la figure du vengeur, on peut penser au personnage d’Edmond Dantès, le héros du Comte de Monte Christo (1844-1846) d’Alexandre Dumas. 17 Cette réplique pourrait évoquer la pièce de théâtre de Luigi Pirandello, Six personnages en quête d’auteur (1921), où le début du drame voit arriver sur la scène d’un théâtre où doit se tenir la répétition d’une autre pièce les six membres d’une famille en quête d’un auteur qui pourrait écrire leur histoire. C’est toutefois un autre texte qui nous paraît éclairer la situation fictionnelle de Não Sou Nada où l’on voit Campos « réclamer son dû » à son créateur. En effet, cette situation n’est pas sans rappeler, mutatis mutandis, celle qui est mise en place dans le roman de Mary Shelley, Frankenstein, or the Modern Prometheus (1818), grand roman de la vengeance. Dans Frankenstein, la créature vient exiger de son créateur qu’il lui donne une compagne, puis, face au refus de ce dernier qui craint l’engendrement d’une « lignée de monstres », entreprend de se venger en assassinant systématiquement les proches du Docteur Frankenstein. Or on perçoit bien à l’arrière-plan du scénario de Luísa Costa Gomes à la fois la prégnance du schéma narratif du récit de vengeance et le motif plus spécifique de la créature se retournant contre son créateur. Le mot « Criador » apparaît d’ailleurs dans une didascalie de la scène 65, dernière scène où Campos et Pessoa sont réunis peu avant la fin de Não Sou Nada : « Debruça-se sobre PESSOA, por trás, passa-lhe os braços pelo pescoço, abraça-o ternamente. CAMPOS está muito fraco, magoado da queda, quase a render a alma ao Criador », Dans le contexte de cette indication scénique, le terme renvoie aussi au « Créateur » qu’est Pessoa. 18 Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 135 Salado Pessoa transfictionnel polycentrique et plurielle, dont le personnage de Pessoa est l’instance. Et l’enjeu de cet affrontement n’est ni plus ni moins que l’existence de l’hétéronymie elle-même. La confrontation Campos-Pessoa se poursuit dans la seconde partie du récit, après l’ellipse temporelle indiquée à la scène 24 : « Passaram dez anos, estamos no princípio dos anos 30 ». Loin d’avoir apaisé la soif de reconnaissance de Campos, le « passage des années » l’a encore avivée. Redoublant ses persécutions, et constatant que Pessoa persiste, en dépit des avertissements chaque fois plus menaçants qu’il lui adresse, à écrire pour d’autres que lui et singulièrement pour Caeiro, Campos décide de passer à l’action. À la récrimination vont alors succéder les crimes, gradation où se creuse encore davantage l’écart entre le personnage construit par la scénariste et le Campos que la fiction pessoenne nous a légué, en particulier le dernier Campos, « O Engenheiro aposentado »19 du début des années trente. Dès lors, ce sont les meurtres successifs perpétrés par Campos sur ses rivaux hétéronymes qui vont donner le tempo narratif de Não Sou Nada. Dans sa quête éperdue de l’exclusivité, Campos assassine d’abord Reis et Caeiro dans la maison de ce dernier à la campagne (le crime intervient entre les scènes 31 et 32), avant de les démembrer et de brûler leurs corps dans la cheminée (scène 32). Un peu plus loin, on déduit des indications de la scène 38 que Search et Anon, dont les urnes funéraires sont alignées sur la cheminée de Campos aux côtés de celles de Caeiro et Reis, ont subi le même sort20. Suit à la scène 55 la mort par pendaison du Baron de Teive, que Campos assiste activement en passant lui-même la corde au cou du Baron suicidaire, avant de retirer le tabouret qui le soutenait encore. Pour accomplir ce nouveau forfait, Campos s’est rendu exprès en automobile dans la quinta du Baron à Macieiras au nord du Portugal, d’où il revient à Lisbonne pour brûler les manuscrits qu’il a arrachés de force à Pessoa plus tôt dans le récit21, la destruction des textes suivant logiquement la série des homicides perpétrés sur ceux à qui ces écrits avaient été attribués. Enfin, un ultime assassinat semble venir couronner l’épopée meurtrière de Campos, quand ce dernier, qu’on a vu guettant « O Engenheiro aposentado (1931-1935) » est le titre de la 4ème et dernière section de l’édition citée Poesia de Álvaro de Campos (PESSOA 2013b: 437). 19 Les détails particulièrement sinistres de ces mises à mort font de l’auteur de « Tabacaria » un avatar inattendu de deux criminels célèbres du XXème siècle, Landru et le Docteur Petiot, entrés dans la légende noire du crime pour avoir démembré et brûlé leurs victimes. Plus tôt dans le scénario, avant que ne commence la série des meurtres, une didascalie décrivant Campos dans sa salle de bain nous mettait d’ailleurs sur la voie de ce qui allait suivre : « Depois abre a gaveta de um armário branco. Lá dentro reluz uma colecção de facas, bisturis e complicados objectos pontiagudos e cortantes » (scène 13). Le texte de Luísa Costa Gomes fait signe ici vers une mémoire culturelle et un imaginaire qui se situent bien au-delà des références propres à la communauté des Pessoens. 20 A la fin de la longue scène 7 où se produit la première confrontation entre les deux personnages, Campos s’empare des écrits sur le bureau de Pessoa et menace de les garder en otage jusqu’à ce que son œuvre à lui soit prête : « CAMPOS: – Retenho as obras dos outros até a minha estar pronta. Por precaução, para não te dispersares » (COSTA GOMES, 2015-2018: scène 7). 21 Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 136 Salado Pessoa transfictionnel Soares à la scène 64, annonce à Pessoa la chute mortelle de l’auteur le plus connu du Livro do desassosego dans les escaliers de l’immeuble où il vit : PESSOA: – O Bernardo Soares, é dele que falas? – Caiu pela escada abaixo, coitado. PESSOA: – Já? Esperava que fosse um pouco mais tarde… CAMPOS: – Ainda tentei deitar-lhe a mão, mas… PESSOA: – Não foste a tempo. Já o esperava. CAMPOS: – Plantaste-o no meu caminho. Porque me escondes alguma coisa. Mas sabes que não podes, nós dois somos um e o mesmo. PESSOA: – Mataste os companheiros do meu espírito. (COSTA GOMES, 2015-2018: scène 65) CAMPOS: C’est une fin annoncée que celle de Soares, qui avait en quelque sorte été jeté en pâture à Campos par Pessoa, sur les conseils de Quaresma qu’il était allé consulter, étant inquiet pour lui-même du comportement de sa créature. Au terme de son équipée sanglante, Campos se tient seul face à Pessoa, dans un tête-à-tête qui figure visuellement, et où se dit par la parole, le désir de fusion de l’hétéronyme avec son créateur : avança para PESSOA e ficam frente a frente no quarto. aproxima-se muito de PESSOA. De repente, junta a cabeça à cabeça dele, testa com testa. São dois perfis que se misturam. CAMPOS (querendo entrar todo na cabeça de PESSOA) : - Quero isso tudo que aí está dentro! Tu és eu. O meu eu. (COSTA GOMES, 2015-2018: scène 65) CAMPOS CAMPOS Face à la demande impérieuse de Campos, Pessoa répond alors en désignant la feuille où il vient d’écrire les premiers vers de « Tabacaria » signés de son propre nom, d’où s’ensuit un ultime affrontement qui se termine sur l’image symbolique des deux personnages luttant pour se libérer l’un de l’autre sans parvenir à se séparer : pega na folha. CAMPOS: – « Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada ». Fernando Pessoa. Vem assinado por ti. Tabacaria, de Fernando Pessoa. PESSOA: – Esse sou eu, é meu, inteiramente meu. CAMPOS: – Não! Não tens esse direito! CAMPOS atira-se sobre PESSOA em silêncio, lutam sem lutar, ambos no escuro. São duas figuras abraçadas que se querem libertar uma da outra e continuam agarradas, cada uma, à vez, rechaçando e enlaçando a outra. (COSTA GOMES, 2015-2018: fin de la scène 65) CAMPOS Une ultime péripétie intervient toutefois dans le récit à la scène 68, qui introduit un renversement final puisque c’est Soares que l’on y voit précipiter Campos dans les escaliers, suite à une habile « rasteira » sur laquelle on reviendra. La toute dernière scène, affectée d’un fort degré d’irréalité, montre alors Pessoa déambulant à la fin Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 137 Salado Pessoa transfictionnel du jour dans les rues de Lisbonne, de la Baixa jusqu’à la Brasileira au Chiado, tandis que d’innombrables Pessoas circulent autour de lui et le saluent. Apercevant, incrédule, Soares tournant au coin de la rue, Pessoa s’engage sur les traces de celui qui, selon cette fin alternative, l’aurait libéré de son persécuteur (scène 70 et dernière). Ainsi résumée à grands traits, la diégèse de Não Sou Nada semble très éloignée de la fiction hétéronymique élaborée par Pessoa. Si l’on excepte la donnée initiale du retour de Campos à Lisbonne, les principaux événements narratifs qui donnent la ligne directrice du scénario de Luisa Costa Gomes, à savoir les meurtres successifs perpétrés par Campos, sont absents de l’univers fictif conçu par Pessoa, voire contradictoires avec ce que l’on sait de ce monde que son auteur a désigné par l’expression de « coterie inexistente »22. En particulier, la violence exercée par Campos à l’encontre de Caeiro paraît contrevenir aux sentiments exprimés dans cette pièce maîtresse de la fiction hétéronymique pessoenne, les Notas para a recordação do meu mestre Caeiro (algumas delas). Dans ce texte, l’admiration et l’affection pour le « mestre » sont partout sensibles, de même qu’est évident le caractère initiant, et bouleversant, de la rencontre avec celui que Campos définit comme incarnant à lui seul « [um] outro universo ». Et dans le dernier fragment publié des Notas, on trouve cette confidence : « foi uma das angústias da minha vida — das angústias reais em meio de tantas que têm sido fictícias — que Caeiro morresse sem eu estar ao pé dêle 23» (PRESENÇA, 1993, tomo II, nº 30, Jan.-Fev. 1931: 15). Compte tenu du fait que, selon le scénario de Luísa Costa Gomes, c’est bien parce qu’il est « ao pé dêle » que Caeiro meurt des propres mains de Campos, on pourrait conclure à un complet renversement par rapport à la fiction hétéronymique élaborée par Pessoa. Or il n’en est rien, car dans Não Sou Nada, comme dans les Notas, Campos dit son admiration pour Caeiro et on le voit pleurer sa mort puis prononcer les paroles mêmes qui sont consignées dans le texte des Notas para a recordação do meu mestre Caeiro (algumas delas) :24 CAMPOS: – É o nosso Mestre. De todos nós. Teu, e meu, e do Reis. O que ele escreveu, é admirável e eu admiro-o. Mas não escreve mais nada, ou terei de tomar medidas. PESSOA: – Medidas? CAMPOS: – Não me faças perder a paciência. Agora somos só tu e eu. (COSTA GOMES, 2015-2018: scène 25) L’expression apparaît dans la fameuse lettre à Adolfo Casais Monteiro du 13 janvier 1935, dans laquelle Pessoa écrit, tout de suite après avoir rapporté la façon dont sont successivement apparus Caeiro, Reis puis Campos : « Criei então uma coterie inexistente » (PESSOA, 1999: 343). 22 Les Notas ainsi que les différentes versions préparatoires et variantes de ce texte, composent un important ensemble présenté dans PESSOA (2014 : 451-488). 23 24 Le passage repris dans Não Sou Nada appartient à la première section des Notas (PESSOA, 2014: 454). Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 138 Salado Pessoa transfictionnel CAMPOS, de joelhos a um canto da sala, chora convulsiva e descontroladamente. CAEIRO, caído a seu lado, muito pálido, tem na cara uma expressão de grande serenidade. CAMPOS põe-lhe a mão sobre a cara e fecha-lhe os olhos claros. […] CAMPOS: – Meu mestre, meu mestre querido! Meu mestre perdido tão cedo! Foi durante a nossa primeira conversa, ele disse: “tudo é diferente de nós, é por isso que tudo existe”. Esta frase seduziu-me com um abalo, como o de todas as primeiras posses, que me entrou nos alicerces da alma. CAMPOS levanta-se, tenta controlar a emoção terrível. (COSTA GOMES, 2015-2018: scène 32) Dans le scénario de Luísa Costa Gomes, la mise à mort de Caeiro par Campos n’est donc pas le fait d’un psychopathe agissant de sang-froid, elle suscite une émotion comparable à celle que manifeste l’auteur des Notas. La reprise du texte des Notas dans cette scène instaure alors une forme de continuité entre le Campos de la fiction hétéronymique et son avatar transfictionnel, tous deux éperdus d’admiration pour leur jeune « maître ». En dépit de l’écart majeur produit par la métamorphose de l’Ingénieur en serial killer, le protagoniste de Não Sou Nada ne se sépare donc pas complètement de son modèle pessoen, y compris dans le moment qui paraît l’en éloigner le plus, celui du meurtre. De même, sur le plan du récit, un certain nombre de « passerelles diégétiques »25 établissent des passages d’un monde fictionnel à l’autre, qui contribuent à réduire la distance créée par la mise en place dans la fiction seconde d’une intrigue absente de la fiction première. La plus repérable de ces passerelles concerne la relation entre Ofélia et Pessoa, que Campos vient perturber à plusieurs reprises dans Não Sou Nada, où son intromission dans le « namoro » est explicitement motivée par le désir que Pessoa se consacre exclusivement à le doter d’une œuvre : « CAMPOS: – Andas outra vez distraído com a Ofelinha! » (COSTA GOMES, 2015-2018: scène 25). Le harcèlement auquel se livre Campos, qu’on voit poursuivre le couple dans la rue et menacer Pessoa – « CAMPOS (ameaçador, indicando OFELIA) – Quando eu digo pára, nunca continues » (COSTA GOMES, 2015-2018: scène 37) – semble d’ailleurs avoir atteint son but, puisque Ofélia, qu’on a aperçue seule sur un banc du Jardim da Estrela où elle se lamente du silence de son bien-aimé Nininho (scène 44), disparaît ensuite de la scène pour n’être plus mentionnée que dans cette réplique laconique de Pessoa venu trouver Quaresma et lui faire part des persécutions que lui inflige Campos : « PESSOA : – Proibiu-me a Ofélia » (COSTA GOMES, 2015-2018: scène 58). Parfaitement cohérente, dans le scénario, par rapport au personnage de Campos et à son programme narratif qui consiste à éliminer tout obstacle s’interposant entre lui et Pessoa, l’éviction d’Ofélia par Campos, loin de contrevenir aux données de la fiction première, semble ici les prolonger. Dans Não Sou Nada, les menaces de Campos font en effet écho au rôle de perturbateur joué par l’encombrant Ingénieur dans la Richard Saint-Gelais forge cette expression pour désigner les éléments diégétiques qui, repris dans l’univers fictionnel second, font le lien avec l’univers fictionnel de départ (SAINT-GELAIS, 2011: 23) 25 Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 139 Salado Pessoa transfictionnel relation entre Ofélia Queiroz et Fernando Pessoa, telle que leur correspondance nous la donne à lire. Nombreuses en effet sont les lettres où Ofélia se plaint à « Nininho » des intrusions dans leur intimité de « o tal senhor Álvaro de Campos », et l’on peut même inférer des deux dernières lettres adressées à Ofélia par Pessoa lors du premier épisode de leur « namoro », que Campos a été partie prenante dans le dénouement de leur relation26. Selon cette hypothèse, le scénario élaboré par Luísa Costa Gomes s’inscrirait dans le droit fil de la fiction hétéronymique pessoenne, conférant à Campos la même fonction actancielle que Pessoa lui a fait jouer en l’instrumentalisant au moment de sa rupture avec Ofélia. Certes, on pourra objecter qu’ici il ne s’agit pas véritablement d’une relation transfictionnelle, puisque ce type de relation ne saurait s’établir qu’entre deux fictions, alors que les lettres ont été échangées entre les deux personnes réelles qu’étaient Ofélia Queiroz et Fernando Pessoa. Toutefois, la présence insistante de Campos au sein de ces échanges, dès la première phase du « namoro » en 1920 et de manière plus accentuée encore dans sa seconde phase entre la fin de l’année 1929 et le début de l’année 1930, permet de considérer que cette correspondance a partie liée avec la fiction hétéronymique27. Plus précisément, les lettres portent la trace de la façon dont la relation entre Fernando et Ofélia s’est trouvée prise par moments dans la fiction hétéronymique, les interventions de Campos venant alors fictionnaliser le texte des lettres et ratifier la capacité de la fiction hétéronymique à contaminer la réalité28. C’est pourquoi il est légitime de parler de passerelle diégétique et de relation transfictionnelle entre d’une part le texte des lettres échangées entre Ofélia Queiroz et Fernando Pessoa, et d’autre part le monde fictionnel de Não Sou Nada, où le La lettre pénultième, qui précède d’un peu plus d’un mois la rupture, en constitue bien la préfiguration si on considère que l’échange d’identité entre Campos et lui qu’invoque Pessoa vaut déjà comme un avertissement de ce qui va suivre : « Afinal o que foi ? Trocaram-me pelo Álvaro de Campos ! » (Lettre du 15-10-1920, PESSOA, 2023: 88). Quant à la dernière lettre, il n’est pas aberrant d’y reconnaître, parmi les redoutables « Maîtres qui n’autorisent ni ne pardonnent », la présence invisible du tyrannique Ingénieur : « O meu destino pertence a outra Lei, de cuja existência a Ophelinha nem sabe, e está subordinado cada vez mais á obediencia a Mestres que não permitten nem perdoam » (Lettre du 29-11-2020, PESSOA, 2023: 90). 26 Une autre façon, plus radicale, d’intégrer la correspondance à la fiction hétéronymique, serait de considérer que les lettres adressées par Pessoa à Ofélia sont elles-mêmes dues à un auteur fictif, Pessoa-Nininho, ou Pessoa-Ibis, hypothèse que conforteraient à la fois la signature « Ibis » utilisée par Pessoa dans plusieurs de ses lettres, et son identification au nom de Nininho, dont les occurrences sont très nombreuses dans les lettres, en particulier dans la première phase du « namoro ». 27 Que la fiction hétéronymique vienne contaminer la réalité est encore attesté par le fait que Campos écrive « en personne » une lettre à Ofélia, ce qui amène très logiquement les responsables de l’édition des œuvres de Pessoa chez Tinta-da-China à inclure cette lettre à la fois dans le volume des œuvres complètes de Álvaro de Campos et dans celui des lettres de Pessoa à Ofélia (la lettre de Campos-Pessoa à Ofélia, datée du 25-9-1929, figure dans PESSOA (2014: 550-551) et dans PESSOA (2023: 52). Ofélia répond d’ailleurs à cette lettre par une courte missive adressée le lendemain à « Ex.mo Senhor Engenheiro Álvaro de Campos » (lettre du 26-9-1929, QUEIROZ, 1996: 208). 28 Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 140 Salado Pessoa transfictionnel comportement de Campos confirme, en l’explicitant, le rôle que Pessoa lui aurait attribué dans le cadre de sa relation avec Ofélia. Un autre passage, plus secret, relie souterrainement la fiction hétéronymique pessoenne à la diégèse de Não Sou Nada. En indiquant précédemment que rien ne prédisposait l’auteur des Grandes Odes à se faire le meurtrier de son maître admiré, on se référait aux Notas, pièce majeure par laquelle Pessoa a conféré une existence en quelque sorte officielle à la « coterie inexistente », puisque ce texte a été publié de son vivant dans la revue Presença. Dans ce texte, la reconnaissance par Campos du statut de « mestre » de Caeiro, la dévotion qu’il manifeste à l’égard de l’auteur du Guardador de Rebanhos, semblent a priori exclure une relation de rivalité entre les deux hétéronymes. Or, à un niveau demeuré occulté de la fiction hétéronymique, on peut repérer des éléments qui contiennent les ferments d’une relation de concurrence entre les deux hétéronymes. En effet, selon un document daté de mai 1914 dans lequel Pessoa projette la carrière poétique d’Alberto Caeiro, celle-ci devait s’ordonner en trois phases successives, dont la deuxième recouvrirait exactement la production poétique qui sera finalement attribuée à Campos : 1. O Guardador de Rebanhos 19111912 ; 2. Cinco Odes Futuristas (1913)-1914 ; 3. Chuva Oblíqua (Poemas Inters.) 1914. Fig. 1. BNP/E3, 48-27r (détail) ; disponible en ligne : https://purl.pt/1000/1/alberto-caeiro/indice/galeria-04.html Selon ce document de 1914, il a donc existé un état de la fiction hétéronymique où c’est Caeiro, et non Campos, qui se serait fait le hérault du Futurisme au Portugal. Et il y a fort à parier que c’est cet élément peu connu de l’histoire mouvante de la fiction hétéronymique qui est exploité dans Não Sou Nada, où immédiatement après l’arrivée de Campos à la gare du Rossio, une première confrontation l’oppose à Alberto Caeiro qui est présenté dans la didascalie introductive comme le « poeta futurista ALBERTO CAEIRO ». Les deux scènes concernées méritent d’être citées in extenso car elles éclairent parfaitement le processus transfictionnel mis en œuvre par Luísa Costa Gomes : Cena 4. Ext. Noite. Lisboa. Restauradores. Nos Restauradores, um grupo de cinco rapazes encaminha-se para o Rossio, encabeçado pelo poeta futurista ALBERTO CAEIRO. […] Têm todos um ar marcial. Marcham atrás de CAEIRO. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 141 Salado Pessoa transfictionnel (da Ode Marcial) : Clarins na noite. Clarins na noite. Clariiiins. É de cavalgada. É de cavalgada, de cavalgada, É de cavalgada, de cavalgada, de cavalgada O ruído, ruído, ruído agora já nítido. Vejo-os no coração e no horror que há em mim… CAEIRO Cena 5. Ext. Noite. Porta da estação do Rossio. CAMPOS ouve primeiro o clamor, depois vê CAEIRO, que vê CAMPOS. Olha o grupo com ar trocista. CAEIRO pára diante de CAMPOS altivo, agressivo. CAEIRO: – Então, já cá estás outra vez? CAMPOS: – E tu, ainda cá estás? CAEIRO: – E estarei. CAMPOS: – Veremos. E continuas todo futurista… CAEIRO: – Pelos vistos já somos dois. CAMPOS: – Não te cansa seres o poeta futurista Alberto Caeiro? Sempre futurista, adiante e parado no tempo? Olha que é bem caricato esse colete! Mas passa pelo meu alfaiate… CAEIRO: (cortando) – Ficas muito tempo? CAMPOS: – O que for preciso. CAMPOS e CAEIRO, frente a frente, olham-se com inimizade. CAEIRO faz um sinal à sua trupe e afasta-se sem se despedir. CAMPOS (extremamente raivoso, para si próprio): – Que nenhum filho da puta se me atravesse ao caminho! O meu caminho é pelo infinito fora até chegar ao fim! (COSTA GOMES, 2015-2018 : scènes 4 et 5) On voit ici comment s’élabore dans toute sa subtile complexité la fiction seconde proposée par Luísa Costa Gomes. Prenant appui sur une variante demeurée sans suite de la fiction hétéronymique, l’écrivaine fait surgir au seuil de son récit un Alberto Caeiro paré de tous les attributs du poète futuriste que fut Campos, à commencer bien sûr par ses attributs textuels, puisque Caeiro entre en scène en citant des vers de « Ode Marcial », que le lecteur familier de l’œuvre de Pessoa & Companhia identifie spontanément comme appartenant à Álvaro de Campos 29 . C’est donc bien un rival de Campos en Futurisme (« Pelos vistos já somos dois ») qui apparaît sous les traits de Caeiro dans ces scènes liminaires. Ce faisant, la scénariste invente un Caeiro inédit et opère une manipulation des attributions, puisque c’est bien à Campos et non à Caeiro qu’est attribué le poème « Ode Marcial » selon la fiction hétéronymique qui fait autorité, si bien que le lecteur familier de l’univers pessoen peut conclure à une imposture de la part de Caeiro, imposture imputable à l’imagination de la scénariste. Or cette invention-manipulation, véritable coup de force au début du récit, est à la fois nécessaire et motivée : nécessaire sur le plan diégétique car elle permet d’amorcer l’intrigue de Não Sou Nada, dont le moteur est bien un conflit pour l’autorité qui amène Campos à éliminer ses concurrents, et motivée par rapport à la relative instabilité de la fiction hétéronymique, dont au 29 Il s’agit des vers 1-2 puis 8-13 de « Ode Marcial » (PESSOA, 2013b: 147). Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 142 Salado Pessoa transfictionnel moins un document atteste l’hypothèse d’un Caeiro auteur des « Odes futuristes » en lieu et place de Campos. En actualisant cette hypothèse dans son scénario, et en montrant d’emblée un Caeiro futuriste s’appropriant les vers et la posture provocante de Campos, Luísa Costa Gomes donne de la consistance à son parti pris narratif, qui fait de l’Ingénieur un avatar de la figure du vengeur revenu à Lisbonne pour régler ses comptes et restaurer30 son « autorité », terme à entendre ici au sens de statut d’auteur. Cette interprétation induite par la lecture des premières pages du scénario va toutefois se trouver compliquée quand on apprendra, à la faveur d’un échange ultérieur entre Pessoa et Campos, que ce serait en fait Campos l’usurpateur qui se serait indûment arrogé le rôle que Pessoa destinait à Caeiro : CAMPOS: – O Caeiro…coitado…eu sei que gostas dele… Mas a verdade é que ele já te passou. PESSOA: – Criei-lhe outra poesia, uma nova, que vai numa direcção inteiramente nova, para não te achares de novo em rota de colisão com ele! CAMPOS: – E a mim, o que me dás? Fico sem nada! PESSOA: – Usurpaste a identidade que era a dele! E agora parece que não queres tê-la. (COSTA GOMES, 2015-2018: scène 23) Selon cette version des faits, qu’on peut dire « autorisée » à l’intérieur de la fiction seconde, puisqu’elle émane du personnage de Pessoa lui-même, c’est bien Campos et non Caeiro qui aurait commis l’appropriation abusive, amenant Pessoa à créer pour Caeiro une poésie toute différente de celle des Grandes Odes futuristes, afin de désamorcer un potentiel conflit entre les deux hétéronymes. Ici, la scénariste complète la version, restée à l’état de pure virtualité dans la fiction hétéronymique pessoenne, selon laquelle Caeiro était destiné par Pessoa à être l’auteur des « Cinco Odes Futuristas », en extrapolant que s’il n’en a pas été ainsi, c’est en raison d’une usurpation de Campos. Cet élément diégétique supplémentaire développe le personnage de Campos dans le sens du scénario, qui fait de l’hétéronyme une créature insatiable, dominée par une irrépressible pulsion d’omnipotence poétique. Ce développement s’inscrit d’ailleurs de manière cohérente dans le prolongement du programme qui a été assigné par Pessoa à Campos dans la fiction hétéronymique : « tout sentir de toutes les manières ». En imaginant que Campos revient à Lisbonne pour réclamer l’exclusivité de la création littéraire dont Pessoa est l’auteur, Luísa Costa Gomes a mis en relief la dimension totalitaire de ce programme mis à l’enseigne du « todo », en prenant en quelque sorte « au pied de la lettre » le mot d’ordre sensationniste de Campos. La suite de l’échange confirme les prétentions de Campos, qui ne saurait se satisfaire du partage des autorités que lui propose Pessoa. Pour celui qui revient à Lisbonne animé par un désir de réparation, il n’est pas question d’être seulement le poète sensationniste mis en vedette quelques années auparavant par la revue Orpheu. Et afin de légitimer sa demande d’être 30 Est-ce un hasard si la confrontation liminaire entre Caeiro et Campos a lieu à Praça dos Restauradores ? Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 143 Salado Pessoa transfictionnel davantage que l’auteur des Grandes Odes, il invoque la loi naturelle du changement, qu’il rappelle en ces termes à son créateur : « Eu vou mudando, o natural é que mude assim » (scène 23). Revenu à Lisbonne et revenu de sa période sensationniste31, Campos revendique son droit à une nouvelle existence poétique mais, à l’évidence, la création poétique de ce qui serait un « second Campos » ne fait pas partie des priorités de Pessoa. La protestation de l’hétéronyme – « Fico sem nada ! » –, réitérée plus loin dans le scénario (« E eu sem nada ! », scène 49), résonne alors en écho au Não Sou Nada qui donne son titre au texte dont il est le protagoniste. Négligé par Pessoa qui n’a pas tenu sa promesse d’achever Arco do Triunfo où son œuvre devait être recueillie et magnifiée, absent des projets qui mobilisent son créateur, poétiquement dés-œuvré quand il revient à Lisbonne, Campos, le poète du « tout », pourrait en effet à bon droit reprendre pour luimême les mots du titre : « Je ne suis rien ». Comme on peut le constater, la variante inédite de la fiction hétéronymique pessoenne, selon laquelle c’est à Caeiro que serait revenue la paternité de l’œuvre futuriste, trouve divers prolongements dans Não Sou Nada. Avec d’autres éléments, cette passerelle diégétique concourt à tisser des liens entre la fiction élaborée par Luísa Costa Gomes et le monde fictionnel inventé par Pessoa. Hétéronymicide multirécidiviste, le Campos revisité que nous propose l’écrivaine n’en est donc pas moins fortement relié au monde fictionnel dont il est issu, en dépit de cette déviation inédite sur laquelle repose toute l’intrigue mise en place dans le scénario. Toutefois, si le récit second de Luísa Costa Gomes s’avère éminemment pessoen, c’est moins par les événements qu’il rapporte que par le matériau textuel dont il est composé. En effet, dans Não Sou Nada, la transfictionnalité est d’abord une affaire de textualité, qui se joue dans les mots eux-mêmes. Jeux textuels : emprunts, montages, détournements. A l’intérieur du cadre narratif d’ensemble qu’elle s’est donné, Luísa Costa Gomes déploie une écriture fondée essentiellement sur la reprise d’éléments préexistants empruntés aux écrits de Pessoa. Ces éléments, en provenance de poèmes aussi bien que de textes en prose, forment la matière première du texte de Não Sou Nada, de telle sorte que le processus transfictionnel prend ici la forme singulière d’une migration textuelle entre le corpus des écrits pessoens et la fiction seconde imaginée par Si Campos raille le côté obsolète des élans futuristes de Caeiro qu’il considère « parado no tempo », la dernière réplique de la scène amène à nuancer l’idée que l’Ingénieur aurait lui-même dépassé cette phase de sa production, puisqu’il parle encore le langage des Grandes Odes en reprenant « à son propre compte » deux vers de « Saudação a Walt Whitman » : « Que nenhum filho da puta se me atravesse ao caminho! | O meu caminho é pelo infinito fora até chegar ao fim! (vers 82-83, PESSOA, 2013b: 164). Du reste, débarquant du train à la scène 2, il déclamait déjà des vers de « Ode Triunfal » avant sa rencontre avec Caeiro. 31 Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 144 Salado Pessoa transfictionnel l’écrivaine. Ce phénomène, qui sature pratiquement tout l’espace scriptural du scénario, manifeste à la fois une connaissance très intime du matériau pessoen, une attitude ludique parfaitement assumée, et une singulière inventivité dans l’art d’intégrer les éléments prélevés à la trame narrative mise en place. Un premier exemple nous en donne la mesure, qui se présente dès l’ouverture du texte. Débarquant à la gare du Rossio, Campos reconnaît le porteur de bagages, un certain Carlos Otto, qui le salue à son tour, s’empresse de charger les nombreux bagages du voyageur sur un chariot et entame un dialogue animé avec « o Engenheiro Campos » qui se lance dans une déclamation de « Ode Triunfal », qu’Otto poursuit à l’unisson avec lui, à la grande surprise du poète : « CAMPOS: – Ah, conheces isto ?! OTTO: – A Ode Triunfal ! Foi aí um escândalo ! » (scène 2) Suit, à la demande de Campos qui l’interroge sur l’état d’avancement de son Tratado de Luta Livre, une explication détaillée de la technique de la « rasteira » par Carlos Otto, qui, joignant le geste à la parole, entreprend de faire sur Campos une démonstration de ladite technique mais se retrouve promptement mis au sol par ce dernier, « enquanto CAMPOS ri com gosto, triunfante » (scène 2) 32. Grâce au précieux volume qui répertorie et présente les 136 auteurs fictifs inventés par Pessoa, le lecteur de Não Sou Nada aura pu reconnaître dans cette scène qui marque l’arrivée de Campos à Lisbonne un passage presque inchangé du Tratado de luta livre, traité attribué par Pessoa à Carlos Otto et reproduit dans Eu sou uma antologia33. On a donc affaire ici à une première migration textuelle depuis la sphère des écrits pessoens jusqu’au scénario, migration qui s’opère indépendamment des rapports qui existent, ou pas, entre les personnages qui peuplent la fiction hétéronymique d’origine. En l’occurrence, s’il n’existe aucune relation entre Álvaro de Campos et Carlos Otto dans les écrits de Pessoa, on comprend néanmoins très bien comment la rencontre entre ces deux personnages peut faire sens dans le cadre de la fiction imaginée par Luísa Costa Gomes. Outre l’élément d’exposition concernant Ode Triunfal, qui renvoie au scandale provoqué par la publication du premier numéro de la revue Orpheu où le poème de Campos a paru en mars 1915, la saynète de la « rasteira » permet de situer immédiatement le personnage de Campos et de Le terme « triunfante » n’est pas là par hasard, il fait un écho en forme de clin d’œil au poème « Ode Triunfal » cité par Campos quelques instants auparavant dans la même scène. Le jeu transfictionnel déborde ainsi à plusieurs reprises de l’espace du dialogue pour s’étendre aux didascalies, et cela dès l’entrée en scène de Campos qui est présenté comme « alto, seco e elástico », ce dernier adjectif faisant signe en direction du vers final de « A Passagem das horas » : « Meu ser elástico, mola, agulha, trepidação… » (version du texte datée du 22-5-1916, PESSOA, 2013b: 205). 32 Carlos Otto, qui outre son traité de lutte libre est l’auteur de trois sonnets, aurait été inventé par Pessoa vers 1909 dans le contexte des années de l’entreprise Íbis, en vue d’une collaboration aux journaux O Phosphoro et O Iconoclasta dont Pessoa avait projeté la publication. Il était également prévu qu’Otto contribue aux publications de Íbis comme traducteur d’un ouvrage de langue anglaise. Aucun des textes ou fragments de textes attribués à Carlos Otto n’a été publié par Pessoa (PESSOA, 2013a: 319-327, 324-325 pour le passage sur la « rasteira » repris du Tratado de lucta livre). 33 Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 145 Salado Pessoa transfictionnel préparer sa trajectoire narrative à venir34. L’interaction avec Carlos Otto, auteur du Tratado de luta livre, établit en effet la prédisposition de Campos au combat, que la suite du récit va confirmer. Façon plaisante et efficace pour la scénariste de montrer que c’est un lutteur qui revient à Lisbonne, et non le personnage désenchanté et « revenu de tout » construit par la fiction hétéronymique pessoenne. Ce faisant, la scénariste restaure une forme de continuité temporelle entre le poète sensationniste des années héroïques d’Orpheu et le Campos qui « revisite Lisbonne » des années plus tard, là où Pessoa avait marqué une césure. Quelque chose de l’énergie et de l’agressivité dont l’auteur des Grandes Odes était porteur se retrouve dès l’apparition de Campos dans Não Sou Nada, disposition qui va trouver ensuite à s’actualiser, en s’exacerbant, dans la série des meurtres. C’est donc par les moyens proprement littéraires d’un montage textuel de citations – prélèvement de fragments inédits d’un auteur fictif méconnu (le Tratado d’Otto), déclamation par Campos des vers de « Ode Triunfal » –, que l’écrivaine met en œuvre la transfictionnalité dans le texte du scénario, et cela dès son ouverture. En progressant dans la lecture de Não Sou Nada, on s’aperçoit que la plupart des répliques du dialogue, et même certaines indications contenues dans les didascalies, proviennent des écrits de Pessoa. À cet égard, la méthode d’écriture suivie par Luísa Costa Gomes, qui consiste à emprunter des fragments de textes de Pessoa pour les monter selon un ordre nouveau de façon à produire une œuvre originale, n’est pas sans rappeler le genre littéraire ou musical du centon35. Dans le centon littéraire, dont les intentions peuvent varier entre l’éloge du modèle repris et le détournement satirique, la matière première est en effet intégralement empruntée à des textes-sources, parfois de différents auteurs. Toute la valeur du centon réside alors dans l’art de choisir les morceaux à prélever, qu’il s’agisse de vers ou de prose, et de les agencer de manière surprenante et créatrice au sein d’une œuvre dont la nature rhapsodique n'empêche pas la cohérence du propos. C’est précisément ce travail de prélèvement et de réarrangement au service d’une fiction nouvelle qu’on peut observer tout au long de Não Sou Nada. Compte tenu du grand nombre d’exemples disponibles, on se contentera d’indiquer quelques occurrences représentatives des différentes modalités que prennent ces opérations d’emprunts et de montage, en prêtant attention aux effets de sens qui peuvent résulter du La « rasteira » qui marque l’entrée en scène « triunfante » de Campos fera retour à la toute fin du récit, quand il tentera de précipiter Soares dans les escaliers, mais la manœuvre se retournera alors contre l’impétueux Ingénieur, entrainant sa chute mortelle : « SOARES, que é nitidamente o mais fraco, o mais franzino, usa a força de CAMPOS para uma última rasteira de jiu-jitsu. CAMPOS cai de costas desamparado pela escada. O seu corpo retorcido aterra no patamar e ele não se mexe mais. » (scène 68) D’une « rasteira » à une autre, fatale celle-là, la boucle est bouclée dans le scénario de Luísa Costa Gomes. 34 Essentiellement pratiqué depuis l’Antiquité jusqu’au 17e siècle, le genre du centon trouve des prolongements dans la littérature contemporaine, notamment chez des écrivains liés à l’Oulipo, tels Georges Perec, Italo Calvino, Jacques Roubaud. 35 Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 146 Salado Pessoa transfictionnel changement de contexte, lorsque des énoncés migrent de la fiction hétéronymique pessoenne à la fiction seconde élaborée par Luísa Costa Gomes. Une première modalité de reprise du texte pessoen, majoritaire dans Não Sou Nada, consiste à attribuer des énoncés au personnage qui en est déjà l’auteur dans la fiction hétéronymique de référence. Les reprises textuelles sans changement d’auteur sont évidemment facilitées dans le cas du personnage de Pessoa, dans la mesure où le matériau disponible est très abondant. En particulier, les nombreux textes en prose écrits par Pessoa « en personne » constituent une réserve immense dans laquelle Luísa Costa Gomes peut puiser librement selon les besoins du scénario. Ainsi, à la scène 22, où l’on voit Pessoa déambuler passablement alcoolisé dans les rues de Campo de Ourique la nuit, son monologue reprend d’abord le début du texte « Plano de vida »36, puis se poursuit à la fin de la scène avec un passage de son journal de 1915 37 , tandis que dans l’intervalle intervient un dialogue avec un hétéronyme peu connu, le Dr Nabos, échange pour lequel une partie des répliques de Pessoa provient également de ses écrits intimes38. La scène résulte donc d’un montage de différents textes-sources pessoens, auxquels ont été apportés quelques ajouts qui permettent de les actualiser par rapport à leur nouveau contexte. Ainsi, une référence à Ofélia est « greffée » par la scénariste à la fin de la citation du « Plano de vida » – « Mas isto é para mim, homem solteiro… a viver com a mãe e a irmã… mas agora com a Ofélia… » (COSTA GOMES, 2015-2018: scène 22) –, ajout qui infléchit le sens des propos cités, en les donnant à entendre par rapport à la relation entre « Nininho » et Ofélia telle qu’elle est évoquée dans Não Sou Nada. Si l’emprunt se trouve dans l’exemple précédent assorti d’un ajout textuel, la scénariste n’a pas toujours à recourir à ce subterfuge pour que s’opère une réactualisation du sens des énoncés prélevés dans les écrits pessoens. Le contexte de la fiction seconde peut en effet suffire à donner aux énoncés empruntés un sens potentiellement différent de celui qu’ils pouvaient avoir dans leur contexte initial. C’est le cas par exemple à la scène 16, lorsque Campos regarde Lisbonne à sa fenêtre au lever du jour et prononce des vers de « Lisbon Revisited (1926) », tandis qu’à l’arrière-plan, on aperçoit les corps endormis de Charles Anon et Alexander Search, que Campos avait invités à passer la soirée chez lui, où il les avait fait boire Le monologue de la scène 22 s’ouvre par « Precisas de um plano, um plano para a tua vida… » et reprend à partir de là, sous une forme légèrement modifiée, le premier paragraphe du texte « Plano de vida », traduction du « Plan of Life » recueilli dans PESSOA (2003: 178-179). 36 37 Il s’agit du début du paragraphe « Se eu pudesse dedicar-me a qualquer coisa » (PESSOA, 2003: 155). Voir par exemple cette réplique insérée dans le dialogue entre Pessoa et le Dr Nabos : « Sou como um quarto com inúmeros espelhos fantásticos … » (PESSOA, 1966 : 93). Concernant le Dr Nabos, hétéronyme dont la création remonte aux années d’adolescence à Durban, voir la présentation qui lui est consacrée dans PESSOA (2013a: 180-182). 38 Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 147 Salado Pessoa transfictionnel avant d’entraîner Search dans sa chambre (COSTA GOMES, 2015-2018: scènes 12 à 14). La scène étant très courte, on peut la citer dans son intégralité : CENA 16. INT. NOITE CASA DE ÁLVARO DE CAMPOS Rompe o dia. CAMPOS está à janela do quarto a olhar Lisboa. Atrás, na grande cama branca, dormem os dois rapazes em seu estado comatoso. CAMPOS Outra vez te revejo – Lisboa e Tejo e tudo –, Transeunte inútil de ti e de mim. Estrangeiro aqui e em toda a parte. Outra vez te revejo Mas ai, a mim não me revejo! Partiu-se o espelho mágico em que me revia idêntico E em cada fragmento fatídico vejo só um bocado de mim – (COSTA GOMES, 2015-2018: scène 16) La citation des vers de la partie finale de « Lisbon Revisited (1926) »39, cohérente par rapport à la donnée diégétique du retour de Campos à Lisbonne, intervient ici dans un contexte fictionnel spécifique : le petit matin qui suit une nuit de débauche avec les deux jeunes Anglais que Campos a « rabattus » chez lui40. Ce que dit le poème – l’impossible coïncidence avec soi-même, la fragmentation du moi – s’éclaire alors d’une façon nouvelle à la lumière de la situation diégétique particulière que constitue ce moment de retombée qui suit celui des plaisirs de la chair. On vérifie ainsi que l’opération transfictionnelle, même lorsqu’elle se limite à une reprise d’énoncés sans changement de locuteur ni ajout textuel, modifie nécessairement la signification des énoncés cités et les donne à lire d’une manière différente.41 Sont cités les vers 42-44 du poème, puis les vers de la fin du poème, 54-57, le dernier vers – « Um bocado de ti e de mim !... » – étant toutefois omis. On relève également une petite modification du vers 44, « Estrangeiro aqui e em toda a parte » au lieu de « Estrangeiro aqui como em toda a parte » dans le poème publié. 39 L’homosexualité de Campos est bien plus explicite dans le scénario de Luísa Costa Gomes que dans la fiction hétéronymique pessoenne où les tendances homoérotiques de l’auteur de « Ode Marítima » s’expriment essentiellement à travers des images poétiques sado-masochistes, ou bien affleurent furtivement dans la mention faite entre parenthèses à un certain Freddie, que Campos dit avoir aimé dans « A Passagem das Horas » : « (Freddie, eu chamava-te Baby, porque tu eras louro, branco e eu amava-te […] » (PESSOA, 1993b: 198). Sur l’imaginaire homosexuel dans les poèmes de Campos, voir ZENITH (2021: 631). 40 Un autre exemple, parmi d’autres possibles, de cette reconfiguration du sens liée au contexte intervient à la scène 14, quand Anon reprend le début du texte « Excommunications » : « CHARLES ANON: – I, Charles Robert Anon, being, animal, mammal, tetrapod, primate, placental, ape… eighteen years of age, not married (except at odd moments) (Atira-se para a cama, deita-se ao lado de SEARCH) …megalomaniac, with touches of dipsomania, degeneré supérieur, poet, with pretensions to written humour, citizen of the world, idealistic philosopher CAMPOS sorri-lhe, convida-o a deitar-se. ANON (em off): etc. etc. etc. » (COSTA GOMES, 2015-2018: scène 14). Dans le contexte d’une soirée où les jeunes gens ont bu plus que de raison, le caractère fantaisiste de l’énumération apparaît ici 41 Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 148 Salado Pessoa transfictionnel Dans l’exemple précédent, le supplément de sens apporté aux vers cités de « Lisbon Revisited (1926) » demeure relativement discret, du fait que la situation énonciative monologique du poème est préservée dans le contexte de sa reprise : Campos contemple Lisbonne à sa fenêtre et dit ces vers pour lui-même, comme on peut les entendre en lisant le poème42. Il en va tout autrement quand un poème est repris dans un contexte dialogique, ce qui se produit très fréquemment dans Não Sou Nada où le dialogue l’emporte largement sur les passages monologués. Dans ce cas, même si l’attribution ne change pas et que les vers cités le sont sans modification, l’opération transfictionnelle implique un changement générique, puisque ce qui était poème, ou le plus souvent partie d’un poème, est transformé en réplique dans le cadre d’un échange verbal entre personnages. Remis en jeu dans ce cadre énonciatif différent, pris dans l’économie du dialogue, les énoncés du poème font alors sens par rapport aux enjeux pragmatiques d’une interlocution où la parole est agissante et vise à produire un effet sur l’interlocuteur. Un bon exemple de cette remise en jeu se trouve à la scène 21, quand Campos surgit de nulle part pour aborder Pessoa qui chemine sous la pluie dans une rue de la Baixa : EXT. DIA. RUA DA BAIXA DE LISBOA Chove. FERNANDO PESSOA abre o guarda-chuva, segue rente à parede. ALVARO DE CAMPOS surge, de lado nenhum, instantaneamente está a seu lado, conversando. CAMPOS gosta de ir à chuva. De vez em quando PESSOA quer abrangê-lo no guarda-chuva e ele recusa, afasta-se, depois aproxima-se de novo. CAMPOS: – Meu pobre amigo, não tenho compaixão que te dar. A compaixão custa, sobretudo sincera, e em dias de chuva. Quero dizer: custa sentir em dias de chuva. Sintamos a chuva e deixemos a psicologia para outra espécie de céu. (COSTA GOMES, 2015-2018: scène 21) La réplique de Campos correspond exactement aux quatre premiers vers d’un poème daté du 9/7/193043, dans lequel il n’est guère possible d’identifier l’interlocuteur imaginaire auquel s’adresse le poète, interlocuteur qui pourrait aussi bien être Campos lui-même. Or, tels qu’ils sont repris pour être insérés dans le dialogue, les motivé par l’ébriété du personnage. De surcroît, l’insertion de la didascalie montrant Anon s’allongeant aux côtés de Search, juste après la mention « not married (except at odd moments) », confère à cette précision une connotation spécifique, induite par le contexte qui renvoie explicitement à l’homosexualité. Cette situation de diction du poème en contexte de monologue se répète à plusieurs reprises pour Campos, par exemple à la scène 57 où Campos brûle dans sa cheminée les poèmes qu’il a dérobés à Pessoa – dont un qui lui est attribué ! – puis soupire en disant deux vers d’un poème non daté mais postérieur à 1923 (PESSOA, 1993b: 489) : « Estou vazio como um poço seco | Não tenho verdadeiramente realidade nenhuma » (COSTA GOMES, 2015-2018: scène 57), ou encore à la scène 66 dans la fumerie d’opium, où sont cités des vers de « Tabacaria » puis du poème « Insomnia » qui sont particulièrement appropriés au contexte. 42 43 Ce poème sans titre, non publié du vivant de Pessoa, se trouve dans PESSOA (1993b: 419-420). Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 149 Salado Pessoa transfictionnel vers cités fonctionnent très différemment. Dès lors que c’est le personnage de Pessoa qui est destinataire du discours de Campos, ces vers sont assimilables à une forme d’interpellation de l’écrivain par son persécuteur. Plus loin, la scène se poursuit selon le même principe, avec toutefois un procédé de montage plus complexe : Pela montra, CAMPOS e PESSOA vêem OFELIA, à secretária, a escrever à máquina, concentrada. pára a olhar para ela pelo vidro. Depois bate na montra com os nós dos dedos, OFELIA olha, sorri-lhe, faz-lhe um gesto para que espere um bocadinho. CAMPOS (dá-lhe um pequeno encontrão malandreco): – Com que então, problema sexual? Mas isso depois dos quinze anos é uma indecência. Preocupação com o sexo oposto (suponhamos) e a sua psicologia – PESSOA: – Mas é engraçada ela, olha lá… CAMPOS: – Muito bem olhada. Agora, ouve: o sexo oposto existe para ser procurado e não para ser compreendido. Compreender é ser impotente. PESSOA: – Não me venhas com teorias. Faz-se o que se pode. (COSTA GOMES, 2015-2018: scène 21) PESSOA Dans ce passage, les répliques de Campos correspondent bien à la suite du poème de 1930 précédemment cité, mais une réplique de Pessoa vient défaire la continuité de la citation, tandis que deux petites modifications sont apportées au texte d’origine afin de mieux l’intégrer au dialogue44. Ainsi « recyclés » dans l’échange verbal entre les deux protagonistes, les vers empruntés au poème gagnent une signification plus précise que celle qu’ils pouvaient avoir dans le poème d’origine. Les considérations de l’Ingénieur sur le « problème sexuel », de l’ordre de la généralité dans le poème, prennent ici le sens d’une réprobation visant à détourner Pessoa d’Ofélia, conformément au projet d’accaparement poursuivi par Campos dans Não Sou Nada. En migrant du poème au dialogue, et donc en se dialogisant, les énoncés poétiques sont devenus des actes de langage motivés par rapport au programme narratif assigné à Campos dans le scénario. On vérifie par cet exemple que les opérations de prélèvement et de montage des citations donnent clairement une portée nouvelle au matériau textuel pessoen, en lien avec le cadre diégétique dans lequel ce matériau est réagencé. De surcroît, du fait de leur insertion dans le dialogue, les vers originaux sont moins repérables en tant qu’énoncé poétique, le travail de la scénariste aboutissant alors à un quasieffacement de l’hétérogénéité générique entre le texte poétique de départ et le texte dramatique dans lequel les énoncés du poème se trouvent insérés. À ce degré d’intégration dans le dialogue, l’emprunt devient alors moins perceptible, ce qui Dans le poème, les vers se présentent ainsi : « Com que então, problema sexual? | Mas isso depois dos quinze anos é uma indecência. | Preocupação com o sexo oposto (suponhamos) e a sua psicologia – | Mas isso é estúpido, filho. | O sexo oposto existe para ser procurado e não para ser compreendido. | Compreender é ser impotente » (PESSOA, 1993b: 419, vers 5-11). Luísa Costa Gomes a apporté deux petites modifications au poème : ajout d’une virgule après « então », suppression de la majuscule marquant le début du vers « O sexo », du fait de l’insertion de « Agora ouve : ». 44 Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 150 Salado Pessoa transfictionnel contribue à rendre plus incertaine la distinction entre les textes d’origine pessoenne et les parties du texte rédigées par l’écrivaine pour les besoins du scénario45. Ce brouillage quant à l’origine des énoncés produit un trouble qui augmente encore quand le procédé de l’emprunt se complique d’un changement d’attribution, variations qui s’inscrivent tout à fait dans la logique mouvante de l’hétéronymie pessoenne, dont Luísa Costa Gomes joue avec habileté à plusieurs reprises dans son scénario. Le plus souvent, la migration textuelle s’opère dans Não Sou Nada sans changement d’attribution, mais il peut se produire qu’un fragment de texte emprunté à tel ou tel hétéronyme de la fiction pessoenne soit attribué à un autre personnage dans le scénario. L’emprunt équivaut dans ce cas à un détournement du texte source, manipulation qui prend évidemment tout son sens par rapport à la situation narrative dans laquelle elle intervient. C’est ce type de détournement qui a lieu à la scène 37, quand on voit Campos s’immiscer à nouveau entre Ofélia et Pessoa et tenter ce dernier en faisant miroiter le mirage d’une initiation sexuelle prochaine : ri-se. De repente, está ao lado de PESSOA, como um diabo tentador. – É um pouco tontinha, a Ofelinha. Devota e tão devota de santos e santas. Mas eu acho que ela gosta é de mim. PESSOA: – Acaba com a brincadeira. Deixa-me! CAMPOS: – Agora estás aborrecido. Bem, a verdade é esta. Agora és casto. Deixarás de o ser dentro de um mês ou um mês e três dias. PESSOA olha-o, interessado. À medida que ele vai falando, PESSOA pára e olha-o, hipnotizado como que por um espírito tentador e maléfico. CAMPOS (cont.): – E a mulher que te iniciará no sexo é uma rapariga que ainda não conheces. É uma poetisa amadora e assumida. OFELIA: – O senhor Engenheiro está para ficar? PESSOA: – Ele vai já embora, está com pressa. PESSOA agarra OFELIA por um braço. Afastam-se de CAMPOS que os persegue, fleumático, como um vendedor que sabe que tem um produto irresistível. (COSTA GOMES, 2015-2018: scène 37) CAMPOS CAMPOS: Les deux dernières répliques de Campos (à partir de « Agora estás aborrecido »), reprennent mot pour mot le texte de la première des communications médiumniques que Pessoa a consignées en 1916-1917, textes qui portent essentiellement sur son initiation sexuelle à venir46 et dont les différents auteurs sont assimilables à des Le terme « dramatique » appliqué au texte de Não Sou Nada est justifié dans la mesure où le scénario revêt bien pour l’essentiel les caractéristiques d’un texte théâtral : découpage en scènes, indications scéniques, dialogue. 45 Les communications médiumniques constituent une section autonome des Escritos autobiográficos, automáticos e de reflexão pessoal (PESSOA, 2003: 212-331). La plupart des 80 communications recueillies dans ce volume se présentent en anglais, une traduction en portugais étant proposée sur la page de droite. Les citations que Luísa Costa Gomes fait de ces textes reprennent sans la modifier la traduction en portugais de Manuela Rocha (p. 213 pour le passage cité qui correspond à la 1ère communication, 46 Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 151 Salado Pessoa transfictionnel hétéronymes 47 . La manipulation textuelle est donc ici plus complexe puisque l’emprunt se double d’un changement d’attribution, l’Ingénieur se substituant aux auteurs des communications médiumniques pour se faire le porte-parole du discours de la tentation. Comme dans les exemples précédents, l’emprunt fait sens par rapport au contexte, qui donne aux fragments textuels prélevés une portée différente de celle qu’ils pouvaient avoir dans leur contexte d’origine : en 1916, Ofélia Queiroz n’existe pas encore dans la vie de Fernando Pessoa, alors que dans cette scène, c’est bien elle qui devient la cible des propos de Campos annonçant à son « namorado » qu’il sera initié sexuellement par une autre jeune femme qu’il ne connaît pas encore. Mais au-delà de cette actualisation du sens en lien avec le contexte de la fiction seconde, le changement d’attribution revêt une signification supplémentaire, dans la mesure où il établit un lien entre les personnages qui, dans chacune des deux sphères fictionnelles, ont en partage un même texte. En l’occurrence, le fait que Campos reprenne ici la parole médiumnique des « esprits » concourt à le caractériser lui-même comme spectre démoniaque venu tenter Pessoa, association que confirment les didascalies : « diabo tentador », « espírito tentador e maléfico »48. Or il se trouve que cette association, qui fait sens par rapport à la fiction élaborée par Luísa Costa Gomes dans laquelle Campos revêt les attributs d’un double persécuteur, est en quelque sorte programmée par la fiction hétéronymique pessoenne. En effet, seul à être ainsi distingué parmi tous les autres hétéronymes, Campos est cité dans une des communications médiumniques de Henry More, message qui met en garde Pessoa contre sa tendance à se soumettre aux caprices de son hétéronyme : « Were you to work in your own way, you would waste less time. Were you to work in your own way you would waste less ardour. By this I mean to work in your way of thinking without pandering to ‘Álvaro de Campos’ whims. See ? You are in a period of life when a good woman is dawning » (PESSOA, 2003: 280, communication n.° 41). C’est donc par un juste retour des choses que dans le scénario élaboré par Luísa Costa Gomes, Campos détourne à son propre profit les paroles de celui qui tentait de l’évincer dans la fiction hétéronymique pessoenne. Le détournement mis en œuvre par la scénariste trouve une motivation non signée mais que le contexte permet d’attribuer à Henry More, l’un des principaux correspondants médiumniques de Pessoa). Les différents personnages auteurs des communications médiumniques ont un statut particulier dans la fiction hétéronymique pessoenne, leur fictionnalité étant en quelque sorte redoublée par leur nature « immatérielle » puisqu’ils ne se manifestent que sous la forme de voix. Des deux correspondants médiumniques les plus prolifiques, Henry More et Wardour, le premier se distingue aussi en raison du fait qu’il renvoie à un personnage historique, Henry More (1614-1687), philosophe anglais d’obédience platonicienne. Quant à Wardour, c’est sa femme, Margaret Maunsel qui est censée aller à la rencontre de Pessoa pour l’initier sexuellement. More, Wardour et les autres auteurs des communications médiumniques sont présentés dans PESSOA (2013a: 508-541). 47 Le rapprochement entre les deux sphères est d’ailleurs scellé par le terme « espírito » qui fait de Campos un équivalent littéral des « spirits » auteurs des communications médiumniques. 48 Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 152 Salado Pessoa transfictionnel supplémentaire du fait qu’existe bien une passerelle diégétique, certes discrète, qui mène de l’univers fictionnel pessoen où Campos apparaît comme un personnage rival des esprits médiumniques, à la fiction seconde de Não Sou Nada où Campos usurpe la parole de More, un des plus éminents correspondants médiumniques de Pessoa. La suite de la scène va toutefois redonner la parole aux « esprits », qui surgissent, ainsi que d’autres hétéronymes, pour former un chœur avec Campos, tandis que Pessoa, « alucinado », finit par s’enfuir avec Ofélia qu’il entraîne dans une entrée d’immeuble où il l’embrasse fougueusement. Dans cette scène de tentation aux allures d’hallucination, pas moins de quatre nouveaux personnages49 font leur apparition pour harceler Pessoa de leurs injonctions à renoncer à la chasteté et à « ir a cama com a OUTRA 50 ». Toutes les répliques de ce quatuor proviennent d’une même communication médiumique mais seuls les deux premiers personnages, Henry More et « O homem da frutaria, ou seja, Voodoista », sont des auteurs des communications médiumniques, tandis que les deux autres, « O Galego da água, ou seja, Rafael Baldaya » et « A peixeira, Maria José, a coxa », proviennent d’autres « régions » de la fiction hétéronymique pessoenne 51 . Le changement d’attribution est donc ici élevé à la puissance 3, puisque ce qui appartient au seul Henry More dans les communications médiumniques se trouve dans cette scène chorale réparti entre lui et trois autres personnages hétéronymiques. Un cinquième personnage, « Jean Seul de Méluret, o amoralista », qui s’exprime en français, complète le chœur avec des propos qui proviennent d’un autre texte, « La France en 1950 »52, avant que Campos ne reprenne la citation du texte des communications médiumniques. La didascalie précise que « todos eles são heterónimos de Pessoa […] todos personagems de Pessoa », précision motivée par le fait qu’il s’agit de protagonistes moins connus de la fiction hétéronymique. 49 Le terme « OUTRA » mis en majuscules est un ajout de Luísa Costa Gomes motivé par le contexte de Não Sou Nada, où les injonctions des esprits deviennent des actes de paroles visant explicitement à détourner Pessoa d’Ofélia en faveur de cette « OUTRA rapariga ». Dans la communication médiumnique de Henry More, il est seulement dit ceci : « Decide-te a ir para a cama com a rapariga que vai entrar na tua vida » (PESSOA, 2003: 227, communication médiumnique n.° 9). 50 La notoriété de ces personnages qui font une apparition furtive dans le texte de Luísa Costa Gomes est très inégale au regard de la fiction hétéronymique pessoenne : si Baldaya l’astrologue apparu dès 1915, auteur de deux traités, le « Tratado de Astrologia » et le « Tratado da Negação » , est une figure bien connue des Pessoens, Maria José, autrice tardive d’une unique lettre, est un personnage tout à fait méconnu de la constellation pessoenne, la 136ème et dernière des étoiles apparues au firmament du poète, d’après les éditeurs de Eu sou uma antologia. 51 « La France en 1950 » (PESSOA, 2006: 62-68, 65 pour le passage repris dans Não Sou nada). On relève une petite incongruité à propos de ce passage en français dans le scénario : s’il conserve le sens de l’original français écrit par Pessoa, il en diffère sur de nombreux points par sa formulation, altération qui pourrait résulter du fait que la scénariste a eu recours à une traduction en français de la traduction portugaise qu’on trouve dans Eu sou uma antologia, où le texte est présenté dans les deux langues (PESSOA, 2013a: 279-281). Parfaitement compréhensible en revanche est le choix de recourir 52 Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 153 Salado Pessoa transfictionnel Un autre exemple de changement d’attribution en lien avec la relation triangulaire Ofélia-Pessoa-Campos se produit à la scène 45, lorsque Pessoa, seul chez lui la nuit, entend la voix d’Ofélia évoquant leur vie commune à venir (« Se o Nininho está em condições de alugar uma casa »53), évocation à laquelle il réagit en prononçant ces vers de « Lisbon Revisited (1923) » :54 (com a voz de CAMPOS) : – Não me macem, por amor de Deus ! Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável ? Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa? Se eu fosse outra pessoa, fazia-vos a todos a vontade! (COSTA GOMES, 2015-2018: scène 45) PESSOA Le changement d’attribution, souligné par la didascalie « (com a voz de CAMPOS) », confirme l’emprise de Campos sur Pessoa, qui devient ici le medium (ou le ventriloque) à travers qui parle son hétéronyme. Le montage textuel de Luísa Costa Gomes dans cette scène acousmatique est à la fois très efficace sur le plan dramatique – la juxtaposition du rêve de vie domestique d’Ofélia et de la réplique cinglante de Pessoa-Campos produit un effet de choc –, parfaitement cohérent par rapport au rôle de perturbateur joué par Campos dans le « namoro » – le scénario s’inscrit sur ce point dans le prolongement de la correspondance –, mais aussi tout à fait suggestif, par la relecture des vers de « Lisbon Revisited (1923) » que ce montage induit. Ainsi réagencés dans le contexte de cette scène, les vers du poème de 1923 prennent le sens d’une réaction différée, mais violente, au désir de vie conjugale exprimé dans les lettres d’Ofélia Queiroz, établissant ainsi une relation entre la production poétique de Campos et la correspondance entre Fernando Pessoa et Ofélia Queiroz. Cette voie ouverte entre le poème et les lettres confirme que la transfictionnalité mise en œuvre dans Não Sou Nada se fonde essentiellement sur la migration textuelle. C’est bien en effet la reprise des vers de « Lisbon Revisited (1923) » qui « performe » le programme narratif qui soutient toute l’intrigue du scénario, à savoir la tentative de vampirisation par Campos de son créateur55. La relation duelle entre Pessoa et son hétéronyme repose ainsi sur une porosité textuelle qui s’actualise à d’autres moments du scénario, notamment à propos des dans cette scène de tentation érotique à Jean Seul de Méluret, dont la production est dominée par la thématique sexuelle. Le monologue d’Ofélia se poursuit plus loin dans la scène – « OFELIA (em off): – Eu não sou exigente e contentar-me-ei com tudo que esteja dentro das posses do meu querido Nininho » –, passage emprunté à la lettre adressée par Ofélia Queiroz à Fernando Pessoa le 29 mars 1931 (QUEIROZ, 1996: 331). 53 54 Il s’agit des vers 16-19 de « Lisbon Revisited (1923) » (PESSOA, 1993b: 271-272) Cette tentative se marque notamment dans la réplique précédemment citée : « Tu és eu. O meu eu » (COSTA GOMES, 2015-2018: scène 65). 55 Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 154 Salado Pessoa transfictionnel premiers vers de « Tabacaria », que le lecteur connaît comme étant un poème d’Álvaro de Campos mais que le scénario présente d’abord comme des réflexions à haute voix que se fait Pessoa en présence de Quaresma : CENA 58. INT. NOITE. CASA DE ABÍLIO QUARESMA PESSOA está de pé, junto à janela que dá para um pátio interior. Tudo são paredes. Abre a janela e expele o fumo do cigarro para a noite fria. O fumo do cigarro confunde-se com o ar que respira e que se vê também materializado. QUARESMA, sentado no seu cadeirão, de manta sobre os joelhos, copo de aguardente na mão, fuma também. PESSOA: – Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. QUARESMA (assertivo): – Não podes querer ser nada! Não podes fraquejar agora. Ele destrói e tu crias. PESSOA: – Sem eles eu não sou nada. (COSTA GOMES, 2015-2018: scène 58) Le changement d’attribution qui voit des vers de Campos devenir des paroles de Pessoa concourt à conférer du crédit à la revendication d’identité portée par l’hétéronyme – « Tu és eu. O meu eu » (COSTA GOMES, 2015-2018: scène 65) –, exemple où se vérifie à nouveau que c’est par un travail serré de reprise et de redistribution du matériau textuel que Luísa Costa Gomes donne substance à son intrigue. Un autre cas d’emprunt avec changement d’attribution d’un énoncé mérite d’être cité pour illustrer le travail de la scénariste, détournement textuel et retournement diégétique allant de pair dans cet exemple qui intervient à la fin du scénario. Le parcours de Campos dans Não Sou Nada s’achève sur un ultime rebondissement, quand par une « rasteira » inattendue Soares provoque la chute de son agresseur dans les escaliers, manœuvre qui opère comme on l’a vu un renversement de la fin précédemment annoncée. Ce retournement scénaristique coïncide avec un détournement textuel, qui se joue dans cette ultime réplique de Soares : « SOARES (escarninho): – Subiste à gloria pela escada abaixo ! » (COSTA GOMES, 2015-2018: scène 69). C’est en effet par une image métaphorique empruntée au poème « Apontamento », celle de la chute de l’âme dans l’escalier, que Soares scelle l’issue victorieuse de son combat avec Campos, retournant ainsi contre lui non seulement la force physique de son adversaire (« SOARES […] usa a força de CAMPOS para uma última rasteira de jiujitsu »), mais aussi les mots du poème : « A minha alma partiu-se como um vaso vazio. | Caiu pela escada excessivamente abaixo » (PESSOA, 1993b: 358). La « rasteira » verbale de Soares, où s’inscrit le motif de l’inversion par le retournement du mouvement ascensionnel en chute (« Subiste […] abaixo »), vient ainsi confirmer à la toute fin du texte le principe ludique qui est au cœur même de l’écriture transfictionnelle mise en œuvre par Luísa Costa Gomes. La propension de l’écrivaine à jouer avec la fiction hétéronymique prend une tournure particulièrement malicieuse, et jubilatoire, lorsqu’elle intègre à son texte des éléments qui questionnent la cohérence de la fiction hétéronymique Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 155 Salado Pessoa transfictionnel pessoenne, ou qui pointent les contradictions de sa propre fiction au regard de celle dont elle procède. C’est au « raciocinador » Quaresma qu’il revient de porter ce questionnement réflexif, comme on le voit dans l’échange qui intervient à la scène 58, dans laquelle Pessoa, qui vient de lui faire part des meurtres commis par Campos sur les personnes de Caeiro, Reis et des poètes anglais, sollicite l’enquêteur pour qu’il active ses contacts dans la police : QUARESMA: – E queres metê-los nesta embrulhada? Como é que descreverias exactamente a situação? O poeta Álvaro de Campos matou o poeta Alberto Caeiro, que está morto desde 1915, embora continue a escrever poemas em 1931, depois de morto, olha que conveniente! E o Reis não terá ido mesmo para o Brasil? Tens alguma prova, a não ser nessa tua imaginação terrível… (COSTA GOMES, 2015-2018: scène 58) La réflexivité et l’ironie sont à leur comble dans cette réplique où Quaresma dénonce à la fois l’incohérence interne à la fiction hétéronymique pessoenne qui attribue à Caeiro une production poétique post-mortem, et les écarts de la fiction seconde par rapport aux données contenues dans la fiction première qui lui sert de référence. Au regard de la fiction hétéronymique « orthodoxe », il est en effet absurde d’imaginer que Campos puisse être l’assassin d’un homme mort il y a des années, et d’un autre qui s’est exilé depuis longtemps au Brésil. À travers le personnage de « Quaresma, decifrador », observateur plus qu’acteur du récit, et par là-même figure possible du lecteur dans le texte, Luísa Costa Gomes attire donc elle-même l’attention sur les libertés qu’elle prend dans Não Sou Nada à l’égard de la doxa hétéronymique, effectuant ainsi un geste ironique qui désamorce plaisamment les reproches qu’on pourrait faire à sa propre « imaginação terrível ». Virtuose, joueuse, et volontiers provocante, Luísa Costa Gomes parcourt librement la fiction hétéronymique pessoenne pour y puiser la matière de son texte, explorant au fil de son écriture des recoins peu fréquentés de cet univers en expansion que représentent les écrits de Pessoa. C’est en lectrice subtile et savante qu’elle se déplace dans le vaste « playground » de ces écrits, et c’est en dramaturge inspirée qu’elle se livre à toutes sortes de manipulations pour produire, in fine, une fiction dont l’intrigue comme la matière langagière qui la porte s’avèrent éminemment pessoens, pour le plus grand plaisir de ses lecteurs. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 156 Salado Pessoa transfictionnel Bibliographie GENETTE, Gérard (1982). Palimpsestes. La littérature au second degré. Paris : Éditions du Seuil. Collection Poétique. GOMES, Luísa Costa (2015-2018). Não Sou Nada. Scénario inédit. PESSOA, Fernando (2023). Cartas de amor. Edição de Jerónimo Pizarro. Lisboa: Tinta-da-china. _____ (2014). Obra completa de Álvaro de Campos,. Edição de Jerónimo Pizarro e Antonio Cardiello ; colaboração de Jorge Uribe e Filipa Freitas. Lisboa: Tinta-da-china. _____ (2013a). Eu sou uma antologia: 136 autores fictícios. Edição de Jerónimo Pizarro e Patricio Ferrari. Lisboa: Tinta-da-china. _____ (2013b). Poesia de Álvaro de Campos. Edição de Teresa Rita Lopes. Lisboa: Assírio & Alvim. _____ (2006). Obras de Jean Seul de Méluret. Edição e estudo de Rita Patrício e Jerónimo Pizarro. Edição crítica de Fernando Pessoa, Série Maior, volume VIII. Lisboa: Imprensa NacionalCasa da Moeda. _____ (2003). Escritos autobiográficos, automáticos e de reflexão pessoal. Edição de Richard Zenith. Lisboa: Assírio & Alvim. _____ (1999). Correspondência 1923-1935. Edição de Manuela Parreira da Silva. Lisboa: Assírio & Alvim. _____ (1966). Páginas íntimas e de auto-interpretação. Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho. Lisboa: Ática. PRESENÇA (1993). Edição facsimilada compacta. Tomos I e II. Lisboa: Contexto editora. QUEIROZ, Ofélia (1996). Cartas de amor de Ofélia a Fernando Pessoa. Organização de Manuela Nogueira e Maria da Conceição Azevedo. Lisboa: Assírio & Alvim. SAINT-GELAIS, Richard (2011). Fictions transfuges. La transfictionnalité et ses enjeux. Paris : Éditions du Seuil. Collection Poétique. ZENITH, Richard (2021). Pessoa. A Biography. New York: Liveright. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 157 Salado Pessoa transfictionnel REGIS SALADO est Maître de conférences en littérature comparée à Université Paris Cité. Ses travaux, qui ont donné lieu à de nombreux articles et à plusieurs volumes collectifs dont il a assuré la co-direction, portent sur les modernités littéraires dans les domaines anglophone, lusophone et francophone, avec un intérêt particulier pour les questions liées aux esthétiques modernistes et à leur réception dans une perspective interculturelle. Dans ce cadre, il a publié entre autres des études sur les œuvres de Joyce, Larbaud, Pessoa, Faulkner, Mário de Andrade, Beckett. Il a également exploré les relations d’intermédialité entre littérature et cinéma, notamment à propos de l’œuvre de Manoel de Oliveira. Parallèlement à son activité de chercheur, Salado est engagé depuis longtemps dans l’enseignement universitaire en milieu carcéral. Il codirige le séminaire interdisciplinaire “Enseignement, Recherche, Création en Milieu Carcéral” à Université Paris Cité. RÉGIS SALADO is an Associate Professor of Comparative Literature at Université Paris Cité. His work, which has resulted in numerous articles and several edited volumes which he codirected, focuses on literary modernities in Anglophone, Lusophone, and Francophone contexts, with a particular interest in issues related to modernist aesthetics and their reception from an intercultural perspective. In this context, he has published studies on the works of Joyce, Larbaud, Pessoa, Faulkner, Mário de Andrade, and Beckett, among others. He has also explored intermedial relations between literature and cinema, particularly in the works of Manoel de Oliveira. Alongside his research activities, Salado has long been involved in university teaching in carceral environments. He co-directs the interdisciplinary seminar “Teaching, Research, Creation in Carceral Environments” at Université Paris Cité. RÉGIS SALADO é Professor Associado de Literatura Comparada na Université Paris Cité. O seu trabalho, bem representado em numerosos artigos e vários volumes editados que co-dirigiu, concentra-se nas modernidades literárias nos contextos anglófono, lusófono e francófono, com um interesse particular em questões relacionadas à estética modernista e a sua recepção numa perspectiva intercultural. Neste contexto, publicou estudos sobre as obras de Joyce, Larbaud, Pessoa, Faulkner, Mário de Andrade e Beckett, entre outros. Também explorou as relações intermediais entre literatura e cinema, nomeadamente nas obras de Manoel de Oliveira. Junto às suas atividades de pesquisa, Salado está há muito comprometido com o ensino universitário em ambientes prisionais. Ele co-dirige o seminário interdisciplinar “Ensino, Pesquisa, Criação em Ambientes Carcerários” na Université Paris Cité. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 158 !"#$%&'$()')*")*"+*,,-'"*."/($.*,")*"'0(.'12-" *"3(,45&(',"*."6%')&(03-, !!"#$%&'()&*+,$-.$/#00-)$*1$)1*2)+#3$.*&20$)13$4-2*4$5--60" !"#$%&'%($)* !"#"$%"&'()"$* "#$%&%'(!)#**(&+!",-.#!'#!/%,.&01(+!2,*34$,&*!#.!56&'$,%7(*+!/'&83&01(+!9-(&$!:6&;;#--,+! <33(!:6#$$&+!=&#$3#!>(63,%7(+!?(*@AB&%6#-!C&$&3&!D&E,#$+!F7,G&6-3!>7(--#3H ,*&-./ 9*3#!&$3,I(!#J&.,%&!6.!8#56#%(!K(%L6%3(!'#!M,-.#*!'#!&%,.&01(!#!7,*34$,&*!#.!56&'$,%7(*! 56#!'#*#%E(-E#.!3#.N3,K&*!8#**(&%&*+!56#$!&3$&E@*!'#!#*3$&3@I,&*!'#!&'&83&0O#*!3#J36&,*+! 56#$!8#-&!'$&.&3,;&01(!'#!8#$*(%&I#%*!$#3,$&'&*!'# 6.!,.&I,%N$,(!8#**(&%(H!)($!M($0&!'&! E&$,#'&'# '(*!I@%#$(*+!#*3,-(*!#!76.($#*!'#**#*!.#*.(*!8(#.&*!($,I,%&,*!#!'(*!3#J3(*!'#! 2P!#!MQ-.,K(*+!3('(!#!56&-56#$!(GL#K3(!@!'#*'#!-(I(!8-6$&-!%&!*6&!.&3@$,&!#!%QE#,*!',#I@3,K(*+! 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As adaptações dos escritos ou episódios da vida biográfica e intelectual de Fernando Pessoa, ou empregos da figura, a outros meios (romance, filme, quadrinhos [banda desenhada], teatro, artes visuais, etc.) são demasiados para sequer aqui elencar. Desde adaptações mais didácticas da sua vida e obra, à transformação numa personagem de narrativas fantásticas, há uma suficiente plasticidade nelas (vida e obra) para permitir uma grande latitude. De certa forma, isso foi tornado possível não-tanto ou somente pelo próprio papel preponderante que viria a assumir na cultura portuguesa como até na forma como os portugueses, em primeiro lugar, mas igualmente os falantes do português, o assumem como símbolo transfigurado de uma identidade móvel e inconstante. Como Eduardo Lourenço identificou em Pessoa Revisitado, “o objecto primeiro da exegese de Pessoa não foi a sua poesia múltipla, mas a relação dessa múltipla poesia com os seus míticos (e reais) autores, o que mergulhou toda a crítica numa miragem criadora de miragens” (LOURENÇO, 1974: 29; itálicos no original). E se a crítica académica se presta a miragens, quanto mais a recriação artística. Teresa Sobral Cunha, no seu ensaio introdutório ao roteiro do filme-vídeo realizado por Margarida Gil, Fausto, descreve uma flutuação de identidades. Como o semi-heterónimo Bernardo Soares “intersectou a personalidade ortonímica” de Pessoa. Ou como a personagem Fausto “foi feito aparecer como protagonista do exercício da razão abstracta”. De tal maneira que surgiriam esses “dois protagonismos não só como decisivos no aprofundamento da consciência humana [...] mas também decisivos na identificação do autor real com o herói da tragédia subjectiva” (CUNHA, 1994: 9; itálicos no original). A “tragédia” a que a autora se refere é Fausto, mas queremos neste artigo auscultar outros dramas subjectivos nos quais protagonizam, intersectam e multiplicam as figuras e personalidades de Fernando Pessoa. Referir-me-ei, vezes sem conta, a “Fernando Pessoa” como participando em narrativas fictícias ou adaptativas. Essa é uma facilidade do discurso, uma vez que não estaremos a referir-nos ao poeta empírico lisboeta que viveu na primeira metade do século XX, mas antes às figuras desenhadas e animadas destes outros novos textos, no Pessoa convertido em “fantasma”, “assombração”, em “objecto de criação em toda a esfera do simbólico” (LOURENÇO, 1988: 11). Todavia, a sua iconicidade reconhecida e a sua consequente transformação criam de imediato e em constância Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 160 Moura A pluralidade de Pessoa em filmes de animação elos de intertextualidade inevitáveis. Os pontos de partida são quatro filmes de animação, três curtos e um longo, mas também arregimentaremos alguns quadrinhos, com os quais essas animações se relacionam de modo directo, de três autores brasileiros, a saber, Eloar Guazzelli, Otto Guerra e Laerte Coutinho, um português radicado em França, José-Manuel Barata Xavier e um francês, Thibault Chollet. “Piratas, amai-me e odiai-me!” Álvaro de Campos, Ode marítima A Cidade dos Piratas, longa-metragem de animação de Otto Guerra, segue uma estrutura de vários níveis textuais e que empregam tropos já antigos da própria história da animação, as quais são promissoras pistas de interpretação na forma como integram as dimensões pessoanas. O filme tem esse título, pois irá tecer uma estrutura em torno sobretudo da cidade de São Paulo, “tomada conta” pelo caos existencial das personagens de Laerte Coutinho, com óbvio destaque para os Piratas do Tietê. Estes se estrearam nas páginas da revista Chiclete com Banana, número 4, em 1986, logo de seguida na Circo (na qual é publicado o capítulo que terá a nossa maior atenção neste estudo), na homónima Piratas do Tietê e, finalmente, no diário Folha de S. Paulo. Figs. 1 e 2. Pessoa navega o rio Tietê em A cidade dos piratas. Não podemos somente dizer que Cidade é uma adaptação de alguns materiais quadrinísticos de Laerte. Se originalmente se previa uma adaptação tout court, e somente, com ou sem aditamentos originais, das histórias dos Piratas, a mudança da disponibilidade da autora para lhe dar continuidade jogou em crise esse caminho mais “fácil”, por assim dizer. Essa crise acaba por informar todo o projecto, que se fragmenta então em várias direcções. Por um lado, continuará a adaptar matéria textual de Laerte Coutinho, mas lançando mão igualmente de tiras da série Manual do Minotauro, o blogue de tiras que tem alimentado quase diariamente desde finais de Novembro de 2008, e outras histórias curtas de várias publicações. É também a crónica da crise do próprio director e o seu filme, projectando-se este como participante no mundo diegético. Um dos primeiros tropos constituintes do cinema de animação ele mesmo, e logo incluídos, é tematizado, e recorrentemente, nas dúbias relações entre criador e Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 161 Moura A pluralidade de Pessoa em filmes de animação criatura, criador e criação. Numa cena, Laerte, enquanto personagem participativa da parte documental do filme, capturada fotograficamente a cores, joga fora uma tira no lixo, da qual se anima o Capitão a preto-e-branco, escapando não apenas do seu mundo diegético (as aventuras com os piratas) mas para o mundo do filme e do director. Este último, na história do filme, está sempre se questionando sobre a natureza do projecto, sobre as possibilidades de trabalho, de controlo, e de relação com a matéria adaptada. Portanto, a relação entre o director e o seu filme, que se poderia considerar o nível diegético (ou principal), espelha-se na “matéria trabalhada”, isto é, um primeiro grau hipodiegético da autora Laerte e das suas próprias obras. Por seu lado, estes dois níveis se reflectem num segundo e múltiplo nível hipodiegético, nas “histórias” adaptadas: a relação do escultor e a sua peça, a expressão da identidade sexual de travesti, a “novela” do Minotauro, a narrativa do político, não apenas cruzando uma história com a outra, criando oportunidades de interacção entre as personagens numa mesma situação diegética, mas confundindo uma com a outra, apontando como uma pode ser o “interior” ou “desdobramento” da outra (minotauro fantasia explorada pelo político para a psicanalista, travesti como musa do corpo do minotauro esculpido...), ou revelando ligações através das técnicas específicas ao cinema da animação, com as transições de planos, mutações de personagens, etc. Mais adiante, falaremos desta travessia “ilícita” de níveis diegéticos. Interessa notar, neste ponto, como Guerra está recuperando aquela figura da “máquina desobediente”, metáfora que o académico norte-americano Scott Bukatman cunhou a partir do poema “O aprendiz de feiticeiro”, de Goethe (de 1797). Foi muito cedo que este funcionamento ocupou um papel preponderante no cinema de animação, como nos exemplos inaugurais de Gertie de McCay (1914) ou o do palhaço Ko-Ko de Max Fleischer na série Out of the Inkwell, a qual teve início em 1918. Bukatman acentua como estas interacções entre animador (criador), que participa na diegese como personagem de pleno direito, e animado (criatura) tomavam um “certo tom adversativo”, na recusa das personagens animadas seguirem as instruções ou vontades dos seus criadores. Todavia, essa mesma “natureza rebelde pode ser lida como um sinal adicional da sua vitalidade” (BUKATMAN, 2021: 6; minha tradução). Figs. 3 e 4. A máquina desobediente em Gertie e Out of the inkwell. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 162 Moura A pluralidade de Pessoa em filmes de animação Verificaremos, no cômputo final, que quer os filmes de Guerra-Laerte, de Guazzelli e Chollet quer as HQ de Guazzelli vivem numa ontologia complexa entre a ficção e a não-ficção: pela inclusão de material documental, a adaptação de poemas de Pessoa, troca de correspondência, notícias, a voz off de Laerte, a autoficção do director Guerra, a projecção de Chollet, o reemprego de matéria desenhada para um filme, e as materialidades opacas, visíveis e texturadas (para uma possível discussão da história do cinema não-ficcional / documental e suas implicações ontológicas, v. ROE, 2013). Estas camadas de pré-textos e materialidade diversa, assim como, em Cidade, os excertos das entrevistas televisivas e as palavras de Laerte Coutinho em off – sobre a negociação ao longo da vida da sua identidade de género, considerações sobre a sua obra, interpretações do Minotauro, etc. – oferecem ainda níveis adicionais de metatextualidade. Desta forma, os episódios de Fernando Pessoa pertencem a um complexo diálogo entre os vários níveis. Por um lado, poder-se-á considerar tão-somente um nível hipodiegético cristalino: trata-se da adaptação do episódio dos Piratas, “O Poeta”, que surgiu em doze páginas na Circo, número 5 (1987) (cf. Fig. 1). Mas por outro também pode ser visto como uma mise-en-abyme da intrincada rede dialogal entre criador (poeta) e criações (poemas), cuja variedade (heterónimos em Pessoa, tons e humores e tempos para Laerte) se transforma em matéria disponível para ser remoldada (todos elementos passíveis de entrar no filme de Guerra). Na HQ citam-se versos, soltos e misturados, advindos do Pessoa ortónimo e dos heterónimos Álvaro de Campos e Alberto Caeiro, transformando-se num só discurso escorreito e incessante – não obstante as tentativas dos piratas de o aniquilarem, mas apenas mostrando a impossibilidade do movimento maquínico e físico deles impedirem o espírito do poeta – um pouco como o coiote ao Papa-Léguas nos filmes de Chuck Jones. Em A Cidade dos Piratas, os versos citados são outros, havendo uma predilecção expectável pela “Ode Marítima” de Álvaro de Campos, mas o mecanismo de re-textualização é o mesmo. Figs. 5 e 6. Pessoa prisioneiro em A cidade dos piratas. Há, porém, outra estratégia. O personagem de Pessoa que participa no filme, a dado momento (sensivelmente ao minuto 30) não é mais aquele intrépido baluarte avançando nas águas do Tietê, mas mero prisioneiro e agora escriba-escravo do Capitão. Se na HQ a figura de Pessoa mantém um papel heróico e triunfante – no Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 163 Moura A pluralidade de Pessoa em filmes de animação final da história, todos os poetas se sentem liberados para tomar acção –, em Cidade ele acaba subsumido a um papel mais passivo e subserviente. Nesse episódio, as palavras aparentemente grandíloquas e poéticas que tenta anotar no papel dão depressa lugar a meras tarefas quotidianas, que ele cumpre de seguida, interrompendo sua função ontológica: “beber água”, “desentupir a privada”, “aparar o hibisco”... Mas que função será essa, afinal? Figs. 7 e 8. Pessoa escrevendo em A cidade dos piratas. Quase no fecho do filme, Laerte – numa entrevista a um podcast de Rafucko – assina a bandeira brasileira com o início de um soneto, “Ora (direis)”, primeiras palavras do poema “Ora (direis) ouvir estrelas”, que é imediatamente escutado em voz alta pela personagem de Fernando Pessoa, encerrando o filme antes dos créditos. Mas o poema é de Olavo Bilac, não de Pessoa. A deslocação do poema – ou apropriação, talvez –, não pode ser vista como estranha, pois não há tampouco estranheza no acto de “ouvir estrelas” do poema, já que essa sinestesia – mescla, travessia, de sentidos – está patente no próprio filme. O texto fílmico explora parte dessa diversidade de materiais narrativos e de variação da materialidade na sua própria tessitura, ainda que nunca de uma forma tão radical que o colocasse, por hipótese, num território considerado “experimental”. Regra geral, o desenho e técnica de A Cidade dos Piratas é límpido, legível, claro nas acções, e são poucos os momentos em que se busca algum tipo de disrupção visual. Não estamos no campo da experimentação radical dessa vertente. Utilizando abordagens tradicionais de animação 2D, ainda assim existem divergências, como o uso do preto-e-branco para o capitão dos piratas quando este deambula pelo mundo do director, ou as interrupções ou separadores que imitam as distorções visuais de um zapping em televisores antigos. É natural que, baseando-se numa obra de um chargista, humorista, quadrinista, poeta gráfico, e alguém cada vez mais interventivo política e socialmente, e com uma capacidade de ironia extravasante, que a crise recaia sobretudo na textura da intriga, da organização dos eventos. O filme ainda explora outros assuntos que adensam esta trama: a situação política recente brasileira, os crimes (de sangue ou sociais ou de preconceito) anti-trans, o câncer do director, todos eles sempre alimentando aquele trânsito de níveis diegéticos indicado. Não há praticamente frase dita por uma personagem, uma confissão, memória ou desejo que não seja transponível para Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 164 Moura A pluralidade de Pessoa em filmes de animação uma outra, e todas elas alimentando um único texto multifacetado que se torna, não apenas desobediente, mas uma máquina de desejo. Fig. 9. Estudo do diretor Otto Guerra para a animação do personagem de Pessoa em A cidade dos piratas. “O homem e a família dele são reais do lado de lá da janela. Eu estou do lado de cá, a uma grande distância. A luz apagou-se. Que me importa que o homem continue a existir?” Alberto Caeiro, Poemas Inconjuntos Figs. 10 e 11. Capas das duas histórias em quadrinhos de Guazzelli sobre Pessoa: Fernando Pessoa e Outros Pessoas e Eu, Fernando Pessoa. Eloar Guazzelli lançou em 2011 um livro intitulado Fernando Pessoa e Outros Pessoas (doravante FPOP), com um roteiro [guião] de Davi Fazzolari. Nele, os autores adaptam vários poemas às estruturas tipificadas dos quadrinhos (diagramações de vários quadrinhos numa página, a busca por composições significativas, um arranjo dos textos – em legendas, sobretudo – que submete os poemas originais a novos ritmos e haustos). Dois anos passados, sairia Eu, Fernando Pessoa – em quadrinhos, (doravante EFPQ), este com roteiro de Susana Ventura (Peirópolis, 2013), e mais concentrado em termos das fontes textuais. Num tom mais elegíaco (aberto com uma sequência Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 165 Moura A pluralidade de Pessoa em filmes de animação de Pessoa mexendo em papéis e revelando um poema de Bocage, “Ó retrato da morte, ó noite amiga!”), este segundo livro amalgama a famosa carta de Pessoa a Casais Monteiro, que tanto serviria de base para a análise e teoria heteronímica como de auto-mitificação do próprio poeta, a notícia de óbito escrita por Luís de Montalvor, compagnon de route de Pessoa em Orpheu e outras aventuras na poesia, e poemas ou excertos de composições que servem para “ilustrar” os pontos abordados na carta. Quando um heterónimo é apresentado na carta, a parte seguinte adapta um poema desse mesmo heterónimo, por exemplo. Quero acreditar que existirão estratégias bem diferentes do trabalho de Fazzolari e de Ventura, demonstradas desde já pelas diferentes abordagens e modos de uso dos escritos de Pessoa. Porém, as características do trabalho artístico de Guazzelli acabam por ganhar uma proeminência bem vincada, com seus costumeiros enquadramentos apertados, uma predilecção pela ausência do corpo humano, ou no caso da sua aparição, uma qualidade hierática do mesmo, e uma certa qualidade de achatamento entre figura e fundo, buscando menos a ilusão naturalista do que uma presença gráfica. Figs. 12 e 13. O uso dos textos em duas histórias em quadrinhos pessoanas de Guazzelli. Parte dessa estratégia é visível ao nível da legendagem. Em FPOP, os textos têm uma presença sob a forma de legendas, relegadas para as extremidades dos quadrinhos, as mais das vezes no cimo. Em “A tabacaria fora de mim”, apenas um balão de fala é usado, e só em “O desassossego de Bernardo” é que se institui a ilusão de diálogos falados entre personagens diferentes, e mesmo assim apenas no fim desse encontro. Já em EFPQ, mais balões de fala são empregues, mas continuaremos na mesma abordagem, em que são menos intervenções directas das personagens no seu mundo diegético, do que uma passageira delegação do transporte dos textos que constituem uma faixa ininterrupta. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 166 Moura A pluralidade de Pessoa em filmes de animação Podemos então dizer que o balão pode estar atribuído a uma personagem, mas sem que esta assuma um raio de agência destacado da narrativa visual construída pela progressão da sequência. Mais, essas frases em balões não criam uma distinção de nível clara em relação ao resto do texto, como uma voz, aparte, comentário, marca de oralidade, ou outra estratégia. Não estarão ali por mero acaso, claro, mas não assumem uma função subsumida a expectativas normativas. É como se ganhassem somente forma, mas não a função dessa forma (legenda para nível do narrador, balão para nível da personagem no mundo diegético), mas fluíssem na mesma lisura. Uma influente HQ de poucas páginas de Chris Ware, “I guess” (1991), segue também essa estratégia de “esmagamento” entre nível diegético e nível da narração. Mais influente no mundo literário ainda é a nota que Stéphane Mallarmé indicou na introdução de Un coup des dés jamais n'abolira le hasard (1897): “On évite le récit”. A produção poética de Fernando Pessoa é por demais variada e vasta para se poder considerá-la como pertencente a uma mesma valorização, vontade e vigor, mas se temos alguns poemas onde se descrevem pequenas vinhetas narrativas mais claras (“O menino de sua mãe”, “O mostrengo” e talvez “A noite” de Mensagem, entre outros), a lírica promete menos pistas decisivas a uma subsunção a uma intriga ou teatro de personagens. Guazzelli pode lançar pistas de ancoramento espacial, recorrer a personagens, mas evita a narrativa tout court, compreendendo que, se narrativa houver, ela é “uma máquina de produzir uma identidade narrativa” (BABO, 2011: 11; minha tradução). Há outra faceta ainda de tornar a matéria verbal, escrita, como parte da lisura. Toda uma série de objectos voláteis em FPOP, como o fumo das chaminés e dos barcos, e as nuvens, são compostas por formas livres preenchidas por linhas semirabiscadas, imitando um qualquer sistema de escrita, em “letra de médico”, ou assémica, e têm origem num primeiro balão de fala, também ilegível, de Pessoa (na página 14). Poder-se-ia dizer, então, que é como se fosse a matéria oral do poeta, tornada primeiro em signo vazio (significante sem significado) se transforma em marca gráfica móvel que poderá compor o mundo em torno. Ora, o mundo, ou os mundos, das obras de Guazzelli têm sempre uma qualidade de circunscritos à sua existência gráfica. Um contraste imediatamente visível entre a abordagem de Laerte-Guerra e de Guazzelli tem que ver com a “deslocação” da figura do seu usual contexto. Como é sabido, o poeta português, para além sua infância em Durban, África do Sul, pouco ou nada viajou, conhecendo-se poucas saídas de Lisboa, e sempre para uns poucos quilómetros de perto. Sem abuso de psicologizar a escrita para arrancar falsas pistas biográficas, no Livro do Desassossego (trecho utilizado por Guazzelli em FPOP), está escrito: “Quem nunca saiu de Lisboa viaja ao infinito no carro até Benfica, e, se um dia vai a Sintra, sente que viajou até Marte” (cf. https://ldod.uc.pt/search/simple). Todavia, a sua poesia, prosa, ensaio, breve nota, a sua escrita enfim, lançava-se, fantasiosa, às mais díspares dérives, fossem elas citadinas e nocturnas, fossem de épicas navegações ou Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 167 Moura A pluralidade de Pessoa em filmes de animação aventurosas revisitas a matérias literárias (episódios históricos, o ciclo arturiano ou o locus amoenus clássico). Guazzelli ancora o poeta na sua Lisboa nativa, muitas vezes populada por uma troupe de tropos, clichés encarrilados que configuram reconhecimentos quase imediatos: os telhados laranjas contrastando com o azul do Tejo, as paredes cobertas por azulejos de tapete, o Cais das Colunas como ponto de partida de um olhar melancólico, os candeeiros anciãos, as portas buriladas, os eléctricos, os cafés-bebida e os cafés-estabelecimento... Sobretudo no livro com Fazzolari. Já com Ventura, as aguadas parecem também liquefazer as paisagens e fundos em lugares mais fluidos e ambivalentes. Em FPOP, inclusive, algumas páginas se consubstanciam como que arrancadas de um diário de viagem, um caderno de um desenho lavrado à vista, em frente aos objectos de atenção. Não deixa de ser contrastivo que tanto Guazzelli como Laerte (e também seus colaboradores) utilizem o poema “Tabacaria” como ponto de partida, ainda que o primeiro o cite quase integralmente numa longa e aturada panorâmica de Lisboa (abrindo-se aos seus pormenores, e depois vogando até ao “indefinido”), e o segundo o torne em breves trechos, remisturados com outros tantos, de um contínuo discurso triunfante enquanto o poeta desce o Tietê, desafiando os piratas. O artista riograndense emprega diversas técnicas de desenho, de grande variegação de linha, composição, escolha cromática. Em FPOP há uma primeira predilecção por cores vivas, sobrepostas em manchas, por vezes em composições soltas e livres, a letra manuscrita em cursivo; noutras páginas, a composição dos quadrinhos se arregimenta, colocando o texto em maiúsculas organizadas, as cores contidas nos seus limites do traço; e na sequência “O desassossego de Bernardo”, e o preto-e-branco que impera, com as linhas e as sombras e o contraste num patente equilíbrio entre o estilizado e o naturalismo, surge uma ilusão ainda maior da convencionalidade narrativa da HQ, mas falsa, já que é a intensidade do pensamento interno do protagonista (ainda que desenhado com a iconicidade do Pessoa real) que impera sobre a intriga. Já em EFPQ, as escolhas abrem-se com o que parecem ser linhas de esferográfica e marcador, riscadas nervosamente (“quase sem esboço”, escreve o artista no posfácio desse livro), em cores azuis e escuras, num apontamento biográfico, que introduz a cena, depois com mais cores, ainda que limitadas, em enquadramentos apertados de objectos e lugares, para acompanhar as palavras observadoras e descritoras de “Lisboa com suas casas”, logo depois empregando aguadas castanho-avermelhadas, sublinhando a melancolia dos assuntos do poema, e depois alterando as cores, de uma maneira menos ou mais simbólica, menos ou mais claramente associadas aos poemas e poetas adaptados. Esta mudança, confessa o artista na nota final de FPOP, é ele “algumas vezes ‘brincando’ de ser outro desenhista” (p. 80). Em FPOP há um trabalho de edição textual, com pequenos cortes, alterações. Uma operação substancial está na reconstrução dos poemas d’O Pastor Amoroso, de Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 168 Moura A pluralidade de Pessoa em filmes de animação Alberto Caeiro, numa espécie de ciclo contínuo dos poemas, tornados fundo do que parece ser uma dérive psicogeográfica do personagem-pastor por paisagens urbanas e rurais, ruínas cambiantes, mas que se revelam nível hipodiegético da escrita do poeta, que irrompe na acção, dando espaço a uma abordagem onírica de Lisboa. Em EFPQ também, temos essas passagens criadas de modo subtil. A capa mostra a secretária de Pessoa coberta dos mapas astrológicos que ele criava para si e seus heterónimos. Uma caixa aberta revela um coração flutuando. A primeira sequência “real” mostra Pessoa preparando uma mala e a sair de casa para, na sequência seguinte, já no interior da adaptação do poema interseccionista “Chuva oblíqua”, dar-lhe continuidade dos movimentos, quando do seu internamento no Hospital de São Luís dos Franceses (ainda que depois de tomar boleia de uma caravela e um eléctrico flutuante). O livro, apesar de entrar e sair da carta a Casais Monteiro, mostrar poemas distintos, etc., cria ao nível das imagens uma continuidade, cada vez mais fantasiosa, senão mesmo surreal (as referências visuais e literárias são muitas e sempre apropriadas; a intertextualidade é quase obrigatória na abordagem a Pessoa), até terminar numa sequência mágica do coração flutuando sobre Lisboa, convidando à única forma de conhecer possível: lê-lo. Pois, lendo-o, “Começará a amá-lo” (p. 65). O autor também cruza muitas das suas preocupações recorrentes na pesquisa para Fernando Pessoa. Os seus enquadramentos apertados, sobretudo de edifícios, seus pormenores, seus letreiros, e sobretudo a adaptação de “No entardecer da terra” (v. à frente, sobre Paisagem Pessoa), recorda toda a sequência de Velhos Hotéis Passam Cinema Mudo (Cachalote, 2012), que apresenta, como escrevi noutra ocasião, “agregação de cenas urbanas modernas e abandonadas” (MOURA, 2015), a qual procura menos “a sequência e a organização das imagens numa inclinação narrativa” do que “uma lógica de acumulação de identidade”, uma descrição que parece agora aplicável, com justeza, à construção de Pessoa ele-mesmo nestes livros e filmes. Figs. 14 e 15. Velhos Hotéis Passam Cinema Mudo. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 169 Moura A pluralidade de Pessoa em filmes de animação Já que falamos sobre a influência de trabalhos anteriores de Guazzelli sobre estas adaptações, atentemos igualmente às suas consequências, pois estas abordagens tornar-se-iam ainda mais marcadas nos trabalhos futuros do autor. Se em O Relógio Insano (Grafitti, 2007) o autor já experimentava a polifonia, a fragmentação, a nãolinearidade, uma profunda e intrincada fusão entre as imagens na sua estruturação livresca e a matéria verbal que a acompanha, e em Velhos Hotéis, ele próprio livro “mudo”, estilhaça a perspectiva central em uma deambulação incessante por espaços distintos, os livros que se seguiriam às experiências de diálogo com os poemas pessoanos, como Apocalipse Nau (Editora Nós, 2016) e a dilogia Porto Alegre (Porto Alegre – Guia inútil de lugares improváveis e A Casa Azul; Faria e Silva, 2020), Guazzelli entrega-se a tons mais melancólicos, advindos da sua decisão em envolver-se em matérias autobiográficas, ou pelo menos auto-ficcionais, já que a qualidade de uma fluidez onírica toma conta da narratividade. Sobretudo Porto Alegre assume um tom elegíaco, o qual questiona a identidade do autor – enquanto criador, sobretudo, mas também homem, marido, pai. Os textos verbais inclusos transformam cada momento abordado num poema em si. Para este segundo livro de adaptações de Pessoa, EFPQ, Guazzelli resolveu criar, numa colaboração com Adriana Pinto, uma espécie de booktrailer, num filme de animação de muito curta duração (1’32’’; mas a matéria animada tem somente 1’05’’) que reaproveita esse ímpeto e lavra. Intitula-se Eu, Fernando Pessoa. Como reza no descritivo do vídeo no canal Youtube da editora, a feitura desse livro “encorajou [Guazzelli] a transportar as imagens que garimpou nesses trabalhos para sua outra profissão: a de diretor de curta-metragem”. Figs. 16 e 17. O coração flutuante no filme Eu, Fernando Pessoa. O filme assume muito mais uma qualidade elegíaca, assinalando-se a última partida do poeta após a morte. As imagens que emprega são decalcadas de forma directa do livro. Vaticinado o destino pelos mapas astrológicos abandonados na mesa, acabamos por observar a última viagem de Pessoa. Primeiro, sob a forma do seu coração flutuante (apetece dizer, o coração “delator” da sua morte), escapando do que parece ser o hotel Orpheu, associando essa cena mais uma vez a Velhos Hotéis Passam Cinema Mudo. Depois, já em corpo do Pessoa, atravessando um rio – será o Tejo ou o Estige, ou ambos? – numa barca, conduzida por uma mescla de Caronte e Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 170 Moura A pluralidade de Pessoa em filmes de animação da morte d’O Sétimo Selo, de Bergman. Esta última ideia é corroborada pelo facto dessa “cena” surgir ela mesma como um excerto de um filme, passado num cinema populado por inúmeros Pessoas com óculos 3D, permitindo ainda outra mescla, confusão, passagem de níveis e dimensões, exploradas visual e tematicamente no filminho. Termina num eléctrico submarino na direcção da Graça-Prazeres, o bairro onde se encontra o cemitério em que Pessoa está (estava, até 1985) sepultado, mas que aqui, isolando-se as palavras, parece querer aceder ao seu significado mais imediato, irónico, de algo atingido pelo poeta: um estado de graça no imaginário vindouro dos seus herdeiros, o prazer múltiplo da sua poesia múltipla. Fig. 18. O bondinho submarino no trajeto Graça-Prazeres. Num documento inédito a que tivemos acesso, e que faz parte deste mesmo Pessoa Plural, vimos toda uma série de estudos e esboços para um novo futuro projecto de animação de Guazzelli em torno de Fernando Pessoa, cujo título é Paisagem Pessoa. Esse projecto repesca elementos idênticos ao livro e respectivo booktrailer (Eu, Fernando Pessoa), em que o protagonista atravessará várias paisagens de Lisboa nos mais díspares transportes, e explorará aspectos mesclados da sua infância à sua morte. Mais uma vez, vários poemas serão suturados num contínuo de fragmentos, e o autor revela em algumas notas associações à sua vida pessoal. É nesta adaptação que encontramos o poema “Ao entardecer da terra”, cujos versos se transformam então em letreiros de aeroportos, portagens, outdoors, sinais na auto-estrada, graffiti. Fig. 19. Os versos de “Ao entardecer da terra” no storyboard inédito de Pessoa Paisagem de Guazzelli. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 171 Moura A pluralidade de Pessoa em filmes de animação Como vemos, a invasão do texto como faixa contínua sobre todo e qualquer “capítulo” ou “parte”, num jogo de cesura-sutura, é constante, e a tal técnica ou mecanismo voltaremos. “Triunfo meta, início, clarão Que talvez não acabe”. Álvaro de Campos, Tramway O trabalho de Barata Xavier tem encontrado em Fernando Pessoa uma presença recorrente, basilar, senão mesmo fundadora do seu trabalho, mesmo que os traços exteriormente visíveis do poeta, isto é, as frases, a sua efígie ou os elementos das “histórias” emergentes da poesia não se encontrem neste ou naquele projecto do mestre português de animação. Mas existem alguns filmes que têm essa presença de modo visível, marcado na fita que se desenrola ao nosso olhar, e é um desses exemplos, mais narrativo (como discutiremos), que se constitui no filme curto 28. Possivelmente estaremos aqui a operar uma “redução narrativa”, isto é, a enfrentar um projecto não-narrativo, experimental, mas sublinhando o facto de que são propostos um espaço, uma série de objectos e intervenientes reconhecíveis, recorrentes e em relações interdependentes, as variações instituem alguma possibilidade de descrever sinopticamente acontecimentos. Mesmo que esta opção simplifique de forma drástica o que ocorre plasticamente no filme em termos de metamorfoses e transições visuais, contínuas e atomizadas, e não necessariamente tecendo certos elos lógico-causais entre si, sentimos poder descrever o filme como “Fernando Pessoa apanha o 28”. Para ser esclarecedor, é preciso ter em mente que o 28 se refere à carreira do bondinho [eléctrico] da companhia pública Carris, carros de transporte que se movem sobretudo pelas zonas da Baixa pombalina e circundantes, caracterizadas por ruas íngremes, apertadas e curvas. Os carros originais eram de tracção animal, mas a partir da passagem do século XIX para o XX, foram sendo substituídos por carros num sistema de tracção eléctrica, energia esta conduzida pela fiação eléctrica aérea. Não são apenas os carris que acabam por tipificar as ruas de Lisboa em que o eléctrico ainda funciona (ou nos locais em que, não funcionando, se deixaram ficar), mas igualmente esses fios e ilhoses, tal como os carros (antigos, mas ainda em uso) são recordados pela sua característica cor amarela, e também as suas portas dobráveis, as janelas de correr verticais, os assentos basculantes, e as altas catenárias. Foi apenas entre a segunda metade dos anos 1920 e os meados da década seguinte que o percurso dos eléctricos foi englobando os bairros da Graça, a leste da Baixa, a subida íngreme até ao Chiado e depois até aos Prazeres, no tempo de vida de Pessoa, da freguesia de Alcântara, hoje da Estrela. Já havíamos notado, a propósito do projecto de Guazelli, como as paragens extremas “Graça-Prazeres”, ainda que designem locais reais de Lisboa, e com alguma relação história à vida de Fernando Pessoa, Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 172 Moura A pluralidade de Pessoa em filmes de animação ganhava nesse isolamento simbólico um significado mais poético, das próprias palavras enquanto vocábulos. Nos nossos dias, a sua designação é “28E”, sendo o seu percurso, da praça do Martim Moniz a Campo de Ourique a rota mais procurada pelos turistas, por ser um passeio “pitoresco” pela Lisboa mais tradicional. O seu valor simbólico, a sua sobrevivência face aos novos transportes e decisões políticas do urbanismo na cidade, e a sua vida no coração de Lisboa – por onde Pessoa terá frequentado os seus dias – torna-o um natural objecto de atenção, transformado no filme de Barata Xavier num protagonista risonho, simpático e acolhedor. Fig. 20. Pessoa e o bondinho em 28 de José-Manuel Xavier. Mas se podemos então considerar que o filme mostra uma viagem de Pessoa no 28, não apenas as paisagens e locais que ela atravessa não são “naturais” nem “reais”, como a materialidade desses espaços se estilhaça e nos levará a atravessar vários planos de existência visual: o storyworld do filme, mas além e acima dele, como o do animador-criador, as paisagens míticas da história portuguesa (como em Mensagem, e, antes dessa obra, de Os Lusíadas) ou da lavra de Pessoa (os campos de Caeiro, a tabacaria). Na esteira das suas pesquisas de animação, o director procura navegações múltiplas. Sobretudo e várias vezes a “confissão” da bidimensionalidade do projecto, sobretudo com os movimentos das “molduras” e a sua redistribuição no espaço do plano do filme. Esmagando, digamos assim, toda a possibilidade de ver o plano de composição fílmico como um espaço tridimensional (a janela de Alberti) e antes numa pura superfície bidimensional. O eléctrico, enquanto transporte, também assume outras possibilidades de locomoção: nave voadora, nau nos oceanos, nos quais se debatem monstros de tinta, mãos-ondas que o tentam capturar, sem sucesso. E, no final, como veremos, assumirá ainda mais funções. Mas a principal é a de proporcionar “travessias” experimentais entre os níveis de representação. Assim, seguem-se ainda mais explorações da dimensionalidade das personagens (os Pessoas, o eléctrico, e outras), fusões, entradas e saídas, redução de formas corpóreas a letras, uma negociação constante entre os níveis simbólicos de “imagem” e “escrita”, ainda que advenham daí todos os paradoxos de uma análise mais profunda: afinal de contas, os sistemas de escrita não são mais do que parte e parcela de sistemas de notação visuais maiores, e da iconicidade poderá Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 173 Moura A pluralidade de Pessoa em filmes de animação emergir um sistema articulado como uma escrita, questões prementes na obra e reflexões ensaísticas de Barata Xavier. As metamorfoses do personagem Pessoa, neste filme, passam por reflexos nos vidros do eléctrico, variações de si mesmo, a assunção das sombras em corpo e este em sombra, os seus usos e desvios. Nos segundos entre 0’55’’ e 1’00’’, por exemplo, mais de 10 rostos se substituem na cabeça do poeta, enquanto escreve, corroborado esse gesto pelo som da máquina de escrever, em acção, dimensão à qual regressaremos... Não analisámos, nos outros projectos, a dimensão sonora, pelo que haverá algum desequilíbrio de análise, mas os sons em 28 ganham uma proeminência particular, precisamente porque, mesmo sendo passíveis de serem descritos como “diegéticos”, acabam por contribuir para a sua “própria desconstrução”, tal qual como o famoso filme comercial mas usando técnicas experimentais Duck Amuck, de Chuck Jones (1953), que o animador Richard Thompson descreveu como “ensaio, pela demonstração, da natureza e condições do filme animado (a partir de dentro) e as mecânicas do cinema em geral” (apud WELLS, 1998: 39-40). Apetece chamar, só com a faixa de som proporcionada pelo director e seus colaboradores, vasculhando os sons de uma máquina de escrever, o quase incessante som de um antigo projector de película fílmica, o som do eléctrico, sobretudo o sino e os sons da cidade, apetece chamar a isso, dizíamos, uma sinfonia. E a razão dessa palavra é querer associá-lo ao famoso projecto de Walter Ruttmann, Wochende (1928), cuja inclusão na história do cinema se torna possível pela inscrição social do seu autor, um “cineasta”, mas também pela sua criação técnica, o som tendo sido gravado numa faixa de som de uma película fílmica. Tal como neste outro marco do cinema experimental, também 28 torna os sons, paisagens, juntando-se às paisagens tornadas a partir do próprio desdobramento das palavras. Fig. 21. O uso de dactiloscritos de Pessoa no filme Pessoas de José-Manuel Xavier. Barata Xavier é profícuo em criar sequências brevíssimas de metamorfoses dos objectos e/ou personagens. São relâmpagos de imagens cuja descrição, como neste texto, são bem menos estimulantes e mais morosas que a maravilha dessa dança de linhas. No canal de Youtube deste autor, é possível encontrar muitos dos Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 174 Moura A pluralidade de Pessoa em filmes de animação seus “ensaios” e exercícios. Um deles, Pessoas, utiliza como matéria manuscritos e dactiloscritos de Fernando Pessoa – não apenas como cenários, mas também como participantes das metamorfoses em rápida sucessão e parceiros da personagem que se vai formando e desfazendo em ciclos frenéticos. Ainda um outro filme breve do realizador, intitulado Desassossego, emprega três ciclos de animação baseados na figura de Pessoa (um deles protagonizado por Pessoa e o nosso eléctrico). O ciclo inferior, no plano, mostra Pessoa retirando e colocando uma máscara teatral que se assemelha a ele mesmo. O “drama em gente” é apresentado de forma absolutamente sumária e destilada. Regressando a 28, um dos trechos do passeio do eléctrico leva Pessoa a vislumbrar paisagens rurais onde se passeiam ovelhas-Pessoa e ainda um pastor-Pessoa (ou será antes pastor-Caeiro?). Já antes, Pessoa tinha trocado de reflexo com um segundo Pessoa que surge depois de vermos na paisagem as palavras “Pessoas”, “Reis”, “Campos” (note-se no jogo multifacetado) e “Caeiro”, cada qual com certas características formais e de movimento próprias... Todas estas metamorfoses em si mesmo parecem ecoar aqueles versos de “Tramway”, que citámos como epígrafe desta secção: “O resto, o que aqui está sentado, sou eu”... Não cessam as mudanças de máscaras. Sensivelmente a meio do filme (2’13’’), “saímos” do nível diegético para chegarmos ao nível do “narrador” (no caso, do criador do filme – agora personagem da própria ficção), e observamos um animadorPessoa-marinheiro procurando quais novas ideias desenhar e animar. À falta delas, acaba por se deitar sobre a mesa de desenho. Uma nova transformação tem lugar, mas como entendê-la? O animador acorda, mas desta vez transformado em Camões? Ou será antes um sonho do animador dormindo? Essa pergunta não terá resposta, mas abordaremos estas desorientações ontológicas na última secção do artigo presente. A relação intertextual e poética entre Pessoa e Camões é por demais complexa, nem teríamos competências para a abordar, mas não deixa de ser significativo que, dormindo Pessoa (a personagem), acorde, num plano superior, com vontade e até capacidade de animar, um Camões, um supra-Camões, o qual revela um projector de cinema de animação sob a sua pala, e cujo filme, até ali interno, acaba por ocupar todo o plano, e se constitui na segunda metade do filme que vemos. Figs. 22. Pessoa metamorfoseado em Camões diante de uma mesa de animação. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 175 Moura A pluralidade de Pessoa em filmes de animação Numa relação transformada de escalas, quase já no final, Pessoa manipula o eléctrico transformando-o numa série de objectos: um pequeno palco, uma espécie de kamishibai (uma tradição de um teatrinho de papel do Japão do pós-guerra), uma caixa, ou melhor, a arca dos papéis de Pessoa, voltando finalmente ao eléctrico antropomorfizado... que, sonolento, talvez demonstre o “sono” de tantos escritos de Pessoa, só tão mais tarde (e ainda hoje!) redescobertos e trazidos a lume? Esta dança constante de multimedialidades está presente uma e outra vez, havendo momentos de integração de dança, de fotografias (reais de Pessoa, mesmo que apenas em silhueta), do teatro de marionetas, mas acima de tudo há as passagens intermediais que se consubstanciam quando vemos os planos tornando-se páginas, estas em pranchas de HQ, as vinhetas destas em carris do eléctrico, numa permanente magia de substituições e ecos formais (e que terá um importante eco intertextual com o filme de Chollet). É como se existisse em 28 (ou na produção de animação “pessoana” do autor) uma bateria de imagens, ideias, referências, citações, palavras, cenas distintas, rostos e máscaras em permanente potencialidade na “obra” de Fernando Pessoa, enfim, um arquivo, que Barata Xavier transforma num campo do qual colhe os elementos que elege como necessários a uma combinação em sequência: a “narrativa fantasmática” do seu filme. Todos os outros autores têm também acesso a este arquivo, regra geral, mas procuram antes reterritorializar esses elementos numa organização narrativa ora mais clássica (Pessoa descendo o Tietê, enfrentando os piratas, servindo de secretário, no projecto de Laerte e Guerra) ora mais poética e transfigurada (Pessoa atravessando o Estige em Guazzelli, o passeante de Chollet atravessando paisagens). Por seu turno, Barata Xavier emprega essa potencialidade para relançar novas formas, novas combinatórias, tirando partido da materialidade das linhas e possibilidades das estratégias próprias da animação para ter algo quase circular: não apenas o eléctrico volta a dormir, como havia acordado no início do filme, como os elementos que tinham composto Pessoa (uma onda transformando-se em folhas volantes, estas compondo o corpo do poeta) se atomizam no final do filme, a “consciência dividida” do poema citado. É possível que, se já o pequeno filme de Guazzelli, e todas as suas pesquisas nas HQ, procuram construir uma compreensão da volubilidade identitária explorada pelo poeta, se procuram criar uma síntese a partir da “consciência dividida”, e sempre numa lógica de movimento (que notaremos igualmente em Chollet), Barata Xavier vai mais longe na liberdade dessa plasticidade. Ele deixa viva sempre a pergunta final do poema Tramway, que nos ajudou nesta secção: “De que lado é que é a vida?” “...a noite do abismo incógnito e o choro de nada se compreender...” Bernardo Soares, O Livro do Desassossego. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 176 Moura A pluralidade de Pessoa em filmes de animação O filme de Thibault Chollet, Le Songe de B. Soares, parece também permitir esta leitura de vários níveis porosos entre si. Trata-de de uma espécie de sonho inspirado por uma colagem de fragmentos do Livro do Desassossego, com um grau de independência em relação à sua matéria de partida maior do que o booktrailer de Guazzelli. Aliás, abdicando de uma narrativa mais arregimentada como A Cidade dos Piratas, e mais curto, claro, acaba por se tornar mais concentrado na sua capacidade sugestiva. Como vemos, intitulando-se “O sonho de B. Soares”, remete para o semiheterónimo de Bernardo Soares, a quem é atribuído o fragmentário e inacabado Desassossego. Chollet, nos materiais de produção, inclusive sinopse e roteiro, a que tivemos acesso privilegiado, nomeia o protagonista como “F.” e “escritor”, numa espécie de redução à letra mínima, tanto prevista no título (“B.”) como na obra de Kafka, que é citado obliquamente, uma vez que o director menciona como influência a adaptação de Koji Yamamura do conto “Um médico de aldeia” do escritor checo, o qual deixou, como é sabido, várias obras longas truncadas e inacabadas, cujo nachlass é tão impactante e transformador quando o do escritor português, e o seu mítico baú (recordemos que Desassossego só veio a lume público, numa primeira abordagem, em 1982). Figs. 23 e 24. O protagonista de Le songe de B. Soares desenhando. No filme, essa personagem parece um homem, esguio, de chapéu pontiagudo, e do que vislumbramos do rosto, escanhoado. Vemo-lo à secretária de costas, a trabalhar, mas apercebemo-nos não estar a escrever, mas a desenhar, e o que desenha é a paisagem de fundo, o cenário, na verdade o plano fílmico seguinte no qual mergulhamos logo a seguir. Será o protagonista, portanto, uma mescla entre escritor e animador, num novo exercício de auto-ficção e desdobramento? Numa cena adicional, em que o protagonista parece atravessar uma galeria de arte, e na cena apoteótica final, a variabilidade das imagens apresentadas parece querer sublinhar acima de tudo o plano visual, a um só tempo feérico e presente, sólido e mutante, numa transposição mais materializada da “coisa literária” em “coisa do pensamento” primeiro, e depois esta em “coisa do desenho” e, para mais, “desenho animado”. Se Otto Guerra participa no seu próprio filme, como personagem equiparável aos demais, inclusive aqueles que representam os seus autores-fontes (o primário, Laerte, ainda que esta surja em imagem fotográfica, em “imagem real”, e o secundário, Pessoa, como personagem Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 177 Moura A pluralidade de Pessoa em filmes de animação animada), Chollet exercerá um outro poder de amálgama alegórica, com menos peso associativo à pessoa empírica. O texto escutado sob a forma de uma voz off em francês bebe de fragmentos de Le livre de l'intranquilité (em outras traduções, l'inquiétude), no qual se lê, “Nous vivons dans le clair-obscur de la conscience, sans jamais nous trouver en accord avec ce que sous sommes, ou suppossons être” [Vivemos, num lusco-fusco de consciência, nunca certos com o que somos ou com o que nos supomos ser]. No filme, porém, os pronomes passam à primeira pessoa: “je”. Do plural textual, passa-se ao singular, mas no figural, o plural mantém-se. Logo numa cena seguinte, aquela mesma personagem desdobra-se em múltiplas instâncias atravessando um certo espaço. Não só esta multiplicidade se repetirá noutros momentos, multiplicidade “do mesmo”, como numa passagem (entre 2’12’’ e 2’31’’) fazemos um varrimento lateral por três personagens muito distintas a todos os níveis, mas que poderão ser consideradas tentativas de representar o “je me subis comme l’enveloppe de moi-même”. Figs. 25 e 26. Influências de Le songe de B. Soares: Volavérunt, (dos Caprichos) de Goya e Je vis dessus le contour vaporeux d'une forme humaine de Odilon Redon. Num primeiro momento, acreditámos existir alguma afinidade com o imaginário gráfico de Edward Gorey, até pelo uso de tramas e linhas “excessivas”, mas o acesso aos materiais de produção deste filme revela a fonte dessas figuras distintas. Chollet referencia as gravuras de Goya e também os desenhos de Malcolm McKesson. Mas naquele varrimento citado, a silhueta fumarenta e negra, com apenas olhos identificando-a como próxima do humano e a figura feminina envolta num manto, como um fantasma cartoonesco são decalcadas de uma litografia criada por Odilon Redon intitulada “Je vis dessus le countour vaporeux d'une forme humaine”, criada em 1896 para La Maison Hantée, álbum de 6 pranchas litográficas associadas a um conto de Edward Bulwer-Lytton, cujo título original é The Haunted and the Haunters: Or the House and the Brain (de 1859). A obra de Redon, em larga medida Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 178 Moura A pluralidade de Pessoa em filmes de animação proto-surrealista, cria ambientes evocativos e ambíguos, mesclando vistas oníricas e elementos simbólicos que incitam os espectadores a se deixarem abandonar nas paisagens do inconsciente e, assim, questionarem as fronteiras da identidade. Mesmo que a imagem de Redon tenha exercido tão-somente um fascínio superficial sobre Chollet para a sua inclusão imagética, não deixa de ser particularmente significativo que isso aconteça com um artista que tenha explorado o modo como a quietude nocturna, a sua atmosfera ambivalente, abertura a paisagens por cartografar, se abre a uma viagem introspectiva e existencial imprevisível. Regressando ao texto do livro em francês, que fica truncado no filme, “Le monde entier est confus, comme des voix perdues dans la nuit” [leia-se: Todo o mundo é confuso, como vozes na noite]. A “casa assombrada” não significa somente um contentor com conteúdos fantasmáticos, mas também fantasmar o próprio contentor, diluir suas fronteiras, delir seus limites e passagens. Se num primeiro plano do filme vemos a personagem principal num baloiço, rapidamente recuamos num zoom out dramático para o interior de um quarto dentro do qual outra personagem idêntica observa a primeira. Na transição desses espaços, todavia (aos 00’38’’), a janela, cuja armação apresenta 6 vidros quadrados, dispostos numa grelha de 2 x 3, pode subitamente parecer uma página de quadrinhos, pronta a receber os desenhos de uma narrativa, de que acabámos de ver uma cena. Se essa possibilidade se aventa brevemente em 28, ela é aqui tematizada de forma mais clara. De novo, notamos a inconstância do ser, de se ser, de até mesmo saber quem se é ou saber ser. Recordemos, com Eduardo Lourenço, que a “questão de identidade é permanente e se confunde com a da sua experiência, a qual não é nunca puro dado, adquirido de uma vez por todas, mas o ato de querer e poder permanecer conforme ao ser ou ao projeto de ser aquilo que se é” (LOURENÇO, 1994: 9; itálicos no original). O “claro-obscuro” explorado por Chollet apresenta todos os binómios por resolver, sejam entre oposições espaciais (dentro e fora), lumínicas (dia e noite), metafísicas (espírito e corpo), ou texto-materiais (janela de passagem transparentepágina de superfície opaca). “Anda no intervalo, Como na descida, Vácuo do desvão, Sombra dividida, A minha atenção...” Wardour, Crepúsculo em Deus Se repetimos esta ideia de que os filmes procuram sempre uma passagem entre os vários níveis de diegese e de representação, não procurando sínteses nem uniões, mas mantendo a estranheza das suturas, a sua textura rugosa, a sua porosidade, é porque queremos colocá-los sob o signo da metalepse. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 179 Moura A pluralidade de Pessoa em filmes de animação A metalepse, antiga figura da retórica, foi estudada modernamente por Gérard Genette (no Figures III), e teorizada como uma transgressão narratológica entre os níveis diegéticos: por hipótese, num romance clássico e aristotélico, o nível do narrador e o do personagem, que se relacionavam numa clara hierarquia estrutural (designados hoje por nível diegético e nível hipodiegético, respectivamente). Qualquer travessia seria vista como ilícita, e destruidora da ilusão naturalista dos mundos diegéticos que nos estariam a ser apresentados. Num outro passo do desenvolvimento narratológico, Marie-Laure Ryan distinguiria, em “Metaleptic machines” (e noutros trabalhos subsequentes), duas naturezas da metalepse. Aquela que se alinhou atrás, de Genette, é por ela chamada de retórica e, mesmo que haja uma mensagem trocada entre elas, “mantém os níveis da hierarquia distintos um do outro”. Mas Ryan considera que, quando se “abre uma passagem entre níveis que resultam na sua interpenetração, ou contaminação mútua”, mesclando dessa forma “dois mundos radicalmente distintos, a saber, ‘o real’ e ‘o imaginário’, ou o mundo de uma actividade mental ‘normal’ (ou lúcida) e os mundos dos sonhos ou das alucinações”, então surge uma metalepse ontológica (RYAN, 2004: 442). Seja uma personagem, seja o narrador seja o autor (empírico), se estes se encontram deslocados para um nível diferente do mundo ficcional, então dá-se essa metalepse ontológica. Notámos como em todos os filmes há sempre uma travessia “ilícita” dos níveis que, à partida, deveriam estar separados: o filme dentro do filme de Eu, Fernando Pessoa, as várias linhas narrativas de Cidade misturando-se, as identidades de Le Songe desvanecendo-se. Para o espectador, extradiegético, toda a matéria fílmica é um fluxo contínuo, fragmentos que, de longe, se encaixam num texto de suave transição, mas para as personagens (sejam estas diegéticas, interdiegéticas, hipodiegéticas, etc.), a textura rugosa, diferenciadora, é sempre sentida de modos distintos. O director empírico está representado por uma personagem animada no filme, “Otto Guerra”, com algum grau de auto-derisão. Laerte Coutinho surge sob a forma de imagens cinematográficas de “Laerte”. Mas a natureza não é idêntica. Ela é, na verdade, problematizada de forma clara e explícita nesse filme. Aos 58'19'' de Cidade, a ex-produtora pergunta: “Quem é o autor do filme? O director? O roteirista? O criador dos personagens?”. Em termos empíricos, esta frase diria respeito a, respectivamente, Otto Guerra, Rodrigo John e Laerte (sem bem que todos assinem oficialmente o roteiro do filme), mas é curioso que, nesse mesmo momento, o filme revela que o roteirista é, visual e interdiegeticamente, a personagem de Pessoa. Essa pergunta também poderia ter sido colocada aos filmes 28 e Songe: Pessoa ou Camões (voltando a Duck Amuck, Camões teria aqui o papel do Bugs Bunny, não demiurgo, mas deus do mundo proteico da animação que é sofrido por Pessoa/Patolino)? Pessoa ou avatar de Chollet? Mas este jogo de identidades é incessante e quase universal na intriga de Cidade, ao ponto mesmo em que, quando o político finalmente se confronta com o Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 180 Moura A pluralidade de Pessoa em filmes de animação Minotauro e dá o passo decisivo à sua eliminação, se confundem entre si e a própria Laerte é arrastada para essa equação, num segmento fílmico inédito em que se a vê coberta de sangue. Mas de quem é este sangue, exactamente? Do minotauro alvejado? Do político como reflexo revelado do Minotauro? Ou daquela Laerte-autora-tornadapersonagem-no-filme, carne da carne e sangue do sangue da personagem-Minotauro? Estes níveis não surgem como meros exercícios formais de “confusão textual”, como prova de um qualquer tipo de virtuosismo técnico. Eles servem antes para complexificar e colocar em crise dimensões éticas e ontológicas. Afinal, uma pergunta que deve sempre imperar quando pensamos a adaptação de textos literários é: qual o propósito epistemológico da sua inclusão? Qual é a “autoridade” do autor original sobre a possibilidade da reapropriação sobre textos seus? A partir do momento em que se tornam textos públicos, lidos e passíveis de serem reimaginados pelos leitores – alguns dos quais se tornam activos e novos produtores, autores, de novos textos – como se poderá exercer limitações das suas transformações e recombinações? E se um autor resolve criar um avatar seu no interior do seu projecto, como poderá impedir que se façam leituras interpretativas do que sucede a essa figura como uma espécie de comentário, desejo ou confissão sobre o próprio trabalho artístico que estamos a testemunhar? Nesse sentido, todos estes directores, de modos bem distintos, acabam por nutrir os seus filmes de camadas extradiegéticas e de multiplicação de identidades. Esse, no fundo, é o papel e a consequência do uso da metalepse, pois a sua operação, “seja qual for a categoria a que pertençam [é] a concidência do que em princípio não deveria coincidir” (BAETENS, 2001: 178; minha tradução). No artigo citado, Jan Baetens discute La Jetée de Chris Marker (1963), quer na sua forma fílmica, quer na sua forma de livro de fotografia, mas as passagens metalépticas “pessoanas” no interior dos filmes de animação discutidos no presente trabalho são comparáveis ao filme e ao livro de fotografia de Marker discutidas pelo teórico belga no sentido em que neles identificamos igualmente “cesuras” dos planos diegéticos e as consequentes “suturas”. Desse modo, poderemos compreender as palavras de Baetens como válidas no nosso contexto, quando ele escreve: “Pois neste filme a dialéctica da cesura e da sutura está de tal forma omnipresente que ela talvez force a vislumbrar uma lógica que faz depender a sutura da cesura, e vice-versa” (BAETENS, 2001: 178). Uma das dimensões dessa sutura é a presença da figura de Fernando Pessoa precisamente nessa sua qualidade figural, de uma plasticidade própria, icónica, de uma forma-sentido vincada, assinalável e reconhecida. Mas que no cinema de animação ganha uma particular natureza. Nenhum dos autores coloca em causa a integralidade física do poeta enquanto figura, e somente Guazzelli joga com variações físicas que podem imitar uma corporalidade dos heterónimos e, obviamente, torna o coração de Pessoa em parte actuante independente. O corpo das personagens animadas possui uma qualidade, desde logo, sempreem-metamorfose, uma vez que se tratam de desenhos múltiplos rapidamente passados Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 181 Moura A pluralidade de Pessoa em filmes de animação em sucessão num mesmo plano de maneira a que, graças ao fenómeno da persistência da visão, se crie a ilusão de movimento (AUMONT, 1997: 18 e ss). Permitam-me usar esta descrição genérica, mesmo sabendo existirem casos em que possam existir técnicas relativamente díspares, como na animação de volumes, técnicas automáticas assistidas por algoritmos, ou outras abordagens mais ou menos experimentais. Nem todo o cinema é feito de 24 imagens por segundo, mas essa é uma base válida de discussão mais universal. Uma vez que esses corpos animáticos estão num constante processo de emergência e apagamento (os frames), o corpo não tem uma existência cabal, mas antes virtual, o que leva Schaffer a falar de um corpo “an-ontológico”. Informado pelo brevíssimo comentário que Deleuze dedica à animação em Cinéma 1: L'image-mouvement, William Schaffer indica como diferença fundamental entre os dispositivos cinemáticos e animáticos o seguinte. No cinema, o tempo da captura e o tempo da projecção coincidem, mas na animação, a temporalidade da produção não é a mesma que a da projecção (SCHAFFER, 2007; LEVITT, 2014), pois os planos, os desenhos, têm um tempo de feitura mais dilatado, dependendo da técnica, menos ou mais moroso. Schaffer escreve: “No cinema, como argumenta Deleuze, o intervalo automático permite às câmaras extrair movimento dos corpos, mesmo que acabe por descentrar o movimento elevando-o a um plano de imanência, o qual se encontra aberto a efeitos de falsa continuidade. Na animação, o intervalo automatizado engendra movimento” (apud LEVITT, 2014: 131; minha tradução). Mesmo que parcialmente, esse engendramento ou emergência de sentido já existe na natureza do próprio desenho – compreendido aqui, em contraste com a animação, como plano ou objecto singular, isolado. O desenho, então, seja ele impresso numa página (de HQ, no caso) ou agenciado para a animação, possuirá sempre uma materialidade não-transparente, antes acentuada e trazida para primeiro plano. Criando a possibilidade de poder ver a imagem que representa e ver a imagem representando, surge a “incerteza” celebrada por Hannah Frank: “Em vez de resolver o cabo-de-guerra entre a materialidade própria da fotografia e o objecto material que representa, entre o mundo da imagem e o mundo que tornou possível que a imagem existisse, entramos na imagem” (FRANK, 2019: 47; minha tradução, sublinhado no original). Porém, estes quatro filmes utilizam uma composição geral relativamente clássica de um perspectivismo cartesiano, como se a câmara capturasse os movimentos das personagens à sua frente. No filme de Guazzelli, apesar dos primeiros segundos mostrarem o coração flutuante atravessando espaços, a escolha é dada a ter 4 planos estáticos – apenas o quarto tem um ligeiro zoom in – e vermos o coração se movendo através deles (com outros efeitos de iluminação, cor e movimento de objectos secundários, aumentando a ilusão, mesmo no interior de um filme com mais limitações técnicas, e cujos movimentos são menos fluidos). Naturalmente, os valores de produção deste curtíssimo filme não são idênticos à longa de Otto Guerra, mas a questão aqui não é criar, de forma alguma, uma hierarquia de valorização estética cega às circunstâncias de produção. Tão-somente queremos sublinhar, no Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 182 Moura A pluralidade de Pessoa em filmes de animação caso de Guazzelli, a predilecção por uma certa vista estática, que se compreende igualmente no trabalho quadrinístico, afinal, em contraste com a mais convencional dramatização de Laerte, mesmo quando a empregando para conteúdos mais livres, poéticos ou surrealistas. Esta qualidade estática ganha ainda mais corpo se se reparar na escolha que este filme faz em revelar matéria verbal a ler – palavras, frases – ao passo que no projecto de Laerte e Guerra, os poemas ganham outro corpo nos balões de fala e faixa áudio. Desse jeito, e por força das acções mais dinâmicas, as cenas em que Fernando Pessoa “participa” em A Cidade dos Piratas, as escolhas dos planos é também clássica. Existem composições menos simétricas e centradas, desviando lateralmente o ponto de fuga; o uso de técnicas de paralaxe, e uso de camadas digitais para o movimento de certos objectos, como a caravela e gôndola, insuflam alguma fluidez notória; e o estilo de alto contraste, com linhas de contorno negras e grossas, trazem uma presença sólida das personagens e seu entorno. Mas as transições, movimentos, ângulos, estão dentro de uma abordagem expectável. Este Pessoa vai declamando poesia com gestos largos e expressões sentidas. É uma personagem igual às demais. No caso do filme de Thibault Chollet, encontramos uma negociação intermédia. Os movimentos da “câmara” – zooms, varrimentos horizontais e verticais, dollys – mimam a existência de um espaço cartesiano, e as travessias entre níveis são mais fluídas, mas o texto, lido de modo tranquilo, numa voz suave, quase baixa, mantêmse sempre à distância, como comentário, não agente, na “intriga” visível. As acções físicas do protagonista, e as “vistas”, criam sempre elos específicos com os textos lidos, o que faz imaginar tratar-se do pensamento contínuo dele, mas nada disso impede o trânsito entre os níveis: o que ele faz e o feito, a criação e o criado. “So many philosophies, so many theories, all of them how strange in the light of day”. Charles Robert Anon (fragmento) Como uma espécie de conclusão, permitam-me uma nota mais pessoal, artística até. Por altura da publicação deste artigo, a editora portuguesa Levoir lançou uma nova colecção intitulada Clássicos da Literatura Portuguesa em BD, uma série de adaptações à, como dizemos em Portugal, banda desenhada (ou BD), partindo de várias obras nacionais e adaptadas por, maioritariamente, autores portugueses. O primeiro volume é precisamente de Fernando Pessoa, Mensagem. Foi co-criado pela magnífica artista Susa Monteiro, comigo, tendo escrito eu o roteiro. As convergências de interesses foram por puro acaso – os editores desta mesma publicação não estavam informados deste projecto quando do momento do convite, e mesmo durante a redacção do artigo não estava publicado –, mas são uma coincidência que me permite abrir aqui, esperando não ser abuso, algumas das estratégias verbo-visuais que optámos para esta adaptação. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 183 Moura A pluralidade de Pessoa em filmes de animação Fig. 27. Fernando Pessoa, Mensagem (editora Levoir). O facto de Fernando Pessoa ter lançado as pistas do seu “drama em gente” da multiplicação heteronímica na carta a Casais Monteiro, e que subsequentes estudos e descobertas a partir da arca, e disponibilização de múltiplas edições, interpretações, etc. foram multiplicando ainda mais – num movimento de diástole literária, para recuperar uma expressão de Cleonice Berardinelli e Vítor Manuel de Aguiar e Silva sobre Camões, metaforicamente aplicável a Pessoa, e cuja origem técnica associada Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 184 Moura A pluralidade de Pessoa em filmes de animação a cardiologia ajudará a recuperar o coração flutuante de Guazzelli – incita desde logo à criação de variações do Pessoa. O seu nome, mesmo, convida também aos desdobramentos possíveis na multiplicidade plural – Pessoa, pessoas – ou ficções / dramatizações – pessoa, de persona, a máscara teatral grega. Nesse sentido, e apesar de nos atermos ao texto integral dos poemas de Mensagem, optou-se por enquadrá-los em brevíssimos episódios ficcionais da sua feitura e posterior recepção pública. Tematizou-se, nesses mesmos momentos, o desdobramento heteronímico de Pessoa, numa breve sequência de variação visual da sua figura (roupa, corte de cabelo, postura). A transfiguração de Lisboa em espaços mutáveis e abertos a toda a simbologia contida em Mensagem aplica-se desde logo: o Pessoa-funcionário encontra-se a trabalhar num edifício com o letreiro “Sossego”, as águas do Tejo / Mar invadem a calçada, as letras e papéis de Pessoa ganham agência plástica própria. Durante todo o poema, transformando cada parte em capítulos, e cada poema numa HQ de uma página, procurámos formas de regressar a símbolos recorrentemente, tecendo toda a matéria numa coerência interna, mas que superficialmente – em termos de composição das páginas, registo cromático, colocação do texto sob a forma de legendas, balões de fala atribuídas às personagens citadas ou filacteras mais simbólicas e icónicas, etc. – explora também uma grande variabilidade estilística. Um quase-heterónimo de Pessoa, a que Luís Filipe B. TEIXEIRA associa a um “núcleo sanatorial” (1997: 227-237), António Mora, possui um fragmento que nos parece particularmente explícito sobre como o trabalho da adaptação, isto é, uma abertura a um “mundo de imaginação”, vai permitir estratégias bem distintas das “ficções da memória” (histórica, documental): As ficções da memória seguem as características do mundo externo, de que são a reprodução mais ou menos exacta. Caracteriza o mundo externo a exterioridade espacial e temporal, a pluralidade do conteúdo, e a sujeição a uma lei. [...] Caracteriza o mundo da imaginação a exterioridade não-espacial e apenas conscientemente temporal, o indefinismo unificado no conteúdo, e a ausência de lei aparente. Caracteriza o mundo da abstracção a não-exterioridade de seus conceitos, a pluralidade abstracta do seu conteúdo, e a sujeição a uma lei racional porque imanente (raciocínio) nos conceitos em que impera. (PESSOA, 1968: II, 209) Neste trabalho autoral, tal qual se verifica no de Laerte, Guerra, Barata Xavier, Guazzelli e Chollet, admite-se uma exploração de um “indefinismo unificado”, a primeira palavra remetendo à cesura dos materiais, dos estilos, das variações temáticas e representativas, e a segunda à oferta de um texto, a descobrir pelos leitores-espetadores. Apenas na aparência existe uma “ausência de lei”, já que o que impera é uma clara presença plural. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 185 Moura A pluralidade de Pessoa em filmes de animação Agradecimentos Quero agradecer aos editores, pelo convite, condução e acesso a tantos materiais. Aos directores Otto Guerra, Eloar Guazzelli e Thibault Chollet, pela generosa partilha dos seus filmes e documentação de produção. E Dário Duarte, pela caça à referência certa. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 186 Moura A pluralidade de Pessoa em filmes de animação Bibliografia Fontes primárias (fílmicas e quadrinísticas) CHOLLET, Thibault (2019). Le Songe de B. Soares. Gasp!. Filme de animação, 6’. Acessado via Vimeo privado. COUTINHO, Laerte (1987). “Piratas do Tietê: O Poeta”. 1987. Circo, n.o 5. pp. 23-34. _____ (s. a). Manual do Minotauro. Acessado via https://manualdominotauro.blogspot.com/ FAZZOLARI, Davi; GUAZZELLI, Eloar (2011). Fernando Pessoa e Outros Pessoas. São Paulo: Saraiva. GUERRA, Otto (2018). A cidade dos piratas. Otto Desenhos Animados. Filme de animação, 6’. 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Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 187 Moura A pluralidade de Pessoa em filmes de animação PEDRO MOURA é um investigador de Lisboa, com um doutoramento em Literatura Comparada da Universidade Católica de Leuven e da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (FLUL). Publicou em 2022 Visualing Small Traumas. Contemporary Portuguese Comics at the Intersection of Everyday Trauma pela Leuven University Press, e em 2023 Fazer Isto & Asignar, dedicado à obra de banda desenhada de Rafael Bordalo Pinheiro, pelo Museu deste artista, em Lisboa. Foi editor de Ilan Manouach in Review (Routledge, 2023). Enquanto argumentista para banda desenhada, publicou muitas histórias curtas, uma novela e tiras online. Mais recentemente publicou com o artista João Sequeira Como Flutuam as Pedras (A Seita, 2023) e com Susa Monteiro, a adaptação de Mensagem, de Fernando Pessoa (Levoir, 2024). Moura lecciona história, teoria e redacção de roteiros para quadrinhos, ilustração e animação desde 2003 em várias instituições portuguesas, e também adquiriu experiência internacional. Actualmente, lecciona na ESADCaldas da Rainha, na Universidade do Algarve, na Escola Superior Artística do Porto e no Ar.Co em Lisboa. Dentro do campo dos quadrinhos, ele é muito activo como curador, documentarista de TV, podcaster, proprietário de livraria/galeria e crítico. Escreve regularmente para seus blogs em português e inglês, além de participar das redes sociais. PEDRO MOURA is a researcher from Lisbon, holding a Ph.D. in Comparative Literature from the Catholic University of Leuven and the School of Arts and Humanities at the University of Lisbon (FLUL). In 2022, he published Visualing Small Traumas: Contemporary Portuguese Comics at the Intersection of Everyday Trauma, through Leuven University Press. In 2023, he released Fazer Isto & Asignar, dedicated to the comic book work of Rafael Bordalo Pinheiro, published by the artist's museum in Lisbon. He served as the editor for Ilan Manouach in Review (Routledge, 2023). As a comic book writer, Moura has published numerous short stories, a novella, and online comic strips. Recently, he collaborated with artist João Sequeira on Como Flutuam as Pedras (A Seita, 2023) and with Susa Monteiro on the adaptation of Fernando Pessoa’s Mensagem (Levoir, 2024). Moura has been teaching history, theory, and scriptwriting for comics, illustration, and animation since 2003 in various Portuguese institutions, and he has also gained international experience. Presently, he teaches at ESAD-Caldas da Rainha, the University of Algarve, Escola Superior Artística do Porto, and Ar.Co in Lisbon. Within the field of comics, he is highly active as a curator, TV documentarian, podcaster, bookstore/gallery owner, and critic. He writes often for his Portuguese- and English-language blogs, as well as for social media. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 188 !"#$%&'($)"*+",)-+"*)"./01(/)2 !"#$%&$'(&"%)(*&+&"#$'(#",#++&-"#".(&/0#1 !"#$%&'()$*'%+,%)#$%&+-)#%+,%.$//0 !"#$%&'()&*$#+%)&+,#'$-#,.##+$/#**)0$0+1$2').3#41 !"#$$#%&'()* !"#"$%"&'()"$* !"#$%$&'()"**'%+(,-".*/"#(0#'1-"2+(3'4"-%(5'-.6.%-+(0'##"*5'$&7$6.%+(8*'/"#.*9': ,*&-./ ,-".*/"#(0#'1-"2 6;"<'= %("$6'$/#%#>*"(6'9('("*6#./'#(5'#/=<=7*(!"#$%$&'()"**'%("9(?.*@'%+( "9(A"/"9@#'(&"(BCDE:(0'9(%(6=95-.6.&%&"(&'('6=-/.*/%(.$<-7*+()"**'%(*.9=-'=('(*=.6F&.'(&"*/"( $%(G'6%(&'(H$I"#$':(8*/"(6'$/#.@=/'(#"4.*./%(6#./.6%9"$/"("**"("$6'$/#'(6=#.'*'+(%*(9'/.4%JK"*( L="('(I.M"#%9(5'**F4"-("(%*(6'$*"L=7$6.%*(L="(/"4": 0*12/%3& !"#$%$&'()"**'%+(,-".*/"#(0#'1-"2+(N"/"6/.4"(3'4"-+(0'##"*5'$&"$6"+(8*'/"#.6.*9: 45&6%"(6 ,-".*/"#(0#'1-"2(9"/(/;"()'#/=<="*"(1#./"#(!"#$%$&'()"**'%(.$(?.*@'$(.$(A"5/"9@"#(BCDE:( O./;( /;"( 6'95-.6./2('I(/;"(8$<-.*;('66=-/.*/+()"**'%(*/%<"&(/;"(*=.6.&"('I(0#'1-"2(%/(G'6%(&'( H$I"#$':(P;.* 6'$/#.@=/.'$(6#./.6%--2(#"4.*./*(/;.*(6=#.'=*("$6'=$/"#+(/;"(9'/.4%/.'$*(/;%/(9%&"( ./(5'**.@-"+(%$&(/;"(6'$*"L="$6"*(./(;%&: Q 0"$/#' &"(8*/=&'*(R-'@%.*+(S$.4"#*.&%&"(,@"#/%: Dix O mistério da Boca do Inferno A obra de Fernando Pessoa tem gerado e vai gerar ainda uma vastíssima variedade de interpretações; daí uma das muitas fascinações que é capaz de criar. Muitas descrições paisagísticas do Livro do Desassossego, por exemplo, a maior parte delas datadas da década de 1930, podem ser mais bem compreendidas como uma meditação calma ou como uma observação tranquila da realidade do sol, dos pingos da chuva, das sombras, das nuvens, ou do belo jogo entre tais realidades. Porém, sabemos que a vida de Pessoa não se limitou a uma meditação calma das condições meteorológicas. Tal como anunciado já no título, o Livro é sobretudo um conjunto de inquietações metafísicas e religiosas, mas também um testemunho de turbulências pessoais ou sociais, relatadas, na maior parte das vezes, de uma forma tácita, subentendida. Em termos pessoais, Pessoa viveu um dos momentos mais agitados da sua vida em 1930 e a primeira indicação dessa agitação encontra-se num trecho do Livro do Desassossego, escrito já nas últimas semanas de 1929. A famosa referência a uma “autobiografia sem factos”, ou a determinadas “Confissões” em que nada há para dizer (PESSOA, 2013: 283), é uma alusão a um livro que Pessoa tinha encomendado no dia 18 de Novembro de 1929 à editora londrina The Mandrake Press. O livro chegou poucos dias depois, tinha o título The Confessions of Aleister Crowley: An Autohagiography (Fig. 1), e o autor era Aleister Crowley, na altura também conhecido como um mago excêntrico que gostava de ser conhecido como “the wickedest man of the world”. As páginas das “confissões” crowleyianas estão repletas de factos, alguns verídicos, outros inventados. Tal tipo de obra não se podia esperar de Pessoa, até porque ele não se considerava – como Crowley – um santo, ou um santo malvado. Ora, o ideal pessoano de uma “autobiografia sem factos” pode ler-se como uma reacção a essas páginas confessionais (e a outras afins), escritas por que acreditasse em alguma espécie de confissão e ainda no auto-elogio, narrando praticamente apenas conquistas, triunfos ou sucessos. A chegada do livro do ocultista inglês coincidiu com uma fase literariamente fértil e pessoalmente turbulenta na vida do escritor português, que ainda, de forma esporádica, se dedicava à astrologia. Este interesse pelos astros explica o motivo pelo qual Pessoa, que já tinha calculado muitos mapas astrais com anterioridade (de Shakespeare, de Baudelaire, de Mussolini, etc.; cf. PESSOA, 2011), decidiu estudar um horóscopo que encontrou nas primeiras páginas de Confessions, encontrando, para espanto posterior de Crowley, uma pequena imprecisão no Medium Coeli (MC). Pessoa enviou então uma carta à Mandrake Press, requerendo que o autor do livro fosse informado sobre um erro no seu próprio horóscopo, que talvez conviesse rectificar no futuro. Crowley teve conhecimento da carta, ficou impressionado com a observação atenta e minuciosa do remitente lisboeta, agradeceu vivamente a mesma e propôs, pouco depois, um encontro pessoal. Assim, a partir do dia 11 de Dezembro de 1929, Pessoa iniciou uma correspondência relativamente irregular com o mago britânico e um dos assuntos principais da troca epistolar foi a discussão referente à data mais apropriada para tal encontro. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 190 Dix O mistério da Boca do Inferno Fig. 1. The Confessions of Aleister Crowley, vol. I (CFP, 8-131). Todavia, uma leitura atenta das cartas de Pessoa e o conhecimento de alguns pormenores da vida conjugal de Crowley revelam que nenhum dos dois jogava com as cartas abertas. Pessoa afirmou que gostaria de conhecer o seu interlocutor, mas referiu várias vezes constelações astrológicas desfavoráveis a uma eventual viagem de Crowley a Lisboa. Este último, por seu lado, escondeu os seus graves problemas conjugais, e nunca esclareceu os seus planos paralelos: viajar pelo mundo com uma jovem amante que tinha conhecido recentemente em Berlim. Para Crowley, a viagem não era tanto ou apenas motivada por Pessoa, mas pela vaga ideia de uma espécie de lua de mel com a amante alemã. De facto, há várias indicações que sugerem que Crowley nunca teve a intenção de se deslocar a Lisboa para fundar uma espécie de filial de uma das suas ordens secretas na capital de Portugal, embora esse pudesse ser a justificação mais “oficial”. Até certo ponto, Crowley queria, nesta viagem, como também quis noutras, juntar o útil ao agradável. Pessoa não só nunca manifestou um grande entusiasmo com a provável vinda de Crowley a Lisboa, como talvez tivesse assumido que esse plano já não se concretizaria, após uma longa interrupção da correspondência durante o Verão de 1930. Porém, no dia 28 de Agosto de 1930, recebeu um telegrama completamente inesperado, indicando “Crowley chega no Alcântara – por favor encontrar”. Pessoa terá ficado perplexo, com a sensação de ficar relativamente preso pelas circunstâncias intempestivas. Ora, uns dias mais tarde, a 4 de setembro, por causa do clima, Crowley chegou ao porto de Lisboa, acompanhado pela jovem artista Hanni Jaeger. Pessoa estava à espera. Ao que parece, o primeiro contacto foi bastante cordial; Crowley descreveu Pessoa como um “very nice man” [homem muito agradável]. Depois de partilharem uma mesa de jantar juntos, Crowley e Hanni, que era 30 anos mais nova mais do que ele, passaram uma noite no Hotel de l’Europe, antigamente situado na Praça Luís de Camões. O mago inglês não dissimulou o facto de não gostar de Lisboa e descreveu a cidade como “Squalid, ill-paved, dirty, narrow, dull” Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 191 Dix O mistério da Boca do Inferno [esquálida, mal pavimentada, suja, estreita, enfadonha]. Logo no dia seguinte, fugiu do “hell of noise” [inferno de barulho] olisiponense e alojou-se no Hotel Paris, no Estoril. Celebrou, com outro estado de espírito, que esse hotel ficasse à frente de uma “perfect plage” [praia perfeita] (sempre apud PASI, 2012: 264). Pelo que se sabe, os primeiros dias do casal no Estoril correram muito bem e eles divertiram-se, dividindo o tempo entre a praia, a magia sexual, algumas bebidas espirituosas e boas refeições. Fig. 2. Telegrama de 28 de agosto de 1930 (BNP/E3, 208r). PESSOA ACARTADO 147 LISBOA | CROWLEY ARRIVING BY ALCANTARA PLEASE MEET. A partir da deslocação para o Estoril encetaram, de facto, duas histórias quase paralelas, cada uma com actores diferentes. Na primeira, Pessoa visitou, a 7 de Setembro, o casal no novo hotel, passou uma tarde inteira com ambos e podemos imaginar que falou, com Crowley, sobre diversos assuntos ligados à astrologia, às ordens secretas e ao ocultismo. Presumivelmente, os dois também falaram sobre a hipótese da publicação de algumas obras de Pessoa e de autores portugueses na Mandrake Press. E nesse dia terão marcado, para o dia 9 de Setembro, em Lisboa, um encontro com Raul Leal, com o intuito de “iniciar” Leal, talvez a figura mais excêntrica do modernismo português. Sabemos, pelo diário de Crowley, que voltou a Lisboa no dia combinado, almoçou na capital e encontrou pela primeira vez na vida Raul Leal, com quem manifestamente não simpatizou muito. Crowley refere-se a uma “iniciação” de Leal durante a noite desse dia, mas nunca chega a acrescentar que Pessoa fosse outro candidato à “iniciação”. Isto é fulcral, porque permite insistir num ponto decisivo: não há prova nenhuma de iniciação mágica em que Pessoa tenha participado e talvez Pessoa derivou para Leal a iniciação que Crowley lhe sugeriu. Contudo, os acontecimentos exactos dessa noite podem provocar uma certa volúpia, um certo interesse voyeurístico, tendo em conta que Pessoa escreveu, no dia seguinte, o seu único poema ligeiramente erótico: Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 192 Dix O mistério da Boca do Inferno Seus seios altos parecem (Se ella estivesse deitada) Dois montinhos que amanhecem Sem ter que haver madrugada. (BNP/E3, 117-49r) Este poema poderia ser lido como um indício: conteria os sinais de que Pessoa viu nua a Hanni Jaeger durante o ritual magico da “iniciação” de Raul Leal. Mas esta é apenas uma hipótese não verificável, uma vez que não se conserva nenhuma descrição detalhada sobre aquilo que aconteceu nessa noite (9 de Setembro) no apartamento de Leal na Rua das Salgadeiras. O que temos é alguma informação escassa referente a outros dias. Sabemos, por exemplo, que dia 12 Crowley foi visitar a Boca do Inferno, levando consigo alguns pincéis e uma tela para captar esse impressionante espetáculo natural de uma forma pitoresca. Ele e Hanni convidaram, depois, Pessoa para os visitar novamente no Estoril, mas este apresentou desculpas através de uma estranha nota em que declina o convite por causa de um “tratamento”. No dia 17 de Setembro, Pessoa voltou a receber uma carta de Crowley, em que este revelou uma certa preocupação, já que a Hanni tinha fugido depois de um violento ataque de histeria (“Last night Miss Jaeger had a violent aqack of hysteria, and upset the whole hotel”; PESSOA, 2019: 335). Crowley estava muito aflito e pedia um telefonema à volta do correio. É plausível que Pessoa tenha ligado. O certo é que passaram mais uns dias e o jornalista Augusto Ferreira Gomes disse ter encontrado, sob uma cigarreira com desenhos egípcios supostamente pertencente a Crowley, na Boca do Inferno, uma carta misteriosa de 21 de Setembro em que se lia: “I cannot live without you. The other “Boca do Infierno” will get me — it will not be as hot as yours” (PESSOA, 2019: 337). Ferreira Gomes entregou a carta à polícia, a mesma foi identificada como a carta de despedida de um suposto suicídio e o inspetor Albuquerque, em diálogo com o jornalista amigo de Pessoa, chegou rapidamente à conclusão de que o autor da missiva era Aleister Crowley. Fig. 3. Pintura de Crowley, intitulada “Boca Do Inferno”. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 193 Dix O mistério da Boca do Inferno Ora, dado que Pessoa era o contacto local de Crowley em Portugal, este foi chamado à esquadra da polícia de investigação criminal no Jardim de Torel, com a esperança de que pudesse dar informações sobre o paradeiro do mago inglês. Crowley tinha desaparecido sem deixar rasto e a polícia viu-se de repente confrontada com a questão de saber se se tratava, de facto, de um suicídio, ou até de um assassinato, que podia ter sido cometido pela Igreja Católica, como algumas pessoas em Inglaterra chegaram a suspeitar. A morte ou o desaparecimento (mortal?) de Crowley tornouse num caso público, muito noticiado, tanto em jornais de Portugal, como de França e da Inglaterra. Nessa altura, Crowley já era uma pessoa bastante conhecida e afamada em toda a Europa. Pessoa, fazendo jus ao seu amor pelo mistério, não foi de grande ajuda para a polícia, pois tornou a investigação mais complexa, acrescentando, por exemplo, explicações astrológicas sobre a data exacta do desaparecimento. A investigação acabou por ser declarada inconclusiva e abandonada, e a história desapareceu da memória pública com a mesma rapidez com que desapareceu dos jornais. Fig. 4. Páginas de Détective, n.º 105, de 30 de outubro de 1930. Esta é a primeira história. Mas há uma segunda história, menos oficial e com alguns pormenores interessantes, sobretudo em relação ao paradeiro de Aleister Crowley e de Hanni Jaeger. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 194 Dix O mistério da Boca do Inferno Como já indicámos, Pessoa não procurou multiplicar os contactos pessoais com Crowley e chegou a referir um “tratamento”, verdadeiro ou fictício, para não se deslocar novamente ao Estoril. Na noite de 16 para 17 de Setembro, Hanni Jaeger teve um suposto ataque de histeria que “incomodou o hotel inteiro”, como Crowley escreveu numa carta a Pessoa. A jovem alemã acabou por desaparecer, no dia 17 de Setembro, em direcção a Lisboa, e contactou o cônsul americano Lawrence Sheppard Armstrong. Aproveitando que tinha duas nacionalidades, tanto a alemã como a norte-americana, Hanni Jaeger pediu ajuda financeira no consulado americano para comprar um bilhete de navio. Com essa ajuda, no dia 20 de setembro embarcou para a Alemanha. Pelo seu diário, sabe-se que Crowley voltou a encontrar-se com Hanni Jaeger em Lisboa, antes do embarque, e que ambos aproveitaram a oportunidade para celebrar, de forma animada, mais novo ritual de magia sexual. É quase certo que, entre os dias 18 e 20 de Setembro, em Lisboa, tiveram lugar ainda alguns encontros entre o casal e Pessoa, e que nessa altura terão discutido melhor a partida que queriam pregar à polícia e aos jornais. Nos trechos destinados a uma novela policial, intitulada The Mouth of Hell, Pessoa indica várias vezes que o desaparecimento de Crowley poderia ter sido um “prank” (partida) ou um “hoax” (embuste). Basta lembrar que no dia 20 de Setembro, à tarde, Crowley foi de Lisboa para Sintra, onde se encontrou com Eduardo Maldonado Pellen (Pessoa tinha arranjado este contacto) para jogar xadrez. No dia 21 de Setembro, ainda em Sintra, cujos encantos apreciou bastante, Crowley anotou no seu diário o seguinte: “Developed plan to utilize local scenery [...] Wrote: I cannot live without you. The other ‘Boca do Infierno’ will get me – it will not be as hot as yours” (cf. PASI, 2012: 269) [Fiz planos de utilizar um cenário local (...). Escrevi: Não posso viver sem ti. A outra ‘Boca do Infierno’ apanhar-me-á – não será tão quente como a tua]. No dia 22 de Setembro, o ocultista inglês, já de volta a Lisboa, conheceu, na companhia do porteiro do Hôtel de l’Europe, os recantos do Bairro Alto. No dia seguinte, saiu do Hotel, indicando que ia novamente para Sintra. Contudo, nesse dia, às 11h30, Crowley apanhou o Sud-Express e passou a fronteira de Portugal com a Espanha, em Vilar Formoso, às 19h00, já em direção a França. Após uma curta paragem em Paris, chegou no dia 25 de Setembro a Berlim, onde reencontrou a Hanni e retomou, com ela, certos rituais sexuais. Enquanto Crowley permanecia fora de Portugal, Fernando Pessoa e Augusto Ferreira Gomes aproveitaram para tornar mais misteriosa a sua retirada de cena e criar, perturbando a polícia e com a ajuda de alguns jornais de Portugal, França e Inglaterra, uma imensa confusão. No fim de contas, ninguém sabia ao certo se se tratava de um suicídio, um assassínio ou uma brincadeira de mau gosto? Mas sem dúvida Pessoa e Ferreira Gomes gozaram colossalmente com o enredo falso que o desaparecimento de Crowley facilitou; e também Crowley, através das notícias que podia receber. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 195 Dix O mistério da Boca do Inferno Fig. 5. Texto de Pessoa publicado na revista Girasol de 16 de Dezembro de 1930. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 196 Dix O mistério da Boca do Inferno Se contemplarmos bem os acontecimentos, a relação entre Fernando Pessoa e Aleister Crowley foi do dia 18 de Novembro de 1929 (quando Pessoa contactou pela primeira vez a Mandrake Press) até ao dia 21 de Março de 1932 (quando Pessoa recebeu uma circular enigmática da A∴A∴, uma ordem ocultista fundada por Aleister Crowley e George Cecil Jones em 1906). Essa relação e os dias em que ambos coincidiram parcialmente em Portugal, têm suscitado as mais diversas especulações. Se nos basearmos apenas nos factos, podemos pelo menos arriscar algumas afirmações em relação a três aspetos. Primeiro, os dois actores principais desta peça enigmática tinham formas de ser e de agir completamente diferentes. Pessoa sempre foi uma figura bastante introvertida, com uma vida monótona numa cidade pacata e provinciana, que se sentia mais confortável quando estava sozinho numa mesa de café com poucos livros, um lápis e um bloco de notas, ou quando estava em casa, com os “2-8-6!” do Senhor Trindade (dois tostões para os fósforos, oito tostões para cigarros, e seis tostões para a garrafa atestada de bagaço). Contrariando este estilo de vida reservado, Crowley procurava a maior agitação possível, adorava ser o centro das atenções e passou grande parte da sua vida a viajar pelo mundo e por lugares remotos, utilizando os seus companheiros, e sobretudo as suas companheiras, apenas para benefício próprio. No entanto, Pessoa e Crowley, sendo tão diferentes, também tinham algumas semelhanças. Um era um grande sentido de humor; outro, um imenso gosto pela criação de histórias de mistério. Por isso, a estranha história da Boca do Inferno pode entender-se como um divertimento lúdico de dois irónicos com um notável sentido do humor Segundo, o encontro tinha também uma motivação literária, tendo em conta que Pessoa tentou, através da editora inglesa que publicava as obras de Crowley, a divulgação cultural de alguma literatura portuguesa. Assim, enquanto Crowley estava com Hanni Jaeger na praia do Estoril, por exemplo, Pessoa procurava negociar a tradução de algumas obras portuguesas com a Mandrake Press, dos antigos Cancioneiros e Romances de Cavalaria Portugueses, até a O Mandarim, de Eça de Queirós, passando por O Barão de Lavos, de Abel Botelho, e sem esquecer a sua produção inglesa, isto é, Antinous e Epithalamium. Estas propostas foram combinadas com Crowley, o que não deixa de ser surpreendente – nem de revelar um aspecto pouco amável da personagem mágica –, porque não era muito honesto alimentar expectativas editoriais, tendo conhecimento da situação económica da Mandrake Press, que estava prestes a falir. Daí que fosse expectável a resposta da Mandrake, que, de forma muito educada, disse a Pessoa que a única opção passava por ele próprio financiar tais publicações de obras portuguesas, e que ainda deveria contribuir para a capitalização da editora através da compra, nada despiciente, de 2000 acções preferenciais. Neste ponto da história, não nos custa imaginar que Pessoa, cingindo-se à sua boa educação inglesa, ignorou elegantemente a proposta sem mostrar o menor sinal de indignação. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 197 Dix O mistério da Boca do Inferno Terceiro, existindo antes da viagem de Crowley uma inclinação de Pessoa pelos fenómenos esotéricos, e sendo esta partilhada por ambos, é natural que a obra e as ideias do inglês tenham deixado a sua marca, ou várias, na obra pessoana. Porém, não há a mais mínima prova de que Pessoa tenha estado, alguma vez, envolvido formalmente em qualquer das ordens secretas de Crowley. O simples facto de Pessoa ter recebido uma circular da A∴A∴ no dia 21 de Março de 1932 não demonstra um envolvimento, atendendo a que tal carta – um documento algo patético, aliás – foi a última do conjunto epistolar. Qualquer afirmação sobre a integração de Pessoa numa sociedade secreta não é mais do que uma especulação. Custa imaginar que um escritor como Pessoa, tão individualista, se tivesse unido a um grupo obscuro sob a liderança de um mago que também tinha a reputação de charlatão, tal como foi descrito Crowley através da figura literária Oliver Haddo, por exemplo, no romance The Magician, de W. Somerset Maugham. Ou seja, não há dúvida de que Crowley avivou os interesses de Pessoa pela magia e a iniciação, exercendo alguma influência sobre certas ideias de natureza esotérica. Contudo, em termos da cosmovisão que Pessoa tinha da vida e do universo, Crowley nunca foi fulcral; Pessoa teve apenas um Mestre e este foi Alberto Caeiro. Aliás, quando a turbulenta visita de Aleister Crowley passou, Pessoa voltou a entregar-se às suas contemplações calmas dos fenómenos meteorológicos da cidade de Lisboa, o seu querido lar. Algumas considerações finais antes de concluir este breve contributo, em memória do tempo em que alguns leitores de revistas e jornais imaginaram que Crowley tinha mesmo caído na Boca do Inferno. Depois do desaparecimento de Crowley, Pessoa começou a escrever uma novela policial intitulada The Mouth of Hell, estilisticamente influenciada por Freeman Wills Crofts, um dos membros mais apreciados da Golden Age of Detective Fiction. Como quase toda a obra pessoana, mormente aquela em prosa, esta novela ficou inacabada. Daí que seja necessário imaginar a forma final que não existe a partir de múltiplos rascunhos, planos e textos não isentos de repetições. Por isso, a reconstrução da linha narrativa deve considerar-se fundada em conjecturas. Mas Crowley, que não sabia do modo em que Pessoa escrevia, e que vivia preocupado pela sua (má) reputação, pressionou Pessoa várias vezes – queria ver a novela concluída – e foi ficando mais e mais irritado com os silêncios, demoras e adiamentos do autor português, que nunca chegou a remeter nenhuma página para o falso suicida. Se pensarmos em Crowley como uma inspiração literária ou artística para Pessoa, temos de invocar também o poema “O Último Sortilégio”, escrito no dia 15 de Outubro de 1930, cerca de três semanas depois do desaparecimento do mago. Pessoa designou essa composição como um simples “poema a respeito de magia”, ao invés do “poema mágico” “Hymn to Pan”, do qual fez uma tradução (Hino a Pã) e atribuiu ao Mestre Therion. Ironicamente, quando a tradução foi publicada, Pessoa viu-se obrigado a esclarecer que o tal Mestre Therion não era um dos seus heterónimos: “O Mestre Therion não é heterónimo meu; é simplesmente o ‘nome supremo’ do poeta, mago, Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 198 Dix O mistério da Boca do Inferno astrólogo e ‘mistério’ inglês que em vulgar se chama (ou chamava) Aleister Crowley, que também se designava por ‘A Besta 666’” (PESSOA, 1998: 147), como se lê na carta de 4 de Janeiro de 1931 a João Gaspar Simões. Ao utilizar o pretérito imperfeito em dois verbos (‘designar’ e ‘chamar’), Pessoa continuou o seu jogo de ocultações para não determinar se Crowley ainda estava vivo ou não. Fig. 6. Tradução de “Hymn To Pan” (BNP/E3, 16A-68r e 69r). Por último, assinalemos que, em termos da ascendência artística que Crowley exerceu sobre algumas das pessoas mais criativas da segunda metade do século XX, Pessoa figura acompanhado de famosas estrelas do rock dos anos de 1960 e 1970. Crowley, por exemplo, aparece na capa do álbum Sgt Pepper’s Lonely Hearts Club Band, dos Beatles, e é evocado em “Misery Machine”, de Marilyn Manson. Jimmy Page, o guitarrista dos Led Zeppelin, viveu bastante obcecado com Aleister Crowley e chegou a adquiriu várias memorabília ligadas ao mago, entre elas diferentes obras de arte e a célebre Boleskine House no sudeste do Loch Ness, que foi de Crowley entre 1899 e 1913. Ozzy Osbourne cantou uma canção sobre a vida de Aleister Crowley e foi acusado de ser satanista, embora a canção, “Mr. Crowley”, diga o contrário: “You fooled all the people with magic | Yeah, you waited on Satan’s call”. Ao que parece, Mick Jagger leu vários livros sobre ocultismo durante a produção do álbum His Satanic Majesties, e esta produção inclui uma das canções mais famosas dos Rolling Stones: “Sympathy for the Devil”. Também há várias referências a Crowley em várias canções de David Bowie, que se sentiu atraído pela Besta 666, ou melhor, pelo seu estilo de vida e pelo seu destemor quando tinha de transgredir tabus sexuais e sociais. Pode presumir-se que Pessoa também se sentiu atraído por Crowley por razões semelhantes. Assim, o encontro curioso entre Pessoa e Crowley poderá abrir as portas para a redescoberta de outros encontros afins. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 199 Dix O mistério da Boca do Inferno Bibliografia CROWLEY, Aleister (1929). The Confessions of Aleister Crowley. An Autohagiography. London: Mandrake Press. 2 vols. DIX, Steffen (2009). “Um encontro impossível e um suicídio possível: Fernando Pessoa e Aleister Crowley”. Fernando Pessoa: O Guardador de Papéis. Edição de Jerónimo Pizarro. Lisboa: Texto, pp. 39-81. PASI, Marco (2012). “September 1930, Lisbon: Aleister Crowley’s lost diary of his Portuguese trip”. Pessoa Plural – A Journal of Fernando Pessoa Studies, n.º 1, Primavera, pp. 253-283. Brown Digital Repository. Brown University Library. hjps://doi.org/10.7301/Z03N21MS PASI, Marco; FERRARI, Patricio (2012). “Fernando Pessoa and Aleister Crowley: new discoveries and a new analysis of the documents in the Gerald Yorke Collection”. Pessoa Plural – A Journal of Fernando Pessoa Studies, n.º 1, Primavera, pp. 284-313. Brown Digital Repository. Brown University Library. hjps://doi.org/10.7301/Z07D2SCK PESSOA, Fernando. (2019). O Mistério da Boca do inferno. Correspondência e Novela Policial. Edição de Steffen Dix. Traduções de Sofia Rodrigues. Lisboa: Tinta-da-china. _____ (2018). La Bocca dell’Inferno. Edição de Marco Pasi. Saluzzo: Federico Tozzi. _____ (2013). Livro do Desassossego. Edição de Jerónimo Pizarro. Lisboa: Tinta-da-china. _____ (2012). Boca do Inferno: Aleister Crowleys Verschwinden in Portugal. Edição e tradução de Steffen Dix. Frankfurt am Main: Fischer Verlag. _____ (2011). Cartas Astrológicas. Edição de Paulo Cardoso, com a colaboração de Jerónimo Pizarro. Lisboa: Bertrand. _____ (2010). Encontro Magick. Edição revista de Miguel Roza, Lisboa: Assírio & Alvim. _____ (2001). Encontro Magick. Edição de Miguel Roza. Lisboa: Hugin Editores. _____ (1998). Cartas entre Fernando Pessoa e os Directores da Presença. Edição e estudo de Enrico Martins. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda. Edição Crítica de Fernando Pessoa, Colecção “Estudos”, vol. II. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 200 Dix O mistério da Boca do Inferno STEFFEN DIX frequentou a Universidade de Tübingen, a Universidade Católica Portuguesa e a Freie Universität Berlin. De 2005 a 2013, foi investigador de pós-doutoramento no Instituto de Ciências Sociais de Lisboa. Desde o início de 2013, é investigador no Centro de Estudos de Comunicação e Cultura da Universidade Católica Portuguesa. De 2015 a 2019, foi professor auxiliar convidado na Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa. Desde 2019, é coordenador do Grupo de Investigação “Religião, Globalização e Dinâmicas Locais” do Centro de Investigação em Estudos Globais da Universidade Aberta (UAb), em Lisboa. Atualmente, é professor auxiliar e coordenador do curso de Estudos Europeus da UAb. Publicou ou editou vários livros, números especiais, capítulos de livros e artigos em revistas científicas internacionais. Os seus interesses de investigação são a história religiosa e a secularização na Europa e o modernismo europeu. STEFFEN DIX a`ended the University of Tübingen, the Portuguese Catholic University and Freie Universität Berlin. From 2005 until 2013, he was a postdoctoral researcher at the Institute for Social Sciences in Lisbon. Since early 2013, he has been a research fellow at the Centre for the Study of Communication and Culture of the Portuguese Catholic University. From 2015 until 2019, he was invited assistant professor at the Faculty for Theology at the Catholic University in Lisbon. Since 2019, he has been the coordinator for the Research Group “Religion, Globalization and Local Dynamics” at the Research Centre for Global Studies at the Universidade Aberta (UAb) in Lisbon. Currently, he is assistant professor and course coordinator for European Studies at the UAb. He has published or edited several books, special issues, book chapters and articles in international scientific journals. His research interests are religious history and secularization in Europe and European modernism. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 201 !"#$%&'()*+,'-'./.'0%$%10"##"%2).3 !"#$%$&'()"**'%(+*,(-."/*0"#(1#'2."3 !"#$%&'()*+,-(./0(1#2(31&%&45#$%#&/26 !"#$%$&'()"**'%(+*,(-."/*0"#(1#'2."37 !"#"$%&"'(")*"'+,#%-))./0+%)"$123 !"#"$%"&'(#")* !"#$%$&'()"**'%+(,-./'#(0"123+(!'/'45-..-'$"*+(61"-*/"#(7#'81"9: +*&,-*. 61( -;<%1( =<"(1%( &"( 3<.>'* '/#'*+( 1%( 3"$/"( .#"%/-?% &"( ,-./'#( 0"123 @ABCD4EFAGH 5<" %/#%I%&%( I'#( 1%( "J."I.-'$%1-&%& &"1( "$.<"$/#'( "$/#"( !"#$%$&'( )"**'%( 9( 61"-*/"#( 7#'81"9+( "$( )'#/<;%1+( "$( ABCF:( K1( %#/-*/%( &"( 7%*.%-* #"%1-LM( <$%( *"#-"( &"( 'NO"/'*( ?-*<%1"*( %( 1'*( =<"( 11%3M !"#"$!%&'()*+, 6( /#%?2*( &"( .%&%( -3%;"$+( 1%( *"#-"( #"?"1% 1%( 5'#3%( "$( =<" )"**'%+( "1( 3%;'( N1%$.'+ *"( "$.%3-$%( >%.-%( <$%( N%/%11%( .'$ 7#'81"9+( "1 3%;'( $";#':( P%( 'N#%( &"( 0"123( 1""( 9( #".#"%+( "$( <$%( .1%?"( 3<9( I"#*'$%1+( "1( "$.<"$/#'( Q3R;-.'S+(%1(.<%1(&'/%(&"(?-&%+(5'$&'+(.'1'#+("JI#"*-?-&%& 9+(&"(.-"#/'(3'&'+ 3'?-3-"$/'+(9%(=<"("*( I"#."I/-N1"(<$%(&-3"$*-M$ /"%/#%1+(9(.-$"3%/';#R5-.%: !"#")%"&/(0")* !"#$%$&'()"**'%+(,-./'#(0"123+(!'/'45-.TU"*+(61"-*/"#(7#'81"9: +*&,-1 6**-3( .'3'( %( &"( 3<-/'*( '</#'*+( %( 3"$/"( .#-%/-?%( &"( ,-./'#( 0"123( @ABCD4EFAGH( 5'-( .%/-?%&%( I"1%( "J."I.-'$%1-&%&"( &'( "$.'$/#'( "$/#"( !"#$%$&'( )"**'%( "( 61"-*/"#( 7#'81"9+( "3( )'#/<;%1+( "3( ABCF:( V( %#/-*/%( &"( 7%*.%-*( .#-'<( <3%( *2#-"( &"( 'NO"./'*( ?-*<%-*( =<"( .>%3'<( &"( Q5'/'45-.TU"*S: 6/#%?2*( &"( .%&%( -3%;"3+(%(*2#-"(#"?"1%(.'3'()"**'%+('(3%;'(N#%$.'+(*"("$.%3-$>%(I%#%(<3(.'$5#'$/'(.'3(7#'81"9+('( 3%;'($";#':(6('N#%(&"(0"123(1W("(#".#-%+(&"(5'#3%(3<-/'(I"**'%1+('("$.'$/#'(Q3R;-.'S+(&%$&'41>"(?-&%+( I#'5<$&-&%&"+( .'#+( "JI#"**-?-&%&"( "+( &"( ."#/%( 5'#3%+( 3'?-3"$/'+( I'-*( 2( I"#."I/X?"1( <3%( &-3"$*Y'( /"%/#%1("(.-$"3%/';#R5-.%: 2*341%5& !"#$%$&'()"**'%+(,-./'#(0"123+()>'/'45-./-'$*+(61"-*/"#(7#'81"9: 6$&7%"(7 P-Z"( />%/( '5( 3%$9( '/>"#*+( />"( .#"%/-?"( 3-$&( '5( ,-./'#( 0"123( @ABCD4EFAGH( 8%*( .%I/-?%/"&( N9( />"( "J."I/-'$%1("$.'<$/"#(N"/8""$(!"#$%$&'()"**'%(%$&(61"-*/"#(7#'81"9(-$()'#/<;%1(-$(ABCF:([>"(%#/-*/( 5#'3(7%*.%-*(.#"%/"&(%(*"#-"*('5(?-*<%1('NO"./*(>"(.%11"&(QI>'/'45-./-'$*S:([>#'<;>("%.>(-3%;"+(/>"(*"#-"*( #"?"%1*(>'8()"**'%+(/>"(8>-/"(3%;-.-%$+(-*(>"%&-$;(/'8%#&*(%(.'$5#'$/%/-'$(8-/>(7#'81"9+(/>"(N1%.Z( 3%;-.-%$:(0"123\*(8'#Z(#"%&*(%$&(#".#"%/"*+(-$(%(?"#9(I"#*'$%1(Z"9+(/>"(Q3%;-.%1S("$.'<$/"#+(;-?-$;(-/( 1-5"+( &"I/>+( .'1'#+( "JI#"**-?"$"**+( %$&+( -$( %( ."#/%-$( 8%9+( 3'?"3"$/+( %*( %( />"%/#-.%1( %$&( .-$"3%/-.( &-3"$*-'$(-*(I"#."I/-N1": ! #$%&'()%*+*"*'",-)".$*')/ Gutiérrez-Giraldo Victor Belém y sus foto-ficciones Victor Belém (1938-2015) fue un artista tardovanguardista de Cascais, conocido por sus audaces propuestas estéticas y por una versatilidad plástica bastante notable. Belém, un gran entusiasta la obra pessoana, presentó el “diaporama” Fernando Pessoa versus Aleister Crowley por primera vez en 1986, en la Facultad de Letras de la Universidad de Lisboa (BELÉM, 2018: 65).1 Tal denominación, “diaporama”, al parecer se desvaneció con el tiempo, a juzgar por los catálogos publicados una década más tarde por la Casa Fernando Pessoa y en la Casa Museo Condes de Castro Guimarães. De hecho, hacia 1996, cambió por otras, tales como “foto-ficções” o “foto-colagens”. Fig. 1. Catálogo. Museo Condes de Castro Guimarães (1996). Fig. 2. Catálogo. Casa Fernando Pessoa (1996). Esta exposición se puede vincular a un proyecto más amplio, ya que como explican Helena Garret y Mário Belém, a partir de la década de 1980, Belém “começa a explorar outras linguagens estéticas (foto-ficções) como O Ciclo dos Poetas, primeiro com Mário de Sá-Carneiro, seguido de Fernando Pessoa, e, por fim, [de] Camilo Pessanha”2 [comienza a explorar otros lenguajes estéticos (foto-ficciones) como El Ciclo de los Poetas, primero con Mário de Sá-Carneiro3, luego con Fernando Pessoa y, por fin, con En el texto introductorio, Belém señala haber comenzado la obra en 1985, es decir, en el marco del cincuentenario de la muerte de Pessoa, pero no indica cuándo la terminó (BELÉM, 2018: 46). Podría asumirse que lo hizo en 1986, cuando la presentó al público. 1 2 Ver: https://gripedasaves.wordpress.com/2015/10/29/em-memoria-de-victor-belem/ Del proyecto Só-tão – Diaporama sobre Mário de Sá-Carneiro, existe la información del catálogo dedicado a Camilo Pessanha. Helena Garrett y Mário Belém nos señalan lo siguiente “O diaporama em questão fez parte de uma exposição coletiva no âmbito da qual foi apresentado o poster ‘anti-herói maldito marginal’ a anunciar a projeção de slides ‘so-tão’, realizada em 1984, no espaço TEC, em Cascais. Desconhecemos a existência física deste material. [El diaporama en cuestión formó parte de una exposición colectiva en la que se presentó el póster "anti-héroe maldito marginal" anunciando la proyección de diapositivas "sotão", realizada en 1984, en el espacio TEC en Cascais. Desconocemos la existencia física de este material.] Fuente: “Victor Belém 1958-1988”, de Graça Garcia. 3 Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 203 Gutiérrez-Giraldo Victor Belém y sus foto-ficciones Camilo Pessanha.]. O incluso antes, porque a propósito de las foto-ficções figuran estas líneas en la página legal del catálogo de la exposición dedicada a Camilo Pessanha: “Embora tenha ao longo da sua carreira utilizado sempre a fotografia como registro das suas intervenções, a partir de 1975 passa a construir situações sequenciais com modelos para serem fotografadas e apresentadas como tal (foto-ficções)” (PINHEIRO y BELÉM, 1996) [Aunque a lo largo de su carrera siempre haya utilizado la fotografía como registro de sus intervenciones, a partir de 1975 comienza a construir situaciones secuenciales con modelos para ser fotografiadas y presentadas como tales (foto-ficciones)]. Y tras estas líneas, este listado: 1995 1994 1987 1986 1977 1976 Conversas com Camillo Pessanha – em Macau e Lisboa em 1996 Labirinto –Vila Nova de Cerveira 1995 e Galeria Gilde-Guimarães 1996 Só-tão – Diaporama sobre Mário de Sá-Carneiro – Fundação Gulbenkian Fernando Pessoa versus Aleister Crowley – Diaporama – Faculdade de Letras Alexandre Vivo ou Morto (O Bobo e A Dama-Pé de Cabra) – Diaporama – Teatro Exp. Cascais Os sonhos da Pátria Prenha – Diaporama – Galeria Opinião (PINHEIRO y BELÉM, 1996) Pessoa y Sá-Carneiro fueron lectores-oyentes devotos de la poesía de Pessanha; y Belém supo formar con ellos una suerte de triángulo o de triangulación. A esto se suma, que Belém se refiere a una faceta ocultista de Pessanha, que incluiría: “A incursão pelos rituais libertários e crípticos da maçonaria, a recusa dos valores estereotipados duma sociedade anémica, a automarginalização e a sua afirmação irrecusável pela diferença e por uma sensibilidade dorida, a aproximação, que se entrevê, aos princípios budistas” [La incursión en los rituales libertarios y crípticos de la masonería, el rechazo de los valores estereotipados de una sociedad anémica, la automarginación y su afirmación irrefutable a través de la diferencia y una sensibilidad dolorida, la aproximación, que se vislumbra, a los principios budistas] (Daniel Pires, en PINHEIRO y BELÉM, 1996). Figs. 3 y 4. Foto-ficções Camilo Pessanha (1996); cf. Anexo 2. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 204 Gutiérrez-Giraldo Victor Belém y sus foto-ficciones Fernando Pessoa versus Aleister Crowley es un trabajo artístico que consta de 56 foto-ficções y 25 foto-colagens. Al final de 2023, la Fundación Don Luís I amablemente nos remitió 43 digitalizaciones de las foto-ficções, correspondientes a aquellas localizadas por Victor Belém cuando este las donó a la Alcaldía o Cámara Municipal de Cascais. Con las foto-colagens sucede algo similar: de un total de 25, en la Casa Fernando Pessoa se encuentran solo 19 (aquellas que fueron ubicadas y, por lo tanto, donadas). De acuerdo con la información prestada por la institución lisboeta, ninguna de las 19 piezas se encuentra en exposición y no existe, por ahora, una forma práctica de digitalizarlas sin riesgo de detrimento material. La creación de foto-ficções fue motivada por un hecho histórico: el encuentro entre Fernando Pessoa y Aleister Crowley en Lisboa, en septiembre de 1930, un acontecimiento que también ha fascinado a muchos otros artistas e investigadores al menos en los últimos cuarenta años.4 Además de crear esas foto-ficções, a principios de la década de 1990 Victor Belém acompañó los esfuerzos por publicar y divulgar los textos pessoanos referentes al encuentro Pessoa-Crowley y la novela policíaca que Pessoa concibió alrededor del falso suicidio del ocultista inglés. Así, por ejemplo, reunió ensayos de reconocidos estudiosos del asunto y los publicó en el libro O Mistério da Boca do Inferno – O Encontro entre o Poeta Fernando Pessoa e o Mago Aleister Crowley (1996). Fig. 5. Compilación. Casa Fernando Pessoa (1996). Pienso en cineastas, como José de Pina y Luís Porto, y en investigadores como Yvette Centeno, Teresa Rita Lopes, Pedro Teixeira da Mota y Luísa Alves, solo por nombrar algunos. Estudios recientes han sacado a la luz información muy importante para conocer el verdadero trasfondo del encuentro entre Pessoa y Crowley, que fue, desde cierto punto de vista, mucho menos épico y mágico de lo que se llegó a creer. Ver, al respecto: BARBAS (2006), PASI (2014) y PESSOA (2019; que contiene textos críticos de Steffen Dix). 4 Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 205 Gutiérrez-Giraldo Victor Belém y sus foto-ficciones Belém era un lector fervoroso de los escritos esotéricos de Fernando Pessoa. En el ya citado artículo de la página web A Gripe das Aves, Mário Belém y Helena Garrett escriben: “Nos finais da década de 90, o artista cria a Associação Fernando Pessoa, com o propósito de revelar a obra menos conhecida do poeta. Mário Máximo e Paulo Cardoso são importantes colaboradores desse período, que termina em 2012” [A finales de los años 90, el artista creó la Asociación Fernando Pessoa, con el propósito de dar a conocer la obra menos conocida del poeta. Mário Máximo y Paulo Cardoso son importantes colaboradores de este período, que finaliza en 2012].5 Estas líneas corroboran que Belém mantuvo ciertas lecturas e intereses a lo largo de casi tres décadas. Ahora bien, su trabajo artístico ha tenido poca visibilidad y es mal y poco conocido. En mi opinión, es fácil comprobar que Victor Belém consideraba el esoterismo una de las claves para entender la vida y la obra de Fernando Pessoa. Belém fue un artista informado y un creador competente, que tenía muy claro lo que le interesaba de lo ocurrido en 1930: A história que me fascinou resume-se em poucas palavras: No dia 2 de Setembro de 1930 chega a Lisboa, no navio “Alcântara”, o Mago Negro Aleister Crowley, acompanhado da sua “mulher escarlate”, companheira das cerimónias satânicas, Hanni Jaeger. O Mago vinha a Lisboa no seguimento de correspondência mantida com o Poeta Fernando Pessoa, que o foi esperar ao cais. Segundo os dados conhecidos, F. P e A. C. encontraram-se, pelo menos, três vezes durante a estadia do Mago, até à simulação do suicídio deste na Boca-do-inferno, em Cascais. (BELÉM, 1996b: 3-4) [La historia que me fascinó se puede resumir en pocas palabras: El 2 de septiembre de 1930, el mago negro Aleister Crowley llegó a Lisboa, en el barco “Alcântara”, acompañado de su “mujer escarlata”, compañera de ceremonias satánicas, Hanni Jaeger. El Mago llegó a Lisboa tras mantener correspondencia con el poeta Fernando Pessoa, quien fue a esperarlo al muelle. Según los datos conocidos, F. P. y A. C. se encontraron al menos tres veces durante la estancia del Mago, hasta su suicidio simulado en Boca-do-Inferno, en Cascais.] Como se hace más claro en otros pasajes, también de índole factual, pero permeados por la mirada de Belém, Crowley, caracterizado como “mago negro”, no despertó grandes simpatías en quien entonces lo retrataba. Pero antes de entrar en materia y ver las foto-ficções, falta recordar un punto: Pessoa denominó la novela policial – el montaje detectivesco del supuesto suicidio – The Mouth of Hell [La boca del infierno]. Esta nunca se publicó y, pese a la insistencia de Crowley en conocerla (PESSOA, 2019: 186 y 195), Pessoa jamás la compartió (al fin y al cabo, nunca la concluyó). Eso sí, esbozó un prólogo en el que sugiere que todo La Asociación Fernando Pessoa también contó, en la Dirección, con la colaboración permanente de los sobrinos de Fernando Pessoa, Manuela Nogueira y Miguel Rosa Dias. 5 Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 206 Gutiérrez-Giraldo Victor Belém y sus foto-ficciones fue real, que se basa en hechos reales: “Creio ter dado emoções ao leitor. Acho que as forneci com lógica. Além disso, transmiti-lhe seguramente o relato directo da vida real” (PESSOA, 2019: 215) [Creo que le proporcioné emociones al lector. Creo que le suministré lógica. Además, le he transmitido ciertamente un relato directo de la vida real]; “Este livro foi escrito como um exemplo de investigação na vida real; esperamos que o seu interesse resulte de se tratar tanto de vida real, como de investigação” (PESSOA, 2019: 218) [Este libro fue escrito como un ejemplo de investigación de la vida real; esperamos que su interés devenga de tratarse a la vez de la vida real y de la investigación]. A partir de todo lo que sucedió o no sucedió en septiembre de 1930, Belém se tomó la licencia poética de recrear algunos días, de forma casi paralela; en su imaginación, en las instantáneas de su ficción, Pessoa y Crowley se convierten en antagonistas. El análisis de las foto-ficções amerita dos abordajes: uno, dedicado a las palabras; otro, a las imágenes. Como se podrá ver, a cada una de las fotos Belém le añadió, en la parte inferior, una frase, y luego, con el corpus de todas las oraciones compuso un poema-collage (véase el Anexo 1, al final). Cada verso tiene a su lado, entre paréntesis, al supuesto autor; a veces Pessoa, a veces Crowley, a veces un heterónimo alegadamente “ocultista”. Ciertos versos provienen de la traducción del “Hino a Pã” [Himno a Pan], hecha por Pessoa, a partir del poema de Crowley que se encuentra en Magick in Theory and Practice (1929).6 En principio, Belém no estudió en qué medida la traducción de Pessoa traicionaba, o no, la posición de Crowley frente al ritual mágico y el lugar del dios Pan en tal ritual.7 Finalmente, Belém se limitó a tomar prestados algunos versos traducidos y a construir una narrativa poética; quiso imaginar un palco en el que movieran con relativa soltura dioses y hombres. Veamos las imágenes y tratemos de reconstruir la narrativa ideada por Victor Belém. En la primera parte, denominada “Partida para el viaje al espejo”, Belém enfatiza la posición combativa desde la cual Pessoa hará sus movimientos. El punto de partida, el campo de batalla no podría ser otro que la escritura y el teatro: el arte. Desde el inicio, Belém establece un tono vívido y cinematográfico, tejiendo una narrativa que va más allá de la biografía tradicional. Erige, así, la premisa del “versus”: una invitación directa a explorar, ante todo, las diferencias entre dos personajes presentados como antagonistas. Este sería el principio: Del libro de Magick in Theory and Practice (1929) de Aleister Crowley, quien se presenta bajo su seudónimo The Master Therion, se encuentran en la biblioteca personal de Fernando Pessoa dos versiones idénticas, una en la cual no hay anotaciones y que conserva su forma original, es decir, los cuatro tomos separados, y otra que Pessoa mandó a encuadernar. Es en este último volumen que se encuentran los subrayados y las anotaciones del escritor portugués. Esta versión solo fue entregada a la Casa Fernando Pessoa por la familia del escritor en 2016 y fue puesta disposición del público en 2018. La increíble historia del devenir de este volumen puede leerse en MARRONE (2018). 6 La investigadora Helena BARBAS (2003) traza un paralelo entre el original y la traducción, verso a verso; gracias a su trabajo es más fácil apreciar las diferencias entre la traducción pessoana y otra más precisa en términos de ideas y vocabulario. 7 Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 207 Gutiérrez-Giraldo Victor Belém y sus foto-ficciones Fig. 6. Hoje já não tenho personalidade (Fernando Pessoa). Fig. 7. Sou ponto de reunião de uma pequena humanidade só minha (Fernando Pessoa). En seguida, empiezan lo que en la obra se titulan como los “encuentros”. De acuerdo con la visión de Belém, para esta “luta alquímica” [lucha alquímica] (BELÉM, 2018: 46) Pessoa se dispone a “invocar” la ayuda de algunos de sus heterónimos, que, en criterio del autor, son ocultistas. En orden de aparición, los llamados a esta misión son: Alexander Search (cf. Fig. 8), Alberto Caeiro (cf. Fig. 10), Ricardo Reis (cf. Figs. 11-12), Álvaro de Campos (cf. Figs. 14-17) y Antonio Mora (cf. Figs. 20-22). Lo primero que reluce es una admiración por la naturaleza, encarnada en Caeiro. Posiblemente Reis sea la representación helenística de dioses paganos y símbolos, esto es, el lenguaje más tendiente a lo bélico. Fig. 8. Só há uma verdade (Alexander Search). Fig. 10. Ou passeando pelos caminhos ou pelos atalhos (Alberto Caeiro). Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) Fig. 9. Andei léguas de sombra dentro do meu pensamento (Fernando Pessoa). Fig. 11. Prefiro rosas, meu amor, à pátria (Ricardo Reis). 208 Gutiérrez-Giraldo Victor Belém y sus foto-ficciones Fig. 12. Tal seja, Lídia, o quadro, em que Fig. 13. De quem é o olhar que espreita por fiquemos, mudos, eternamente inscritos meus olhos (Fernando Pessoa). (Ricardo Reis). Campos, por su parte, es el llamado a representar lo humano, el poder del pensamiento, la lucha contra los dioses, es el Adán primigenio, expulsado y resuelto a volver alquímicamente a la esencia. Belém tal vez ya conocía un texto atribuido a Campos y titulado “Mensagem ao Diabo”, que empieza: “É preciso crear abysmos, para a humanidade que os não sabe saltar se engolfar nelles para sempre” (PESSOA, 2014: 508 [primera publ., en 1990]) [Es necesario crear abismos, para que la humanidad que no sabe saltar se sumerja en ellos para siempre]. Fig. 14. Todo o cais é uma saudade de pedra Fig. 15. Há em cada canto da minha alma (Álvaro de Campos). um altar a um deus diferente (Álvaro de Campos). Fig. 16. Sentir tudo de todas as maneiras (Álvaro de Campos). Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) Fig. 17. Arroja-me à praia angústia sem leme (Álvaro de Campos). 209 Gutiérrez-Giraldo Victor Belém y sus foto-ficciones Fig. 18. O deserto está agora virado para baixo (Fernando Pessoa). Fig. 19. Que parte de mim que eu desconheço, é que me guia? (Fernando Pessoa). Antonio Mora, último en embarcarse, es quien aparece listo para un viaje, un viaje en el que su careta del mundo real caerá en favor de un traje sencillo para afrontar las tentaciones del desierto. Es Antonio Mora quien comienza el que de súbito parece un camino iniciático. Esto es paradójico en alguna medida, porque Mora habla poco de rituales o de iniciación, y dedica muchas páginas, en general, al paganismo y la espiritualidad. Pero el semiheterónimo pagano parece visto a través de los ojos de Caeiro, que celebra su aparición y con ella el renacimiento de un nuevo paganismo, al que estarían asociadas las figuras del drama en gente y Pessoa. Fig. 20. Sentir é existir a sós (António Mora). Fig. 21. O grande Pã renasceu! (António Mora). Fig. 22. Pensar é existir com os deuses (António Mora). Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 210 Gutiérrez-Giraldo Fig. 23. Sorriem as paredes (Fernando Pessoa). Victor Belém y sus foto-ficciones Fig. 24. Bebé fera (Fernando Pessoa). Los “encuentros” de Pessoa con Ofélia y su madre, Maria Magdalena Pinheiro Nogueira, son una de las partes más intrigantes de esta creación. Tal vez Belém intuía la necesidad de una facción femenina que se enfrentara a la energía de Hanni Jaeger, compañera de Crowley en supuestas ceremonias satánicas (BELÉM, 2018: 46). La presencia de Ofélia Queiroz en la serie puede deberse a un hecho: a saber, el tímido restablecimiento de la correspondencia entre ella y Pessoa, reatado en septiembre de 1929. Ahora bien, como las investigaciones más recientes señalan, este corto intercambio epistolar terminó en febrero de 1931 y fue principalmente sostenido por Ofélia. Hoy también se sabe que Pessoa llegó a recurrir a sus heterónimos para buscar el distanciamiento que Ofélia no deseaba (Pizarro, en PESSOA, 2023: 15-16). Fig. 25. O meu destino pertence a outra lei (Fernando Pessoa). Fig. 26. A Mestres que não permitem nem perdoam (Fernando Pessoa). El encuentro con la madre, que había muerto cinco años antes del encuentro con Crowley, propone un giro muy interesante en esta especie de enrolamiento. De acuerdo a la narrativa de Belém, Maria Magdalena acompaña a su petit luchador desde el más allá. Aunque ella es una presencia simbólica, de talante natural, creadora y con algo de refugio (madre-templo), aun así, genera profundas rupturas y vergüenzas, como lo materializa Belém a través de la foto-ficção de los cristales rotos. De hecho, esta imagen pone fin al encuentro y hace las veces de bisagra entre la primera y la segunda parte de la obra, en la que ocurre el encuentro con Crowley y su compañera de viaje, Hanni Jaeger. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 211 Gutiérrez-Giraldo Victor Belém y sus foto-ficciones Fig. 27. Maman, maman, ton petit enfant devenu grand (Fernando Pessoa). Fig. 28. Tu és o sexo das formas sonhadas (Fernando Pessoa). Fig. 29. Tu és a mulher anterior à queda (Fernando Pessoa). Fig. 30. Quem não se envergonha de ter mãe (Fernando Pessoa). En vísperas de esa segunda parte, y en sus camerinos, todos están listos para el encuentro con el Mago Negro. Pronto entrarán Aleister Crowley (Alberto Pimenta hizo ese papel) y Hanni Jaeger, que arribarán en el barco Alcântara, como otros turistas, bajo un halo verde. La pareja luce un disfraz social, tal vez pretencioso y terrenal. Las imágenes ganan entonces un rojo intenso y despuntan los tratos, el deseo y alguna necedad. La diferencia de edad entre ambos personajes no es muy notoria y eso hace que no la veamos del todo a ella como la joven artista un poco deslumbrada por un hombre mayor y manipulador. Fig. 31. Vibra do cio subtil da luz (Aleister Crowley). Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 212 Gutiérrez-Giraldo Victor Belém y sus foto-ficciones Fig. 32. Meu homem e afã...Yo Pã (Aleister Crowley). Fig. 33. Vem com Artemis, leve e estranha (Aleister Crowley). Fig. 34. Mergulha o roxo da prece ardente Fig. 35. No laço quente, no bosque enredo no hálito rubro (Aleister Crowley). (Aleister Crowley). Belém supo captar que no se trataba solo de juegos y negocios, que podía haber algo más. Desde el camerino, Pessoa levanta la mirada del escritorio y con profunda atención observa su reflejo. El espejo le devuelve su rostro en la base de la estrella pentagonal hacia arriba, símbolo eterno de la supremacía del hombre sobre los cuatro elementos, el poder de la razón, de la inteligencia, de la creatividad. Fig. 36. Do mar sem fim (Aleister Crowley). Del otro lado de ese espejo está Crowley, ahora envuelto en la toga de un ritual en el que enceguece a Hanni, con una máscara de grandes ojos egipcios, que solo pueden presentirlo a él. Hanni queda en medio de Crowley y la pentalfa invertida, signo del dios Pan, que representa los deseos masculinos y la supremacía de la naturaleza sobre el hombre: la derrota de la razón en manos de los instintos. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 213 Gutiérrez-Giraldo Victor Belém y sus foto-ficciones Fig. 37. Diabo ou Deus...vem a mim...a mim Fig. 38. Vem da Sicília e da Arcádia vem (Aleister Crowley). (Aleister Crowley). Fig. 39. Vem como Baco, como fauno e fera (Aleister Crowley). Fig. 40. E ninfa e sátiro à tua beira (Aleister Crowley). En seguida, surge la Boca del Infierno, el lugar escogido por los cerebros de este embuste para fingir el suicidio de Crowley. El juego y el show han concluido, el plan se ha llevado a cabo. Belém interpela al observador con una imagen en que Pessoa y Crowley son uno, no se encuentran enfrentados en el tablero: están cerca, viendo desde arriba el juego de luz y sombra que es el teatro de la vida. No parecen estar en una pelea; parecen haber encontrado una especie de complementariedad. Una hilera de árboles bajo los que se siente calma colma el recuadro. Fig. 41. Num asno lácteo do mar sem fim (Aleister Crowley). Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) Fig. 42. A mim...a mim (Aleister Crowley). 214 Gutiérrez-Giraldo Victor Belém y sus foto-ficciones Fig. 43. Yo Pã...Yo Pã...Yo Pã (Aleister Crowley). Fig. 44. À sombra da ampla árvore (Ricardo Reis). Fig. 45. Fitavam o tabuleiro antigo (Ricardo Reis). La serie termina con un par de figuras de mujeres idealizadas envueltas en prendas de color blanco (Ofélia más idealizada que Hanni), cada una representando un tipo de mujer. La instantánea final le corresponde a Pessoa en su triple rol en esta historia: Pessoa en septiembre de 1930, Pessoa escritor de la novela y Pessoa personaje de la novela misma. El juego, la partida concluye con la evocación de un poema que comienza “Ouvi contar que outrora, quando a Pérsia”: ese que hoy es conocido como el de los jugadores de ajedrez.8 Fig. 46. Inda que nas mensagens do ermo vento (Ricardo Reis). Fig. 47. Lhes viessem os gritos (Ricardo Reis). La escena del tablero de ajedrez evoca directamente la historia de la fotografía falsa de Crowley y Pessoa jugando juntos. Victor Belém debió entender su obra en este punto como un especie de fotopresagio. Sobre esa fotografía, vease PASI (2009). 8 Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 215 Gutiérrez-Giraldo Victor Belém y sus foto-ficciones Fig. 48. E uma partida ganha, a um jogador melhor (Ricardo Reis). De acuerdo con el catálogo de la obra en la versión del Museo Condes de Castro Guimarães, Belém considera que los planes del Crowley Mago Negro fueron frustrados por el Pessoa “Mago Branco” [Mago Blanco], y que esto produjo “a morte iniciática do Mago Negro na Boca-do-Inferno” (BELÉM, 1996a: 11) [la muerte iniciática del Mago Negro en la Boca del Infierno]. Estas declaraciones permiten un acercamiento a este proyecto bajo otra luz, porque agregan una perspectiva iniciática que es muy interesante. De hecho, dicha perspectiva se encuentra reflejada en otro trabajo de Belém, aquel llamado “Caixa Iniciação” [Caja Iniciación], publicado en 1973, una obra que nos permite afirmar que el interés de Belém por Pessoa y sus ideas iniciáticas se remonta a la década de 1970, es decir, a varios años antes de crear las foto-ficções. Fig. 49. Caixa Iniciação (BELÉM, 2018: 35). Señálese que las foto-ficções que hemos comentado se componen de una serie de montajes que se pueden relacionar con la cinematografía. Mientras que esta última se centra en la captura de imágenes en movimiento para construir una narrativa visual, la técnica de montaje remite a la manera en que las imágenes se ensamblan y relacionan entre sí para transmitir significado y emoción. Además, el montaje puede entenderse en un sentido más amplio que implica la reinterpretación, así como la Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 216 !"#$%&&'()!$&*+,- /$0#-&.1'+%2.3.4"4.5-#-)5$00$-6'4 ');#>9#7#$:$#F9!<)!*:;!#,C>)9);!)9!')*:$#F9!$&9!;8!;)$8)9$#:E!Y9!)*!$&9%)Z%&!<)!*:!;)'#) <)! ()*+,@! );%:! #<):! <)! ,&9%:P)! ;8>#)')! 89:! $8#<:<&;:! ;)*)$$#F9! B! <#;A&;#$#F9! <)! #,C>)9);!);%C%#$:;!A:':!$'):'!89:!9:'':%#=:!=#;8:*!$&,A*)P: B )=&$:<&':E ?&9!);%)!)9%)9<#,#)9%&@!"#$%&'!()*+,!$&9;%'8BF!;8;!>'0'?>/5GH"* B!;8A&!#9%8#'@ $&9!D8)9!%#9&@![8)!*:!=#;#%:!<)!?'&i*)B!V:Da:!)9$)9<#<& 89:!$V#;A:!)9!Q);;&:@!:<#$#&9:* :!*:!')*:$#&9:<:!$&9!)*!=#:P)!B!*:!$&9;)$8)9%) <);:A:'#$#F9E!?'&i*)B!:*)9%F &!:=#=F *:! #9=);%#>:$#F9! <)! <#7)')9%);! $:,#9&;! #9#$#C%#$&;E! Q);;&:! ')7*)Z#&9F! )9%&9$);! :$)'$:! <)*!$:,#9&!,C>#$&@!)*!,a;%#$&!B!)*!>9F;%#$&2:*[8a,#$&E!]8;!#9=);%#>:$#&9);@!*)$%8':;! 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É óbvio que o “Mago Branco” ganhou. Daí a morte alquímica do “Mago Negro” na Boca do Inferno. Segundo dados conhecidos, F.P. e A.C. encontraram-se pelo menos cinco vezes durante a estadia do Mago até à simulação de suicídio deste, na Boca do Inferno. Sobre este encontro F. Pessoa não guardou nada no seu espólio mas há, pelo menos, a prova da sua tentação pela mulher “escarlate” no poema escrito dois dias depois de um encontro com o Mago e a sua companheira. Este trabalho pretende ser a reconstituição do encontro imaginário entre os dois personagens: Fernando Pessoa (Mago Branco) que, na sua via alquímica tinha vencido o Mundo e o Corpo, teria ainda que vencer o Demónio. AF_Catalogo_Baixa.indd 206-207 89:;'LV;'?":1'h*:%1'(1.7%"'1'?":1'd%".(1'Bd!"#$X'FVVTl'FVDE; 7'44-*.7+"&*+8.9:.;7<=>?&$6@.9A9BC 9/9/08 13:28:00 9IF Gutiérrez-Giraldo Victor Belém y sus foto-ficciones ANEXO 1 He trascrito el texto conservando los títulos de las secciones para ser fiel al catálogo de la exposición del Museo Condes de Castro Guimarães. Para seguir el ritmo, también he decidido transcribirlo en portugués. Recomiendo al lector saltarse los títulos de las secciones en mayúsculas para apreciar el efecto completo de la propuesta estética. Los versos con un asterisco al final corresponden a las foto-ficções que no hemos tenido al alcance de la investigación, tras diversas consultas. Le agradezco muy cálida y especialmente a Helena Garrett y a Mário Belém por ayudarme a identificar cuáles foto-ficções no formaron parte de la donación referida al principio de este trabajo. FOTO-FICÇÕES PARTIDA PARA A VIAGEM AO ESPELHO 1. Hoje já não tenho personalidade (Fernando Pessoa) 2. Sou ponto de reunião de uma pequena humanidade só minha (Fernando Pessoa) 3. Médium de mim mesmo todavia subsisto (Fernando Pessoa)* ENCONTRO COM ALEXANDER SEARCH 4. Não tenho ninguém em quem confiar (Alexander Search)* 5. Serei sempre um estranho em toda a parte (Alexander Search)* 6. Tracei um círculo no chão (Alexander Search)* 7. Só há uma verdade (Alexander Search)* 8. Tenho frio, sinto-me só (Alexander Search)* 9. Andei léguas de sombra dentro do meu pensamento (Fernando Pessoa) ENCONTRO COM ALBERTO CAEIRO 10. Basta existir para se ser completo (Alberto Caeiro)* 11. O sol é sempre pontual todos os dias (Alberto Caeiro)* 12. Ou passeando pelos caminhos ou pelos atalhos (Alberto Caeiro) 13. Ou quando uma nuvem passa a mão por cima da luz (Alberto Caeiro)* 14. O maestro sacode a batuta e a lânguida e triste música rompe (Fernando Pessoa)* ENCONTRO COM RICARDO REIS 15. O deus Pã não morreu (Ricardo Reis)* 16. Senta-te ao sol, abdica, sê rei de ti próprio (Ricardo Reis)* 17. Prefiro rosas, meu amor, à pátria (Ricardo Reis) 18. Tal seja, Lídia, o quadro, em que fiquemos, mudos, eternamente inscritos (Ricardo Reis) 19. Mestre são plácidas todas as horas (Ricardo Reis)* 20. De quem é o olhar que espreita por meus olhos (Fernando Pessoa) ENCONTRO COM ÁLVARO DE CAMPOS 21. Todo o cais é uma saudade de pedra (Álvaro de Campos) 22. Há em cada canto da minha alma um altar a um deus diferente (Álvaro de Campos) 23. Sentir tudo de todas as maneiras (Álvaro de Campos) 24. Arroja-me à praia angústia sem leme (Álvaro de Campos) 25. O deserto está agora virado para baixo (Fernando Pessoa) Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 218 Gutiérrez-Giraldo Victor Belém y sus foto-ficciones 26. Que parte de mim que eu desconheço, é que me guia? (Fernando Pessoa) ENCONTRO COM ANTÓNIO MORA 27. Sentir é existir a sós (António Mora) 28. O grande Pã renasceu! (António Mora) 29. Pensar é existir com os deuses (António Mora) 30. Sorriem as paredes (Fernando Pessoa) ENCONTRO COM OFÉLIA 31. Bebé fera (Fernando Pessoa) 32. O meu destino pertence a outra lei (Fernando Pessoa) 33. A Mestres que não permitem nem perdoam (Fernando Pessoa) ENCONTRO COM A MÃE 34. Maman, maman, ton petit enfant devenu grand (Fernando Pessoa) 35. Tu és o sexo das formas sonhadas (Fernando Pessoa) 36. Tu és a mulher anterior a queda (Fernando Pessoa) 37. Quem não se envergonha de ter mãe (Fernando Pessoa) ENCONTRO COM ALEISTER CROWLEY 38. Vibra do cio subtil da luz (Aleister Crowley) 39. Meu homem e afã...Yo Pã (Aleister Crowley) 40. Vem com Artemis, leve e estranha (Aleister Crowley) 41. Mergulha o roxo da prece ardente no hálito rubro (Aleister Crowley) 42. No laço quente, no bosque enredo (Aleister Crowley) 43. Do mar sem fim9 (Aleister Crowley) 44. Diabo ou Deus...vem a mim... a mim (Aleister Crowley) 45. Vem da Sicília e da Arcádia vem (Aleister Crowley) 46. Vem como Baco, como fauno e fera (Aleister Crowley) 47. E ninfa e sátiro à tua beira (Aleister Crowley) 48. Num asno lácteo do mar sem fim (Aleister Crowley) 49. A mim... a mim (Aleister Crowley) 50. Yo Pã...Yo Pã...Yo Pã (Aleister Crowley) O REGRESSO DA VIAGEM 51. À sombra da ampla árvore (Ricardo Reis) 52. Fitavam o tabuleiro antigo (Ricardo Reis) 53. Inda que nas mensagens do ermo vento (Ricardo Reis) 54. Lhes viessem os gritos (Ricardo Reis) 55. Come se fosse apenas, memória de um jogo bem jogado (Ricardo Reis)* 56. E uma partida ganha, a um jogador melhor (Ricardo Reis) Es el único verso que no fue transcrito entero por Belém. El verso entero dice: “e corpo e mente – do mar sem fim”. 9 Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 219 Gutiérrez-Giraldo Victor Belém y sus foto-ficciones ANEXO 2 En marzo la directora adjunta del Museu do Oriente nos compartió tres foto-ficções de Camilo Pessanha donadas a la Fundação Oriente. Las reproducimos en seguida, reiterando nuestro agradecimiento. Figs. 51, 52 e 53. “porque vos fostes, minhas caravelas” / “foi um deslumbramento que me endoidou a vista” / “o encontro do poeta Camillo Pessanha com Ana Castro Osório”. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 220 Gutiérrez-Giraldo Victor Belém y sus foto-ficciones Bibliografía BARBAS, Helena (2006). “O ‘Hymno a Pan’ de Fernando Pessoa: tradução (traição) tradição”. Disponible en línea: https://helenabarbas.net/papers/2003_Pan_Hino_H_Barbas.pdf BELÉM, Victor (2018). Pintar é uma Maneira de Pensar. Cascais: Centro Cutural de Cascais. _____ (2008). Cinquenta Anos de Arte, 1958-2008. Video, Pintura, Instalações, Foto-Ficções. Coordinação geral de Helena Garret e Mário Belém. Lisboa: Galeria Palácio Galveias, Câmara Municipal de Lisboa. _____ (2003). Homenagem ao Poeta Camilo Pessanha. Exposição de Foto-Ficções Victor Belém. Ponta Delgada: Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Ponta Delgada. _____ (1999). Homenagem ao Poeta Camilo Pessanha. Victor Belém exposição de pintura e foto-ficções. 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CATALINA GUTIÉRREZ-GIRALDO é advogada formada na Pontificia Universidad Javeriana, em Bogotá, Colômbia, e atualmente está realizando estudos de doutoramento em Literatura na Universidad de los Andes, também em Bogotá. A sua investigação foca-se nas ideias iniciáticas de Fernando Pessoa durante o período de 1920 a 1935, isto é, após o encontro de Fernando Pessoa com Aleister Crowley. Para além disso, o seu trabalho explora as intertextualidades entre os ensaios iniciáticos de Pessoa e as leituras que o escritor português fez de algumas obras esotéricas da primeira metade do século XX. CATALINA GUTIÉRREZ-GIRALDO is a lawyer graduated from Pontificia Universidad Javeriana in Bogotá, Colombia. Currently, she is pursuing a Ph.D. in Literature at Universidad de Los Andes, also in Bogotá. Her research focuses on Fernando Pessoa's initiatic ideas during the period from 1930 to 1935, specifically after Pessoa’s encounter with Aleister Crowley. Additionally, her work explores the intertextualities between Pessoa’s initiatic essays and the readings that the Portuguese writer undertoook of some esoteric works from the first half of the 20th century. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 222 !"#$%&'($)"*+",)-+"*)"./01(/)! ! #$%&'"('")*+,"('"-$./"01'"*23'"-'++*/"/"45*6%'7 !!"#$%&'($)"*+",)-+"*)"./01(/)" !"#$%&'($)*$+,-.$/#$0&12$3"23$4,1352-3-$0#--,2$6&3"$75,6'#*$ !"#"$%&'$($)*+,-. !"#"$%"&'()"$* "#$%&%'(!)#**(&+!,-#.*/#$!0$(1-#2+!".-3#+!4(*5!'#!).%&+!!"#$%&'($)"*+",)-+"*)"./01(/)6 ,*&-./ 7!$#&-.8&'($!4(*5!'#!).%&!#*/$#(9!#3!:;<;!(!=.-3#!!"#$%&'($)"*+",)-+"*)"./01(/) *(>$#!&!$#-&?@(!/#3A#*/9(*& #%/$#!(!A(#/&!"#$%&%'(!)#**(&!#!(!3&B(!,-#.*/#$!0$(1-#26!7!#%C(%/$(!'#9D*#!#3!:;EF!#!/#$3.%(9 C(3! 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Mesmo que o britânico tivesse então uma dimensão pública incomparavelmente maior que a do português, designadamente nos cenários do ocultismo mundial – e que resultava em grande parte de disputas com os seus seguidores e os que lhe foram infiéis, com destaque para o Nobel da Literatura irlandês William Butler Yeats –, já o poeta era praticamente desconhecido nessa época e a sua obra demorará décadas a ter a importância que lhe virá a ser concedida. Tal não impediu que ambos se interessem um pelo outro e que daí resultasse um dos encontros mais estranhos que se verificaram na vida de Pessoa. Este tivera conhecimento de um primeiro volume das memórias de Crowley e descobrira que o horóscopo do mago aí publicado continha alguns erros, logo informando o autor. Enviou então as correções e na volta do correio foi informado de que o ocultista queria encontrar-se com o colega astrólogo e que tencionava deslocar-se a Lisboa. Tudo se passa em setembro do ano de 1930, cinco anos antes da morte do português e dezassete da do inglês. Esse encontro irá ficar para a história, até porque Crowley decidira envolver Pessoa num dos muitos atos mirabolantes que elaborou em seu redor durante o seu percurso de vida, um espetacular falso suicídio na Boca do Inferno, a gruta situada em Cascais e por onde entram muitas ondas do Atlântico. Para o poeta, ansioso pela fama que nunca chegava, este evento macabro foi um momento inspirador para o seu imaginário pois permitia-lhe elaborar uma série de episódios baseados em certos acontecimentos que o levaram às páginas dos jornais e que agradaram ao autor de policiais que ambicionava ser. É através da descoberta desta aventura vivida entre Pessoa e Crowley que o então jovem cineasta José de Pina (n. 1962) elaborou a história com que fez a sua estreia no cinema, o filme O Mistério da Boca do Inferno, cujo argumento hoje poderá não ser inesperado, mas que à época o era, além de bastante desconhecido quanto ao seu significado. Basta ter em conta o quão desconhecido era Fernando Pessoa no início da década de 1980, quando ainda faltavam dois anos para o aparecimento revelador da primeira versão do Livro do Desassossego, preparada por Maria Aliete Galhoz, Teresa Sobral Cunha e Jacinto do Prado Coelho, e que As Confissões de Aleister Crowley: uma auto-hagiografia só seria publicada em inglês num volume de 900 páginas em 1969. A ressurreição de Crowley após o suicídio encenado na Boca do Inferno verificou-se um ano mais tarde, em 1931, quando o mago ressurgiu em Berlim. Entretanto, Pessoa viveu a euforia de ser protagonista de uma história policial que Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 224 Céu e Silva O Mistério da Boca do Inferno o poderia tornar conhecido e publicado em língua inglesa e, devido ao interesse e cumplicidade do jornalista Augusto Ferreira Gomes, do Diário de Notícias, e com inspetores ingleses em busca do mago, tentou dar forma a uma possível história com contornos de charlatanismo e muito mistério, bem ao jeito das suas anteriores incursões literárias no género do policial. O filme de José de Pina inaugurou pela criatividade e pela dimensão de mais de uma hora a hipótese de um filão cinematográfico que poderia vir a surgir sobre Pessoa; daí que O Mistério da Boca do Inferno possa ser apontado como uma das mais originais e corajosas adaptações ao cinema, porque realizada ainda num tempo em que uma obra e uma biografia ricas em idiossincrasias eram mal conhecidas e antes de que posteriores estudos vieram confirmar a importância delas. Fig. 1. O realizador José de Pina e o ator que interpreta Fernando Pessoa, José Mora Ramos, no set de filmagens no ano de 1988. O filme de José de Pina é posterior à longa-metragem Conversa Acabada (1981), de João Botelho. Neste projeto, o poeta tem como parceiro de protagonismo um outro poeta, Mário de Sá-Carneiro, mas não há nenhuma investida nos temas policiais ou do oculto, nem existe uma procura de novos ângulos que retirassem Pessoa do estatuto de ilustre desconhecido. Depois de Conversa Acabada, passarão alguns anos até surgirem novos projetos cinematográficos sobre o escritor português atualmente mais famoso em todo o mundo, além de O Mistério da Boca do Inferno. O próprio João Botelho só regressará a Pessoa em 2010, com o Filme do Desassossego. Mas apesar dos filmes pessoanos serem pouco comuns na década de 1980, um ano antes do filme de José de Pina ser rodado, fora a vez de A Suavidade do Toque (La Gentilezza del Tocco), do realizador italiano Francesco Calogero, que também se inspirara no Livro do Desassossego. Estes filmes e outros atestam a dificuldade em abordar Pessoa através do cinema e não da literatura, onde ‘abundam’ narrativas com o poeta a protagonizar o seu próprio papel ou em variações como se replicassem os seus heterónimos. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 225 Céu e Silva O Mistério da Boca do Inferno O filão Pessoa ainda estava muito por descobrir quando José de Pina avançou no seu filme, bem como os contornos da própria história que irá escrever e realizar. O poeta era pouco conhecido e a sua posteridade à procura de ser fixada. O Mistério da Boca do Inferno é o primeiro filme em que se estreia com o estatuto de realizador após ter frequentado a Escola Superior de Teatro e Cinema. Experiência nesta arte não lhe faltava, fruto de ter participado em várias categorias em equipas de filmagens como diretor de fotografia, cameraman e montador, entre outras tarefas. O filme nasce três anos depois de terminar o curso, num momento em que já trabalhava em cinema e andava à procura de ideias. Recorda: “Estava a ler uma edição das Obras Completas de Fernando Pessoa do investigador João Gaspar Simões e ao continuar a vaguear por aquelas páginas (quatro volumes com Luís de Montalvor na Editorial Ática entre 1942-1945), e por outras de jornais, apareceu-me um texto sobre o mistério da Boca do Inferno”1. O episódio despertou o seu interesse e foi em busca de mais pormenores: “Comecei a investigar e a interessar-me principalmente pelos textos de prosa do poeta e a informar-me sobre o que se publicara à época na imprensa”. Ao descobrir que Pessoa era autor de vários textos policiais2, encontrou uma ponta do novelo que irá desfiar para descobrir aquele mundo do poeta: “Fui à Biblioteca Nacional consultar o que existia, ao Diário de Notícias ler jornais contemporâneos, folhear os suplementos originais e avancei na descoberta do universo do poeta”. Fig. 2. Nota manuscrita de José de Pina. Além da vontade de fazer um primeiro filme, José de Pina estava a iniciar a carreira de professor de Cinema na Escola Artística António Arroio, o que não impediu a busca por elementos para construir um argumento em volta deste encontro de Pessoa com Crowley, que desde cedo o entusiasmara. Recorda que quando avançou Respostas de José de Pina a perguntas realizadas em 2014. O texto em questão corresponde às pp. 48-56 do texto “Fernando Pessoa, ensaio interpretativo da sua vida e da sua obra”, que abre o vol. I da Obra Poética (1986), organizado por João Gaspar Simões para Círculo de Leitores. Nesse volume, Pina deixou uma nota manuscrita (Fig. 2): “Aleister Crowley, Mago negro, a Besta 666, como gosta de se intitular a si próprio, desembarca em Lisboa. Fernando Pessoa, poeta e ocultista, recebe-o com alguma apreensão. É hostil à magia negra que o perigoso Aleister Crowley representa. Foi um desassossego”. 1 Descoberto no tomo Ficção e Teatro, organizado por António Quadros, que tomou alguns textos do livro A Novela Policial-Deductiva em Fernando Pessoa (1973), de Fernando Luso Soares, e outros das Obras em Prosa (1974), organizadas por Cleonice Berardinelli. 2 Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 226 Céu e Silva O Mistério da Boca do Inferno para o filme não sabia bem aquilo em que se estava a meter. Explica: “Foi uma inspiração do momento e achava que poderia tornar-se um projeto interessante e inventivo. Tanto assim que o filme termina com um Pessoa que não existe, porque não se o vê a escrever, mas ocupado com os seus policiais. Decido introduzir no filme o inspetor dos seus contos policiais, o inspetor Quaresma, bem como a sua paixão pela astrologia devido às referências sobre o encontro com o mago Aleister Crowley. É assim que nasce o projeto”.3 Para o cineasta há uma faceta de Fernando Pessoa que o subjuga desde que perceciona que o poeta poderá ser o tema do primeiro filme que deseja realizar, mesmo que o domínio do universo pessoano ainda fosse muito desconhecido dos leitores. Se João Gaspar Simões andava há muito tempo à volta de Pessoa e escrevera a sua primeira biografia, para José de Pina e para o cidadão comum estava tudo ainda muito no início. Era preciso encontrar espessura no poeta de modo a elaborar um argumento para um filme. A razão da escolha do protagonista era simples, como justifica: “Fernando Pessoa era uma figura muito cinematográfica. Trabalhava na Baixa de Lisboa, que era um bom cenário, tinha todos aqueles heterónimos, era poeta e gostava de astrologia. Melhor era impossível”. Enquanto fazia a investigação e montava a estrutura do filme, a grande preocupação fora tentar perceber o que poderia estar na cabeça de Pessoa. Além de que, após descobrir o encontro com Crowley, teve a certeza de que esta deveria ser uma parte importante do guião: “Se Fernando Pessoa tinha tudo para ser um bom protagonista, o mago não lhe ficava atrás. Achei de imediato que esse acontecimento daria para fazer um bom filme, porque reunia dois protagonistas especiais: um, introvertido, uma pessoa pouco comum, com aquela particularidade dos heterónimos e aquela de gostar do oculto; outro, um louco inglês que diz ser um enviado do mal ao mundo e que de imediato demonstrou um interesse em se relacionar com um poeta muito diferente de si. Ou seja, tinha à mão todos os ingredientes que procurava para criar uma história para um filme”. O que surpreendeu José de Pina foi que, estranhamente, até então ninguém tivesse pensado numa ideia destas e também não aproveitado o episódio que juntou Pessoa e Crowley. Daí que diga décadas depois: “Alguém tinha de ser o primeiro!”. Se Pessoa já era um desafio para a escrita de um argumento, ao descobrir a situação que o poeta iria viver com a chegada de Aleister Crowley, José de Pina não tem dúvidas sobre o rumo do argumento. Considera que deixou de parte qualquer academicismo e que decidiu compor o personagem do escritor português por aquilo que interpretava terem sido os factos: “Foi uma luta clássica entre as forças do mal e as do bem, uma luta entre a magia negra e a branca. Resolvi avançar numa história de ficção e com uma componente de entretenimento à volta do Pessoa. Não lhe quis Também foi importante outro tomo organizado por quadros: A Procura da Verdade Oculta: Textos Filosóficos e Esotéricos (1986), que integrou algum material cedido por Paulo Cardoso. 3 Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 227 Céu e Silva O Mistério da Boca do Inferno dar qualquer outra dimensão senão a de ser astrólogo, ter capacidades de médium e ser autor de textos policiais”4. Acrescenta: “Pessoa tem uma grande vantagem para os cineastas, a de o próprio ter escrito vários argumentos para cinema. Torna-se também apetecível filmar a figura exótica que ele era, o fato e o chapéu, os lugares de Lisboa por onde andava, até porque naquela altura todo esse seu lado era muito desconhecido”. Convém referir que só duas décadas depois esses argumentos foram publicados e revelados ao grande público.5 Ao investigar o encontro entre os dois astrólogos, José de Pina vai dedicar-se a descobrir quais os poemas que Pessoa andara a escrever enquanto Crowley estivera em Portugal e encontra um que lhe chama a atenção e que é fundamental para o lado das emoções sempre necessário a uma boa história. Recorda: “Crowley vem acompanhado de uma jovem alemã, Hanni Larissa Jaeger, e a única produção poética que encontro nesses dias é uma que considerei que seria inspirada nela. Não tinha a certeza então, só mais tarde é que essa inspiração foi estudada e provada como certa, mas na minha cabeça só poderia ter a ver com a alemã. Creio que fui o primeiro a fazer essa interpretação, o que nada tem de especial, apenas estava a tentar perceber o que Pessoa produzira durante a estada de Crowley. Essa situação fez com que introduzisse no argumento uma espécie de relação platónica do poeta para com ela. Pessoa fica fascinado com a alemã, ambos são médiuns, e essa situação interessava ao guião porque Crowley dominava a jovem, o que deixou Pessoa furioso e mal impressionado com o mago misógino. Essa paixoneta leva a que o poeta se queira libertar logo que possível de Crowley, bem como ajudar a alemã no mesmo sentido, que, entretanto, desaparece e deixa o poeta aflito”. Fig. 2. A atriz Catrin Loerck, que representou a médium Hanni Jaeger, e o ator João D'Ávila com o turbante usado nos ritos de magia por Aleister Crowley, preparam-se para as filmagens sob a orientação de José de Pina. José de Pina: “A magia branca e negra vem realmente do Victor Belém, na altura falei com ele e foi ao encontro daquilo que eu estava a escrever no argumento e gostei dessa ideia.”. 4 Trata-se de uma visão retrospetiva. Pina: “Em relação ao facto de Pessoa ter escrito argumentos, na altura não sabia, obvio”. Publicaram-se em 2011. 5 Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 228 Céu e Silva O Mistério da Boca do Inferno Ao desaparecimento da médium Hanni segue-se o de Aleister Crowley, deixando ao protagonista Fernando Pessoa a responsabilidade pelo que irá acontecer. Para o realizador, o mago inglês sente-se ameaçado durante a estada em Portugal e simula o seu desaparecimento. Segundo o guião escrito por José de Pina, Crowley não pensou que era Pessoa quem estava por trás de tudo o que lhe estava a ocorrer e com a colaboração do seu inspetor Quaresma: “Pretendia criar uma semelhança entre a arte mais ficcional e fantasiosa do filme e no fim perceber-se que Quaresma é um desdobramento do Pessoa, como se fosse um dos seus heterónimos”.6 O filme O Mistério da Boca do Inferno é dominado pela relação entre Pessoa e Crowley, reproduzindo logo ao início o pesadelo em que o mago se transforma para o poeta, situação bem delineada na chegada a Lisboa, quando as primeiras palavras de Crowley questionam se não é bem-vindo devido à tempestade que o incomodou na parte final da viagem. A ação aumenta com o convite para participar nas sessões de ocultismo em Sintra, a que Pessoa responde com hesitação por considerar não estar preparado. Crowley não aceita e invoca um ano de correspondência entre ambos e exige a presença do poeta. Os dons de médium de Pessoa provocam em Crowley indisposições e o mago pressente que o querem prejudicar no país que visita. Enquanto isso, Pessoa define Hanni como “um espírito atormentado” e entra em contacto com a sua mente, levando-a a abandonar o país. Crowley receia os seus inimigos e o filme encaminha-se para o falso suicídio do mago, que deixa uma carta à beira da gruta a justificar a sua morte. A partir desse momento, começam as peripécias detectivescas de Pessoa em parceria com o jornalista Ferreira Gomes, que Pessoa potencia a troco de fama internacional e entusiasmado com a escrita de um livro sobre o caso Crowley. O argumento e o filme surpreenderam os espetadores que assistiram à antestreia na Cinemateca Portuguesa em março de 1989 e aos que regressaram em julho de 2023, numa reposição de O Mistério da Boca do Inferno. O propósito de José de Pina em desvendar outro lado do poeta ainda muito desconhecido foi reconhecido por quem o viu na Cinemateca Portuguesa na primeira vez: “As pessoas gostaram e houve várias críticas simpáticas e, na maioria, positivas, como a importante opinião de Mário Castrim”.7 A rodagem do filme suscitou curiosidade e o jornal O Independente destacou Luís Maio para fazer uma reportagem. O que mais surpreendeu o jornalista era o baixo orçamento e o prazo para realizar o filme: apenas três semanas. Perguntara: “Como se faz uma média-metragem decente com tal orçamento?”; e sugerira: “[Esse] é um mistério ainda maior do que o filme documenta”. Fizera também um retrato do observado: “Para mais, a equipa é constituída na maior parte por jovens, e o Ora, no romance policial, Pessoa inventa um inspetor inglês, diferente de Quaresma, e quase um novo autor fictício. 6 7 A crónica / critica do Mário Castrim ao filme saiu no Diário de Lisboa. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 229 Céu e Silva O Mistério da Boca do Inferno realizador conta 25 anos. De chapéu muito pessoano, barba por desfazer, o ar convicto com que se empenhou nisto de corpo e alma, é um entusiasta”. Maio destacou as dificuldades que Pina relatara: “Temos os problemas com o guarda-roupa e os décors por causa da falta de dinheiro”. A opinião final que o jornalista deixou é clarificadora de como a luta para fazer o filme foi comparável àquela entre Pessoa e Crowley: “A equipa é engenhosa, sem cheta [dinheiro], jovem e vagarosa”. As prioridades do realizador estão bem expressas nesse artigo, no qual revela como ultrapassou as condicionantes de um primeiro filme: “O fundamental é contar uma história. A seguir é o fascínio das imagens, só depois o rigor histórico”. Não é por acaso que o afirma, como se entende pela forma como escrevera o guião: “Baseeime nos policiais de Pessoa8, em textos ocultistas e na sua faceta de astrólogo, mas como poeta nunca aparece”. Pina resume a intriga, por ele mesmo concebida, como uma perfeita saga fantástica: “A história baseia-se num acontecimento verídico e eu construi o argumento sobre um Pessoa diferente daquele que conhecíamos dos bancos da escola”. Os cenários onde as filmagens decorrem ajudam a transpor a ficção para meio século antes, afinal ainda é tudo muito parecido. É o caso de um dos principais locais para onde a equipa se desloca, um palacete em Sintra que bem poderia ser lugar de visita de Pessoa; para onde se deslocaria no táxi antigo que costumava parar na Praça do Rossio e entusiasmar os turistas devido à sua antiguidade, onde se passearia pelo jardim com várias palmeiras em fundo e comporem uma paisagem própria para as artes do ocultismo. Como nem tudo se sabia sobre o poeta, há que improvisar. Tanto assim que a teatralidade do personagem Fernando Pessoa é recriada pelo ator que o protagoniza, José Mora Ramos, com as dificuldades do desconhecimento de quem está a representar, mas sentindo-se bem na figura que criou, mesmo que confesse: “É o Pessoa, mas podia ser qualquer pessoa. Um Pessoa humilde, desconfiado, seguro de si, mas jogando com as pessoas com uma certa frieza”. Pelo contrário, o ator que interpreta Crowley, João D’Ávila, é um admirador do poeta e diverte-se a representar o mago inglês com o seu turbante, nos momentos que antecedem um dos pontos altos das celebrações demoníacas. As tonalidades sombrias que preponderam no filme não surgem por acaso, antes por duas razões. Uma primeira, tecnológica: “Os interiores das casas não tinham a iluminação de agora e essa tonalidade sombria cria uma sensação da época em que o filme se situava”. Uma segunda, própria das influências artísticas que marcavam então José de Pina: “Inspirei-me muito em termos visuais em duas áreas: a da banda desenhada de Jacques Tardi e da sua Adèle Blanc-Sec, bem como em E.P. Jacobs e a sua dupla Blake e Mortimer; e também num cinema que então apreciava bastante: o do expressionismo alemão dos filmes do Fritz Lang e de [Friedrich Em Ficção e Teatro figuram: “Prefácio a Quaresma”, “A Janela Estreita”, “O Roubo na Quinta das Vinhas”, “A Carta Mágica” e “O Caso Vargas”. 8 Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 230 Céu e Silva O Mistério da Boca do Inferno Wilhelm] Murnau, respetivamente, nos filmes Metropólis e Nosferatu. Aliás, a sessão espírita no meu filme tem influência e parece-se com a de Dr. Mabuse der Spieler (1922) de Lang” (ver Figs. 3-5). Ou seja, o meu filme passava-se nos anos 1930 e não fugia muito àquele ambiente dos finais dos anos 1920, em que existiu uma grande onda de misticismo, de magia e de médiuns, em que Crowley reinava, tendo decidido levar todo esse universo para o filme, dentro das minhas possibilidades”. Figs. 3 e 4. Dr. Mabuse der Spieler (1922). Fig. 5. O Mistério da Boca do Inferno (1989). Para que os cenários fossem credíveis, José de Pina chega a enumerar muitas dificuldades, mas garante que em 1988 ainda se os encontravam e que atualmente teriam de ser reconstituídos de raiz: “Apesar de se regressar a meio século antes, ainda existia uma paisagem urbana em muito parecida com as necessárias para as cenas em Sintra e Cascais, ainda existia o Hotel Metrópole por cima do Café Nicola; Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 231 Céu e Silva O Mistério da Boca do Inferno alugámos carros a colecionadores, encontrámos um elevador e uma cabina telefónica de época, e um escritório que seria em muito parecido com aquele em que Pessoa trabalhava, com secretárias e portas de vidro à antiga. Foi uma sucessão de achados que com os anos deixaram de existir fisicamente”. Ora, como se pode ver nas figuras dos anexos finais, o argumento de O Mistério da Boca do Inferno estava planificado por cada plano, com a ação, o diálogo e um desenho, recorrendo a uma espécie de banda desenhada como storyboard. E também existia um organigrama muito preciso com o agendamento das filmagens. Para estabelecer o argumento em definitivo e poder fazer a direção de atores, José de Pina tinha uma noção muito completa do que pretendia para o filme. O processo era simples: “Preparava tudo por antecipação, por isso quando encontrávamos o cenário ideal já sabia como ia ser a filmagem. Aos olhos de hoje, gostaria de ter acrescentado outras situações, mas o orçamento facultado quase integralmente pela RTP não o permitia. Ao rever o filme na Cinemateca [Portuguesa] há meses, posso confessar que não senti qualquer frustração e fiquei satisfeito com o resultado. Poderia sempre haver algumas melhoras a nível técnico, mas, creio, que é coisa que não se nota, bem como ter explorado mais a questão dos inspetores ingleses que vieram atrás de Crowley e jogado um pouco mais com essa parte da história, mas as condições financeiras não o permitiam”. A composição de Fernando Pessoa foi uma das dificuldades que se puseram a José de Pina devido à pouca informação sobre o poeta em 1988: “De tudo o que fui lendo, e para a situação de confronto com o enviado do mal em que o ia colocar, o que mais se adequava era um Pessoa introvertido, desconfiado, fechado, contido e que fala com pouca gente. Foi o que pedi ao ator que interpretava o poeta, o José Mora Ramos, que fez um excelente Pessoa”. Quanto ao restante elenco, José de Pina tinha de o dirigir a partir do que aprendera na Escola de Cinema, onde tivera aulas de direção de atores com Luís Miguel Cintra, mas o modo como foi feito o casting para escolher os atores revelou-se muito importante: “Já sabiam o que fazer e correu bem”. Entre os atores, houve veteranos e novatos. No primeiro caso, estava a atriz Glicínia Quartim que outro professor, Jorge Silva Melo, conseguiu convencer a participar; no segundo caso, estava José Pedro Gomes, que estava no seu primeiro filme. A banda sonora de O Mistério da Boca do Inferno é outra das surpresas que José de Pina enuncia: “É a primeira banda sonora original que o músico Nuno Rebelo compôs e que é inovadora e fora do que seria habitual à época, tanto que na reposição da Cinemateca [Portuguesa] todos a consideraram bastante atual. Conversámos bastante sobre o que eu queria, um som mais contemporâneo e experimental, e ele correspondeu com, por exemplo, aqueles órgãos de igreja nos momentos de terror. A música faz com que a ação seja valorizada e funciona muito bem”; e acrescenta: “O mais surpreendente foi fazer tudo aquilo com um orçamento apertadíssimo, tanto que quando vemos o filme não se acredita que fosse feito apenas com aquela verba, nem que tivesse sido filmado em película de 16 mm”. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 232 Céu e Silva O Mistério da Boca do Inferno Se o filme surpreende aquando da sua estreia na Cinemateca de Lisboa e ao ser exibido na televisão, deixando José de Pina satisfeito com o desafio a que se propusera, a reposição feita trinta e quatro anos depois na mesma Cinemateca faz com que se repita esse sentimento no realizador, que ainda ficou mais satisfeito: “Na segunda vez, a reação até foi superior à da antestreia, porque a opinião era de que poderia ser um filme de agora e não feito em 1988! Para tal concorreram duas situações, um som perfeito e captado em direto e uma boa qualidade de imagem”. Na folha de sala que foi entregue aos espetadores na sessão de 21 de julho de 2023, havia um aviso que os mais novos estranhariam: “A sessão terá uma pausa de 10 minutos a meio para mudança de rolo, dado tratar-se de uma cópia em dual-band”. Um texto analítico de um outro realizador, Ricardo Vieira Lisboa, enquadrava O Mistério da Boca do Inferno e dava a descobrir a estranha aventura cinematográfica que décadas antes José de Pina realizara e que permitira trazer ao conhecimento geral o que era de poucos sabido: “Sob a capa o filme de investigação policial, José de Pina constrói uma série de intromissões formais (nem necessariamente flashbacks, nem exatamente pesadelos) que enchem o filme de uma liberdade iconográfica surpreendente. Veja-se, logo na sequência de abertura, o recurso ao plano subjetivo ao ombro, os falsos raccords em zoom e as suas panorâmicas rápidas e repetitivas. Veja-se, adiante, a sequência do sacrifício do gato preto que só come carne humana (onde o campo / contracampo provoca uma equivalência entre as várias vidas dos felinos e a heteronímia pessoana). Ou veja-se, por fim, a cena do ‘homicídio’ de Crowley por uma versão patriarcal de si mesmo, uma forma lírica de afirmar o suicídio num confronto entre dois cónegos, um de Deus e outro do Diabo – qual dos dois o mais maligno? Cada um destes episódios contrasta com um certo retrato do quotidiano de Pessoa (as suas pantufas, os seus pensativos cigarros, a sua pneumonia miasmática, a sua aguardente de trazer no bolso), quotidiano esse atravessado por sopros fantásticos, como se desvenda no final, com o desaparecimento de Quaresma – mais um dos seus heterónimos? Com a sua total idiossincrasia, este é um filme que nos faz lamentar que José de Pina não tenha prosseguido uma carreira no cinema”. Trinta e quatro anos antes, fora José de Pina a escrever essa folha de sala para ser distribuída na Cinemateca, na antestreia a 9 de março de 1989 (Anexo 6). Referia com destaque a necessidade de rigor para um filme como O Mistério da Boca do Inferno: “Rigor é a palavra mágica e, quando o orçamento é muito limitado então todo o rigor é pouco e o mais pequeno dos problemas se torna um caso de vida ou de morte. E um caso de vida ou de morte concordante com o tema base deste filme”. Considerava que o filme “era ‘tout court’, a história secreta de uma maldição cuja vítima é um astrólogo pouco conhecido, mas nem por isso pouco notável: Fernando Pessoa. ‘The bad one’ é Aleister Crowley, mago negro, provável possuidor de todos os vícios que é possível a um homem. […] Entre um e outro, Pessoa e Crowley, vai travar-se a eterna luta entre o Bem e o Mal.” Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 233 Céu e Silva O Mistério da Boca do Inferno Fig. 6. Para o realizador José de Pina, os personagens principais estão envolvidos na luta entre o bem e o mal. Pessoa, no entanto, consegue evitar ser uma vítima do mago. Não faltou um final feliz a O Mistério da Boca do Inferno, com José de Pina a recriar nos últimos instantes do filme a famosa fotografia de Fernando Pessoa a beber uma taça de vinho no estabelecimento da empresa Abel Pereira da Fonseca, imagem que oferece à namorada Ofélia Queiroz com uma dedicatória feita de um divertido trocadilho: “Em flagrante delitro”. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 234 Céu e Silva O Mistério da Boca do Inferno ANEXO 1 Outras imagens das filmagens Fig. 7. Os atores José Mora Ramos (Crowley) e Catrin Loerck (H. Jaeger) no set de filmagens. O automóvel é um Rolls Royce Phantom II de 1929 alugado para o filme. Fig. 8. A recriação da época foi possível através de filmagens em locais que ainda mantinham a estética e arquitetura dos anos 1930. Segundo José de Pina, hoje seria quase impossível encontrar esses lugares com a arquitetura e decoração de então. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 235 Céu e Silva O Mistério da Boca do Inferno ANEXO 2 Ficha técnica de O Mistério da Boca do Inferno O Mistério da Boca do Inferno (1989) Realização e argumento: José de Pina Exteriores: Lisboa | Cascais | Guincho | Sintra Cor | 16 mm | 67 min | Dual-band | Falada em português Produção e rodagem: Mai/Jun 1988 Ante-Estreia | 1989-03-09 | Cinemateca Portuguesa Estreia | 1989-05-14 | Emissão na RTP1 Laboratório: Tobis Portuguesa, RTP Elenco. José Mora Ramos: Fernando Pessoa | João D'Ávila: Aleister Crowley | Fernando Heitor: Homem da Gabardina | Catrin Loerck: Miss H. Jaeger | José Pedro Gomes: Augusto Ferreira Gomes | Rui Luís: Inspetor | Glicínia Quartin: Senhora Espirituosa | Carlos Fogaça: Repórter | Fernando Oliveira, Natália Luiza, José Alexandre, Miguel Calheiros e Vítor Medina. Direção de fotografia: João Guerra Direção de produção: João Cayatte Direção de som: José Gonçalves Música original: Nuno Rebelo Montagem: Luís Amaro e José Pina Ruídos e ambientes: José Leitão e António Pires Efeitos especiais: José João Decoração: Luís Roussado e João Nascimento Grafismos cenográficos: Maria José e Helena Filipe Vestuário: Maria da Luz Villas-Boas e Catarina Pedro Caraterização: Adelaide Sousa Assistente de Imagem: Rui Trigueiros Assistente de Produção: João Gata Assistência de realização e anotação: Rui Filipe e Paulo Guilherme Eletricista: Carlos Aguiar, João Ribas, Carlos Sequeira Colaboração: Fernando Vendrell, Margarida Miranda, Joaquim Pinto, Alexandre Gonçalves, Inês Simões, Acácio de Almeida, J. Faria, Nuno Artur Silva Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 236 Céu e Silva O Mistério da Boca do Inferno ANEXO 3 O Mistério da Boca do Inferno (1989) Fig. 9. O Mistério da Boca do Inferno (1989). Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 237 Céu e Silva O Mistério da Boca do Inferno Fig. 10. O Mistério da Boca do Inferno (1989). Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 238 Céu e Silva O Mistério da Boca do Inferno Fig. 11. O Mistério da Boca do Inferno (1989). Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 239 Céu e Silva O Mistério da Boca do Inferno Fig. 12. O Mistério da Boca do Inferno (1989). Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 240 Céu e Silva O Mistério da Boca do Inferno Fig. 13. O Mistério da Boca do Inferno (1989). Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 241 Céu e Silva O Mistério da Boca do Inferno ANEXO 4 Planificação Fig. 14. Planificação. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 242 Céu e Silva O Mistério da Boca do Inferno Fig. 15. Planificação. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 243 Céu e Silva O Mistério da Boca do Inferno Fig. 16. Planificação. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 244 Céu e Silva O Mistério da Boca do Inferno ANEXO 5 Mapa de rodagem Fig. 17. Mapa de rodagem. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 245 Céu e Silva O Mistério da Boca do Inferno ANEXO 6 Folha de sala Fig. 18. Folha de sala. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 246 Céu e Silva O Mistério da Boca do Inferno Bibliografia CROWLEY, Aleister (2010). The Drug and Other Stories. Ware: Wordsworth Editions. HUTCHINSON, Roger ([1998] 2006). Aleister Crowley – The Beast Demystified. Edinburgh: Mainstream. LISBOA, Ricardo Vieira (2023). “Folha de Sala”. Cinemateca Portuguesa. MAIO, Luís (1988). “Pessoa na TV. O mistério da Boca do Inferno”. O Independente, n.o 3, Lisboa, 6 de Março. Com fotografias de Daniel Blaufuks. PESSOA, Fernando (2019). O Mistério da Boca do Inferno. Correspondência e Novela Policial. Edição de Steffen Dix. Traduções de Sofia Rodrigues. Lisboa: Tinta-da-china. _____ (2011). Argumentos para Filmes. Edição, introdução e tradução de Patricio. Ferrari e Claudia J. Fischer. Posfácio de Fernando Guerreiro. Lisboa: Ática. PESSOA, Fernando; CROWLEY, Aleister (2010). Encontro “Magick” seguido de A Boca do Inferno (novela policiaria). Compilação e considerações de Miguel Roza. Lisboa: Assírio & Alvim. PINA, José de (1989). “Folha de Sala”. Cinemateca Portuguesa. PIZARRO, Jerónimo (2018). Ler Pessoa. Lisboa: Tinta-da-china. _____ (2012). Pessoa Existe? Lisboa: Ática. SILVA, João Céu e (2020). A Segunda Vida de Fernando Pessoa. Lisboa: Guerra & Paz. SYMONDS, John (1971). The Great Beast. The Life and Magick of Aleister Crowley. Herts: Granada Publishing [2.a ed., revista, 1973]. ZENITH, Richard (2022). Pessoa: Uma Biografia. Lisboa: Quetzal. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 247 Céu e Silva O Mistério da Boca do Inferno JOÃO CÉU E SILVA é autor do romance A Segunda Vida de Fernando Pessoa e de artigos sobre o poeta publicados no Diário de Notícias. Nasceu em Alpiarça em 1959, e viveu no Rio de Janeiro, onde se licenciou em História. Recebeu em 2021 o Prémio Carreira de Jornalismo do festival literário Escritaria e publicou nesse mesmo ano Uma Longa Viagem com Vasco Pulido Valente, o sexto volume de uma série, que conta com outros autores: José Saramago, António Lobo Antunes, Miguel Torga, Álvaro Cunhal e Manuel Alegre. Além da investigação literária, tem a histórica: Álvaro Cunhal e as Mulheres que Tomaram Partido, 1961 – O Ano que Mudou Portugal, 1975 – O Ano do Furacão Revolucionário, Fátima – A Profecia Que Assusta o Vaticano e O General que Começou o 25 de Abril Dois Meses Antes dos Capitães. Em 2013, recebeu o Prémio Literário Alves Redol com o romance A Sereia Muçulmana. Na ficção publicou também 28 Dias em Agosto, A Hora da Ilusão, Adeus, África e Adeus, Casablanca. Em 2022 recebeu o Prémio Joaquim Mestre com o romance Guadiana, da Associação de Escritores do Alentejo. JOÃO CÉU E SILVA is the author of the novel A Segunda Vida de Fernando Pessoa and of articles about the poet published in Diário de Notícias. He was born in Alpiarça in 1959 and lived in Rio de Janeiro, where he graduated in History. In 2021, he received the Career Journalism Award from the literary festival Escritaria and published in the same year Uma Longa Viagem com Vasco Pulido Valente, the sixth volume in a series featuring other authors such as José Saramago, António Lobo Antunes, Miguel Torga, Álvaro Cunhal, and Manuel Alegre. In addition to literary research, he has written about historical topics such as Álvaro Cunhal e as Mulheres que Tomaram Partido, 1961 – O Ano que Mudou Portugal, 1975 – O Ano do Furacão Revolucionário, Fátima – A Profecia Que Assusta o Vaticano, and O General que Começou o 25 de Abril Dois Meses Antes dos Capitães. In 2013, he received the Alves Redol Literary Award for the novel A Sereia Muçulmana. In fiction, he has also published 28 Dias em Agosto, A Hora da Ilusão, Adeus, África, and Adeus, Casablanca. In 2022, he was awarded the Joaquim Mestre Prize for the novel Guadiana by the Association of Writers of Alentejo. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 248 !"#$%&"%'()*+("!" !"#$%#&'()*+,-.#%(/012*#)"#),(3-4#)$(4+*+#4) 56-)7-0,#,"()8-99(#),'()-9*0-3-6 !!"#$%&'%()*'+)"!" "#$%&'(')*'*#+,&+-&*./&(/*/0*#1/&,+1/$& *.'* "/2,',(+&3/44+'&(#(,5*&62#*/7& !"#$%&'#()"*#+%"#,(( !"#"$%"&'()"$*+ "#$%&%'(! )#**(&+!,-#.*/#$! 0$(1-#2+! 345*! )($/(+!!"#$ %&'("$ &)$ *#+++! 6(7#-&! 8(-.9.&-+! ,&-.$ /&$ 01)#21&: ,*&-./+ ;! <-=#! ,&-.$ /&$ 01)#21& '#! 345*! )($/(! /#=! &! 8&$/.94-&$.'&'#! '#! *#! .%*8.$&$! %4=&! %(7#-&! 8(-.9.&-+! !"#$ %&'("$ &)$ *#+++! >4#! "#$%&%'(! )#**(&! /#%/(4! #*9$#7#$! '#8(.*! '&! #%9#%&?@(! '(! *4.95'.(!'#!,-#.*/#$!0$(1-#2+!A-/.=(!&/(!'&!#*/&'.&!#=!)($/4B&-!'(!(94-/.*/&!.%B-C*:!,!&%D-.*#! 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O filme Boca do Inferno, de 2019, escrito por Jaime Monsanto e realizado por Luís Porto, insere-se na segunda vaga de efabulação do intrigante encontro entre o ocultista inglês e Fernando Pessoa impulsionada pela vinda a lume, em 2001, de um volume preparado por Miguel Roza, nom de plume de Luís Miguel Rosa Dias, sobrinho-herdeiro do poeta, que, pela primeira vez, reunia e divulgava um extenso conjunto de documentos relacionados com este singular episódio biográfico, documentos esses até então desconhecidos por continuarem na posse da família do escritor e não terem sido ainda integrados no seu espólio à guarda da Biblioteca Nacional de Portugal (BNP). Para além das cartas que o poeta trocara com Aleister Crowley e outros destinatários, o livro dava a conhecer uma novela policial, inacabada e fragmentária, com o título de The Mouth of Hell, que Fernando Pessoa idealizara e parcialmente redigira, depois da saída do ocultista inglês de Portugal,3 como sequência e, ao mesmo tempo, cabal e definitiva explicação do “Mistério da Boca do Inferno”. Nessa reportagem sensacional assinada por Augusto Ferreira Gomes, mas na realidade escrita pelo próprio Pessoa, e que saíra no Notícias Ilustrado de 5 de outubro de 1930, apresentavam-se os elementos essenciais do enigma que envolvia o súbito desaparecimento de Aleister Crowley: a carta do mago dirigida a Hanni Larissa Jaeger, que o jornalista Ferreira Gomes encontrara sob uma cigarreira com símbolos egípcios na Boca do Inferno, e o depoimento prestado por Pessoa diante das autoridades, segundo o qual, alegadamente, Crowley teria sido visto em Lisboa no dia 24 de setembro, ou seja um dia depois daquele em que, como entretanto apurara a Polícia Internacional, este último passara a fronteira de Vilar Formoso. A revelação de The Mouth of Hell não foi motivo de maior surpresa para os estudiosos da obra pessoana, pois o forte interesse de Pessoa pela ficção policial já era conhecido e Fernando Luso Soares, na década de 1970, já tinha editado em volume Uma sintética e eficaz reconstrução das semanas que Aleister Crowley passou em Portugal pode ler-se no volume sobre o assunto organizado por Steffen Dix (PESSOA, 2019: 447-457). Veja-se também o “Chapter 62” da recente biografia de Fernando Pessoa escrita por Richard ZENITH (2021: 754-772). 1 2 Para um levantamento dessas obras, veja-se: PASI (2012). No plano preparatório da mistificação, redigido por Aleister Crowley, existem umas linhas a sugerir a escrita de uma história capaz de render uma boa quantia em direitos americanos: “This story ought to fetch £200 American rights alone. Work up romance story — and how Yorke’s treachery caused the parting. Curse upon him by black magician named Yorke” (PESSOA, 2019: 337-338). Isto significa que a simples ideia de escrever uma história para tirar proveito da mistificação surgiu quando Aleister Crowley e Fernando Pessoa estavam a aprontar a blague, e até pode ter vindo do primeiro, todavia fica a nítida impressão que a tal “romance story” não seria necessariamente uma novela policial e a sua ligação direta com The Mouth of Hell afigura-se algo precipitada. 3 Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 250 Miraglia Boca do Inferno uma série de fragmentos das novelas policiárias protagonizadas pelo Dr. Quaresma (SOARES, 1976). Já no século XXI, o conhecimento da relação de Fernando Pessoa com esse género narrativo tornar-se-ia cada vez mais abrangente graças ao notável e minucioso trabalho de recolha, decifração e transcrição de numerosos documentos guardados no espólio, que levou a cabo Ana Maria de Freitas. A esta estudiosa deve-se a edição de dois volumes: o primeiro dedicado às novelas policiárias do Dr. Quaresma, cuja escrita deve ser colocada num período que vai, aproximadamente, desde 1914 até ao derradeiro ano de vida do poeta (PESSOA, 2008); e o segundo aos textos policias em língua inglesa, Tales of a Reasoner, que protagonizam o Ex-Sergeant Byng e que remontam aos anos da sua juventude (PESSOA, 2012). Talvez por ter sido excluído dos volumes que constituem as edições de referência para a ficção policial de Fernando Pessoa, The Mouth of Hell não tem geralmente encontrado espaço na bibliografia que se debruça sobre esta faceta da obra pessoana, e, de resto, Ana Maria de Freitas, no seu ensaio O Fio e o Labirinto, reconhece que este romance “está à margem das duas grandes séries, de Byng e a de Quaresma” (FREITAS, 2016: 307). Voltando ao filme Boca de Inferno, cumpre dizer, antes de mais, que se trata de uma história policial, um motivo suficiente, aliado à sua até agora reduzida difusão, para procurar evitar que estas páginas possam de alguma forma prejudicar a auspicada visão da obra por parte do leitor. Além disso, o enfoque seguido neste artigo, que na verdade é mais o dos estudos pessoanos do que o de uma crítica cinematográfica, visa, em primeiro lugar, evidenciar o modo como no filme foram aproveitados ou reelaborados os textos de Fernando Pessoa, dando particular realce à relação do argumento com The Mouth of Hell, e, em segundo lugar, fazer sobressair a imagem que Boca de Inferno transmite aos espetadores de Fernando Pessoa como figura humana. Isto implica que não serão abordados aspetos mais especificamente ligados à linguagem da sétima arte que não só enriquecem e valorizam, pela sua qualidade, a obra de Luís Porto, mas que são ineludíveis para uma interpretação abrangente e profunda do filme nas suas várias facetas e na sua dimensão simbólica. Fica aqui apenas uma alusão, que é ao mesmo tempo um caloroso convite ao leitor para ver o filme, à cenografia, particularmente sugestiva com a alternância de cenários no interior de um único espaço, o Claustro do Mosteiro de São Bento da Vitória; à realização, na qual sobressai o movimento de câmara que dinamiza uma linguagem de cariz teatral; à fotografia, com os hábeis jogos de luz; aos figurinos, que transportam o espetador para a atmosfera dos anos Trinta do século XX; à representação, com as convincentes interpretações de Jaime Monsanto (Fernando Pessoa), Edmund Digby-Jones (Detective), Simon Treves (Aleister Crowley), Pedro Manana (Augusto Ferreira Gomes) e Georgina Beedle (Hanni Larissa Jaeger); à banda sonora, toda ela constituída por músicas originais de João Morais ‘O Gajo’, que também atua no filme. Feito este disclaimer, começamos por analisar qual é a relação do argumento com a novela pessoana. A este respeito, é possível identificar de forma clara duas Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 251 Miraglia Boca do Inferno partes nitidamente separadas no filme, coincidindo a segunda com o momento em que a personagem Pessoa entra no Café Arcada. Com efeito, até então, a narrativa fílmica afigura-se substancialmente como uma linear transposição ou adaptação de The Mouth of Hell, marcada pela voz, em off, do detetive inglês cuja primeira frase, de resto, corresponde exatamente a uma das que Fernando Pessoa escreveu para incipit do romance: “This book is the detailed (so far as it lies in me) logical narrative of the investigation which I personally conducted into the possible suicide, and certain disappearance, of Aleister Crowley in Portugal” (PESSOA, 2019: 382; BNP/E3, 324r). Cabem ainda no âmbito da que se pode considerar uma adaptação da novela, embora já mais livre,4 o deambular do detetive pelas ruas da cidade e a sucessiva sequência no interior do Café Arcada, com Augusto Ferreira Gomes que narra a um Raúl Leal apavorado como encontrou a cigarreira e a carta do mago e uns clientes que vão lendo sucessivamente trechos da reportagem sensacional publicada no Século Ilustrado − uma solução brilhante e eficaz para apresentar ao espetador de forma resumida os elementos à volta do os quais gira o mistério −, todavia, a partir da cena em que o detetive inglês se apresenta a Pessoa, o argumento envereda por outro rumo, sendo a sua fonte de inspiração não tanto The Mouth of Hell, mas sim a correspondência que o poeta português manteve com Aleister Crowley, o diário deste último relativo às semanas vividas em Portugal, e outros testemunhos deste episódio peculiar e surpreendente na habitualmente pacata biografia do poeta. O foco da narrativa fílmica passa a ser o próprio Fernando Pessoa e o seu encontro com o enigmático Aleister Crowley e a sua companheira, a atraente e perturbante Hanni Larissa Jaeger. Através do diálogo entre o detetive inglês e a personagem Pessoa, enquanto estão sentados a uma mesa do Café Arcada, vão sendo reevocados, em flashback, alguns episódios marcantes da estadia do casal em Portugal, deixando transparecer, sobretudo nas sequências em que o poeta contracena com a jovem mulher, como o contacto com estas personalidades tão diferentes das que faziam parte do seu quotidiano não podia deixar de o afetar. Convém, agora, interromper a descrição do filme, que se vai aproximando do fim, dado que a história, mesmo afastando-se da de The Mouth of Hell, continua a ser uma história policial e reserva para as cenas finais o imprescindível desfecho inesperado. O desvio de Boca do Inferno da novela pessoana significa simplesmente que o rumo da investigação seguido pelo detetive do filme, as suspeitas que ele vai levantando acerca das personagens e, por conseguinte, também os resultados aos quais irá chegar não tem correspondência alguma com o que se pode ler nas páginas que Fernando Pessoa escreveu. Há, todavia, nessa segunda parte do filme, um dado intrigante pelo que concerne justamente à relação entre argumento e novela pessoana. As frases da voz em off, pronunciadas pelo detetive, excetuando a primeira, são, na realidade, o resultado de uma hábil colagem de vários trechos tirados de diferentes partes de The Mouth of Hell com ligeiras alterações. 4 Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 252 Miraglia Boca do Inferno Perante as perguntas insistentes do detetive, que manifesta a sua perplexidade acerca da personalidade de Aleister Crowley e da sua fama, a personagem Pessoa responde pronunciando umas frases que são de facto retiradas de documentos que integram The Mouth of Hell. Nos primeiros casos, trata-se de reflexões sobre a fama: Fame, or celebrity, is by its very nature superficial, and the qualities that go to make it must be superficial in themselves. […] They [famous men] owe their fame, however justified by their higher qualities, to qualities lower than those. A man must either cheapen his fundamental genius, if he have one, or set up a current outside that fundamental genius, to have any hold on what is called the, or a, public. (PESSOA, 2019: 430; BNP/E3, 345-1r) It is very easy to fall into this slough of our more successful selves. (PESSOA, 2019: 431; BNP/E3, 346r) Fig. 1. Trecho da novela policial, sem capítulo definido (BNP/E3, 345-1r e 2r). Noutros, de considerações acerca da personalidade de Crowley, e mais em geral sobre o génio: Suppose a man has his mind removed from the dirt and friction of reality, but that he has a life, or a temperament, which brings him down into them. He will create a dual life […] (PESSOA, 2019: 431; BNP/E3, 346r) There is a timidity of the outer world, a strange hesitation in puMing our real selves in contact with it. So gradually we become two – an inner man, locked up in his deep feelings and thoughts, and, to use somewhat excessive language, withdrawn from manifestation, and an outer man, Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 253 Miraglia Boca do Inferno made by circumstances and occasions, who, if such circumstances and occasions happen to be opposed to his inner nature, will be, not only two men, but to mutually opposed men. (PESSOA, 2019: 514; BNP/E3, 347r) O primeiro documento (cota 345-1; Fig. 1) tem a indicação inicial: “M[outh]/H[ell]. — Chapter (?) ‘A Study in Complexity’” (PESSOA, 2019: 429). Sem dúvida, estamos perante uma espécie de diálogo, de natureza ensaística, que contrasta com a quase totalidade dos outros textos, onde predomina o monólogo do detetive, quer esteja ele a raciocinar sobre os dados do mistério, quer a descrever os passos sucessivos da investigação que o leva a visitar vários lugares em Lisboa e nos arredores; e é bem possível que esse diálogo seja entre Pessoa e o detetive inglês. Poder-se-á, então, conjeturar que, independentemente da segunda parte do filme representar um acentuado desvio em relação à novela, o argumento de Boca do Inferno se inspirou justamente nessas páginas singulares da ficção pessoana para fazer do encontro entre o detetive inglês e Pessoa no Café Arcada o verdadeiro fulcro da narração fílmica,5 mas isto obriga-nos a examinar, com uma atenção porventura maior da que mereceu até hoje, este escrito tardiamente incluído no espólio à guarda da BNP. Publicados num primeiro momento por Miguel Roza, os documentos que compõem o corpus textual de The Mouth of Hell, foram posteriormente objeto de uma cuidadosa edição organizada por Steffen Dix, que integra a coleção Pessoa da editora Tinta-da-china dirigida por Jerónimo Pizarro. Na “Apresentação” do volume, Dix descreve o estado inacabado e fragmentário do texto e a árdua tarefa que se apresenta a quem queira editá-lo: Considerando a irregularidade e as variantes dos fragmentos da novela, torna-se praticamente impossível compilá-los de uma maneira definitiva. A única hipótese de compilar os textos, de forma relativamente convincente, consiste numa análise atenta do conteúdo dos fragmentos e numa comparação dele com os planos dos capítulos. Mesmo assim, persiste o dilema irresolúvel de existirem, por vezes, múltiplas variantes do mesmo texto ou capítulo. Ou seja […] a organização dos capítulos da novela policial obedecerá sempre, e necessariamente, a critérios subjectivos do editor, considerando que não existem praticamente nenhuns indícios objectivos sobre a última versão de um capítulo ou que fragmentos pertencem concretamente a determinado Convém notar que nos documentos em causa não há qualquer indicação relativa ao lugar no qual se desenrola o diálogo. No seu comentário a The Mouth of Hell, Ana Maria de Freitas escreve: “A investigação chega ao Café Arcada, onde o gerente e dois criados dão testemunhos sobre a presença do Poeta e do Mago nas suas mesas. O Arcada ficava perto da Wagons-Lits e da Estação de Caminho de Ferro. Terá sido nesse café o encontro de Pessoa com o investigador? O texto não dá essa informação” (FREITAS, 2016: 314). A sermos mais rigorosos, podemos acrescentar que, pela leitura dos fragmentos, é altamente duvidoso que o detetive inglês de The Mouth of Hell tenha alguma vez posto os pés no Café Arcada, pelo menos nas duas primeiras fases de escrita da novela (ver infra): “Not wishing to conduct in person this part of the investigation, I had it conducted by careful proxy by a waiter of another cafe, a clever man and a sharp witted one. He came to me the next morning and reported in full his conversation with two of the three waiters of Café Arcada. They knew P[essoa] quite well, and they knew C[rowley] too” (PESSOA, 2019: 419; BNP/E3, 355-4r). 5 Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 254 Miraglia Boca do Inferno capítulo. Reconhece-se, assim, a hipótese de outras organizações dos fragmentos, eventualmente tão produtivas quanto a que aqui se dá a conhecer; sublinha-se, contudo, a impossibilidade de algum dia se poder chegar a um critério objectivo definitivo. (PESSOA, 2019: 18-19) Além disso, há outro elemento a dificultar o trabalho editorial, pois, segundo Steffen Dix, “encontra-se na correspondência uma referência algo enigmática que sugere a possibilidade de uma reescrita de toda a novela policial com um final que nunca pudesse ser contrariado” (PESSOA, 2019: 18). Seja como for, logo após ter citado essa referência enigmática, contida numa carta a Karl Germer datada de 3 de dezembro de 1930, Dix chega à conclusão que: Embora alguns fragmentos pareçam indiciar uma tentativa de dar à novela uma nova direcção, estas linhas representam também uma forma indirecta de oferecer desculpas pelo facto de Pessoa não ter continuado, a partir de certa altura, com a escrita, perdendo pouco a pouco a vontade de concluir a novela. (PESSOA, 2019: 18) Em boa verdade, a leitura da correspondência de Fernando Pessoa com Karl Germer e Israel Regardie fornece um conjunto de informações sobre a idealização de The Mouth of Hell, e porventura sobre a sua mesma escrita, que exigem uma análise mais aprofundada. Senão, vejamos. É numa carta dirigida a Karl Germer, datada de 13 de outubro, que Fernando Pessoa menciona pela primeira vez a existência de um detetive inglês que estaria a investigar o desaparecimento de Aleister Crowley, aventando, ao mesmo tempo, a possibilidade da publicação do relatório sensacional que redundaria dela: I have some news to give you. I have just been informed that an English detective – a private one, I believe, who was here handling some other case – has been investigating Mr. Crowley’s disappearance since the beginning of the month. My information is very indirect and it is not very clear, yet I believe I am not mistaken in thinking that he is likely to make a possibly sensational report, probably even for publication, upon it. If so, I suppose we are likely to hear something by the beginning of next month. (PESSOA, 2019: 355; BNP/E3, 244r) Sete dias mais tarde, a 20 de outubro, sempre em carta dirigida a Germer, Pessoa informa que o detetive inglês está prestes a concluir a sua investigação, dando a conhecer um dos seus resultados mais notáveis, isto é, o rastreamento, após vários dias de busca, de um táxi misteriosamente relacionado com o caso Crowley: There is just one thing to tell you. The English detective, who was commissioned to handle this maMer (see my leMer of the 13th.), hopes to conclude his investigation to-day. […] I am also informed that a good number of days were spent by the investigator in tracking down a certain taxi, connected (I cannot imagine how) with the Crowley case. He has tracked it down Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 255 Miraglia Boca do Inferno at last, after a long and weary process of elimination, and I am told that the upshot of that is so starling that it will add, so to speak, a fourth dimension to the problem. In these ensuing days the man will write his report, and I am asking my intermediary friend that he suggests to the detective – unless some professional reason counters the possibility of his agreement – that he publish the result of his investigation, especially if it be so interesting as I am thus vaguely told it is. (PESSOA, 2019: 358; BNP/E3, 255-2r) Finalmente, a 24 de outubro, Pessoa comunica a Germer que o detetive inglês concluiu a investigação e que está a escrever o relatório, prevendo-se o fim do mês como prazo para a conclusão da sua redação: This is just to communicate that the English detective in charge of the Crowley Case, having (as I already informed) completed his investigation, is writing the report on it. I am told that the writing of this report is likely to take up to the end of the month, or a few days over, but it is likely to prove – especially the final part – a rather sensationalist thing. (PESSOA, 2019: 360; BNP/E3, 263r) Nesta carta, são revelados também outros elementos fulcrais da investigação, que, pelo que diz respeito ao álibi e ao rastreamento do táxi, correspondem a partes da novela bastante desenvolvidas nos documentos guardados no espólio: […] the establishment of a particularly difficult alibi, the discovery of the man who replaced Crowley in the Sud-Express, the exact determination of the adverse forces which were working against Crowley, the finding of the taxi which was concerned in an essential part of the process, and the culmination in the murder of the driver of that taxi. (PESSOA, 2019: 360; BNP/E3, 263r) Para dar uma ideia do que poderá vir a ser o relatório do detetive inglês uma vez concluído, Fernando Pessoa estabelece um paralelismo com os romances policiais de autoria de Freeman Wills Crofts: “Looked at from the outside — this, again, is my information — it will look, in a sense, like a Freeman Wills Crofts’ novel — detection in minimis” (PESSOA, 2019: 360; BNP/E3, 263r). Foi com muita probabilidade “the establishment of a particularly difficult alibi”, relacionado com a saída de Portugal de Aleister Crowley de comboio, que sugeriu a Pessoa a associação do até então simplesmente relatório sensacional do detetive inglês aos romances de Freeman Wills Crofts, onde muitas vezes o enigma a desvendar é um álibi aparentemente perfeito alicerçado nos horários dos caminhos de ferro. No seu ensaio The Detective Story, Fernando Pessoa coloca o escritor irlandês ao lado de Austin. C. Freeman como expoente maior da corrente do género policial na qual a investigação é de facto investigação,6 e sabemos que na altura da escrita de 6 “Investigation must either be natural and patient, as in Mr. Wills Crofts’ novels, or superior and scientific as in Dr. Austin Freeman’s. Most writers so confuse incident with investigation that it is Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 256 Miraglia Boca do Inferno The Mouth of Hell, ele lera pelo menos duas obras de Freeman Wills Crofts: Inspector’s French Greatest Case e The Ponson Case. Nenhuma delas se encontra hoje na Biblioteca Particular do poeta, embora da primeira tenha ficado no espólio a sobrecapa (PIZARRO, FERRARI e CARDIELLO, 2010: 421), mas ambas partilham um aspeto curioso que Pessoa lembra numa das páginas da novela inacabada: I had to work by myself, by direct unaided contact with facts and central persons, basing myself only on my knowledge of Portuguese and on such spiritual aid as I might derive from the memory of Freeman Wills Crofts, who, in prophetic regard for one of his unknown readers, had already had at least two of his criminals arrested here in Portugal. (PESSOA, 2019: 396; BNP/E3, 327r) Fig. 2. Trecho datilografado na metade superior de uma folha (BNP/E3, 327r). Com efeito, nesses dois livros a fuga do criminoso, num caso perseguido pelo Inspetor French, noutro pelo Inspetor Tanner, conclui-se justamente em Portugal, e, em The Ponson Case, podemos ler uma breve descrição da Baixa lisboeta, que, muito provavelmente, não terá deixado indiferente Fernando Pessoa: When Tanner emerged into the brilliantly lighted streets and gazed down the splendid vista of the Avenida da Liberdade, he literally held his breath with amazement. The Portuguese he had always looked on as a lazy, good-for-nothing set, but this great new boulevard made him reconsider his opinion. He booked a room in the Avenida Palace Hotel, and then, crossing the Dom Pedro Square, walked down to the steamboat offices in the Rua da Alfandega. […] difficult to determine, of certain stories, whether they can better be classed as mystery stories or as tales of investigation The two main writers in this class of story are Dr. Austin Freeman and Mr. Crofts. In both investigation is indeed investigation” (MIRAGLIA, 2018: 474). Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 257 Miraglia Boca do Inferno At six o’clock Tanner was down on the Praça do Commercio, admiring in the brilliant sunlight the splendid river which flowed before him, and the charming seMing of the town on its range of hills. In the river lay several steamers, some quite large, and all tugging at their anchors with their bows upstream. Down seawards, but inside the comparatively narrow mouth of the Tagus, a grey, two-funnelled boat was coming slowly up—the Vaal River—with, as Tanner hoped, William Douglas on board. (CROFTS, 2000: 218) Voltemos à correspondência. Já na carta enviada a 30 de outubro a Israel Regardie, com cópia para Karl Germer, a principal preocupação de Fernando Pessoa parece ser a de encontrar a editora mais adequada para a publicação do livro que o detetive inglês, tendo sido autorizado para isso, já teria parcialmente escrito e que deveria ficar completo no espaço de duas semanas. Sendo parecido, pelo que concerne o modo como a investigação é levada a cabo, aos romances de Freeman Wills Crofts, o volume teria as seguintes caraterísticas: The book will contain, among other things, (1) the complete examination of an alibi, (2) the gradual discovery of the truth in this very serious maMer, (3) the culmination of the whole case in a murder, which, however, is not Crowley’s, and this makes it all the more complex. (PESSOA, 2019: 364; BNP/E3, 277-2r)7 A partir deste dia, Fernando Pessoa deixa abruptamente de escrever cartas aos seus interlocutores estrangeiros e nem sequer responde às mensagens que lhe vai enviando o amigo Augusto Ferreira Gomes, nessa altura em Paris. O silêncio absoluto ao qual se remete o poeta durante todo o mês de novembro contrasta com a verdadeira euforia epistolar que marcara o período anterior. É só a 3 de dezembro que ele volta a dar sinais de vida, escrevendo uma carta para Karl Germer, com cópia para Israel Regardie (ver Anexo 1), na qual, após se desculpar por não ter dado notícias, imputando o motivo a uma doença, afirma que essa circunstância adversa acabou, porém, por ser revelar vantajosa para o destino do livro, pois, como explica: “If there had been time, health and disposition to write the book as originally intended, the book would have been a wrong move” (PESSOA, 2019: 366; BNP/E3, 282-1r). Uma breve descrição do livro lê-se também na carta enviada a Augusto Ferreira Dias, três dias antes, a 27 de outubro: “Como creio que lhe disse, o detective inglez que aqui tem estado a tratar do caso Crowley está escrevendo (em inglez, claro está) o relatorio completo da sua interessantissima investigação do assumpto. Deve, segundo me informam, formar um livro pequeno, com uns oito a dez capitulos breves, cujo interesse, porém, vae augmentando do primeiro ao terrivel ultimo (ou penultimo) [...] O escripto, segundo as minhas (aliás boas) informações, tem uma grande similhança com os romances policiaes do Freeman Wills Crofts — os da investigação paciente, minuciosa, conquistando a verdade pouco a pouco e muitas vezes chegando a resultados inesperados. Deve este livrinho, além de ser baseado na realidade, e ser, portanto um Freeman Wills Crofts photographico, ter a seducção — com elementos intellectuaes e de raciocinio — dos bons contos policiaes (PESSOA, 2019: 161-162; BNP/E3, 275-2r). 7 Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 258 Miraglia Boca do Inferno A impossibilidade de realizar o plano traçado anteriormente permitiu-lhe refletir melhor sobre o assunto e chegar à conclusão que seria mais oportuno seguir outro rumo: The compulsory meditation that has intervened has enabled me to think out the work as (1) a coherent whole as a detective story, (2) a far more interesting story than it was originally, (3) a story with a conclusion which no future fact or facts can ever counter or rebut. (PESSOA, 2019: 366; BNP/E3, 282-1r) A seguir, Pessoa fornece uma sinopse da história bastante extensa e pormenorizada, na qual descreve toda a investigação do detetive inglês, detendo-se em particular no complicado álibi relacionado com a saída de Aleister Crowley de Portugal, até ao seu desfecho, e remata: “This, very quickly and badly told, is the whole story” (PESSOA, 2019: 368; BNP/E3, 282-3r). O que faltaria, seria apenas uma reelaboração do que já tinha sido escrito em partes à luz da nova conceção da história como um todo coerente, e, Pessoa, assumindo-se como seu autor sem mais disfarces (“The poor author still lies under the curse of deferred work for commercial elementals”), promete enviar os capítulos à medida que estejam redigidos, prevendo concluir o trabalho no fim do mês. Ora bem, da longa sinopse de The Mouth of Hell não consta qualquer encontro entre o detetive inglês e a personagem Pessoa e, de resto, também nas informações, embora parciais, acerca da investigação do detetive inglês e do seu relatório sensacional que o escritor fora dando aos seus interlocutores nas cartas enviadas ao longo do mês de outubro não há vislumbre de que alguma vez tal encontro se dera. Na realidade, a primeira referência a um encontro fugaz que teria acontecido entre Fernando Pessoa e um agente investigador inglês aparece num texto que faz parte da mistificação, da blague, ou seja, o artigo “Aleister Crowley foi assassinado? Um novo aspecto do caso da ‘Boca do Inferno’”, publicado a 16 de dezembro de 1930 na revista Girasol: Sei com absoluta certeza que estiveram aqui dois agentes investigadores ingleses a tratar do caso de Crowley. Logo no dia 29 de Setembro me apareceu aqui, neste escritório, um dêles; veio com um disfarce verbal transparente, tanto que não só eu, mas um amigo meu, inglês, que por acaso aqui estava, imediatamente desconfiámos do “professor de línguas” que nos havia aparecido. (PESSOA, 2019: 192)8 Sabemos que este artigo, em forma de entrevista, foi integralmente escrito na realidade por Fernando Pessoa, como ele informa Aleister Crowley em carta datada É justamente neste artigo que se baseia o argumento do filme para as falas iniciais do diálogo entre Pessoa e o detetive, como evidencia o facto de este último se apresentar como um professor de língua inglesa. 8 Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 259 Miraglia Boca do Inferno de 13 de fevereiro de 1931 (PESSOA, 2019: 188); da sua leitura, infere-se que, nessa altura, o plano para The Mouth of Hell continuava a ser o da sinopse: Do “professor de línguas” não só tenho a certeza visual e lógica, mas consegui saber, por favor especial, ao menos três resultados das suas investigações. Sei que êle conseguiu “levar a sua investigação a bom fim”, ou que, pelo menos, supõe que o fez; sei que nem admite a hipótese do suicidio nem a hipótese da “blague”; e sei que, desde o primeiro dia da investigação, me “riscou do caso”, com o fundamento, que me deixa perplexo, de que entre Crowley e os jornais havia um elemento de ligação “muito mais íntimo e valioso” do que eu”. (PESSOA, 2019: 192) Tudo isso nos leva a conjeturar que até, pelo menos, ao mês de dezembro de 1930, as páginas do capítulo “A study in complexity” não tinham sido ainda escritas e nem sequer idealizadas. Corrobora esta hipótese o facto de em nenhum dos planos que Pessoa traçou para o romance surgir, entre os capítulos listados, “A study in complexity” (cf. PESSOA, 2019: 377-379 e 437). Podemos supor, então, que a escrita de The Mouth of Hell tenha passado por, pelo menos, três fases: a primeira, porventura a mais abundante, a situar ao longo do mês de outubro, a segunda, que consistiria essencialmente num reajuste da história à luz dos pressupostos enunciados na carta a Karl Gremer de 3 de dezembro, levada a cabo entre as últimas semanas de 1930 e o começo de 1931,9 e a terceira, algures ao longo do ano de 1931 ou até mais tarde, que implicaria algumas alterações substanciais em relação à sinopse, sendo a mais notável o acrescento à história do encontro entre o detetive e a personagem Pessoa.10 No seu ensaio sobre a ficção policial de Fernando Pessoa, Ana Maria de Freitas dedica algumas páginas à análise de The Mouth of Hell, nas quais realça e comenta a relevância do capítulo “A study in complexity”: No entanto, apesar de se aproximar das convenções do género e se afastar do modelo policial pessoano, essa obra apresenta a marca do autor e é mais complexa do que uma simples ficção. Pessoa tem, nesta história, o prazer de se incluir como personagem e de lançar sobre si-próprio um olhar exterior. O único diálogo pertence-lhe e nele aproveita não só para fazer uma análise da Besta 666 como para estender essa análise a questões do génio e da fama […]. Percebe-se que a personagem Fernando Pessoa é colocada, na ficção, no papel de Abílio Fernandes A esta segunda fase, provavelmente, devem-se a maioria das variantes dos capítulos do romance e do “Prefácio”. 9 The Mouth of Hell consta de dois projetos editoriais (BNP/E3, 170r e 181r), que, para Jorge Uribe e Pedro Sepúlveda, devem ser datados de c. 1931 (cf. PESSOA, 2007: 64); o segundo tem a particularidade de associar a novela a outra com o título de The Double Issue, sendo ambas atribuídas a “J.S.B.” (URIBE e SEPÚLVEDA, 2016: 196-198). The Double Issue é o título que Fernando Pessoa deu, num segundo momento (ver BNP/E3, 273 K-2v), a The Second Issue, “the story of the greatest forgery of modern times” (BNP/E3, 273 K4), ou seja, a conhecida fraude de Artur Alves Reis. 10 Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 260 Miraglia Boca do Inferno Quaresma, caindo o investigador inglês para o papel de Manuel Guedes, o que é justo e lógico, pois Quaresma é um Pessoa reduzido a um dos seus aspetos, o do decifrador de charadas. (FREITAS, 2015: 312)11 Para reforçar a proximidade entre a personagem Fernando Pessoa, tal como se delineia nas páginas desse capítulo tardio de The Mouth of Hell, e o Dr. Quaresma, oportunamente assinalada por Ana Maria de Freitas, vale a pena acrescentar que, assim como em certos trechos de “A study in complexity” ecoam as reflexões sobre a celebridade que podem ser lidas no ensaio Erostratus (PESSOA, 2000), também na novela policiária mais desenvolvida da série Quaresma, O Caso Vargas, não faltam nítidas reminiscências desse texto, fragmentário e inacabado, que Fernando Pessoa foi escrevendo entre 1929 e 1930: Outras circumstancias, como certos estimulantes, certos momentos de exaltação espiritual, e outras assim, podem produzir num cerebro não-genial faiscas do que, se fosse constante, seria genio. Tal homem, naturalmente normal, e portanto banal, mas intelligente, terá um momento em que escreva um soneto que fique, unico d’elle, numa anthologia. Tal outro – e isto é mais vulgar – terá um dito de espirito que voluntariamente aMribuiriamos a um espirito realmente genial. O dito de espirito é, até, um dos exemplos curiosos do raro phenomeno do genio occasional: e é de notar quantas vezes nasce do estimulo da sociedade, do do vinho, de outros assim. (PESSOA, 2008: 92; BNP/E3, 2714 V2-13r)12 O capítulo “A study in complexity”, que apenas surge na terceira e já derradeira fase de escrita de The Mouth of Hell, constitui na realidade o regresso de Fernando Pessoa à sua ficção policial mais autêntica após uma esforçada divagação por caminhos narrativos, sob o signo de Freeman Wills Crofts, que podiam até merecer o seu apreço como leitor de romances do género, mas que não se coadunavam de forma alguma com a sua índole. Em suma, do novo rumo que o escritor pensou dar a The Mouth of Hell, ficou apenas um vislumbre e o destino desta novela acabaria para não ser diferente do que tiveram todas as outras tentativas do autor no âmbito da ficção policial: fragmentos confiados à arca. Que o argumento de Boca do Inferno tenha feito justamente do encontro entre o detetive inglês e a personagem Fernando Pessoa o verdadeiro fulcro da história, inspirando-se naquelas páginas da novela policial que mais se afastam Note-se também este importante comentário da estudiosa: “Existe um longo diálogo em que Pessoa faz o papel destinado a Quaresma nas novelas: analisa a motivação psicológica da figura central [...] O tema é a fama ou celebridade de Crowley, mas Pessoa passa para considerações gerais” (FREITAS, 2016: 314) 11 Cf. Erostratus: “Every man has made, at least, one good joke in his life; yet he is not therefore a wit. The joke was the moment’s, not his. Every man has had, if only once in his life, a happy idea, and he is not therefore a thinker. The idea was his chance rather than his property [...] Some strange trick of the brain, which if, continual and organic, is genius, may be occasional and non-typical and simulate genius legimately as it lasts. (PESSOA, 2000: 133-134 BNP/E3, 96-22r). 12 Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 261 Miraglia Boca do Inferno da investigação meticulosa, mas, ao mesmo tempo, rebarbativa e árida que caracteriza The Mouth of Hell, revela como Luís Porto e Jaime Monsanto souberam captar o que de mais autenticamente pessoano se encontra nesta ficção incompleta. Boca do Inferno, como vimos, conta uma história que, a partir de certa altura, já não é a mesma de The Mouth of Hell, assim como ficou guardada na arca, mas nada nos impede de a considerar, no fundo, um desenvolvimento, sem dúvida livre e imaginativo, de uma potencialidade latente no novo rumo da novela que Fernando Pessoa se limitara a esboçar.13 Para concluir, algumas breves considerações sobre a representação do poeta, enquanto homem, que sobressai de Boca de Inferno. Vale a pena notar, antes de mais, que o filme de Luís Porto, ao contrário do que seria porventura expectável, tendo em conta a tendência geral das obras de ficção inspiradas no encontro entre Fernando Pessoa e Aleister Crowley, não explora aqueles aspetos mais comummente associados a este acontecimento, isto é, o ocultismo e a magia. Pelo que concerne a reevocação das semanas que o mago inglês e Hanni Larissa Jaeger passaram em Portugal, à qual o espetador assiste na segunda parte do filme, o que ressalta é, como já foi notado, a reação de Pessoa diante dessas duas personalidades invulgares e, em particular, o acanhamento e a perturbação que lhe provocam os momentos de intimidade com a jovem mulher. Numa cena, literal e metaforicamente solar, o espetador assiste à visualização do conhecido poema “Dá a surpresa de ser” que Pessoa escreveu a 10 de setembro, um dia depois de ter passado umas horas em companhia de Hanni: este seria “o seu único poema vagamente erótico”, segundo Steffen Dix (PESSOA, 2019: 451) “the only poem of his entire life in which the speaker unequivocally lusts after a female body”, nas palavras de ZENITH (2021: 762). O toque leve e delicado com o qual Luís Porto trata esses momentos de intimidade leva-me a pensar se a sua recriação corresponde ao que realmente aconteceu nesses dias de setembro de 1930, que talvez não seja arrojado supor um reflexo ou um eco desses momentos noutro poema que Fernando Pessoa escreveu a 12 de setembro: Não sei se é amor que tens, ou amor que finges, O que me dás. Dás-m’o. Tanto me baste. No doc. BNP/E3, 344r temos indícios de uma transformação da própria figura do detetive inglês, inicialmente alheio à cultura portuguesa: “I finally ascertained that P[essoa] used to go every day to Café Arcada, right down near the Tagus, not for conversation but for coffee, and that he did foreign correspondence for at least two offices, which, being of well-known business men, I easily got the addresses of. Let no one curse cafés, those “oases of noisy uselessnesses” (as the Portuguese poet Alvaro de Campos, who happens to be one of Pessoa’s “heteronymous” personalities, once said). In the future course of this investigation of mine, I never got information so quickly as in this true oasis, noisy but not useless, which I was to find, in the beginning of the very real desert of my quest (PESSOA, 2019: 405; BNP/E3, 344r). O detetive traduz para inglês uma expressão que se encontra no verso 44 da “Ode Triunfal”: “Nos cafés – oásis de inutilidade ruidosas” (PESSOA, 2014: 49). É de salientar, neste documento, a ocorrência, porventura a primeira e única no espólio, do termo “heteronymous”. 13 Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 262 Miraglia Boca do Inferno Já que o não sou por tempo. Seja eu jovem por erro. Pouco os deuses nos dão, e o pouco é falso. Porém se o dão, falso que seja, a dadiva É verdadeira. Acceito, E a te crer me resigno. (PESSOA, 2016: 159) Talvez não seja mais que uma mera coincidência temporal, certamente é um Ricardo Reis insólito e atípico aquele que fala e medita nos versos desta ode. Na representação fílmica do escritor, há outra faceta que se revela quando, na sua primeira aparição, a personagem Pessoa contracena com Augusto Ferreira Dias. Perante a hesitação que o amigo jornalista manifesta acerca de alguns detalhes da blague suscetíveis de levantar perplexidades na opinião pública, a resposta lapidar do poeta define de imediato o caráter da personagem: “Porque é sempre preferível mentir a dizer a verdade. A ficção é lógica, ou pelo menos devia ser; a realidade é como vem, e por vezes, não tem verossimilhança alguma”14. E é significativo, pelo que concerne o intuito de Luís Porto em realizar este filme, que seja justamente a imagem de um Fernando Pessoa irónico, espirituoso, blaguer, em diálogo humorado com Augusto Ferreira Dias, a última que fica na retina dos espetadores de Boca de Inferno. A fonte quase textual destas frases, assim como das pronunciadas por Augusto Ferreira Dias pouco antes, ao narrar o caso a Raúl Leal, no Café Arcada, (“O Fernando disse-me logo: Você não pode contar isso assim, porque ninguém acredita. A verdade nunca se acredita. É preciso mentir. Invente qualquer coisa, qualquer coisa plausível e ‘humana’”) é um documento do espólio escrito em língua portuguesa (PESSOA, 2019: 312-313; BNP/E3, 324r), ao que parece um depoimento sobre o achado da carta de Aleister Crowley que não foi aproveitado na reportagem sensacional publicada no Notícias Ilustrado ou nos outros artigos saídos na imprensa. 14 Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 263 Miraglia Boca do Inferno Fig. 3. P[essoa] used to go every day to Café Arcada (BNP/E3, 344r). Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 264 Miraglia Boca do Inferno ANEXOS Símbolos utilizados □ <> espaço deixado em branco pelo autor segmento riscado Segmentos sublinhados encontram-se reproduzidos em itálico. Anexo 1 [BNP/E3, 282-1r a 4r] Dear Mr. Germer: I am sorry that I should have delayed so much my reply to your le€er of the 18th. November, and that, apart from that, I should have left you for so long a time without any news. The fact is that I was ill for a good (meaning a bad) part of November, and the time that I was not ill circumstances were ill around me. Then, when both I and they were be€er, there was the immediate pressure of work delayed owing to both ills. As, however, it behoves everyone who can do so to make circumstances, even if adverse, the subject of a sort of alchemy or transmutation, by which delay itself may become a mode or episode of progress, I, as Gonzalo would have said, have “derived much comfort” from this fellow, circumstance. If there had been time, health and disposition to write the book as originally intended, the book would have been a wrong move. The compulsory meditation that has intervened has enabled me to think out the work as (1) a coherent whole as a detective story, (2) a far more interesting story than it was originally, (3) a story with a conclusion which no future fact or facts can ever counter or rebut. The detective in charge of the case, after very curious investigations (all backed up by witnesses, facts and careful deductions) arrives at the conclusion that A[leister] C[rowley] neither committed suicide nor was murdered nor left the country on the Sud-Express. The definite conclusion is that he was either tracked here by enemies, or enemies were already here awaiting him; that, in view of this, he sent Miss J[aeger] ahead of him to get her out of danger; that as Miss J[aeger] went to Germany, so did C[rowley] mean to go to Germany; that once in Germany he would be safe, the danger being on the route; that, in view of this, he arranged with someone of whom the detective never ascertained the identity to take, if necessary, his place and passport and luggage an go off in the Sud-Express if the trackers got wind of the purchase of the ticket (otherwise C[rowley] would himself have gone in the Sud-Express); that the ticket for the Sud-Express was purchased at 10.5 or 10.10 in the morning of the 23rd. September at the agency of the Wagon-Lits by a man who gave his name as Cole and his address as Hôtel de l’Europe, who was accompanied Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 265 Miraglia Boca do Inferno by another man who answered rather roughly, though not exactly, to my description, the buyer of the ticket seeming to conform fairly well to C[rowley]’s description; that, however, on the showing of four witnesses, at that precise hour C[rowley] and myself were at the Café Arcada in Terreiro do Paço, there being therefore an absolute alibi (it is at this stage that the story begins to get interesting, and it is not necessary to add that what I have mentioned before as “conclusions” really comes after); that both C[rowley], pseudo-C[rowley] and pseudo-I appeared at the railway station for the Sud-Express; that the trackers were there, so pseudo-C[rowley] went off with C[rowley]’s luggage and passport, pseudo-I speaking to him in the carriage long before the train left (and in French, since he ended by crying out “Bon voyage!” from the passage); that consequently the man who crossed the frontier with C[rowley]’s passport was not C[rowley] and bore only a general, but working, resemblance to him; that this man, as the American Consular authorities took the trouble to investigate, went, as C[rowley] would have done, right through to Germany, where he was on the 27th., as Consul Armstrong affirms (though he afterwards became unsure whether it was really C[rowley] who was then in Berlin); that C[rowley] left the Railway Station and (another witness) got into a taxi which had been waiting for him a long time on the upper level of the Station (description of taxi and driver obtained, and the taxi contained only one suitcase, new); that on the 24th. C[rowley] and the pseudo-I took coffee on the “terrace” of the Café Royal (another witness) at about 3 p.m., then went off (obviously to the Tabacaria Ingleza, which is next door, and this was evidently when I saw C[rowley] and “another man” enter this place); that then they went off to the Estoril Railway station, which is just opposite; that on the 25th. (witnesses at Cascaes) a man closely resembling pseudo-I was twice seen near Bocca do Inferno; that presumably this meant the “planting” of the “suicide le€er”, which Gomes found that very evening; that, presuming that C[rowley] would leave the country – for Germany, as he obviously meant to do –, he would leave by another route, the best being obviously the Southern Train, which runs to the very South of Spain, which is very little used by foreigners (except Southern Spaniards) and goes to a place on the frontier where vigilance is very slack and C[rowley] could therefore have easily passed with another man’s passport, or, for a consideration of something like £5, without any passport at all; that there is testimony that a man resembling C[rowley] very closely, and carrying one new suitcase left Lisbon at 8 a.m. on the 25th. on this train, buying a first-class ticket to the end of the line — Villa Real de Santo Antonio, just opposite Spain; that the “suicide le€er” was obviously planted to confuse the trackers, who would by then have discovered that the Sud-Express passenger was not C[rowley] and leave them sufficiently confused to enable C[rowley] to get out of the country; that (Cascaes witnesses) a “roughlooking man” was seen looking about the Bocca do Inferno on the 26th. (which means that information leaked out from Diario de Noticias or from the Censorship, since the news-item was held up for a day and only appeared on the 27th., showing Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 266 Miraglia Boca do Inferno thus the het of connections that C[rowley]’s enemies had); that it was never possible to identify pseudo-C[rowley] or pseudo-myself; that the case is thus carried to a triumphant close, as far as can be; that it would have been possible, perhaps, to carry it further if it had been possible to interview the driver of the taxi which carried C[rowley] from the Central Railway Station just after the Sud-Express of the 23rd. left; that the investigator very rightly ascertained that this taxi must have been taken by C[rowley] in Terreiro do Paço, just after he left Café Arcada at 10.25 a.m. (time exact) on that day, identification of the taxi being thus easy from (a) porter’s description of the taxi, (b) porter’s description of the driver, (c) the fact that it was a taxi likely to be known15 at Terreiro do Paço, which is a taxi-stand but a small one; that the taxi was very easily identified from these data as the one belonging to Ernesto Martins; that it was impossible, however, to obtain any information from E[rnesto] M[artins] because he was shot in his taxi, in highly mysterious circumstances, in the early hours of the 26th. September, outside an estate called Quinta da Terrugem, which is on the line between Lisbon and Cascaes; that the murderer of E[rnesto] M[artins] was never caught, all that is known of him being that he was a “roughlooking man”, presumed to be a certain individual, with a criminal record, whom the Police let slip through their hands. This, very quickly and badly told, is the whole story. As you may presume, when put the right way and in the right se€ing and development, it makes a very good detective story, even to the16 presence of an unexpected alibi and a murder, and also “powerful enemies”, who go to the extent of murdering a poor chauffeur when they cannot get their man – a stupid thing (most times) in fiction, but a highly interesting one in real life, and duly shrouded in mystery. Apart from this, the story follows a strictly logical development; there are many curious points about it, one being that the investigation is put on the right track by the apparently minor circumstance that I (Pessoa) look younger by almost ten years if I put my hat on, this being one of the definite proofs of the advantage of psychologically directed minuteness in observation. And, as you see, no facts can emerge to counter this, so no one’s movements are hindered by the story or by any delay it may still undergo. The whole circumstances and non-circumstances have been built up by intellectual alchemy into a coherent whole, each fact dovetailing into another, the whole story moving by a process of observation tempered by reasoning, in a series of readjustments and readaptations to reality. Of course, it would be of great advantage if the appearance of the central figure of the story were not to take place before the book appears, but, as I have said, the story has been so devised as to be not only whole in itself, but also so as to adapt itself to reality – both in the sense that no facts can possibly emerge to counter it, and 15 No original, “knozn”. 16 No original, “tothe”. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 267 Miraglia Boca do Inferno in the sense that nobody’s movements are really hindered by its delay or not-delay. This treble adaptation to reality has given more trouble than a philosophical treatise would give, but… Mens agitat… The story is wri€en in parts, but it is only now, that it has been thought out as a coherent whole, that it can be really wri€en out. The poor author still lies under the curse of deferred work for commercial elementals, but the curse lapses on Sunday, when final redaction will begin. It should move swiftly thereafter, but there is no saying it will not take till the end of the month. As promised you, the chapters will be sent you as they are wri€en. After all, the ubiquitous 3-month sign in my Horary Question was quite right! I tried to read the present circumstances into the end-October aspect, but that absolutely covers the Détective article, so clearly a good aspect in its publication and bad aspect in the wholesale bungling of names, not to speak of the slovenly redaction of the amiable criminal who wrote it. The question of the capitalization has, so it happens, undergone – for very different reasons – a parallel delay. It is not till the end of the present month that my friend can consider with the due a€ention the proposition, which interested him in the abstract. He, however, does not like to go deeply into a proposition till he has the ready money to put into it at once, should he accept it. Now this ready money will not befall him till the end of this year, when he gets clear of a business in which the money was bound up. As I also received a le€er from Mr. I[srael] R[egardie] asking for news, I am sending him a copy of this le€er, as I sent you some time ago a copy of one to him, and for the same reasons of simplicity and quickness. With best wishes, I am Yours very sincerely, [Fernando Pessoa] Anexo 1 [BNP/E3, 282-1r a 4r] Cópia a papel químico de quatro páginas dactilografadas da carta enviada a Karl Germer. As páginas encontram-se numeradas no cabeçalho, acompanhadas pela data da carta: 3-XII-1930. A leitura desta carta esclarece qual era a história que Fernando Pessoa pretendia contar em The Mouth of Hell. A história de uma investigação particularmente complexa e articulada que explicaria cabalmente o enigma lançado pela reportagem sensacional publicada no Notícias Ilustrado, “O Mistério da Boca do Inferno”. Afinal, Aleister Crowley não se suicidou, nem foi assassinado, e para sair de Portugal serviu-se do comboio do Sul em vez do Sud-Express. Houve, de facto, a encenação do suicídio na Boca do Inferno, mas com a finalidade de despistar os poderosos inimigos que perseguiam o ocultista inglês e cuja ferocidade se manifesta no assassínio do taxista Ernesto Martins. Diante disso, as afirmações perentórias que podemos ler no posfácio da mais recente edição dessa novela policial afiguram-se, senão inexatas, pelo menos ambíguas ou enganosas: “No entanto, e à semelhança da maioria dos projectos de Pessoa, também a novela policial The Mouth of Hell ficou fragmentária. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 268 Miraglia Boca do Inferno Pessoa começou-a com grande entusiasmo, mas depressa perdeu o interesse e enviou a Crowley ‘justificações astrológicas’ regulares do facto de ainda não ter conseguido acabar o texto. Na verdade, o que falta nos fragmentos é um final verdadeiramente convincente. O leitor nunca saberá se Crowley cometeu suicídio, se foi assassinado, ou se tudo não passou de um embuste, um hoax” (PESSOA, 2019: 476). Pode-se até admitir, em parte, que uma leitura circunscrita exclusivamente aos documentos que ficaram da redação da novela deixe dúvidas acerca de qual seria o seu desfecho, todavia, a carta dirigida a Karl Germer, de 3 de dezembro de 1930, revela como o inacabamento do texto não deve ser atribuído à perda de interesse ou à falta de inspiração. Na mente de Fernando Pessoa, a história estava nessa altura plenamente arquitetada “by intellectual alchemy” e numa forma que a salvaguardaria de quaisquer eventos que pudessem surgir, inclusive o reaparecimento público do ocultista inglês. Repare-se, aliás, que, quando tal aconteceu no mês de fevereiro de 1931, Fernando Pessoa viu nisso até uma vantagem para o destino da novela, como fez notar a Aleister Crowley: “Having a lot of pressing and unimportant maMers weighing down upon me, I have transferred the definite writing of the ‘novel’ till March or April, if Fate so will it. Having ceased to be topical, in the worst sense of the word, it can at least become interesting in the best one” (PESSOA, 2019: 373; BNP/E3, 288r). Em suma, o facto de Fernando Pessoa não ter conseguido traduzir no papel a história idealizada parece ser mais a confirmação da sua dificuldade crónica em escrever ficção, como atestam ex abundantia as numerosas tentativas em diferentes géneros narrativos que redundaram em textos incompletos e fragmentários. O que, na verdade, surpreende neste caso, se considerarmos a quantidade de documentos relativos a The Mouth of Hell guardados no espólio, é o empenho de Fernando Pessoa na escrita dessa novela; um empenho que, mesmo tendo em conta as dificuldades económicas com as quais se debatia constantemente o poeta, não creio encontrar justificação apenas na possibilidade dessa história policial lhe granjear um lucro monetário. Sabemos que o encontro com Aleister Crowley, em setembro de 1930, reavivou em Fernando Pessoa um sonho alimentado durante toda a sua juventude e que foi desmoronando com o passar dos anos: o de se afirmar como um grande poeta de língua inglesa (veja-se MIRAGLIA, 2022). A mistificação da Boca do Inferno, por outro lado, ofereceu-lhe uma súbita e inesperada oportunidade de ver finalmente um seu livro publicado na Inglaterra. Um livro que, no seu intento, ombrearia com os populares romances policiais de Freeman Wills Crofts, e representaria porventura um primeiro passo para mais altos voos no mercado editorial anglo-saxónico. Daí, o entusiasmo, uma verdadeira euforia, que se apoderou de Fernando Pessoa e que transparece da intensa troca epistolar com Karl Germer e Israel Regardie ao longo do mês de outubro de 1930. O abrupto silêncio, ao qual se remete o poeta no mês de novembro, é talvez sinal de que a concretização do projeto ia-se revelando mais árdua do que ele previa, mas a longa carta de 3 de dezembro indicia que o interesse por The Mouth of Hell não esmorecera de forma alguma e, de resto, um exame cuidadoso dos documentos constantes do espólio desmente a ideia que Fernando Pessoa se tivesse cansado tão cedo de escrever essa novela policial. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 269 Miraglia Boca do Inferno Fig. 4a. Carta de Pessoa para Germer, 3-12-1930 (BNP/E3, 382-1r). Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 270 Miraglia Boca do Inferno Fig. 4b. Carta de Pessoa para Germer, 3-12-1930 (BNP/E3, 382-2r). Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 271 Miraglia Boca do Inferno Fig. 4c. Carta de Pessoa para Germer, 3-12-1930 (BNP/E3, 382-3r). Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 272 Miraglia Boca do Inferno Fig. 4d. Carta de Pessoa para Germer, 3-12-1930 (BNP/E3, 382-4r). Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 273 Miraglia Boca do Inferno Anexo 2 [BNP/E3, 277 V-2r] The Mouth of Hell17 Definite analysis of the whole narrative. Get elements to have everything right, down to Amaral. A year has now passed over the incidents which make up this narrative. The three reasons18 for withholding it from publication have now disappeared. In the first place I have □ Anexo 2 [BNP/E3, 277 V-2r] Folha de papel manuscrita, com marca-d’água GRAHAMS BOND | REGISTERED. Deste documento, não recolhido na edição de Steffen Dix (PESSOA, 2019), Miguel Roza apresenta uma reprodução fotográfica no volume Encontro Magick (PESSOA e CROWLEY, 2010: 402), acompanhada por uma tradução em língua portuguesa na qual os algarismos na parte superior da página foram interpretados como uma data: 27-7-32. Na realidade, esses algarismos correspondem à cota atribuída ao documento no espólio à guarda da Biblioteca Nacional de Portugal (BNP), pelo que se deduz que o mesmo não integrava o dossier Pessoa-Crowley, que esteve, até 2008, na posse dos herdeiros do poeta. Este breve texto, que parece ser o incipit de um prefácio para a novela, revela que Fernando Pessoa continuava a pensar na publicação de The Mouth of Hell um ano depois da mistificação da Boca do Inferno. Existe outro documento (BNP/E3, 386), também este manuscrito, que apresenta um texto semelhante na primeira parte (“Sufficient time has now passed since the events and the investigation described in this book for it to be proper, perhaps I may add safe, to publish it”; cf. PESSOA, 2019: 407), enquanto na segunda descreve as impressões que o detetive reteve de um encontro com Pessoa: “He seemed to me a highly nervous subject, of the emotional, rather than the irritable, kind. If any knowledge of man were right, I would have thought he was perplexed or troubled; but I know he was not — his emotion was spontaneous and meant nothing. Some [understain] of repression or inhibition could perhaps explain antecedently his epidermic nervousness. It was enough to me that it was epidermic and no more. I signed that up in the train I hid my eyes, without watching him. […] The moment he answered it as he did, my case, in one respect, was complete. I knew he had nothing to do with C[rowley]’s disappearance […] (PESSOA, 2019: 407; BNP/E3, 386r). Trata-se de um testemunho evidente da terceira fase de escrita da novela policial que, como já foi dito, previa não apenas o encontro entre o detetive inglês e a personagem Pessoa, com a atribuição a este último de um papel que lembra o do dr. Quaresma, mas também uma alteração profunda do perfil do próprio detetive. 17 <The Mouth> The Mouth of Hell 18 <The reason> The three reasons Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 274 Miraglia Boca do Inferno Fig. 5. Apontamento avulso datável de 1931 (BNP/E3, 277 V-2r). Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 275 Miraglia Boca do Inferno Bibliografia CROFTS, Freeman Wills (2000). The Ponson Case. London: House of Status. (A obra original foi publicada em 1921). FREITAS, Ana Maria de (2016). O Fio e o Labirinto: A Ficção Policial na Obra de Fernando Pessoa. Lisboa: Colibri. MIRAGLIA, Gianluca (2022). “Em inglês é mais difícil de se outrar: Notas intempestivas sobre a poesia inglesa de Fernando Pessoa”. Pessoa Plural―A Journal of Fernando Pessoa Studies, n.º 21, Primavera, pp. 3762. Brown Digital Repository, Brown University Library. https://doi.org/10.26300/carh-y308 _____ (2018). “Essay on Detective Literature e The Detective Story: dois ensaios de Fernando Pessoa sobre a ficção”. Pessoa Plural―A Journal of Fernando Pessoa Studies, n.º 13, Primavera, pp. 399507. Brown Digital Repository, Brown University Library. https://doi.org/10.7301/Z0P849DN PASI, Marco (2012). “September 1930, Lisbon: Aleister Crowley’s lost diary of his Portuguese trip”. Pessoa Plural—A Journal of Fernando Pessoa Studies, n.º 1, Primavera, pp. 253-283. Brown Digital Repository, Brown University Library. hMps://doi.org/10.7301/Z03N21MS PESSOA, Fernando (2019). O Mistério da Boca do Inferno – Correspondência e Novela Policial. Edição de Steffen Dix. Lisboa: Tinta-da-china. _____ (2016). Obra Completa de Ricardo Reis. Edição de Jerónimo Pizarro e Jorge Uribe; colaboração de Filipa Freitas. Lisboa. Tinta-da-china. _____ (2014). Obra Completa de Álvaro de Campos. Edição de Jerónimo Pizarro e Antonio Cardiello. Lisboa: Tinta-da-china. _____ (2012). Histórias de um Racionador e o ensaio “História Policial”. Edição de Ana Maria de Freitas. Lisboa: Assírio & Alvim. _____ (2008). Quaresma Decifrador. Edição de Ana Maria de Freitas. Lisboa: Assírio & Alvim. _____ (2007). A Educação do Stoico. Edição crítica de Jerónimo Pizarro. Lisboa: Imprensa NacionalCasa da Moeda. _____ (2000). Heróstrato e a Busca da Imortalidade. Edição de Richard Zenith. Lisboa: Assirio & Alvim. PESSOA, Fernando; CROWLEY, Aleister (2010). Encontro Magick. Edição revista de Miguel Roza. Lisboa: Assírio & Alvim. ____ (2001). Encontro Magick. Edição de Miguel Roza. Lisboa: Hugin Editores. PIZARRO, Jerónimo; FERRARI, Patricio; CARDIELLO, Antonio (2010). A Biblioteca Particular de Fernando Pessoa | Fernando Pessoa's Private Library. Lisboa: Dom Quixote. SOARES, Fernando Luso (1976). A Novela Policial-Deductiva em Fernando Pessoa. Lisboa: Diabril. URIBE, Jorge; SEPÚLVEDA, Pedro (2016). O Planeamento Editorial de Fernando Pessoa. Colaboração de Pablo Javier Pérez López. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda. ZENITH, Richard (2021). Pessoa: A Biography. New York: Liveright. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 276 Miraglia Boca do Inferno GIANLUCA MIRAGLIA é investigador do Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias (CLEPUL) da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. No âmbito dos Estudos Pessoanos publicou vários artigos, entre os quais: “Essay on Detective Literature & The Detective Story: dois ensaios de Fernando Pessoa sobre a ficção policial”, in Pessoa Plural, n.º 13, primavera de 2018; “The Reception of Futurism in Portugal”, in Portuguese Modernisms―Multiple Perspectives in Literature and the Visual Arts, editado por Jerónimo Pizarro e Steffen Dix (Oxford: Legenda, 2010; Routledge, 2017); “Londres, 1914 – Junho: a obra-prima do Futurismo”, in Pessoa Plural, n.º 11, primavera de 2017; “Do ‘Dia Triunfal’ ao Orpheu: ascensão e queda de Alberto Caeiro”, in Pessoa Plural, n.º 18, outono de 2020. Recentemente editou, de Álvaro do Carvalhal, Os Canibais e Outros Contos (Lisboa: Porto Editora, 2021). GIANLUCA MIRAGLIA is an Associate Researcher at the Center for Lusophone and European Literatures and Cultures (CLEPUL), at the Faculty of Arts and Humanities of the University of Lisbon. Within the field of Pessoan studies he has published several articles: “Essay on Detective Literature & The Detective Story: dois ensaios de Fernando Pessoa sobre a ficção policial”, in Pessoa Plural, no. 13, Spring 2018; “The Reception of Futurism in Portugal,” in Portuguese Modernisms: Multiple Perspectives in Literature and the Visual Arts, edited by Jerónimo Pizarro and Steffen Dix (Oxford: Legenda, 2010; Routledge, 2017); “Londres, 1914 – Junho: a obra-prima do Futurismo,” in Pessoa Plural, no. 11, Spring 2017; “Do ‘Dia Triunfal’ ao Orpheu: ascensão e queda de Alberto Caeiro”, in Pessoa Plural, n.º 18, Fall 2020. He has recently edited, by Álvaro do Carvalhal, Os Canibais e Outros Contos (Lisboa: Porto Editora, 2021). Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 277 !"#$%$&'()"**'%($%(+',%(&'(-$."#$'/ !"#$#%&'(')%$#*)#+)'#&,#-.,)#)'/0123#*)0)01+)%23 !"#$%&%'()*#++(&),%)-#../+)0(1234 !"#$%&'()*&"+#)'$(,$-%'."*)/$%$0#'#.'*1#$#2('*.$+(1*#5 !"#$%&#'#$(#)#&*+,-$.,$(,.,/'0-1 !"#"$%"&'()"$* !"#$%$&'()"**'%+(,-".*/"#(0#'1-"2+(345*()'#/'+ !"#$%&"%'()*+("+(0.$"6%+(7#'/.*6'8 ,*&-./ 7*/"( /#%9%-:'( %$%-.*%( '( ;-6"( !"#$% &"% '()*+(" <=>=>?+( &'( #"%-.@%&'#( A'#/4B4C*( 345*( )'#/'+( D'$*.&"#%$&'+(D"$/#%-6"$/"+('(6'&'(D'6'(%(D'6A'*.EF'(G5-6.D%(%#/.D4-%H(%?('("$D'$/#'(I "('( J4"( &"-"( #"*4-/%( &'D46"$/%&'( I "$/#"( '( A'"/%( !"#$%$&'( )"**'%+( '( 6%B'( .$B-C*( ,-".*/"#( 0#'1-"2("(*4%(K'L"6(%6%$/"(%-"6F+(M%$$.(3%#.**%(N%"B"#+("6(*"/"69#'(&"(OPQ>+($%(D.&%&"( &"(3.*9'%R(9?('(A'"6%(STU(%(*4#A#"*%(&"(*"#V+(J4"(G%@(A%#/"(&% '9#%('#/W$.6%8(X$/"#"**%Y$'*( 'G"#"D"#(46%(-"./4#%(D#5/.D%(A%#%('("A.*Z&.'(&%(['D%(&'(X$G"#$'(J4"("$L'-L"4(!"#$%$&'()"**'%( "6(46(G'#K%&'(*4.D5&.'("("6(46(:.A'/\/.D'(/#.]$B4-'(%6'#'*'+(/%-(J4%-($%##%&'($'(6\&.%Y 6"/#%B"6(&"(=>=>8()%#%(/%$/'+(A#.'#.@%Y*"(46%(%$U-.*"(&'*(5$&.D"*(&"("#'/.*6'(&"*A'$/%&'*( &%(A#'&4EF'(D.$"6%/'B#U;D%8 0*12/%3& !"#$%$&'()"**'%+(,-".*/"#(0#'1-"2+(345*()'#/'+(!"#$%&"%'()*+("+(0.$"6%+(7#'/.D.*68 45&6%"(6 ^:.*(1'#_(%$%-2@"*(/:"(;-6(!"#$%&"%'()*+(" <=>=>?(92()'#/4B4"*"(&.#"D/'#(345*()'#/'+(G'D4*.$B( '$(:'1(/:"(;-6(D'6A'*./.'$(%#/.D4-%/"*H(%?(/:"("$D'4$/"#(I %$&(./*(&'D46"$/"&('4/D'6"(I 9"/1""$(/:"(A'"/(!"#$%$&'()"**'%+(/:"(7$B-.*:(6%B.D.%$(,-".*/"#(0#'1-"2+(%$&(:.*(2'4$B( `"#6%$(-'L"#+(M%$$.(3%#.**%(N%"B"#+(.$(a"A/"69"#(OPQ>+(.$(/:"(D./2('G(3.*9'$R(9?(/:"(A'"6( STU( %( *4#A#"*%( &"( *"#V+( 1:.D:( .*( A%#/( 'G( )"**'%b*( '#/:'$26.D( 1'#_8( c"( %#"( .$/"#"*/"&( .$( A#'L.&.$B( %( D#./.D%-( .$/"#A#"/%/.'$( 'G( /:"( d'4/:( 'G( M"--( "A.*'&"( /:%/( .$L'-L"&( !"#$%$&'( )"**'%(.$(%(*/%B"& *4.D.&"(%$&(%(:2A'/:"/.D%-(-'L"(/#.%$B-"+(%*($%##%/"&(.$(/:"(=>=>(6"&.46Y -"$B/:(;-68(^'(&'(*'+(1"(A#.'#./.@"(%$(%$%-2*.*('G(/:"(.$&.D"*('G("#'/.D.*6("6"#B.$B(G#'6(/:"( D.$"6%/.D(A#'&4D/.'$8 e T"A%#/%6"$/'(&"(^"'#.%(3./"#U#.%("(3./"#%/4#%* &'(X$*/./4/'(&"(3"/#%* &%(f$.L"#*.&%&"(&"([#%*5-.%8 Medeiros Fernando Pessoa na Boca do Inferno O presente estudo analisa Boca do Inferno, expressão sugestiva que evoca, de forma simultânea, um filme noir contemporâneo (PORTO, 2020), um espaço geográfico (perto de Cascais), uma novela policial inacabada (de Fernando Pessoa) e um acontecimento histórico. Em 2020, estreou o filme realizado por Luís Porto e escrito por Jaime Monsanto: Boca do Inferno. Este remete, por sua vez, ao local na Costa da Guia, à novela pessoana (inédita até 2001) e ao caso do inesperado encontro entre Pessoa e Aleister Crowley, que chegou acompanhado da jovem artista alemã Hanni Larissa Jaeger, apelidada de “Anu”. O filme já estava praticamente concluído, quando, em 2019, apareceu uma nova edição, mais cuidada e completa, a cargo de Steffen Dix, com a correspondência e a novela relacionadas com o caso d’O mistério da Boca do Inferno (PESSOA, 2019). No presente contributo, focalizamos a análise do filme do Luís Porto dando prioridade à observação das camadas de erotismo com que a obra fílmica conseguiu cingir um episódio pessoano usualmente mais rememorado pelo seu caráter ocultista, farsesco e detetivesco. Ao final deste texto analítico, encontra-se uma entrevista concedida pelo realizador1, em 16 de janeiro de 2024, especialmente para este dossiê da revista Pessoal Plural, voltado para o chamado “cinema pessoano”. A consulta ao material textual e audiovisual (versão de rodagem, making of, etc.) produzido pela equipe responsável pelo filme Boca do Inferno — material que Porto gentilmente disponibilizou a Marcelo Mello, a Jerónimo Pizarro e a mim — levou a uma inquietação, confirmada na entrevista com o realizador. Inicialmente, o filme teria por título Anu, justamente o nome íntimo e porventura carinhoso atribuído pelo mago Crowley à sua jovem companheira de viagem. O nome do filme, afinal, mudou, como se sabe. Contudo, e explicitando a minha inquietação crítica, convém esclarecer que a narrativa fílmica, por meio de uma série de aspectos estéticos que serão em breve descortinados, confere lugar de destaque a Hanni. Tal escolha, a de garantir a presença de uma femme fatale na película, tem por saldo um feito raro no infinito universo criado a partir do “mito-Pessoa”2: a erotização do poeta e de figuras que com ele contracenaram (em vida, em tela). Cabe indicar, antecipadamente, que a personagem Anu, a ser aqui analisada, é aquela composta criativamente por Porto e Monsanto em sua película; aquela que, remetendo à Hanni Larissa Jaeger histórica, não visa a uma cópia imediata (o que, aliás, seria projeto de impossível concretização) da jovem alemã que namorou Crowley e que conheceu Pessoa. Assim, não aludimos a momentos anteriores ou posteriores da vida documentada de Jaeger, na medida em que nos interessa, nesta oportunidade, focalizar apenas o período cronológico evocado pelo filme – os dias de setembro de 1930 em que decorreram encontros pessoais entre três figuras tão peculiares. A Anu reinventada e encenada pela atriz Georgina Beedle assume, por Agradecemos ao realizador Luís Porto pela disponibilização de materiais audiovisuais e escritos referentes ao filme Boca do Inferno; pela entrevista generosamente concedida; e pela revisão da mesma. 2 Alusão à consagrada expressão do crítico Eduardo Lourenço em Fernando, rei da nossa Baviera (1984). 1 Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 279 Medeiros Fernando Pessoa na Boca do Inferno certo, contornos particulares, que evidenciam a qualidade do trabalho desenvolvido pela atriz e pela equipe de preparação de atores. Tais propriedades particulares nos interessam porque garantem, justamente, certa novidade interpretativa para um episódio específico da biografia pessoana. Tomamos, portanto, Boca do Inferno, o filme, como mais uma leitura capaz de multiplicar Pessoa e as pessoas que com ele conviveram (ainda que circunstancialmente), nos termos da “multiplicidade de Pessoas” (PIZARRO, 2023: 22) apontada pelo crítico Jerónimo Pizarro: “Escapa-se-nos [Fernando Pessoa] a todos. É mais nosso, porque continuamos a construí-lo. É menos nosso, porque cada vez é de mais pessoas” (PIZARRO, 2023: 22). Vamos, então, ao filme. Desde o seu primeiro minuto, os espectadores minimamente versados na história do cinema se reconhecem em presença de um filme noir. É oportuno indicar que a brasileira Leyla Perrone-Moisés, ainda nos anos 1990, em um despretensioso artigo de jornal intitulado “Pessoa e a besta 666”3, sobre o encontro de setembro de 1930, entre Crowley e Pessoa, já intuíra: [Fernando Pessoa] disse também que avistara o inglês (“ou seu fantasma”) em Lisboa no dia 24 de outubro, uma vez virando a esquina do café de la Gare, depois entrando na Tabacaria Inglesa. Excelente locação para um filme noir. Adensava-se o mistério, com a colaboração de Pessoa. (PERRONE-MOISÉS, 2000: 160) Remontando à tradição cinematográfica dos anos 1940/1950, Boca do Inferno adensa o mistério em torno da dupla de “fantasmas” mencionada por Perrone-Moisés, mas acrescenta uma terceira personagem: a scarlet woman, que, na paleta em chiaroscuro dominante no filme, imprime tons amarelos, dourados e — como poderíamos supor — vermelhos na composição visual da obra. Registre-se que não tenho, na presente oportunidade, o intuito de discutir as especificidades do cinema noir — se o próprio termo divide opiniões, por poder se referir a um gênero, a um estilo, a uma técnica, etc. Recorro a esse “fenômeno cinefílico” (MASCARELLO, 2006: 177) não para discutir suas especificidades ou debater sua efetiva existência e permanência no seio da sétima arte. Antes, sou, enquanto espectadora do filme de Luís Porto, impelida a evocar essa estética que orienta a produção e a recepção de Boca do Inferno — obra que consegue, ao mesmo tempo, retomar e subverter, atualizar ou mesmo recriar, “à portuguesa”, no século XXI, aqueles filmes policiais narrados em off produzidos no contexto estadunidense da pós-guerra. De sorte que recorro ao termo noir conforme definição do brasileiro Fernando Mascarello: “nem gênero, nem tom, nem estilo. É um fenômeno, e acima de tudo social (espectatorial). A maior prova de que existe? A fascinação que produz, Artigo originalmente publicado no caderno Mais! da Folha de São Paulo, em 2 de agosto de 1992. Posteriormente, o artigo transformou-se em capítulo que integra a coletânea de textos críticos de Leyla PERRONE-MOISÉS (2000) sob o título Inútil poesia e outros ensaios breves. 3 Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 280 Medeiros Fernando Pessoa na Boca do Inferno o desejo que desperta: a ‘mística noir’” (MASCARELLO, 2006: 185). Gosto de tal acepção, pois o que permanece do noir “tradicional” na película aqui analisada é sobretudo a “mística noir”, que encontra profunda sintonia com a personagem possivelmente mais mística e mítica da cultura portuguesa do século XX: Fernando Pessoa. Assim, Boca do Inferno é uma obra que deseja o noir e, por isso mesmo, resulta em uma composição audiovisual que tem por protagonista não Pessoa, menos ainda Crowley, mas sim o próprio Eros — o desejo sexual. Considerando-se que o erotismo não figura como um dos aspectos mais usualmente identificados e discutidos na infinita obra pessoana, o inusitado dessa associação (Pessoa – desejo – “mística noir”) já convida a assistir ao filme. No primeiro minuto do média-metragem, dos segundos 02 ao 06 (00:01:0200:01:06), vemos a expressão que lhe serve de título, em letras garrafais arredondadas, sair da cor branca / acinzentada / azulada em fundo preto para os tons amarelo / laranja / dourado sobre mesmo fundo. Note-se a transição de coloração, entre cores, aliás, complementares (Figs. 1 e 2). Esse momento inicial do filme está profundamente conectado com todo o desenvolvimento — e mais que isso: com a trama misteriosa que envolveu Pessoa em setembro de 1930, com a mulher que nessa altura ele conheceu e com o poema que para ela compôs (“Dá a surpresa de ser”). As letras de abertura da película exploram as formas arredondadas (no “B”, no “C”, no “R” e no “O”, sendo, evidentemente, esta última letra a que mais vezes se repete na expressão-título do média-metragem). De tal maneira que, assim composto, o título “BOCA DO INFERNO”, colorindo-se da paleta em branco-acinzentado para a amarelo-dourada, sugere a imagem de montinhos que amanhecem — expressão utilizada no poema pessoano feito após o encontro com Hanni Larissa Jaeger, como veremos mais adiante. Desde já, porém, quero chamar a atenção para o fato de que o último “O” (esse da palavra “inferno”), surgir como que falhado, não plenamente preenchido em seu contorno. Como se um pedaço seu tivesse sido mordido, abocanhado (para usar termo do mesmo campo semântico de “boca”...). Fiquemos com essa intuição, por hora. Fig. 1. Filme Boca do Inferno (00:01:02). Fig. 2. Filme Boca do Inferno (00:01:06). Nas cenas seguintes, a atmosfera permanece bastante escura e noturna, com pontos de luz dourada insurgidos em meio ao noir apenas por meio de elementos como lamparinas de rua, abajures domésticos, fósforo aceso, roupa e chapéu de duas mulheres que aparecem rapidamente no café Martinho da Arcada. Tal imagética persiste até o minuto 00:11:56, quando tem início uma espécie de segunda parte do filme, a do encontro de Pessoa com o Mago e sua acompanhante. Perseguindo um Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 281 Medeiros Fernando Pessoa na Boca do Inferno marinheiro (que, aliás, traja branco), saímos do ambiente soturno e íntimo do café em direção à rua, ao cais, durante o dia — primeira cena da obra em que prevalece a luminosidade e os tons em branco / bege claro. Na ambiência portuária, vemos descer a gente do paquete Alcântara, aquele que, a 2 de setembro de 1930, trazia o casal a ser recebido pelo poeta de Lisboa. Uma personagem feminina, secundária, muito vestida, com braços e colo coberto, de meia idade, anuncia o incômodo perante uma outra mulher — pergunta: “quem é aquela?”. Acompanha a indagação um silenciamento dos barulhos ordinários da rua. Tal “ensurdecimento” dos ruídos confere destaque ao som das cordas da viola campaniça. Trata-se de uma viola tradicional da região portuguesa do Alentejo, tocada por João Morais, conhecido como O Gajo, que, aliás, aparece tocando o instrumento em diversos momentos do filme Boca do Inferno. Ainda, segue-se uma mudança de enquadramento: de plano geral, vemos a câmera fazer close em uma mulher belíssima, loira, olhos claros, usando chapéu grande e vistoso na cor preta, trazendo bolsa também preta, com braços inteiramente à mostra, trajando vestido branco de bolinhas cinzas e luvas na cor vermelho escarlate — mesmo tom do batom. O close cede lugar paulatinamente a um plano médio, em que vemos a jovem descer lentamente as escadas do paquete: Fig. 3. Filme Boca do Inferno (00:12:39). Após sorrir e fitar a Lisboa que a recebia, vemos a femme virar-se, ficando de costas para o público e para Pessoa, que é então saudado por Crowley (o coadjuvante da cena destacada na Fig. 3). Note-se que conhecemos primeiramente a senhorita Jaeger; apenas após sua aparição lenta e luminosa é que visualizamos o homem alto, bem trajado, sorridente, cartola preta, que assim saúda Pessoa: “Destiny most certainly provided last night's fog in Vigo” (00:12:56). A fog, um nevoeiro (recorde-se o tom branco da neve), atrapalhou o encontro entre o ocultista inglês e o astrólogo português em um dia ou mais. No entanto, o poeta avalia que o destino agiu acertadamente. Travam o seguinte breve diálogo: FERNANDO PESSOA I just looked it up: Venus is at zenith. No beper time for us to meet than today, under the auspices of the planet of the Arts. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 282 Medeiros Fernando Pessoa na Boca do Inferno CROWLEY Ah! The Arts, Destiny… and Love. Which reminds me someone that I’d like you to meet. Anu, my dear, this is Fernando Pessoa, in persona. (Boca do Inferno, PORTO, 2020: 00:12:58-00:13:19) Na sequência, a mulher aproxima-se dos dois homens e Pessoa permanece com feição boquiaberta, espantado, sem conseguir cumprimentar adequadamente aquela que lhe é apresentada como a scarlet woman de Crowley (assim definida pelo próprio mago). Vale notar que as primeiras palavras do poeta português a Anu somente lhe são dirigidas quando a Besta 666 afasta-se. Assim, acompanhamos o seguinte diálogo entre a jovem e Pessoa: ANU So, are you talented? FERNANDO PESSOA Names can be deceiving. ANU Looks, maybe, but not names. (Boca do Inferno, PORTO, 2020: 00:13:40-00:13:47) É nesta altura que o mago inglês retorna para junto dos dois. O trio trava uma conversação sobre o sobrenome menos conhecido de Pessoa: Nogueira. O português explica que o nome remete à árvore que produz nozes e, finalmente, Crowley e Jaeger assumem discurso deliberadamente obsceno, que alude à genitália masculina: CROWLEY (para Pessoa): You are like a money tree, I would suck your nuts dry anytime. (Ri estrondosamente). ANU His nuts would be in beper hands with me. (Boca do Inferno, PORTO, 2020: 00:14:22-00:14:30) Após essa tirada espirituosa — e reforço: erótica — da moça de 19 anos (ela efetivamente contava tal idade quando aportou em Lisboa acompanhando o homem de 54 anos), a cena do filme muda novamente: retomamos a ambiência no café da Arcada, fotografia noir, luzes douradas pontuais provenientes de abajures que circundam Pessoa e o detetive inglês — aquele mesmo, anônimo, que teria escrito a novela policial na ficção pessoana. O estudioso alemão Steffen Dix explica: [...] os fragmentos da novela policial parecem basear-se num “relatório da investigação” que um detective inglês anónimo redigiu em Lisboa. O “relatório” foi supostamente elaborado em Barcelona (ou em Madrid, numa primeira versão), pouco depois do desaparecimento de Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 283 Medeiros Fernando Pessoa na Boca do Inferno Crowley, com o título Mouth of Hell. Na medida em que o “relatório” revela algumas qualidades literárias semelhantes aos romances policiais do escritor irlandês Freeman Wills Crofts, o detective — que não é, em princípio, senão mais uma personagem literária do próprio Pessoa — menciona várias vezes a sua intenção de o publicar também sob a forma de romance ou de novela. (em PESSOA, 2019: 11) O roteiro de Boca do Inferno, portanto, confere seguramente papel de relevo na trama a esse detetive — presente do início ao fim da narrativa fílmica — que Pessoa forjou para investigar um caso igualmente forjado. A pergunta do tal detetive inglês referenda a intuição que antes tivemos (os espectadores) quanto ao baixo-corporal da cena anterior: “So, were the other encounters this saucy?” (ver: Boca do Inferno, PORTO, 2020: 00:14:42). A presença de Anu é saucy, picante, em praticamente todo o filme. Em sua segunda aparição, a mulher traja um vestido dourado, com decote acentuado (para a moda dos anos 1930), que contrasta com o tom vermelho (outra vez escarlate) das cortinas do ambiente: Fig. 4. Filme Boca do Inferno (00:14:53). Contemplamos o perfil da moça jovem (dos ombros até pouco abaixo da cintura), em enquadramento que evidencia, simultaneamente, seu busto e seu quadril. O plano vai-se abrindo progressivamente até vermos novamente seu rosto. Poucos segundo depois, Hanni desloca-se do piano (onde estava) até a escrivaninha, onde se encontra sentado Pessoa. Por momentos, o filme de Porto pode evocar a Lolita de Kubrick (1962) ou de Lyne (1997). O ambiente é um quarto íntimo. Percebemos isso pelo plano sequência, que deixa ver o deslocamento da jovem até o poeta, passando por uma cama de casal. Há uma troca de olhares entre os dois que merece destaque: Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 284 Medeiros Fernando Pessoa na Boca do Inferno Fig. 5. Filme Boca do Inferno (00:15:23). A dupla Anu-Fernando é interrompida por Aleister, que explica a alcunha íntima que atribuiu à moça: PESSOA Anu? CROWLEY As I like to call her PESSOA Why Anu? ANU Well… (interrompida) CROWLEY My liple monster has the most wonderful anus… (Boca do Inferno, PORTO, 2020: 00:15:08-00:15:37) Novamente, Anu põe-se de costas para o público e salta sobre Crowley para que ele interrompa o discurso obsceno proferido em presença de Pessoa. Contudo, vale frisar que acessamos tal narrativa, no filme, justamente pelo contar de Pessoa ao detetive. O poeta não esconde, portanto, os detalhes picantes. Seja na cena com o casal estrangeiro, seja no retorno à conversação com o detetive, a feição pessoana é de torpor. Como afirmou o realizador Luís Porto em entrevista a nós concedida, o filme consegue sugerir que “Pessoa é capaz de se apaixonar”. E por uma mulher! O auge do erotismo nessa obra fílmica tem início em uma cena marcada por iluminação solar que contrasta com a usual “iluminação low-key (com profusão de sombras)” (MASCARELLO, 2006: 181) da maior parte do filme — associada ao “plano geral em plongée (este, o enquadramento noir por excelência)” (MASCARELLO, 2006: 181): Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 285 Medeiros Fernando Pessoa na Boca do Inferno Fig. 6. Filme Boca do Inferno (00:16:38). Destaque-se a paleta de cores da fotografia: amarelo ocre da areia contrastando com o vermelho central do guarda-sol, a cadeira de sol branca, o traje negro de Pessoa, as pernas e os braços desnudos e brancos de Anu. Poucos segundos depois, a câmera avança do plano aberto para um close na jovem deitada, de bruços, trajando roupa de banho vermelha e branca, batom vermelho, chapéu de praia, cabelos dourados, olhando – e sorrindo – para o amigo português: Fig. 7. Filme Boca do Inferno (00:16:46). É neste encontro — o terceiro entre a mulher e o poeta, ao menos na versão do cinema — que vemos o autoproclamado supra-Camões pronunciar, com dicção um tanto quanto constrangida, em Língua Portuguesa (nessa língua que a alemã não compreendia), as redondilhas de “Dá a surpresa de ser”, composição datada de 10 de setembro de 1930. Sobre tal poema, o crítico e editor Jerónimo Pizarro, na mais recente publicação das Cartas de amor de Fernando PESSOA (2023), comenta: O poeta [...] também utilizou uma linguagem metafórica e com alguns traços porventura infantis (os “montinhos” lembram os “pombinhos” das cartas de amor) num poema vagamente erótico que escreveu depois de ter passado algum tempo com a namorada de Crowley. (PESSOA, 2023: 18) O poema é lido integralmente pelo Pessoa-personagem, mais ou menos à metade do filme, por volta do minuto 00:17:30 (a obra tem duração total de pouco mais de 38 minutos). Entendo que tal texto, assim posicionado na narrativa fílmica, em sua cena Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 286 Medeiros Fernando Pessoa na Boca do Inferno mais colorida e saucy, marca o cume da experiência sexual estabelecida entre Anu e Fernando. Não custa visitar o poema e deslindar o seu teor erótico: Dá a surpreza de ser, É alta, de um louro escuro. Faz bem só pensar em ver Seu corpo meio maduro. Seus seios altos parecem (Se ella estivesse deitada) Dois montinhos que amanhecem Sem ter que haver madrugada. E a mão do seu braço branco Assente em palmo espalhado Sobre a saliencia do flanco Do seu relevo tapado. Appetece como um barco. Tem qualquer coisa de gomo. Meu Deus, quando é que eu embarco? Ó fome, quando é que eu como? (PESSOA, 2019, pp. 451-452; cf. PESSOA, 2005: 152-153) Alguns enquadramentos da cena da praia, com câmera frontal (do minuto 00:16:53 ao 00:17:00, por exemplo), põem no centro inferior da tela justamente os seios altos da personagem feminina. No filme, a primeira estrofe do poema é lida por Pessoa com câmera em close nele. A partir da segunda estrofe, o foco volta-se novamente para a mulher, em big-close que passeia de seu quadril até seu rosto. Vale frisar que o poema contém uma expressão entre parênteses: “(se ela estivesse deitada”). Na cena, a personagem efetivamente deita-se (sem a condicional “se”...). Ouvimos a declamação na voz de Fernando, desde o verso “Seus seios altos parecem” (verso 1 da estrofe 2) até “Assenta em palmo espalhado” (verso 2 da estrofe 3), acompanhando o movimento suave e constante da mão de Anu, que percorre as curvas de seu próprio corpo, segurando uma cigarreira prateada. A partir de “Sobre a saliência do flanco” (verso 3 da estrofe 2), a câmera volta a filmar Pessoa, que exibe olhar lateral, evidentemente mirando o corpo da jovem. Na última estrofe, Pessoa-personagem torna a olhar para os papéis onde lê o poema, para, enfim, com um sorriso discreto, encarar outra vez a musa ao pronunciar o verso derradeiro: “Ó fome, quando é que eu como?”. Neste ponto, vale recordarmos a letra “O” falhada no título BOCA DO INFERNO, do minuto inicial, que sugere uma letra abocanhada. Em alguma medida, no contexto de um filme tão bem elaborado e mesmo cuidadosamente delicado nas suas alusões sexuais, o “O” mordido do título combina com o verso derradeiro do poema pessoano: Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 287 Medeiros Fernando Pessoa na Boca do Inferno “Ó fome, quando é que eu como?”; e também pelo verso quase anterior, que alude a um gomo de fruta. Se a vogal do título está abocanhada, não se pode deixar de levantar a hipótese — não explícita, mas emanada da composição fílmica — de que, talvez, o autor do poema tenha matado a sua fome... Na biografia pessoana escrita por Richard Zenith, o autor adverte para o fato de que “Hanni Jaeger [...] achou Pessoa charmosíssimo, sentimento que foi recíproco” e acrescenta que, após encontro com a alemã, o português “escreveu o único poema de toda a sua vida em que o eu poético deseja inequivocamente um corpo feminino” (ZENITH, 2022: 823). Isso se esquecermos os “pombinhos”... Seja como for, Luís Porto e sua equipe tiveram a perspicácia de explorar, a partir de elementos variados, mais ou menos evidentes (o batom vermelho de Anu é um índice explícito, enquanto a letra “O” comida é indício erótico implícito), o teor apaixonante — para a jovem e para Fernando Pessoa — do encontro propiciado por um mago. Possivelmente, a magia desse filme seja revelarnos um Fernando (mais que um Pessoa) homem, humano, fascinado sexualmente por uma mulher misteriosa (que ele, aliás, nunca tornaria a ver depois daquele setembro semifatídico de 1930). Em Como Fernando Pessoa pode mudar a sua vida (2016), Carlos Pittella e Jerónimo Pizarro produziram um capítulo bem-humorado sobre o episódio com Hanni Jaeger, intitulado “Como cantar a mulher do mago”. Ali, os críticos comentaram sobre a musa “de um louro escuro”: Hanni Jaeger, com quase vinte anos, mulher sensual e sexualmente liberada em meio ao conservadorismo lisboeta, deve ter causado uma forte impressão em Fernando Pessoa. Prova disso são os versos eróticos escritos em 10 de setembro de 1930, isto é, uma semana após a chegada de Hanni a Portugal: uma belíssima cantada dirigida à mulher do mago, embora ela não falasse português e provavelmente jamais tenha tomado conhecimento do poema. [...] é talvez o poema de Pessoa o documento que melhor representa a intrigante Hanni Jaeger, musa de dois complexos personagens do século XX, cujos caminhos coincidiram na Lisboa de 1930. (PITTELLA e PIZARRO, 2016: 34-35) O principal acerto do filme Boca do Inferno parece-me ser, justamente, a escolha por contar a narrativa que envolveu “dois complexos personagens do século XX” – dois homens capazes de forjar um suicídio na Boca do Inferno – e uma jovem à frente de seu tempo4, por uma perspectiva até aqui pouco explorada, a do erotismo. A obra fílmica desnuda a presença de mais uma boca do inferno na trama, a de Anu, “mulher sensual e sexualmente liberada”, como a descrita pelos pessoanos; como a representada pela atriz Georgina Beedle na obra audiovisual de 2020. Tanto a publicação por Marco PASI, dos diários de Crowley referentes a esse período de 1930 – em artigo constante no n.o 1, da Primavera de 2012 da revista Pessoa A expressão é do próprio personagem Pessoa, no filme (Boca do Inferno, PORTO, 2020: 00:11:21), pouco antes de nós, espectadores, contemplarmos a mulher pela primeira vez. 4 Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 288 Medeiros Fernando Pessoa na Boca do Inferno Plural—A Journal of Fernando Pessoa Studies –, quanto o livro organizado por Steffen Dix (O mistério da Boca do Inferno; PESSOA, 2019), e ainda o capítulo “Como coadjuvar um falso suicídio”, da já citada coletânea editada por PITTELLA e PIZARRO (2016), permitem cogitar a analogia, suscitada pelo mago inglês, entre estas duas bocas: a do Inferno, região rochosa, na vila litorânea de Cascais, onde as ondas batem com estrondo em formações de penhasco que lembram um arco — palco noir eleito por Pessoa e Crowley para ambientar um suicídio farsesco; a de Anu, que pode remeter a demais orifícios do corpo feminino, se considerada a economia sexual de uma figura capaz de experimentar a vida erótica para além do moralismo católico ibérico dos anos 1930. A ambiguidade consta no bilhete de Crowley (redigido entre 21 e 23 de setembro de 1930), que Pessoa conseguiu fazer circular no Diário de Lisboa como texto de despedida suicida do Mago para Hanni Jaeger: “Não posso viver sem ti. A outra ‘Boca do Infierno’ (sic) vai pegar-me – e não será tão quente quanto a tua! Hjsos!”5. No filme, o bilhete é entregue por Crowley a Pessoa, em conversa particular dos dois, novamente em plano fechado, ambiente soturno, luz amarela proveniente do abajur posicionado entre os dois magos. A partir do minuto 00:27:46, Pessoa lê o bilhete que Crowley diz ter redigido para Jaeger. Ao final da leitura (00:28:10), o lisboeta indica que tal texto assemelha-se mais a uma nota suicida. A constatação pessoana, afinal, alinha-se com o palco (português) do pretenso suicídio, se temos presente aquela interpretação que Miguel de Unamuno, intelectual basco, oferece sobre o país vizinho, em um dos capítulos de seu Por tierras de Portugal y de España (1911): “Portugal é um povo de suicidas, talvez um povo suicida” (UNAMUNO, 1986: 64). Crowley, o inglês, ficava, assim, contagiado por essa tradição teoricamente lusa do autoaniquilamento. Um adendo: alguns instantes antes da leitura do bilhete, o britânico investe em conversação recheada de termos obscenos. Após qualificar Anu como “VirginHarlot” (“virgem-puta”), indica que ela teria proferido a seguinte sentença: "If you want to lock my cunt, you'd beUer lick the door" (Boca do Inferno, PORTO, 2020: 00:25:4100:25:44). A tradução para o português europeu, constante no próprio filme, é explícita: “se queres trancar a minha cona, é melhor lamberes a porta”. Após risada intensa, a Besta 666 afirma, já em tom de choro: “I did that indeed, front and back” (Boca do Inferno, PORTO, 2020: 00:25:56). Mikhail Bakhtin, em sua obra sobre François Rabelais (romancista matricial na exploração de imagens do baixo-corporal), evidencia que a Idade Média consolidou uma tradição que associa os orifícios humanos às paragens infernais: As lendas medievais citam uma multidão de buracos nas diferentes zonas da Europa que passavam por ser a entrada do purgatório ou do inferno e aos quais a linguagem familiar Tradução para o português de PITTELLA e PIZARRO (2016: 46). Conferir original em inglês, incluindo fac-símiles, em PASI (2012). 5 Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 289 Medeiros Fernando Pessoa na Boca do Inferno dava um sentido obsceno [...]. Gibraltar chamava-se então “Buraco da Sibila” (deformação de Sevilha), ao qual se atribuía igualmente um sentido obsceno. (BAKHTIN, 2008: 331) Ora, a porta da cona de Anu, mencionada no filme pelo mago, bem como sua vagina e seu ânus enformam a “multidão de buracos” que Crowley nomeou por “Boca do infierno” no bilhete supostamente suicida deixado na Boca do inferno de Cascais. A Boca como acidente geográfico-oceânico é o palco propício para o último ato dos autos aniquiladores; enquanto a(s) boca(s) da femme fatale daquele setembro de 1930 é (são) o lugar quente atravessado para se chegar à petite mort... Mais um aspecto estético que aprofunda o teor erótico do filme precisa ser explicitado antes do encerramento da presente discussão. Refiro-me à banda sonora de Boca do Inferno. As composições de João Morais (O Gajo), presentes na realização de Luís Porto, envolvem canções do álbum Longe do chão (2017), como também o tema “Anu”, composto exclusivamente para o média-metragem. O ritmo de Boca do Inferno é certamente demarcado pela viola campaniça, tantas vezes tocada em cena por um personagem secundário, o próprio Gajo, que aparece constantemente na trama, como que acentuando (de modo não apenas sonoro, mas também visual) o andamento musical do filme. Na maior parte do tempo, o acompanhamento sonoro aumenta ou distende a tensão — seja a tensão sexual, seja o clímax policial (este último protagonizado pelo detetive inglês). A partir do minuto 00:30:41, já no desfecho da trama, ganha claro destaque a vocalização feminina, acompanhando a viola, lembrando as cantigas de amigo medievais da tradição ibérica — aquelas marcadas pela presença de uma voz lírica feminina, abundante de desejo pelo “amigo”. O filme encerra-se, assim, com um canto vocalizado de mulher entremeado a frases de Anu (personagem) em flashback. A mulher que historicamente encontrou Pessoa antes dos 20 anos mescla-se à femme fatale do filme do século XXI e às vozes femininas inominadas das cantigas peninsulares que sobrevivem, por séculos, no cancioneiro popular ibérico.6 Quanto ao processo multiartístico e coletivo que em geral envolve a produção cinematográfica, Augusto Silva Junior e Lemuel Gandara, estudiosos brasileiros da interface entre literatura e cinema, consolidaram o termo “tradução coletiva” para tratar de obras fílmicas produzidas a partir de textos literários. Este é, em alguma medida, o caso de Boca do Inferno, que remete ao inacabado projeto da novela policial pessoana. A dupla explica: A tradução coletiva trabalha especificamente com obras de arte que são transportadas para artes coletivas como o teatro, a ópera e o cinema. Esse entendimento se deve ao fato de o resultado totalizante de um filme em sua projeção ser composto por várias etapas durante os Sobre as vozes femininas e o papel das mulheres na composição e entoação das cantigas de amigo na Península Ibérica no decorrer da Idade Média, conferir a obra da medievalista Ria Lemaire, notadamente em LEMAIRE (2017). 6 Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 290 Medeiros Fernando Pessoa na Boca do Inferno processos das obras. É necessário perceber que todos os envolvidos reiluminam o resultado final. A trilha sonora é resultado de uma leitura musical, a fotografia é uma leitura das cores e luzes, a sonoplastia é uma leitura do som, a interpretação é uma leitura corporal – não exatamente para o público, mas para pessoas e máquinas captadoras –, o roteiro é uma leitura criativa do texto verbal – seu espelho, seu duplo, sua outra face. (GANDARA e SILVA JR., 2015: 390) Em entrevista com Luís Porto, o realizador chama a atenção justamente para o fato de o filme aqui discutido ser uma construção de equipe. O resultado é, em definitiva, uma tradução coletiva que reilumina (para ficar com as expressões de Silva Junior e Gandara) um episódio da vida de Pessoa, um de seus inúmeros textos literários inacabados, a sua existência enquanto homem — o Fernando, aquele que escreveu redondilhas maiores para uma scarlet woman. Não quero com isso dizer que o poeta de Lisboa, aquele que morreu em 1935, apaixonou-se, gozou ou amou uma mulher fatal. Quero apenas indicar que dá a surpresa de ver um Pessoa outro, interpretado por Jaime Monsanto, revisitado e lido criativamente, por Porto e sua equipe, quase um século depois do encontro histórico entre dois magos e uma jovem à frente de seu tempo. Finalmente, recorro uma última vez ao artigo de Leyla Perrone-Moisés sobre Pessoa e a Besta 666: Pessoa colocou seus saberes e poderes na Alta Magia de escrever. Com seu gênio poético, ele nos enfeitiça e engradece. Foi uma grande honra para Crowley ter conhecido um mago de tal estatura. (PERRONE-MOISÉS, 2000: 161) Concordando integralmente com a incontornável pessoana brasileira, quero apenas acrescentar que o filme de 2020 faz pensar que foi também uma grande honra para o gênio Pessoa, mago da escrita, ter conhecido uma mulher da estatura de Hanni Jaeger. Talvez, Anu tenha revelado ao nosso poeta maior sentidos outros, luminosos, para uma expressão tão aparentemente macabra — aquela: Boca do Inferno, que, afinal, pode ser tão quente. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 291 Medeiros ANEXO Fernando Pessoa na Boca do Inferno 1 Entrevista com Luís Porto A entrevista ocorreu a 16 de janeiro de 2024, de modo online, por uma plataforma de videoconferência.7 Legenda: AM = Ana Clara Medeiros, entrevistadora, autora do texto crítico sobre o filme Boca do Inferno (2020) para a revista Pessoa Plural (2024) LP = Luís Porto, entrevistado, realizador do filme Boca do Inferno (2020) AM – Luís Porto, primeiramente gostaria de dizer que o filme Boca do Inferno (2020) me chamou muito a atenção, porque acho que você teve saídas muito inteligentes, muito ousadas para trabalhar em cima desse mistério. Com isso, o que quero dizer é que vocês foram muito criativos para tratar de um aspecto que se discute muito na crítica pessoana, que é o romance policial inacabado do Pessoa, o suposto suicídio do Mago Aleister Crowley, etc. Mas, antes de tudo, eu gostaria de perguntar: o que te motivou a ir para esse caso especificamente dentro da obra do Pessoa? Ou, antes disso, o que te mobilizou, enquanto português, jovem, a enfrentar a obra do Fernando Pessoa nesse caso em específico? LP – Principalmente nos meus primeiros anos de realização, houve alguma coragem da minha parte, sem a procurar, quando dou por mim a trabalhar grandes escritores e grandes obras literárias, que, na verdade, eu tento não pensar o quão grandiosos elas são quando estou a trabalhá-las. Obviamente que eu não sou qualificado academicamente para trabalhar Pessoa, mas tenho alguma coisa a dizer sobre a obra dele, ou pelo menos sou apaixonado por ela desde que eu a conheci na escola com 13 anos. Sou um grande amante de poesia desde essa altura e, por mais poetas que eu tenha conhecido, por mais poetas que tenho lido, eu vou sempre voltar a Fernando Pessoa porque sou encantado pela sua obra. Como dizia, eu não pensei, quando comecei a trabalhar na Boca do Inferno, que talvez não estivesse à altura de trabalhar uma figura como é a de Fernando Pessoa, eu foquei-me na história e no que realmente ela podia potenciar no aspecto cinematográfico e narrativo. Larguei qualquer pretensão que pudesse haver da minha parte ou da parte dos criadores deste filme em comentar a obra de Fernando Pessoa ou a sua biografia, mas sim encontrar o “Fernando”, o homem, encontrar um bocadinho da humanidade de Fernando Pessoa. Agradecemos às estudantes de Graduação da Universidade de Brasília – UnB/Brasil – Ana Luiza Damásio Arrais e Anna Karoline Madeiros da Silva pelo apoio no serviço de revisão da transcrição automática da entrevista gravada. 7 Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 292 Medeiros Fernando Pessoa na Boca do Inferno Esta história, por que esta história? Obviamente que, se nós olharmos (isto agora já falo como um pessoano), mas se nós olharmos, segundo o que sabemos hoje para a vida de Fernando Pessoa é muito complicado encontrarmos uma história onde haja ação, onde vejamos o Fernando Pessoa a sair de casa e a fazer coisas, a armar esquemas. A verdade é que ele era muito introspectivo, genialmente introspectivo, na sua janela a escrever a “Tabacaria”. Por mais que romantizemos a vida dele com Ofélia, por mais que romantizemos a vida dele na “Orpheu” e no Martinho da Arcada, há raros casos na vida de Fernando Pessoa em que ele realmente tenha agido sem caneta e papel. É claro que “Orpheu” obviamente foi uma revista que ele criou juntamente com os seus companheiros, mas esta história específica a da Boca do Inferno, tem potencial estético e eu percebi logo isso ao lê-la. Houve o grande Mago que vem a Portugal conhecê-lo, eles armaram os dois um esquema, fingiram o seu suicídio. Fernando Pessoa participou ativamente nesta história, e eu achei isso absolutamente imperdível. Antes de conhecer o romance, conheci a história. Depois de ler o romance, percebi a quantidade de textos que foram escritos por Fernando Pessoa sobre o tema, escritos e reescritos. Ele escreveu capítulos, depois rescreveu os mesmos capítulos tentando encontrar o caminho certo, ele escreveu notícias de jornal, ou seja, a informação estava toda encruzilhada. E, aí assim, um bocadinho pretensioso da minha parte, mas pensei: isto poderia ser um bom levantar do véu sobre o processo criativo da forma como ele escreve, pelo menos de como ele aborda a ficção. No filme também está presente a ideia do Turismo Infinito, quero com isto dizer que dentro do seu quarto ele viajou por todo lado, ele foi um detetive inglês que vem em Lisboa a escrever sobre este desaparecimento misterioso e possível suicídio do mago Aleister Crowley. Também me interessou porque eu trabalho e tenho uma proximidade muito grande com o teatro. Tento trabalhar a linguagem teatral no cinema; a linguagem cênica é uma coisa que sempre me agradou muito. Uma das coisas que me marcou como realizador foi filmar espetáculos de teatro; comecei por ter a liberdade no Teatro Nacional de São João de filmar espetáculos de teatro como realizador. Ou seja, eu percebi muito cedo a forma cinematográfica com que a “cena” se apresenta à câmera. Quero com isto dizer que muitas vezes a cena é tão bonita, se nós apontarmos a câmera na direção certa conseguimos ter uma cinematografia maravilhosa sem sair de uma Black Box. Essa também foi um bocadinho a ideia do filme, lembrando aquela intenção do levantar do véu para o processo criativo de Pessoa e assim misturando o que é ficção e o que é realidade. Esse sempre foi o grande objetivo, o grande tema do filme. Nós partimos dum terreno que é claramente ficcional, ou seja, as paredes mexem, as luzes mudam, não há fundo, o fundo é negro, claramente estamos a ver uma criação ou alguma coisa que não é naturalista, que não é realista. Mas partindo deste ambiente não realista nós tentamos encontrar a história real no meio disto. Acho que essa foi a proposta de realização e foi, talvez, aquilo que Fernando Pessoa tenha tentado fazer no meio do que estava a acontecer em Lisboa naquela época, da Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 293 Medeiros Fernando Pessoa na Boca do Inferno vinda do Aleister Crowley, tentou unir estas pontas soltas e coser esta história para que parecesse real. AM – Excelente! Deixe-me perguntar outra coisa, o meu colega Jerónimo Pizarro mandou-me o material referente ao filme, que você enviou para ele e para o Marcelo Mello, também nosso colega de trabalho, o que inclui uma versão de rodagem, salvo engano de 2018, que me chamou a atenção. A versão que eu recebi tinha por título “Anu”. Gostaria de saber: o filme inicialmente se chamaria “Anu”? Caso sim, por que se deu a mudança do título? Pergunto por que você verá que a minha abordagem caminha no sentido de ver uma presença muito especial dessa personagem no filme. Eu acredito que ela é um ponto muito alto do filme, então o primeiro aspecto sobre o qual eu gostaria de saber é este, o título. LP – O título inicial, também proposta do argumentista Jaime Monsanto, era “Anu”. Isso porque o filme foi descoberto a partir do poema “Dá a surpresa de ser”, que pela data do poema, acredita-se que talvez [Pessoa] o tenha escrito a pensar nela [em Hanni Jaeger]. Novamente, eu não sou crítico de Fernando Pessoa, mas este pode ser o único poema erótico na obra dele. Há realmente um poema do Álvaro de Campos que fala dos corpos nus masculinos que ele queria agarrar, enfim, isso também pode ser considerado um poema erótico, mas isso é uma passagem de um poema que é mais longo do que isso, ou seja, o poema não pode ser resumido apenas num poema erótico. Este sim [“Dá a surpresa de ser”] é um poema em que apetecelhe estar com ela, apetece-lhe perceber aquele corpo, apetece-lhe agarrar, nota-se claramente isso. E foi também uma das formas que nós tivemos de nos aproximar de Fernando Pessoa e tirá-lo um bocadinho do pedestal – é normal que nós coloquemos sempre Fernando Pessoa num pedestal, porque ele merece lá estar –, mas quando o vamos trabalhar num filme, quando vamos criar dele uma personagem, quando vamos colocar um ator a representar esse papel, é necessário que ele seja humano. E então este poema foi o começo da humanização de Pessoa, da sua vida romântica. Obviamente que ali há uma história de amor que nós queremos contar, ou pelo menos de atração, daí o filme inicialmente se chamasse “Anu”. A verdade é que enquanto estávamos a estruturar a história, o filme foi sempre “Anu” e foi sempre “Anu” até ao final da edição. Só foi sugerida a alteração do título pela tradutora, Maria Inês Peixoto, que argumentou “eu acho que a Anu não tem um peso suficiente para o filme ter o nome dela”. É claro que ela possa ter sido o motivo de muitas das coisas que ali aconteceram, mas a relação do Aleister Crowley com Fernando Pessoa foi para lá dela. Depois o personagem principal, o detetive, também não tem uma relação direta com a Anu. Ou seja, eu acho que o filme é maior do que Anu, mas houve ali uma altura em que realmente ela era sempre o fio condutor, ela era sempre o motivo pelo qual, na minha ótica, Fernando Pessoa até Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 294 Medeiros Fernando Pessoa na Boca do Inferno aceitou fazer estas coisas com Aleister Crowley. Mas depois do filme feito, depois de ver aquilo, eu percebi que talvez não. Que talvez fosse uma vontade da obra dele ser lida, ser reconhecida internacionalmente. E aí decidi retirar o nome “Anu” e colocar o nome “Boca do Inferno”, que achei que era o que fazia mais jus ao filme e à história deles. AM – Perfeito, entendo. Veja só: você, com muita modéstia, fala que não é crítico pessoano, mas é claro que o seu trabalho demonstra um trânsito muito confortável pela obra pessoana, e aí eu queria te dizer o contrário... Eu não sou do cinema, eu sou do Pessoa [risos], então eu acesso a sua obra [o filme] muito a partir das minhas chaves de leitura pessoanas, e aí o que me chama muito a atenção é que há um rasgo no seu filme: Boca do Inferno consegue alguma coisa que não é muito comum em narrativas sobre Pessoa, falo de todas as narrativas multimodais – seja cinema, seja teatro, seja literatura –, não é tão usual conseguir erotizar o Pessoa, e eu entendo que, sem exageros e dentro de uma estética dos anos 1930, você consegue produzir um filme em tom erótico. Queria saber um pouco a sua avaliação sobre isso. Entendo que o erotismo no filme vem muito por essa figura, a Anu, e por conta de certa composição de cenas que vocês fazem, sobretudo relacionado às cores do filme, e até o detetive – ele chega a perguntar ao Pessoa: “Os encontros foram sempre assim picantes?”. Então, há um semblante erótico no filme. Mas uma coisa que é muito inapreensível ainda do Fernando Pessoa é essa dimensão sexual erótica, e eu acredito que vocês conseguem chegar ao erotismo. Por que eu falo disso? Porque o filme mudou do título “Anu” para “Boca do Inferno” e eu acho que uma coisa muito interessante que vocês propõem ali é aquele título “Boca do Inferno”, que vai sendo preenchido por tons amarelo-dourados, e eu li, analisei o seu filme com uma proposta de filme noir por conta das cores, da questão do detetive, mas vocês preenchem, sobretudo com a paleta do amarelo, do dourado, alguns momentos do filme. Notadamente esses momentos me levam para o campo do erotismo. E aí, por exemplo, a cena da praia em que focalizam aquela areia amarela de cima, o guardachuva vermelho e aquela mulher maravilhosa com trajes de banho em branco e batom vermelho... é, eu não posso não ver erotismo nesse filme. Então, eu queria que você falasse um pouquinho sobre isso... LP – Obrigado pela pergunta, gostei muito também da sua interpretação. Tudo isso foi pensado por mim e pelo Jaime, tudo isso discutido com a equipe. Há duas coisas: uma delas é um bocadinho mais de um método narrativo e estrutural, que nós, como a Ana disse, claramente, estávamos a trabalhar um filme noir. Houve claramente a intenção desde o início de tornar aquela atmosfera baseada nos grandes clássicos noir, obviamente muitas discussões e muitas referências foram trocadas entre mim e Manuel Pinto Barros sobre a cinematografia noir. Mas em termos de argumento, em termos de estrutura narrativa, o filme noir tem sempre ou quase sempre uma femme fatale, e obviamente a Anu seria a femme fatale. Seria o motivo, como disse há pouco, Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 295 Medeiros Fernando Pessoa na Boca do Inferno quando estava a falar da troca de nome, o motivo pelo qual tanto Fernando Pessoa como Aleister Crowley agem da forma como agem, fazem o que fazem, é sempre aquela mulher no meio deles dois. A femme fatale, ou como Aleister a chamava – scarlet woman, não é? Mulher escarlate. Baseado em textos que lemos sobre ela (alguns escritos por Pessoa), ela era uma mulher à frente do seu tempo, mostrava-se e vestia-se de uma forma que Lisboa não estava habituada. Lisboa não estava preparada para a receber e, então, aquela mulher chamou bastante a atenção, imagino eu, as pessoas, quando ela passava na rua, comentavam, também não era tão comum ver estrangeiras em Lisboa, como é nos tempos atuais. Então, uma mulher de 20 e poucos anos, idade que ela tinha quando chegou a Lisboa, acompanhando um velho, uma pessoa muito maior que ela, com claramente uma abordagem à sexualidade muito diferente do que é a católica de Lisboa naquela altura. Obviamente que este choque também se reflete em Fernando Pessoa e, pelo menos, deu o poema erótico, pelo menos cresceu ali uma vontade. O outro motivo foi a nossa leitura da história, queríamos juntar essa paixão que Fernando Pessoa pode ter sentido por ela, ou seja, foi uma opção: Fernando Pessoa apaixona-se por esta mulher. E, então, a minha cabeça construiu algo para o que aconteceu nessas conversas, sobre o que é que eles falaram. Depois, o poema, é claro, resumiu tudo, “Dá a surpresa de ser | é alta de um loiro escuro | faz bem só pensar em ver | seu corpo meio maduro”. Para mim, também tentei que fosse uma surpresa aquela mulher a passear em Lisboa, a passear com Fernando Pessoa. Queria que ela tivesse o foco em cima dela, queria que ela fosse apaixonante. Mas é claro que isto é um registo de cinema clássico antigo, não é a forma como uma mulher é hoje retratada, felizmente. Mas utilizando a linguagem noir o erotismo vem da presença dela, vem dos seus cabelos loiros, dos seus seios voluptuosos, que tem uma àvontade que as outras mulheres não tinham, que a Ofélia com certeza não tinha. Foi esse contraste eu gostei de trabalhar como se eu estivesse apaixonado por ela também. AM – Eu não sei como é que não se fica apaixonada por ela no seu filme, essa mulher é divina! Fazendo essa brincadeira com o termo: Boca do Inferno mais o adjetivo divina... Eu acho que ela fica com uma composição muito apaixonante mesmo. Porque até no momento do ataque dela, ela de toda forma não está trajada nessas cores provocantes, o amarelo ou o vermelho, mas está toda em branco, como uma transparência. Então, ela me parece que convulsiona o filme, tornando-o mais luminoso... LP – Eu diria que a tentativa foi endeusá-la de uma certa forma, porque ela sempre foi vista aos olhos do Fernando Pessoa, porque o detetive, quando pergunta sobre ela, é o Fernando Pessoa que conta as histórias, é o Fernando Pessoa que conta a sua perspectiva sobre Hanni Larissa Jaeger. Ou seja, eu conto a perspectiva daquela Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 296 Medeiros Fernando Pessoa na Boca do Inferno pessoa que passou na vida dele e que lhe arrebatou completamente, por quem ele ficou completamente louco de paixão e ela foi-se antes dele poder ter o tempo de se desapaixonar. Foi aquele amor platônico cortado na altura certa, resta a memória, ficou o endeusamento daquela mulher. Só mais uma coisa, isto traz uma outra questão: obviamente que houve uma altura em que nós pensamos: espera lá, nós estamos a trabalhar sobre a sexualidade de Fernando Pessoa e eu nunca, realmente, quis abordar essa questão, eu nunca quis provar o que quer que fosse sobre esse tema, foi uma inevitabilidade da história. Nós, na fase de pesquisa, fomos falando com várias pessoas, eu falei com familiares dele, falei com pessoanos, obviamente há pessoas que dizem, “não, Fernando Pessoa era assexual”, “Fernando Pessoa era homossexual”, simplesmente – Pessoa era isso, era aquilo... e depois defendem com unhas e dentes aquela ideia e a mim parece-me que, no mínimo, ele é capaz de se apaixonar, homem, mulher, o que quer que seja. É capaz de ter esta paixão, de ter este desejo. AM – Excelente. E, nesse clima, o que eu acho que corrobora, que contribui para esse clima de um Fernando Pessoa apaixonado, parece-me ser a banda sonora. Queria saber as escolhas que vocês fizeram nesse sentido. Eu ouvi todo o álbum Longe do chão, do Gajo. Tem alguma composição do filme que não está nesse álbum? LP – Tem, o tema. Eu ouvi o álbum por acaso. Nós já sabíamos que íamos fazer o filme e eu estava a fazer uma viagem de carro a ouvir Antena 3 e apareceu o Gajo. Começou a tocar e eu automaticamente amei a música dele e pensei: “Isto é altamente cinematográfico.”. Não sei por que, mas há certas músicas – e isso simplesmente acontece –, algumas músicas são cinematográficas; com isso quero dizer que as músicas dão para criar imagens na nossa cabeça. E o Gajo tem outra coisa que me atraiu de imediato. Eu gosto de trabalhar as minhas origens, se quiser, a “portugalidade”. Acho que é bom e bonito, e é o que nos torna únicos. Ora, a guitarra campaniça é uma guitarra portuguesa de origem alentejana, e o Alentejo está muito ligado a Lisboa. Então, era uma guitarra que eu imagino que o Fernando Pessoa também pudesse tê-la no seu dia a dia, ou tê-la ouvido aqui e ali. Procurei trabalhar com o Gajo automaticamente e ele foi generosamente bondoso e prestativo. Tinha uma ideia prévia pensada musicalmente para o filme, que nunca tinha feito em trabalhos passados, que era haver um tema. Haver uma música que, no final do filme, as pessoas, espectadores, pudessem ficar com aquela música na cabeça. E, então, é claro que eu e o Gajo trabalhamos essencialmente sobre esse tema para ir de encontro ao mood da história. Houve muita conversa; ouvia músicas que ele estava a preparar, depois voltava e dava algumas indicações. Andamos assim à busca do tema, e num encontro decidimos: “Vamos concentrar-nos só no poema. Vamos compor para este poema, para esta vontade de estar, para este ‘tem qualquer coisa de gomo’”. Vamos escrever a música para esta dor, que é uma dor, de quem Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 297 Medeiros Fernando Pessoa na Boca do Inferno quer dizer àquela mulher que se está apaixonado, que quer estar com ela, mas não tem como dizer; pergunta, antes, se está frio. Percebe? E essa música vem buscar um bocadinho essas dores do não conseguir verbalizar o desejo por outra pessoa. A música chama-se “Anu”, ficou com esse nome. AM – O Gajo aparece no filme, várias vezes... LP – Aparece. Ajuda a nunca perder a ideia do musical que não chega a ser musical, porque eles não cantam, mas há sempre uma música por trás, há sempre uma coisa cénica. A música traz-nos isso também. Não só a luz e as paredes a mexerem-se, mas a música presente e diegética. AM – Essa opção da música é muito interessante para um filme que parte tanto de um poema do Pessoa, “Dá a surpresa de ser”, que é todo em redondilha maior, né? Um verso extremamente musical, então me parece muito acertada essa escolha de vocês. Mas, mudando de assunto, pensando em uma recepção do seu filme junto ao público brasileiro. Eu sou brasileira e, no Brasil, “Boca do Inferno” – a despeito do que significa, daquele acidente natural em Cascais, Boca do Inferno – no Brasil, é uma alcunha que a gente deu para um poeta muito importante, que é o Gregório de Matos, um poeta do século XVII. O nome dele é Gregório de Matos, mas todo mundo o conhece na historiografia luso-brasileira como “Boca do Inferno” porque ele tinha poemas eróticos e satíricos. Poemas em que as freiras faziam coisas hereges. Então, assim, esse autor é um expoente do Barroco luso-brasileiro. Bom, o Barroco tem claro/escuro, preto e branco, que me lembra a atmosfera do seu filme; mas o auge da cor no Barroco, novamente, é o dourado. Então, como brasileira, e pensando numa recepção do filme no Brasil, eu me sinto impelida a perguntar isto, se você ou a sua equipe ouviram dizer ou pensaram nessa referência Barroca, também chamada de Boca do Inferno, mas do lado de cá do Atlântico. LP – Não em relação ao poeta, mas houve referências barrocas, principalmente em pinturas. Quando nós fomos para o filme noir, eu sou mais de me mover através de referências de pintores do que propriamente de filmes – sempre que vamos para referências de filmes parece que estamos a fazer uma cópia do trabalho de pessoas que já o fizeram. Portanto, acho que Caravaggio foi realmente a nossa referência cinematográfica, e nós tentámos ir por aí, para o que era o chiaroscuro, por essa referência visual. Em termos de literatura, eu não sabia dessa alcunha “Boca do Inferno”, primeira vez que estou a ouvir. Sei que “Boca do Inferno” pode querer dizer uma série de coisas que não interessam para a história, mas o nome pareceume que englobava a história. É o nome do espaço que eles decidiram como o local do suicídio do Aleister Crowley. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 298 Medeiros Fernando Pessoa na Boca do Inferno AM – E “Boca do Infierno” tem essa conotação – do bilhete do Crowley, né? Que é um bilhete real. Um bilhete que ele discute ali no seu filme com Pessoa, em que o Crowley diz: “Ah, a outra boca do inferno não será tão quente como a sua”. Não é? LP – A boca da Anu também é chamada pelo Aleister Crowley como “Boca do inferno”. Sim, isso é. A outra boca do inferno, sendo a original o penhasco. Sim, é verdade. Esqueci-me de referir uma coisa. Porque eu acho que a estrutura é sempre muito importante para contar uma história, a Anu aparece quando acaba o primeiro ato. Sempre pensamos a entrada da Anu a marcar a mudança do primeiro para o segundo ato. Ou seja, aí é que nós revelamos realmente qual é o assunto do filme e saímos da questão do mistério do desaparecimento do Aleister Crowley e entramos numa outra coisa, numa outra camada que é mais o assunto do filme. Esta camada mantém-se até ao final, até quando o detective descobre as cartas e aquelas cartas foram realmente escritas por ela para Fernando Pessoa, é claro que com o conhecimento do Aleister Crowley. Fiéis aos factos que conseguimos apurar, não existiu mais do que desejo naquela relação; eles não namoraram às escondidas, mas dependendo da forma como se conta a história, podia ter sido mais, não é? Podiam os dois ter morto Aleister Crowley. É claro que nós não estávamos a tentar fazer uma biografia. O trabalho foi altamente criativo, no sentido ousado; expusemos as fontes que nós tínhamos para construir a nossa história. Não tentámos com que ela fosse a história real da Boca do Inferno, até porque era impossível ter uma interação com o detetive, que era um personagem fictício, não é? Ou seja, nós usamos essa liberdade para contar esta história, e obviamente esta história erótica, ao pelo menos esta história da paixão e do desejo de Fernando Pessoa. E chamar-lhe “Boca do Inferno”, sabendo que na carta ele também tinha chamado a boca da Anu de boca do inferno, dava para juntar a boca dela, a boca do desejo e a boca do suicídio. AM – Pois. Eu não vou tomar muito mais do seu tempo. Apenas um registro: fotografia e diretor de luz foram a mesma pessoa, o Manuel Pinto Barros, que fez um trabalho excelente, não é? LP – (Risos) Sim, sim, sim. Nós temos vindo a trabalhar juntos. O Manuel, de uma forma ou outra, cresceu, pelo menos em Portugal, cresceu muito bem. Está muito lançado no cinema e, então, puxa-me de vez em quando para fazer trabalhos com ele. Ele também está mais por Lisboa, a trabalhar por Lisboa, e eu mantenho-me no Porto e não quero deixar isto por nada. Felizmente tenho trabalhado bastante com o Teatro Nacional São João em desenho de vídeo, ou seja, penso e realizo filmes para serem incluídos em espetáculos de teatro através de projeções. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 299 Medeiros Fernando Pessoa na Boca do Inferno AM – E, finalmente, Luís, existe uma a tradição em Portugal, e você já disse (e acho que o filme é muito legal por isso): “Não, esse filme não tem pretensão de biografia do Fernando Pessoa” e até as biografias de Fernando Pessoa são complexas, então a pergunta não é nesse sentido. Mas existe mesmo na tradição de Portugal isso de narradores fictícios que contam a história da literatura de Portugal ou de personagens portugueses e que fazem isso de um modo artístico. Então, por exemplo, a gente tem casos muito consagrados: o José Saramago faz um romance no final do século XX em que o Pessoa e o heterônimo Ricardo Reis são personagens. Aí, já no século XXI, José Luís Peixoto faz um romance em que o Saramago é o protagonista; o António Lobo Antunes faz coisa similar com Camões, então, com muita serenidade, não quero te deixar assim com um fardo muito pesado, mas eu queria saber se você se sente de alguma forma parte desta tradição. Isto é, um português do nosso tempo que não se exime de enfrentar certa tradição de narrar criativamente artistas de Portugal, queria saber como é que você se coloca nesse lugar. LP – Obrigado, obrigado por... (risos) por essa comparação, a verdade é que o José Saramago é o romancista por quem eu sou fascinado, fanático pela obra dele, trabalhei-o no ano passado um espetáculo que era o “Ensaio sobre a Cegueira”, estou agora a trabalhar Lobo Antunes. Ah, então prefiro ver assim desta forma. Eu acho que Portugal é um país muito pobre em muitas coisas. Nós não estamos numa fase social em que conseguimos ter igualdade, em que conseguimos ter o nível de vida aceitável. Pagamos demasiado por tudo, as pessoas não passam bem e, muitas vezes, perdem a esperança neste Portugal que lhes foi prometido em Abril. Sinto a olhar à minha volta que as pessoas estão desesperançadas deste país, acham que nós somos pequeninos, que estamos na cauda da Europa, não gostam de viver cá e partem para fazer as suas vidas noutros países. Eu compreendo a dor destas pessoas e compreendo porque é que o fazem. E compreendo que Portugal não nos oferece aquilo que promete. Somos realmente pobres. Mas a verdade é que Portugal tem uma literatura que é das melhores que eu já li no mundo e eu sinto-me super orgulhoso de ser português pela nossa língua e pela nossa literatura. E, nesse sentido, eu sinto que a minha obrigação como criador, eu não gosto de dizer isso, mas como artista também, é de conseguir propagar um bocadinho esta cultura literária que nós temos. Nós podemos não ter os melhores cientistas, nem os melhores empresários, nem os melhores políticos, com certeza, mas tivemos os grandes escritores, os grandes poetas, e ainda temos! O Lobo Antunes ainda é vivo, e daí sim, eu quando tento debruçar-me sobre um autor, eu normalmente vou-me debruçar sobre um autor português, porque há tanta coisa para explorar na literatura portuguesa que eu não tenho muito mais para onde ir, percebe? Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 300 Medeiros Fernando Pessoa na Boca do Inferno AM – Então eu fico mesmo muito honrada, te agradeço imenso. E se quiser fazer qualquer outro comentário sobre o filme, algo de que gostasse que a crítica ficasse sabendo, fique também muito à vontade. LP – Ok. Acho que é importante referir sempre, pelo menos é a forma como eu vejo: o cinema é uma arte coletiva. Aqui, nenhuma opção terá sido tomada apenas por mim. Houve uma junção de trabalhos de pessoas diferentes. De uma diretora da arte, Luísa Bebiano, que não foi só uma diretora da arte, que pensou o espaço como arquiteta e cenógrafa. Do editor Alberto [Gonçalves], que já me acompanhava há alguns anos e que já conhecia bem a linguagem. Do trabalho extraordinário da produtora Laura Milheiro, que agora está a provar o seu mérito e a dar cartas na indústria espanhola. Do trabalho do argumentista, que foi um processo muito exigente entre mim e o Jaime [Monsanto]: andávamos a trabalhar este argumento, mesmo sendo curto, pelo menos há um ano e meio, dois anos. E obviamente o trabalho dos atores que, neste caso em específico, acho que eles estiveram bem, gostei de ver os atores, senti realmente que os atores estavam num grande nível. E, assim, era isso... Acho que toda a equipa que fez parte deste filme, desta aventura, foi muito importante para conseguir trazer esta ideia à realidade. Depois, também, o papel importantíssimo que teve o Teatro Nacional de São João, no Porto, Portugal, onde eu estou agora, que foi em ceder o espaço. Ou seja, só foi possível por causa da vontade das pessoas do Porto em contar uma Lisboa em 1930. É um filme difícil, porque é um filme de 42 minutos, é um filme que não se insere numa curtametragem, não se insere numa longa-metragem. E, depois, olhando agora com alguma distância, lembro-me de que o final não está nada como eu queria. Não foi possível fazer melhor, mas é vida, né? AM – Ótimo. Agradeço demais: além de ter ficado muito contente por ver o seu filme umas 20 vezes, fiquei contente de poder conhecê-lo, ainda aqui de modo remoto, e conversar com você, obrigada mesmo, pela sua gentileza e generosidade! LP – Obrigado eu! Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 301 Medeiros ANEXO Fernando Pessoa na Boca do Inferno 2 Depoimentos Considerando-se que o dossiê da Revista Pessoa Plural agora publicado visa apresentar, discutir, suscitar a pesquisa e divulgar a produção cinematográfica realizada a partir da obra de Fernando Pessoa, apresentamos a seguir quatro depoimentos que propiciam o debate sobre o filme Boca do Inferno (2020), do realizador Luís Porto. Os pesquisadores Marcelo Mello (CNPq/USP) e Ana Clara Medeiros (UnB) coletaram depoimentos em fevereiro e março de 2024 de figuras fundamentais à produção do média-metragem que narra o encontro de Pessoa com o mago Aleister Crowley e sua amante Hanni Larissa Jaeger. Os textos a seguir, portanto, registram as impressões e a experiência individual (que se mostra bastante coletiva neste caso, como verão os leitores) do processo compositivo de Boca do Inferno: agradecemos a Laura Milheiro, produtora do filme; a Jaime Monsanto, argumentista e ator (intérprete de Fernando Pessoa na película); a Manuel Pinto Barros, diretor de Fotografia; e a João Morais, conhecido como O Gajo, responsável pela banda [trilha] sonora e música do filme – pelos depoimentos concedidos , que contribuem para a percepção da atmosfera pessoana criada no Teatro Nacional São João, no Porto / Portugal, onde se deram todas as filmagens da obra. Laura Milheiro dá a ver como a leitura, a pesquisa, a consulta a estudiosos da obra do poeta português foram fundamentais à composição do filme, produzido em apenas oito dias de filmagem, como conta a produtora. Jaime Monsanto explicita que, seja na escrita do roteiro, seja na atuação como protagonista, era preciso humanizar Pessoa, revelá-lo como homem comum, que sempre pregava peças, que ao menos uma vez se apaixonou por uma scarlet woman. Manuel Pinto Barros, o diretor de fotografia, afirma que intentou “estar dentro da cabeça de Fernando Pessoa” e, nesse espaço insólito do filme, onde tudo é mentira, emergiu uma luminosa fantasia, chamada “Anu”. Finalmente, João Morais, o Gajo, ressalta como a música, em Boca do Inferno, cumpre o papel de demarcar o ritmo de uma narrativa, mas também consegue transportar-nos para tempos e espaços outros, ao som da (alentejana) viola campaniça. Os testemunhos a seguir evidenciam que o filme resulta de um afinado trabalho em equipe, do estudo da obra pessoana e do enfrentamento corajoso deste fantasma – Fernando Pessoa, aquele que refundou a poesia de Língua Portuguesa no século XX; aquele que fazia blague pelo desejo permanente de viver ficções. Vão aqui, então, mais alguns contributos que, de um lado, ratificam o quão criativo, responsável e pessoano é o filme de Luís Porto; de outro, consolidam a ideia de que as ficções pessoanas são infinitas – desdobram-se em sons, performances, atuações, imagens – e ganham cada vez mais vida quase 90 anos após a morte do mago de Lisboa. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 302 Medeiros Fernando Pessoa na Boca do Inferno Laura Milheiro (Produtora) Depoimento recebido por e-mail no dia 13 de março de 2024 Produzir a Boca do Inferno foi uma montanha-russa de acontecimentos, aprendizagem e emoções. Estávamos numa das primeiras apresentações públicas da nossa primeira curta-metragem Deus Providenciará – eu, o Luís [Porto], o Jaime [Monsanto] e o Pedro [Manana] – quando nos demos conta de que queríamos continuar a trabalhar juntos e fazer algo que nos continuasse a fazer crescer a paixão pelo cinema. Pelo que desenterramos uma paixão comum: Fernando Pessoa. A partir desse momento foi todo um processo. Descobrir que parte da sua vida abordar. Ler muito, ler tudo. Falar com vários pessoanos, para poder começar a desenvolver o argumento. Escrever o argumento. Dar voltas e mais voltas ao mesmo, num processo contínuo. Quando encontrámos o foco, do ponto de vista de produção, apercebemo-nos da complexidade do projecto: actores de língua portuguesa, actores de língua inglesa, um cenário que – pela narrativa – teríamos de construir de raiz, um local onde conseguir fazê-lo, animais, figuração, tudo para construir o que, ao início seria uma curta- metragem, e depois se transformou numa média-metragem. Foram várias as tentativas de co-produção, de submissão de candidaturas, de encontrar o elenco certo, montar uma equipa, da qual não poderíamos estar mais orgulhosos. Era um repto. Um repto que fez com que esta paixão de conseguir fazer este filme crescesse cada vez mais. Foi um caminho longo. Conhecemos bastantes pessoas que nos aportaram muito de si para o projecto e, ao fim de cerca de dois anos, conseguimos. Encontrámos um parceiro de produção, a Filmógrafo – que se uniria a nós nesta loucura –, um espaço magnífico – o Mosteiro São Bento da Vitória, cujo Teatro Nacional São João está a cargo –, um elenco e uma equipa fantásticos – pelos quais não poderíamos ter mais admiração – e, com muito trabalho e montando um quebra-cabeças gigante, conseguimos realizar o filme que o Luís tinha ideado. Foram 8 dias de filmagens, 1 semana louca de preparação para construir os cenários, conseguir os elementos cénicos, figurinos, pensar no desenho de maquilhagem e de cabelos, trazer actores de Londres, um movimento do Porto a Lisboa para filmar, inserir a própria banda sonora do filme durante as filmagens... Foi feito muito em pouco tempo de real execução, com meios que – ainda assim – foram curtos e que, no final de tudo, nos trouxeram uma sensação de orgulho, de realização, de trabalho feito, da qual – mesmo passados 5 anos – não posso deixar de recordar com o maior dos carinhos. Jaime Monsanto (Argumentista e ator) Depoimento recebido por e-mail no dia 6 de março de 2024 Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 303 Medeiros Fernando Pessoa na Boca do Inferno Sobre o processo Como é sabido, o meu envolvimento na obra sobre a qual nos debruçamos neste momento dá- se em duas frentes, a de argumentista e a de actor. A segunda sendo, em boa verdade, uma decisão do Luís Porto e restante equipa, depois de fazermos vários castings e o realizador chegar, me pareceu, à conclusão de que não estava a ser fácil retirar os actores desta concepção endeusada do Fernando Pessoa, do pária, o criador no cume da montanha olhando os mortais, e aproximá-los dessa visão mais mundana, acessível, do ser social que bebia uns copos de vez em quando, como o mais comum de nós e que, intuitivamente, sempre me interessou e também seduziu o Luís. Digo intuitivamente porque foi o processo de pesquisa que acabou por validar essa ideia, algo que irei desenvolver na secção dedicada ao processo como actor. Na verdade, o meu fascínio começou por volta de 1994, no início da minha carreira como actor (As pessoas de Pessoa, com encenação de Nuno Gama, produção concebida a partir de textos de Fernando Pessoa). Neste espectáculo já se explorava uma montagem de textos dos heterónimos e alguns excertos da carta a Adolfo Casais Monteiro sobre os mesmos. Falo deste espectáculo em particular porque foi o precursor de uma série de tentativas ao longo dos anos, que não vou mencionar (sob pena de me tornar desnecessariamente exaustivo), de testar os textos de Pessoa na prática da performance. De explorar a profundidade dramática, em sentido prático, dos textos que o escritor denominou como “drama em gente”. Este processo de confrontar os heterónimos em palco usando os seus poemas, e editando como se de uma conversa se tratasse, contamina, em parte, o argumento de Boca do Inferno. Argumento O livro que serviu de base de pesquisa e guia para a estruturação do argumento, Encontro Magick, é uma organização de textos de seu sobrinho Miguel Roza. Apesar de o título apontar no sentido do ocultismo, Miguel Roza não se inclinou tanto nesse sentido, mas no inusitado do encontro. No entanto, a preocupação de documentar todo o episódio despertou o meu interesse porque retratava o lado bem humorado de Pessoa como eu ainda não tinha conhecido até então. Pressentia-o na sua escrita, apesar de erudita, mas não de forma tão clara como nas cartas entre o poeta e Crowley. Eu encontrara um Fernando Pessoa que imaginara várias vezes, mas que agora estava ali de forma indubitável. Por isto, o primeiro impulso foi retratar esse lado, para o qual também concorria bem o poema de teor mais sexual que Anu inspirou. Humor, sexo, exageros, dívidas, misticismo, tinha tudo, e arrojo ao ponto de simular um suicídio com visibilidade internacional. Este era ainda outro elemento que me seduziu muito na correspondência e, até no acto de enviar a carta que trouxe Aleister a Portugal porque acredito que de alguma forma este pensamento estava presente: a ambição de Pessoa em ser conhecido internacionalmente. Também Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 304 Medeiros Fernando Pessoa na Boca do Inferno este elemento me seduziu muito, elemento que está na boca de Pessoa no romance The Mouth of Hell, numa conversa que Pessoa tem com o investigador a respeito da dualidade de Crowley: sendo um homem de talento e inteligência, ser tão seduzido pela fama; me pareceu, ao mesmo tempo, uma introspecção sobre si próprio. Assim, e depois de juntar ainda alguns elementos de pesquisa, como excertos do diário de Aleister, começou a ser clara para mim a estrutura do argumento. Em vez de relatarmos, acompanharmos as personagens e, com alguma imaginação à mistura, criarmos cenários para o encontro “Magick”, também por uma limitação de tempo que o formato de média metragem impõe, o desafio seria entrar na cabeça de Fernando Pessoa e, de alguma forma, levar o público a viajar na imaginação de Pessoa enquanto este fazia o seu malabarismo com a realidade, porque “a verdade nunca se acredita”, criando uma verdade, como ouvimos da boca de Augusto Ferreira Gomes, “qualquer coisa que seja plausível”. Desta forma, todos os textos, independentemente de serem jornalísticos, romanceados, ou do diário, cruzam-se com as poucas certezas a respeito da estadia de Aleister e Anu em Lisboa e inspiram cenários em que realidade e ficção se diluem na busca incessante por uma história que resultasse fantástica, como as personagens reais que a protagonizam, mas verídica e plausível. Após uma primeira versão, mais centrada nestes aspectos, e porque inicialmente o filme se chamava Anu, o Luís e o actor que faz Augusto Ferreira Gomes, Pedro Manana, fizeram uma reestruturação dos acontecimentos para que incidisse mais sobre o encanto de Pessoa pela dama escarlate de Crowley, Anu. Essa reestruturação levou à criação de novas cenas e à reescrita que, de seguida, o realizador finalizou comigo, resultando na versão do guião que deu origem ao filme. Trata-se, portanto, de uma escrita a três mãos. Actor Como não seria de estranhar, foi todo este processo de escrita que me ajudou a materializar uma figura que tinha muito clara nas nossas mentes e que dificultou o trabalho a todos aqueles que chegaram para o casting. Seja pela pré-concepção do poeta, ou pela nossa inaptidão em clarificar qual era afinal este Pessoa que queríamos retratar. Sobre o meu processo enquanto actor, e para não me estender muito mais, gostaria apenas de relatar uma prática do poeta que foi decisiva para a forma como abordei a personagem. Na conversa que tivemos com o sobrinho de Pessoa, Miguel Roza, este relatou um hábito que Fernando Pessoa tinha e que, penso, retrata bem o seu sentido de humor e espírito farsola – que, aliás, está na justificação que Fernando Pessoa apresenta para não ser ele a assinar a notícia do desaparecimento do mago inglês, o facto de ser bem conhecida a sua inclinação para a disseminação do que chama “blague”, e que nós designamos agora de peta. Segundo Miguel Roza, por vezes, Pessoa ao sair de casa, encontrando alguém e sentindo-se inclinado para isso, Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 305 Medeiros Fernando Pessoa na Boca do Inferno simulava deixar cair uma moeda no chão, e quando as pessoas se lançavam na busca do tesouro perdido, o poeta seguia viagem deixando-as que nem baratas tontas à procura de nada. Manuel Pinto Barros (Director de Fotografia) Depoimento recebido por e-mail no dia 23 de fevereiro de 2024 Boca do Inferno é um filme realizado por Luís Porto no qual fui Director de Fotografia. O Luís Porto tinha uma ideia bem definida da forma como queria contar e tratar o tempo / espaço do filme, o que ajudou imenso a construção visual do mesmo. A ideia era desconstruir um espaço (convento de São Bento da Vitória, no Porto), transformando-o em diversos espaços da vivência de Fernando Pessoa e Aleister Crowley, em Lisboa. O jogo entre espaço e tempo, criado pelo realizador, levavam a que visualmente o filme fosse um mosaico em que podia experimentar diversos “espaços visuais”. Mas optei por limitar o espaço e o tempo visual a uma ideia: aquele espaço e tempo que filmávamos seria a cabeça de Fernando Pessoa, e assim, assumir uma unidade visual mais expressionista nos momentos entre Fernando Pessoa, Aleister Crowley e o Detective, e um ambiente mais “limpo” e “difuso” na relação de Pessoa e Anu. A partir do momento em que assumi que estaria “dentro da cabeça de Fernando Pessoa”, procurei referências da época, e foi fácil chegar ao expressionismo Alemão e ao surrealismo, movimentos que tiveram o seu auge nos anos 20 e que me pareciam adequados para o visual do nosso filme. Luz, sombra, contraste e deformação / alteração de espaços e luz foram alguns dos elementos que me influenciaram na construção do visual de Boca do Inferno. Existem momentos em que o plano sequência (não respeitando a sua essência) quebra tempo e espaço, e em que a própria luz é alterada de forma a criar uma unidade de partes que por si eram muito diferentes. Essencialmente, estávamos a ficcionar sobre o que Fernando Pessoa estava a ficcionar, logo, o espaço criativo era imenso, intenso e desafiante. E tal como Fernando Pessoa e Aleister Crowley estavam a mentir, para mim visualmente, interessava-me mentir ainda mais, e as ideias do realizador permitiam isso mesmo. Penso nos cenários, que se podiam mover e ajudavam a romper tempo / espaço. De forma sintética a Luz, o Tempo, o Espaço e a Narrativa eram tudo mentira. Como director de fotografia, foi extremamente estimulante trabalhar sobre estas mentiras, pois permitia criar sem os limites de uma narrativa “normal”. Aqui estávamos livres na mente e mentira de Fernando Pessoa, que, por muito partisse de uma premissa real, era apenas uma fantasia, fantasia essa de nome Anu. E é essa fantasia, a forma como Fernando Pessoa vê Anu, que quebra com o ambiente surrealista e expressionista. Esse é o ponto em que assenta a construção visual de Boca do Inferno: estando dentro da cabeça de Fenando Pessoa, não podia Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 306 Medeiros Fernando Pessoa na Boca do Inferno existir uma unidade visual, e Anu é o elemento que permitiu quebrar a barreira que me agarrava ao surrealismo e expressionismo, Em conclusão, diria que visualmente Boca do Inferno é uma mentira sobre uma mentira, e que constantemente mente a si próprio. Não é, claramente, realista, mas não é só surrealista, não é só expressionista, e não é só uma fantasia. É uma interpretação de Fernando Pessoa. João Morais, o Gajo (argumentista e ator) Depoimento via Teams, no dia 6 de março de 2024 Sobre o casamento entre a banda sonora e o filme Boca do Inferno (2020), entrego o mérito ao realizador Luís Porto. Ele ouviu a minha música na rádio e concluiu que esta seria ideal para o seu projecto. A maior parte das músicas que estão no filme são músicas que já estavam compostas, mas ele conseguiu que parecessem como se fossem feitas para aqueles momentos. A consciência que tenho é de que a música que faço é muito cinematográfica e, portanto, adequa-se bem à banda sonora de imagens, de atmosferas, de ambientes; isso com certeza ajudou. Luís Porto disse-me que seria bom termos uma espécie de momento musical que pudesse percorrer o filme todo, ou seja, um tema do filme, e foi assim que surgiu a tal música “Anu”. O que fiz basicamente foi estar no Porto (sou de Lisboa) a acompanhar todo aquele processo de filmagem. A partir também de algumas imagens que ele [Luís Porto] me enviou, fui guardando e reunindo ideias, mas não fechei nada até “a hora H”, quando percebi que tinha de fato qualquer coisa que encaixava na dinâmica do filme. Foi muito bom ter estado presente nas filmagens. Consegui sentir a equipe, sentir os movimentos, o ambiente. De todas as ideias que levei para o Porto nessa semana em que estive com eles, acabei por encontrar um momento que me pareceu um bom sustentador da imagem, um “drone”. Em música, chamamos “drone” a uma espécie de motor a trabalhar em “ponto morto”, e que mantém a música pronta a arrancar para qualquer lado. Sigo aquilo que estou a sentir. Acompanho de forma muito sensorial e gosto muito destes desafios. Acho que resultou tudo muito bem, mas honestamente o mérito eu entrego à equipe. Trabalhei as minhas ideias de forma um bocado solta, apesar de serem refletidas, mas o casamento de tudo foi obra da excelente equipe que eles conseguiram juntar e que fez este filme, que tem um orçamento limitado, mas onde eu vi acontecerem coisas bastante mágicas. Eu não sou um especialista em Fernando Pessoa, mas ele está no topo da minha lista de referências porque sempre que preciso de inspiração, eu sei que a vou encontrar em qualquer livro que abro dele. Eu tenho em casa a obra completa dos vários “Fernandos Pessoas” e é sempre inspirador. Se neste filme eu fizesse um trabalho musical muito pensado nas palavras, eu poderia fugir daquilo que no fundo seria a dinâmica do filme. Quando componho, tento arranjar uma narrativa para as Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 307 Medeiros Fernando Pessoa na Boca do Inferno coisas que faço, mas é mais por uma questão de estrutura de música, que tem um ponto de partida, mas que, a partir daí, a música tem de florescer. Neste caso, como o tema “Anu” era apenas um momento que iria pincelar o filme de forma salteada, a música nunca foi gravada enquanto música isolada. Ela só funciona para manter aquele filme com uma determinada cadência. Se eu fizesse “Anu” como uma música completa, teria com certeza lido todas as palavras do texto de referência [o poema de Fernando Pessoa “Dá a surpresa de ser”] e tentaria perceber “para onde é que eu vou agora?”, “o que é que a próxima frase me diz?”. Mas não tive que fazer esse processo e daí o porquê de o texto não ter sido o principal foco de referência. O que eu vejo quando assisto ao filme é o reflexo do talento daquela equipe. Fui também convidado para aparecer no filme como um personagem secundário, um tocador de rua, que está em segundo plano. Isso também me ajudou a estar mais presente no processo. A minha música é muito analógica e tem de haver uma presença humana. Não sou um músico muito digital. Essa minha presença no filme fez colar ainda mais a música com a imagem. Só fechei as ideias depois de lá estar. Quando a música é instrumental, como não há uma mensagem explícita, são as dinâmicas, as execuções, os pequenas retoques que damos nas melodias, que conversam com as pessoas. Certa vez escreveram sobre a minha música, que esta viola Campaniça os transportava para um Portugal antes de Portugal ser Portugal, ou seja, para uma espécie de memória antiga e islâmica derivada da presença dos Árabes na Península Ibérica. Eles deixaram muita coisa, ainda há muitos vestígios. Eu diria que esta viola Campaniça nasce algures dentro dessas civilizações Mediterrânicas mais antigas, foi-se transformando, e hoje ela transporta-nos para essas regiões não só pelo seu som, mas também nos transporta no tempo. Encontrei esta viola em 2016. Eu tocava guitarras elétricas convencionais americanas e japonesas, mas comecei a ouvir muitas “músicas do mundo”. É música de raiz, aqui nós chamamos “música do mundo”, e isto quer dizer que são projetos que trabalham essencialmente a partir das suas tradições locais, ou seja, usam os seus instrumentos tradicionais, que cantam os seus cantares tradicionais, vestem as suas indumentárias tradicionais e somos transportados por esse mundo fora apesar de não sairmos do mesmo lugar, porque estamos a olhar só para um palco, mas os cantares, o som e as indumentárias transportam-nos. Eu perguntava-me: “como é que eu poderia fazer um pouco isso com as minhas composições e transportar os ouvintes para a minha geografia?”, então acabei por procurar dentro daquilo que são os nossos instrumentos tradicionais daqui de Portugal e encontrei a viola Campaniça. Troquei, então, a minha guitarra elétrica de 30 anos pela viola tradicional aqui da região do Alentejo, mas sem a intenção de tocar música alentejana, o meu papel não é esse, não é tocar as músicas tradicionais, não é cantar os cantos tradicionais. Quis arranjar um instrumento que tivesse essa voz, que o seu som Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 308 Medeiros Fernando Pessoa na Boca do Inferno pudesse ser identificado com Portugal, mas para desenvolver as minhas próprias composições. É muito curioso porque a viola é que me transporta para aqueles sons mais antigos, é tudo muito intuitivo. A viola e a guitarra elétrica compõem coisas completamente diferentes, e esta viola tem esse som que soa a qualquer coisa meio arábica, ou islâmica, que cruza ali com tantas referências do Mediterrâneo, da Grécia, da Itália, da Espanha... e de Portugal, obviamente. Nós temos um país pequeno. Esta viola e outras da sua família de cordofones tradicionais portugueses estiveram muito adormecidas, muito entregues ainda aos sons antigos e tradicionais, sem se expandirem no seu potencial, sem viajar. A minha veio para Lisboa e hoje percorre um caminho mais ligado a referências contemporâneas. Tento não comprometer o seu legado e defendo muito a sua história, mas o futuro tem muita coisa por explorar. Agora vamos assistindo por aqui a um florescimento de tocadores e construtores, e estas violas vão aparecendo mais regularmente nos palcos por esse país fora. Há poucos anos, estas violas não apareciam, quase ninguém as conhecia... a verdade é que eu ia para qualquer lado e havia sempre quem perguntasse: “Mas que viola é essa?”. Praticamente ninguém sabia que viola era. Esta é a viola que marca o filme Boca do Inferno. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 309 Medeiros Fernando Pessoa na Boca do Inferno Bibliografia BAKHTIN, Mikhail (2008). A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. 6. ed. Tradução de Yara Frateschi Vieira. SP: Hucitec; Brasília: EdUnB. GANDARA, Lemuel; SILVA JR., Augusto R. (2015). “O encontro dialógico e colaborativo entre a literatura brasileira e o cinema no limiar da Pós-Retomada: traduções coletivas no cinema literário”. Letras & Letras, vol. 31, n.º 1, Jan/Jun, pp. 386-405. LEMAIRE, Ria (2017). “Do cancioneiro das donas às cantigas d’amigo dos trovadores galegoportugueses”. Fragmentum, Santa Maria: Editora Programa de Pós-Graduação em Letras, n.º 49, Jan/Jun, pp. 213-227. 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É pesquisadora junto ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq/Brasil (Bolsista Produtividade em Pesquisa nível 2). Coordena o Projeto de Pesquisa “Nós outros como futuro: interlocuções estéticas e rastros do Império nas literaturas ibero-atlânticas e afro-diaspóricas”, financiado pela Fundação de Apoio à Pesquisa do Distrito Federal (FAPDF), agregando investigadores/as do Brasil, de Angola, Colômbia, Itália, Moçambique e Portugal em torno das Literaturas de Língua Portuguesa dos séculos XX e XXI. Integrante do Grupo de Pesquisa “Crítica Polifônica” (UnB/CNPq). ANA CLARA MAGALHÃES DE MEDEIROS is an Associate Professor of Portuguese Literature at the Department of Literary Theory and Literatures at the Institute of Le\ers, University of Brasília. She holds a Level 2 Research Productivity Scholarship from the National Council for Scientific and Technological Development – CNPq/Brazil. She coordinates the Research Project “We Others as the Future: Aesthetic Interlocutions and Traces of the Empire in Ibero-Atlantic and Afro-Diasporic Literatures,” funded by the Foundation for Research Support of the Federal District (FAPDF). This project brings together researchers from Brazil, Angola, Colombia, Italy, Mozambique, and Portugal to explore Portuguese Language Literatures of the 20th and 21st centuries. Additionally, she is a member of the “Polyphonic Criticism” Research Group (UnB/CNPq). Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 311 !"#$%&'%(#)*+',#-(+.+&%/! !"#$%&"'&()*+,)-.$/"/)01*+2#)-.$ !!"#$%&"'%()(*+,"-(**$%! "#$%&'#(')*+,-*',%&.*&/.*01+,2$*',%&3 !"#$"%&'%()#&'*%+",-"$./ !"#"$%"&'()"$* !"#$%$&'( )"**'%+( ,'$-'+( ."%$&#'( !"##"/#%+( ,0#-%12"-#%3"2+( 456%$*7'+( 8'$9#:0/;'*+( <"60=>/;%$'*+(,%$/=%>/*2'+()'&"#+(?'##'#@ ,*&-./ A"*-"(%#-/3'(6#';"&"1*"(%(02("*-0&'(&'(-">"B>2"(!"#$%&'%(#)*+',#-(+.+&%/ CDEDFG+(#"%>/H%&'( 6'#(."%$&#'(!"##"/#%(%(6%#-/#(&'(;'$-'(&"(!"#$%$&'()"**'%(IJ(K"#L(M#/3/$%>(N/$$"#O(CFPEQG+( 6#';0#%$&'(&"2'$*-#%#(%(/$R"$-/R/&%&"("("56>'#%S7'(&%*(R9#/%*(;%2%&%*(*/3$/B;%-/R%*("(&'*( "*6%S'*(R%H/'*(C011(2'1//1&G(&%($%##%-/R%(6"**'%$%(6'#(6%#-"(&'(#"%>/H%&'#("(&'*(%#302"$-/*-%*( &'( B>2"+( $02%( >"/-0#%( 6#"&'2/$%$-"2"$-"( 6'>/-/H%&%( &'( ;'$-'+( 2%*( :0"( $7'( &"/5%( &" ":0%;/'$%#+("2(*/20>-T$"'+(%*(2U>-/6>%*(:0"*-V"*(:0"(">"($'*(6#'6V"@ 0*12/%3& !"#$%$&'( )"**'%+( WX'#-1*-'#L+( ."%$&#'( !"##"/#%+( WX'#-12'R/"+( 456%$*/'$+( 8'$%#;X/*-*+( <"60=>/;%$*+(,%$$/=%>/*2+()'Y"#+(?'##'#@ 45&6%"(6 Z$(-X/*(%#-/;>"+(%(*-0&L(/*(;'$&0;-"&('$(-X"(-">"B>2(3#41(5#-(+.+&%/#6+&&1( CDEDFG+(&/#";-"&(=L( ."%$&#'(!"##"/#%(=%*"&('$(!"#$%$&'()"**'%[*(*X'#-(*-'#L(IJ(K"#L(M#/3/$%>(N/$$"#O CFPEQG@(Z%/2*(-'(&"2'$*-#%-"(-X"(/$R"$-/R"$"**(%$&("56>'#%-/'$('\(-X"(R%#/'0*(*/3$/B;%$-(>%L"#*(%$&( "26-L(*6%;"*(C011(2'1//1&G(/$()"**'%[*($%##%-/R"(=L(-X"(&/#";-'#(%$&(*;#""$Y#/-"#*('\(-X"(B>2@( ]X"(%$%>L*/*(6#/2%#/>L(%&'6-*(%(6'>/-/;/H"&(/$-"#6#"-%-/'$('\(-X"(*X'#-(*-'#L(=0-(;'$;0##"$->L( ;'$*/&"#*(-X"(20>-/6>"(:0"*-/'$*(/-(6'*"*@ ^ !%;0>&%&"(&"(."-#%*+ _$/R"#*/&%&"(&'()'#-'@ Sampaio Um Jantar Muito Original [O] convívio, o prazer de bem comer em grupo, é menos inocente do que parece [...]; paira em volta da mesa uma vaga pulsão escópica: observa-se (espia-se) nos outros o efeito da comida, capta-se a maneira como o corpo é trabalhado de dentro. Roland BARTHES (1987: 225) A curta-metragem Um Jantar Muito Original (2021) realizada por Leandro Ferreira insere-se no âmbito do Projeto Trezes, uma parceria entre a RTP e a produtora Marginal Filmes para a realização de uma série de filmes a partir, ou de adaptação, de treze contos de autores portugueses dos séculos XX e XXI.1 A série iniciou-se na RTP em 11 de dezembro de 2020 e contemplou os seguintes contos e autores: “Fronteira”, de Miguel Torga (1907-1995); “A abóbada”, de Alexandre Herculano (1810-1877); “O tesouro”, de Eça de Queiroz (1845-1900); “O ódio das vilas”, de Manuel da Fonseca (1911-1993); “O rapaz do tambor”, de Fernando Namora (1919-1989); o conto popular “A pereira da tia Miséria”; “O lavagante”, de José Cardoso Pires (1925-1998); “Uma vida toda empatada”, de Mário de Carvalho; “Miss beijo”, de Lídia Jorge; “As cinzas da mãe”, de Cristina Norton; “A morte do super-homem”, de Rui Zink; e “O sítio da mulher morta”, de Manuel Teixeira-Gomes (1860-1941).2 Com argumento de Miguel Simal e de Leandro Ferreira, e com José Carlos de Oliveira como produtor, Um Jantar Muito Original é apresentado na tela como uma “adaptação cinematográfica” do conto homónimo de Fernando Pessoa / Alexander Search, com o título “A Very Original Dinner” (1907), e foi realizado por Leandro Ferreira.3 O ator Miguel Loureiro desempenha o papel de Sebastião Prositt (equivalente a Wilhelm Prosit do conto homónimo de Pessoa) e Tomás Alves desempenha o papel do Dr. Duarte Rodrigues (o equivalente, em traços largos, ao narrador, Meyer, da narrativa pessoana) e Beatriz Barosa no papel de Madalena (mulher que não consta do conto). Outros atores dão corpo às personagens do filme: Jorge Pinto, Rosa Bela, Miguel Sermão, Jorge Silva, João Cabral, João Santos Silva, Lourenço Henriques, Flávio Gil. A direção da fotografia coube a Guilherme Daniel e a banda sonora esteve a cargo de José Carlos de Oliveira e Ricardo Pugschitz de Oliveira. O telefilme é proposto como uma “adaptação” e não como uma inspiração do conto homónimo de Pessoa. Veremos que não obstante as diferenças de linguagem e de extensão, esta curta-metragem com a duração de 45 min. concretiza e dá visibilidade a alguns dos sentidos latentes no conto pessoano. Constitui per se uma Este artigo foi escrito no âmbito da investigação desenvolvida no Instituto de Literatura Comparada, Unidade I&D financiada por fundos nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia (UIDB/00500/2020 – https://doi.org/10.54499/UIDB/00500/2020). 1 Alguns trailers dos filmes, a lista dos respetivos realizadores e outras informações úteis estão disponíveis em https://www.marginalfilmes.pt/ 2 O argumento foi elaborado a partir da tradução do conto elaborada por Maria Leonor Machado de Sousa e publicada em 1978, em Fernando Pessoa e a Literatura de Ficção. 3 Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 313 Sampaio Um Jantar Muito Original interpretação pertinente e criativa da narrativa pessoana, iluminando as elipses e os espaços de indeterminação (na aceção de Wolfgang Iser), que constituem qualquer narrativa e iluminando, em sentido inverso, a riqueza do conto, assim como as múltiplas camadas geologicamente sobrepostas e o seu potencial hermenêutico.4 A introdução de um subenredo amoroso e de uma personagem feminina de relevo (Madalena), numa variação que Pessoa certamente repudiaria, traduz-se numa narrativa mais dinâmica e menos sombria, aberta ao Eros, que já em Brillat-Savarin é indissociável da comida. O filme acaba por ser um convite à revisitação desse conto pessoano de 1907, escrito em inglês, e que o autor retomou em 1915, ao traduzir o título para português. A corporalidade dos atores do filme – perante um conto com personagens escassas e quase incorpóreas, apesar da menção a 52 membros – dilui naturalmente a atmosfera de mistério e de indefinição da narrativa de Pessoa, tanto mais que o filme põe em relevo, ou desvela, pela explicitação e autocitação, alguns elementos significativos, como é o caso da recapitulação final dos indícios disseminados ao longo da narrativa. Fig. 1. Um Jantar Muito Original, adaptação cinematográfica do conto homónimo de Fernando Pessoa / Alexander Search. Estamos perante um filme político de terror, de um terror que vai além dos assassinatos que povoam o nosso imaginário e que amplia, quase no desfecho, o tema do canibalismo, quer pela duplicação do mesmo quer pela sua mostração visual, aqui numa associação triunfal entre conquista de poder e canibalismo. Esta é, decerto, uma das razões para o recurso a marcadores de ficcionalidade a abrir e a fechar o filme, encontrando-se também disseminados ao longo do mesmo através do O nosso entendimento do processo de adaptação, que tem sido objeto de várias reflexões teóricocríticas, está em sintonia com a aceção geral que dele tem Linda Hutcheon, tal como é discutido (e profusamente exemplificado) no livro A Theory of Adaptation. Citamos um trecho que oferece uma excelente síntese do pensamento da autora: “The adapted text, therefore, is not something to be reproduced, but rather something to be interpreted and recreated, often in a new medium. It is what one theorist calls a reservoir of instructions, diegetic, narrative, and axiological, that the adapter can use or ignore [...] for the adapter is an interpreter before becoming a creator” (HUTCHEON, 2013: 84). 4 Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 314 Sampaio Um Jantar Muito Original recurso à voz off do narrador. Não há (nem poderia haver) a habitual advertência, em jeito de legenda, de que qualquer coincidência entre os acontecimentos do filme e a realidade é pura coincidência, mas a abertura é metafílmica, na voz de um narrador (e personagem principal, como saberemos depois), que aqui é uma espécie de alterego do realizador-comentador. Respeitando a narrativa em flash-back de “A Very Original Dinner”, o filme abre com a cena final do conto, com a defenestração de Prosit, a criatura canibal inventada por Alexander Search, mas é de imediato suspensa pelo narrador, Duarte Rodrigues: “Perdoem-me! Mas não foi assim que aconteceu, talvez seja melhor recuarmos até ao início”. Fica congelada a imagem de um corpo a meio da janela de guilhotina da fachada de um prédio urbano (mas a imagem pairará na mente do espectador), e a história recomeça com promessa de desfecho alternativo, seguindo agora uma ordem cronológica. Na cena do fecho, há claramente a quebra da quarta parede, com o rosto do narrador a fitar o espectador. A introdução desse distanciamento de teor brechtiano, ou a violação dessa convenção teatral e cinematográfica na qual ancora a suspensão da descrença, pode ser explicada em função das cenas de canibalismo do filme, agora em dose dupla, mas diferentes na intensidade do efeito de horror provocado. Mesmo no final (aos 44 minutos e 26 segundos), a cena de uma cabeça servida numa bandeja – precedida por outra com caveira – e o ambiente de loucura e de total desregramento faz justiça literal à ideia de que em momentos revolucionários rolam cabeças, mas cria-se um efeito de surpresa quando percebemos que a personagem que mais simpatia granjeou do público, “o bom rapaz Duarte”, o noivo de Madalena, é a que leva a cabo, a solo, sem a motivação da vingança, o ato mais horrendo, numa superação incontestável do mestre. Outras explicações poderão ser adiantadas para a moldura metaficcional que a voz off do narrador ao longo do filme vai ativando, nomeadamente um certo princípio de decorum, decorrente do facto de o filme se destinar a ser visionado em ambiente familiar, privado, frente a um televisor e não numa sala de cinema. Para lá de ser uma adaptação do conto pessoano, o filme é claramente inspirado na História de Portugal, criando de imediato uma relação de familiaridade e de intimidade dos espectadores mais cultos com os acontecimentos narrados. O clima de euforia, de humor e de ironia, em diálogos plenos de vivacidade, bem como a relação amorosa entre Duarte e Madalena, não faz prever a festa de loucos do final. Ao nível simbólico, porém, a ideia de autofagia sociopolítica justifica-se plenamente. A abertura do filme leva de imediato o público para os inícios do século XX; lê-se: PORTUGAL 1907. AS IDEIAS REPUBLICANAS VÃO-SE IMPONDO E AS INSTITUIÇÕES MONÁRQUICAS COMEÇAM A SER ABALADAS. MAS A SOCIEDADE GASTRONÓMICA DE LISBOA RESISTE E APARENTEMENTE É UM DOS MAIS SÓLIDOS BASTIÕES DA MONARQUIA. Neste momento, a banda sonora do filme é o concerto para violino n.º 2, de Shostakovitch, o famoso compositor russo, cuja obra artística é indissociável de questões políticas e da história da União Soviética. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 315 Sampaio Um Jantar Muito Original Ficamos assim a saber, ainda antes de qualquer cena, que há, como diria Lawrence VENUTI (2001) a propósito da tradução em geral, um processo de domesticação do texto de partida, que se manifesta no transplante da ação da Alemanha para Portugal, com a ambientação da famosa Sociedade Gastronómica de Berlim – agora Sociedade Gastronómica de Lisboa – na capital portuguesa, no período conturbado que precede a implantação da República. Seguindo uma estética realista (de paredes meias com o surrealismo), a par da toponímia, também a onomástica será portuguesa, com exceção do nome do Presidente da Sociedade, Wilhelm Prosit, transformado no filme em Sebastião Prosiv (com dupla grafia da oclusiva final), o que acentua o seu estatuto de “estrangeiro” ou de outsider. A leitura politizada da narrativa (e que o conto permite) traduz-se numa capitalização do tema da rivalidade entre as duas fações políticas dominantes desse período crítico da história nacional, os Republicanos e os Monárquicos, e entre as duas maiores cidades portuguesas, Porto e Lisboa.5 Os rapazes do Porto – cuja pronúncia é uma marca identitária inconfundível – representam a fação republicana, as forças de renovação, numa alusão à revolta militar fracassada do Porto, em 31 de Janeiro de 1891, que traduzia o descontentamento da sociedade portuguesa e o sentimento geral de decadência nacional. A Sociedade Gastronómica de Lisboa representa, por seu lado, a fação monárquica, e as forças atávicas da tradição, concentradas sobretudo na figura de um General (o General Caeiro), orgulhoso da sua linhagem militar e dos seus nobres antepassados e com uma visão simplista da realidade (ainda que, paradoxalmente, aliada a teorias da conspiração). Um lapso na primeira tradução do conto pessoano (do original em inglês), em 1978, onde a expressão “fifteenth-century” é traduzida por “Quingentésima sessão”, é sabiamente explorada por Leandro Ferreira, ao colocar a personagem do General a evocar a expansão marítima portuguesa, contrapondo, com nostalgia, esse tempo míticohistórico de glórias lusas ao tempo de decadência do presente, num apelo a sentimentos nacionalistas. Os temas da decadência, da rivalidade, da traição presentes no conto pessoano – equacionadas, numa primeira leitura, num plano mais individual(ista) e, sobretudo, num plano artístico – têm agora uma cor acentuadamente política, com referência explícita a figuras históricas da fase final da monarquia, como João Franco [do Partido Regenerador] e o rei [D. Carlos]. No meio das duas fações, num lugar um tanto incerto, temos a figura algo ambivalente, mas central, do jovem Duarte Rodrigues (Dr.), pois integrando a tal Sociedade Gastronómica de Lisboa [SGL], e prestes a casar-se com a filha do General, considera que o tempo é de mudanças e que todos podem ser escrutinados. A sua A leitura política de A Very Original Dinner não será alheia aos estudos mais recentes – com destaque para os de José Barreto e os de Carlos Pittella – sobre os escritos políticos de Pessoa ao longo da sua vida, numa revisão radical da ideia de um Pessoa apolítico. De Barreto (ed.), veja-se, por exemplo, Sobre o Fascismo, a Ditadura Militar e Salazar (PESSOA, 2015). E sobre os poemas políticos de Pessoa escritos ainda em Durban, leia-se o ensaio de PITTELLA, “Chamberlain, Kitchener, Kropotkine—and the political Pessoa” (2015). 5 Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 316 Sampaio Um Jantar Muito Original fala não pode ser mais eloquente: “São tempos diferentes, hoje em dia as instituições já são questionadas. Todos estamos sujeitos a escrutínio. Até o Rei!”. Assim, não faltam referências ao clima explosivo dessa época pré-República e a sociedades secretas variadas, e há jantares e reuniões, que são o pretexto para sucessivas alianças e conspirações, numa comprovação da tradicional aliança entre Gastronomia e Política – de que é um excelente exemplo o episódio “In Which a Great Patriotic Conference is Holden”, do romance Little Dorrit (livro II), de Charles Dickens, um dos autores que também terá inspirado Fernando Pessoa. Como escreve Roland Barthes, no ensaio “Leitura de Brillat-Savarin”, uma sociedade Gastronómica é o lugar quase sempre privilegiado de uma prática comunitária de convivialidade e de conversação em grupo sobre os mais diversos temas – e este filme faz justiça a esta visão (BARTHES, 1987: 226). Mas a ruidosa Sociedade Gastronómica lisboeta surge no filme como uma camuflagem para uma organização profundamente conservadora, considerada como o “pilar da nação”, podendo eventualmente a Sociedade Zoológica e a Sociedade Agronómica, referidas em tom humorístico, serem alusões a muitas outras sociedades secretas da época (e poderíamos pensar na Maçonaria, na Carbonária, etc.).6 E surge também como o espaço natural de articulação entre a questão da originalidade em Arte – ponto de partida do conto pessoano – com questões políticas de liderança e de atentados ao poder (de microssociedades ou de regimes políticos). Assim, a cena inicial do filme introduz-nos no “Problema” –, o tema em debate na sociedade gastronómica para depois deslizar para a questão da originalidade em Arte, numa sintonia diegética e discursiva com a primeira parte do conto pessoano. O “Problema”, o gatilho para os conflitos internos, é o artigo do jornal “Gastronómica do Porto”, em que o Presidente Prositt é acusado de ser uma fraude e de a Sociedade que preside ser um “lupanar”, i.e., um atentado à boa reputação da Gastronomia. O General Caeiro não se furta às leituras paranoides desse período e verá nesse texto de imprensa uma ameaça indireta à Coroa e ao Império. Neste clima profano de conspiração, dilui-se a atmosfera de mistério em torno do indivíduo Prosit pessoano, assim como se atenuam as relações sugeridas no conto entre primitivismo e originalidade em arte e ainda a dimensão ritualística. Há a ideia de coletivo e de forças plurais, que levam a uma multiplicação de personagens Refira-se que não obstante alguns investigadores e gastrónomos (como José Quitério, por exemplo) considerarem que as sociedades gastronómicas em Portugal não tinham grande representatividade nesse período, havia, no entanto, uma que ficou célebre e associada à implantação da República: a Casa ou Clube dos Makavenkos, fundada/o em 1884. A este clube, responsável pelo livro editado em 1919, Memórias e Receitas Culinárias dos Makavenkos, pertenceram nomes importantes da sociedade lisboeta como Francisco Grandella ou Ferreira do Amaral. De acordo com fontes diversas, os primeiros Estatutos determinavam que o número de sócios não ultrapassasse o número 13 (o número de apóstolos da última Ceia, ou Ceia Mística). Há também referências a um mordomo e cozinheiro (entre outras funções), Josué dos Santos, célebre pelos espetáculos sensacionalistas e macabros que dava em feiras (usando esqueletos) antes de trabalhar no Clube dos Makavenkos. Sobre o assunto, veja-se (para lá de textos mais científicos) um artigo no Jornal Expresso (NATÁRIO, 2010). 6 Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 317 Sampaio Um Jantar Muito Original relevantes ao descentramento marcado da figura de Prosit / Prositt, relegado na maior parte das cenas para um segundo plano, pois o protagonista (na aceção etimológica da palavra) passa a ser o jovem Duarte Rodrigues (numa reinvenção de Meyer, o narrador pessoano) – e o big close up frontal da abertura e do desfecho não engana. O conto de Pessoa refere 52 convivas, mas, com exceção do Presidente, de Meyer e de um outro membro, as suas presenças são fantasmáticas e destituídas de voz. A redução no filme de 52 para 11 membros pode explicar-se historicamente em função das normas de algumas sociedades que estipulavam que não se ultrapassasse o número 13, ou cinematograficamente, pois o retrato hedonista do grupo, no recurso a planos de conjunto (e outros contíguos), não seria tão eficaz e tão apelativo. É, no entanto, interessante ver como um filme aparentemente tão diferente do conto de Pessoa está marcado pela presença do poeta. O universo pessoano (não apenas o conto) é citado das mais diversas formas. Atente-se nos nomes de algumas das inúmeras personagens do filme: o General Caeiro (70 anos), Sebastião Prosiv (55 anos), o Dr. Duarte Rodrigues (28 anos), Xavier (30 anos), o Engenheiro Peres (55 anos), O Dr. Bayard (50 anos), o Engenheiro Gouveia (45 anos), o Professor Alexandre (60 anos), o Professor Campos (50 anos), o Capitão Lencastre (40 anos), o Arquiteto Maia (55 anos), Madalena (20 anos), Clementina, a criada de Madalena (23 anos), Ezequiel (30 anos), o mordomo de Prosiv, as empregadas de mesa, as girls “à Moulin Rouge”, um negro referido como “Africano”. Já os nomes daqueles gastrónomos portuenses republicanos, Pereira Carvalho (28 anos) e Afonso Pinho (32 anos), editor e editor adjunto, respetivamente, da “Gastronómica do Porto”, parecem totalmente alheios à galáxia pessoana. A relação com Pessoa não se esgota na convocação da família heteronímica (associada aqui à monarquia, em conformidade com uma ideia dominante do poeta), mas está presente nas “interferências” de temas, motivos e títulos alusivos à obra pessoana em geral, como a Mensagem, o sebastianismo, o anti-catolicismo, a cidade de Lisboa (para referir os mais óbvios) – ou já derivados dessa obra, com relevo para o Filme de Desassossego, de João Botelho e para a estética deste cineasta. Não é de menosprezar também a eventual inspiração dos argumentistas, para a inserção de inúmeros trechos musicais de compositores clássicos do séc. XIX e XX, de Beethoven a Rachmaninoff, no filme operático Os Canibais, realizado por Manoel de Oliveira, a partir da novela homónima de Álvaro de Carvalhal.7 O desenlace do A indicação desta possível influência prende-se com a inferência, mais do que de factos ou de informações dos argumentistas, de que estes levaram a cabo uma exaustiva pesquisa quer sobre a época em que decorre a ação do filme (sociedades secretas, gastronómicas, conflitos políticos, etc.), quer sobre a obra pessoana em geral, para lá de uma leitura atenta do conto pessoano, que poderá tê-los conduzido à novela de Álvaro Carvalhal (que surge referido no estudo de Maria Leonor Machado de Sousa, em 1978) e ao filme de Manoel de Oliveira. De resto, não faltam, nos séculos XX e XXI, filmes que vinculam a gastronomia (e os seus excessos) ao capitalismo e ao fascismo: La Dolce Vita (1960), dirigido por Federico Fellini; El ángel exterminador (1962) e Le charme discret de la bourgeoisie (1972), 7 Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 318 Sampaio Um Jantar Muito Original filme em estudo pode levar-nos mesmo ao conto fantástico de Carvalhal (de 1868) onde, numa reviravolta final, as personagens rapidamente recuperam do horror de se saberem quase-canibais (quase, pois comeram uma estátua, não um ser humano), perante a ideia da fortuna que vão receber. Também as personagens no filme de Leandro Ferreira, ao contrário do que acontece no conto de Pessoa, nos vão surpreender num ato final e apoteótico de canibalismo voluntário e consciente – depois do canibalismo involuntário e inconsciente –, que se traduziu no assassínio e deglutição de Prosiv. A supressão do desfecho (falsamente?) moralizador e judicialista do conto de Pessoa – que nos leva a reexaminar o ethos do narrador e a sua relação com o Presidente – não elimina a vertente satírica da história, mas poderá levar alguns espectadores a interrogar-se sobre a gratuitidade das cenas. A maior divergência em relação ao conto de Pessoa – que pode dever algo ainda a Os Canibais, novela ou filme – diz respeito à introdução de uma personagem feminina na história (para lá das mulheres que animam os jantares), pois em nada conforme à representação das sociedades masculinas do seu imaginário (como aquela de que Pickwick faz parte). Embora Madalena não integre a SGL, e se mova nas suas margens, estamos perante uma personagem atenta a tudo e que desempenhará o papel de protetora e salvadora do noivo. Madalena (com 20 anos) é uma figura de mulher em conformidade com um certo espírito revolucionário dos primeiros tempos republicanos: é uma mulher pertencente a uma classe privilegiada e, aparentemente, filha obediente, que toca piano a pedido do pai (o General Caeiro, com 70 anos), mas provoca-o e confronta-o sempre que pode. Tem algo da rebeldia (sem os vícios) das filhas do velho General Sternwood, de The Big Sleep, de Raymond Chandler. Mas é, sobretudo, uma mulher aberta a novos rumos artísticos e políticos, a experiências amorosas de risco, e que, no papel de uma espia caseira, salvará Duarte de um golpe de traição planeado pelo General. Os argumentistas constroem a personagem de Madalena à imagem das “novas” mulheres do tempo da República (jornalistas e intelectuais), que lutaram pelos direitos da mulher. Na relação com o noivo, Madalena é coquete, sedutora, mas quando este lhe pergunta se ela quer ser a sua musa, Madalena responde evasivamente a uma questão que a relega para um papel tradicional e passivo e reclama um papel ativo: “Quero levá-lo a essa excelência que tanto procura”. Madalena é também o pretexto para um tratamento mais desenvolvido do tema da Arte e da originalidade em Arte aflorado na cena inicial. Recorde-se que equacionada a questão política que dominará o filme, a partir do mote dado para a conversação, i.e., do “Problema”, o general lança o tema da originalidade em arte, a que se segue o famoso convite de Prosit(t), feito no recurso ao texto pessoano ou com pequenas variações do mesmo, com multiplicação de indícios conducentes à decifração ambos dirigidos por Luís Buñuel; La Grande Bouffe (1973), de Marco Ferreri; Salò o le 120 giornate di Sodoma (1975), de Pier Paolo Pasolini. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 319 Sampaio Um Jantar Muito Original do enigma: “A originalidade do jantar... Não está no que vai parecer que está a ser servido nos vossos pratos, mas naquilo que significa, no que contém. O repto que vos lanço, é que, depois de terminado, me digam em que medida ele é original. Garanto que ninguém vai adivinhar...”. Os argumentistas reforçam o tratamento do tema artístico num episódio extra, acrescentado ao conto, que poderá parecer lateral, mas que é bem conseguido e que aglutina Poder, Arte, Gastronomia e Erotismo. E ainda Religião, em modo parodístico, através de elementos mínimos que acabam por funcionar como citações da paródia eucarística que tem lugar no conto “A Very Original Dinner”. Adiante-se já que a apresentação, mesmo no fim do filme, da cabeça de Prosiv numa bandeja, traz à memória o episódio bíblico da decapitação de São João Batista, a pedido de Salomé – imagem que poderá levar-nos a vislumbrar em Madalena uma adjuvante ou seguidora de Duarte. Neste quadro, o próprio tema político da traição política do filme não exclui alusões ao tema bíblico da traição na última Ceia de Cristo. Retomando o papel de Madalena no filme, referíamos o episódio em que que o jovem Duarte, na cozinha da sua casa, ensina à noiva (Madalena) a arte de cozinhar, ou melhor, a arte de partir ovos com a mestria e a destreza necessárias – indício do engenho que mais tarde evidenciará, ao destronar Prosiv. Talvez as expectativas do espectador (de um espectador do século XXI) de um rendez-vous explicitamente sexual possam sair sido goradas, mas a opção pelo erotismo conjuga-se na perfeição com o tema da gastronomia. Num longo diálogo pregante de segundos sentidos, Madalena começa por dizer a Duarte: “Sinto que estamos numa situação sacra... Devo ajoelhar-me?”. Noutro momento, afirma: “Eu não digo, fala de comida como um verdadeiro artista fala da sua obra”. Sendo erótico, o discurso é ao mesmo tempo um discurso de poder e não apenas sobre o poder, e o diálogo entre ambos é sintetizado por Duarte, quando sentencia: “Também aqui temos que saber domar os alimentos... Cada um tem vida própria, como um animal selvagem”. Ou noutra fala mais explícita na crítica política: “Para se mandar, é preciso primeiro saber fazer. É o mal de muitos líderes hoje em dia. Limitam-se a falar, mas não se comprometem com o que dizem”.8 Madalena reforçará esta visão do mundo assente em forças de conflito e de poder, quando refere o micro-poder exercido na esfera doméstica: “O papá dá ordens à nossa cozinheira. Não é como o Duarte, o Duarte experimenta, suja as mãos”. Noutro momento, Madalena pergunta a Duarte: “É isso que quer ser? Um líder? Achei que tivesse alma de artista...”. Ao que este contra-argumenta: “Não se pode querer ter os dois mundos?”. Duarte Rodrigues é um homem para quem a praxis está acima do discurso e de quaisquer valores ético-morais – situa-se, por isso, nos antípodas de figuras como Hamlet. Este comentário da personagem também pode ser lido como uma marca de auto-reflexividade e de auto-crítica dos adaptadores da excessiva verbosidade das personagens do filme. 8 Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 320 Sampaio Um Jantar Muito Original Fig. 2. Um Jantar Muito Original, adaptação cinematográfica. Madalena e Duarte Rodrigues. Sendo um episódio pleno de indícios, que deixa ver as ambições de Duarte, num prenúncio do que sucederá mais tarde, é também aquele em que se equaciona uma questão latente no conto pessoano: a da compatibilidade, ou não, entre Arte e Política, i.e., da sintaxe possível entre as duas atividades (não apenas em termos figurados). Ou seja: poderá um político ser artista e vice-versa? Numa leitura carnal (no sentido de KERMODE, 1979), poderá simplesmente estar em causa a designação de Arte aplicada à gastronomia. Mas, uma das cenas mais espetaculares do filme, em termos visuais e sonoros, parece responder a esta questão. Trata-se do longo desfile de pratos requintados, sob a direção do mordomo Ezequiel, no sumptuoso banquete oferecido por Prositt aos comensais. Os argumentistas preenchem a elipse no conto pessoano com criatividade e imaginação, num apelo aos sentidos do próprio espectador, e conseguem a proeza de evitar que a gastronomia seja subsumida na densa matéria histórica e política do filme, sem nunca a perderem de vista. A escolha da célebre Marcha Radetzky, de Strauss I, dá o tom festivo e de fausto e deixa no ar a nota política e militar presente na sua génese. Já na cena do restaurante, onde Prositt faz o famoso convite aos rapazes do Porto, os crepes flamejantes da entrada dão o mote para as palavras inflamadas do diálogo. Nunca a gastronomia como fonte de prazer e de diversão é descurada. Assim, a mesa gigante (que “vem” do banquete pessoano) é axial e quase personagem em momentos-chave da história, e a arte da Gastronomia (conhecimento e património cultural) é relembrada na oferta do livro sagrado de todos os gastrónomos por parte de Prositt a Duarte: De Re Coquinaria.9 Passagem de testemunho, decerto. E, quiçá, mensagem cifrada sobre a traição de que será alvo. Ou Ars Magirica, ou Apicius Culinaris. Trata-se de um compêndio de receitas culinárias da Roma antiga, escrito em latim e que é atribuído a Marcus Gavius Apicius (25 a.C. – 37 d.C.). 9 Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 321 Sampaio Um Jantar Muito Original Fig. 3. Um Jantar Muito Original. Chegada dos convivas da Sociedade Gastronómica de Lisboa. Todo o clima conspirativo de inícios do século XX é objeto de um tratamento cinematográfico exemplar, com cuidada planificação e excelente fotografia, quer nas cenas rodadas no exterior quer nos interiores de mansões e de um restaurante. Os marcadores espaciotemporais (o cronótopo), que deixam antever uma aturada pesquisa arqueológica, são dados não só discursivamente (através de longos diálogos), mas também de forma discreta através de adereços como a moda feminina e masculina (bengalas e chapéus), do mobiliário, da grafonola, dos candeeiros de gás ou da charrette nas ruas de Lisboa. A origem asiática (i.e., não europeia) e a marca da pirataria sugerida por Pessoa, do criado negro de Prosiv, (Ezequiel) é sugerida através de um simples brinco em argola, que contrasta com os lenços e gravatas dos comensais. Por sua vez, a penumbra, as velas (os jogos de luz e de espelhos como em Pessoa), os sussurros das vozes, as missivas secretas, os diálogos saturados de múltiplos sentidos, criam um efeito de mistério que se vai adensando no decurso da história. Na rua, o pesado nevoeiro noturno e as deslocações das personagens dão uma nota messiânica que parece estar ausente do conto. Também a banda sonora é criteriosamente escolhida a partir de um repertório clássico que inclui peças alusivas aos tópicos da traição e da conspiração, de que a ópera Julius Caeser (HWV 17: I Overture), de Handel é o melhor exemplo. Outras peças, como as de Débussy e Beethoven, são utilizadas ora como narrativa paralela (apreendida pelo espectador culto), ora como coro, ora ainda como forma de caraterização de uma dada personagem (a irreverência de Madalena e os atos de provocação da figura paterna surgem associados à música de Debussy). Por outro lado, insinua-se subliminarmente, ou de forma explícita, (mesmo que seja apenas a nível temático), através de peças como “Danse Macabre” de Liszt ou a “A ilha dos mortos”, Poema sinfónico Op. 29, de Rachmaninoff, a relação entre Música e Poder, entre Música e Violência/Morte. O recurso frequente ao plano picado, entre outras razões, conjuga-se com a ideia de uma história que se inicia in ultima res e que é a versão de um único narrador, o vencedor, aquele que se impôs a todos pela astúcia, inteligência e perversidade. De certo modo, Duarte Rodrigues representa aqui Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 322 Sampaio Um Jantar Muito Original o papel dos deuses greco-romanos – não do Deus católico – que manipula(m) as suas criaturas para atingir os seus fins. Distanciamo-nos neste ponto do perfil enigmático do narrador pessoano e da imagem de vítima que transmite, mas as ligações ao conto manifestam-se ainda na questão colonial. Em sintonia com esse viés histórico-político dos argumentistas, verifica-se no filme uma amplificação deste tópico pessoano – a justificar a leitura pós-colonialista que dele esboçou o crítico David JACKSON (2010), em Adverse Genres –, uma mesma atribuição da fortuna do Presidente à sua vida, igualmente obscura, passada em África (em Pessoa alarga-se o espaço à Índia e a outras colónias europeias), um mesmo recurso a “africanos” ao serviço de Prosit(t) para levar a cabo os seus planos macabros. Um será Ezequiel, mordomo para todo o serviço, e um outro, o cocheiro (que não passa de um vulto), é referido apenas como o “Africano”, sendo, aparentemente, o responsável pelo rapto e homicídio dos rapazes do Porto. O filme reproduz os preconceitos da época em relação a África e presentes no conto “A Very Original Dinner”: o continente onde se fazem fortunas de qualquer maneira; o General falará de África como um lugar onde se passam coisas inomináveis, sendo Prosiv considerado um “emergente”, ou intruso, devido ao seu passado obscuro e à riqueza acumulada, não ao sangue azul e aos pergaminhos. Ironicamente, o nome próprio de Prosiv, Sebastião, ativa o mito do sebastianismo, o que permitirá ao espectador levar mais longe as interpretações políticas do desenlace (e a personagem Madalena, com os seus presságios, poderá levar-nos a uma D. Madalena histórica, ligada ao nome de Frei Luís de Sousa10). Num momento de charneira e de crise da História portuguesa, entre a monarquia moribunda e o advento da República, Duarte Rodrigues, um independente, comete o maior de todos os crimes: a destruição do mito português da salvação. Ou, talvez, noutra perspetiva: insufla-lhe vida, ao incorporá-lo literalmente no sangue e corpo dos comensais monárquicos. Muitas poderão ser as leituras de um final, que não deixa de surpreender até pela escolha da banda sonora, o Hino à Alegria, ou a Nona Sinfonia, de Beethoven – o que soará a muitos como mais uma forma de perversidade.11 É curioso verificar como os argumentistas nunca perdem de vista o conto pessoano, pelo que parece justificada a ideia de adaptação. Convocando de novo as teorias da tradução, e em jeito de recapitulação e síntese, poderíamos recorrer à tipologia de Antoine BERMAN (2001), exposta em “Translation and the Trials of the Foreign”, para descrever as transformações operadas num texto no trânsito de uma língua para outra, neste caso, da linguagem verbal para a linguagem cinematográfica, Atente-se nas palavras de Madalena: “Não percebe que já tem? Não há nada para provar Duarte, tudo o que precisa é cozinhar... para mim... Esqueça o Prositt, o meu pai, a maldita monarquia e essa sua prometida república. Partimos, só os dois... Esqueça-os todos”. 10 Na história do cinema, encontramos no filme Orange Clock (1971), dirigido por Stanley Kubrick, uma perturbadora associação, na figura do protagonista, Alex DeLarge, entre a Nona Sinfonia e os temas da perversidade e da violência. 11 Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 323 Sampaio Um Jantar Muito Original num processo de inter e de transmedialidade com alterações necessárias. Dos doze tipos enumerados, os três primeiros revelam-se de grande utilidade neste estudo: a expansão, a clarificação e a racionalização. Escreve BERMAN: “Rationalizing and clarifying require expansion, an unfolding of what, in the original, is ‘folded’” (2001: 282). A expansão verifica-se no filme quer no plano diegético (como vimos) quer no plano temporal, através da dilatação do tempo da narração. O filme não poderia manter a sobriedade e a contenção dos processos narrativos de um conto, qualquer que ele fosse. Em vez da intriga una e da concentração de elementos diegéticos que conduz rapidamente ao desenlace, há aqui um desdobramento (unfold) em cadeia: de lugares, de tempos, de banquetes e intrigas políticas. Algo análogo, mas apenas parcialmente, ao processo de mise en abyme – pois haverá também a via da bifurcação do enredo (como a abertura logo anuncia), conduzindo à multiplicação de episódios. Assim, há cenas interiores e há cenas de exterior com as ruas e o nevoeiro; há dois banquetes finais sob o mote da originalidade; há o confronto exógeno entre Monárquicos lisboetas e Republicanos portuenses e há golpes palacianos vários no interior da Sociedade Gastronómica de Lisboa, nomeadamente, a conspiração endógena para destituir o Presidente e eleger (numa eleição de farsa) o jovem Duarte, com a intenção de o destituir a breve prazo; há o confronto entre velhos e novos e o confronto entre o Mestre (Prosiv) e o discípulo (Duarte), num ato de traição anunciado ou revelado por este último, em jeito de fair-play. Após a questão da rivalidade entre republicanos e monárquicos, e entre Porto e Lisboa, instaura-se a partir de dado momento o conflito no interior da Sociedade Gastronómica entre forças conservadores e forças de inovação no confronto de Duarte com duas figuras paternas (que o disputarão): a de Prositt (passado) e a do General (e futuro sogro). Regista-se então uma bifurcação no enredo: o jovem membro da SGL, mas considerado demasiado “radical” pelos mais velhos, matará os pais, um, de forma literal e horrenda, outro de forma simbólica. Duarte prova ser o líder, ao abalar as estruturas hierárquicas de poder e ao fazê-lo sem ajudas externas (do Africano ou de outros). Este confronto entre velhos e novos, que permite a leitura psicanalítica, está presente no conto de Pessoa, mas adquire aqui outras proporções e significados. No final, Duarte Rodrigues poupará ao espectador um trabalho de reconstrução da diegese, quando procede à recapitulação (excedentária, reconheça-se) de frases e imagens que eram óbvias pistas de leitura: Eles vão sentir na pele o jantar que lhes preparo! Vão estar presente no meu jantar em carne e osso. Ezequiel e outro homem africano a saírem do nevoeiro. Prositt para Pereira Carvalho: essa sua gravata é um luxo de bom gosto. Neste aspeto, o filme parece não fazer justiça à dimensão enigmática e de jogo inscrita no conto e que o epíteto de “joker” (Prosit), no seu duplo sentido, acentua. Exige-se, é certo, menos do espectador do filme do que do leitor do conto. Mas a Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 324 Sampaio Um Jantar Muito Original sombra do homo ludens não se dissipa neste trânsito da palavra para a imagem. Os jogos perigosos não faltam e Duarte Rodrigues, que joga a última cartada de forma apoteótica. Os argumentistas – leitores em demanda de múltiplas e diversas camadas de “A Very Original Dinner” – um misterioso conto, que continua a sê-lo e parece ter sido descoberto por artistas nacionais e internacionais em pleno século XXI.12 Fig. 4. Um Jantar Muito Original. A cabeça de Sebastião Prositt. Refiro-me à adaptação teatral que dele foi feito pela encenadora austríaca Alex Riener e apresentado no Teatro Nacional D. Maria II, em 11 julho de 2010, e a um jantar encenado, em 2020, no Espaço Brotéria (sempre com título homónimo), com supervisão artística de Albano Jerónimo, no âmbito de MOTEL/X, Festival Internacional de Terror de Lisboa. 12 Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 325 Sampaio Um Jantar Muito Original Bibliografia BARTHES, Roland (1987). “Leitura de Brillat-Savarin”. O Rumor da Língua. Lisboa: Edições 70, pp. 223-236. BERMAN, Antoine (2001). “Translation and the Trials of the Foreign”. The Translation Studies Reader, Lawrence Venuti (ed.). New York & London: Routledge, pp. 276-289. CARVALHAL, Álvaro (1978). Contos Frenéticos. Lisboa: Editora Arcádia. HUTCHEON, Linda (2013). A Theory of Adaptation. London & New York: Routledge. 2.a ed. JACKSON, Kenneth David (2010). “Cannibal Rituals: Cultural Primitivism in ‘A Very Original Dinner’”. Adverse Genres in Fernando Pessoa. Oxford: Oxford University Press, pp. 28-36. KERMODE, Frank (1979). 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Tese de mestrado em Estudos Anglo-Americanos sobre Ezra Pound (Universidade de Coimbra) e doutoramento em Literatura (Literatura Comparada), na Universidade do Porto, com a tese História Crítica do Género Policial em Portugal (1870-1970): Transfusões e Transferências, 2 vols. Áreas de investigação: Literaturas em Língua Portuguesa (séculos XX e XXI), Tradução e Cultura / Interculturalidades, Modernismos, Literatura Policial / Criminal, Cânone vs. Não Cânone, Censura. MARIA DE LURDES SAMPAIO is Professor at Faculdade de Letras of the University of Porto and researcher of Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa (ILCML). She holds a MA on Anglo-American Studies (about Ezra Pound) from University of Coimbra and a Ph.D. (Comparative Literature) from University of Porto (dissertation: História Crítica do Género Policial em Portugal (1870-1970): Transfusões e Transferências). Areas of research: Portuguese-language literatures (from 19th to 21st cent.), Translation and Culture / Interculturalities; Modernisms, Detective / Crime Fiction, Canon vs. Non-Canon, Censorship. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 327 !"#$%&% "!#$%!&'(!)*+,#'(!-*#./.01.'( &,!2,1)')&*!3,((*' !!"#$%&% #$"%&'"(#)&%"*+ ,'-$.$/*"0'11*.21"/'%'3%#4'"+#3%#*$5 !"#$%&'()$*+,$"#+'&!"#"$%"&'()"$* "#$%&%'(! )#**(&+ ,-%#.&+! )#'$(! /&$#0&+ !" #$%&%+! "-123(! )(0-1-&0+! 4(5#0&*! )(0-1-6$-&*+! 7-8#$&89$&!)($89:9#*&; ,*&-./ <!(=>#8-5(!.&-*!&.?0( '#*8#!&$8-:(!@!(A#$#1#$!9.&!?(**B5#0!$#*?(*8&!?&$&!&!&?&$#%8#!&9*C%1-&! '#!.&$1&*!'#!&98($-&!#.!&$:9.#%8(*!?&$&!A-0.#*!#*1$-8(*!?($ "#$%&%'(!)#**(&;!D#%'(!1(.(! A(1(!E4(8#!A($!&!8F$-00#$+!($!A-0.G+ &'&?8&'(!?($!)#'$(!/&$#0& #. !"#$%&%+!19$8&H.#8$&:#.!'#! IJIK+! &?$#*#%8(! 9.&! &%60-*#! #.! 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Tal definição, propositada e estrategicamente ambígua, eficiente para atrair a atenção do grande público e dos clientes ou futuros clientes da companhia de telefonia, não pode ou deve ser lida em um sentido literal. Deve-se, sim, atentar que o curta escrito e dirigido por Pedro Varela a partir de um dos argumentos para filmes de Fernando Pessoa foi, na verdade, escrito – e em certo sentido dirigido – a (pelo menos) quatro mãos, como acontece, aliás, em diferentes proporções, com a adaptação de qualquer obra (literária) para o cinema. Num certo sentido, como grande parte da obra editada do próprio Fernando Pessoa. É preciso ressaltar que não há qualquer tom de crítica nessa observação. Tampouco percebo como problemático o realizador ter lido o argumento pessoano a partir do seu conhecimento da obra do autor; isso passa por uma dimensão extremamente pessoal, como não poderia deixar de ser. Nos limites deste artigo, mais produtivo do que reconhecer o entusiasmo e a responsabilidade envolvidos na “possibilidade de ‘bater bola’” com Pessoa, como o faz Varela (apud MELLO, 2021a: 105), é questionar que Pessoa foi esse o do realizador. É, no entanto, o próprio Varela quem insiste na possibilidade de ser fiel, de alguma forma, ao argumento em que se baseia O Ídolo: “Fazer justiça ao que Pessoa teria na sua intenção original, foi o meu único objetivo” (apud MELLO, 2021b: 201). Ora, questiono-me se uma outra afirmação do realizador, em tom categórico, não pode surpreender, tendo em conta que, pelos documentos de que dispomos até o momento e pela diversidade dos “formatos” dos argumentos para cinema de Fernando Pessoa – num sentido experimental do termo –, é possível cogitar que nem mesmo Pessoa teria tido uma resposta tão certeira: “Eu mostrei a eles e eles ficaram todos felizes porque estavam com muito medo de que o Fernando Pessoa fosse atrair uma narrativa lenta, contemplativa, profundamente profunda. Eu sabia bem qual era o cinema [...] que Pessoa estava a descrever para a Ecce Film” (apud MELLO, 2021b: 190; itálicos meus).1 é o nome de uma possível produtora cinematográfica concebida por Pessoa, para a qual, além de ter feito esboços de logotipo, o autor havia determinado um endereço exato. Segundo Patricio 1 ECCE FILM Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 329 Schincariol O Ídolo à luz das novelas policiárias Como quem talvez pretendesse relativizar a autoria do curta-metragem, Marcelo Cordeiro de Mello observa que: O Ídolo é um thriller policialesco que, embora se mantenha fiel ao espírito do texto pessoano, ao desenvolver a ideia embrionária deixada no argumento, precisou recorrer a boa dose de invenção, o que em alguns casos significou contradizer o argumento para melhor conformálo à sua essência, afinando-o também ao estilo criativo do próprio Varela. (MELLO, 2021b: 180) São várias as questões levantadas por essas considerações: “policialesco” definiria somente O Ídolo, ou também “Note for a thriller, or film”, argumento em que o curta se baseia? Deve-se, aqui, atentar que nem todo “thriller” é necessariamente um híbrido do gênero policial. O que significaria, em termos mais concretos, “espírito do texto pessoano”? Que particularidades – ou limitações – do argumento em questão teriam tornado necessário que se recorresse a “boa dose de invenção”? Nesse sentido, de que fontes ou referências viria a inventividade de Varela ao preencher as supostas lacunas do argumento original? Mais ainda, e englobando todas essas questões, como seria possível contradizer um argumento criado por determinado autor para melhor conformá-lo à essência de um filme – que, como vimos há pouco, pretende ser fiel à ideia original desse autor – e ao mesmo tempo afiná-lo ao estilo criativo de um diretor que pretendesse adaptá-lo? Temos aqui algumas questões que nortearão a discussão que se segue. Não pretendo, com isso, questionar o valor ou a pertinência das observações que acabamos de acompanhar. Deve-se mencionar, aliás, que Mello dedicou anos ao estudo dos argumentos para filmes de Pessoa, tendo a oportunidade de entrevistar Pedro Varela e, com isso, acessar detalhes ou nuanças de sentido que nem sempre se traduzem na transcrição de uma entrevista. Assumindo estrategicamente uma posição mais distanciada, atento à tensão entre respeitar e alterar o argumento de Pessoa, tensão essa que também transparece na dificuldade em tratá-lo de forma mais objetiva ou assertiva, dificuldade que é suavizada, como procurarei mostrar, quando se atenta para a estética com a qual os argumentos pessoanos dialogam, e a partir qual ganham (um novo) sentido. Ao se acompanhar o processo de adaptação envolvido na realização de O Ídolo, tendo como principal referência a entrevista concedida por Varela a Mello, percebe-se, da parte de ambos, uma intenção, consciente ou não, de promover fluência entre o curta-metragem – e, num outro nível, o argumento original – e a vida e a obra de Fernando Pessoa. É o que se verifica, por exemplo, nas seguintes passagens, que, apesar de constituírem um conjunto um tanto extenso, são de leitura imprescindível para que o presente artigo se desenvolva com mais clareza. FERRARI e Claudia J FISCHER, não se sabe se a ECCE FILM envolveria, necessariamente, a produção, a distribuição e a exibição de filmes (2011: 30). Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 330 Schincariol O Ídolo à luz das novelas policiárias Embora seja um thriller – portanto um filme cuja linguagem está bastante distante de cinemas considerados “poéticos”, por exemplo, os de Bergman, Tarkóvski, Antonioni ou Kieslowski – há em O ídolo diversos acenos à obra e à vida de Pessoa. O filme se inicia com o traçado da caligrafia da carta de Albert Soares que, numa metáfora visual poética, alude ao sinuoso desenho da estrada de Sintra: o espectador familiarizado com a poesia pessoana pensará imediatamente em Álvaro de Campos “Ao volante do Chevrolet pela estrada de Sintra”. Naturalmente, o nome do personagem Albert Soares – autor da carta – é uma fusão entre os nomes dos heterônimos Alberto Caeiro e Bernardo Soares. O topos da escrita epistolar também remete a Pessoa, que não apenas foi autor de uma profícua e interessante correspondência, mas que também fez do tema das cartas um assunto recorrente em sua poesia: “Todas as cartas de amor são ridículas”. (MELLO, 2021b: 184) Chama a atenção, logo de cara, o fato de o diretor ter escolhido fazer um filme de época – o que, naturalmente, contrasta com o fato de as filmagens terem sido realizadas com câmeras de telefones celular [sic] de última geração: esta tensão entre moderno e arcaico, aliás, é bem pessoana, e aparece, por exemplo, na oposição entre os heterônimos Álvaro de Campos (com suas odes futuristas) e Ricardo Reis (com sua poesia de inspiração romana). (MELLO, 2021b: 187) Os escritos de Pessoa para o cinema são praticamente todos calcados na ideia do falso e do fingimento – um dos temas mais importantes e definidores da obra do “poeta fingidor” Fernando Pessoa. (MELLO, 2021b: 193) Observa-se que a forma como o espectador interpreta cada personagem vai sofrendo mudanças ao longo do filme, o que remete às metamorfoses pessoanas, tanto nas diferentes maneiras como sua obra foi, é e será lida, quanto no jogo de simulação e despersonalização em que o poeta se transforma em seus heterônimos. (MELLO, 2021a: 103) Na altura em que Pessoa concebe seus thrillers marítimos, já existem filmes inspirados no acidente do Titanic, em 1912: é o caso de Atlantic (1929). Não deixa de ser irônico que, bem mais tarde, em 1997, o filme marítimo Titanic seria um dos maiores sucessos de bilheteria da história do cinema – o que mostra que Pessoa teria tido uma intuição correta ao escolher o cenário marítimo para o cinema comercial que idealizou. (MELLO, 2021a: 104) Das palavras de Mello podemos passar às de Varela: O cinema sendo um media das histórias, e ele [Pessoa] sendo um homem que criava histórias, ele pensou talvez: “Eu sei fazer isso. Eu posso vir a fazer isso. Eu posso fazer filmes. Eu posso fazer histórias, porque isso é o que eu faço”. Ele criava personagens, não é? Os heterônimos dele não são mais do que dezenas de personagens que ele cria. Nós fazemos isso no roteiro. Você abre o roteiro, você cria personagens, e tem que buscar a voz para cada um deles. Então eu acho que ele se sentiu [...] vocacionado a querer fazer isto (apud MELLO, 2021b: 191) Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 331 Schincariol O Ídolo à luz das novelas policiárias Podemos certamente ler a frase final de O ídolo pelo prisma da poesia pessoana: “Somos todos vítimas de nós mesmos, dos nossos vários eus”. Esse é talvez o mais evidente aceno a Pessoa. (apud MELLO, 2021b: 85) É preciso atentar que nem todos os elementos identificados como pessoanos nas passagens que acabamos de citar encontram-se em “Note for a thriller, or film”. É o caso, por exemplo, da mencionada carta de Albert Soares e da cidade de Sintra. Quanto aos demais, é necessário questionar se seriam tão claramente identificados como pessoanos caso o argumento em questão não tivesse sido assinado por Pessoa e, num caso ainda mais extremo, se não fosse certo que pertencessem ao espólio do autor.2 O que há, mais do que marcas de autoria evidentes, é um elemento comum: o diálogo com a estética da ficção policial.3 Como será possível acompanhar mais à frente, trata-se, especificamente, da tradição das narrativas detetivescas do tipo enigma ou whodunit, comumente associadas à chamada Golden Age of Detective Fiction (anos de 1920 e 1930). De modo assumidamente provocador, defendo que os argumentos para filmes escritos por Fernando Pessoa poderiam ter sido escritos – como planos para narrativas policiais / detetivescas – por qualquer autor dessa mesma tradição. E não se dá ao acaso que é com essa mesma tradição que Pessoa dialoga ao escrever suas novelas policiárias e ao tecer considerações teóricas sobre o gênero no ensaio Detective Story.4 No contexto do presente artigo, sempre que me referir, de modo geral, aos argumentos para cinema escritos por Fernando Pessoa, terei em mente “Note for a thriller, or film”, “Note for a silly thriller. | or for a film” e “Half plan of play or film”, publicados em Argumentos para Filmes (PESSOA, 2011). Por meio de esta publicação, pode-se ter acesso aos escritos pessoanos relacionados ao cinema. Além dos próprios argumentos, incluem-se apontamentos críticos e/ou biográficos sobre cinema, projetos em que de alguma forma o cinema está envolvido, além da correspondência em que se faz menção ao cinema. Em anexo, na mesma edição, encontra-se ainda documentação sobre cinema na Biblioteca Particular de Fernando Pessoa, como títulos de livros, artigos e resenhas, filmes anunciados em jornais, e os números da revista presença em que Pessoa publicou e em que se faz alguma referência ao cinema. 2 A expressão “ficção policial” traduz normalmente o conceito mais geral de “crime fiction”, gênero em que a figura do detective, ainda que comumente subentendida, nem sempre é primordial, ou mesmo presente. No escopo deste artigo, ao tratarmos da discussão teórica sobre o gênero policial desenvolvida por Fernando Pessoa, “ficção policial” corresponde à noção mais particular de “detective fiction”, rigorosamente utilizada para a ficção policial em que a figura do detetive é central, como é o caso das séries Byng e Quaresma, e também da tradição britânica com a qual Pessoa dialoga. 3 Novelas policiárias refere-se exclusivamente à literatura policial escrita por Fernando Pessoa, independentemente do detective ou investigador que se tenha em consideração. Como explica Miraglia, a designação “novelas policiárias”, ausente dos textos teóricos de Pessoa sobre a ficção policial e que substitui o sintagma “romance policial”, aparece num artigo publicado na revista Fama, em março de 1933. Nele, Pessoa traduz assim “detective stories” e com referência a Chersterton (MIRAGLIA, 2018: 411-412). Não faz parte deste artigo uma discussão sobre os subgêneros no universo do que se poderia chamar, em termos mais abrangentes, de gênero policial. Refira-se ainda que nos argumentos para filmes escritos por Pessoa, “thriller” é um termo usado de forma solta e um pouco descompromissada, referindo-se possivelmente aos momentos de tensão ou aos “twists” das narrativas. 4 Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 332 Schincariol O Ídolo à luz das novelas policiárias Ler os argumentos de Pessoa sem que se os desvincule do seu interesse pelo gênero policial, da literatura que praticou e de suas considerações teóricas sobre o gênero, possibilita que se redimensione a forma como esses argumentos têm sido tratados, apresentando uma hipótese alternativa de leitura. No caso de “Note for a thriller, or film”, permite que se reavalie a forma como este foi adaptado para o cinema por Pedro Varela, com a única intenção de lançar outra luz sobre o trabalho do realizador, do qual já tratou, extensivamente, Marcelo Cordeiro de Mello. Afinal, também é possível uma leitura que parta dos caminhos e das direções apontados pelos próprios argumentos, com o propósito de complementar outras anteriores. Minha intenção é levantar questões de adaptação e execução que os argumentos colocam, tendo em conta que um argumento, ainda que não realizado em sua forma fílmica, pode fornecer indicações precisas e concretas sobre como deve ser lido e/ou adaptado para cinema, como é o caso, inclusive, daquele que deu origem a O Ídolo. Em termos práticos, contextualizar os argumentos para filmes de Fernando Pessoa em meio a sua produção policial significa enfrentar com outros olhos o aspecto traiçoeiramente despojado desses textos, o uso e a manipulação, num sentido experimental do termo, de elementos e procedimentos hoje percebidos como meros clichês das narrativas policiais do tipo mistério, e, sobretudo, a aparente e um tanto incômoda ausência de marcas de autoria imediatamente reconhecíveis como pessoanas, que talvez justificou, num sentido último, o processo de adaptação realizado por Varela, que fora incumbido de realizar um filme comercialmente viável e que fosse inquestionavelmente identificado como um filme de Fernando Pessoa. A esse respeito, a contextualização a que me refiro possibilita ainda identificar um novo sentido para o termo “comercial”, inevitável quando se trata das referências ao cinema da parte de Pessoa e dos seus projetos envolvendo tal forma de arte. Por fim, é preciso esclarecer que não pretendo tecer conjecturas sobre as obras cinematográficas que teriam influenciado a escrita dos argumentos para cinema de Pessoa. Tal tarefa, pela dificuldade em ultrapassar o nível das meras especulações, revelaria mais sobre o meu conhecimento de cinema (policial) – incluindo minhas limitações –, que propriamente as referências cinematográficas pessoanas. A dimensão “comercial” em Fernando Pessoa Não constitui novidade que Fernando Pessoa era um ávido leitor e apreciador de narrativas policiais, particularmente da tradição britânica de narrativas detetivescas do tipo whodunit.5 Tal preferência implicava, inclusive, reconhecer que a reputação Além disso, thriller (normalmente traduzido como suspense) é um gênero híbrido, que se cruza com vários outros, dentre eles o próprio gênero policial. Uma versão mais completa e detalhada das considerações sobre as novelas policiárias que se seguem nesta seção encontra-se em SCHINCARIOL (2023b). 5 Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 333 Schincariol O Ídolo à luz das novelas policiárias do gênero entre os intelectuais não era das melhores.6 Muito embora a produção policial seja relativamente menos conhecida ou estudada no conjunto da obra publicada de Pessoa, não se pode afirmar que seu interesse pelo gênero seja periférico. Transcende, como foi apontado, o campo da literatura, verificando-se também na escrita de seus argumentos para cinema. A produção de narrativas policiárias inicia-se na cidade de Durban e tem como investigador o ex-Sargento William Byng, sendo mais atrde transposta para Lisboa, amadurecendo e adquirindo novos contornos, tendo desta vez como protagonista o decifrador de charadas Abílio Quaresma: “Do inglês passou para o português, os trâmites do enredo esbateram-se a favor do raciocínio puro, o seu detetive ganhou vida e densidade. De simples Detective Stories passou para Tales of a Reasoner, título já revelador do que realmente lhe interessava, e depois às novelas policiárias de Quaresma, Decifrador” (FREITAS, 2014a: 13). Ana Maria Freitas chama a atenção para o fato de a primeira referência ao título Quaresma, Decifrador encontrar-se num testemunho datável de 1915-1916, onde Pessoa planeja as novelas a publicar (FREITAS, 2014a: 10). Em momento posterior, a autora observa que “A datação possível de esquemas da série Quaresma, Decifrador indica [...] os anos de 1913/1914 para início das duas primeiras novelas, anos decisivos na vida de Pessoa” (FREITAS, 2016: 322). A análise dos documentos a que teve acesso em sua investigação leva Freitas a acreditar que a certa altura a série que tem Byng como detetive e aquela em que a figura central é Quaresma foram trabalhadas em paralelo: “Rapidamente, no entanto, Quaresma se sobrepôs e se tornou a única manifestação da narrativa policial pessoana até a morte do autor, com a exceção de The Mouth of Hell [A Boca do Inferno], caso de aproveitamento de uma oportunidade editorial que poderia abrir as portas do mercado britânico” (FREITAS, 2016: 322). Freitas chega mesmo a concluir que a transformação de Byng em Quaresma “acompanha a aproximação de toda a obra à língua e cultura portuguesas”, constituindo, em sentido último, uma tentativa de desenvolver “um gênero subdesenvolvido no panorama literário nacional”, cabendo às novelas policiárias “ocupar o lugar de uma literatura popular superior” (FREITAS, 2016: 322). Quaresma seria “a versão pessoana do género policial, por sua vez superior em complexidade e amplitude de sentidos a todo o policial até então criado” (FREITAS, 2016: 322). “Um dos poucos divertimentos intelectuais que ainda restam ao que ainda resta de intelectual na humanidade é a leitura de romances policiais. Entre o número áureo e reduzido das horas felizes que a Vida deixa que eu passe, conto por do melhor ano aquelas em que a leitura de Conan Doyle ou de Arthur Morrison me pega na consciência ao colo. | Um dos volumes de um destes autores, um cigarro de 45 ao pacote, a ideia de uma chávena de café – Trindade cujo ser-uma é o conjugar a felicidade para mim – resume-se nisto a minha felicidade. Será pouco para tanto, é verdade. É que não pode aspirar a muito mais uma criatura com sentimentos intelectuais e estéticos no meio português actual. | Talvez seja para os senhores como que causa de pasmo, não o eu ter estes por meus autores predilectos e de quarto de cama, mas o eu confessar que assim os tenho” (PESSOA, 1966: 62; BNP/E3, 20-49). 6 Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 334 Schincariol O Ídolo à luz das novelas policiárias O interesse de Pessoa em criar um tipo de narrativa policial comercial ou popular viria a conduzir o projeto cinematográfico. Como penso, a mesma intenção de produzir uma “literatura popular superior”, ou melhor, uma “versão pessoana do gênero policial”, “superior em complexidade e amplitude de sentidos a todo policial até então criado”, reconhece-se nos argumentos cinematográficos escritos pelo autor, ainda que isso implique a ressignificação do termo “comercial”. É importante notar, nesse sentido, que o interesse de Pessoa no mercado britânico não se limitava a The Mouth of Hell. Chegou a planejar, por exemplo, publicar suas novelas policiárias na Strand Magazine.7 Tendo em conta os argumentos para cinema de que tratamos neste artigo, essa intenção comercial pode ser entendida como uma tentativa de criar um produto de consumo superior que, ao contrário de render-se às tendências ou exigências do mercado, pudesse desafiá-las, ou seja, questionar, a um só tempo, mercado, gosto popular e tradição do gênero policial na literatura como no cinema – e, num sentido mais amplo, as próprias linguagens literária e cinematográfica. Trata-se de uma postura que se deixa entrever, por exemplo, nos seguintes comentários de Patricio Ferrari e Claudia Fischer: O ataque ao cinema de consumo rápido – considerado uma fábrica de simulacros de beleza, mecanicamente reproduzidos e condenados a ser uma mera passagem meteórica pela memória da humanidade – reaparece noutro fragmento de Erostratus, onde é mais uma vez reiterada a vaidade dos seus produtos e, como tal, a impossibilidade de ascenderem a um estatuto de arte. (FERRARI e FISCHER, 2011: 21) O que dizer sobre como esse ataque ao cinema de consumo rápido se traduziria nos argumentos de Pessoa, e, nesse sentido, como deveria conduzir sua leitura e/ou sua adaptação? Trata-se de questões cuja resposta possível, como procurarei mostrar, reside no confronto entre o sentido de “comercial” segundo Varela em sua empreitada financiada por uma empresa de telefonia e aquele que se entrevê na relação de Pessoa com o gênero policial. A dimensão provocadora do cinema concebido por Pessoa é reconhecida por Mello na passagem abaixo, na qual ela é justificada pela intenção de levar o espectador ao mais alto grau de compreensão dos filmes: O cinema imaginado por Pessoa provocaria e atiçaria o espectador, procurando levá-lo ao mais elevado grau de compreensão da obra. No enredo embaralhado, a reductio ad absurdum da trama acena constantemente com a ideia de que o cinema é ilusão – ponto de vista que Pessoa desenvolveu em Erostratus, ao mesmo tempo em que concebia o argumento que se tornaria O ídolo. Há inclusive fragmentos de Erostratus que utilizam o mesmo suporte (papel e tinta) em que foram escritos Os planos do autor não se restringiam à Strand Magazine: “Pessoa planeou publicar as novelas policiárias em livros ou livrinhos separados, de diversos tamanhos, e a preços correspondentemente diversos, acrescentando, noutro apontamento, one per month” (apud FREITAS, 2014a: 10). 7 Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 335 Schincariol O Ídolo à luz das novelas policiárias os argumentos: um indício que confirma sua relação. É impossível não lembrar também do ensaio que classifica os leitores de acordo com sua capacidade de entendimento. Embora Pedro Varela desconheça a tentativa de Pessoa de criar essas categorizações sobre a compreensão de histórias policiais, o fato é que o diretor soube reproduzir o ponto de vista de Pessoa que está cristalizado nos argumentos dos thrillers. Sua proposta era fazer filmes com histórias complexas e confusas, que estimulassem a inteligência do espectador. Fugindo à ideia do cinema comercial visto como mera alienação desatenta, Pessoa ia na contramão, procurando extrair do espectador o máximo de sua atenção. É instigante ver até que ponto Pedro Varela foi capaz de fazer justiça ao texto pessoano. (MELLO, 2021b: 194) Pedro Varela faz justiça à proposta cinematográfica de Fernando Pessoa, que também era guiada pelo “prazer de fazer o espectador pensar” – na contramão da ideia de um cinema alienante e idiotizante. (MELLO, 2021b: 195) Concordo com Mello quanto à hipótese de o cinema imaginado por Pessoa explorar a ideia de que tal forma de arte é uma ilusão; no sentido, porém, de que os argumentos de Pessoa sugerem uma adaptação fílmica em que os procedimentos responsáveis pela impressão de “realidade” são expostos, como que desmascarados, aos olhos do espectador, numa espécie de revelação final em que aquilo a que se acabou de assistir é posto em xeque. Quando encarados no contexto da poética do gênero policial, os termos “embaralhado”, “complexas” e “confusas” revelam a forma como Mello percebe procedimentos que, na verdade, dizem respeito ao modo como se exploram e se manipulam os mecanismos da suspeita nas narrativas policiais, o que, a julgar pelos argumentos para cinema considerados neste artigo, Pessoa faz com extrema clareza e precisão. Como penso, a noção de “comercial” em Fernando Pessoa não se esclarece pela dicotomia entre filmes que fazem pensar e filmes que não o fazem. A questão para a qual tentarei oferecer uma possível resposta é a seguinte: por meio de que mecanismos, exatamente, o cinema de Pessoa quer fazer pensar, para além da suposta intenção de “confundir” o espectador? A partir daqui, exploraremos o diálogo entre as novelas policiárias e o modo de ser da ficção policial. Trata-se de um passo essencial para tornar mais clara a relação entre os projetos literário e cinematográfico de Pessoa que envolvem o gênero policial e, a partir daí, apresentar uma leitura dos argumentos para cinema escritos por Pessoa, bem como uma análise das soluções propostas por Varela em O Ídolo. As novelas policiárias e o modo de ser da ficção policial Em seu estudo intitulado The Reader and the Detective Story, George N. Dove atenta para aquele que acredita ser um consenso entre críticos do passado e do presente quanto às quatro qualidades que separam as “detective stories” de outros gêneros de ficção populares: seu aspecto transitório, ou seja, a ausência de objetivos ou propósitos de longo alcance; seu caráter fundamentalmente intelectual; sua dimensão Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 336 Schincariol O Ídolo à luz das novelas policiárias recreativa8, destinada principalmente a relaxar o leitor; e o fato de constituírem uma forma literária disciplinada e delimitada (DOVE, 1997: 2).9 Este último elemento diferenciador justificaria, como penso, a própria preocupação de Pessoa em escrever Detective Story, ensaio fragmentário e incompleto sobre a (sua) poética do gênero policial – escrito entre 1905-1906 e os anos de 1920,10 década esta de que datariam os argumentos para cinema escritos em inglês e que revelam uma conexão mais direta com o gênero policial. Mais que isso, essa mesma forma disciplinada e delimitada explicaria sua intenção de testar, na literatura como no cinema, os limites de regras já estabelecidas ou em vias de o ser. Em Detective Story, Pessoa define a história policial como um exercício fundamentalmente intelectual centrado nos raciocínios do investigador-decifrador; diferente, portanto, de uma história de mistério, exercício de imaginação. Lidos a partir do referido ensaio, os argumentos para filmes escritos por Pessoa levam-nos a questionar como esse exercício intelectual poderia ser transposto para a linguagem do cinema. Ainda quanto aos elementos distintivos das “detectives stories”, Dove explica que o aparente paradoxo entre ler por diversão e por estimulação intelectual é resolvido pela limitada estrutura do gênero policial, que confere interesse ao jogo ao impor regras a ele.11 O crítico tem como foco as narrativas policiais e o seu próprio “modo de ser”, argumentando que é a “detective formula”, que caracteriza o gênero policial – referindo-se à tradição britânica do romance-enigma, como à americana do hardboiled –, que prevê e estabelece as regras do jogo a ser jogado pelo leitor; ainda que observe que a leitura de narrativas policiais possa produzir leitores de policiais mais Dove observa que essa questão deve ser tratada com considerável reserva, sendo que alguns críticos questionam a primazia do caráter recreativo, como também o escopo delimitado desse gênero de ficção (DOVE, 1997: 5). 8 Uma versão mais completa e detalhada das considerações sobre as novelas policiárias que se seguem nesta seção, encontra-se em SCHINCARIOL (2023b). 9 Quanto a Detective Story, é preciso observar que Gianluca Miraglia propõe uma edição filológica de “Essay on Detective Literature” e “The Detective Story” como conjuntos de fragmentos separados e com datas distintas, por volta de 1906 e fim da década de 1920, respectivamente (ver MIRAGLIA, 2018). 10 Ao fazê-lo, o crítico dialoga com autores como Willard Huntington Wright – verdadeiro nome de S. S. Van Dine –, para quem, em “The great detective stories”, a “detective story” não é ficção no sentido convencional do termo, mas um estendido e complicado quebra-cabeça; ao passo que discorda de John Dickson Carr, que em “The grandest game in the world” concebe as narrativas do gênero como um duelo entre autor e leitor (apud DOVE, 1997: 3-4). Para DOVE, trata-se de um pacto e não exatamente de uma competição, pacto este que acredita ser subjacente à “detection formula”, governando o que o leitor pode esperar de uma narrativa: “The role of the reader is both recreational and intellectual; the reader voluntarily accepts the limits (agrees to the rules), in order to permit the game to be played” (1997: 3-4). Em termos mais amplos, Dove acredita que o que de fato confere um caráter único à “detection formula” não reside primeiramente no texto, mas no modo como a “detective story” é lida. 11 Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 337 Schincariol O Ídolo à luz das novelas policiárias experientes, que passam a ler tais narrativas com certos pressupostos e expectativas.12 Questionamo-nos, então, em que medida os argumentos de Pessoa pressuporiam – na sua “economia”, no modo como deveriam ou poderiam ser lidos ou adaptados para o cinema – essas mesmas “regras do jogo a ser jogado”, mas desta vez pelo espectador. Ao tratar de O Ídolo, Mello analisa a forma como, no curta-metragem de Varela, o tema do jogo é explorado. São duas as suas principais referências teóricas, o ensaio Homo Ludens (1938), de Johan Huizinga, e o estudo Plasticidades poéticas, escrituras picturais (2016), de Yara Silva. Baseando-se nesses autores, Mello apresenta a seguinte definição de jogo: O jogo é uma competição, definida por regras, que pode assumir a forma mais drástica de uma luta ou um combate. Por outro lado, o jogo é movido pela imaginação e a procura da diversão, ou seja, pelo impulso lúdico que seduz a mente humana desde a infância. Frequentemente, o jogo se orienta por regras que incorporam estruturas matemáticas e que recorrem a procedimentos como a permutação, isto é, a combinação entre elementos – e que pode também (como lembra Huizinga) criar uma condição de aleatoriedade, por exemplo, por meio de um lance de dados. Embora muitas vezes o jogo se apresente como um simples passatempo, a sociedade também o enxerga como algo perigoso, que pode levar ao vício e à perdição. (MELLO, 2021a: 100) Tal definição permite que Mello, explorando a polissemia do termo, trate dos elementos do jogo em O Ídolo, no plano da forma como do conteúdo, aprofundando o diálogo “que a criação cinematográfica pessoana estabelece com alguns filmes da história do cinema – o que pode ser lido sob a ótica do jogo interartístico”. E também: […] o jogo intertextual que O ídolo estabelece com os outros textos cinematográficos deixados por Pessoa. Em suma, a proposta aqui é identificar como aspectos lúdicos estruturam tanto o texto fílmico de Pessoa quanto o thriller de Varela e, a partir daí, explorar a ideia de jogo intertextual, propondo relações com outras obras, tanto de Pessoa quanto de outros autores. (MELLO, 2021a: 100) Seguindo um caminho paralelo ao percorrido por Mello, proponho que se explore uma camada que as considerações do crítico deixam entrever, a qual se mostra mais visível quando se esclarece o conceito de jogo13 que perpassa a argumentação de O próprio DOVE esclarece a noção de leitor que norteia o seu estudo: “Unless otherwise indicated, reader refers to the veteran reader of detective fiction, who has sufficient experience in literary detection to be guided by the special qualities of the genre, such as its conventionality or its absolute dependence upon solution” (1997: 10). 12 Dove explica que, assim como ele, Gadamer usa o termo “‘play’ almost interchangeably with ‘game’, with the exception that he gives the game special definition: play becomes a game when the player faces some kind of opponent” (DOVE, 1997: 15). Em termos gadamerianos, esse oponente não é necessariamente um outro jogador, no sentido literal do termo, mas algo mais com que o jogador joga e que “responds to his moves with a countermove” (apud DOVE, 1997: 15): “In reading, this opponent may take many forms: paradox, challenge, problem, or perhaps nothing more than the 13 Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 338 Schincariol O Ídolo à luz das novelas policiárias Dove, minha referência ao tratar das novelas policiárias: “When I call the detective story a play-experience, I do not mean that everything in it is a source of fun, or that it is not to be taken seriously” (DOVE, 1997: 15); “To speak of the detective story as a game is not equate the term with puzzle, problem, or intellectual exercise, but rather to assert that the narrative is built on a set of expectations that correspond to the mode of play or game” (DOVE, 1997: 17; grifos do autor).14 Nas palavras de DOVE, “I use the term play in the sense in which Hans-Georg Gadamer uses it, to designate a “mode of being”, an identity independent of the state of mind of both creator and player, an aesthetic concept that has its own proper spirit and imposes its own special attitude” (1997: 15).15 Ao se discutir a noção de “play as an integrative frame of detective fiction”, no sentido gadameriano, entende-se que “play” “is ‘transformed into structure’, that is, into a mode of being marked by absence of stress, by movement that renews itself in constant repetition, and by voluntary acceptance of tasks that are bound to makebelieve goals” (apud DOVE, 1997: 22). Além disso, “it serves to relieve the stress of the narrative, and it is endlessly repeatable. The immanence of the play element accounts for that peculiar capacity of detective fiction for tolerating subsequent repetitions by other writers that would soon become outworn in another genre” (DOVE, 1997: 22). É também nesse sentido que se explicaria, como penso, a aparente falta de marcas de autoria e de originalidade nos argumentos cinematográficos de Pessoa; no sentido de que a repetição de elementos e procedimentos utilizados por outros autores – hoje percebidos como clichês – pode mascarar o que se poderia chamar de “assinatura pessoana”, isto é, a forma como tais elementos e procedimentos são arranjados e o modo extremo a que seu uso é elevado, com quem tentasse testar os limites da “integrative frame of detective fiction” a que Dove se refere. Conceber o gênero “detective story” como um jogo implica, segundo Dove, que esse tipo de narrativa pode ser definido em termos de dois componentes ou funções: demands of context” (DOVE, 1997: 15). Como o autor esclarece, “What we are calling ‘context’ of detective fiction is the generalization of the reader’s early experience of the formula, which supplies the framework for interpretation of the signals of the text” (DOVE, 1997: 24). “Many commentators have used the word game in a different context from the one in which I am using it here, making the tale of detection a ‘game’ between author and reader, to determine whether the reader can reach the solution ahead of the detective. Some commentators use the term to designate the contest between detective and culprit” (DOVE, 1997: 19). 14 “Gadamer approaches the meaning of the word play through an examination of its metaphorical uses and finds that what is intended is to-and-fro movement that would not produce a conclusion (103). Play is, moreover, free of stress; it may involve considerable effort, but it is what would in the 1990s be called a no-sweat experience (105). The third quality, says Gadamer, is that the player voluntarily assumes special tasks with make-believe goals that give meaning to the play (107)” (apud DOVE, 1997: 16-17) 15 Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 339 Schincariol O Ídolo à luz das novelas policiárias First, there must be definitional rules that do not simply regulate the playing of the game but make it possible for the game to be played. Such rules would provide limits or frames within which innovation could take place, plus pre-understandings and defined tasks. Second, there must be a definition of the game in terms of foreground-background, space, and its identity in terms of its own history and its place among other games, its “mystique”. (DOVE, 1997: 19)16 De acordo com o conceito de “jogo” apresentado por Dove, o leitor assume o papel de um espectador interessado, que é livre para aceitar ou recusar os desafios das histórias, evento em que a graça do jogo está no ato de jogar. Tais convites, como acrescenta o crítico, podem ser aceitos ou declinados sem qualquer dano à satisfação da leitura. Ora, Dove observa que talvez fosse mais produtivo pensar o leitor como um espectador envolvido que assiste ao jogo na expectativa por sua solução, mais que um jogador participante, mesmo porque em sentido último o jogo não depende dos esforços do leitor para ser levado ao final; não seria, portanto, um jogo em que se ganha ou perde, mesmo porque, mais que a habilidade de chegar à conclusão antes do detetive, o que o leitor desejaria mesmo é “a means of interpreting the problem in the special sense in which detetive-fiction problems should be interpreted” (DOVE, 1997: 20; grifo do autor). Como Dove faz questão de ressaltar, em uma narrativa detetivesca, a convenção exerce uma influência particularmente forte no ato de “jogar o jogo”: […] as does the special drive of the plot towards the unveiling of the secret. During the reading of a detective story especially, the traditions of the genre place upon the reader the obligation not only to accomplish certain objectives but to accomplish them in a certain way; one does not, for example, sneak a premature look at the solution. (DOVE, 1997: 15) Em princípio, as tradições do gênero impõem ao leitor certas obrigações. Estreitamente relacionado ao conceito de “play” de que trata Dove encontrase o que o autor, apoiado em Kermode, chama de “especialização hermenêutica”17: “The unique reading strategy of detective fiction arises from two basic structural qualities of the genre, its persistent conventionality and its hermeneutic specialization” (DOVE, 1997: 27): 16 “Mystique” refere-se, aqui, à estrutura subjacente do “jogo” da narrativa detetivesca (DOVE, 1997: 190). “Primarily, the tale of detective fiction is limited by what Frank Kermode [em ‘Novel and Narrative’] calls its ‘hermeneutic specialization’, a mode that forces the reader to interpret the text in terms of the anticipated outcome of the story” (DOVE, 1997: 4); “Readers of detective stories, says Kermode, are always ‘sorting out the hermeneutically relevant from all other information and doing so more persistently than we have in other kinds of novels’” (apud DOVE, 1997: 183). 17 Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 340 Schincariol O Ídolo à luz das novelas policiárias The conventionality of the genre is manifested in the mass of traditions the tale of detection has accumulated, including the set of plot conventions inherited from Poe (and, on occasion, Hammett and Chandler) and those dozen of incidental conventions, such as the most likely suspect, of which authors and readers of literary detection seem never to tire. The term hermeneutic specialization, as used here, designates that tendency of a story to push the reader on toward the solution, which is the dominant drive of the detective story. (DOVE, 1997: 27) A convencionalidade do gênero detetivesco seria, então, a principal fonte da ausência de estresse, que, segundo Gadamer, caracterizaria a experiência de jogo. Não é preciso ser um especialista ou leitor voraz de ficção policial para perceber que as novelas policiárias de Pessoa preveem uma “hermenêutica” diversa daquela que Dove apresenta como definidora da tradição do romance-enigma, como também a do hard-boiled e seus desenvolvimentos. Tendo em conta os fragmentos até o momento publicados das novelas policiárias, não se pode afirmar, nem mesmo intuir, que tais narrativas visam a alimentar no leitor uma forte compulsão de ver no que a história vai dar; mas esta seria, segundo Dove, uma espécie de mola propulsora da ficção policial (DOVE, 1997: 18). A leitura das longuíssimas passagens em que Byng e Quaresma desenvolvem seus raciocínios e de tantas outras em que o foco são procedimentos policiais parece contradizer as palavras do próprio Pessoa em Erostratus, quando considera que “Conciseness and a hold on the reader, which are required in detective stories, are no less required in all forms of literature. Nothing is gained by wearying the reader” (1967: 207; BNP/E3, 19-60r). Por isso, o tom de quase revolta dos seguintes comentários de Maria de Lurdes Sampaio sobre “O Caso Vargas” não se deve a uma questão de gosto pessoal: In “O Caso Vargas” there is something monstruous, pedantic in Quaresma’s long and didactic exposition, and in the unusual process of delaying the identification of the culprit. In this novel, Quaresma is gripped by the vortex of his theories, lost in the labyrinth of seemingly endless typologies, lost in the vertigo of arguments and language. (SAMPAIO, 2008: 151) Mas os argumentos cinematográficos de Pessoa, ao menos os que constituem o escopo do presente artigo, quando lidos dessa perspectiva, parecem apontar para uma outra direção, não somente pelo seu caráter sucinto e pelo foco na captação da atenção do espectador, mas sobretudo pelo interesse em despertar neste último “uma forte compulsão de ver no que a história vai dar”. Peças essenciais na chamada “especialização hermenêutica”, os detetives ou investigadores criados por Pessoa são essencialmente raciocinadores, decifradores de charadas; o que por si só sugere serem particulares as habilidades requeridas de um leitor que, iniciado na leitura de narrativas policiais e guiado pelos “mandamentos” que a tradição do gênero lhe oferece, ouse acompanhá-los na posição de “codedutor”, Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 341 Schincariol O Ídolo à luz das novelas policiárias ou melhor, compartilhar com eles as regras previstas pelo fair play do “jogo” policialesco num sentido mais convencional do termo. Tais considerações motivam a que se questione em que medida o papel dos raciocinadores nas novelas policiárias ajudaria a compreender a função dos detetives nos argumentos para cinema escritos por Pessoa. Posso adiantar, neste ponto do artigo, que minha hipótese é de que o papel do raciocinador é, no cinema, transferido para o espectador, o que não significa que, num sentido último, o caráter subversor das novelas policiárias seja essencialmente distinto do que se verifica nos argumentos para filmes. Trata-se, antes, de pôr em prática um mesmo tipo de intenção – a de mais uma vez testar os limites dos códigos das narrativas policiais –, mas por meio de mecanismos que, desta vez, explorem e potencializem as possibilidades da linguagem cinematográfica. No cinema, o espectador seria aquele a assumir, de forma estratégica, o papel do investigador-raciocinador. Em ambos os casos e, por mecanismos distintos, a evolução e a “representação” dos raciocínios transforma-se, num sentido último, no próprio enredo, fazendo com que as novelas policiárias e os argumentos para cinema escritos por Pessoa se encontrem, a um só tempo, dentro e fora das convenções e da lógica da ficção policial. Fig. 1. Apontamento para identificar o conjunto (“Film Arguments”) (BNP/E3, 2723-126v). Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 342 Schincariol O Ídolo à luz das novelas policiárias O caráter subversor dos argumentos cinematográficos de Pessoa A análise que se segue parte da leitura de três argumentos para filmes escritos por Fernando Pessoa: “Note for a thriller, or film”, “Note for a silly thriller. | or for a film” e “Half plan of play or film”. Como observam FERRARI e FISCHER, editores de Argumentos para filmes, que também têm em conta “The Three Floors”, estas peças foram escritas na década do cinema mudo, atentando que o primeiro filme sonoro da história do cinema, The jazz singer, é datado de outubro de 1927 (2011: 31). Nas palavras de Fernando Guerreiro: A primeira questão a colocar talvez seja a do “estatuto” destes textos. Os quatro escritos em inglês, e datáveis da década de 20, têm a particularidade de, pelo seu aparato para-textual, se situarem num espaço entre diferentes modalidades genológicas e de discurso: a ficção (“Note for a silly thriller”, “Note for a thriller”), o teatro (“Half plano of play”) e o cinema (com remissões nos quatro casos). Sintomático, enquanto marca morfológica dessa hesitação e/ou indiferenciação, o uso, nessas determinações capitulares de género (chamemos-lhes assim), das conjunções or [ou] (“Note for a silly thriller.| or a film”, etc) e if [se] (“if this be a film, can be easily visualized”) (doc. 1): o que, para lá da hesitação quanto ao modo/registo desses textos – dado já em si interessante na própria medida em que manifesta uma ideia não-autónoma, impura, de cinema –, nos remete para uma concepção mais “recuada”, em tudo diferente daquela que encontramos nos autores da presença. (GUERREIRO, 2011: 173) Sem discordar das considerações de Guerreiro, não descarto a hipótese de que o uso de conjunções a que se refere poderia ter em mente a linguagem e os elementos que são internos aos argumentos propriamente ditos, ou então os limites desse formato e as suas possíveis funções, mais que propriamente um diálogo mais profundo e compromissado com outros gêneros e discursos. Talvez essa concepção mais “recuada” de cinema possa bem refletir a atitude do próprio Pessoa ao ser solicitado que respondesse ao tão referido inquérito sobre cinema na presença (PESSOA, 2011: 11-13): a de quem acredita que essa concepção deve ser experimentada e apre(e)ndida na prática, mais que sintetizada em observações de ordem teórica, ainda mais na forma de um mero inquérito. Aponta para essa mesma direção o fato de que, ao elaborar (e experimentar com) suas novelas policiárias, Pessoa muitas vezes não segue as “regras” que ele mesmo formulou no ensaio teórico Detective Story (SCHINCARIOL, 2023a; 2023b). É inevitável reconhecer o caráter conciso dos argumentos escritos por Pessoa, ainda que a concisão seja uma marca dos argumentos cinematográficos – sobretudo se comparados aos roteiros – e não haja um único modelo a ser seguido em termos de formatação ou número de páginas. O minimalismo de que se trata, no entanto, está longe de ser um defeito, mesmo porque um olhar mais atento torna menos provável a hipótese de que sejam lacunares. Trata-se, como penso, de atentar para as razões por trás do que se determina e do que se deixa em aberto. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 343 Schincariol O Ídolo à luz das novelas policiárias A ideia comum de que um argumento representa a história começando a tomar forma faz sentido quando se o considera um dos primeiros passos – quando não o primeiro – até o produto final, ou seja, a execução de um filme. Nos argumentos escritos por Pessoa detecta-se uma urgência em marcar certas decisões com absoluta clareza, levando-nos a acreditar que, ao redigi-los, as decisões em relação à história e ao seu desenvolvimento haviam todas sido tomadas, e que não haveria – ou deveria haver – concessões a esse respeito. Ao contrário do que se poderia pensar, são bastante inflexíveis, refratários a “alterações”. E com isso não pretendo simplesmente atentar que tais argumentos possuem começo, meio e fim; mas sim que apontam para certas convenções que fazem sentido dentro das regras que norteiam a literatura policial que Pessoa tem como referência, ainda que esse diálogo não se faça de forma direta ou explícita. Com uma grande diferença, porém: a “hermenêutica” a que me refiro e que conduziria a leitura dos argumentos para filmes de Pessoa não seria (exatamente) aquela estabelecida pela tradição, mas aquela que se define pelo questionamento dessa mesma tradição, e que conduz (ou deveria conduzir) à leitura das novelas policiárias. Trata-se de uma outra forma de perceber a superposição entre os projetos literário e cinematográfico de Pessoa, no que toca o gênero policial. Ora, quando lidos à luz da ficção policial, sobretudo das narrativas de mistério da chamada Golden Age of Detective Fiction (1920-1930), chama a atenção, nesses argumentos, o uso de tópicos e procedimentos que, aos olhos de hoje, são fatalmente identificados como alguns dos principais clichês das narrativas do gênero policial. Um deles é o uso de espaços fechados em que se possam isolar vítimas e suspeitos, como é o caso do navio em “Note for a silly thriller”, do iate em “Note for a thriller, or film” – transformado em navio transatlântico em O Ídolo – e a soirée na casa de B em “Half plan of play or film”. John Scaggs chama a atenção para o uso desse recurso quando trata dos subgêneros criados pelos vários cenários e locações da mystery and detective fiction, como o country-house mystery (do qual faria parte a variação snowbound mystery) e o locked-room mystery, “in which various ingenious methods of committing murder in a hermetically sealed environment formed the core [este último, convém observar, um claro favorito de Pessoa em suas novelas policiárias]” (SCAGGS, 2005: 51). Como observa Scaggs, o country-house e o locked-room mystery e seus derivativos são ainda evidentes na ficção policial contemporânea, ainda que sua estrutura e sua forma sejam características de uma visão estereotipada de uma Grã-Bretanha que não existe mais e a qual muitos escritores são relutantes em retomar (SCAGGS, 2005: 53). Ainda que o crítico não os mencione entre seus exemplos, os “maritime mysteries”, ou seja, as narrativas de mistério que se passam em navios de cruzeiro ou outro tipo de embarcação, são tão frequentes, que será suficiente citar algumas das mais conhecidas: “The ghost of John Rolling” (1924), conto de Edgar Wallace; The blind barber (1934), de John Dickson Carr; Death on the Nile (1937), de Agatha Christie; e Murder on the Atlantic (1940), de Carter Dickson, pseudônimo de Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 344 Schincariol O Ídolo à luz das novelas policiárias John Dickson Carr. Mais recentemente, Conrad Allen, pseudônimo de Keith Miles, é responsável por uma série chamada Ocean Liner Mysteries (1999-2007). Não menos recorrentes, e não necessariamente quando se trata de um “maritime mystery”, são os objetos extremamente valiosos e raros, como as pedras preciosas de valor inestimável e os ícones, que carregam consigo o mistério de um passado distante, de uma cultura percebida como “exótica” e, não raro, algum tipo de poder ou maldição; o fato de esses objetos serem insubstituíveis justifica que exista comoção em torno do seu (iminente) roubo ou desaparecimento, que a investigação – tipicamente por um detetive – seja feita e que, num outro nível, o ocorrido deva ser relatado por meio de uma narrativa policial. Não há como não citar, aqui, The Moonstone, de Wilkie Collins, que, de acordo com Eliot, “is the first, the longest, and the best of modern English detective novels” (ELIOT, 2015: 356). Há também, entre tantos outros, “The adventure of the Blue Carbuncle” (1892), de Arthur Conan Doyle, e The Blue Diamond (1925), de Annie Haynes. Em relação a “Half plan of play or film”, que não se enquadra na categoria de “maritime mysteries” e tampouco gira em torno de um objeto precioso, leva à décima potência o ato de assumir uma identidade alheia, procedimento comum em narrativas policiais, desde os seus primórdios aos mais recentes desenvolvimentos. São exemplos “A Scandal in Bohemia” (1891), de Conan Doyle, e The Secret Adversary (1922), de Agatha Christie. É desta última o incontornável The Murder of Roger Ackroyd (1926), em que o assassino se faz passar pelo narrador. Assumir a identidade de uma outra pessoa é o mecanismo central de um outro clássico, The Lady in the Lake (1943), de Raymond Chandler. Mais recentemente, há Fingersmith (2002), de Sarah Waters, e Gone Girl (2012), de Gillian Flynn. Com o objetivo último de identificar qual seria a “assinatura pessoana” em meio a essas convenções, atentemo-nos, num primeiro momento, para a clareza com que os argumentos de Pessoa apresentam o desenvolvimento do enredo, sobretudo as reviravoltas que, num próximo passo, seriam centrais num hipotético roteiro, sem que este último seja necessariamente para uma adaptação cinematográfica. “Note for a silly thriller. |or for a film”, por exemplo, gira em torno de incidentes ocorridos no transporte de uma coleção de diamantes (ou algo de valor semelhante) no Cantábria, navio que leva passageiros da América para a Europa. Além do próprio X., milionário que transporta os diamantes, no navio se encontravam diversas quadrilhas de vigaristas, além de dois detetives profissionais, um deles enviado pela agência Spryer’s. Se tivéssemos de eleger o aspecto desse argumento a que Pessoa teria dedicado maior atenção, certamente esse seria o modo como a narrativa se desenrola, mais precisamente o jogo de identidades entre X. e um dos detetives, que determina o desfecho da história; jogo esse que atravessa o mistério do suposto roubo dos diamantes e confere nuanças ao procedimento central em toda narrativa do gênero: o de ativar e manipular, estrategicamente, os mecanismos da suspeita. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 345 Schincariol O Ídolo à luz das novelas policiárias Fig. 2. Note for a silly thriller (BNP/E3, 2723-126r). São exemplos da manipulação a que me refiro: a) as quadrilhas de vigaristas – e, não por acaso, são diversas delas –, que desviam a atenção do leitor / espectador do verdadeiro “culpado”; b) a amizade entre a rapariga pertencente a uma das quadrilhas e o milionário X. – o qual lhe conta sobre os diamantes e sobre a existência de dois detetives a bordo – confirma o fato vagamente conhecido por ela e pela quadrilha, aguçando a um só tempo a curiosidade destes e do leitor / espectador sobre quem seria esse detetive; c) a revelação de que X. não sabia da identidade do detetive enviado pela agência Spryer’s coloca este último como alvo principal dessa curiosidade, tornando a “resolução” do “mistério” menos evidente para o leitor / espectador ao levar a crer que X. não poderia ser esse detetive. É preciso ainda atentar para a ironia implicada pela escolha do nome Spryer’s, que significa mais esperto ou mais vivaz – no contexto da narrativa, o que “enganou” o leitor / espectador até o final; d) o fato de X. ter sido assaltado duas vezes torna menos provável a hipótese de que este estaria por trás de tudo, sendo que o terceiro assalto, desta vez à cabine de Y., leva as quadrilhas – e também o leitor / espectador – a acreditar que de fato os diamantes estavam lá e que foram roubados, o que efetivamente não acontece. Acrescente-se que na primeira revista às cabines, feita pela polícia, os diamantes não são encontrados, levando a crer que o tal detetive cuja identidade X. não conhecia poderia ter executado, de forma estratégica, o “roubo”; e que a informação de que X. esperava que de fato Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 346 Schincariol O Ídolo à luz das novelas policiárias isso tivesse acontecido reforça sua “inocência”, numa tentativa de mais uma vez descartá-lo dos possíveis suspeitos. Além disso, e depois de um motim, Bartlett, chefe de uma das quadrilhas, toma controle do navio e organiza uma segunda revista; o fato de mais uma vez nada ter sido encontrado continua alimentando o suspense e o mistério, instaurados desde o início da narrativa. Quando o milionário X. confessa que havia escondido os diamantes na cabine de Y. sem que este o soubesse, desloca então o mistério para quem teria sabido de tal ocorrência, mais uma vez afastando a suspeita de si mesmo, colocando-a num homem chamado Z e um outro chamado ZZ, que teriam sido vistos por X. junto à porta de sua cabine enquanto preparava os diamantes para serem escondidos na cabine de Y. Refira-se ainda que o fato de Z pertencer a uma quadrilha e ZZ a outra leva Bartlett a duvidar de Z, que era da sua quadrilha, enquanto ZZ nega que ele e Z tivessem estado perto da cabine de X.; e que, ao final, revela-se que o milionário X. nunca estivera a bordo do Cantábria, tampouco os diamantes, e que, na verdade, esse pseudo-X era o detetive da agência Spryer’s, o qual consegue prender todas as quadrilhas ao chegar à Europa. Como se acompanha, trata-se de um mistério que efetivamente não ocorreu, de um milionário e de diamantes que nunca estiveram no navio e, mais importante, de um detetive que, em vez de investigar e resolver o “caso”, é responsável por manipular os mecanismos de suspeita para afastar a hipótese de que estava por trás dessa manipulação e de que não era quem dizia ser. A própria prisão dos membros das quadrilhas efetivamente não acontece, já que o documento assinado pelo detetive sob a identidade do milionário X. era inválido. De uma forma ainda mais enviesada, o detetive afirma dar sua palavra sobre como não agiria [em vez de como agiria], observando que o milionário X., quem de fato o detetive não era, nunca voltara atrás com sua palavra. Em “Note for a thriller, or film”, o leitor / espectador é informado de que, como é sabido, o Prof. A confiara um ídolo de valor inestimável ao célebre milionário C, que partiria em breve em seu iate para a Europa, podendo assim entregar o raro objeto a B. Como acredita o milionário C, um, se não mais, dos seus 18 convidados provavelmente andaria atrás do ídolo. Vem daí a ideia de propor um jogo. Declara a missão de que fora incumbido e espera que todos se unam a ele na tarefa de conduzir o raro objeto ao seu destinatário. Sem saber o que esperar exatamente da tripulação – não conhecia intimamente a todos –, C manda preparar vinte pacotes idênticos e selados, um dos quais contendo o ídolo. Cada convidado receberia um dos pacotes e teria o dever de devolvê-lo quando chegassem todos na Inglaterra. Aquele em cujo pacote estivesse o ídolo receberia, de acordo com as regras, um prêmio de cem mil dólares, sendo que, alternativamente, essa pessoa poderia pedir a ele o que quisesse. Depois de todos terem recebido os pacotes, C fica com o último deles. Como penso, a clareza e a objetividade com que “Note for a thriller, or film” descreve os objetivos e as regras do “jogo” proposto por C, bem como as circunstâncias em que este se dá, tem a mesma função das muitas reviravoltas meticulosamente Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 347 Schincariol O Ídolo à luz das novelas policiárias encadeadas em “Note for a silly thriller. | or for a film”: desviar a atenção do espectador da informação que poderia arruinar o impacto do desfecho da narrativa. No argumento de que nos ocupamos no momento, alimenta-se, estrategicamente, a impressão de tudo estar ocorrendo às claras, sem segundas intenções – impressão que vale para o espectador, como também para os convidados de C. Em termos mais precisos, o objetivo dessa “clareza e objetividade” é justamente desviar a atenção do fato de que C preparara vinte pacotes, sendo que ele e os convidados somavam dezenove. Dando sequência a “Note for a thriller, or film.”, o roteiro menciona a ocorrência de numerosas aventuras, entre elas aquela em torno de um convidado vigarista que se dá conta de que, sem desrespeitar as regras do jogo, aquele cujo pacote contivesse o ídolo poderia pedi-lo a C como forma alternativa de recompensa. Não se deve ao acaso que Pessoa tenha especificado ao menos uma dessas aventuras: ao “compartilhar” com o espectador a constatação de que a recompensa poderia ser o próprio ídolo, cujo valor era inestimavelmente maior que os cem mil dólares oferecidos por C, o tal vigarista garante que o espectador esteja ciente dessa hipótese – caso não tenha por si só chegado a ela – , o que lança certa suspeita sobre as intenções do milionário C, sem com isso “arruinar” o desfecho da narrativa – o qual, por sua vez, poderia parecer um tanto “forçado” ou mesmo “injustificado”, caso não se tivesse cogitado que o milionário C estaria tramando algo. Revela-se, então, que C nunca levara o ídolo a bordo e que propusera o jogo somente para se divertir, como quem testasse a honestidade dos convidados. O ídolo já havia sido transportado, um dia antes, por um amigo de C, tendo sido entregue a B antes mesmo de o iate chegar ao seu destino final, Southhampton ou Londres. Pessoa termina o argumento tecendo considerações sobre o modo como a revelação teria sido feita aos convidados: C abre os pacotes, não encontrando o ídolo em nenhum deles, quando então D, amigo que transportara o ídolo até B, entra na sala e declara que o objeto já estava nas mãos do seu destinatário. É C quem explica aos convidados, atônitos e indignados, que eram vinte os pacotes, sendo dezenove o número dos que os haviam recebido; e que não seria bobo de oferecer um valor inferior ao do ídolo, que poderia ser cobrado como forma “alternativa” de recompensa. Só o fizera porque sabia que ninguém apresentaria o objeto. Declara ainda que tampouco via qualquer prazer em oferecer dinheiro estupidamente. Assim como em “Note for a silly thriller. | or for a film”, em “Note for a thriller, or film” tem-se um mistério – em torno de com quem estaria o ídolo – que efetivamente não ocorreu: assim como os diamantes do primeiro argumento nunca estiveram no navio, o ídolo nunca estivera a bordo do iate. No caso deste último, nem mesmo há um detetive. A hipótese de que os convidados de C ocupariam a função de detetives ao especular e tecer hipóteses sobre o paradeiro do ídolo mostrase pouco provável; para tanto, seria de se esperar que, à semelhança do que ocorre em “Note for a silly thriller. | or for a film”, o argumento orquestrasse, de modo preciso, Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 348 Schincariol O Ídolo à luz das novelas policiárias os mecanismos da suspeita. Como pudemos acompanhar, “Note for a thriller, or film”, quanto a esse quesito, não aponta para essa direção. À superfície, ao menos, “Half plan of play or film” contrasta com o caráter preciso e enxuto de “Note for a thriller, or film”, argumento que acabamos de analisar. Pode-se mesmo descrevê-lo como o mais extremo dos argumentos considerados neste artigo, no sentido de sua “arquitetura”, e sobretudo das suas ambições. Aqui o jogo de identidades, que marca particularmente “Note for a silly thriller. | or for a film”, é como que levado ao limite da compreensão, o que não quer dizer, como se acompanhará, que o argumento seja confuso, ainda que se revele fragmentário. A impressão de um “problema” cuja solução foge completamente ao controle, das personagens como do espectador, é obtida por meio de um jogo meticulosamente arquitetado em que o “passar-se por uma outra pessoa” é explorado de forma muito vertiginosa. Na passagem de “Half plan of play or film”, marcada como “I”, sabe-se que o Marquês de A. está doente – ou sente-se doente –, mas não quer faltar ao evento social a ser realizado na casa de B, uma soirée ou algo desse gênero. Em febre e incomodado por não poder ir, o Marquês de A. tem a ideia de o seu criado se fazer passar por ele, o que considera possível pelo fato de que voltara ao país há pouco tempo, não sendo conhecido, pessoalmente, na casa de B. Como o marquês comenta, seu criado tem maneiras tão boas como as suas próprias, se não melhores, já que controladas, além de uma aparência aristocrática. A fala que aparece entre parênteses, que reproduz o que o marquês teria dito ao criado, reforça que o autocontrole deste último, para além de sua aparência aristocrática, era mesmo excepcional: “The essence of superiority is self-control; now you are more self-controlled than I, your very profession has taught you that better than all my education” (PESSOA, 2011: 43). A inclusão dessa fala em discurso direto poderia ainda ser entendida como uma forma de marcar que essa informação deveria ser necessariamente compartilhada com o espectador, e exatamente assim; ou seja, tratando como digno de admiração um tipo de habilidade que, como se acompanhará, causará muitos problemas. Ter autocontrole extremo, o que aprendera com a profissão de criado, é um fato decisivo para que a narrativa seja minimamente crível, e o mesmo pode ser dito sobre a aparência de aristocrata. Com alguma relutância, o criado aceita a proposta, atraído pelo fato de que Yvonne, uma camareira, estaria na casa de B. Como o argumento sugere, as segundas intenções do criado não são do conhecimento do marquês, o que faz crer que essas são compartilhadas com o espectador, lançando, muito sutilmente, uma ponta de suspeita sobre o que o criado de fato teria em mente. E é assim que termina essa primeira passagem. Na passagem “2”, dois amigos, C e D, visitam o Marquês de A. Então, C, que também iria ao evento na casa de B, pergunta ao Marquês a que horas este pretendia ir. O Marquês explica a C que não vai, diz o porquê, e acrescenta que não dirá a B Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 349 Schincariol O Ídolo à luz das novelas policiárias que não irá a sua casa. Seria possível cogitar que, ao incluir, entre parênteses, “reason?” (PESSOA, 2011: 43), Pessoa questionava-se se, na economia da narrativa, seria apropriado revelar a C a razão de o marquês não dizer a B que não iria ao evento, como que num momento de flagrante hesitação. Deve-se atentar, no entanto, que o marquês não revelar a B que não iria a sua casa é condição imprescindível para que o enredo se desenrole como Pessoa teria planejado. Revelar a C por que não diria nada a B implicaria tornar C ciente do seu plano de enviar o criado em seu lugar, e aquilo conduziria a narrativa por um caminho bastante diferente. Nesse sentido, é mais apropriado encarar a suposta lacuna indicada por “reason?” como uma evidência de que o Marquês poderia inventar qualquer razão que fosse, sem que ela interferisse nos rumos da história. Trata-se este de mais um exemplo de como, nos argumentos de Pessoa, “lacunar” não indica hesitação ou problema a ser resolvido posteriormente; mas, sim, marca, pontualmente, os aspectos flexíveis, passíveis de variação, que, como insisto, são raríssimos. À saída da casa do marquês, D, que não tinha sido convidado, mas queria ir à casa de B, propõe a C que poderia ir ao evento fazendo-se passar pelo marquês, já que na casa de B nunca tinham visto este último em pessoa. Sem qualquer hesitação, C concorda com a ideia. O diálogo em discurso direto entre C e D que então se segue fornece o tom exato da cena, reforçando o modo imediato como C aceita a proposta, como se passar-se por outra pessoa não trouxesse consequência alguma: “‘They don’t know A there, do they?’ – ‘No. Why?’ – ‘Well, I could go as A, since they don’t know him’; – ‘Good idea, do that’, says C” (PESSOA, 2011: 43). A parte “2” termina com “But she surely will know h[i]m there” (PESSOA, 2011: 43), antecipando que o plano de D poderia não correr bem pelo fato de uma mulher, supostamente na casa de B, poder identificá-lo, sem ficar claro se “him” se refere a D ou ao marquês. Este último caso parece ser o mais provável, sendo a mulher, no caso, Lady E, que aparece logo em seguida, na parte “3”. A parte “3” inicia com o marquês recebendo uma chamada telefônica de Lady E, de quem está enamorado, na qual ela lhe conta que vai ao evento na casa de B. Lamentando não poder ir, o marquês lhe explica por quê. Lady E duvida, o que deixa o marquês nervoso, o que, por sua vez, a leva a desligar o telefone. Apesar de não se sentir bem, o marquês pensa em ir ao evento, considerando que F, um rival seu perigoso, estaria lá. É quando se lembra de que havia enviado o criado para se fazer passar por ele e que este já saíra – sem saber que D também assumiria sua identidade, do que o espectador já sabe – e de que D, que recentemente o visitara na companhia de C, não iria ao evento. O marquês decide então ir como D ao evento. Ao encontrar C, daria algum tipo de explicação ao amigo. Essa passagem é de extrema importância para criar tensão e expectativa porque o fato de tanto o marquês ir ao evento como D concretizaria uma inversão de identidades. Entre parênteses, informa-se que o marquês confessa a Lady E o seu jogo, contando que o criado iria fazer-se passar por ele. O que teria como objetivo evitar Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 350 Schincariol O Ídolo à luz das novelas policiárias confusão acabará tendo o efeito contrário, já que a conversa com o marquês leva Lady E, num momento seguinte, a supor que D era o criado, já que D também iria “disfarçado de marquês”. Também entre parênteses, questiona-se se o marquês iria fazer face à agência que pensava em enviar um detetive ao evento, ou então teria sido instruída a enviar alguém que se passasse por um detetive, adicionando, assim, a possibilidade de uma outra camada na confusão de identidades. Se o primeiro uso de parênteses parece indicar o que o marquês teria dito a Lady E em uma conversa – provavelmente por telefone –, o segundo uso sugere antecipar parte do andamento da história para que se acompanhe, com mais clareza, para onde ela caminha. Já na casa de B, o criado encontra-se com Yvonne, a camareira, revelando a essa que se passava pelo marquês. A camareira informa ao criado que outra pessoa já havia sido anunciada como o marquês – sem saber que esta pessoa era D –, o que coloca ironicamente o criado, que já era impostor “em segredo”, na iminência de ser visto na posição de impostor “em público”. Atônito e, uma vez dentro da casa de B, o criado se lembra de que D não havia sido convidado para o evento. Sem saber que D era a tal pessoa anunciada como o marquês, o criado decide se passar por D. Isso significa que alguém se passando pelo marquês se faria passar por uma outra pessoa que também estaria se passando pelo marquês. Diante dessa informação, o argumento pressupõe que o espectador, já um tanto aturdido, deveria antecipar que a decisão do criado viria a causar espanto e estupefação em D, que, num possível encontro, se veria na situação de estar se passando pelo marquês enquanto um outro se passava por ele. Uma informação entre parênteses, como é comum nesse argumento, adianta o acontecimento, com a possível intenção de que se acompanhe o assunto – e também o filme – sem que, até esse ponto, o leitor / espectador desista de tentar seguir o fio da história, o que arruinaria o processo: “This he [o criado] does (to subsequent great astonishment of the real Duke [outro modo se se referir a D]” (PESSOA, 2011: 44). Sem marcação de mudança de cena – o que corrobora que a numeração ao longo do argumento se referia mesmo às partes da história / do filme –, sabe-se que, depois de subir no muro do jardim da casa de B, tentando entrar na festa, o marquês – o verdadeiro – é preso por um detetive. O marquês explica ser ele mesmo, no que o detetive não acredita. Aquele então lhe explica que enviara o criado para se fazer passar por ele. O detetive então lhe revela que sabia que a pessoa que então se passava pelo marquês não era o marquês, mas sim D – sugerindo que o detetive teria concluído que D era o tal criado? Como se não se desse conta da real situação e guiado pela vaidade, o marquês dá a entender que D havia tentado se passar por ele porque parecia mesmo alguém distinto – o que sugere que o marquês concluíra que aquele a quem o detetive se referia como D era de fato seu criado? Mais uma vez reproduz-se a fala de um personagem, desta vez a do marquês, marcando o tom irônico da narrativa. O argumento então informa que D não queria ir ao evento como ele mesmo – indicando que isso teria se dado por qualquer razão – “(some reason)” (PESSOA, 2011: Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 351 Schincariol O Ídolo à luz das novelas policiárias 45). Essa razão, no entanto, envolveria o criado – que se fazia passar por ele – em grandes complicações, uma vez que o homem ou mulher que constitui o motivo de D não querer ir como ele mesmo não o conhecia – sendo assim, entende-se, esse homem ou mulher poderia acreditar que o criado era de fato D. A última passagem desta parte introduz a informação de que o criado era um vigarista internacional. Sabe-se que o detetive, ao ouvir que o marquês havia enviado o criado para se passar por ele, começa a suspeitar do próprio marquês. Tendo-se em conta que este, ao ser flagrado pulando o muro do jardim, já havia explicado ao detetive o plano envolvendo o criado, talvez se queira dizer que o detetive tenha finalmente se dado conta do problema ao saber, um pouco depois, que o criado era um vigarista. O detetive prende – o ponto de interrogação em “arrests (?)” indicaria qualquer outra possibilidade de intervenção, já que não interferiria nos rumos da narrativa (PESSOA, 2011: 45) – ambos, o marquês (que é D) e o verdadeiro marquês quando este entra declarando sê-lo. Deve-se notar, pelo que se entende, que o criado, ele mesmo, não é capturado, o que torna ainda mais questionável a atitude do detetive. Questiona-se, neste ponto, se e como o espectador teria acompanhado esse jogo em que, quando se refere a alguém, este alguém pode ser outro. Outra questão essencial é se o mistério (em torno do jogo das identidades), que claramente ocorre no nível das personagens, se reproduz no nível do espectador, já que, como o argumento indica, este teria acesso privilegiado a certas informações, ao acompanhar cenas em que somente algumas das personagens fazem parte, por exemplo. A passagem que descreve a captura dos “dois marqueses”, a qual tem ar de fim de história, dialoga, sobretudo em razão de certas referências e personagens em comum, com outros documentos, sugerindo uma possível intenção de estender de alguma forma a narrativa, ou então de complementá-la de alguma forma, de explorar ainda mais o jogo de identidades. No documento incluído como parte de “Half plan of play or film” e que recebe o irônico título de “The Multiple Nobleman”, acompanha-se um diálogo, desta vez em português, entre duas personagens femininas, em que se comenta sobre como se determina a vida e o caráter de um homem, como acredita uma delas, como a ensinaram na aula de história, “sommando os factos que os definem” (PESSOA, 2011: 46). Refere-se a um homem que se destaca dos demais, nobre, leal e destemido, qualidades essas que teriam sido reconhecidas por uma dessas senhoras, guiada pela intuição feminina. Tratar-se-ia este de um “verdadeiro Homem” (PESSOA, 2011: 46). Umas das senhoras envolvidas no diálogo afirma que esse Homem “não era o Marquez de A. que estava lá,” (PESSOA, 2011: 46), indicando que o farsante poderia ser o criado ou D, os quais se passavam pelo marquês. Um terceiro participante desse diálogo, supostamente o marquês, que, como se sabe, estava febril e ainda assim foi ao evento, intervém na conversa: “– Estive com um ataque de gripe aguda” (PESSOA, 2011: 46). A reação não é das mais agradáveis: “– O que o Marquez Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 352 Schincariol O Ídolo à luz das novelas policiárias esteve foi com um ataque de immoralidade aguda. A mulher do Crespo! Parece impossível. Para onde é que a levou?” (PESSOA, 2011: 46). Nesse ponto, questiona-se quem seria essa tal “mulher do Crespo”. Note-se que, de acordo com a fala de uma das senhoras, a imoralidade do marquês era atribuída a ter fugido com uma mulher comprometida e não, como seria apropriado pensar, a este ter pedido que seu criado se passasse por ele – o que poderia mesmo confirmar que o marquês a que se referiam era o criado ou D; estes dois, como se sabe, estavam envolvidos com alguém que se encontrava na casa de B: o criado com Yvonne e D com alguém que o argumento não menciona e que o teria levado a ir ao evento sob outra identidade que não a sua. Seria “a mulher do Crespo” a criada Yvonne, Lady E, ou uma terceira pessoa? É possível ainda cogitar se o marquês que participava do diálogo era o verdadeiro, ou se era um dos que se passavam por ele, o que dependeria de saber se essas senhoras haviam encontrado pessoalmente o marquês ou os que pretendiam ser ele. No documento “III”, publicado na sequência a este último, há um outro diálogo, também em português, de que as duas senhoras – supostamente as mesmas do anterior – fazem parte. Pode-se encarar esse diálogo como uma continuação do anterior, ainda que não se possa afirmar quanto tempo depois do primeiro ele teria se dado. Confirma-se, aqui, que as senhoras são mãe e filha – supondo serem elas as mesmas de então. A mãe, tentando explicar o caso à filha, lança suspeita sobre quem seria de fato aquele que pensavam ser o marquês: Se esse rapaz fingia lá ser o Marquez de A. [essa pessoa seria o criado, já que o termo “rapaz” não teria sido usado para se referir a D, que era um Duque] e se se disse que a Crespo [termo que descarta a hipótese de que se referiam a Lady E] fugiu com o Marquez de A. e ela não fugiu com este rapaz [ou seja, se o rapaz com que ela fugiu e que se passava pelo marquês não era o criado], como tu mesma estás dizendo, então é que ella fugiu com alguém que lá conheceram como o Marquez de A. Fugiu com este senhor, minha filha... (PESSOA, 2011: 47) Ironicamente, mãe e filha mostram-se mais sagazes – e mais eficientes – do que o detetive, sobretudo a mãe, que deduz que havia um outro se passando pelo marquês – e sabemos que era D. Num outro nível, é possível concluir que D é quem teria fugido com a Crespo e que esta – ou seriam ela e o marido – teria sido a razão de D não querer ir ao evento como ele mesmo. Dando sequência ao diálogo, a filha chama a atenção para o fato de que “havia lá um outro rapaz que se dizia Marquez de A.” (PESSOA, 2011: 47) – o termo “rapaz” sugere que, nos comentários que a filha ouvira, as pessoas se referiam como “rapaz” àquele que era D, um duque, se passando pelo marquês – possivelmente levados pelo fato de saberem que o marquês enviara um criado ao evento passando-se por ele?; “piada” que seria descartada se a filha tivesse visto D como marquês e o tivesse reconhecido. Segue-se, então, o seguinte “esclarecimento”, em inglês e entre parênteses: “(She could not have seen him and recognized him, or then she would know the Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 353 Schincariol O Ídolo à luz das novelas policiárias Duke as he when she saw him that morning) (This [referindo-se ao fato de a menina ter visto o suposto marquês, constatando que de fato era D] only cuts out the little joke about his valet looking a valet whereas he was the Duke)” (PESSOA, 2011: 47). Na fala seguinte, supostamente da mãe, a senhora julga ter desvendado o enigma: “– Ora ahi está. Se este rapaz passava por Marquez de A. [“rapaz” indicaria que se trata do criado, ou de D, o duque, sendo identificado pelas pessoas como o criado que teria ido ao evento passando-se pelo duque?] e ainda lá estava quando a Crespo fugiu com o Marquez de A. [cogitando que o marquês com o qual a Crespo fugiu – que acreditamos ser D – era outro distinto do marquês que ainda lá estava – supostamente o criado, ao qual as pessoas se referiam como “rapaz”], é que reconheceram o Marquez de A”. O seguinte comentário da senhora sugere que ela se aproxima muito da solução do enigma, ainda que duvidasse da possibilidade de sua hipótese: “– Não me parece muito possível que houvesse lá duas pessoas a fingir de Marquez de A. Não te parece?” (PESSOA, 2011: 47). É quando uma delas se refere a um tal de “Antonio”, nome que até então não fora mencionado na narrativa, que saberia da verdade: “– Antonio, dize-me a verdade...” (PESSOA, 2011: 47). Este, de quem é cobrada a solução do enigma, poderia ser, talvez, o nome do detetive, que confessa ter perdido o controle da situação: “– Sei lá qual é a verdade. Não sei nada. Não percebo nada. Estou completamente doido” (PESSOA, 2011: 47). Importante é notar que o detetive, sendo ele ou não o “Antonio”, não consegue solucionar o enigma em que se transforma o jogo de identidades. Da mesma forma que não chegam à solução mãe e filha, num certo sentido detetives (mais espertas do que o próprio, aliás); e não seria essa uma evidência de que a agência enviara alguém que se passasse por detetive, como o argumento já tinha cogitado? Há ainda um outro documento pertencente a esse mesmo argumento a analisar, “III. 1st. scene.”. No diálogo, em discurso direto e em português, alguém identificado como “maid” interage com um outro identificado como V, possivelmente ao criado (“valet”). Aquela diz para V. que o havia visto às pancadas com o Crespo – cuja mulher, como se sabe, teria fugido com alguém se fazendo passar pelo marquês. De acordo com V., o Crespo julgava que ele era D, daí a pancadaria. “Maid”, que dá evidências de conhecer intimamente V., acusa-o de dar desculpa esfarrapada, dizendo que o Crespo o tinha flagrado a fazer com a esposa dele as mesmas coisas que fazia com ela; indicando que “Maid” na verdade era Yvonne, camareira por quem V., o criado, aceitara a proposta do marquês. Yvonne, indignada pela traição e mal se aguentando de tanta raiva, afirma ainda que o criado teria engambelado e iludido a mulher do Crespo, fazendo-se de marquês. No documento final, “III.2.”, acompanha-se uma breve interação, no mesmo formato dos diálogos que seguimos, entre A (entende-se que se trata do Marquês de A.) e V. (identificado no documento anterior como o criado). Diante da reclamação do marquês quanto a um barulho que ouvia, o criado, pedindo desculpas, diz-lhe, como já seria de se esperar nesse ponto, que se tratava de uma irmã que estava zangada Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 354 Schincariol O Ídolo à luz das novelas policiárias com o marido – e podemos deduzir de quem se trata. Questionado pelo marquês sobre por que a irmã teria sentido necessidade de se zangar na sua casa, o criado responde: “– Não tinha, senhor M., mas eu corri logo com ella” (PESSOA, 2011: 47). Faz sentido considerar que, no argumento que analisamos, a “reviravolta final” não se dá de forma tão clara quanto nos anteriores. Talvez mesmo os fragmentos com diálogos em português pudessem ser lidos como tentativas de reforçar que não se chegaria a nenhuma conclusão sobre a troca de identidades, ainda que algumas deduções passassem muito próximo desta; ou melhor, que as personagens quebraram a cabeça por nada, considerando-se que o criado, o vigarista internacional, saiu ileso. Há uma possível interpretação: que Pessoa, ao estender uma narrativa que parecia já ter chegado a um possível final cômico – com a captura do marquês verdadeiro e do falso marquês, ficando o criado às soltas –, pretendesse de alguma forma que o espectador experienciasse o mesmo processo de exaustão por que passam as próprias personagens. Assumindo que os diálogos em português podem ter acontecido algum tempo depois do “possível final” a que me referi, a intenção poderia ser a de expressar um mistério que teria permanecido no tempo entre as personagens, reforçando a impressão de irresolúvel. Tendo em conta os demais argumentos analisados, minha hipótese é de que o resultado pretendido com o que acredito consistir em um “exercício de finalizar a narrativa”, seria o de questionar a posição privilegiada do espectador de “saber mais que as personagens”. Em outros termos, a captura dos marqueses no “primeiro final” representaria a possibilidade de o espectador, sabendo mais do que as personagens, ver-se na posição confortável de ter chegado à solução de mistério. As partes com diálogos em português, nesse sentido, relativizariam essa mesma conclusão ao revelar ao espectador que havia mais a ser resolvido do que este pensava. Saber se o espectador acompanhou visualmente a captura do falso marquês ou se simplesmente teve acesso à informação de que o detetive o fizera ajudaria a interpretar com segurança as intenções de Pessoa. O fato de o verdadeiro marquês ter sido capturado pelo detetive quando adentrava o local anunciando como “aquele que era quem de fato afirmava ser” pode sugerir que o espectador poderia não saber se o impostor capturado fora de fato o criado ou D, ou seja, que esse tenha sido um fato anunciado, mas não mostrado, o que justificaria a necessidade do “esclarecimento” posterior. Independentemente de termos ou não essa certeza, podemos concluir que, também no nível do espectador, não fica claro quem deveria ser considerado o “culpado”, e não considero dever-se ao acaso que a suposta cena final termine com o marquês e o criado, já publicamente identificado como vigarista internacional, trabalhando em sua casa como se nada tivesse acontecido. De forma retrospectiva, movimento esse sugerido por todos os diálogos em português, toda a confusão poderia ter sido evitada se o marquês, em vez de dizer não ia ao evento e enviar o criado à casa de B, tivesse simplesmente ido, mas como ele mesmo. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 355 Schincariol O Ídolo à luz das novelas policiárias A ideia de uma narrativa policial que, ao final, provoca a sensação de “não dar no que se esperava que desse”, ou então de que “se raciocinou tanto por nada”, como acontece nos argumentos para cinema de Fernando Pessoa aqui analisados, não é alheia às novelas policiárias, particularmente as da série Quaresma. A força inquestionável do raciocinador e a sua fama de decifrador infalível não impedem que, num nível mais superficial da narrativa, sua eficácia seja questionada, sobretudo quando se espera um desfecho típico de uma narrativa policial. A fragilidade dos raciocínios de Quaresma e a sua inutilidade do ponto de vista jurídico é reforçada com veemência pelo juiz em “O Caso Vargas”: O caso é este, sr. dr. Quaresma: V.a Ex.a pensa cientificamente, e eu penso juridicamente. O seu argumento convence toda a gente, menos um juiz. Qualquer pessoa, por esse argumento, dá o Borges por culpado, excepto um juiz. O mais reles advogado de defesa destrói em juízo todo esse seu esforço, que é mais que assombroso. E destrói-o com um argumento cientificamente estúpido, mas juridicamente formidável: prove. (PESSOA, [2008] 2014: [126-127] 116-117; BNP/E3, 2714 V2-28r) De modo semelhante ao que acontece ao fim dos três argumentos para filmes que analisamos, a breve nota acrescentada ao depoimento final em “O Caso Vargas” sugere, ironicamente, que a elaboração inteligente do crime, a investigação dos policiais, os raciocínios elaborados por Quaresma, as explicações e a autoanálise de Borges, tudo isso teria sido em vão, ao menos de uma perspectiva prática: Da intenção do comandante Pavia Mendes [referindo-se aos planos para um submarino] provou-se, afinal, que envolvia um erro tendencioso num dos seus dois pontos principais. O outro está bem, mas já havia sido inventado, um ano atrás, e por coisinha de nada, por o sr. José Branco. O invento do Pavia Mendes resultou, pois, incomerciável. (PESSOA, [2008] 2014: [140] 128; BNP/E3, 2715 V2-16r) No contexto das novelas policiárias, a não resolução de um crime do ponto de vista jurídico, pelas mais diversas razões possíveis, só vem a ressaltar que o que de fato importa é a representação dos raciocínios do investigador-racionador, que, num sentido último, constituem o enredo das narrativas. Em termos mais precisos, em vez de ver no que a história vai dar até a solução do mistério, as novelas policiárias esperam que o leitor veja no que vão dar os raciocínios do investigador-raciocinador, como se a solução do mistério não dependesse da “trama”, mas fosse essencialmente o resultado desse processo intelectual; ou então que neste último residisse o próprio mistério. Quando, à luz dessas constatações, volta-se, mais uma vez, para a análise dos argumentos para filmes escritos por Pessoa, é necessário questionar qual teria sido o objetivo de construir mecanismos de suspeita de forma tão meticulosamente calculada, para depois revelar que o jogo jogado nem mesmo aconteceu. Em “Note for a silly thriller. | or for a film”, há um crime que, além de não ter sido resolvido do ponto de vista “legal”, estritamente falando não chegou a Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 356 Schincariol O Ídolo à luz das novelas policiárias ocorrer. Minha hipótese é de que o ato de “dissolver” a própria existência do mistério tem o objetivo último de, também no cinema, reduzir a narrativa aos raciocínios do investigador; mas desta vez, aos do espectador-transformado-em-investigador. No nível da narrativa, aquele que se declara como detetive (pseudo-X) não é aquele a efetivamente investigar o “mistério”. Com isso, desloca-se para o espectador o papel de investigador-de-fato; o que reforça, como penso, a impressão ilusória (e da parte deste) de que se encontra “dentro” do universo ficcional em que a história se passa, como se se visse transformado em um dos peões em torno dos quais gira uma narrativa policial. O que pretendo dizer com isso é que o argumento em questão prevê que o espectador, “manipulado” pelos mecanismos da suspeita de que aquele que se declara como detetive lança mão, é a quem caberia, em sentido último, resolver o mistério – que supostamente seria o do roubo dos diamantes, crime esse que, na verdade, não ocorre. Diferente do que comumente acontece na literatura policial, em que o leitor num certo sentido “compete” com as habilidades intelectuais do detetive, no referido argumento de Pessoa o espectador é ludibriado por um detetive-que-efetivamente-não-o-é. Acredito que algo semelhante aconteça em “Note for a thriller, or film”. Como acompanhamos, neste argumento o mistério não se concretiza porque o ídolo nunca estivera no iate em que C testa, por diversão, a honestidade dos convidados. Pelas mesmas razões, tampouco poderia ter havido o roubo desse mesmo objeto. O fato de não haver um detetive na narrativa coloca, mais uma vez, o espectador no papel daquele a quem cabe resolver o “mistério” a partir das informações que a narrativa estrategicamente lhe fornece. Em outro nível, essa ausência contribui para reforçar a impressão, da parte do espectador e das personagens, de que não haveria nada palpável com que se preocupar, seguindo aqui a infalível constatação de que onde há detetive, haverá crime – constatação essa, aliás, que Pessoa subverte, ao seu modo, em “Note for a silly thriller. | or for a film”. Em “Half plan of play or film”, se o complicado jogo de identidades impede que o detetive – como as demais personagens – chegue à “solução” do mistério, a trajetória do criado do marquês desestabiliza o julgamento moral que poderíamos expressar sobre quem deveria ser responsabilizado. Nesse sentido, o fato de o criado ter saído ileso significaria falta de justiça ou o cumprimento dela? E o que dizer do marquês, que convenientemente usou o criado e, mesmo depois de este ter sido desmascarado como vigarista internacional, continua contando com seus serviços? O tom de humor que percorre a narrativa contribui para que se questione se chegou a haver de fato algum tipo de crime. Analisado no quadro da poética da ficção policial detetivesca, o final dos argumentos aqui analisados poderia ser encarado com uma caricatura dos possíveis e (in)imagináveis truques de mau gosto a serem “cometidos” por um escritor, truques esses encarados pela tradição como formas de trapacear e/ou desrespeitar o leitor. No quadro da ficção policial (cinematográfica) concebida por Pessoa, porém, Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 357 Schincariol O Ídolo à luz das novelas policiárias “desrespeitar” o espectador – e com isso “desrespeitar” a tradição – parece ser condição necessária para que os seus argumentos para cinema ultrapassem o nível das narrativas policiais um tanto tolas e despretensiosas. Em “Note for a silly thriller”, “desrespeitar” o leitor significa reproduzir no nível da narrativa – para depois desconstruir –, o mecanismo de “impressão de realidade” de que o cinema, basicamente, se constitui; num outro nível, leva a considerar em que medida o encadeamento dos raciocínios que a crença na existência do mistério incita no espectador sobreviveria à própria revelação de que o mistério que é convidado a resolver nunca existiu. Pode-se afirmar, nesse sentido, que os argumentos para filmes de Pessoa preveem que, diante da revelação final, o espectador confronte os raciocínios tecidos até então, e que de alguma forma se posicione em relação a eles. Dito de outra forma, é preciso que Pessoa surpreenda o espectador com a revelação de que “tudo se fez por nada” para que este tome consciência do modo como tecera hipóteses e chegara a suas conclusões e, num certo sentido, de como pôde ter se deixado ludibriar. De uma outra perspectiva, dissolver o mistério significa, antes de mais nada, reduzir o filme ao que ele possui de mais essencial: os raciocínios concatenados pelo espectador-investigador; raciocínios que, uma vez destituídos, ainda que de forma metafórica, do seu “esqueleto-mistério” – reação “retroativa” diante da constatação de que o mistério não existiu – , são como que “apreendidos” de forma “abstrata”, no sentido de sua existência não depender necessariamente de um caso ou mistério a ser resolvido – trata-se de um conceito a ser discutido logo adiante. A ausência de propósito ou sentido mais profundo que poderia ser atribuída ao processo de experienciar o desfecho dos argumentos criados por Pessoa é, como acredito, aparente; tão ilusória quanto o próprio cinema: afinal de contas, trata-se de um filme que, ao “ludibriar” o espectador, torna-o mais consciente, a uma só vez, dos mecanismos pelos quais o cinema fabrica a impressão de realidade, como também dos elementos e fatores que o influenciam a “pensar como pensou”. “Note for a thriller, or film” e “Half plan of play or film” apontam para essa mesma direção. No caso do primeiro, o confronto do espectador com as hipóteses e suposições que construíra até o momento da revelação final se dá, como vimos, por meio de um enredo, digamos assim, mais despojado. No caso deste argumento, é como se a revelação final tornasse o espectador mais consciente da forma como julgou o caráter dos personagens, como se, com seu “jogo”, o milionário C pretendesse julgar também o caráter do espectador. Quanto ao segundo, ainda que a revelação final não se dê exatamente por uma “reviravolta” tão explícita ou impactante, ao espectador é deixada a tarefa de julgar, segundo seus próprios critérios, as questões morais envolvidas num complicado jogo de identidades explorado à exaustão. O conceito de “raciocínio abstrato”, a que me referi há pouco, torna-se mais claro quando analisado no quadro das novelas policiárias, particularmente as da série Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 358 Schincariol O Ídolo à luz das novelas policiárias Quaresma. Para tanto, é necessário recorrer às considerações de Pessoa em Detective Story. As referências ao leitor nesse ensaio teórico sobre o gênero policial, muitas das quais dialogam explicitamente com autores consagrados no contexto da ficção policial, devem ser analisadas pelas lentes do objetivo que atravessa o ensaio de modo transversal: “I wish the reader to understand that I make a great distinction between a mystery-tale and a detective story” (PESSOA, 2016: 252; BNP/E3, 146-78r). Para Pessoa, uma história policial, diferentemente de uma história de mistério, é essencialmente uma história de investigação, ou melhor, “a tale of investigation, is a mystery story, the chief interest of which lies, not in the mystery itself, but in the investigation of it”. O autor acrescenta que “Ordinarily a tale is both―mystery story and detective story―for the mystery exists both for the reader and the investigator; it is, however, not essential that it should exist for the reader” (PESSOA, 2016: 238; BNP/E3, 100-28r). Pessoa então recorre ao Austin Freeman de Shadow of the Wolf e de Singing Bone como exemplo bem-sucedido do método de mostrar o crime a ser cometido e depois descrever o modo como dr. Thorndyke chega à solução do mistério, sendo que “the latter process constitutes the story, which is therefore not of mystery but a tale of investigation or, in other words, a detective story pure and simple” (PESSOA, 2016: 238; BNP/E3, 100-28r). Ao tratar daquela que seria a principal diferença entre uma história policial e uma história de mistério, portanto, Pessoa a atribui ao fato de “história policial” ser uma história de mistério cujo principal propósito não reside no mistério em si, mas na sua investigação. De acordo com essa distinção, os argumentos para cinema de Pessoa revelam toda sua complexidade. Num certo sentido, “Note for a silly thriller. | or for a film” poderia ser definida como uma história de mistério – que existe, ainda que temporariamente, para o espectador-investigador e não para aquele que se declara como detetive – que, ao final, converte-se em “uma história policial pura e simples”, num sentido mais extremo que o atribuído por Pessoa às referidas narrativas de Freeman. O que possibilita que se chegue a tal conclusão é que, ao se revelar, ao final, que não houvera efetivamente mistério algum, o que “entra em jogo” são os raciocínios que teriam conduzido o espectador em sua “investigação”, e que o teriam levado à conclusão de que o mistério teria, de fato, acontecido. Guardadas as devidas diferenças, o mesmo pode ser dito sobre “Note for a thriller, or film”, que, num sentido estrito, não é uma narrativa de mistério, mas sim da investigação de um suposto mistério (pelo espectador). “Half plan of play or film” talvez seja, nesse sentido, o mais radical dos argumentos analisados. Num nível, pode ser considerada uma história de mistério – ou seria de (também) crime? – em que o processo de investigação se dá por meio de um jogo de identidades vertiginoso, o qual, perpassado pelo humor, põe em xeque a seriedade do jogo e o sentido do que é uma investigação e sua validade. Em relação aos resultados desta, a solução “moral” não é apresentada como resolvida ao espectador, da mesma forma que o mistério não se resolve por completo no nível das personagens. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 359 Schincariol O Ídolo à luz das novelas policiárias Dando sequência a suas observações, Pessoa atenta que investigação – que pode ser “natural and patient, as in Mr. Wills Crofts’ novels, or superior and scientific as in Dr. Austin Freeman’s” (PESSOA, 2016: 238; BNP/E3, 100-29r) – não deve ser confundida com incidentes. É o que fica claro, por exemplo, na seguinte passagem de “Note for a silly thriller. | or for a film”: “Then the gangs begin to work one against another, and several complicated incidents arise. (This can be made interesting by a series of liveliness, which, if this be a film, can be easily visualized)” (PESSOA, 2011: 40). Nesse sentido, Pessoa teria deixado em aberto tais incidentes / ocorrências simplesmente por não interferirem no que realmente importa: a noção de “investigação”. É o que também pode ser dito sobre a seguinte passagem de “Note for a thriller, or film.”: “Numerous complex adventures ensue during the voyage [...]” (PESSOA, 2011: 42). O autor esclarece que a verdadeira história policial, que é uma história de dedução, atingiria o seu ponto mais alto e mais simples “when no investigation is conducted”, como no conto de Poe “Purloined letter”, “where Dupin’s obtaining of the letter is a mere postscript in the narrative” (PESSOA, 2016: 239; BNP/E3, 100-29r). Questiono-me se não teria sido esse o verdadeiro propósito da “inversão” final dos argumentos de que tratamos. Em “Note for a silly thriller”, como se acompanhou, a investigação não ocorre por parte daquele que, na narrativa, se declara como detetive; mas, sim, por parte do espectador, que tem que fazer sentido com as informações com ele compartilhadas ao longo da intrincada narrativa. A revelação de que X. e seus diamantes nunca estiveram no navio faz questionar se teria havido investigação, num sentido próprio do termo, de um mistério que nunca houve. Por essa mesma razão seria possível considerar que tampouco houve investigação em “Note for a thriller, or film”. Já em “Half plan of play or film”, resta a seguinte questão, que aponta para mesma direção dos demais argumentos aqui analisados: quebrou-se tanto a cabeça para, no jogo de identidades, determinar quem eram de fato aqueles que diziam ser eles mesmos, mas para quê? A questão de que nos ocupamos remete ao conceito de armchair detective – “The ideal detective story is that where facts are put before the reader and the detective solves the problem without anything but those facts, that is to say, without shifting from his chair” (PESSOA, 2016: 239; BNP/E3, 100-29r). De acordo com esse conceito, é prescindível a investigação no sentido convencional do termo – visitas ao local do crime, coleta de pistas e evidências, depoimentos de testemunhas –, configurando-se, em vez, como atividade puramente cerebral: no caso nas novelas policiárias, “atividade puramente cerebral” seria a sequência dos raciocínios do detetive-decifrador; nos argumentos para filmes em questão, a sequência dos raciocínios do espectador-assumindo-o-papel-de-investigador, com os quais este é levado, ao final, a se confrontar. Nesse sentido, “The tale of mystery is imaginative, the detective story is intellectual, in its essence: that summarizes their fundamental distinction” (PESSOA, Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 360 Schincariol O Ídolo à luz das novelas policiárias 2016: 240; BNP/E3, 71-20v)18. Como já se insinua, o conceito de “história de decifração” prevê um lugar particular para a figura do investigador-decifrador – no cinema, para o espectador-tornado-investigador: “As the tale we are considering is based on an intellectual problem and on its solution, it is obvious, axiomatic, that the figure of the man who solves it must be the central figure” (PESSOA, 2016: 244; BNP/E3, 146-46v). Isso permite cogitar que, se nas novelas policiárias a personagem central é o raciocinador, nos argumentos de que tratamos a “personagem central” seria o espectador. O papel central do espectador, previsto pelos argumentos, mas a ser exercido no ato de ver o (hipotético) filme, permite afirmar que esses argumentos não são tão banais quanto uma leitura mais descompromissada e que se restringisse exclusivamente à narrativa poderia levar a pensar. Tem-se aqui uma forma possível de explorar a conscientização do espectador. Questiono-me, nesse sentido, se Pessoa não estaria indiretamente acrescentando uma quarta categoria àquelas que viriam a ser reconhecidas como “cinema de autor”, cinema de ator” e “cinema de personagem”. Não se pode afirmar que Pessoa esteja reinventando as regras da literatura policial em suas novelas policiárias – tampouco em seus argumentos para filmes. Entretanto, o caráter subversor desses apontamentos reside no grau a que conceitos e procedimentos tidos como fundamentais na poética do gênero policial são elevados a uma potência (bem) mais alta ou extrema; como quando o autor constata que “The reasoning of the detective is the plot of the detective story; not as many has conceived it, the crime that leads to the detective work” (PESSOA, 2016: 244; BNP/E3, 146-47v). Pergunto-me se Pessoa não teria almejado algo semelhante – explorar os limites do conceito de enredo – ao conceber os argumentos aqui analisados; mas desta vez explorando os recursos que são mais viáveis no cinema (tratando-se, como somos levados a crer, do cinema mudo): nas novelas policiárias, representar os raciocínios do decifrador em “estado puro” implica, entre outros procedimentos, que Pessoa (re)crie a linguagem por meio da qual aquele se expressa (cf. SCHINCARIOL, 2023a); no cinema, a solução teria sido, num sentido último, colocar o espectador na posição de investigador para depois, pela já analisada “inversão final”, tentar capturar a sequência dos raciocínios pelos quais, até então, este se deixara guiar. De uma perspectiva mais ampla, acredito que Pessoa, na literatura como no cinema, pretende, a um só tempo e por meio de mecanismos que se justificam pelas diferenças de linguagem: a) derrubar a ideia de crime como motor de uma narrativa policial; b) reinventar o conceito de enredo; c) sugerir um outro nível em que deve se dar a epifania final; d) como consequência disso tudo, deixa entrever um novo papel para o leitor / espectador e também um outro tipo de fair play: “Here the plot is not only in the mystery, but also in the intellectual process by which the mystery is unravelled, the interest [is] in the very same intellectual process, in its progressive “If ‘detective tales’ were called ‘decipherment stories’, that juster title would define them as the usual one does not” (PESSOA, 2016: 240; BNP/E3, 71-20v). 18 Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 361 Schincariol O Ídolo à luz das novelas policiárias resolution of the truth, far more interesting than the other kind of dénouement” (PESSOA, 2016: 249; BNP/E3, 146-59r). A própria noção de mistério é redimensionada de modo radical: “[...] but whereas in the tale of mystery the unravelment is part of the tale, in that of decipherment it is the mystery that is part of the unravelment” (PESSOA, 2016: 240; BNP/E3, 71-20v). Ao ler as novelas policiárias, por momentos nos esquecemos de que há mesmo um mistério a ser resolvido além daquele em que se transformam os próprios raciocínios do decifrador. É nesse sentido que se pode afirmar que Quaresma resolve os casos por meio de um “raciocínio abstrato”. É sintomático que nos momentos em que Quaresma remete diretamente a um caso particular sendo investigado, tal referência se justifique, em especial, pela necessidade de esclarecer algum ponto do raciocínio abstrato que se apresenta. É o que indica a seguinte passagem de “O Caso Vargas”: “Admitindo que aqui houvesse homicídio, e cometido da maneira que imaginei, qual seria a mentalidade do homicida, fosse ele ou não o Borges?” (PESSOA, [2008] 2014: [116] 108; BNP/E3, 2714 V2-93r). O próprio Guedes, amigo de Quaresma, por vezes se confunde e se irrita com o nível a que pode chegar o caráter abstrato dos raciocínios do decifrador, como acontece em “O Caso do Triplo Fecho” ou “O Roubo no Banco de Galícia”: “O dr. me dá licença? – interrompeu o chefe Guedes. Tudo isso é muito interessante, mas o doutor está a fazer uma prelecção sobre a investigação de crimes?” (PESSOA, [2008] 2014: [307] 283; BNP/E3, 2712 O2-5r). É nesse sentido que o fato de Pessoa não terminar de redigir o final da novela “O Desaparecimento do Dr. Reis Gomes” não invalida o raciocínio até então apresentado. Numa narrativa policial mais convencional, particularmente do tipo “enigma”, a ausência de uma “conclusão” sobre quem cometeu o crime invalidaria imediatamente o trabalho do detetive, cujo raciocínio se aplicaria (muitas vezes exclusivamente) ao caso particular em investigação. Pode-se considerar que, em parte, o caráter abstrato dos raciocínios de Quaresma se explica pelo fato de ser, como já se observou, um armchair detective; e, portanto, preferir raciocinar a agir: “Mas eu prefiro raciocinar a agir, e, em verdade, com o raciocínio consigo, tarde ou cedo, ir descobrindo o que quero” (PESSOA, [2008] 2014: [186] 171; BNP/E3, 275 R-10r). Uma explicação mais cabível é a de que Quaresma excita-se e encontra prazer intelectual na elaboração dos seus raciocínios, mais do que propriamente na resolução do mistério, com a descoberta de quem cometeu o crime. E é nesse sentido que o “enredo” das novelas policiárias conduz a um outro tipo de desfecho ou “epifania final”. No caso dos argumentos para filme de Pessoa, é como se “o prazer intelectual” e a “excitação” do espectador no processo de elaborar seus raciocínios e tirar suas conclusões, alimentados precisa e meticulosamente ao longo das narrativas, tivessem que ser “frustrados”, para que então, como parte da “epifania final”, o espectador tomasse consciência desse processo – e, por que não, do modo como foi manipulado? Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 362 Schincariol O Ídolo à luz das novelas policiárias Fig. 3. O Ídolo (cartaz de divulgação). A adaptação de O Ídolo Como explica Marcelo Cordeiro de Mello, na detalhada análise que faz de O Ídolo, na Metamorfoses – Revista de Estudos Literários Luso-Afro-Brasileiros (com dossiê sobre a obra de Fernando Pessoa): Como se sabe, o argumento cinematográfico é o texto que inicia o processo de escrita e reescrita palimpséstica típico dos textos destinados à produção cinematográfica. Pedro Varela iniciou o processo de adaptação do argumento com um tratamento (“Treatment”) inicial, que desenvolve aspectos do argumento original de Pessoa, agregando elementos novos, e alterando alguns detalhes. Em seguida, Varela se dedicou à escrita do roteiro (em Portugal, utiliza-se o termo “guião”), que desenvolve o tratamento acrescentando os diálogos e os detalhes da ação. Naturalmente, cada documento passou por diversas versões, até chegar à versão final, a que o leitor tem acesso aqui. (MELLO, 2021b: 181) A análise que se segue tem em conta, particularmente, o argumento original de Fernando Pessoa, a versão final do roteiro escrito por Varela, como também o curtametragem O Ídolo em sua versão já realizada. Parte-se da premissa de que analisar as alterações feitas por Varela e o impacto destas na economia da narrativa de O Ídolo não implica cobrar do realizador qualquer tipo de fidelidade ao argumento original; antes, pretende-se acompanhar as repercussões de tais alterações no quadro da ficção policial escrita e teorizada por Fernando Pessoa. “Note for a thriller, or film.” tem início com uma espécie de preâmbulo que, supõe-se, deve ser compartilhado com o espectador – considero aqui os dois primeiros parágrafos do argumento: Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 363 Schincariol O Ídolo à luz das novelas policiárias It is a known fact, within the circles diversely interested, that Prof. A, having the priceless green idol (priceless in several ways) to deliver to B., in Europe, entrusts this idol to keep of the well-known millionaire, C, who is shortly sailing in his own yatch to Europe. In his yatch C has a good number of guests, eighteen in all, and, as all are not quite clearly known to him, with intimacy, it is practically certain that one if not more will very likely be after the idol. (PESSOA, 2011: 41) Assumindo que o cinema idealizado por Pessoa tivesse como referência e intenção o cinema mudo, pode-se cogitar que este preâmbulo não se devesse concretizar por meio de imagens, propriamente ditas – mas sim por texto –, o que, como consequência, implicaria que a primeira cena a ser visualizada pelo espectador fosse aquela, já no iate, em que o milionário C anuncia a proposta de que cada um dos presentes recebesse e mantivesse, em proteção, um dos vinte pacotes, contendo, um deles, o ídolo a ser transportado até B. Tal hipótese, como penso, pode ser sustentada quando se tem em mente que, ao restringir a ação – visualmente falando – ao interior do iate, acentua-se a sensação de ambiente confinado, tão importante, como observamos, quando se trata de narrativas policiais detetivescas. É o que é sugerido, como penso, pela seguinte passagem do argumento original: “Very shortly after the ship sails from New York, C, just after dinner, says he has a very important and amusing proposition to make to his guests” (PESSOA, 2011: 41; itálicos meus). Acompanha-se, na primeira imagem de O Ídolo, traços de uma caligrafia que, como o narrador, em voice over, logo esclarece, constituem a redação de uma carta que daria início a uma história, como tantas cartas o fazem, mas desta vez “particularmente interessante pela forma como desenrola, pelas suas qualidades tão originalmente bizarras, que poderia mesmo tratar-se de um thriller, ou de um filme” (VARELA, 2021: 211). Sabe-se, pela carta, em processo de ser redigida, que é de 1928, enquanto somos informados, como parte dos créditos, de que se trata de “um argumento de Fernando Pessoa” (VARELA, 2021: 211). É curioso como Varela, além de criar um narrador para a história que se acompanha no curta-metragem, decide antecipar, para o espectador, que se trata de uma história de “qualidades bizarras”, a ponto de poder ser considerada um thriller ou um filme. Mais curioso ainda é que tenha escolhido o termo “bizarras”, que, assim como o narrador ou a carta, não consta do argumento original escrito por Pessoa. No universo da ficção policial, ninguém ou nada que se passa em O Ídolo poderia ser tão tranquilamente definido como tal. Tendo em conta o final do curta-metragem, em que os vários “eus” do protagonista Bernard / Albert remetem aos heterônimos de Pessoa, pode-se entender que bizarra seria, num sentido último, o próprio heteronimismo, associação que reduz um mecanismo tão complexo e central na obra de Pessoa a sua suposta estranheza, extravagância ou invulgaridade. Ainda que não se o faça de modo explícito, a estrutura narrativa de O Ídolo coloca como questão central e última o heteronimismo, elemento que, num plano Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 364 Schincariol O Ídolo à luz das novelas policiárias mais amplo, justifica e determina os acontecimentos que acompanhamos na narrativa do curta-metragem. Nesse sentido, O Ídolo afasta-se do modo como Pessoa define uma história policial, bem como das regras que o autor põe em prática em suas novelas policiárias. Para Pessoa, como acompanhamos há pouco, uma história policial constitui um exercício fundamentalmente intelectual centrado nos raciocínios do investigador-decifrador, em outros termos, uma história de mistério cujo principal propósito não se encontra no mistério propriamente dito, mas na sua investigação. Isso implica que o curta-metragem de Varela, utilizando-me aqui do mesmo rigor com que Pessoa se expressa, deva ser encarado como um exercício de imaginação, ou melhor, uma história de mistério cujo propósito reside no próprio mistério. Depois, em voice over, o narrador menciona um homem que pede, como favor, a um outro homem, que transporte uma obra de arte, sem revelar a este último que, ao aceitar a tarefa, arriscaria sua vida; tampouco lhe revela que o provável sucesso da missão seria garantido pelas próprias fraquezas daquele responsável pelo transporte do objeto. Acompanhamos, então, um veículo que, como o narrador explica, conduziria o objeto ao seu destino final: “‘Jade figure holding jaguar baby’, uma obra de arte tão rara e poderosa, que o seu valor é praticamente impossível de calcular” (VARELA, 2021: 211). Sabemos então que a mão que assina a carta é de Albert Soares, aquele que possui o ídolo, sobre quem é a história que se segue. Tratase este de um dado extremamente importante, mesmo porque o argumento original leva a entender que a história gira em torno daquele que carrega o ídolo, o milionário C, no curta-metragem, Mr. Sotto. Acompanha-se Bernard – e, como espectadores, não sabemos que se trata do narrador em voice over – que entrega a carta – como se entende, de Albert Soares – à criada Adelaide, pedindo a esta que diga a um rapaz que a envie naquele mesmo dia. De acordo com o narrador em voice over, sabemos que a carta que educadamente pede o tal favor “também propõe um jogo bastante perigoso, eu diria mesmo... mortal” (VARELA, 2021: 211). Somos então transportados para Nova York e, na capa do New York Times, vemos uma imagem da estátua de valor inestimável, com a notícia de que o Metropolitan Museum se despedia, após duas décadas, do “Green Idol Olmec”. Acompanhamos, assim, um rapaz que, no corredor de um luxuoso hotel, entrega uma carta a Mr. Sotto, que a lê junto à janela, e, como o narrador nos informa, aceita o pedido sem hesitação. No quarto de hotel, há uma mulher com Mr. Sotto – como espectadores, ainda não sabemos ter o nome de Ofélia. Passamos para o que o roteiro chama de sala do cofre do museu e acompanhamos dois funcionários de luvas brancas que colocam o “green idol” em um estojo de madeira. Mr. Sotto, presente, acompanha atentamente a operação. Com uma expressão de confiança e vaidade, o milionário deixa o museu carregando o ídolo em uma mala. Descendo as escadas e passando por fotojornalistas, entra no banco de trás de um carro, onde se encontra uma mulher, que, pela leitura do roteiro, sabemos ser Emily Nogueira, sua noiva. Acompanha-se o carro chegando até o transatlântico Europa. Augusto Sotto e Emily Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 365 Schincariol O Ídolo à luz das novelas policiárias são recebidos pelo capitão, que trata aquele como habitué, seguindo, assim, para Southhampton. Somos mais uma vez conduzidos pela estrada que o narrador nos informa ser de Sintra, quando acompanhamos um carro que chega até a casa do magnata Albert Soares. Somos informados pelo narrador de que já se passaram algumas semanas desde que, entende-se, o ídolo havia sido confiado a Mr. Sotto. Não se sabe quem é aquele que conduz o carro, mas este é recebido pela criada Adelaide e por Bernard, o narrador. Abre-se uma mala como aquela em que Mr. Sotto carregava o ídolo, o narrador nos informa de que nem tudo ocorrera como planejado e acompanha-se, agora em Nova York, um jovem carregando três malas – uma delas parece ser idêntica àquela em que Mr. Sotto teria transportado o ídolo – que, aos gritos, pede que o Europa não parta ainda. Acompanha-se então esse mesmo jovem – pelo roteiro sabe-se ser Américo –, já dentro do navio. Dentro de uma cabine se encontram Mr. Sotto e a noiva – e aí vemos a mala em que estaria o ídolo. Depois da interrupção de um funcionário do navio que entra com um carrinho de bebidas, o qual é praticamente expulso por Mr. Sotto, o milionário tranca a porta e diz à noiva, mostrando uma mala em que estão várias caixas, que se trata de algo que vai tornar a viagem bem mais divertida. Diz-lhe, ainda, que vai precisar de ajuda. Fig. 10. Dois funcionários de luvas brancas colocam o “green idol” em um estojo de madeira. Tendo em conta a economia de uma narrativa policial que se passa num ambiente confinado, como é o caso do argumento de Pessoa em que se baseia O Ídolo, é inevitável constatar, nesses quatro minutos e trinta e seis segundos de um total de vinte e três minutos e cinco segundos de filme, como Varela nos transporta a diversos ambientes distintos – mansão de Albert Soares, Sintra, Nova York, Museu, transatlântico. Ainda que a maioria dos eventos se passe dentro do transatlântico, Varela desloca o centro do mistério para fora, mesmo porque a ideia de distribuir as caixas aos convidados no curta-metragem é de Albert Soares, enquanto, no argumento original de Pessoa, quem tem essa ideia é o milionário C, já dentro do seu iate. A própria decisão de substituir um iate – espaço fisicamente mais restrito e com número de possíveis vítimas e suspeitas bem mais limitado – sugere o mesmo movimento de “desconfinar” o mistério; movimento, este, também sugerido pela introdução de elementos “locais”, no caso portugueses, à trama: afinal, no curta-metragem Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 366 Schincariol O Ídolo à luz das novelas policiárias a língua falada é, predominantemente, o português, e parte da história se passa na casa de Albert Soares em Sintra. Como acredito, a intenção de fazer com que o espectador se sentisse adentrar um espaço minimamente familiar vai muito além da informação explícita, nos créditos do filme, de que se trata de um argumento de Fernando Pessoa; mesmo porque, no contexto do argumento original do autor, tal informação poderia ser responsável por um grande estranhamento por parte de um espectador que tentasse identificar possíveis marcas pessoanas. Os exemplos mais óbvios da intenção a que me refiro talvez sejam, para além dos elementos “portugueses”, o nome do milionário, Albert Soares, e o nome Ofélia, a amante de Mr. Sotto – no roteiro, também Bernard. Fig. 11. Os convidados trocam as caixas entre si. Uma outra diferença marcante entre “Note for a thriller, or film” e O Ídolo é que, enquanto no argumento de Pessoa sabemos que o milionário C faz a proposta simplesmente a seus “guests”, no curta-metragem temos mais informações sobre quem eram estes, o que se dá enquanto alguns passageiros do transatlântico recebem o convite de Mr. Sotto – o roteiro nos diz que se trata de um jornalista francês, da cantora de jazz Blanche Calloway, da amante de Mr. Sotto, de um casal de ingleses, do padre Thomas e do empresário inglês Mr. Williams. É preciso notar que, ainda que possamos “ler” a aparência e os trajes dos convidados em questão, o filme só nos informa, explicitamente, da profissão do padre Thomas. A cena da distribuição dos convites é interrompida abruptamente e somos levados mais uma vez até Sintra, à casa de Albert Soares, onde este, pensativo, encontra-se à frente de um tabuleiro de xadrez. Voltamos ao transatlântico, cuja imagem é capturada de cima, e em seguida acompanhamos o jantar oferecido por Mr. Sotto, onde estão outros convidados que até então não nos haviam sido apresentados. Ao dar vida a quem Pessoa se refere como “guests”, Varela não se preocupa em dizer exatamente quem são essas pessoas, tampouco nos apresenta todas elas – sabemos aqui que a amante de Mr. Sotto, que também estava presente, chama-se Ofélia. Na economia de uma narrativa policial, teríamos de saber quem são esses Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 367 Schincariol O Ídolo à luz das novelas policiárias convidados e, necessariamente, todos eles, no sentido de que a única razão para estarem ali é a de constituírem possíveis vítimas ou suspeitas de um crime. Depararmo-nos com personagens sobre as quais não temos informações seria percebido, de acordo com o flair play das narrativas policiais, como inapropriado. É nesse jantar que entram as tais vinte caixas dentro de uma das quais estaria o ídolo, jogo cujas regras Mr. Sotto explica – também ao espectador. Duas questões que, no argumento original de Pessoa, deveriam ser evitadas, já que revelariam o “twist final”, são feitas, respectivamente, por Mr. Williams – “Mas por que razão você daria cem mil dólares, assim, de mão beijada?” – e pelo padre Thomas – “Comparando ao valor do ídolo, é um valor bastante baixo...” (VARELA, 2021: 219). A desculpa de Mr. Sotto de que era para que se pensasse a recompensa como um seguro, “para que tudo corra sem percalços e sem segurança”, invalida, de certa forma, as regras estabelecidas por ele. É como se Mr. Sotto, que havia sido orientado por Albert Soares, não estivesse preparado para essas questões – e talvez tenha sido mesmo esse o objetivo de Varela. Emily, ainda que tenha feito a seguinte questão para simular certa desconfiança em relação a Mr. Sotto – e assim contribuir para a impressão de que o noivo não tinha segundas intenções –, acaba por deixar a solução do mistério muito evidente para o espectador: “E quem escolheu a ordem em que estas caixas nos foram entregues?” (VARELA, 2021: 220). No argumento original, como observamos, a atenção do espectador deveria ser desviada da relação entre o número de caixas e o número dos que as receberiam. A pergunta de Emily, em O Ídolo, ao chamar a atenção para uma possível manipulação das caixas, faz justamente o contrário. Trata-se de uma outra evidência de que, no curta-metragem, o centro do mistério se encontra fora do transatlântico, na “dupla” identidade de Bernard / Albert. Com penso, é em relação a essa dimensão do mistério, ligada ao heteronimismo, que Varela teria tido a preocupação de não “entregar” a solução ao espectador. A resposta de Mr. Sotto de que ninguém havia escolhido a ordem das caixas é seguida da troca de caixas entre ele e Emily, o que atestaria a verdade do que afirmara. Os convidados seguem o mesmo gesto, trocando as caixas entre si. De acordo com o argumento original de Pessoa, após a distribuição das caixas, “Numerous complex adventures ensue during the voyage, including the discovery by one of the crooked guests that if the parcel containing the idol is found in anyone’s possession, and he can claim anything, he can claim the idol under the exact terms of the offer made by C” (PESSOA, 2011: 42). Como foi possível acompanhar há pouco, padre Thomas já havia se dado conta dessa possibilidade, “apresentando-a” ao espectador. Na já referida entrevista concedida a Mello, o diretor Varela, em tom de humor, diz ter ficado com a parte mais difícil deixada por Pessoa, ou seja, imaginar que aventuras teriam sido essas (apud MELLO, 2021b: 186). É preciso notar, mais uma vez, que, dentro da economia do argumento original de Pessoa, que aventuras teriam sido essas não faria a mínima diferença em relação à reviravolta final; daí, Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 368 Schincariol O Ídolo à luz das novelas policiárias como penso, o autor não ter sentido a necessidade de explicitá-las. Não se pode dizer o mesmo de O Ídolo, observação essa que deixa mais evidente o sentido outro das decisões tomadas por Varela. Respeitando a sequência dos acontecimentos, acompanhamos alguns convidados deparando-se com as caixas recebidas sem saber exatamente o que fazer. Vemos então Mr. Sotto guardar a caixa que era dele em um cofre e depois ir dormir com Ofélia na cabine da amante; constatamos, com Mr. Sotto, que o empregado que servia bebidas teria levado a caixa que estava à mesa de cabeceira; seguimos Mr. Sotto questionando o capitão sobre quem teria entregue champanhe sem ter sido solicitado que o fizesse, ao passo que compartilhamos o momento em que Mr. Williams revela ser um agente secreto – a profissão exata de Williams não fica assim tão clara para o espectador; temos acesso à informação compartilhada pelo capitão de que havia “mais de cem pessoas na tripulação” – informação essa que comprometeria profundamente uma narrativa policial ao ampliar tanto assim o número de possíveis suspeitos, como que sugerindo ao leitor que nem tentasse resolver o caso (VARELA, 2021: 222); inferimos que o jornalista francês teria percebido qual era o jogo sórdido jogado por Mr. Sotto; assistimos à performance de Blanche Calloway; sabemos que Américo tinha os olhos em Emily e que era leitor dos seus livros; que a leva a sua cabine no deck inferior para que autografe um deles; acompanhamos o desespero do padre Thomas a dizer que foi roubado, e o jornalista francês e Blanche a dizerem o mesmo; ao ouvirmos um grito de horror, deparamo-nos com a capitão morto sobre a cama, o que leva a uma enquete de suposto homicídio conduzida por Mr. Williams – a qual efetivamente não se concretiza; vemos que Emily, sozinha na cabine, abre o cofre em que Mr. Sotto guardara a caixa; acompanhamos Mr. Sotto, que, ao cruzarse com um dos empregados do navio, se dá conta de algo estranho – pelo roteiro sabemos que seu nome é Mário e que, estranhamente, tinha apenas uma parte bigode (supõe-se que o espectador reconheceria essa personagem da cena em que um empregado do transatlântico, na cabine em que se encontravam Mr. Sotto e sua amante, entregava bebidas); somos informados, por Mr. Williams, que dezessete caixas haviam sido roubadas, sobrando apenas a dele, a de Mr. Sotto e a de Emily; que Mr. Sotto volta imediatamente a sua cabine e verifica estar lá sua caixa; que Mr. Sotto flagra Mr. Williams e Mário em situação suspeita, aquele chamando a atenção deste sobre o bigode “incompleto” – avistam-se, rapidamente, caixas com o que parecem ser tijolos dentro; acompanhamos Mr. Sotto sendo perseguido por Mr. Williams e, depois, dominando este último, já com a arma deste em mãos; de arma em mãos, apontada para Mr. Williams, Mr. Sotto grita àqueles que estão à sua volta e diz ser ele a decidir quando jogo acaba; depois de levar um golpe de Williams, ao chão e ainda com a arma em mãos, atira no agente, que cai morto ao chão; a voz do narrador explica que Mr. Sotto não teria tido a intenção de disparar, dirigindo-se, agora, ao espectador: “Até porque todos sabemos bem quem é o responsável, verdade?”(VARELA, 2021: 229); Mr. Sotto põe a culpa nos outros, que seriam gananciosos Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 369 Schincariol O Ídolo à luz das novelas policiárias e não teriam sabido jogar um simples jogo, que teriam sido estúpidos de pensar que poria uma peça de tal valor – como aquela dentro da caixa que tinha consigo – nas mãos de pessoas como aquelas; ameaçado pelos policiais armados, Mr. Sotto sobe no parapeito e, sem querer, deixa cair ao mar a caixa em que pensava estar o ídolo; salta atrás do ídolo e morre; em Sintra, na casa de Albert Soares, Emily entra com uma mala e uma caixa em mãos; um tanto confuso e hesitante, Bernand – o narrador – aceita a caixa; Emily informa a Bernard que Mr. Sotto estava morto; diante da notícia, Bernard diz lamentar muito e que o que havia na caixa era apenas um boa cópia, que tudo havia sido uma manobra para transportar o ídolo a salvo – que, como diz, já estava nas mãos do dono; Emily vê então o ídolo verde em um expositor de vidro e, ao lado deste, Américo – ao fundo vê o retrato que denuncia que Bernard e Albert Soares eram a mesma pessoa; ao voltar com o envelope para pagar Américo, Bernard pergunta aos dois se já se conheciam, quando aquele diz que não; junto à janela, Bernard observa Emily e Américo entrarem no carro e saírem juntos; Bernard diz a si mesmo as seguintes palavras: “We are all victims of ourselves, of our various selves, we are all so many, and some are better than others”; ao olhar para o ídolo verde, percebe que o expositor estava mal fechado, aventando a hipótese de que estava ali a cópia, estando o original com Américo e Emily. É inevitável constatar, à luz do argumento original de Pessoa, que a inventividade de Varela foi guiada pela necessidade de conferir um final inquestionavelmente pessoano a uma narrativa cuja marca de autoria não era notável. Em O Ídolo, o fato de a estátua ter ou não estado no navio, de não estar na caixa em que Mr. Sotto pensava que estivesse, ou a constatação de que aquele que pensava enganar a todos ter sido enganado no final não produzem o mesmo efeito de “dissolução” do mistério, como seria de se esperar de uma narrativa policial detetivesca, uma investigação propriamente dita, porque Varela incluiu no enredo dois assassinatos – além de um “acidente fatal” – que não havia no argumento original. Como penso, o argumento de Pessoa prevê que o espectador, diante da revelação final de que se tentou resolver um mistério que não houve, questione esses mesmos raciocínios e a sua validade. O Ídolo parece prever que a satisfação do espectador pode ser preenchida quando este acompanhar, com extrema atenção – ainda que isso implique assistir ao filme mais de uma vez –, todos os detalhes de um enredo que tentou de todas as formas enganá-lo. Tendo como objetivo refletir sobre até que ponto Pedro Varela teria sido capaz de fazer justiça ao texto pessoano, Mello chama a atenção para o desejo de o realizador manipular, como em um jogo, a atenção do espectador. Nas palavras deste último, “‘deixar o espectador ‘puzzled’ […], um tanto embaralhado […]. Tudo o que eu possa fazer para confundir o espectador, para mim é maravilhoso. Confundir com respeito, com inteligência, mas confundir’” (apud MELLO, 2021b: 194). Quando se têm em conta as novelas policiárias, a discussão teórica apresentada por Pessoa em Detective Story e, de uma perspectiva mais ampla, a tradição do Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 370 Schincariol O Ídolo à luz das novelas policiárias gênero policial com a qual o autor dialoga, confundir com respeito e inteligência significa, necessariamente, fazê-lo a partir da regra fundamental de que todos os fatos do mistério devem ser compartilhados com o leitor / espectador, regra essa a que Pessoa confere papel central no referido ensaio teórico. No início de Detective Story, em uma pequena lista intitulada “Traits of a detective story”, afirma-se que “The facts should all be set before the readers & the conclusions drawn from them” (PESSOA, 2016: 236; BNP/E3, 48D-76v). Anos mais tarde, esclarece-se que “Putting all the facts before the reader means really putting them all before the reader, even if the order and the significance are veiled in the narrator’s version” (PESSOA, 2016: 239; BNP/E3, 100-30r), regra cujo descumprimento Pessoa considera inadmissível. Não se pode afirmar que “confundir o espectador com respeito”, para Varela, tenha o mesmo sentido de “confundir o leitor com respeito”, para Pessoa. No caso deste último, não se trata propriamente de confundir, mas de apresentar fatos – e todos eles – de modo que não seja possível ao leitor chegar à solução do mistério (antes do detetive); o que é bem diferente de, como acontece em O Ídolo, nem sempre se poder estar certo de que fatos, na verdade, são esses, efeito obtido, sobretudo, por um meticuloso trabalho de edição que não permite ao espectador ter certeza do que pôde ver. Trata-se de um procedimento que, apesar de funcionar no curta-metragem de Varela para instigar a curiosidade do espectador, poderia causar indignação a um leitor do gênero policial mais “experiente”. Num primeiro momento, Mello atribui o fato de alguns detalhes da narrativa passarem despercebidos ao formato de O Ídolo, um curta-metragem, indicando, depois, ao citar as palavras de Varela, que este teria tido a intenção de que assim o fosse: “Por se tratar de um filme de ritmo ágil, é natural que muitos detalhes passem despercebidos, o que sugere a ideia de uma obra que pode ser assistida diversas vezes (o que é favorecido pelo lançamento de O ídolo em formato digital)” (MELLO, 2021b: 194): Eu acho que são grandes recursos de storytelling, ou seja, nós precisamos sempre levar o espectador numa direção de confundir, de embaralhar. E não é pelo prazer de confundir, [mas sim] pelo prazer de o fazer pensar. O espectador não precisa ser enganado. O espectador quer ser enganado. O espectador quer que uma coisa seja diferente do que ela parece. O espectador exige a surpresa. O espectador exige o aceleramento do coração. O espectador exige a emoção. (apud MELLO, 2021b: 194) Nós estamos muito treinados hoje em dia à narrativa, à dramaturgia, ou seja, a séries, cinema etc. O nosso músculo dramatúrgico e narrativo está muito bem treinado. […] Às vezes o ‘pace’ de algumas séries é mais lento. […] Mas as séries às quais o público (isto é, as massas) mais se tem agarrado são séries altamente ‘engaging’, muito elétricas. […] Quem vê um filme do Christopher Nolan e entende, está no supra do supra, porque são filmes altamente complexos, você não entende nada. Então aqui [em O ídolo] eu acho que é a dose suficiente para o seu cérebro estar em constante junção de peças, e foi esse o exercício. (apud MELLO, 2021b: 195) Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 371 Schincariol O Ídolo à luz das novelas policiárias O espectador deve pensar, deve poder fazê-lo, deixando-se surpreender. Ora, a dimensão subversiva dos argumentos pessoanos analisados neste artigo – dimensão essa que também se identifica em suas novelas policiarias –, reside no modo como se “confunde” o espectador; e esse modo exige que se reconheça que o jogo a ser jogado tem regras. Tais regras existem – estabelecidas pela tradição do gênero policial – e é imprescindível conhecê-las para as pôr em xeque, tateando seus limites, tanto no cinema como na literatura. O não seguimento de algumas dessas regras, cujo cumprimento não considero condição para que se adaptem para o cinema quaisquer dos argumentos analisados neste artigo, implica que as tentativas de ser fiel ao jogo ou de subvertê-lo não podem ser interpretadas como plenamente intencionais ou, necessariamente, como pessoanas. 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Trabalha como “Teaching Associate Professor” nos Estados Unidos, no Departamento de Espanhol e Português da Universidade do Colorado-Boulder. MARCELO SCHINCARIOL graduated in Linguistics and Literatures of the Portuguese-Speaking World at the State University of Campinas (Unicamp), Brazil. He received the titles of Master and Doctor in Brazilian Literature at the same institution. Recently, he has dedicated himself to the study of detective fiction written by Fernando Pessoa. He works as a Teaching Associate Professor in the United States, in the Department of Spanish and Portuguese at the University of ColoradoBoulder. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 375 !"#$%&'(#)*")+'+&,-./ !"#$%&%$'()*+"#,%""-+(+"#(+#-.$+# /-#)*(%+"0+#123*-#4$%""+(% !"#$%&'()*(+),)-./ !"#"$"%&"'()*(+"''*,(-%()."(/*$0( *#(#-122,0"$(341-*(5$"'',%"0 !"#$%&'()*+', !"#"$%"&'()"$* "#$%&%'(!)#**(&+!,-./(!0$#**&%#+!1/%#2&+!!"#$%&'&(")*+",+%-*++!3#*456/(*7 +*&,-. ,-./(!0$#**&%#!&'($&!8#*456/(*7!9#-!(.:&$!4$&%*;($2&!4-'(!#2!8#*456/(+!4($%&%'(!(<=#4(*+!.-6&$#* #!>#**(&*!5%'/?#*!'#!&.6-2!>&**&'(7!@(!#*4A'/(!&<&%'(%&'(!'&!1/%B'/&!#2!!".(/")*"#$-$01* C*!$-5%&*!>$BD?(.(2</&%&*!#2!2/$3(4",%-$56+")*"#-$+/0+!0$#**&%#!#8(?&!(!2/*4B$/(!'(!8#*456/(7! E2!!"#$%&'&(")*+",+%-*++!;/.2&!(*!#*>&F(*!:&</4&'(*!>($!"#$%&%'(!)#**(&+!$#/8/%'/?&%'( %G(! &>#%&*!(!>(#4&+!2&*!4('&!&!./4#$&4-$&!>($4-6-#*&7!H!;/.2#!;-%?/(%&!?(2(!-2!/%8#%4I$/(!'(! ?(%858/(!'#!0$#**&%#!?(2!)#**(&+!'#*4&?&%'(!*-&*!/%;.-J%?/&*!&(!.(%6(!'(*!&%(*7!K.B2!'/**(+! 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Do estúdio abandonado da Cinédia em O Rei do Baralho, passando pelas inscrições rupestres e remanescências do período précolombiano em Viagem Através do Brasil e chegando à própria letra da literatura como produção de assombramento, tudo evoca o mistério do vestígio, sua forma de nos abrir a mundos que podemos apenas imaginar, em todo seu caráter mágico: seja a pujança americana prévia à culturação europeia, o gesto criador na confecção de uma frase especial ou o espaço-testemunha que presenciou momentos de brilho, há sempre alguma literalidade frontalmente filmada que evoca uma ausência – a ser preenchida parcialmente pelo filme por meio indicial, mas jamais tampando a lacuna. A lacuna é o que faz devanear. O Batuque dos Astros retoma um modo específico da investigação de vestígios, qual seja, a de visitar os espaços outrora vividos por autores, e ligando a câmera para registrar as ruínas que o tempo não destruiu. Esse procedimento já tinha ocorrido com Michelangelo Antonioni numa visita ao cemitério em que jaz o jazigo de sua família (Ver Viver Reviver, Passagem para Ferrrara) e com espaços em que o filósofo Friedrich Wilhelm Nietzsche habitou (Nietzsche em Nice, Nietzsche Sils-Maria Rochedo de Surley). Em O Batuque dos Astros, Bressane vai a Lisboa filmar os espaços habitados por Fernando Pessoa: o quarto e a escrivaninha onde escreveu O Guardador de Rebanhos, as ruas, as praças, os prédios, e também os construtos-homenagens feitos ao poeta: sua estátua na calçada em frente ao café A Brasileira e a exposição da Casa Fernando Pessoa. Como sempre, não se tratam de filmagens frias e objetivas, jornalísticas ou “documentais” no sentido mais comum do termo. Elas estão impregnadas pela subjetividade do assombro e do enigma de quem vê, de quem filma imaginando não o presente vazio mas o passado pleno, permitindo à imaginação que possa criar fantasmas. Mas a câmera de Bressane não para por aí: ela estabelece símbolos, no caso o chapéu e a taça de vinho, e cria planos ponto-de-vista de Pessoa passeando. A expressão é lúdica, pode-se fazer tomadas de bonde, de escada, de hotel e brincar de A Velha a Fiar (curta-metragem de Humberto Mauro, 1964) com elas. Há digressões, planos soltos, travellings que passeiam por lombadas e capas de livros de escritores portugueses, Pessoa em maioria. A montagem, como quase sempre em Bressane, é uma assemblage paratática. Isolados, certos planos podem ser tomados como simples registro de viagem turística. Mas não são nada disso. Bressane e seu Batuque podem ter Fernando Pessoa como tema principal, mas de alguma forma a literatura portuguesa como um todo é reivindicada. Padre António Vieira, Mário de Sá-Carneiro e Cesário Verde aparecem em imagens e/ou citações. O filme, aliás, começa com Bressane, Zelito Viana, Rosa Dias e entourage em frente a estátua de António Feliciano de Castilho, poeta e tradutor do Fausto de Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 377 Gardnier Vestígios de ninguém Goethe, de onde Bressane recita emocionado “Eis-me, visões, sou vosso”. Fernando Pessoa aparece, então, não isolado como genialidade única a ser investigada, mas como parte de um meio histórico e literário do qual fez parte. Por outro lado, o filme também existe como o retrato memorialístico de um leitor: Bressane aparecendo com os livros de Pessoa e de outros escritores portugueses, livros de época e outros mais novos, fazendo imaginar um histórico de leituras ao longo dos anos, um histórico de acontecimentos-Pessoa que mexeram com sua sensibilidade a ponto de citá-lo constantemente em seus filmes, nas vozes dos atores, sem fornecer citação ou proveniência, apenas dramatizando-os. As citações de Pessoa em seus filmes começam com O Rei do Baralho (1973) mas atingem o ápice com A agonia (1978), filme readaptado para o Brasil tendo como fonte original o projeto de um filme chamado Ninguém que deveria ter sido rodado em Portugal em 1976. Há Pessoa em Cinema Inocente (“cidade da minha infância pavorosamente perdida”), em Viola Chinesa (“O essencial na arte é exprimir; o que se exprime não tem importância”), em Tabu, em Sermões, O Gigante da América. Mostrando os livros que o acompanham desde a década de 1970 e os trechos dos filmes em que a influência ou a palavra de Pessoa aparece, fica evidenciado que O Batuque dos Astros é também uma espécie de inventário de um convívio, o do olho de Bressane com a letra de Pessoa, e posteriormente do gesto de cineasta de Bressane com a matéria-prima de Pessoa, os dois passos entre a digestão e a produção. Mas qual é o retrato que se faz de Fernando Pessoa em O Batuque dos Astros? Bem, Fernando Pessoa é alguém que conseguiu ser ninguém, e que ao mesmo tempo não obteve sucesso em seu intento. O desaparecimento aparece poeticamente nas filmagens dos lugares que frequentava e morava, no Largo de São Carlos em que passava, e que agora não registra mais sua presença, senão como fantasma. Por outro lado, aquele que queria se dispersar na infinidade de nomes distintos hoje é estátua, é o oposto do desaparecimento, é algo exposto em via pública à exposição de todos. E cabe notar que o ângulo escolhido para os dois longos planos que focam na estátua têm como pano de fundo uma agência do banco BPI e não o café A Brasileira, que daria como que uma habitação à estátua. Do jeito que o enquadramento é feito, a estátua de Pessoa resulta propositalmente deslocada, ignorada pela maioria dos passantes, ou então um mero entretenimento para turistas curiosos. Num deles, o rosto está no extracampo superior, e só aparece refletido em forma inversa na taça com água em primeiro plano na imagem. No outro longo plano fixo da estátua, vemos o rosto apenas dos olhos para baixo, novamente com a taça em primeiro plano, refletindo inversamente seu pé na água. O Pessoa desses planos é ao mesmo tempo Pessoa (as pessoas sabem de quem se trata) e ninguém (pois ninguém sabe de quem se trata), os enquadramentos e a taça gerando obstáculos à apreensão total da estátua, fornecendo o suplemento necessário de mistério àquilo que foi criado para ter o estatuto pétreo de monumento. Bressane reinstaura o fragmentário à figura de Pessoa – algo que é inerente à experiência de sua obra. Quanto Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 378 Gardnier Vestígios de ninguém ao Pessoa que importa, ele vive através da poesia e da prosa, na boca dos personagens de seus filmes e de Fernando Eiras, que lê “Abdicação”. A declamação em frente à estátua, como a do início do filme, não cabe quando o poeta em questão é Fernando Ninguém Pessoa. Julio Bressane dramatizou a literatura em língua portuguesa diversas vezes. Trouxe para seus filmes Padre Antonio Vieira, Machado de Assis, Oswald de Andrade, Lamartine Babo etc. Deu grau acentuado de atenção às traduções de Nietzsche e da Bíblia de São Jerônimo. É, portanto, não só um leitor mas alguém que faz agir a letra (nesse sentido, e só nesse, assemelha-se a Jean-Marie Straub e Danièle Huillet), alguém que pensa em como a própria literatura, e não seu conteúdo, tem condições de ser traduzida intersemioticamente para o cinema de modo a não perder seu vigor (o que sempre acontece quando só se adapta o entrecho). Nesse contexto, O Batuque dos Astros é construído como um ponto fora da curva nesse microcosmo, pois aqui não se trata de uma obra de ficção com atores, mas o gesto de rememoração de um passado vivido em continuidade através de seus próprios filmes, e do modelo “investigação dos vestígios” dos filmes sobre Antonioni e Nietzsche. Bressane assim intimiza sua relação com o retratado, e isso fica absolutamente claro nos planos de lombada de livro em que ao fundo vemos o cineasta espelhado ao fundo, apenas rosto e ombros nus. Por fim, cabe atentar para um papel singular que O Batuque dos Astros desempenha na carreira de Julio Bressane. Nos créditos do filme, são listados doze filmes de sua autoria que aparecem no filme em fragmentos de imagem e/ou som. Esse, portanto, é o primeiro momento em que Bressane passa a debruçar-se em sua própria obra pregressa para criar arte a partir dela. Dado que em 2023 estreia mundialmente seu filme A Longa Viagem do Ônibus Amarelo, com suas sete horas e quinze minutos de duração, feito apenas de trechos de todos os filmes feitos por Bressane em sua trajetória, inspirado por Aby Warburg (outro criador para quem a noção de lacuna é fundamental), em ordenação ora cronológica, ora por motivos recorrentes (escada, plano sequência, repositório de água etc.), é inevitável pensar que Bressane, em seu Batuque, fazia o gesto inicial que culminaria nessa obra gigantesca em duração tanto quanto em gênio, e começaria a tratar sua própria obra como o objeto de sua eterna investigação de vestígios. * O final de O Batuque dos Astros quase nos sugere um encerramento convencional. Vemos o hospital que foi o último leito, vemos o cemitério, vemos o jazigo, vemos o monumento, as letras impressas na pedra, tudo muito oficial e solene. No entanto, subitamente a tela de cinema vira um quadradinho de imagem, com o monumento ao fundo, e um movimento de câmera para a esquerda faz aparecer o que parece ser uma viga, bem de perto, com dois círculos concêntricos talhados em profundidade, Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 379 Gardnier Vestígios de ninguém e ouvimos barulhos de portões sendo fechados. Parece ser um ornamento simples, um tanto impessoal, e é com essa imagem que o filme se despede. Seriam essas formas circulares um correlato aos vestígios deixados em pedra pelas inscrições rupestres, puras expressões sem significado ou cujo significado não conseguimos decodificar? Não mais uma remissão direta, um nome cravado em pedra, uma estátua, mas… um mistério… um vestígio… uma lembrança de… ninguém? Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 380 Gardnier Vestígios de ninguém ANEXO O batuque dos astros – Transcrição de trechos com citações pessoanos da filmografia de Julio Bressane A agonia (1978) EXT. Eva e Antena discutem diante de um barraco na favela: EVA E como é que terminou? ANTENA Bem. Não terminou. Não termina nunca, você sabe. EVA Mas é muito estranho. ANTENA É estranho. É isso. É estranho. Muito estranho. É estranho. Muito. INT. A conversa continua no carro. Ao fundo, a praia de Ipanema. ANTENA Você está cansada? Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 381 Gardnier Vestígios de ninguém EVA Cansada? Por que? Não, não é cansaço. É uma quantidade tal de desilusão. É um domingo às avessas. É enfim um feriado passado no abismo.1 Sofrer como? Isso mesmo, como? ANTENA Como o que? EVA Se eu soubesse... Mas confesso. É cansaço. [Corte] EVA Eu não tiro os olhos de suas mãos. Quem são elas? (Pausa). Hoje estou calmo. Nada tenho que esperar nem desesperar. (Pausa). Pare o carro! Tenho vontade de vomitar. E de me vomitar a mim!2 [Corte] ANTENA Eu , eu mesmo, eu… Quantos o mundo pode dar? (Pausa). Você tá cansada? EVA Estou cansada, claro. Porque a certa altura a gente tem que estar cansado. De que estou cansada, não sei. Tenho visto muito. E entendido muito o que tenho visto.3 É isso. ANTENA Como pode ser? EVA “Como pode ser” não. Como pode não ser. Eva canta Cidade Mulher de Noel Rosa 1 Cf. Álvaro de Campos: “Não, não é cansaço...”. 2 Cf. Álvaro de Campos: “Ora até que enfim..., perfeitamente...”. 3 Cf. Álvaro de Campos: “Estou cansado, é claro”. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 382 Gardnier Vestígios de ninguém INT. Antena e Eva conversam no escuro de uma sala de cinema. ANTENA O que houve, você tremeu? EVA É com as minhas ideias que eu tremo. A capacidade de pensar o que sinto é o que me distingue da mulher vulgar.4 * INT. Numa cozinha, Antena, de pé, observa Eva, usando uma peruca loira, sentada, dizendo: EVA É apenas um astro benéfico transitando num ponto vital do horóscopo.5 * EXT. Num pátio diante de uma mesa com pessoas sentadas à sua volta, Sinhô fala e Antena escuta, curvado. SINHÔ O Botto tem isso de forte. Não dá desculpas. Não dar desculpas é melhor do que ter razão.6 [corte] EXT. No mesmo pátio, Sinhô discursa diante da mesa enquanto todos escutam. SINHÔ [...] de diferente dos outros, e não o que ele tem de comum com eles. Fenômenos são esses que caracterizam a doença extrema da época.7 O que pode ter numa época dessas o espírito 4 Cf. Álvaro de Campos: “O tumulto concentrado da minha imaginação intelectual...”. 5 Cf. carta de Fernando Pessoa a Armando Côrtes-Rodrigues, de 26 de junho de 1915. 6 Cf. carta de Álvaro de Campos a José Pacheco, de 17 de outubro de 1922. Cf. final do primeir parágrafo de um texto que começa: “A emergência demasiado fácil das personalidades secundárias”, que se conhece desde 1966 (Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação). 7 Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 383 Gardnier Vestígios de ninguém da raça dos Descobridores? Nada! Salvo a repulsa espontânea e o desprezo repetido. Não nos adaptamos porque os sãos não se adaptam a meio mórbido. Não nos adaptando, somos mórbidos. Neste paradoxo vivemos. Não temos outra esperança, nem outro remédio. * EXT. Wilson Grey de costas diante de um descampado com morros ao fundo. Uma voz off diz: WILSON GREY Não sê como a voz da terra, que é tudo e que é ninguém. Não sê ninguém.8 Viola chinesa (1976) EXT. NUM MIRANTE, DIANTE DE UMA VIATURA DE POLÍCIA E CARREGANDO UM GATO NO COLO, JÚLIO BRESSANE FALA AO MICROFONE: JÚLIO BRESSANE O importante em arte é exprimir. O que exprime não tem importância. EXT. JÚLIO BRESSANE ENTREVISTA GRANDE OTELO NO ALTO DE UM MORRO, TENDO AO FUNDO A CIDADE DO RIO DE JANEIRO. 8 Cf. Álvaro de Campos: “Notas para a recordação do meu mestre Caeiro”. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 384 Gardnier Vestígios de ninguém * JÚLIO BRESSANE Arte é imitação. É imitação de um processo da natureza. Não cópia. GRANDE OTELO Então, arte é deformação. Arte é anormalidade. Arte é conflito. O gigante da América (1976) INT. A câmera enquadra o movimento dos quadris e do ventre de uma bailarina, enquanto uma voz em off diz: VOZ E não poder apagar essa tortura! E não poder esquecer esta vida! * EXT. Jece Valadão e Colé Santana conversam sentados à mesa diante da Baía de Guanabara. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 385 Gardnier Vestígios de ninguém COLÉ SANTANA Eu já fui tudo, mas nada vale a pena.9 * JOSÉ LEWGOY Ser tu sendo eu. Ser outros, sem precisar ser eu.10 * EXT. Close do rosto de Jece Valadão, que encara a câmera e diz: JECE VALADÃO Paro à beira de mim e me debruço.11 Jece deixa pender sua cabeça para frente, e a aba do chapéu esbarra em garrafas de aguardante sobre a mesa. Cf. h|ps://ldod.uc.pt/fragments/fragment/Fr317/inter/Fr317_WIT_ED_CRIT_P Livro do desassossego, “Quanto mais contemplo”. 9 10 Cf. Fernando Pessoa: “Ela canta, pobre ceifeira”. 11 Assim começa um trecho poético do Fausto pessoano (data: 6-11-1912). Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 386 Gardnier Vestígios de ninguém Cinema Inocente (1980) EXT. Imagens em preto e branco do centro do Rio de Janeiro. Uma voz em off diz: VOZ Outra vez te revejo, cidade da minha infância pavorosamente perdida. Cidade triste e alegre. Outra vez sonho aqui.12 A câmera balança do alto de uma passarela na Avenida Presidente Vargas. Entra a música De babado de Noel Rosa. 12 Cf. Álvaro de Campos: “Lisbon Revisited (1926)”. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 387 Gardnier Vestígios de ninguém * INT. Numa sala de edição, Radar (apelido do montador Leovegildo Cordeiro) trabalha sentado diante de uma mesa de edição, tendo um rolo de película enrolado em torno do pescoço. Em off, sua voz diz: RADAR “A raça dos deuses e dos homens é uma só”. O deus antigo não cria, transforma apenas. A duras penas, o vago fica vago.13 Deus, o super-homem, não define o que cria. Daí a sua superioridade. O homem é bobo da sua imaginação. Sombra chinesa de uma ânsia inútil, sem esperança, sem sossego, sem outro conforto. 14 Toda emoção verdadeira é mentira da inteligência. Toda emoção verdadeira tem uma expressão falsa. Exprimir-se é dizer o que não se sente. Estar é ser. Fingir é conhecer.15 Tabu (1981) EXT. Numa calçada, João do Rio caminha de braços dados com Lamartine Babo e Oswald de Andrade. Cf. o texto que começa: “Os deuses pagãos não criam”, que se conhece desde 1966 (Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação). 13 14 Cf. o texto que começa assim, no capítulo VIII de Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. 15 Cf. Álvaro de Campos: “Ambiente”. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 388 Gardnier Vestígios de ninguém JOÃO DO RIO Não é só o céu semeado de estrelas que pede para ser explicado e decifrado. Eu também preciso de um decifrador. De um decifrador de... de um decifrador de charadas. De charadas sincopadas que ninguém na roda decifra nos serões de província. É disso que eu preciso. E que remédio?16 16 Cf. Álvaro de Campos: “Sim, sou eu, eu mesmo, tal qual resultei de tudo”. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 389 Gardnier Vestígios de ninguém Filmografia BRESSANE, Júlio (2012). O batuque dos astros. Brasil. 1 h 14 min. _____ (1989). Sermões, a história de Antônio Vieira. Brasil. 1 h 18 min. _____ (1982). Tabu. Brasil. 1 h 19 min. _____ (1980). O gigante da América. Brasil. 88 min. _____ (1979). Cinema inocente. Brasil. 39 min. _____ (1978). A agonia. Brasil. 1 h 40 min. _____ (1977). Viola chinesa. Brasil. 8 min. _____ (1973). O rei do baralho. Brasil. 1 h 21 min. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 390 Gardnier Vestígios de ninguém RUY GARDNIER é jornalista, pesquisador e crítico de cinema e música. Ingressou na faculdade com o objetivo de escrever sobre música, mas, em 1994, o cinema tornou-se sua paixão. Durante os anos acadêmicos, produziu fanzines sobre música e cinema, porém o cinema ganhou um maior destaque. Em 1998, fundou a revista eletrônica Contracampo, que revolucionou a crítica cinematográfica no Brasil. Posteriormente, criou a revista e o grupo “Camarilha dos Quatro” (https://camarilhadosquatro.wordpress.com/). Este blog destaca músicas experimentais e pouco convencionais. Atua como coordenador de programação da Cinemateca do MAM e pesquisador no Acervo Audiovisual do Circo Voador, é professor em cursos online de cinema e crítico de cinema para o jornal O Globo. Anteriormente, trabalhou como professor na Escola de Cinema Darcy Ribeiro e pesquisador no Tempo Glauber e na Cinemateca do MAM. Também foi curador de diversas mostras de cinema e editor de catálogos retrospectivos de renomados cineastas. Além disso, organizou a Sessão Cineclube no Cine Odeon/RJ e co-curou o Festival Cinemúsica de Conservatória/RJ. RUY GARDNIER is a journalist, researcher, and critic of cinema and music. He entered college with the aim of writing about music, but, in 1994, cinema became his passion. During his academic years, he produced fanzines about music and cinema, but cinema gained greater prominence. In 1998, he founded the online magazine Contracampo, which revolutionized film criticism in Brazil. Later on, he created the magazine and the group “Camarilha dos Quatro” (https://camarilhadosquatro.wordpress.com/). This blog highlights experimental and unconventional music. He works as the programming coordinator at the MAM Cinematheque and a researcher at the Audiovisual Archive of Circo Voador. He is also a professor in online cinema courses and a film critic for the newspaper O Globo. Previously, he worked as a professor at the Darcy Ribeiro Film School and a researcher at Tempo Glauber and the MAM Cinematheque. He has also curated various film exhibitions and edited retrospective catalogs of renowned filmmakers. Additionally, he organized the Cineclube Session at Cine Odeon/RJ and co-curated the Cinemúsica Festival in Conservatória/RJ. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 391 !"##$%&!"#$%&''('( !"#$%&"&'()$(*+(,&-+$(./+(0$''/"( !"#$$%&' "#$%&''(() !"#$%&"'()*%+,)")-&',).&#/)0$((+"*) !"#$%&'()*$ !"#"$%"&'()"$* "#$%&%'(!)#**(&+!,-*.(&+!/-%#0&+!"#$%&%'(!/&$$-12(+!3-%#*4#*-&+!5%4#$*#0-64-7&8! ,*&-./ 9$&4&:*#! '#! ;0&! .$#<#! &=$#*#%4&>?(! '#! 0&4#$-&-*! $#1&4-<(*! &(! @-10#! !"#$%&&'+! '#! "#$%&%'(! /&$$-12(+!1&%>&'(!#0!ABCD+!$#@#$-%'(!&!0&4#$-&1-'&'#!@E10-7&!#!*;&*!$#**(%F%7-&*!*-%#*4G*-7&*!#0! 4($%(!'&!#*7$-4&!'#!"#$%&%'(!)#**(&+!=($!0#-(!'#!@$&H0#%4(*!'(!($)*+,-+,./&'&&+&&/0+ #!'#!=(#0&*! '#!I1<&$(!'#!/&0=(*8!J=$#*#%4&:*#!&!7-'&'#!'#!,-*.(&!7(0(!=&-*&H#0!7(%*4$;E'&!%&!#!=#1&! #*7$-4&!=#**(&%&+!7(0!4$&%*=(*->?(!=&$&!(!7-%#0&!=($!0#-(!'&!&$4-7;1&>?(!*#%*E<#1!'#!'-@#$#%4#*! 0#-(*!*#0-64-7(*8 0*12/%3& "#$%&%'(!)#**(&+!,-*.(%+!/-%#0&+!"#$%&%'(!/&$$-12(+!3K%#*42#*-&+!5%4#$*#0-(4-7*8! 45&6%"(6 92-*!-*!&!.$-#@!=$#*#%4&4-(%!(@!0&4#$-&1*!$#1&4#'!4(!42#!@-10!!"#$%&&'+!.K!"#$%&%'(!/&$$-12(+! $#1#&*#'!-%!ABCD+!$#@#$$-%H!4(!42#!@-10-7!0&4#$-&1-4K!&%'!-4*!*K%#*42#4-7!$#*(%&%7#*!&$(;%'!42#! L$-4-%H*! (@! "#$%&%'(! )#**(&+! 42$(;H2! @$&H0#%4*! @$(0! 1#/, 2++3, +4, .$&5%$/6 &%'! =(#0*! .K! I1<&$(!'#!/&0=(*8!,-*.(%!-*!=$#*#%4#'!&*!&!1&%'*7&=#!7(%*4$;74#'!-%!&%'!42$(;H2!)#**(&M*! L$-4-%H+!L-42!4$&%*=(*-4-(%!4(!7-%#0&!42$(;H2!42#!*#%*-4-<#!&$4-7;1&4-(%!(@!'-@@#$#%4!*#0-(4-7! 0#&%*8 N O""P5,/:O)8 Alves Dossier Ophiussa [...] a cidade a que chego abre-se como se do seu nome nascesse Abre-se e ergue-se em sua extensão nocturna Em seu longo luzir de azul e rio Em seu corpo amontoado de colinas — Vejo-a melhor porque a digo Tudo se mostra melhor porque digo […] (ANDRESEN, 2011: s.p.)1 Dizer Lisboa é, para os que convivem com a poesia portuguesa, ouvir certos versos de Sophia de M. B. Andresen citados em epígrafe. Essa visão luminosa, azul e líquida reverbera a Lisboa – Ulysseia, origem mítica a ligar Ulisses ao futuro marítimo de Portugal. Lisboa a atravessar séculos, coração de uma nação e de sua literatura, motivo recorrente de afeto ou de desassossego. Mas dizer Lisboa é também para muitos (re)encontrar Fernando Pessoa e um imaginário de sensações que esse artista criou quando pôs em movimento, nos muitos e quase inesgotáveis papéis que deixou, um “drama em gente” absurdo e admirável. O jovem Pessoa, depois de quase uma década em Durban, África do Sul, com sua mãe, padrasto e meios-irmãos, retornou a Lisboa em 1905 para fazer seus estudos universitários, que não levaria adiante. Poderia ter voltado para sua casa materna, ter feito sua vida na capital africana. Talvez pudesse ser um funcionário de nível mais elevado ou se tornar um escritor em inglês de origem lusitana. No entanto, Pessoa ficou em Lisboa, na sua cidade de nascimento e estabeleceu com ela uma ligação para a vida toda até que partiu em definitivo aos 47 anos, em 1935. A relação com a cidade foi profunda e talvez a sua escrita fosse outra se não tivesse passado a viver, adulto, nessa cidade em que a luz é diferente, em que a história paira sobre o rio Tejo e tantos espaços públicos, em que o casario sobe pelas colinas, contemplando o mar atlântico com a nostalgia do passado e a expectativa sonhadora de um futuro que deveria vir. O filme Ophiussa2 transporta-nos para essa Lisboa pessoana, (re)criando suas paisagens, seus sons, suas visões, entre realidade e devaneio, em meio ao movimento citadino ou na solidão de quartos com janelas que se abrem sobre ruas talvez pacatas das primeiras décadas do século XX. Neste dossier, é oferecido ao leitor um conjunto de materiais que explicam o projeto e guiam a compreensão da obra verbo-vocovisual. A sinopse fílmica propõe “[...] um périplo cinematográfico pela cidade. Através da visão heteronímica do poeta, o filme recria um território imaginário e intemporal, possivelmente um não-lugar povoado de ‘ficções do interlúdio’” (Anexo 1– Sinopse). Esta publicação foi escrita no âmbito da investigação desenvolvida no Instituto de Literatura Comparada, Unidade I&D financiada por fundos nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia (UIDB/00500/2020 - https://doi.org/10.54499/UIDB/00500/2020). 1 Pode ser visto em https://arquivos.rtp.pt/conteudos/ophiussa-uma-cidade-de-fernando-pessoa/. Tem uma duração de 59’44. 2 Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 393 Alves Dossier Ophiussa O cartaz do filme (Anexo 2) torna materialmente visível a junção desses elementos, sobrepondo a silhueta em preto de Pessoa sobre um postal antigo de Lisboa em que se nota, por trás, a escrita do poeta. O postal é tomado pelo tom azul velho, havendo uma sombra branca à volta do título do filme, a sinalizar talvez a visualidade espectral de uma presença urbana mais imaginada que vivida. Lançado exatamente em 13 de junho de 2013, 125.º aniversário de Pessoa, o filme foi realizado por Fernando Carrilho (Anexo 3 – Créditos), responsável também pela seleção dos fragmentos textuais pessoanos ouvidos ao longo da projeção e pela montagem, em coprodução da Casa Fernando Pessoa, Imagens do Século e Videoteca Municipal de Lisboa, com Direção de Arte por João Frazão e Direção de Fotografia por Miguel Pité. O título Ophiussa refere uma nomeação arcaica do território, com ocupação céltica, onde se constituiria séculos mais tarde Portugal. A partir dessa identificação longínqua, quase fantástica, abre-se uma espécie de portal para adentrarmos em um mundo de palavras criadoras a erguer uma cidade, que não é somente a Lisboa – capital portuguesa, realidade geográfica mensurável, mas um espaço ora exterior, ora interior, visto ao rés-do-chão ou no horizonte distante, resultado das perceções várias de sujeitos imaginados e criados por Pessoa ao longo de sua vida de jovem e adulto lisboeta. Assistir Ophiussa é entrar num túnel de tempo, visualizando fragmentos da cidade (d)escrita por Pessoa, esteticamente articulados na montagem fílmica para causar aos nossos sentidos uma experiência ímpar do pensamento do artista e de suas sensações e emoções mediadas por imagens. Conhecer “[…] a sua Ophiussa, o seu território místico e imaginário” (Anexo 4). O guião completo (Anexo 5) do filme constrói essa experiência a partir da composição de diferentes materiais visuais, como fotografias do arquivo histórico da cidade, panoramas filmados da natureza (céu e nuvens, rio, árvores) ou de zonas lisboetas, como a Baixa, o Rossio, o Chiado, o Jardim da Estrela, o Tejo e o mirante de São Pedro de Alcântara. Ao dividir-se em três atos, como uma peça ou um drama em desenvolvimento, marcam-se o movimento das estações (primavera, verão, outono e inverno), a passagem dos anos em Pessoa (representado por três atores diferentes aos 25, 35 e 45 anos, para além da criança presente na primeira cena do filme) e a escrita em processo do Livro do Desassossego e dos versos de Álvaro de Campos. Da criança que parte para a África do Sul, num navio, ao jovem que retorna e ao adulto que morrerá nessa mesma cidade, sem completar 50 anos, todas as cenas, atravessadas pelo fio do tempo e das estações, contrastam diferentes efeitos de luz natural (o amanhecer, o sol pleno, o crepúsculo e o anoitecer), com toda uma palheta de dourado, azul, cinza e preto, com a luz artificial que cerca o escritor a escrever à mão ou à máquina sobre uma mesa de trabalho em quartos nos quais se tornam quase palpáveis o vazio e a solidão. O poeta sonha por palavras e, a cada ato, a “narração” se faz por vozes masculinas que dizem fragmentos do Livro do Desassossego3 ou versos de Álvaro 3 O realizador utilizou a edição organizada por Jerónimo Pizarro (Lisboa: INCM, 2010). Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 394 Alves Dossier Ophiussa de Campos espelhados pelas imagens que acompanhamos na tela. Assim, Ophiussa transforma-se num caleidoscópio e vemos, fascinados, Lisboa, Pessoa, sua escrita, fotografias antigas da cidade, da natureza, panoramas fílmicos contemporâneos, num constante movimento que abarca ainda a diversidade dos sons urbanos (o ruído dos transeuntes nas ruas, dos cafés, das carroças, dos eléctricos [bondinhos], do rio Tejo tão próximo) com os dos quartos habitados por Pessoa (o ruído da máquina de escrever, dos passos nas escadas, do que vem da rua pelas folhas entreabertas da janela) e os da natureza, lá fora, como o cair da chuva, os trovões ao longe e o vento. Tudo se transforma, para o espectador, em sensações de frio (“gela-me o corpo e a alma”) ou calor (o sol alto), de acolhimento ou de exílio, de companhia ou solidão, de vida ou morte. O guião, indicando em cada cena os fragmentos pessoanos escolhidos e combinados com as estações, partes do dia e as notações meteorológicas, possibilita a cada assistente, com as imagens e os sons, uma experiência fortemente sinestésica, sensivelmente marcante, que atravessa nossos corpos como essa Lisboa que transpassa Pessoa e dele sai transformada, tornando-se paisagem, um construto de sentidos e de sensações que a arte torna visível ao olhar. Reproduzem-se também dez fotogramas do filme (Anexo 6) com o domínio do cinza azulado sobre a paisagem, o olhar aberto sobre espaços icônicos lisboetas, como o mirante de São Pedro de Alcântara, locais urbanos que se opõem ao fechamento dos quartos com o foco dirigido para Pessoa, curvado sobre seu trabalho infinito de escrita, aliado do mundo e da cidade trivial de cada dia. A ligação entre esses espaços se dá por janelas que aqui e ali são focalizadas e atravessadas pelo olhar pessoano, emparelhado com o nosso olhar. O espectador torna-se também um heterônimo a viver e a sentir essa Ophiussa de brumas, chuva, horizontes azulados e acinzentados, de exteriores articulados com as luzes que brilham na noite ou sobre a mesa do escritor a criar experiências diversas da vida, de Lisboa, da cidade moderna a partir do pensar e do sentir de Vicente Guedes, Bernardo Soares e Álvaro de Campos. A alternância das imagens em preto e branco com as coloridas, das fotografias de arquivo e filmagem de cenas contemporâneas, das gentes do passado e do presente, dos muitos espaços sociais que existem numa cidade (as ruas, as praças, os jardins, as lojas, as fábricas), da luz e da sombra, de ruas, horizonte e céu, todo esse jogo de movimento do olhar, de planos e de sítios, leva-nos a percorrer diferentes Lisboas no tempo e na escrita pessoana. Cumpre-se assim a carta de intenção do realizador e compreendemos por que Ophiussa é um filme a revisitar, um dossier também da imaginação e dos sentidos de uma cidade percorrida e vivida por dentro, por Pessoa e por nós, que dividimos com ele não apenas os afetos, as divagações, as sensações partilhadas por seus heterônimos, mas sobretudo as paisagens da alma ou da escrita que transmutam a indiferença ou a melancolia dos dias comuns na liberdade plena dos sonhos. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 395 Alves Dossier Ophiussa ANEXO 1 Sinopse Percorrendo os textos que Fernando Pessoa deixou sobre Lisboa, o filme propõe um périplo cinematográfico pela cidade. Através da visão heteronímica do poeta, o filme recria um território imaginário e intemporal, possivelmente um não – lugar povoado de “ficções do interlúdio”. ANEXO 2 Cartaz e postal Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 396 Alves Dossier Ophiussa ANEXO 3 Créditos Produção: Casa Fernando Pessoa, Imagens do Século e Videoteca Municipal de Lisboa. Parceria estratégica: EGEAC. Apoios: Cinema São Jorge, REN, Sony – Portugal Com: Afonso Mendonça Nuno Vicente Rui Mário Fernando Pessoa – 25 anos Fernando Pessoa – 35 anos Fernando Pessoa – 43 anos Textos lidos por: Almeno Gonçalves Ivo Canelas José Wallenstein Bernardo Soares Vicente Guedes Álvaro de Campos Figuração especial: José Neto Ricardo Filipe Miguel Gomes Barbeiro Fernando Pessoa em criança Homem engravatado Direcção de Arte: João Frazão Direcção de Fotografia: Miguel Pité Grafismos e Tratamento Digital de Imagem: Fátima Rocha Assistente de Realização: Bruno Telésforo Primeiro Assistente de Imagem: Miguel Serra Segundos Assistentes de Imagem: Álvaro Virtudes e João Pelica Chefe Maquinista: Edgar Pacheco Imagens adicionais e Steadycam: Miguel Serra e Ricardo Vale Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 397 Alves Dossier Ophiussa Engenheiro de Som: João Azevedo Montagem e Misturas de Som: Pedro Lourenço Direcção Geral: António Cunha Direcção de Produção: Joana Cunha Assistentes de Produção: Alexandra Martins e Manuela Martins Selecção de Textos, Realização e Montagem: Fernando Carrilho ANEXO 4 Nota de Intenções As cidades e os poetas são por vezes um elo indissociável, eterno, fértil e intemporal. A paisagem urbana e a teia das relações sociais de uma metrópole marcam os indivíduos, formam os seus habitantes e inspiram artistas, escritores e criadores. Fernando Pessoa foi um lisboeta, habitou e viveu a cidade, escreveu sobre ela e projectou também a partir dela os seus pensamentos, recriando a sua Lisboa e edificando a sua Ophiussa, o seu território místico e imaginário. O poeta deixou-nos um conjunto de passagens e fragmentos que nos sugerem uma cidade, um universo pessoano disperso por ruas, praças, cafés e projectado indefinidamente em paisagens sonhadas. Na dimensão encantatória de Lisboa, Fernando Pessoa ocupa um lugar de relevância. O projecto fílmico que se apresenta propõe um périplo cinematográfico pela cidade de Lisboa através da prosa e dos poemas de Vicente Guedes, Bernardo Soares e Álvaro de Campos. Granjeando a riqueza da sua visão heteronímica o filme sugere um olhar sobre Lisboa convidando o espectador a seguir os passos fictícios de Pessoa e a recriar ele próprio a sua cidade. Propõe-se uma viagem no tempo e no espaço a um não-lugar, povoado de “ficções do interlúdio”! ANEXO 5 Guião I. Acto – Primavera Texto / Locução Cena 01/a – Largo Teatro de S. Carlos – Noite, Cena Visual Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) Conteúdo / Acção Planos do S. Carlos Fotografias de Arquivo do teatro Planos da Janela onde nasceu Ponto de vista da Janela (ou cimo do prédio) para o teatro Excerto de Opera no S. Carlos PG Time 398 Alves Dossier Ophiussa Cena 01/b – Quarto nº 1 de Fernando Pessoa – Interior Fernando Pessoa (5 anos) assoma à janela e vê a burguesia entrar no teatro, Cena 01/c – Porta do S. Carlos – Exterior – Noite fotografia arquivo, pessoas frente ao teatro Cena 01/d – Quarto de Fernando Pessoa – Interior – Noite depois vai para a cama e adormece a ouvir ópera começa o genérico 01’00’’ Cena 02 – Vicente Guedes VG – Navio entra na Barra / Exterior – Final de Dia Foi por um crepúsculo de vago Outono que eu parti para essa viagem que nunca fiz. O céu – impossivelmente me recordo – era dum resto roxo de ouro triste, e a linha agónica dos montes, lúcida, tinha uma auréola cujos tons de morte lhe penetravam, amaciadores, na astúcia do seu contorno. Da outra amurada do barco (estava mais frio e era mais noite sob esse lado do toldo) o oceano tremia-se até onde o horizonte leste se entristecia, e onde, pondo penumbras de noite na linha líquida e obscura do mar extremo, um hálito de treva pairava como uma névoa em dia de calor. O mar, recordo-me, tinha tonalidades de sombra, de mistura com fogos ondeados de vaga luz – e era tudo misterioso como uma ideia triste numa hora de alegria, profética não sei de quê. Eu não parti de um porto conhecido. Nem hoje sei que porto era, porque ainda nunca lá estive. Também, igualmente, o propósito ritual da minha viagem era ir em demanda de portos inexistentes – portos que fossem apenas o entrar-para-portos; enseadas esquecidas de rios, estreitos entre cidades irrepreensivelmente irreais. Imagens de mar alto de arquivo e actuais Fotografias de barcos de passageiros (Navio Herzog) Imagens actuais de mar com céu Sintra no horizonte e céu Trafaria, Costa da Caparica, Entrada na Barra de Lisboa, surge o Bugio, depois Lisboa ao Fundo Vê-se a proa do Navio em entrar no Tejo Ligeiro nevoeiro 01’45’’ Cena 03 – Bernardo Soares – Quarto nº 2 /Interior O patrão Vasques, o guarda-livros Moreira, o caixa Borges, os bons rapazes todos, o garoto alegre que leva as cartas ao correio, Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) Fernando Pessoa (25 anos) escreve à secretária, 399 Alves o moço de todos os fretes, o gato meigo – tudo isso se tornou parte da minha vida; não poderia deixar tudo isso sem chorar, sem comprehender que, por mau que me pare-cesse, era parte de mim que ficava com elles todos, que o separar-me d’elles era uma metade e similhança da morte. Aliás, se amanhã me apartasse de elles todos, e despisse este trajo da Rua dos Douradores, a que outra coisa me chegaria – porque a outra me haveria de chegar?, de que outro trajo me vestiria – porque de outro me haveria de vestir? Dossier Ophiussa Movimento charriot, fica ao fundo sozinho a escrever, som da sua voz em fade, composição final, enquadrando a janela 01’00’’ Cena 04 – VG – Quarto nº 2 / Interior Cada pessoa é apenas o seu sonho de si próprio. Eu nem isso sou. […] Sou bocados de personagens de dramas meus. F. Pessoa divide-se em três personagens, Campos, Bernardo e Vicente, surgem três sombras no quarto. 00’30’’ Cena 05 – Bernardo Soares – BS – Baixa / Exterior amanhecer No nevoeiro leve da manhã de meiaPrimavera, a Baixa desperta entorpecida e o sol nasce como se fora lento. Há uma alegria sossegada no ar com metade de frio, e a vida, ao sopro leve da brisa que não há, tirita vagamente do frio que já passou, pela lembrança do frio mais que pelo frio, pela comparação com o Verão próximo, mais que pelo tempo que está fazendo. [...] Não abriram ainda as lojas, salvo as leitarias e os cafés, mas o repouso não é de torpor, como o de domingo; é de repouso apenas. Um vestígio louro antecede-se no ar que se revela, e o azul cora palidamente através da bruma que se esfina. O começo do movimento rareja pelas ruas, destaca-se a separação dos peões, e nas poucas janelas abertas, altas, madrugam também aparecimentos. Os eléctricos estrondeiam a meio-ar o seu vinco móbil amarelo e numerado. E, de minuto a minuto, sensivelmente, as ruas desdesertam-se. [...] Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) Planos gerais da baixa ao amanhecer, Ponto de Vista Elevador Santa Justa, Rua do Carmo, do Ouro, Augusta Planos pormenor com céu Lojas da Rua Augusta, Rua do Carmo fechadas Fotografias de arquivo Planos de Janelas, pessoa espreita, abre a janela Plano de eléctrico na Rua da Prata, ou outra Plano Geral Rua Augusta em fast motion 400 Alves Vogo, atenção só dos sentidos, sem pensamento nem emoção. Despertei cedo; vim para a rua sem preconceitos. Examino como quem cisma. Vejo como quem pensa. E uma leve névoa de emoção se ergue absurdamente em mim; a bruma que vai saindo do exterior parece que se me infiltra lentamente. Dossier Ophiussa Fernando Pessoa (25 anos) sai de casa, interior de um prédio SteadyCam – deambula na baixa, Rua Augusta 02’00’’ Cena 06 – Álvaro de Campos AC – Imagens de Lisboa – Exterior – Manhã Outra vez te revejo, Cidade da minha infância pavorosamente perdida... Cidade triste e alegre, outra vez sonho aqui... Eu? Mas sou eu o mesmo que aqui vivi, e aqui voltei, E aqui tornei a voltar, e a voltar, E aqui de novo tornei a voltar? Ou somos todos os Eu que estive aqui ou estiveram, Uma série de contas-entes ligadas por um fio-memória, Uma série de sonhos de mim de alguém de fora de mim? Várias imagens de Lisboa de manhã, actuais e de arquivo, ponto de vista invulgares, Arco do Triunfo, Elevador Santa Justa, Miradouro de Alfama, Lapa, Estrela, filmar casario, pontos de vista para o Tejo, Elevador da Bica, Jardim Botânico Feira da Ladra, pontos de vista para o Tejo Pontos de vista do Castelo Outra vez te revejo, Com o coração mais longínquo, a alma menos minha. Outra vez te revejo — Lisboa e Tejo e tudo —, Transeunte inútil de ti e de mim, Estrangeiro aqui como em toda a parte, Casual na vida como na alma, Fantasma a errar em salas de recordações, Ao ruído dos ratos e das tábuas que rangem No castelo maldito de ter que viver... 01’20’’ Cena 07 – BS – Imagens de Lisboa, transeuntes – Final Manhã Reparo subitamente que o ruído é muito maior, que muito mais gente existe. Os passos dos mais transeuntes são menos apressados. Aparece, a quebrar a sua ausência e a menor pressa dos outros, o correr andado das varinas, a oscilação dos padeiros, monstruosos de cesto, e [a] Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) Fotografias e imagens de arquivo de cidadãos, varinas, padeiros, leiteiros 401 Alves igualdade divergente das vendedeiras de tudo mais desmonotoniza-se no conteúdo das cestas, onde as cores divergem mais que as coisas. Os leiteiros chocalham, como chaves ocas e absurdas, as latas desiguais do seu ofício andante. Os polícias estagnam nos cruzamentos, desmentido fardado da civilização ao movimento invisível da subida do dia. […] Acordo de mim e, olhando para tudo, agora já cheio de vida e de humanidade costumada, vejo que a névoa que saiu de todo do céu, salvo o que no azul ainda paira de ainda não bem azul, me entrou verdadeiramente para a alma, e ao mesmo tempo entrou para a parte de dentro de todas as coisas, que é por onde elas têm contacto com a minha alma. Perdi a visão do que via. Ceguei com vista. Sinto já com a banalidade do conhecimento. Isto agora não é já a Realidade: é simplesmente a Vida. Dossier Ophiussa Imagens actuais de trânsito, lojas e pessoas, cafés, Brasileira, Martinho da Arcada, Rua dos restaurantes na Baixa, Pastelaria Suíça, Café Gelo, Nicola, planos de pessoas na baixa Planos de Steadycam no chiado 01’10’’ Cena 08 BS – Cortada Cena 09 – VG – Rossio – Esplanada – Brasileira – Tarde Do terraço deste café olho tremulamente para a vida. Pouco vejo dela – a espalhada – nesta sua concentração neste largo nítido e meu. Um marasmo como um começo de bebedeira, elucida-me a alma de coisas. Decorre fora de mim nos passos dos que passam e na fúria regulada de movimentos a vida evidente e unânime. Nesta hora dos sentidos estagnarem-me e tudo me parecer outra coisa – as minhas sensações um erro confuso e lúcido –, abro asas mas não me movo, como um condor suposto. Homem de ideais que sou, quem sabe se a minha maior aspiração não é realmente não passar de ocupar este lugar a esta mesa deste café? Tudo é vão, como mexer em cinzas, vago como o momento em que ainda não é antemanhã. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) Imagens da estátua de Pessoa na Brasileira, ponto de vista para as pessoas que passam, Imagens do Largo do Chiado e Rua Garret Imagens em tele de pessoas Imagens de arquivo e fotografias do Chiado 402 Alves Dossier Ophiussa E a luz bate tão serenamente e perfeitamente nas coisas, doura-as tão de realidade sorridente e triste! Todo o mistério do mundo desce até ante meus olhos se esculpir em banalidade e rua. 00’50’’ Cena 10 – BS – Praça da Figueira – Tarde Volvo lentos os passos mais rápidos do que julgo ao portão para onde subirei de novo para casa. Mas não entro; hesito; sigo para diante. A Praça da Figueira, bocejando venderes [sic] de várias cores, cobre-me, esfreguezando-se o horizonte de ambulante. Avanço lentamente, morto, e a minha visão já não é minha, já não é nada: é só a do animal humano que herdou, sem querer, a cultura grega, a ordem romana, a moral cristã e todas as mais ilusões que formam a civilização em que sinto. Onde estarão os vivos? Entrada da Rua dos Douradores Steady-Cam entrada na rua que dá acesso à Praça da Figueira. Pelo Rossio Imagens da Praça da Figueira actuais Imagens de arquivo “Lisboa de Ontem Hoje e Amanhã” Fotografias de arquivo da Praça Steady-Cam velho dá milho aos pombos na Praça da Figueira, vagabundos na Praça da Figueira 00’40’’ Cena 11 – BS – Céu de Lisboa – Tarde Nuvens... Hoje tenho consciência do céu, pois há dias em que o não olho mas sinto, vivendo na cidade e não na natureza que a inclui. Nuvens... São elas hoje a principal realidade, e preocupam-me como se o velar do céu fosse um dos grandes perigos do meu destino. Nuvens... Passam da barra para o Castelo, de Ocidente para Oriente, num tumulto disperso e despido, branco às vezes, se vão esfarrapadas na vanguarda de não sei quê; meio-negro outras, se, mais lentas, tardam em ser varridas pelo vento audível; negras de um branco sujo, se, como se quisessem ficar, enegrecem mais da vinda que da sombra o que as ruas abrem de falso espaço entre as linhas fechadoras da casaria. Imagens actuais em contra picado do céu visto da baixa Planos do Castelo vistos do Terreiro do Paço Planos do Castelo de S. Jorge Planos do café do Teatro Taborda Planos da Escola Academia Planos em fast motion do céu de Lisboa 00’50’’ Cena 12 – BS – Largo Costa do Castelo – Tarde Não é nos largos campos ou nos jardins grandes que vejo chegar a Primavera. É nas poucas árvores pobres de um largo pequeno Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) Filmar a um fim-de-semana 403 Alves da cidade. Ali a verdura destaca como uma dádiva e é alegre como uma boa tristeza. Amo esses largos solitários, intercalados entre ruas de pouco trânsito, e eles mesmos sem mais trânsito que as ruas. São clareiras inúteis, coisas que esperam, entre tumultos longínquos. São de aldeia na cidade. Passo por eles, subo qualquer das ruas suas afluentes, depois desço de novo essa rua, para a eles regressar. Visto do outro lado é diferente, mas a mesma paz deixa dourar de saudade súbita – sol no ocaso – o lado que não vira na ida. Dossier Ophiussa Largo Costa do Castelo Diversos Planos Imagens de arquivo, eventualmente Imagens de steady, rua de cima, Surge o Tejo 00’40’’ Cena 13/a – BS – Imagens Arquivo – S. Pedro de Alcântara-Tarde Disse Amiel que uma paisagem é um estado de alma, mas a frase é uma felicidade frouxa de sonhador débil. Desde que a paisagem é paisagem, deixa de ser um estado da alma. Objectivar é criar, e ninguém diz que um poema feito é um estado de estar pensando em fazê-lo. Ver é talvez sonhar, mas, se lhe chamamos ver em vez de lhe chamarmos sonhar, é que distinguimos sonhar de ver. Imagens de arquivo de paisagens de Lisboa, fotografias e imagens em movimento Cena 13/b – BS – Quarto nº 2 –Tarde De resto, de que servem estas especulações de psicologia verbal? Independentemente de mim cresce erva, chove na erva que cresce, e o sol doira a extensão da erva que cresceu ou vai crescer; erguem-se os montes de muito antigamente, e o vento passa com o mesmo modo com que Homero, ainda que não existisse, o ouviu. Mais certo era dizer que um estado da alma é uma paisagem; haveria na frase a vantagem de não conter a mentira de uma teoria, mas tão-somente a verdade de uma metáfora. Pessoa (25 anos) escreve à máquina, pensa vai à janela Cena 13/c – BS Jardim S. Pedro de Alcântara – Tarde Estas palavras casuais foram-me ditadas pela grande extensão da cidade, vista à luz universal do sol, desde o alto de São Pedro de Alcântara. Cada vez que assim contemplo Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) Jardim S. Pedro de Alcântara, Mini-Jib Vários planos, panorâmicas 404 Alves Dossier Ophiussa uma extensão larga, e me abandono do metro e setenta de altura, e sessenta e um quilos de peso, em que fisicamente consisto, tenho um sorriso grandemente metafísico para os que sonham que o sonho é sonho, e amo a verdade do exterior absoluto com uma virtude nobre do entendimento. O Tejo ao fundo é um lago azul, e os montes da outra banda são de uma Suíça achatada. Sai um navio pequeno – vapor de carga preto – dos lados do Poço do Bispo para a barra que não vejo. Que os Deuses todos me conservem, até à hora em que cesse este meu aspecto de mim, a noção clara e solar da realidade externa, o instinto da minha inimportância, o conforto de ser pequeno e de poder pensar em ser feliz. 01’35’’ Cena 14 – VG – S. Pedro de Alcântara – Tarde Mas as paisagens sonhadas são apenas fumos de paisagens conhecidas e o tédio de as sonhar é também quase tão grande como o tédio de olharmos para o mundo. Panorâmicas Miradouro S. Pedro de Alcântara 00’30’’ Cena 15 – VG – Deambula – Chiado – Tarde Todos os dias a Matéria me maltrata. A minha sensibilidade é uma chama ao vento. Passo por uma rua e estou vendo na face dos transeuntes, não a expressão que eles realmente têm, mas a expressão que teriam para comigo se soubessem a minha vida, e como eu sou, se eu trouxesse transparente nos meus gestos e no meu rosto a ridícula e tímida anormalidade da minha alma. [...] Conviver com os outros é uma tortura para mim. E eu tenho os outros em mim. Mesmo longe deles sou forçado ao seu convívio. Sozinho, multidões me cercam. Não tenho para onde fugir a não ser que fuja de mim. Vários planos de steadycam, no Chiado, Rua Garret e Rua do Carmo, steady viaja entre a multidão que olha para a câmara (Ruas à sombra ) 01’30’’ Cena 16 – BS – Cortada Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 405 Alves Dossier Ophiussa Cena 17 – AC – Porto Marítimo de Alcântara – Fim Tarde Vai pelo cais fora um bulício de chegada próxima, Começam chegando os primitivos da espera, Já ao longe o paquete de África se avoluma e esclarece. Vim aqui para não esperar ninguém, Para ver os outros esperar, Para ser os outros todos a esperar, Para ser a esperança de todos os outros. Porto marítimo de Alcântara, chegada de paquete Trago um grande cansaço de ser tanta coisa. Chegam os retardatários do princípio, E de repente impaciento-me de esperar, de existir, de ser, Vou-me embora brusco e notável ao porteiro que me dita muito... mas rapidamente. Regresso à cidade como à liberdade. Vale a pena sentir para ao menos deixar de sentir. Planos 24 de Julho, ponto de vista alto?? 01’30’’ Cena 18 – BS – Cortada Cena 19 – BS – Imagens de Lisboa – Exterior – Noite Alastra ante meus olhos saudosos a cidade incerta e silente. As casas desigualam-se num aglomerado retido, e o luar, com manchas de incerteza, estagna de madrepérola os solavancos mortos da confusão. Há telhados e noite, janelas e idade média. Não há de que haver arredores. Paira no que se vê um vislumbre de longínquo. Por sobre de onde vejo há ramos negros de árvores, e eu tenho o sono da cidade inteira no meu coração dissuadido. Lisboa ao luar e o meu cansaço de amanha! Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) Panorâmica da Baixa, elevador Santa Justa, lua cheia 01’20’’ 406 Alves Dossier Ophiussa II. Acto – Verão Texto / Locução Cena 20 – BS – Quarto nº 3 – Interior – Manhã Conteúdo/Acção Time Fernando Pessoa (35 anos) olha o nascer do dia pela janela Cena 20 B – BS – Cortada Cena 21 – BS – Cortada Cena 22 – BS – Cortada Cena 23 – AC – Cais das Colunas – Exterior – Manhã Sozinho, no cais deserto, a esta manhã de Verão, Olho pró lado da barra, olho pró Indefinido, Olho e contenta-me ver, Pequeno, negro e claro, um paquete entrando. Vem muito longe, nítido, clássico à sua maneira. Deixa no ar distante atrás de si a orla vã do seu fumo. Vem entrando, e a manhã entra com ele, e no rio, Aqui, acolá, acorda a vida marítima, Erguem-se velas, avançam rebocadores, Surgem barcos pequenos detrás dos navios que estão no porto. Há uma vaga brisa. Mas a minh'alma está com o que vejo menos. Com o paquete que entra, Porque ele está com a Distância, com a Manhã, Com o sentido marítimo desta Hora, Com a doçura dolorosa que sobe em mim como uma náusea, Como um começar a enjoar, mas no espírito. Planos Cais das Colunas, barcos no Tejo, imagens de arquivo, barcas com vela, documentário de arquivo, sobre as barcas Fotografias de arquivo 02’00’’ Cena 25 – CORTADA Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 407 Alves Dossier Ophiussa Cena 26 – BS – Rossio –Exterior - Meio Dia – Céu meio nublado À roda dos meios da praça, como caixas de fósforos móveis, grandes e amarelas, em que uma criança espetasse um fósforo queimado inclinado, para fazer de mau mastro, os carros eléctricos rosnam e tinem; arrancados, assobiam a ferro alto. À roda da estátua central as pombas são migalhas pretas que se mexem, como se lhes desse um vento espalhador. Dão passinhos, gordas sobre pés pequenos. [...] Do lado do oriente, entrevista, a cidade ergue-se quase a prumo falso, assalta estaticamente o Castelo. […] O vento parece leste, talvez porque aqui mesmo, de repente, cheira vagamente ao maduro e verde do mercado oculto. Do lado oriental da praça há mais forasteiros que do outro. De repente estou só no mundo. Vejo tudo isto do alto de um telhado mental. Estou só no mundo. Ver é estar distante. Ver claro é parar. Analisar é ser estrangeiro. Toda a gente passa sem roçar por mim. Tenho só ar à minha volta. Sinto-me tão isolado que roço a distância entre mim e o meu fato. Sou uma criança, com uma palmatória mal acesa, que atravessa, de camisa de noite, uma grande casa deserta. Vivem sombras que me cercam – só sombras, filhas das coisas mortas e da luz que me acompanha. Elas me rondam, aqui ao sol, mas são gente. Grua, pessoas cruzam a praça Eléctricos circundam a praça, Imagens de arquivo Pombos na estátua Vista do Castelo, grua Esplanada Pastelaria Suíça, passadeira para Rua Augusta Grua noutro local, ponto de vista ruínas do Carmo, elevador Santa Justa ou alto de algum edifício ou hotel Steady-cam meio da multidão Slow motion, pessoas no Rossio, efeito de arrasto 03’10’’ Cena 27 – AC – Cortada Cena 28 – BS – Cortada Cena 29 – AC – Casario / Exterior – Meio Dia Lisboa com suas casas De várias cores, Lisboa com suas casas De várias cores, Lisboa com suas casas De várias cores... À força de diferente, isto é monótono. Como à força de sentir, fico só a pensar. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) Começar com imagens de arquivo de casario a preto e branco 408 Alves Se, de noite, deitado mas desperto, Na lucidez inútil de não poder dormir, Quero imaginar qualquer coisa E surge sempre outra (porque há sono, E, porque há sono, um bocado de sonho), Quero alongar a vista com que imagino Por grandes palmares fantásticos. Dossier Ophiussa Descobrir casas coloridas no filme mistérios (algumas perto do Jardim do Príncipe Real) (outras em transversais da Rua da Escola Politécnica) Mas não vejo mais, Contra uma espécie de lado de dentro de pálpebras, Que Lisboa com suas casas De várias cores. Sorrio, porque, aqui, deitado, é outra coisa. À força de monótono, é diferente. E, à força de ser eu, durmo e esqueço que existo. Iniciar com vários planos de casas coloridas viradas para o Tejo, Alfama, Mouraria, Santos, Príncipe Real, 24 de Junho Fica só, sem mim, que esqueci porque durmo, Lisboa com suas casas De várias cores. 01’35’’ Cena 30 – VG – Beira-Rio – Meio Dia Em vez de almoçar – necessidade que tenho de fazer acontecer-me todos os dias – fui ver o Tejo, e voltei a vaguear pelas ruas sem mesmo supor que achei útil à alma vê-lo. Ainda assim... Viver não vale a pena. Só olhar é que vale a pena. Poder olhar sem viver realizaria a felicidade, mas é impossível, como tudo quanto costuma ser o que sonhamos. O êxtase que não contivesse a vida!... Imagens do Tejo, mulher 40 anos olha e pinta um quadro de paisagem do Rio Tejo (encenação) Imagens em tele, fundo desfocado (diafragma aberto) Plano geral Rio Tejo 01’20’’ Cena 31 – BS – Rua dos Douradores / exterior – Meio Dia Há sossegos do campo na cidade. Há momentos, sobretudo nos meios-dias de estio, em que, nesta Lisboa luminosa, o campo, como um vento, nos invade. E aqui mesmo, na Rua dos Douradores, temos o bom sono. Que bom à alma ver calar, sob um sol alto quieto, estas carroças com palha, estes Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) Planos da Rua dos Douradores ao meio dia Fazer mais planos da rua vazia Imagens de arquivo, fotografias (encenar fotos com Pessoa presente) 409 Alves Dossier Ophiussa caixotes por fazer, estes transeuntes lentos, de aldeia transferida! Cena 31b – BS – Escritório Interior – Meio Dia Eu mesmo, olhando-os da janela do escritório, onde estou só, me transmuto: estou numa vila quieta da província, estagno numa aldeola incógnita, e porque me sinto outro sou feliz. Bem sei: se ergo os olhos, está diante de mim a linha sórdida da casaria, as janelas por lavar de todos os escritórios da Baixa, as janelas sem sentido dos andares mais altos onde ainda se mora, e, ao alto, no angular das trapeiras, a roupa de sempre, ao sol entre vasos e plantas. Sei isto, mas é tão suave a luz que doura tudo isto, tão sem sentido o ar calmo que me envolve, que não tenho razão sequer visual para abdicar da minha aldeia postiça, da minha vila de província onde o comércio é um sossego. Fernando Pessoa (35 anos), espreita à janela Janela para a Rua dos Douradores, telhados e edifícios Filmar sapateiro, outra loja 02’10’’ Cena 32 – BS – Rua dos Douradores – Exterior – tarde Penso às vezes que nunca sairei da Rua dos Douradores. E isto escrito então parece-me a eternidade. Contra Picado, Pessoa (35 anos) à Janela fumando 00’30’’ Cena 35 – BS – Jardim da Estrela – Exterior – tarde O jardim da Estrela, à tarde, é para mim a sugestão de um parque antigo, no século anterior do desencanto da alma. […] Não quero mais da vida do que senti-la perder-se nestas tardes imprevistas, ao som de crianças alheias que brincam, nestes jardins engradados pela melancolia das ruas que os cercam, e copados, para além dos ramos altos das árvores, pelo céu velho onde as estrelas recomeçam. Ponto de vista da Basílica da Estrela Imagens de arquivo manipuladas Grades para a rua Travelling circular cp copas das árvores 01’00’’ Cena 36 - BS – Jardim Príncipe Real – Tarde Não sei que coisa estranha e pobre existe na substância íntima dos jardins citadinos que Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) Imagens de arquivo, fotografias Ponto de vista alto 410 Alves só a posso sentir bem quando me não sinto bem a mim. Um jardim é um resumo da civilização – uma modificação anónima da Natureza. As plantas estão ali, mas há ruas-ruas. Crescem árvores, mas há bancos por baixo da sua sombra. No alinhamento virado para os quatro lados da cidade, ali só largo, os bancos são maiores e têm quase sempre uma abundância de pessoas. Não odeio a regularidade das flores em canteiros. Odeio, porém, o emprego público das flores. Se os canteiros fossem em parques fechados, se as árvores crescessem sobre recantos feudais, se os bancos não tivessem alguém, haveria com que consolar-me na contemplação inútil dos jardins. Assim, na cidade, regrados mas úteis, os jardins são para mim como gaiolas, em que as espontaneidades coloridas das árvores e das flores não têm senão espaço para o não ter, lugar para dele não sair, e a beleza própria sem a vida que pertence a ela. Dossier Ophiussa Travellings Bancos de jardim, amorcê para as ruas Travelling canteiros 02’30’’ Cena 37 – BS – Cortada Cena 38 – BS – Cortada Cena 39 – AC – Cortada Cena 40 – VG – Cortada Cena 41 – BS – Viagem de Eléctrico 28 / Imagens de Arquivo Vou num carro eléctrico, e estou reparando lentamente, conforme é meu costume, em todos os pormenores das pessoas que vão adiante de mim. Para mim os pormenores são coisas, vozes, frases. Neste vestido da rapariga que vai em minha frente decomponho o vestido em o estofo de que se compõe, o trabalho com que o fizeram – pois que o vejo vestido e não estofo – e o bordado leve que orla a parte que contorna o pescoço separ-se-me em retrós de seda, com que se o bordou, e o trabalho que houve de o bordar. E imediatamente, como num livro primário de economia política, desdobram-se diante de mim as fábricas e os trabalhos – a fábrica Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) Recriação eléctrico com pessoas vestidas á época Plano conjunto perfil de passageiros PAP frontal de rapariga morena com vestido verde à época olhando a Janela Tilt para baixo Imagens de arquivo Senhora a bordar Fábricas de confecção Máquinas, operários Escritórios, livros de contabilidade Retratos de pessoas da época 411 Alves onde se fez o tecido; a fábrica onde se fez o retrós, de um tom mais escuro, com que se orla de coisinhas retorcidas o seu lugar junto ao pescoço; e vejo as secções das fábricas, as máquinas, os operários, as costureiras, meus olhos virados para dentro penetram nos escritórios, vejo os gerentes procurar estar sossegados, sigo, nos livros, a contabilização de tudo; mas não é só isto: vejo, para além, as vidas domésticas dos que vivem a sua vida social nessas fábricas e nesses escritórios... [...] Toda a vida social jaz a meus olhos. Para além disto pressinto os amores, as secrecias, a alma, de todos quantos trabalharam para que esta mulher que está diante de mim no eléctrico use, em torno do seu pescoço mortal, a banalidade sinuosa de um retrós de seda verde escura fazendo inutilidades pela orla duma fazenda verde menos escura. Dossier Ophiussa Plano Médio da rapariga que agora olha para ele Cena 41 B – corredor do Eléctrico 28 Entonteço. Os bancos do eléctrico, de um entre-tecido de palha forte e pequena, levamme a regiões distantes, multiplicam-se-me em indústrias, operários, casas de operários, vidas, realidades, tudo. Saio do carro exausto e sonâmbulo. Vivi a vida inteira. CP eléctrico do museu da carris, FP G levanta-se e caminha no corredor Eléctrico pára e FP G sai, plano sobreexposto 04’00’’ Cena 42 – BS – Cortada Cena 43 - BS - Rua do Arsenal / Alfândega Amo, pelas tardes demoradas de Verão, o sossego da cidade baixa, e sobretudo aquele sossego que o contraste acentua na parte que o dia mergulha em mais bulício. A Rua do Arsenal, a Rua da Alfândega, o prolongamento das ruas tristes que se alastram para leste desde que a da Alfândega cessa, toda a linha morta e separada dos cais quedos – tudo isso me conforta de tristeza, se me insiro, por essas tardes, na solidão do seu conjunto. Vivo uma era anterior àquela em que vivo; gozo de sentir-me coevo de Cesário Verde, e tenho em mim, não outros versos Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) Domingo, planos vazios das Ruas do Arsenal e Alfândega, cafés, prédios 412 Alves como os dele, mas a substância igual à dos versos que foram dele. Por ali arrasto, até haver noite, uma sensação de vida parecida com a dessas ruas. De dia elas são cheias de um bulício que não quer dizer nada; de noite são cheias de uma falta de bulício que não quer dizer nada. Eu de dia sou nulo, e de noite sou eu. Não há diferença entre mim e as ruas para o lado da Alfândega, salvo elas serem ruas e eu ser alma, o que pode ser que nada valha ante o que é a essência das coisas. Há um destino igual, porque é abstracto, para os homens e para as coisas – uma designação igualmente indiferente na álgebra do mistério. Dossier Ophiussa Steady-Cam Imagens de arquivo Steady-cam mais ao final do Dia 02’00’’ Cena 44 – AC – Quarto nº 3 / Noite (BS – Cena Áudio ver texto Realidade Anafrodisíaca) Pessoa (35 anos), pára, ouve e pensa Começa a haver meia-noite, e a haver sossego, Por toda a parte das coisas sobrepostas, Os andares vários da acumulação da vida... Calaram o piano no terceiro-andar... Não oiço já passos no segundo-andar... No rés-do-chão o rádio está em silêncio... Vai tudo dormir... Fico sozinho com o universo inteiro. Não quero ir à janela: Se eu olhar, que de estrelas! Que grandes silêncios maiores há no alto! Que céu anticitadino! — Antes, recluso, Num desejo de não ser recluso, Escuto ansiosamente os ruídos da rua... Um automóvel! — demasiado rápido! — Os duplos passos em conversa falam-me O som de um portão que se fecha brusco dói-me... Vai tudo dormir... Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) Som do portão a fechar 02’00’’ 413 !"#$% '(%%)$*&+,-).%%/ /#%&!^]!Z \3!Z j;&$4(!%k!D!Z 5%4#$-($!Z d(-4# "#72(+!7&%*&'(+!&*!=($4&*!'&*!0-%2&*!m&%#1&*+ )#**(&! TD]! &%(*V ,#<&%4&:*#+ <&-! l! m&%#1&+! #f71;(! (! 0;%'(! #! ;0! 0(0#%4(! 4#%2(! &! <(14&!&!*#%4&$:*#+ &7#%'#!7-H&$$( 1-.#$'&'#8! 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Cena 57 – BS – Cena Cortada Cena 58 – BS – Quarto Nº 4 / Rua dos Douradores – Princípio Noite Estou quase místico, com eles, ao falar deles, mas seria incapaz de ser mais que estas palavras escritas ao sabor da minha inclinação ocasional. Serei sempre da Rua dos Douradores, como a humanidade inteira. Serei sempre, em verso ou prosa, empregado de carteira. Serei sempre, no místico ou no não-místico, local e submisso, servo das minhas sensações e da hora em que as ter. Serei sempre, sob o grande pálio azul do céu mudo, pajem num rito incompreendido, vestido de vida para cumpri-lo, e executan-do, sem saber porquê, gestos e passos, posições e maneiras, até que a festa acabe, ou o meu papel nela, e eu possa ir comer coisas de gala nas grandes barracas que estão, dizem, lá em baixo ao fundo do jardim. Pessoa (40 anos) escreve (manuscrito) à secretária, olha para a janela Rua dos Douradores Noite Luz Quente Janela Concelho Nacional Juventude Planos Contra-Picados, visão do céu. Plano em profundidade da rua Cena 59 – BS – Imagens de Arquivo Saudades! Tenho-as até do que me não foi nada, por uma angústia da fuga do tempo e uma doença do mistério da vida. Caras que via habitualmente nas minhas ruas habituais – se deixo de vê-las entristeço; e não me foram nada, a não ser o símbolo de toda a vida. O velho sem interesse das polainas sujas, que cruzava frequentemente comigo às nove e meia da manhã? O cauteleiro coxo que me maçava inutilmente? O velhote redondo e corado do charuto à porta da tabacaria? O dono pálido da tabacaria? O que é feito de todos eles, que, porque os vi e os tornei a ver, foram parte da minha vida? Amanhã também eu me sumirei da Rua da Prata, da Rua dos Douradores, da Rua dos Fanqueiros. Amanhã também eu – a alma que sente e Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) Barbeiro entra em casa, traz garrafa aguardente e faz a barba a Pessoa. Imagens de Lisboa, anos 70 e 80 Fotografias de um cauteleiro, Rua da Prata, Rua dos Fanqueiros Fotografias de Pessoa a deambular pela cidade, misturadas com fotografias falsas, na taberna, a ler o jornal, etc 421 Alves pensa, o universo que sou para mim – sim, amanhã eu também serei o que deixou de passar nestas ruas, o que outros vagamente evocarão com um “o que será dele?”. E tudo quanto faço, tudo quanto sinto, tudo quanto vivo, não será mais que um transeunte a menos na quotidianidade de ruas de uma cidade qualquer. Dossier Ophiussa Várias fotografias de “gente morta” ANEXO 6 Fotogramas Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 422 Alves Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) Dossier Ophiussa 423 Alves Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) Dossier Ophiussa 424 Alves Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) Dossier Ophiussa 425 Alves Dossier Ophiussa Bibliografia ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner (1983). In: TAVARES, Maria Andresen Sousa (2011) (org.). Sophia de Mello Breyner Andresen no Seu Tempo: Momentos e Documentos. Lisboa: Biblioteca Nacional de Portugal. Disponível em: h€ps://purl.pt/19841/1/index.html CARRILHO, Fernando (2013). Ophiussa: Uma Cidade de Fernando Pessoa. Documental. Veja-se a página da RTP ARQUIVOS: https://arquivos.rtp.pt/conteudos/ophiussa-uma-cidade-de-fernando-pessoa/ CASTRO, Gabriel Pereira de (1636). Ulysseia ou Lysboa Edificada. Lisboa: Lourenço Crasbeeck impressor del Rey [a custa de Paulo Crasbeeck mercador de livros]. Disponível em Biblioteca Nacional Digital, https://purl.pt/12170. Acesso em 11/03/2024 PESSOA, Fernando (2014). Obra Completa de Álvaro de Campos. Edição de Jerónimo Pizarro e Antonio Cardiello. Lisboa: Tinta-da-china. _____ (2010). Livro do Desasocego. Edição crítica de Jerónimo Pizarro. Lisboa: Imprensa NacionalCasa da Moeda. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 426 Alves Dossier Ophiussa IDA ALVES é professora titular de literatura portuguesa do Instituto de Letras da Universidade Federal Fluminense, Brasil. Docente do Programa de Pós-Graduação Estudos de Literatura – UFF. Vice-coordenadora do Polo de Pesquisas Luso-Brasileiras (PPLB), Real Gabinete Português de Leitura. Pesquisadora do Conselho Nacional de Pesquisa/CNPq, Brasil, e Colaboradora do Instituto de Literatura Comparada da Universidade do Porto. Coordena a Plataforma eletrônica Páginas Luso-Brasileiras em Movimento e o site Escritor Carlos de Oliveira. Autora e coautora de coletâneas, capítulos e artigos em revistas acadêmicas sobre poesia portuguesa moderna e contemporânea, além de estudos de paisagem nas literaturas de língua portuguesa. Destacam-se os livros: Revistas de poesia: Brasil / Moçambique / Portugal (2022); Carlos de Oliveira e Nuno Júdice, Poetas Personagens da Linguagem (2021); Paisagens em Movimento Rio de Janeiro e Lisboa Cidades Literárias, 3 vols. (2020-2021); Poesia Contemporânea e Tradição Brasil – Portugal (2017); Grafias da cidade na poesia contemporânea – Brasil e Portugal (2015); e Poetas que interessam mais (2011). IDA ALVES is a full professor of Portuguese literature at the Institute of Letters of the Federal Fluminense University, Brazil. She is a lecturer in the Graduate Program in Literary Studies at UFF. Vice-coordinator of the Portuguese-Brazilian Research Center (PPLB), Royal Portuguese Cabinet of Reading. Researcher at the National Research Council/CNPq, Brazil, and Collaborator at the Institute of Comparative Literature of the University of Porto. She coordinates the electronic platform Luso-Brazilian Pages in Movement and the website Escritor Carlos de Oliveira. Author and co-author of anthologies, chapters, and articles in academic journals on modern and contemporary Portuguese poetry, as well as studies on landscape in Portuguese-language literatures. Among her books, the following stand out: Revistas de poesia: Brasil / Moçambique / Portugal (2022); Carlos de Oliveira e Nuno Júdice, Poetas Personagens da Linguagem (2021); Paisagens em Movimento Rio de Janeiro e Lisboa Cidades Literárias, 3 vols. (2020-2021); Poesia Contemporânea e Tradição Brasil – Portugal (2017); Grafias da cidade na poesia contemporânea – Brasil e Portugal (2015); and Poetas que interessam mais (2011). Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 427 !"#$%#%&"'("!"#$%&'"#("#)*#+%,-"$ !"#$%& !"#$%&'"#("#)*#+%,-"$(' !"#$%&'()*"+'',(-) !"#$%&'($ !"#$%$&'()"**'%+(,'-#./01.#%2"+(3$40%.4'$+()#'5"**-*(%#.4*.46-"+(7-*46-"(".(40%2"8 *($+,( ,".."(5'$.#49-.4'$("$5%:*-;"(;"(<'=%2"(5#1%.4>(&"(;?%&%:.%.4'$(&"(;?@-<#"(&"(!"#$%$&'()"**'%(&%$*(-$( 5'-#.(01.#%2"(%$401+("$.#";%51(&"(#1>;"A4'$*(:"#*'$$";;"*(*-#(;?4$*:4#%.4'$(".(;"(:#'5"**-*(%#.4*.46-"8( B$4.4%;"0"$.( &15;"$5C1( :%#( ;%( &1*4;;-*4'$( %<"5( -$( :#'D".( :#151&"$.( ".( %;40"$.1( :%#( -$"( :#'>'$&"( 5'$$"A4'$(%<"5(;"*(15#4.*(&"()"**'%+(;"(54$1%*."(*?"*.(;%$51(&%$*(-$"("$.#":#4*"(.#%$*>'#0%.4<"(;'#*(&"( *"*( .#%D".*( 6-'.4&4"$*( "$( .#%4$8( E( .#%<"#*( &"*( 4;;-*.#%.4'$*( ".( &"*( %$40%.4'$*( 01.45-;"-*"*+( ;"( >4;0( "*.( :%**1( &?-$"( 6-F."( *';4.%4#"( G( -$"( "A:#"**4'$( :'42$%$."( &"( .CH0"*( "A4*."$.4";*( ".( &"( #1*'$%$5"( 10'.4'$$";;"8(7%;2#1(;"*(&1>4*(".(;"*(&1.'-#*(5#1%.4>*+(;"(:#'D".(%(%9'-.4(G(-$"("A:;'#%.4'$(<4*-";;"0"$.( #45C"(&"(;%(01;%$5';4"(".(&-(0'-<"0"$.+(*'-;42$1"(:%#(-$"(9%$&"(*'$'#"(1<'5%.#45"8( -.'./0.$%&1./2 !"#$%$&'()"**'%+ ,-#.%/0".#%2"0+(3$40%IJ'+()#'5"**'(%#.K*.45'+(7L*45%("(40%2"08( *2$+," M*."(5'$.#49-.'("$5%:*-;%(%(D'#$%&%(5#4%.4<%(&"(%&%:.%IJ'(&%('9#%(&"(!"#$%$&'()"**'%($-0%(5-#.%/ 0".#%2"0(%$40%&%+("$.#";%I%&%(5'0(#">;"AN"*(:"**'%4*(*'9#"(4$*:4#%IJ'("(:#'5"**'(%#.K*.45'8(B$454%;0"$." &"*"$5%&"%&%(:";%(&"*4;-*J'(5'0(-0(:#'D".'(%$."#4'#("(%;40"$.%&%(:'#(-0%(:#'>-$&%(5'$"AJ'(5'0('*( "*5#4.'*(&"()"**'%+('(54$"%*.%("09%#5'-("0(-0%(4$454%.4<%(.#%$*>'#0%&'#%(&-#%$."(%*(<4%2"$*(&4O#4%*( &"(5'09'4'8(3.#%<1*(&"(4;-*.#%IN"*("(%$40%IN"*(0".45-;'*%*+('(>4;0"("<';-4-(&"(-0%(9-*5%(*';4.O#4%(:%#% -0%("A:#"**J'(5'0'<"$."(&"(."0%*("A4*."$54%4*("(#"**'$P$54%("0'54'$%;8(3:"*%#(&'*(&"*%>4'*("(&"*<4'*( 5#4%.4<'*+('(:#'D".'(5-;04$'-("0(-0%("A:;'#%IJ'(<4*-%;0"$."(#45%(&%(0";%$5';4%("(0'<40"$.'+("$>%.4Q%&% :'#(-0%(.#4;C%(*'$'#%("<'5%.4<%8 3245"06$ !"#$%$&'()"**'%+(RC'#.(>4;0+(3$40%.4'$+(3#.4*.45(:#'5"**+(7-*45(%$&(40%2"8 78$#0.&# SC4*(5'$.#49-.4'$("$5%:*-;%."*(.C"(5#"%.4<"(D'-#$"=('>(%&%:.4$2(!"#$%$&'()"**'%?*(T'#U(4$.'(%$(%$40%."& *C'#.(>4;0+(4$."#.T4$"&(T4.C(:"#*'$%;(#">;"5.4'$*('$(4$*:4#%.4'$(%$&(%#.4*.45(:#'5"**8(B$4.4%;;=(*:%#U"&(9=( &4*4;;-*4'$0"$.( T4.C( %( :#"<4'-*( :#'D"5.( %$&( >-";"&( 9=( %( &"":( 5'$$"5.4'$( .'( )"**'%?*( T#4.4$2*+( .C"( >4;00%U"#("09%#U"&('$(%(.#%$*>'#0%.4<"("$&"%<'#(&-#4$2(&%4;=(.#%4$(5'00-."*8(SC#'-2C(0".45-;'-*( 4;;-*.#%.4'$(%$&(%$40%.4'$+(.C"(>4;0("<';<"&(>#'0(%(*';4.%#=(:-#*-4.(4$.'(%(:'42$%$.("A:#"**4'$('>("A4*."$.4%; .C"0"*(%$&("0'.4'$%;(#"*'$%$5"8(V"*:4."(5C%;;"$2"*(%$&(5#"%.4<"(&".'-#*+(.C"(:#'D"5.(5-;04$%."&(4$(%( <4*-%;;=(#45C("A:;'#%.4'$('>(0";%$5C';=(%$&(0'<"0"$.+(-$&"#*5'#"&(9=(%$("<'5%.4<"(*'-$&.#%5U8 ! #$%&'(%)*+, *)"(-$.%,'()*/ Chollet À propos de Le songe de B. Soares La vie entière de l’âme humaine est mouvement dans la pénombre. Fernando Pessoa1 Les documents Les documents présentés ici ont été mis en forme lors de la demande d’aide au CNC (Centre National du Cinéma). Nous avons demandé avec la société de production Gasp! une subvention que nous avons touché. Le film était presque finalisé à ce moment. La note d’intention explicite ma démarche et le projet d’adaptation d’un texte de Fernando Pessoa. Ces documents correspondent dans l’ensemble au résultat du film, sauf la fin du court-métrage qui a été complètement remaniée. Le storyboard a été élaboré après l’animation des plans, ce qui est le contraire de ce qui est fait d’habitude. Il sert surtout pour que la commission puisse visualiser ce que va être le film. Le film C’est difficile de retrouver totalement l’idée qui m’a poussé à créer ce court-métrage. Je pense que j’étais un peu déçu de la tournure qu’avait pris mon précédent film. Je travaillais depuis un an sur une série où je faisais beaucoup de tâches répétitives et tous les jours des longs trajets de train qui m’épuisaient. J’avais découvert l’œuvre de Fernand Pessoa quelques années avant. J’ai entendu pour la première fois son nom dans une émission de radio sur France Culture. J’ai tout de suite été fasciné par ses personnalités et j’ai commencé à lire les poèmes du Gardeur de troupeaux, puis l’ensemble de son œuvre. Le poème Bureau de tabac m’a subjugué. Puis j’ai lu le Livre de l’intranquillité qui est devenu pour un temps mon livre préféré. Donc pendant cette année mélancolique de travail, les textes de Pessoa faisaient de multiples échos à mes propres émotions et pensées. J’avais l’impression de lire ce que j’aurais voulu écrire. J’ai proposé d’adapter le poème bureau de tabac en court métrage d’animation à mon producteur mais celui-ci n’a pas été très enthousiaste… Ce qui m’a amené finalement sur ces longs trajets de train à faire des illustrations des textes de l’Intranquillité juste pour le plaisir. Je prenais une phrase ou deux et à partir de celle-ci je me laissait porter par des souvenirs, éléments obsessionnels ou des idées récurrentes. Ainsi on peut retrouver la balançoire de mon enfance, une personne à la fenêtre. 1 Cette présentation est un témoignage de l'auteur, qui expose ainsi l'un de ses travaux créatifs. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 429 Chollet À propos de Le songe de B. Soares J’ai repris des éléments graphiques qui m’habitaient et qui me semblaient répondre avec l’œuvre de Pessoa. Ainsi j’ai repris l’œil, le fantôme d’Odilon Redon, mais aussi des personnages des caprices de Goya, ou encore l’homme dans le tableau d’Anselm Kiefer « The Renowned Orders of the Night ». J’avais également la citation d’un film de Guy Debord en tête : « In girum imus nocte et consumimur igni » (« Nous tournons en rond dans la nuit et nous sommes dévorés par le feu »). Petit à petit j’ai cumulé pas mal de dessins et mon idée de livre illustré s’est transformé en film d’animation. J’ai commencé à animer (toujours sur les trajets de train) les illustrations que j’avais faite sur ordinateur. Faire ce film me permettait de donner du sens à mes journées. J’ai dû faire cela six mois. J’avais dans l’idée de faire un film immobile, mélancolique et sombre (ce qui me rendait étonnamment très enthousiaste) qui se finirait dans une explosion de mouvement et d’émotions. C’est un court avec beaucoup de traits qui a été long à fabriquer, avec beaucoup de « faux fixe » (un dessin redessiné trois fois pour faire vibrer le trait). Ensuite les trajets ont pris fin et j’en ai profité pour finir les images du courtmétrage. J’ai fais une version montée avec une musique Indonésienne (une musique qui m’a porté pendant toute la création de l’animation) qui me semblait s’accorder parfaitement à mon projet : Sudamala de Gamelan Dharma Swara. Et comme je ne comprenais pas les paroles de ce chanteur j’ai commencé à mettre en sous-titres les phrases de Bernardo Soares, et cela semblait parfait. J’ai montré mon projet à mon producteur qui a été enfin intéressé. Mais la bande son ne lui convenait pas. On a réussi à toucher quelques aides pour la musique et l’image. Ce qui nous permis d’enregistrer une musique et d’enregistrer une voix off. Ce court-métrage a été projeté dans quelques festivals et reste peu vu. De mon point de vue c’est une sorte de boule noire très personnelle que j’expose sous différents masques. Même si j’ai beaucoup aimé le fabriquer je ne referais certainement pas un autre film comme celui-ci, je n’ai plus les mêmes envies. Je pars dans d’autres directions maintenant. Texte de Fernando Pessoa J’ai choisi cet extrait car c’est qui s’accordait le mieux avec mes préoccupations et inquiétudes existentielles. Un texte magnifiquement écrit qui me touche profondément, qui allie lucidité, mystère, et interrogation métaphysique. C’est un texte sur le mouvement perpétuel de la pensée et des émotions. Quand je lisais ce texte je me disais que je ne pourrais jamais rien écrire de mieux, qu’il exprimait parfaitement ma pensée. Ces phrases je voulais les partager, avec les images qu’il me suscitait. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 430 Chollet À propos de Le songe de B. Soares Fernando Pessoa, Livre de l’intranquillité, texte L.l.63 La vie entière de l’âme humaine est mouvement dans la pénombre. Nous vivons dans le clair-obscur de la conscience, sans jamais nous trouver en accord avec ce que nous sommes, ou supposons être. Les meilleurs d’entre nous abritent la vanité de quelque chose, et il y a une erreur d’angle dont nous ignorons la valeur. Nous sommes quelque chose qui se déroule pendant l’entracte d’un spectacle ; il nous arrive partais, par certaines portes, d’apercevoir ce qui n’est peut-être que décor. Le monde entier est confus, com me des voix perdues dans la nuit. Les pages où je consigne ma vie, avec une clarté qui subsiste pour elles, je viens de les relire, et je m’interroge. Qu’est-ce que tout cela, à quoi tout cela sert-il ? Qui suis-je lorsque je sens ? Quelle chose suis-je en train de mourir, lorsque je suis ? Comme un homme qui tenterait, de très haut, de distinguer les êtres vivants dans une vallée, ainsi je me contemple moi-même depuis un sommet et je suis, malgré tout, un paysage confus et indistinct. C’est durant ces heures où s’ouvre un abîme dans mon âme que le plus petit détail vient m’accabler, comme une lettre d’adieu. Je me sens perpétuellement sur le point de m’éveiller, je me subis comme l’enveloppe de moi-même, dans un étouffement de conclusions. Je crierais de bon cœur, si mon cri pouvais parvenir quelque part. Mais je suis plongé dans un sommeil profond, qui se déplace de certaines sensations vers d’autres comme un cortège de nuages – ces nuages qui parsèment de vert et de soleil l’herbe tachetée d’ombre des vastes prairies. On dirait que je cherche, à tâtons, un objet caché je ne sais où, et personne ne m’a dit ce qu’il était. Nous jouons à cache-cache avec personne. Il existe, quelque part, un subterfuge transcendant, une divinité fluide et seulement entendue. Oui, je relis ces pages qui représentent des heures vécues pauvrement, de petits répits, des illusions, de grands espoirs déviés vers le paysage, des tristesses semblables à des pièces où l’on pénètre jamais, certaines voix, une immense fatigue – l’évangile qui reste à écrire. Chacun de nous a sa vanité, et cette vanité consiste à oublier que les autres aussi existent, et ont une âme semblable à la nôtre. Ma vanité, ce sont ces quelques pages, certains passages, certaines questions... Je me suis relu ? Faux ! Je n’ose pas, je ne peux pas me relire. A quoi cela serviraitil ? Celui qui est dans ces pages, c’est un autre. Je ne comprends déjà plus rien... Fernando Pessoa, Livre de l’intranquillité, texte L.l.133 […] ne goûtant le rêve que lorsque je ne rêve point, et ne goûtant le monde que lorsque je rêve loin de lui. Pendules oscillant sans cesse, toujours en mouvement sans arriver jamais, n’allant que pour revenir, éternellement prisonnier de la double fatalité d’un centre et d’un mouvement inutile. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 431 Chollet Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) À propos de Le songe de B. Soares 432 Chollet Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) À propos de Le songe de B. Soares 433 Chollet Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) À propos de Le songe de B. Soares 434 Chollet Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) À propos de Le songe de B. Soares 435 Chollet Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) À propos de Le songe de B. Soares 436 Chollet Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) À propos de Le songe de B. Soares 437 Chollet Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) À propos de Le songe de B. Soares 438 Chollet À propos de Le songe de B. Soares NOTE D’INTENTION Depuis longtemps les textes de Fernando Pessoa hante mon travail sans que je parvienne à comprendre l’influence qu’il avait sur moi alors que depuis toujours, je cherche à transcrire dans mes courts métrages le sentiment qu’ils évoquent. La confusion de la pensée et de nos perceptions sont les thématiques qui ressortent de l’œuvre de cet auteur et correspondent à des questionnements intimes et personnels. Pessoa nous fait douter sur l’existence de nos vies, de nos actes, comme si nous tournions dans le noir, attirés par des desseins qui au fur et à mesure que l’on s’en rapproche perdent de leur importance. Son regard distancié et poétique nous amène lentement vers une dissolution des évidences. Je me rappelle mon adolescence où l’absence de signification de l’existence était pour moi une vraie préoccupation. C’est à cette période charnière que l’on se demande Qui suis-je ? Que faire de ma vie dans le temps qui m’est imparti ? C’est à ce moment de ma vie que faire des films est apparue comme une évidence ; faire un film pour moi c’est tenter de faire sens. Le texte de Pessoa répond à mes réflexions et les sublime par sa sensibilité. Il s’accorde parfaitement avec cet part mélancolique en moi ; son texte décrit ce que je ressens. Bien qu’à priori conceptuel, ce ressenti est une manière d’aborder le sens de la vie, de l’interroger, de l’expérimenter. Certaines phrases de ces textes de ne cessent de frapper mon imagination et c’est la raison pour laquelle ce projet me tient à cœur. L’objectif n’est pas d’illustrer simplement mais bien d’en donner un point de vue personnel comme une traduction en image d’émotions liées à un style d’écriture pour mener les spectateurs dans cette ambiance mélancolique ponctuée d’images mentales fortes, comme un cheminement spirituel. Je souhaite que le spectateur se laisse guider et se laisse porter par l’image comme il pourrait le faire à l’écoute d’un poème, d’une musique. Les scènes dessinées sont oniriques et symboliques, elles sont l’interprétation visuelle du monologue. Le personnage les traverse, s’y observe, s’y démultiplie. Ce sont des paysages mentaux, fait d’arbres, de souvenirs d’enfance, de sensations abstraites animées. L’homme à la balançoire est l’image centrale du film ; elle est le motif qui résonne avec la pensée du narrateur. Je me sers de la mise en abîme permanente explorée par Fernando Pessoa, pour me déplacer de l’imaginaire à la vie concrète et créer une cohésion au film. Les différentes scènes seront accompagnées d’une voix-off qui guidera le spectateur pour apporter des clés, du sens. Il s’agit d’une adaptation libre et concise afin de ne pas noyer l’image sous un flux continu. Ce monologue sera interprété par un chanteur balinais accompagné du groupe Gamelan Dharma Swara. Cette voix en contrepoint, rythmera le film et contrebalancera la noirceur des images. Elle apportera une étrangeté onirique, un décalage presque grotesque. Cette voix théâtrale Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 439 Chollet À propos de Le songe de B. Soares et chantante a pour but de nous plonger dans le spectacle mental du narrateur — dans le spectacle mental des images. La musique balinaise accompagnant cette voix est formée d’un ensemble d’instruments principalement percussifs. La musique de Gamelan est cyclique, elle crée un lien profond entre ce qui se passe à l’écran et ce que l’on entend. Elle donne une respiration et une tonalité unique au film. Le court-métrage sera animé en 2D numérique. Les recherches graphiques et les décors seront dessinés à la plume et à l’encre de chine. Un important travail sur le clair obscur sera apporté à chaque scène. Je cherche par ce dessin en noir et blanc à me concentrer sur l’essentiel. Ce médium s’accorde avec la matière même du texte de Fernando Pessoa par sa sensibilité et son acuité. Je souhaite approfondir et renouveler ce que j’ai commencé à expérimenter sur mon précédent court-métrage Le Promeneur avec un trait à la fois maîtrisé et lâché en limitant au maximum l’utilisation du crayonné. Je suis influencé pour ce projet des films d’animation de Koji Yamamura (Un médecin de campagne) et d’Alexandre Petrov (Le journal d’un homme ridicule) qui allient profondeur et expérimentation dans le dessin et la réalisation. Le dessin est également nourri par la série de gravures les Caprices de Francisco de Goya et par les clairs-obscurs vibrants de Malcolm McKesson. Thibault CHOLLET Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 440 Chollet Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) À propos de Le songe de B. Soares 441 Chollet Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) À propos de Le songe de B. Soares 442 Chollet Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) À propos de Le songe de B. Soares 443 Chollet Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) À propos de Le songe de B. Soares 444 Chollet Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) À propos de Le songe de B. Soares 445 Chollet Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) À propos de Le songe de B. Soares 446 Chollet À propos de Le songe de B. Soares Bibliographie CHOLLET, Thibault (2019). Le Songe de B. Soares. https://vimeo.com/thibaultchollet . PESSOA, Fernando (2004). Le livre de l'intranquillité. Françoise Laye, traducteur. Édition intégrale. Paris : Christian Bourgois Editeur. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 447 Chollet À propos de Le songe de B. Soares Passionné de lecture depuis son enfance, THIBAULT CHOLLET a étudié pour devenir bibliothécaire, mais insatisfait car dans les bibliothèques, on organise surtout les livres plutôt que de les lire. En parallèle de ses études, il a appris à dessiner et à animer de manière autodidacte, en réalisant des films dans sa chambre. Cela a abouti à Septembre, son film de fin d’études, découvert par Gasp!, ses producteurs depuis 10 ans. Thibault a réussi à entrer dans le secteur de l’animation grâce à un stage de longue durée et, par un heureux concours de circonstances, il est devenu assistant réalisateur. Depuis lors, il a travaillé sur plusieurs séries télévisées à différents postes techniques. Il a cherché à alterner entre le travail sur les séries et les projets personnels, ce qui lui a donné l’opportunité de réaliser plusieurs courts métrages expérimentaux. Récemment, après 4 ans d’attente, Thibault réalise un nouveau court métrage, un projet qui alliera narration et expérimentations visuelles. Apaixonado pela leitura desde a infância, THIBAULT CHOLLET estudou para se tornar bibliotecário, porém insatisfeito, pois em bibliotecas, principalmente, organiza-se mais do que se lê. De forma paralela aos estudos, aprendeu a desenhar e a animar por conta própria, criando filmes no seu quarto. Isso resultou em Septembre, o seu filme de conclusão de curso, descoberto pela Gasp!, os seus produtores há 10 anos. Thibault conseguiu ingressar no setor de animação através de um estágio de longa duração e, por uma feliz coincidência, assumiu o cargo de assistente de direção. Desde então, trabalhou em várias séries de televisão em diferentes funções técnicas. Ele procurou alternar entre o trabalho em séries e projetos pessoais, o que lhe proporcionou a oportunidade de dirigir diversas curtas-metragens experimentais. Recentemente, após quatro anos de espera, Thibault está realizando uma nova curta-metragem, um projeto que combinará narração com experimentações visuais. Passionate about reading since childhood, THIBAULT CHOLLET studied to become a librarian, but was dissatisfied as in libraries, books are mostly organized rather than read. Alongside his studies, he taught himself drawing and animation by creating films in his room. This led to Septembre, his final student film, discovered by Gasp!, his producers for the past 10 years. Thibault managed to enter the animation sector through a long-term internship and, through a fortunate coincidence, became an assistant director. Since then, he has worked on several television series in various technical roles. He sought to alternate between work on series and personal projects, affording him the opportunity to direct several experimental short films. Recently, after four years of waiting, Thibault is making a new short film, a project that will blend narration and visual experiments. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 448 !"#$"%&'(!&$$)"!" !"#$%$&'()*+,-$,./(,"(01*+,$/,"#+2$%%+ !!"#$"%&'(!&$$)""# !"#$#%&'&()%*)+*'*!'$$()%*(%*!"),"#$$$ !"#$%$&'(%)"*$! !"#"$%"&'()"$* "#$%&%'(!)#**(&+!,-(&$!./&00#--1+!!"#$"%&'(!&$$)"+!213#$&3/$&+!4%15&67(8 +*&,-. 49$#*#%3&$!(!5&3#$1&-!&1%'&!*#5!3:3/-(!'#;1%131<(!!"#$"%&'(!&$$)"+!'(=/5#%3(>&$3#!'#!,-(&$! ./&00#--1+!?!3&5@?5!1%3$('/01$!(*!-#13($#*!&(!/%1<#$*(!(%:$1=(!'(!=$1&'($!A&B=C(8!./&00#--1+! $#=(%C#=1'(!9#-(!*#/!3$&@&-C(!%(!=1%#5&!'#!&%15&67(!@$&*1-#1$(+!3#5!%&!-13#$&3/$&+!#*9#=1&-> 5#%3#! %&! -13#$&3/$&! 9($3/A/#*&+! /5&! ;(%3#! 1%*91$&'($&! 9&$&! */&*! 9$('/6D#*! #5! E/&'$1%C(*+ &%15&67(! #! 1-/*3$&6D#*8! ,*3#! '(=/5#%3(>&$3#! #F9-($&! &! $#-&67(! '(! &$31*3&! =(5! 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P3! &-*(! $#<#&-*! C1*! =$#&31<#! I(/$%#J+! ;$(5! 9$#<1(/*! L($K*! 3(! C1*! -&3#*3! 9$(I#=3*+! */=C!&*!3C#!1--/*3$&31(%*!;($!56&0&7&(84&.!&$$)"9 ! )#*E/1*&'($&!'#!)Q*>'(/3($&'(!%(!P%*313/3(!'#!4$3#*!'&!R%1<#$*1'&'#!"#'#$&-!'(!H1(!.$&%'#!'(!S/-8 Ventura Paisagem-Pessoa Apresentar o material ainda sem título definitivo e que estou chamando de “Paisagem-Pessoa”, documento-arte de Eloar Guazzelli, é também introduzir os leitores ao universo onírico do criador gaúcho que tem na fruição de literatura em geral, e de literatura portuguesa em particular, elementos disparadores de produção artesanal de arte em quadrinhos, de cinema de animação e de ilustrações para livros. O nome do artista está indissoluvelmente ligado ao cinema de animação brasileiro há, pelo menos, três décadas, o que faz com que seu traço seja imediatamente reconhecido por parte do público que, no entanto, a partir dos anos 2010, pode fruir obras literárias nas quais a participação de Guazzelli mostrou tanto seu repertório como diretor de arte e artista plástico, como também sua ligação intensa com parte específica da literatura portuguesa. Antes de adentrar nas relações de Eloar Guazzelli com o universo pessoano, que se deram, no mundo editorial, pela publicação dos livros Fernando Pessoa e outros Pessoas (Eloar Guazzelli e Davi Fazzolari, 2011), Apetece-lhe Pessoa? Antologia poética para ler e ouvir (José Jorge Letria, Susana Ventura e Eloar Guazzelli, 2017) e Eu, Fernando Pessoa em quadrinhos (Susana Ventura e Eloar Guazzelli), este último, lançado em junho de 2013 e acompanhado pelo curta de animação Eu, Fernando Pessoa por Guazzelli (Eloar Guazzelli, Adriana Pinto e Nick Graham-Smith, 2013), gostaria de iluminar a participação do artista na edição que, em 2011, fez a casa editorial Cosac Naify do conto “Um dia de chuva”, de Eça de Queirós. Nesta obra, impressa em duas cores – azul e castanho – e ilustrada por Eloar Guazzelli, podem ser vistas camadas de leituras literárias do artista que estariam posteriormente presentes tanto nos livros sobre o universo pessoano e no curtametragem acima mencionados, quanto no documento-arte “Paisagem-Pessoa”. Neste momento, trago algumas reflexões do artista a respeito desse trabalho a partir das obras literárias, o que evidencia as referidas camadas de leitura literária. E, como este número de Pessoa Plural é dedicado às relações de Fernando Pessoa com o cinema, vou me servir do espetáculo de imagens em movimento, convidando os leitores a assistirem ao filme Um dia de chuva, de Eça de Queiroz e Eloar Guazzelli1, em que o artista fala sobre sua percepção do casarão do conto de Eça de Queirós como uma “ilha”. Destaco as palavras que Eloar Guazzelli pronuncia a partir de um minuto e vinte segundos do vídeo: “[..] tudo acontece como se fosse uma ilha. Eu entendi como uma ilha... pessoas ilhadas por uma chuva torrencial, que cria dois ambientes, o interno e o externo”. Além da possibilidade de vermos parte das ilustrações criadas para a edição em questão enquanto ouvimos o artista nesta elaboração, as questões levantadas por ele nos mostram como seu trabalho está ligado à leitura literária que vem de um passado de leitura familiar que ele evoca no vídeo (e que depois será retomada no documento-arte por um texto manuscrito). Aos dois minutos e dez do vídeo, 1 Acessível em https://www.youtube.com/watch?v=mlIV528dDxs Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 450 Ventura Paisagem-Pessoa Eloar Guazzelli declara “eu mergulhei nessa paisagem portuguesa [...] os objetos são protagonistas também, são personagens”. Muito do que o artista expressa durante esse vídeo de divulgação aparecerá marcadamente nos dois álbuns em quadrinhos que ele publicou na sequência da filmagem: no mesmo ano de 2011, Fernando Pessoa e outros Pessoas e, no ano de 2013, Eu, Fernando Pessoa em quadrinhos (cf. VENTURA, 2014). Em ambos figuram questão da ilha e do estar ilhado, o contraponto entre paisagens internas e externas, e muitas das obsessões do artista: como o voo de animais fantásticos ou de um coração; alagamentos e chuvas torrenciais e constantes, que possibilitam a transição entre ambientes internos e o ar livre; e a oscilação entre o deambular pelos ares e a exploração de uma fauna aquática exuberante e onírica. Nesse universo subaquático a figura humana aparece muitas vezes equipada com um escafandro atravessado por representantes de um imaginário animal que dança nas águas. O mencionado curta-metragem Eu, Fernando Pessoa por Guazzelli2 traz a representação do contraste entre os ambientes interno e externo às construções arquitetônicas e, ao ar livre, Guazzelli encena sua obsessão pelo voo, no caso realizado pelo coração de pessoa que realiza a visitação das cidades fantasmáticas de sua vida, pelas salas de cinema em si consideradas e representadas nas cidades onde o poeta viveu. Numa delas Fernando Pessoa está figurado e multiplicado assistindo ao próprio obituário que leva, ao final do curta-metragem à vertiginosa descida ao elemento aquático. A composição do curta-metragem acompanha elementos do roteiro do álbum em quadrinhos, que pressupunha, além de uma apresentação dos mais conhecidos heterônimos pessoanos, uma apresentação biográfica que, no caso em questão, por escolha da roteirista, foi realizada a partir do obituário do poeta. Assim chegamos ao documento-arte “Paisagem-Pessoa”, que o próprio artista diz ter sido pensado e elaborado a partir de 2008. A montagem que o artista nos oferece começa pela página em que se lê no topo “Paisagem”. Nela, a linguagem está bastante próxima da elaboração demonstrada nos dois álbuns de quadrinhos e no curta-metragem, já muito depurada em relação ao que veremos a partir da página 3. A página 2 repete a palavra “Paisagem”, mostra o coração-símbolo da edição do álbum Eu, Fernando Pessoa em quadrinhos e do curta-metragem Eu, Fernando Pessoa por Guazzelli, e reproduz parte do posfácio do artista ao referido álbum de quadrinhos, elaborado em 2012, em que, com letra manuscrita, ele revela o que significou realizar o álbum enquanto vivia algumas semanas ao lado de sua mãe, doente terminal, que faleceu durante a elaboração do livro. A opção do artista para esse documento-arte inédito, é interromper o posfácio com as palavras: “Desenhei enquanto conversávamos sobre literatura. Ela faleceu em julho desse ano […]”. E na sequência está a camada mais antiga de elaboração artística em relação a todas 2 Acessível em https://www.youtube.com/watch?v=StyRLiVYDjs&t=4s Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 451 Ventura Paisagem-Pessoa as publicações mencionadas acima: parte de seu trabalho para um filme de animação que, segundo Guazzelli, foi realizada a partir de 2008. Para as pessoas que acompanham o seu trabalho, as páginas 3 a 10 do documento-arte desvelam os percursos e as escolhas do artista para vários dos trabalhos que realizaria nos anos subsequentes, tanto em animação quanto em livros. As ilustrações realizadas para o livro mais recente do conjunto, Apetece-lhe Pessoa? Antologia poética para ler e ouvir, apontam para a síntese das leituras pessoanas de Eloar Guazzelli até o momento, nas quais o coração flutuante de Fernando Pessoa, sua deambulação e as questões do isolamento aquático povoado de peixes, moluscos e escafandristas estão cada vez mais presentes e marcadas. A paixão de Eloar Guazzelli por Fernando Pessoa pulsa e, esperamos, continuará a reverberar nas próximas obras. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 452 Ventura Paisagem-Pessoa ANEXO 1 – Eu, Fernando Pessoa – Animação por Guazzelli (storyboard / book trailer). Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 453 Ventura Paisagem-Pessoa ANEXO 2 – “Paisagem-Pessoa” Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 454 Ventura Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) Paisagem-Pessoa 455 Ventura Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) Paisagem-Pessoa 456 Ventura Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) Paisagem-Pessoa 457 Ventura Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) Paisagem-Pessoa 458 Ventura Paisagem-Pessoa Bibliografia Livros GUAZZELLI, Eloar; FAZZILARI, Davi (2011). Fernando Pessoa e outros Pessoas. São Paulo: Saraiva. LETRIA, José Jorge; VENTURA, Susana (2017) (orgs.). Apetece-lhe Pessoa? Antologia poética para ler e ouvir. Ilustrações de Eloar Guazzelli. São Paulo: Peirópolis. QUEIRÓZ, Eça; GUAZZELLI, Eloar (2011). Um dia de chuva. São Paulo: Cosac & Naify. VENTURA, Susana (2014). “Eu, Fernando Pessoa (em quadrinhos): um percurso pela construção do álbum”. Pessoa Plural—A Journal of Fernando Pessoa Studies, n.º 5, primavera, pp. 187-194. Brown Digital Repository. Brown University Library. https://doi.org/10.7301/Z0CF9NM9 VENTURA, Susana; GUAZZELLI, Eloar (2013). Eu, Fernando Pessoa em quadrinhos. São Paulo: Peirópolis. Filmes Um dia de chuva, de Eça de Queiroz e Eloar Guazzelli, sem dados de diretor, Editora Cosac & Naify, 2011. Acessível em https://www.youtube.com/watch?v=mlIV528dDxs Eu, Fernando Pessoa por Guazzelli, Eloar Guazzelli/ Adriana Pinto e Nick Graham-Smith, 2013. Acessível em https://www.youtube.com/watch?v=StyRLiVYDjs&t=4s Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 459 Ventura Paisagem-Pessoa SUSANA VENTURA é doutora em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa pela Universidade de São Paulo (2006), desenvolve pesquisa de Pós-doutorado no Instituto de Arte da UFRGS. Pesquisadora do Centro de Literaturas Lusófonas e Europeias da Universidade de Lisboa (CLEPUL) e do Centro de Pesquisas sobre os Mundos Ibéricos Contemporâneos (CRIMIC), da Sorbonne (Paris IV). Curadora da exposição Linguaviagem (Ministério das Relações Exteriores e Museu da Língua Portuguesa; Brasil, 2010). Autora de vários títulos voltados ao público jovem, com destaque para Convite à navegação: uma conversa sobre literatura portuguesa (2012), Eu, Fernando Pessoa em quadrinhos (2013, ambos pela Editora Peirópolis, receberam Selo Altamente Recomendável pela Fundação Nacional para o Livro Infantil e Juvenil, delegação brasileira do IBBY), O caderno da Avó Clara (Editora Florear Livros, Prêmio Jabuti, 2017) e Um lençol de infinitos fios (Editora Biruta, Prêmio Biblioteca Nacional, 2020). O curriculum vitae completo pode ser acessado em http://lattes.cnpq.br/3828608150600836 SUSANA VENTURA holds a PhD in Comparative Studies of Portuguese Language Literatures from the University of São Paulo (2006) and is conducting post-doctoral research at the Institute of Arts of UFRGS. She is a researcher at the Center for Lusophone and European Literatures of the University of Lisbon (CLEPUL) and the Center for Research on Contemporary Iberian Worlds (CRIMIC) at Sorbonne (Paris IV). She curated the exhibition Linguaviagem (Ministry of Foreign Affairs and Museum of the Portuguese Language; Brazil, 2010). Author of several titles aimed at young audiences, notably Convite à navegação: uma conversa sobre literatura portuguesa (2012), Eu, Fernando Pessoa em quadrinhos (2013, both published by Editora Peirópolis, received the Highly Recommended Seal from the National Foundation for Children’s and Youth Books, Brazilian delegation of IBBY), O caderno da Avó Clara (Florear Livros Publisher, Jabuti Award, 2017) and Um lençol de infinitos fios (Biruta Publisher, National Library Award, 2020). The full curriculum vitae can be accessed at http://lattes.cnpq.br/3828608150600836 Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 460 !"#$%&'(()$"*+",-+./+0 !"#$%&'()*#$+#$,'-(.*'#$&"$/)#+*'0,1-$23$41&(#5 !"#$%&$'()*+,-$((.+,/) !"#$%&'()"*+",-$".*/'."0**1"23"4*$,%50 !"#$%&'()*+)"&)*,")-./*0$""$&")1 !"#"$%"&'()"$* "#$%&%'(!)#**(&+!,-.&$(!'#!/&01(*+!23$4(!'#!536/&$%#4$(+!7&#$8#!/(984%:(+!!"#$%$&'()'*"+%,; +*&,-. <*!1(#0&*!8$&%*=$48(*!1($!7&#$8#!/(984%:(+!(9!*401-#*0#%8#!7&#$8#+!%(*!>&-?#*!@9#!=(%8A0! &*! B&-&*! '(! )(#8&! %&! *C$4#! !"#$%$&' ()' *"+%,+! %D(! 1&$#=#0! $#*9-8&'(! '#! 90&! #*=(-:&! =&*9&-+! $#=&4%'(!*(>$#!&!(>$&!'(!#%4E0384=(!:#8#$F%40(!,-.&$(!'#!/&01(*+!=9G&!(>$&!8#0!1&**&E#%*! '#!H%'(-#!:(0(#$I84=&;!)($!#*8&!$&JD(!#!(98$&*+!/&01(*!8&-.#J!*#G&!&!B4E9$&!1#**(&%&!@9#! 0&4*!1$(K40&0#%8#!*#!=&1&=48&!& 90&!8$&'9LD(!'(!M'$&0&!#0!E#%8#N!.4.#%=4&'(!1#-&!&98($&! '(*! @9&'$4%:(*! O7&#$8#+! P@9#-&! C1(=&! &4%'&! 90! &98($Q;! R-43*+! &! %(.& 7&#$8#+! 8&$'4&0#%8#! #K1(*8&! &! '4.#$*(*! 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Deitei fóra a mascara e dormi no vestiario Como um cão tolerado pela gerencia Por ser inoffensivo E vou escrever esta historia para provar que sou sublime. “Tabacaria” (PESSOA, 2014: 203-204) A revista Circo foi publicada no Brasil de outubro de 1986 a maio de 1988 pela Circo Editorial, reunindo histórias em quadrinhos brasileiras e estrangeiras, sob a edição geral de Toninho Mendes e Luiz Gê, e tiragem de cinquenta mil exemplares por edição. Além da Circo, a editora lançou com sucesso as revistas Chiclete com Banana, de Angeli, e Geraldão, de Glauco. A revista publicava uma introdução original em forma de HQ, apresentando a sua proposta, além de charges e notícias sobre quadrinhos. Representou, sem sombra de dúvida, um grande momento da arte sequencial no Brasil. Embora as histórias estrangeiras reunissem autores relevantes, foram as nacionais que mais se destacaram, lançando nomes como Laerte Coutinho – autora da série Piratas do Tietê, sua criação mais conhecida. A primeira história da série foi publicada na revista Chiclete com banana. Passou, a seguir, pelas páginas da revista Circo e, finalmente, ganhou uma revista própria homônima, com catorze edições em banca, que circularam com grande sucesso no início dos anos 1990, atingindo tiragens de mais de 150.000 exemplares. Essas histórias foram reunidas em álbum pela primeira vez em 2007, numa coleção de três volumes luxuosos lançados pela editora Devir: Piratas do Tietê – a saga completa, de significativo valor histórico. Algumas são verdadeiros clássicos do quadrinho brasileiro, como “A balada do lobisomem”, “O Poeta (com a participação especial de Fernando Pessoa)” e “Vozes da selva”. Além das histórias, os livros trazem um perfil do autor, o texto inédito em livro da peça de teatro Piratas do Tietê, o filme (que esteve em cartaz no Teatro Popular do SESI em 2003), e um pôster colorido. Cada sequência é precedida por desenhos e fotos de abertura, reproduções das capas das revistas originais e textos da autora que resgatam as circunstâncias que envolveram a criação de cada uma. A considerar o depoimento de Laerte à Pessoa Plural, a artista não tinha qualquer familiaridade com a obra de Pessoa, ao selecioná-lo para uma “participação especial” na célebre história “O Poeta”, de sua famosa trupe Piratas do Tietê: Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 462 Ferreira A Confissão de Laerte Eu nunca tinha lido Fernando Pessoa. Só conhecia as frases pinçadas aqui e ali, a tal coisa do “poeta fingidor”, etc. Quis fazer uma aventura dos Piratas onde eles interagiriam com uma personagem intelectual, alguém conduzido por uma alma lírica, e disso extrair cenas interessantes. Acabei indo pro Fernando Pessoa porque tinha um livro dele em casa: O Eu profundo e os outros Eus. Não sei se era aquisição minha ou de outra pessoa. Fui lendo e achando que os versos provocavam ações interessantes dos piratas. Tudo foi se encaixando – e acabei curtindo o Fernando Pessoa. De resto, não sou uma leitora muito experiente de poesia. Minha bagagem se resume a itens esparsos, dos quais o Fernando Pessoa passou a fazer parte. [...] Mas, fora esse episódio interativo, não me aprofundei muito mais no universo do Fernando Pessoa. Estive em Portugal, vi uma estátua dele, vi um lugar onde ele esteve, um buracão no litoral, de rochedos com um abismo gorgolejante onde diziam que alguém tinha se suicidado. Mais longe que isso não fui. [Em depoimento a Marcelo Mello] Entretanto, os poemas transcritos por Laerte Coutinho, ou simplesmente Laerte, nos balões que contêm as falas do Poeta não parecem resultado de uma escolha casual, recaindo sobre a obra do enigmático heterônimo Álvaro de Campos. Além da temática considerada homoerótica por alguns críticos da “Ode Marítima” e do poema “Tabacaria”, por exemplo, citados pela quadrinista, é interessante mencionar que Campos tem uma participação especial na história romântica de Pessoa com Ofélia Queiroz, documentada nas cartas trocadas pelo casal, nas quais ele surge como uma entidade não-fictícia, requisitando para si a atenção do poeta “Íbis” a fim de compor, com a namorada deste, um triângulo amoroso. Por essas razões, Campos talvez seja a figura pessoana que mais proximamente se capacita a uma tradução do drama em gente vivenciado pela autora dos quadrinhos (àquela época ainda um autor). Os personagens dos versos da “Ode Marítima” atestam o peculiar fascínio do jovem Pessoa pelas aventuras de pirataria de Edgar Allan Poe no livro A narrativa de Arthur Gordon Pym, ao qual se refere não poucas vezes, e que trata do relato de um motim e de um assombroso massacre a bordo do brigue americano Grampus, em rota para os mares do sul em 1827. O enredo envolve detalhes da recaptura do navio pelos sobreviventes, seu naufrágio, a provação pela qual passaram em virtude da fome, seu resgate pela escuna britânica Jane Guy, o breve cruzeiro desta embarcação no Oceano Antártico, sua captura e, finalmente, o massacre da tripulação em um arquipélago, juntamente com as incríveis descobertas no extremo sul a que essa lamentável calamidade deu origem. Na pena de Fernando Pessoa, porém, todo esse enredo de peripécias e embates é filtrado, como bem percebe Laerte, na possessão espiritual do heterônimo Campos pelo “delírio das cousas marítimas” (PESSOA, 2014: 80). Mas não o delírio coletivo da grandeza histórica dos valorosos navegadores da época dos Grandes Descobrimentos, tão cara a Portugal (que vem a figurar, nebulosamente, no livro Mensagem de Pessoa). O delírio de Campos em sua ode, ao contrário, reflete uma anônima e privada “febre da pirataria antiga” (PESSOA, 2014: 86). Uma espécie de sensualidade sadomasoquista que o “sol dos trópicos” teria inoculado nas “veias intensivas” do engenheiro naval, Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 463 Ferreira A Confissão de Laerte tatuando a sua “imaginação de imagens trágicas e obscenas” (COUTINHO, “O Poeta”, p. 3 [na Pessoa Plural]). É, portanto, para a obscenidade das cenas evocadas pelo Poeta em seu discurso solitário – impermeável à percepção dos Piratas do Tietê – que atenta Laerte em sua história. Acostumados a barbarizar a cidade de São Paulo, seus habitantes, tradições e costumes, de modo a descortinar ironicamente as suas incongruências a fim de angariar os aplausos dos leitores, os Piratas são surpreendidos, desta feita, pela imprevisível resistência de um adversário incomum, que parece indiferente à fanfarronice de seus assaltos. De sua posição obscena, nos bastidores da cena principal – e embora acusando os efeitos destrutivos das invectivas dos valentões sobre o seu ser –, o Poeta põe-se, cada vez mais, numa posição altiva e imune à pesada artilharia detonada em sua direção pela turba escarnecedora. O riso catártico, responsável pelo brilho de outras histórias, não funciona na história em questão. Os agressores, retratados como uma cambada de bullies ignóbeis, parecem dever mais a sua representação aos moldes dos personagens tirânicos do clássico infantojuvenil Peter Pan, de J. M. Barrie (pela óbvia inspiração no Capitão Gancho e no jacaré), do que à história de Poe e seu Arthur Gordom Pym, que tanto seduzia Pessoa. Por sua vez, o que parece seduzir Laerte na “Ode Marítima” é posto em destaque num quadrinho (quinta página de “O Poeta” [a Pessoa Plural]) no qual o Poeta responde à violência dos piratas incendiários, que jogam querosene em seu escafandro, com uma ironia muito diferente da usual nessas tirinhas: “Vossa fúria, vossa crueldade, como falam ao sangue | dum corpo de mulher que foi meu outrora, e cujo cio sobrevive!” (PESSOA, 2014: 88); referindo-se, provavelmente, ao corpo feminino evocado por Campos no desordenado êxtase desses versos: Ser no meu corpo passivo a mulher-todas-as-mulheres Que fôram violadas, mortas, feridas, rasgadas plos piratas! Ser no meu ser subjugado a fêmea que tem de ser dêles! E sentir tudo isso – todas estas cousas duma só vez – pela espinha! Ó meus peludos e rudes herois da aventura e do crime! Minhas marítimas feras, maridos da minha imaginação! Amantes casuais da obliquidade das minhas sensações! Queria ser Aquela que vos esperasse nos portos, A vós, odiados amados do seu sangue de pirata nos sonhos! Porque ela teria comvôsco, mas só em espírito, raivado Sobre os cadáveres nus das vítimas que fazeis no mar! (PESSOA, 2014: 89-90) Imerso em um imaginário centrado na heteronormatividade, o poeta assimila os códigos que associam a realização homoerótica à doença, à neurose, à anomalia. Uma vez internalizada tal estrutura, o poeta é levado a compreender que o caminho de saída do “escafandro” se dá, necessariamente, pela degradação do caráter e da Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 464 Ferreira A Confissão de Laerte decência. A exacerbação da violência, o impulso de um desejo autopunitivo se revela, ainda, como influxo das relações de subordinação e dominação, mantidas pela sociedade patriarcal. Nesse contexto, a imagem do homem representa força e fúria e a imagem da mulher, por conseguinte, é reificada, concebida como fonte de prazer do homem e associada à fragilidade e à passividade (cf. BISPO e OLIVEIRA, 2017: 88). Subitamente, a presença dos versos de Álvaro de Campos passa a contextualizar os Piratas do Tietê, aos olhos de Laerte, numa dimensão muito diferente daquela até então inspirada pelo Capitão Gancho de Barrie. A narrativa passa a contrariar o horizonte de expectativas do público, até então acostumado ao fragoroso sucesso dos protagonistas, submetendo-os a uma série de desastres: a falência de suas armas, o naufrágio de sua fragata, e finalmente um monumental ataque deste mesmo público, outrora entusiástico, que agora se atira ao mar, em bandos, para contestálos aos gritos. Essa inusitada conclusão, à época, já antecipava a radical negação de Laerte aos Piratas do Tietê décadas depois, como documenta o diretor Otto Guerra em seu longa metragem animado A Cidade dos Piratas, cujo roteiro relata os percalços de uma conturbada produção de quinze anos, desde o argumento inicial de 2003 até o lançamento do filme em 2018. Como diz Eliane GORDEEFF (2021: 225): O então cartunista Laerte, aos 56 anos, tomou a resolução de assumir outra identidade de gênero e passou a repudiar seus personagens, considerando-os homofóbicos, enquanto Otto Guerra foi diagnosticado com câncer e passou a considerar o filme a sua última obra animada. Diante desse contexto, a produtora-chefe (Marta Machado) abandonou a produção em razão da dificuldade de trabalhar com o diretor-roteirista, pois este alterava o roteiro a todo momento. E apesar desse caos, mas exatamente em virtude dele, o filme é ímpar, “não sendo para amadores”. De uma suposta homenagem aos famosos quadrinhos de Laerte, a certa altura renegados por sua criadora, o filme transforma-se num discurso metalinguístico crítico e emblemático para o qual convergem diversos gêneros, desde o documental, biográfico e autobiográfico até o ficcional mais surrealista, expressos tanto no resgate da série dos Piratas como em animação, live-action e colagens. O filme renasce do dilúvio de indefinições e problemas sob o peso dos quais parecia haver afundado, a exemplo do Poeta que renasce das águas na história original de Laerte. Depois da batalha travada contra ele pelos Piratas do Tietê, o personagem Pessoa é retratado saindo do mar, vivo e de braços abertos, a recitar os versos do seu mestre, o heterônimo Alberto Caeiro: “Colhamos flores, e que o seu perfume suavize o momento” (décima página de “O Poeta” [a Pessoa Plural]), enquanto caminha resolutamente rumo a outra voracidade, tão ou mais problemática: a da grande mídia, que simula exaltá-lo enquanto submete sua natureza a um patético escrutínio, risível e igualmente violento. Este movimento também é incorporado ao filme de Otto Guerra numa bem-humorada costura das entrevistas de fato concedidas pela Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 465 Ferreira A Confissão de Laerte nova Laerte a programas de televisão conduzidos por conhecidas figuras como Antônio Abujamra, Marília Gabriela, Jean-Claude Bernardet, Maura Roth, e outros. É preciso dizer que a nova Laerte, tardiamente exposta a esses desafios após renegar os Piratas do Tietê e retirar a máscara do rosto, certamente se identificaria com outro poeta da trupe de Orpheu: o amigo de Fernando Pessoa, Mário de SáCarneiro, autor da novela A confissão de Lúcio, na qual ecoam inegáveis ruídos da Balada do cárcere de Reading, de Oscar Wilde. Pois jamais haveria, no espaçoso Mário de Sá-Carneiro, lugar para confissões medíocres, para não dizer constrangedoras, como aquelas cobradas à Laerte pela grande mídia nacional. Exilado em Paris, locus amoenus e emblemático dos sonhos civilizatórios dos pais fundadores da nação portuguesa moderna – a geração de 70 –, polindo as unhas de suas belas mãos, Sá-Carneiro escrevia textos inadequados à sua época, conquanto verdadeiramente alusivos ao futuro: não aos generosos vinte anos que determinou como margem para a deflagração do entendimento de seus versos, em “Caranguejola” (“Daqui a vinte anos a minha literatura talvez se entenda”), mas aos atuais mais de 100 anos que já se contam desde a sua suposta partida “para a terra natal”, em 1916. Não era, e não seria jamais, um “moço de escritório” como Pessoa, decalcado ao avesso na multidão dos comuns, apaixonando-se contidamente e em silêncio pelos Freddies, rapazes louros e brancos que se esvaneciam nas sombras da irrealidade do desejo insatisfeito, como loucas imperatrizes “por reinar” e princesas “destronadas”. Preferiria morrer a acatar esse destino. Disto ele sabia e foi sobre isto que encheu páginas e páginas de uma única confissão: a de que morreria jovem para um mundo morto – “Morre jovem o que os deuses amam”, diria PESSOA (2005, p. 455); e a de que só aceitaria as “riquezas” e os “louros” (ou “Ricardo de Loureiro”?) deste mundo mediante um ardil que o libertasse para as alegrias da realização de suas inclinações. Ele seria “Lúcio”, do latim luciferius, “portador da luz”, “o que traz iluminação”, primo-irmão de Lúcifer – a “estrela da manhã”, o “filho da alva”, o planeta “Vênus” –, antes de este ser abduzido pela Igreja medieval e metamorfoseado na figura de “Satanás”: a encarnação do Mal que é a desobediência, o questionamento dos valores morais e das regras sociais que levam ao embalsamamento do espírito vivo num suporte, acidamente definido por Pessoa, como o de um “cadáver adiado que procria”. A relação engendrada, em sua novela, com “Marta”, shape-shifting feminino de “Ricardo”, cujo nome significa “senhora” ou “patroa”, ou ainda, a verdadeira “dona da casa” – ou do “corpo”, objeto do prazer almejado pelo parceiro – comunga astrologicamente, pela alusão ao planeta Marte e ao deus mitológico da guerra, com a alusão ao planeta Vênus e à deusa mitológica da beleza e do amor. Ambos engendram na literatura clássica uma famosa relação adúltera, cujas implicações não estão, certamente, distantes dos propósitos alegóricos do autor desta obra. Lúcio e Marta/Ricardo, Vênus e Marte, homem feminino e mulher masculina, unidos pela transfiguração alquímica e mágica do sexo num elemento andrógino esfuziante – traduzido na imagem de um templário e aterrorizante Baphomet (que Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 466 Ferreira A Confissão de Laerte aparece reconfigurado, no filme de Otto Guerra, na figura compósita de um Minotauro, homem-touro amputado de um chifre, que é um alterego de Laerte) – protagonizam, na novela de Sá-Carneiro, um crime absolutamente execrável e totalmente delirante, pelo qual o suposto autor da narrativa aceita pagar com a privação de dez anos de sua liberdade e pelo qual o verdadeiro autor da obra, talvez, tenha aceito pagar com o sacrifício da própria vida. Ou talvez não. Apraz-me pensar que a juventude, irreverência e ousadia dos órficos portugueses não teria ficado no papel, nos registros de duas simples publicações financiadas pelo pai de Sá-Carneiro, e de uma terceira vinda a público apenas nos anos 1980; em que pese, naturalmente, o invulgar valor dos textos ali compilados. O apreço à palavra, profundo em Pessoa, talvez respaldasse essa possibilidade; porém o caráter mais raso e inflado de Sá-Carneiro – e do influente Álvaro de Campos, em seu radical desvio revisionário do monástico Alberto Caeiro – não convence o leitor atual desta conveniente reclusão, ou mesmo contenção, das vontades bombásticas desses jovens rebeldes nas molduras comportadas das páginas de uma revista. Há outros dados que corroboram a fantástica hipótese de que a ação da dupla Pessoa / Sá-Carneiro teria incidido tanto sobre a vida dita real quanto sobre a criação literária. Por um lado, e em caráter definitivo, o fato do desaparecimento do corpo do poeta obeso, jamais encontrado, juntamente com a sua campa no cemitério Pantin (desaparecida em 1949, segundo Marina Tavares Dias), levanta suspeitas. Afora isso, há a sequência de bilhetes suicidas a Pessoa, antecipando adeuses e fazendo ameaças de atirar-se para debaixo de um comboio; além das cartas e comunicados oficiais das supostas testemunhas do espetáculo final – nomeadamente “José (ou João?) Araújo” e “Carlos Ferreira”, amigos de pouca data. O suicídio foi levado a cabo como um evento notório, com direito a convite, fato de gala e brinde mortal de estricnina. Chama a atenção, ainda, a confecção dos Últimos poemas, sobretudo o grotesco “Fim”, no qual a carnavalização circense da morte figura como mais um aspecto dúbio em toda a história: Quando eu morrer batam em latas, Rompam aos saltos e aos pinotes, Façam estalar no ar chicotes, Chamem palhaços e acrobatas! Que o meu caixão vá sobre um burro Ajaezado à andaluza... A um morto nada se recusa, Eu quero por força ir de burro. (SÁ-CARNEIRO, 1995: 131) Tais comunicados também foram dirigidos a Pessoa em Portugal, relatando, com detalhes macabros e talvez desnecessários – mas muito ao gosto de Sá-Carneiro – o passamento do poeta. Consta, ainda, em sua fotobiografia, o relato não de todo Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 467 Ferreira A Confissão de Laerte indiferente sobre o desaparecimento de uma mala com as posses do poeta, exceto as poucas coisas que teria deixado para alguns amigos. Por outro lado, é do conhecimento público a tendência mitomaníaca de Pessoa, relatada em vários documentos de sua juventude, e alvo de estudos como os de Jerónimo PIZARRO (2007) e Kenneth KRABBENHOFT (2011), nos quais se registram fatos curiosos; como o envio, pelo jovem escritor, de missivas aos professores e colegas da escola secundária inglesa que cursou em Durban, na África do Sul, consultandoos acerca do caráter de Fernando Pessoa, doente que – de acordo com o missivista, o “doutor Faustino Antunes” – teria cometido suicídio (PIZARRO, 2007: 72). Consta, inclusive, que Pessoa mantinha uma caixa postal na Rua da Bela-Vista à Lapa, em nome de Alexander Search e Álvaro de Campos; e até do “psiquiatra” Antunes, o qual, de fato, teria recebido respostas dos mais desavisados e crédulos à sua consulta. Como já se disse, a própria relação com a namorada Ofélia engendrou, a certa altura, um exótico triângulo, no qual as interferências escritas do heterônimo modernista produziram abalos reais no espírito da jovem apaixonada, que confessou muitas vezes, em suas cartas, o seu “ódio” ao “sr. engenheiro” Álvaro de Campos. O mais famoso episódio desta interminável série de mistificações, contudo, ocorreu já na maturidade do poeta e teve repercussões internacionais, contando com investigações oficiais até da Scotland Yard: o rumoroso desaparecimento do ocultista britânico, figura de grande presença e notoriedade no cenário cultural e político da época, conhecido como a “Besta 666”, que teria vindo a Portugal exclusivamente para encontrar-se com Pessoa e acabou sumindo misteriosamente num sítio conhecido como a “Boca do Inferno” – o penhasco rochoso na costa oeste da vila de Cascais, mencionado por Laerte em seu depoimento, aqui reproduzido – onde são relatados muitos suicídios. Aleister Crowley, responsável pela doutrina Thelema, líder da sociedade O.T.O. (“Ordo Templi Orientis”) e autor do Livro da Lei, viria a influenciar numerosos escritores, músicos e cineastas no futuro, como Jimmy Page, Alan Moore, Bruce Dickinson, Raul Seixas, Marilyn Manson, Kenneth Anger e Ozzy Osbourne. Sua relação com Pessoa, contudo, permanece nas sombras, fazendo parte do folclore a história de que Crowley desejaria conhecê-lo pelas admiráveis correções feitas pelo poeta em seu mapa astral. Mas há quem suspeite da existência de uma maior intimidade entre eles do que a imposta pelo “encontro magick”: “o suicídio rocambolesco de Aleister Crowley, com o seu ressurgimento ‘esotérico’ dias depois, em Berlim” (PESSOA, 2010: 16). Tais eventos trazem, nas entrelinhas dos muitos e sérios relatos dos pesquisadores, dúvidas não esclarecidas e interrogações sequer formuladas. Nesse caso, o impulso especulativo torna-se inevitável. Forjar, na imaginação, hipóteses possíveis, alternativas e mesmo desejáveis para o destino de Mário de Sá-Carneiro revela o quanto embarcamos, enquanto leitores, na força de sua fantasia. E se Mário de SáPessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 468 Ferreira A Confissão de Laerte Carneiro não houvesse morrido em 1916? E se os bilhetes de despedida não passassem de uma boutade entre outras? E se a cena do quarto de hotel fosse uma performance calculada, pensada com a ajuda dos amigos, para forjar uma fuga? E se Fernando Pessoa, com sua larga experiência no campo do engano e do fingimento, tivesse concordado em compactuar com o “suicídio” do inadequado – o “Esfinge gorda”, o “Rei-lua postiço”, o “Papa-açorda” – para fazer nascer para o mundo, quem sabe, a “Mulher Fulva” que surge deslumbrante no palco do espetáculo de abertura d’A confissão de Lúcio? E se Mário/Marta tivesse escapado de Paris para Sevilha, por exemplo, não sem antes comparecer discretamente ao “enterro” do falecido? De fato, os pouquíssimos conhecidos em Paris relatam a existência de um relacionamento conturbado de Mário com “uma mulher” no período, sobre a qual nada se sabe. José Araújo comenta apenas que não percebia “se era amor, simpathia ou odio”; mas desde então ele “mudou bastante, vinha aqui ao escriptorio sempre apressado [...] sahiamos [a um café] e então elle coitado, contava-me o que se passava: que não podia continuar assim, impossivel, impossivel, aquela mulher: um misterio, um horror, e por aqui fora muito nervoso” (SÁ-CARNEIRO, 2015: 532). Para atribuir maior veracidade à hipótese, um amigo, Xavier de Carvalho, em texto publicado no Diário de Notícias (3-6-1916), menciona a presença, no enterro de Sá-Carneiro, “de uma midinette idealmente loira com os olhos cheios de lágrimas, que atravessou a rua e deitou sobre o caixão o pequeno ramo de violetas que trazia no corsage de linon branco e cor-de-rosa pálido. ‘– Um poeta que morreu de amor’ – explicava ela a uma companheira. – Como eu o teria amado!’”. Impossível não perceber, no detalhismo descritivo, uma tentativa de ficcionalizar, à maneira romântica, o episódio para os leitores do jornal – o que só contribui para envolver em brumas e suspeitas a morte do poeta (cf. DIAS, 1988: 216). Apraz-me, pois, imaginar uma sorridente midinette desembarcando em Sevilha, ainda carregando a mala do Outro, repleta das cartas de Fernando Pessoa (nunca recuperadas), e disposta a abandonar definitivamente a poeira dos livros e a tortura dos versos – cumprido que fora o destino de sua fama literária alavancada aos 26 anos pelo episódio do suicídio em Paris –, para debutar nos palcos, sensual e sinuosa, como dançarina. Apraz-me imaginar, como um feliz, realizado e liberto shape-shifting de Mário de Sá-Carneiro, o nascimento da misteriosa dama, por ele/ela mesmo/mesma narrado (a anos-luz do autorretrato do moço do escritório amargado pelo Poeta maior, Fernando Pessoa, que optou pela existência desassossegada): Então foi apoteose: toda a água azul, ao recebê-la, se volveu vermelha de brasas, encapelada, ardida pela sua carne que o fogo penetrara... E numa ânsia de se extinguir, possessa, a fera nua mergulhou... Mas quanto mais se abismava, mais era lume ao seu redor... Até que por fim, num mistério, o fogo se apagou em ouro e, morto, o seu corpo flutuou heráldico sobre as águas douradas... tranquilas, mortas também... (SÁ-CARNEIRO, 1995: 364) Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 469 Ferreira A Confissão de Laerte Nunca mais “Pântanos de mim”, nunca mais “Jardins estagnados”. Nunca mais “nunca mais” (“Nevermore”, de Poe). Apraz-me imaginar Mário de Sá-Carneiro vivo e – como narra Laerte na edição dos Piratas do Tietê dedicada ao “Poeta”, aqui comentada – liberto das amarras de uma sociedade hipócrita, aparentemente sã e cuja seriedade e peso redundam naquilo que o heterônimo António Mora, internado na Casa de Saúde de Cascais, comentou: Nós realizamos, modernamente, o sentido preciso daquela frase de Voltaire, onde diz que, se os mundos são habitados, a terra é o manicômio do Universo. Somos, com efeito, um manicômio, quer sejam ou não habitados os outros planetas. Vivemos uma vida que já perdeu de todo a noção de normalidade, e onde a higidez vive por uma concessão da doença. Vivemos em doença crônica, em anemia febricitante. O nosso destino é o de não morrer por nos termos adaptado ao estado de (perpétuos) moribundos. (PESSOA, 2002: 215) Dizia o maior amigo de Sá-Carneiro que ele era um gênio. Não só da arte, mas da inovação dela, e por isso vítima da indiferença que circunda os gênios e da zombaria das turbas de Piratas do Tietê que perseguem os inovadores: “prophetas, como Cassandra, de verdades que todos teem por mentira. In quâ scribebat, barbara terra fuit” (SÁ-CARNEIRO, 2015: 517). E conclui anunciando, quem sabe, as futuras confissões de outros visionários nos séculos vindouros, habitantes de cidades eternamente saqueadas por piratas chocarreiros: O Circo, mais que em Roma que morria, é hoje a vida de todos; porém alargou os seus muros até os confins da terra. A glória é dos gladiadores e dos mimos. Decide supremo qualquer soldado bárbaro, que a guarda impôs imperador. Nada nasce de grande que não nasça maldito, nem cresce de nobre que se não definhe, crescendo. Se assim é, assim seja! Os Deuses o quiseram assim. (PESSOA, 2005: 456) Post-scriptum. Segue, em anexo, depois da capa, “O Poeta”, de Laerte. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 470 Ferreira Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) A Confissão de Laerte 471 Ferreira Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) A Confissão de Laerte 472 Ferreira Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) A Confissão de Laerte 473 Ferreira A Confissão de Laerte Bibliografia BARRIE, J. M. (2012). Peter Pan. Rio de Janeiro: Clássicos Zahar. COUTINHO, Laerte (1988). “O Poeta – com a participação especial de Fernando Pessoa”. Piratas do Tietê, Circo, n.º 5. DIAS, Marina Tavares (1988). Mário de Sá-Carneiro – Fotobiografia. Coimbra: Quimera. FERREIRA, Ermelinda Maria Araujo (2016). “Mário de Sá-Carneiro: suicídio ou transfiguração?” Anuário de Literatura, vol. 21, n.º 2, pp. 89-100. https://doi.org/10.5007/21757917.2016v21n2p89 Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/ _____ (2006). “Mário de Sá-Carneiro e Oscar Wilde: apoteoses”. Revista do Centro de Estudos Portugueses, vol. 26, n.º 36, pp. 243-269. http://dx.doi.org/10.17851/2359-0076.26.36.243-269 Disponível em: http://www.periodicos.letras.ufmg.br/ _____ (2005). A mensagem e a imagem. Literatura e pintura no primeiro modernismo português. Recife: EDUFPE. GORDEEFF, Eliane (2021). “Uma reflexão sobre A cidade dos piratas”. Diálogo com a economia criativa, vol. 6, n.º 18 [dossiê SEANIMA#2], Rio de Janeiro, pp. 223-236. https://doi.org/10.22398/25252828.618223-236 GUERRA, Otto (2018). A cidade dos piratas. Desenhos Animados. Brasil. Digital. 80 min. KRABBENHOFT, Kenneth (2011). Fernando Pessoa e as doenças do fim de século. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda. OLIVEIRA, Luizir de; BISPO, Ella Ferreira (2017). “Expressões de homoerotismo na poesia ‘Ode Marítima’, de Fernando Pessoa. Mergulho nos insondáveis: mar e imaginário”. Acta Scientiarum. Language and Culture, vol. 39, n.º 1, Universidade Estadual de Maringá, pp. 8191. Disponível em: https://periodicos.uem.br/ojs/ PESSOA, Fernando (2014). Obra completa de Álvaro de Campos. Edição de Jerónimo Pizarro e Antonio Cardiello. Lisboa: Tinta-da-china. _____ (2005). Obras em prosa. Organização, introdução e notas de Cleonice Berardinelli. Rio de Janeiro: Nova Aguilar. ______ (2002). Obras de António Mora. Edição e estudo de Luís Filipe Bragança Teixeira. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda. ______ (2010). Encontro Magick, seguido de A boca do inferno (novela policiaria). Compilação e considerações de Miguel Roza. Lisboa: Assírio & Alvim. POE, Edgar Allan (2022). “A narrativa de Arthur Gordon Pym”. Ficção completa, poesia e ensaios. Rio de Janeiro: Nova Aguilar. PIZARRO, Jerónimo (2007). Fernando Pessoa: entre gênio e loucura. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda. SÁ-CARNEIRO, Mário (2015). Em Ouro e Alma – Correspondência com Fernando Pessoa. Edição crítica de Ricardo Vasconcelos e Jerónimo Pizarro. Lisboa: Tinta-da-china. _____ (1995). Obra completa. Introdução e organização de Alexei Bueno. Rio de Janeiro: Nova Aguilar. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 474 Ferreira A Confissão de Laerte ERMELINDA MARIA ARAÚJO FERREIRA é bacharel em Medicina (1986), bacharel em Letras (1986), mestre em Letras pela Universidade Federal de Pernambuco (1988) e doutora em Literaturas de Língua Portuguesa pela PUC-Rio (1998), com estágio na Universidade de Lisboa. Fez um pósdoutorado em Literatura Comparada na Universidade Nova de Lisboa (2011), como bolsista da CAPES, com o projecto “Literatura e Medicina: encontros, percursos, revelações”. É professora do curso de Letras e do Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Pesquisadora do CNPq, também é líder do Núcleo de Estudos em Literatura e Intersemiose (NELI/UFPE) e editora da Intersemiose – Revista digital. ERMELINDA MARIA ARAÚJO FERREIRA holds a Bachelor’s degree in Medicine (1986), a Bachelor’s degree in Literature (1986), a Master’s degree in Literature from the Federal University of Pernambuco (1988), and a Ph.D. in Portuguese Language Literatures from PUC-Rio (1998), with a stint at the University of Lisbon. She completed a post-doctorate in Comparative Literature at the Nova University of Lisbon (2011), funded by CAPES, with the project “Literature and Medicine: encounters, paths, revelations.” She is a professor in the Literature department and the Graduate Program in Literature at the Federal University of Pernambuco (UFPE). As a researcher with CNPq, she also leads the Center for Studies in Literature and Intersemiosis (NELI/UFPE) and serves as the editor of Intersemiose – Digital Journal. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 475 !"##$%&"&$&'()"*%+& !"#$$%& &() *+(#,&-. !"#$%&'()*+ -'./*01 !"#"$%"&'()"$* "#$%&%'( )#**(&+ ,-%#.&+ )(#*-&+ /.&0#%* 1%2-3,-%#.&2(0$45-6&*+ /$(%-&7 +*&,-. 1 *#'89:( '( 6-%#.& 2#. 6&2-;&'( &8'-<%6-&* '#*'# *8& ($-0#.+ %( #%2&%2(+ =&$& &>08%*+ 6(.( ( &82($+ *#8 &=#>( =#$.&%#6# #>8*-;(7 ?*2# &$2-0( .#$08>@& %& A($%&'& -%2$(*=#62-;& '( &82($+ B8#*2-(%&%'( &* 6(%;#%9C#* '& %&$$&2-;& 6-%#.&2(0$45-6& # & #*6$82D%-( -.=>&64;#> '& =#$*(%& .8>2-5&6#2&'& '# "#$%&%'( )#**(&7 ?%B8&%2( ( -%2#$#**# '# )#**(& =#>( 6-%#.& # '-;#$*(* 0<%#$(* >-2#$4$-(* &2$&- &2#%9:(+ ( &82($ &$08.#%2& B8# )#**(&+ ( =(#2&+ 2$&%*6#%'# *#8* &2$-E82(* 2&%0D;#-*7 12$&;F* '# 8.& #G=>($&9:( '(* ;#$*(* '# )#**(&+ #*=#6-&>.#%2# &B8#>#* #%;(>2(* #. (E*68$-'&'#+ ( &82($ #%6(%2$& $#**(%H%6-& # -%*=-$&9:(7 ?. 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Fig. 1. Desassossego. Confesso não compreender a fascinação que o cinema exerce, desde a sua origem, sobre as pessoas. Confesso também não compreender o obsessivo interesse que a maioria das pessoas tem pelas ficções que o cinema e a literatura semeiam copiosamente por todo o lado. Devo dizer que eu sou daqueles que preferem o incompreensível poético ao compreensível prosaico. Espero que haja pouca gente como eu senão os cinemas esvaziavam-se. Quando as coisas que me rodeiam, que vejo, oiço ou leio me parecem imediatamente compreensíveis, é sinal que não consegui atingir o estado necessário para as aceitar. A aceitação de tudo o que percepciono, é o estado que me permite sentir, como dizia o poeta, tudo de todas as maneiras. O processo da narração cinematográfica incomoda-me por me impor um decorrer de imagens fatiadas segundo critérios alheios ao meu ritmo e ao meu pensamento que me obrigam a ver através dos olhos de alguém doutro. Eu sou daqueles que gostam de se sentar no banco da sala de um museu para contemplar sossegado um quadro sem intermediários, sem pressas nem sobressaltos e, sobretudo, sem tentar saber mais do que aquilo que o quadro me oferece. Segundo consta, o poeta Pessoa interessava-se pelo cinema. Há alguns anos a traz, também me disseram que o poeta Pessoa tinha escrito histórias policiais. Estas duas novidades pouco ou nada me interessaram. Porque deveria eu extasiar-me por saber que Pessoa se interessou por banalidades? Para mais, o Pessoa prosador nunca me interessou, excepto dois textos: “A carta da corcunda ao serralheiro” (PESSOA, 2013: 626-632) e a irónica “Crónica decorativa – I” (in BOSCAGLIA, 2016). Em Pessoa é o poeta que me interessa. Porem, acho interessante o enunciado “Pessoa interessou-se por isto e por aquilo”. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 477 Xavier Pessoa e o Cinema? Reparo que o nome do poeta remete imediatamente para ele próprio tudo e mais alguma coisa. Então pergunto-me: o que é importante? As coisas que interessavam o poeta ou o poeta que se interessava pelas coisas? Até hoje, tudo o que foi dito e escrito sobre Pessoa focaliza essencialmente os diversos aspectos da sua personalidade poliédrica, a sua fisionomia, o seu bigode, o seu chapéu, os seus óculos, a sua caneta e até a cómoda onde um dos seus “outros” teria escrito, de pé e duma só vez, “O Guardador de Rebanhos”. E o resto? Quero dizer, e a poesia? E as imagens em movimento que as suas palavras suscitam? Silêncio. Aquilo que mais me agrada na poesia de Pessoa é quando ela se obscurece, que se torna enigmática, ou misteriosa e se desprega do obsessivo “eu” que em geral a desencadeia. Pessoa sem Pessoa cativa-me muito mais do que Pessoa com Pessoa. Como, por exemplo, neste poema dito ortónimo de 1914: Passa um vulto entre as árvores… Segue-o a sombra do vulto entre as árvores… E o vulto é a floresta em si que passa entre as árvores… (Fogos-fátuos sobre a sombra entre as árvores) Mas não há arvores: há só entre-as-árvores. (PESSOA, 2005: 219) A frase “Mas não há arvores: há só entre-as-árvores”, que veicula os conceitos de intervalo e de vazio, conceitos que venero, talvez tenha sido responsável da meu desejo de criar movimentos de imagens pessoanas, mas… O que é uma imagem pessoana? Como tantos outros caí na esparrela e lá fiquei durante algum tempo agarrado à fisionomia, ao bigode, ao chapéu e aos óculos de Pessoa, até me dar conta que a face ou silhueta do poeta nada têm a ver com o que ele escreveu, disso estou hoje convicto. O problema é que se eu desenhasse algumas árvores e fizesse passar um vulto anónimo entre elas, o conjunto de imagens obtidas não seria reconhecido como sendo pessoano. Em contrapartida, se o vulto que passasse entre as árvores fingisse ser a silhueta de Pessoa, mesmo o mais leigo dos leigos reconheceria imediatamente nela uma imagem pessoana o que é falso. Só após ter realizado os filmes 28, Pessoas e Desassossego, é que me dei conta das ‘facilidades’ em que caí. Hoje, procuro e tento outras maneiras de traduzir em imagens o movimento e os gestos inclusos nas palavras de Pessoa sem recorrer aos convencionais artifícios usuais que tanto agradam aos outros. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 478 Xavier Pessoa e o Cinema? Contudo em todos filmes citados que fiz e em muitos outros projectos que ficaram por fazer, está expressa a minha vontade de mostrar as duas facetas de Pessoa que prefiro: a ironia e o humor. Figs. 2 a 5. Ele e Eu. Pessoa não era aquilo que a maioria das pessoas coladas como mexilhões ao Livro do Desassossego pensão que ele era. Dei-me conta disso quando meti o nariz e depois o corpo todo no seu espólio. As pessoas que fazem filmes a sério, o que não é o meu caso, (ou talvez seja eu que faça filmes a sério e não os outros; “Nestas coisas, como em todas, não devemos ser dogmáticos”, como dizia PESSOA [2013: 645)]), não só gostam de dar a ver, mas também de dar a ouvir. Confesso também não compreender esta atitude. Para mim, Pessoa impõe o silêncio. Dizer, declamar, recitar Pessoa parece-me uma afronta ao bom senso. A poesia de Pessoa é, como dizia o poeta e místico San Juan de la Cruz, uma “música callada”. Os filmes que eu faço são geralmente silenciosos. Os poucos que comportam sons ou músicas resultam de compromissos. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 479 Xavier Pessoa e o Cinema? Os meus filmes não são cinematográficos. Longe disso. Eles são mesmo de natureza anti-cinematográfica. Eu não faço cinema, eu escrevo movimentos desenhados que procuram assemelhar-se a poemas. Figs. 6 a 10. Imagens para o projecto “Palavras de Pessoa. É, portanto, no território da poesia, o das páginas preenchida de grafias, que Pessoa e eu nos encontramos e nos entendemos. Existem coisas que têm o mérito de terem sido realizadas, mas eu penso que também há mérito em não realizar outras tantas. É esta atitude prudente que adopto Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 480 Xavier Pessoa e o Cinema? perante os meus entusiasmos para com a poesia de Pessoa que, assim que a leio, me empurra sempre para a minha mesa de trabalho. Relativamente à questão: será que vale a pena traduzir este ou aquele texto de Fernando Pessoa em termos de imagens? A minha resposta é quase sempre: não! Porquê? Por ter o sentimento de os ir estragar, a não ser que o meu talento seja equivalente ao do poeta o que me parece impossível. Porque aquilo que Pessoa diz, relata ou evoca faz parte do seu mundo interior e esse mundo só ele o poderia ter traduzido em imagens se ele tivesse possuído a competência gráfica, e mais para além, cinematográfica, para o exprimir. Quererá isto dizer que é impossível traduzir em imagens a poesia de Pessoa? Sim. Aquilo que é possível fazer é transforma-la noutras coisas que pouco ou nada têm a ver com a fonte de inspiração, tal como Pessoa fazia quando ele transformava a realidade do que via, ouvia e sentia em palavras que desenham na mente do leitor outra coisa que a realidade. O seu longo poema “Un soir à Lima” parece-me neste sentido bastante significativo. UN SOIR À LIMA Vem a voz da radiofonia e dá A notícia num arrastamento vão: “A seguir Un Soir à Lima…”. Cesso de sorrir… Para-me o coração… E, de repente, Essa querida e maldita melodia Rompe do aparelho inconsciente… Numa memória súbita e presente Minha alma se extravia… O grande luar da África fazia A encosta arborizada reluzente. A sala em nossa casa era ampla, e estava Posta onde, até ao mar, tudo se dava À clara escuridão do luar ingente… Mas só eu, à janela. Minha mãe estava ao piano E tocava… Exatamente Un Soir à Lima. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 481 Xavier Pessoa e o Cinema? Meu Deus, que longe, que perdido, que isso está! Que é do seu alto porte? Da sua voz continuamente acolhedora? Do seu sorriso carinhoso e forte? O que hoje há Que mo recorda é isto que oiço agora Un Soir à Lima. Prossegue na radiofonia A mesma, a mesma melodia O mesmo “Un Soir à Lima”. Seu cabelo grisalho era tão lindo Sob a luz E eu que nunca pensei que ela morresse E me deixasse entregue a quem eu sou! Morreu, mas eu sou sempre o seu menino. Ninguém é homem para a sua mãe! * E inda através de lágrimas não falha À memória que tenho O recorte perfeito da medalha Daquele perfeitíssimo perfil. Chora, ao lembrar-te, mãe, romana e já grisalha, Meu coração sempre infantil. Vejo teus dedos no teclado e há Luar lá fora eternamente em mim. Tocas em meu coração, sem fim. Un Soir à Lima. O silêncio fatal das coisas findas As tuas mãos pequenas e tão lindas Com escrúpulo risonho e familiar Com um sorriso em que não há Nada senão o eternamente humano Tiravas da quietude do piano Un Soir à Lima. Tinhas, perfil, um rosto de medalha Eras de frente, e olhando, a minha mãe Como hoje o teu olhar me falha E o teu perfil me lembra bem. * “Os pequenos dormiram logo”. “Ora, dormiram logo”. “Esta está quase a dormir”. E tu, sorrindo ao responder, continuavas Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 482 Xavier Pessoa e o Cinema? O que tocavas – Atentamente tocavas – Un Soir à Lima. Tudo que fui quando não era nada, Tudo que amei e sei só eu verdade Que o amei por não ter hoje estrada, Que tenha qualquer realidade. Por não ter dele mais que a saudade – Tudo isso vive em mim Por luzes, música e a visão Que não tem fim Dessa hora eterna no meu coração, Em que voltavas A folha irreal da música a tocar E eu te ouvia e via Continuar A eterna melodia Que está No fundo eterno desta nostalgia De quando, mãe, tocavas Un Soir à Lima. E o aparelho indiferente Traz da emissora inconsciente Un Soir à Lima. Eu não sabia então que era feliz. Hoje, que o já não sou, sei bem que o era. “Esta também está a dormir…”. “Não está”. Ficámos todos a sorrir. E eu distraidamente vou Continuando a ouvir, Longe do luar que há E que lá fora existe duro e só, O que me faz sonhar sem o sentir, O que hoje faz que tenha de mim dó Esse canto sem voz, teclado e brando, Que minha mãe estava tocando – Un Soir à Lima. * Não ter aqui numa gaveta, Não ter aqui numa algibeira Fechada, havida, completa, Essa cena inteira! Não poder arrancar Do espaço, do tempo, da vida Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 483 Xavier Pessoa e o Cinema? E isolar Num lugar Da alma onde ficasse possuída Eternamente Viva, quente, Essa sala, essa hora, Toda a família e a paz e a música que há Mas real como ali está Ainda, agora, Quando, mãe, mãe, tocavas Un Soir à Lima. Mãe, mãe, fui teu menino Tão bem dobrado Na sua educação E hoje sou o trapo que o Destino Fez enrolado e atirado Para um canto do chão. Jazo, mesquinho, Mas ao meu coração Sobe, num torvelinho A memória de quanto ouvi do que há No que há de carícia, de lar, de ninho, Ao relembrar o ouvir, hoje, meu Deus, sozinho, Un Soir à Lima. Onde é que a hora, e o lar e o amor está Quando, mãe, mãe, tocavas Un Soir à Lima? E num recanto de cadeira grande Minha irmã, Pequena e encolhidinha Não sabe se dorme se não. * Eu tenho sido tanta coisa vil! Tenho traído tanto do que sou! Meu espírito sedento De raciocinador subtil Quantas vezes prolixamente errou! Quantas vezes até o sentimento Inanimadamente me enganou! Já que não tenho lar, Deixa-me estar Nesta visão Do lar de então, Deixa-me ouvir, ouvir, ouvir – Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 484 Xavier Pessoa e o Cinema? Eu à janela, Do nunca mais deixar de sentir, Nessa sala, a nossa sala, quente Da África ampla onde o luar está Lá fora vasto e indiferente Nem mal nem bem E onde no meu coração Mãe, mãe Tocas visivelmente, Tocas eternamente Un Soir à Lima. A minha raiva de animal humano A quem tiraram a mãe, E não tem Para o menino que lhe na alma há, Para lhe encher o coração, Mais que esta visão – As tuas mãos pequenas pelo piano Quando, oh meu Deus, tocavas Un Soir à Lima. Ai, mas é engano. Aqui sou velho Não há sala nem há piano Nem tu existes a tocar. Há um aparelho mudo De onde um som vem de longe, e dói. Como é que eu te darei um beijo agora? Eu poderia, vindo da janela, Como tantas vezes fiz ◊1 O raciocinador exato Cuja alma está em mil pedaços, Em mil pedaços que nem há… Deixa-me dormir E sonhar de estar vendo, a ouvir, Un Soir à Lima. * E era nesta calma, Nesta felicidade Em que existia uma alma (Meu Deus, que saudade!), Que, sob a luz que dourava, 1 Este símbolo representa um espaço deixado em branco pelo autor. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 485 Xavier Pessoa e o Cinema? (Hoje onde é que isso está?) Longe de onde o luar prateava, Minha mãe tocava Medalha atenta e humana ao piano, Un Soir à Lima. Desde então Tenho atravessado Muitas vidas. As mais das vezes tenho errado. Meu coração Pesa de coisas esquecidas. Desde quando Nesse brando Conforto do meu lar extinto Eu, à janela, ouvia, hirto e sonhando, Ermo e indistinto, O que há Em toda a música de intuição e instinto, Quanto tenho deixado morrer Dentro do que quis ser, Quanto tenho deixado Só pensado, Quanto, quanto, Tem sido para mim somente sonho, Somente o encanto, Tristemente risonho De o ter sonhado, Quem sabe se a saudade Transmutada num devaneio meio humano De quanto nessa noite está, Longínqua, em que, mamã, ao piano Tocavas, sob a crua claridade, Un Soir à Lima. Pesa-me o coração. Um torpor denso Ocupa-me a consciência de ◊ E um frio informe, desolado e denso Não me deixa pensar. Num baloiçar-me, num embalar Relembro tudo, relembro em vão. Meu Deus, isso tudo onde está? Un Soir à Lima… Quebra-te, coração! * Meu padrasto (Que homem! que alma! que coração!) Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 486 Xavier Pessoa e o Cinema? Reclinava o seu corpo basto De atleta sossegado e são Na poltrona maior E ouvia, fumando e cismando, E o seu olhar azul não tinha cor. E minha mãe, criança, No recanto da sua poltrona, Enrolada, ouvia a dormir E a sorrir Que estava alguém tocando Se calhar uma dança… E eu, de pé, ante a janela Via todo o luar de toda a África inundar A paisagem e o meu sonhar. Onde tudo isso está! Un Soir à Lima, Quebra-te coração! * Mas entorpeço. Não sei se vejo, se adormeço, Se sou quem fui, Nem sei se lembro, nem se esqueço. Há qualquer coisa que indistinta flui Entre quem sou e o que eu era E é como um rio, ou uma brisa, ou um sonhar, Qualquer coisa que não se espera, Que se suspende de repente E, do fundo aonde ia acabar, Surge, cada vez mais distintamente, Num halo de suavidade E nostalgia, Onde o meu coração ainda está, Um piano, uma figura, uma saudade… Durmo encostado a essa melodia – E oiço que minha Mãe toca, Oiço, já com o sal das lágrimas na boca, Un Soir à Lima. * O véu das lágrimas não cega. Vejo, a chorar, O que essa música me entrega – A mãe que eu tinha, o antigo lar, A criança que fui, O horror do tempo, porque flui, Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 487 Xavier Pessoa e o Cinema? O horror da vida, porque é só matar! Vejo, e adormeço, E no torpor em que me esqueço Estou vendo minha mãe tocar. Essas mãos brancas e pequenas, Cuja carícia nunca mais me afagará, Tocam ao piano, cuidadosas e serenas, Un Soir à Lima. Ah, vejo tudo claro! Estou outra vez ali. Afasto do luar externo e raro Os olhos com que o vi. Mas quê? Divago e a música acabou… Divago como sempre divaguei Sem ter na alma certeza de quem sou, Nem verdadeira fé ou firme lei Divago, crio eternidades minhas Num ópio de memória e de abandono. Entronizo fantásticas rainhas Sem para elas ter um trono. Sonho porque me banho No rio irreal da música evocada. Minha alma é uma criança esfarrapada Que dorme num recanto obscuro. De meu só tenho, Na realidade certa e acordada, Os trapos da minha alma abandonada, E a cabeça que sonha ao pé do muro. Mas, mãe, não haverá Um Deus que me não torne tudo vão, Um outro mundo em que isso agora está? Divago ainda: tudo é ilusão. Un Soir à Lima… Quebra-te, coração… (PESSOA, 2018: 145-157) Quem lê este belíssimo poema sem conhecer a música à qual Pessoa se refere, vai imaginar imediatamente uma música encantadora, envolvente e tropical. Não é o caso, infelizmente. Un soir à Lima Op.99 do senhor Godefroid, Félix é uma peça de música feia, miserável que não contem nem uma migalha de talento, mas graças ao génio poético de Pessoa as suas palavras transcenderam a banalidade da música ouvida que despertou nele íntimas recordações. Assim sigo o exemplo que ele ma dá. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 488 Xavier Pessoa e o Cinema? A poesia ortónima de Fernando Pessoa é, para mim, uma permanente fonte de inspiração porque ela representa, a meus olhos, o laboratório de experiências do poeta. Recentemente, um outro poema do 7 de Setembro de 1933 despertou a minha atenção: Contemplo o que não vejo. É tarde, é quasi escuro. E quanto em mim desejo Está parado ante o muro. Tudo é do outro lado, No que há o no que penso. Nem há ramo agitado Que o céu não seja imenso. Por cima o céu é grande; Sinto árvores além; Embora o vento abrande, Há folhas em vaivém. Confunde-se o que existe Com o que durmo e sou. Não sinto, não sou triste, Mas triste é o que estou. (PESSOA, 2006: 155) É sobre este poema consagrado ao movimento das coisas que tenho de novo ganas de fazer qualquer coisa. Fig. 12. Imagens para o poema: “Contemplo o que não vejo…” Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 489 Xavier Pessoa e o Cinema? Bibliografia BOSCAGLIA , Fabrizio (2016). “As Chronicas Decorativas de Fernando Pessoa: edição crítica de oito documentos”. Pessoa Plural—A Journal of Fernando Pessoa Studies, n.º 9, Primavera, pp. 148183. Brown Digital Repository. Brown University Library. https://doi.org/10.7301/Z0RJ4GPP PESSOA, Fernando (2018). Antologia Mínima – Poesia. Edição de Jerónimo Pizarro. Lisboa: Tinta-dachina. _____ (2013). Eu Sou Uma Antologia: 136 Autores Fictícios. Edição de Jerónimo Pizarro e Patricio Ferrari. Lisboa: Tinta-da-china. _____ (2006). Poesia 1931-1935, e não datada. Edição de Manuela Parreira da Silva, Ana Maria Freitas e Madalena Dine. Lisboa: Assírio & Alvim. _____ (2005). Poesia 1902-1917. Edição de Manuela Parreira da Silva, Ana Maria Freitas e Madalena Dine. Lisboa: Assírio & Alvim. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 490 Xavier Pessoa e o Cinema? JOSÉ-MANUEL XAVIER, cineasta, ensaísta, pintor, gravador e poeta nascido em Lisboa, onde fez os seus primeiros estudos artísticos e musicais. Ainda muito jovem, praticou na capital portuguesa o desenho animado publicitário para viver e para se divertir. Em 1965, mais de que farto do regime do Doutor Salazar, migrou para Paris. Na capital francesa, praticou o cinema de animação, dedicou-se à pintura e à ilustração, expôs obras de arte conceptual, praticou a gravura (iniciado pelo grande mestre Alexandre Alexeïeff), realizou ilustrações para livros, revistas e jornais até compreender que o cinema de animação só se torna interessante quando praticado como forma de arte. Nos anos 80 interessou-se pelas novas tecnologias. Solicitado pela comissão para as comemorações do bicentenário da revolução francesa, realizou um filme intitulado Paris 1789, em desenhos animados e imagens de síntese 3D, numerosos filmes publicitários, curtas e medias metragens de animação para o cinema e para a televisão assim como múltiplos genéricos e efeitos especiais. Desde o fim dos anos 80, José Xavier nunca mais cessou de se interrogar, experimentando, escrevendo e ensinando sobre a arte dos movimentos ilusórios. Ver: Le mouvement des choses (lemouvementdeschoses.wordpress.com) e O movimento das coisas talvez (omovimentodascoisastalvez.wordpress.com), assim como a página www.youtube.com/@josemanuelbarataxavier9246. Autor de vários livros: La Poétique du Mouvement suivie du Carnet de l'animateur (Edition CNBDI, 2003): Poética do Movimento (Edições MONSTRA, 2007); Poética de Ilusão de Movimento (Edição do Núcleo de Cinema de Animação de Campinas, 2018); O Movimento das Coisas, talvez... (Edição Senhor Passageiro 2018). JOSÉ-MANUEL XAVIER, filmmaker, essayist, painter, engraver, and poet born in Lisbon, where he pursued his early artistic and musical studies. Still very young, he practiced commercial animation in the Portuguese capital to make a living and to have fun. In 1965, feeling more than fed up with the regime of Dr. Salazar, he migrated to Paris. In the French capital, he practiced animation cinema, devoted himself to painting and illustration, exhibited conceptual artworks, delved into engraving (under the guidance of the great master Alexandre Alexeïeff), created illustrations for books, magazines, and newspapers until he realized that animation cinema only becomes interesting when practiced as an art form. In the 1980s, he became interested in new technologies. Commissioned by the committee for the bicentenary celebrations of the French Revolution, he created a film titled Paris 1789, using both traditional animation and 3D synthesis images, along with numerous advertising films, short and medium-length animated films for cinema and television, as well as multiple title sequences and special effects. Since the late 1980s, José Xavier has never ceased to question, experiment, write, and teach about the art of illusory movements. See: Le mouvement des choses (lemouvementdeschoses.wordpress.com) and O movimento das coisas talvez (omovimentodascoisastalvez.wordpress.com), as well as the page www.youtube.com/@jose-manuelbarataxavier9246. Author of several books: La Poétique du Mouvement followed by Carnet de l’animateur (CNBDI Edition, 2003); Poética do Movimento (MONSTRA Editions, 2007); Poética de Ilusão de Movimento (Edition of the Campinas Animation Film Center, 2018); O Movimento das Coisas, talvez... (Senhor Passageiro Edition, 2018). Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 491 !"#$%"&'#$%$&()*%!"#$%"&'()( !"#$%&'#(%)&#'&!"#$%"&'()(* !"#$%&'()"*+&, !"#"$%"&'(#")* !"#$%$&'()"**'%+(,-".*/"#(0#'1-"2+(!"#$%"&'()(+(!"#(*#)+,+(34.'$+(5.6-'7'*8 +*&,-*. !"#$%"&'()(-./%"'01"#-2#,3%"4-"5-%)-6,7)-("%-859'"#5,: 9."##%(4$(9.9-'(&"(9%*.(:".$/.9.$9'(%;'*+(<%#9%&'(='#( -%(="#*.*/"$/"(>?*@4"&%(&"(&%#(:.&%(%(-%(A.74#%("$.7<6/.9%(&"(,-".*/"#(0#'1-"2("$("-(9.$"+(='#(=%#/"(&"( 0%#-'*(,/%$"*8(5"*&"(-'*(=#.<"#'*(.$/"$/'*("$("-(.$.9.'(&"-(*.7-'(B%*/%(-%("*9#./4#%(&"-(74.'$(A.$%-("$( CDDE+( "-( %4/'#( "$A#"$/F( '>*/694-'*( 2( &"9"=9.'$"*( @4"( A#4*/#%#'$( *4*( "*A4"#G'*( 9.$"<%/'7#6A.9'*8( H.$( "<>%#7'+(4$%(&I9%&%(&"*=4I*+(-%(#"-"9/4#%(&"-(74.'$(&"*="#/F 4$($4":'(.<=4-*'(9#"%/.:'8(5"9.&.&'(%( /#%$*A'#<%#( -%( B.*/'#.%( "$( 4$%( '>#%( -./"#%#.%+( "-( %4/'#( *"( *4<"#7.F( "$( -%( "*9#./4#%( &"( !"#$%"&'()(+( 4$%( $':"-%( @4"( #"/'<%( "-( %#<%GF$( &"-( 74.'$( '#.7.$%-+ ="#'( -'( #":./%-.G%( 9'$( &.6-'7'*( =4-.&'*+( "*9"$%*( #"*9%/%&%*(2(4$("$A'@4"(<6*(='I/.9'8(,@4J(*"(#":"-%$(4$%*(=67.$%*+("$(%$"K'8 !"#")%"&/(0")* !"#$%$&'()"**'%+(,-".*/"#(0#'1-"2+(!"#$%"&'()(+(!"#(*#)+,+(L'/".#'+(5.6-'7'*8 +*&,-1 !"#$%"&'()(-./%"'01"#-2#,3%"4-5)-6,7)-(,-859"#5,: "$9"##%(4<(9.9-'(&"(@4%*"(:.$/"("(9.$9'(%$'*+(<%#9%&'( ="-%(="#*.*/"$/"(>4*9%(&"(&%#(:.&%(M(A.74#%("$.7<6/.9%(&"(,-".*/"#(0#'1-"2($'(9.$"<%+(='#(=%#/"(&"( 0%#-'*(,/%$"*8(5"*&"(%*(=#.<".#%*(/"$/%/.:%*($'(.$J9.'(&'(*I94-'(%/I(%("*9#./%(&'(#'/".#'(A.$%-("<(CDDE+('( %4/'#( "$A#"$/'4( '>*/694-'*( "( &"9"=NO"*( @4"( A#4*/#%#%<( *"4*( "*A'#N'*( 9.$"<%/'7#6A.9'*8( P'( "$/%$/'+( 4<%( &I9%&%( &"='.*+( %( #"-"./4#%( &'( #'/".#'( &"*="#/'4( 4<( $':'( .<=4-*'( 9#.%/.:'8( 5"/"#<.$%&'( %( /#%$*A'#<%#(%(B.*/F#.%("<(4<%('>#%(-./"#6#.%+('(%4/'#(<"#74-B'4($%("*9#./%(&"(!"#$%"&'()(+(4<(#'<%$9"( @4"(#"/'<%(%("*/#4/4#%(&'(#'/".#'('#.7.$%-+(<%*('(#":./%-.G%(9'<(&.6-'7'*(='-.&'*+(9"$%*(#"*7%/%&%*("( 4<%(%>'#&%7"<(<%.*(='I/.9%8(,@4.(*Q'(#":"-%&%*(%-74<%*(=67.$%*+("<(%$"K'8 2*341%5& !"#$%$&'()"**'%+(,-".*/"#(0#'1-"2+(!"#$%"&'()(+(!"#(*#)+,+(H9#.=/+(5.%-'74"*8 6$&7%"(7 !"#$%"&'()(-./%"'01"#-2#,3%"4-5)-6,7)-(,-859"#5,: 9-'*"*(%(929-"('A(%-<'*/(/1"$/2RA.:"(2"%#*+(<%#S"&(>2(/B"( ="#*.*/"$/(@4"*/(/'(>#.$7(/B"("$.7<%/.9(A.74#"('A(,-".*/"#(0#'1-"2(/'(-.A"(.$(9.$"<%(>2(0%#-'*(,/%$"*8( !#'<(/B"("%#-2(%//"<=/*(%/(/B"(>"7.$$.$7('A(/B"(9"$/4#2(/'(/B"(1#./.$7('A(/B"(A.$%-(*9#.=/(.$(CDDE+(/B"( %4/B'#(A%9"&('>*/%9-"*(%$&(&.*%=='.$/<"$/*(/B%/(/B1%#/"&(B.*(9.$"<%/.9("$&"%:'#*8(T'1":"#+(%(&"9%&"( -%/"#+(%(#"R#"%&.$7('A(/B"(*9#.=/(*=%#S"&(%($"1(9#"%/.:"(.<=4-*"8(5"/"#<.$"&(/'(/#%$*A'#<(/B"(*/'#2(.$/'( %(-./"#%#2(1'#S+(/B"(%4/B'#(.<<"#*"&(B.<*"-A(.$(1#./.$7(!"#$%"&'()(+(%($':"-(/B%/(/%S"*(4=(/B"(A#%<"1'#S( 'A( /B"( '#.7.$%-( *9#.=/( >4/( #":./%-.G"*( ./( 1./B( ='-.*B"&( &.%-'74"*+( #"*94"&( *9"$"*+( %$&( %( <'#"( ='"/.9( %==#'%9B8(T"#"(%#"(*'<"(=%7"*(#":"%-"&(.$(/B"(%$$"K8 ! #$%&'()&"*"+'&,%()&"+,"%'-,. Atanes Unas notas sobre Perplejidad Con Perplejidad (Aleister Crowley en la Boca del Infierno), a la que en estas líneas me referiré en lo sucesivo como Perplejidad, espero cerrar un círculo trazado a lo largo de casi veinticinco años. Para explicarme con claridad, procederé a resumir el periplo de forma cronológica. Mi primer encuentro con Aleister Crowley se produjo en los albores de este siglo gracias a La gran bestia, biografía escrita por John Symonds, cuando el personaje aún era prácticamente un desconocido en España y, creo, en el ámbito hispanohablante. Mi productividad cinematográfica entonces era más intensa que ahora y no tardé en tomar la decisión de inspirarme en él para filmar una película. Con más impaciencia que preparación, en 2002 me lancé al rodaje de algo para lo que no contaba ni siquiera con un argumento completo. Había previsto un plan de rodaje fragmentado, y con las primeras páginas del guion en mano filmé, en inglés, con actores anglosajones, las primeras secuencias de Ian Perplexed. Su título conjugaba una de las ultimas frases que el mago pronunció en su lecho de muerte: “I am perplexed” (“Estoy perplejo”) y el nombre del personaje que servía de hilo conductor, un tal Ian implicado en la búsqueda de Crowley (una búsqueda similar a la que emprendió Marlow en pos del señor Kurtz). Dificultades de diversa índole que sería demasiado prolijo relatar aquí dieron al traste con el proyecto a los dos días de rodaje. Figs. 1 e 2. Ian Perplexed. Algunos de los actores. Resolví entonces volver a empezar de cero con Perdurabo, un largometraje estructurado en tres partes, de unos cuarenta minutos cada una. En 2003, logré terminar la primera, ambientada en la abadía siciliana de Thelema. Se centraba en las andanzas de los thelemitas y la aparición de Crowley quedaba postergada para el segundo fragmento, que retomaría algunas cuestiones apuntadas en Ian Perplexed y narraría el encuentro de Crowley con el demonio Choronzon en el desierto de Argelia. Este segundo fragmento, apenas guionizado, no se rodó nunca. El tercero, cuya naturaleza he olvidado por completo, ni siquiera llegó a existir sobre el papel. La parte filmada, sin embargo, conformaba un mediometraje por derecho propio, así que pasó a llamarse Perdurabo (Where is Aleister Crowley?) y a gozar de cierta difusión en festivales e internet. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 493 Atanes Unas notas sobre Perplejidad Figs. 3 e 4. Perdurabo. Decorado de la abadía de Thelema. Inasequible al desaliento, resolví emprender un tercer asalto. Pero, escarmentado por los problemas que habían frustrado los dos primeros, inherentes a la escasez de medios de una producción de tipo underground, me incliné por un enfoque más convencional: la escritura de un guion completo y la búsqueda de productores que pudieran financiar un proyecto más ambicioso y, por ende, más caro. De ahí surgió Aleister Crowley en la Boca del Infierno, cuya escritura concluí en 2008. La trama rompe con las anteriores, parte del encuentro de Crowley con Fernando Pessoa y se sirve de un juego ficcional (¿y si Aleister Crowley hubiera caído realmente al mar desde la Boca del Infierno?) para describir un viaje alucinatorio a través del inframundo, una inmersión en el género fantástico henchida de guiños y referencias a la obra y a la vida de Crowley. La estructura se articula de acuerdo con la disposición de los arcanos mayores del Tarot (del Tarot de Crowley en particular) pero invertida, ya que narra un camino de muerte y renacimiento, es decir, un trayecto inverso al habitual. Esta correspondencia es unas veces sutil y otras evidente. Pero la película planteada era demasiado ambiciosa y cara. Y, lo que es aún peor, Crowley seguía siendo todavía una figura ignota para el público general. Baste decir que ni siquiera por aquel entonces directores británicos renombrados como Ken Russell o Terry Jones habían logrado materializar sus aspiraciones cinematográficas sobre Crowley en un país tan conocedor del personaje como Inglaterra. Dadas las circunstancias, mi empresa era obviamente una quimera y, tras varias conversaciones con productores que no condujeron a nada, el proyecto quedó varado de forma definitiva. Hastiado, arrojé la toalla. Pero alentado por los aficionados a la magia thelémica que seguían acudiendo a mí, interesándose por una película que nunca llegaba, en 2013 consideré que sería una buena idea publicar el guion. Y así lo hice, completando el título con un subtítulo muy elocuente: El guion nunca filmado. En la década subsiguiente me mantuve alejado de Crowley y volví a él sólo en ocasiones puntuales. Inevitablemente, por ejemplo, para citarle en mi ensayo Magia del caos para escépticos, publicado por la editorial Dilatando Mentes en 2018. Fue José Ángel de Dios, de Dilatando Mentes, quien me sugirió en aquella ocasión novelar Aleister Crowley en la Boca del Infierno. Guardé la propuesta en el cajón de la Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 494 Atanes Unas notas sobre Perplejidad desgana porque, estando ocupado en otros temas y escrituras, la novelización del guion se me antojaba una tarea ímproba y porque (esta es la razón principal) no deseaba volver a vérmelas con un personaje que me había dado tantos disgustos. Para mí, Crowley era caso cerrado. Sin embargo, y a pesar de la aversión que había llegado a provocarme el personaje, en mi fuero interno nunca dejé de sentir que mi vinculación con él se había cerrado en falso. Pero habrían de pasar varios años más para que la renuencia cediera. A finales del verano de 2023, Marcelo Cordeiro de Mello se puso en contacto conmigo para solicitarme la inclusión de algunos fragmentos de Aleister Crowley en la Boca del Infierno en una edición especial de la revista Pessoa Plural. Como no podía ser de otro modo, le expresé mi conformidad. Pero revisar esos fragmentos me llevó a la relectura del guion y a la decepción consiguiente. Porque el tiempo nos convierte en críticos implacables de nuestros trabajos pretéritos y porque, a fin de cuentas, se trata de un guion cinematográfico. No voy a descubrir nada nuevo explicando que, al margen de su calidad, un guion no es, ni tiene por qué pretender ser, una obra acabada, una obra por sí y para sí. A mi modo de ver, no es más que un bosquejo, una guía necesaria para elaborar un plan de rodaje y jalonar el camino tortuoso e imprevisible de una película, que debe cobrar vida en el transcurso de su elaboración, en comunión con el caos humano y material del mundo. Una vez usado, exprimido y casi diría que mancillado, el destino manifiesto de un guion es la papelera. Solo la certeza de que este en particular no sería filmado y el deseo de satisfacer a los curiosos me animaron a publicarlo. Sin embargo, la relectura también supuso un reencuentro. Tras largos años de convalecencia crowleyana, cicatrizadas ya las heridas, me sorprendí redescubriendo una materia que conservaba su vigencia y que clamaba ser transformada por fin en una obra completa. No una película, pero sí una novela. El empeño constituía un desafío porque no me interesaba en absoluto maquillar superficialmente el guion en aras de su publicación: solo tendría sentido regresar a la Boca del Infierno relegando al guion a su condición de borrador, con la determinación de transformar la historia en un material genuinamente literario. Y ni siquiera estaba seguro de poder lidiar con ello. El guion entrañaba dificultades serias en lo que respecta a su metamorfosis literaria. Lo que en la escritura para cine se soluciona con una simple apostilla, requiere de una explicación más argumentada y del empleo eficaz de recursos, digamos, poéticos en un texto literario. No basta con señalar, por ejemplo, que mediante “un progresivo cambio de perspectiva va quedando claro que ese fondo de estrellas no es el cielo, sino un pavimento moteado”. Y este tipo de deslizamientos cinematográficos abundan en el guion de Aleister Crowley en la Boca del Infierno. Las ópticas y los movimientos de cámara no desempeñan papel alguno en una novela, lo que redunda en consecuencias de calado imprevisible que afectan al propio desarrollo de la trama. Sea como fuere, el deseo superó a la inseguridad y a los pocos Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 495 Atanes Unas notas sobre Perplejidad días me hallaba enfrascado en la escritura de Perplejidad, a los que seguirían casi medio año de aislamiento y (extenuante) trabajo intensivo. Si me preguntaran lo que ha supuesto para mí transformar el guion en novela, respondería con la imagen que me venía a la cabeza con frecuencia cuando me ocupaba de ello: vestir un árbol desnudo en un páramo invernal con una frondosa copa de hojas y frutos. El tronco se ha mantenido incólume, así como los tocones de rama. Pero ahora hay tocones extendidos en ramas alargadas, una pluralidad mayor de ramitas, subdivisiones, una exuberancia de follaje, una propagación mayor y más profunda de las raíces. Casi puede verse la savia recorriendo arriba y abajo los tubos leñosos. He mantenido, pues, el armazón, pero he reescrito por completo los diálogos, puliéndolos, ampliándolos y enriqueciéndolos; he rescatado escenas y elementos que, habiendo sido incluidos en las primeras versiones del guion, acabé suprimiendo por considerar que su filmación sería demasiado complicada, costosa (la travesía de la barca solar, entre otras) o contraproducente para el ritmo de la película (revelándose su incorporación a la novela, por el contrario, provechosa y hasta necesaria); he cambiado de manera notoria algunos pasajes y he efectuado también una poda cuidadosa de otros; he reconectado cabos argumentales que habían quedado sueltos y he sembrado el texto con insinuaciones que nunca existieron en el guion. He incluido circunloquios, elucubraciones, monólogos interiores y referencias metatextuales que hubieran sido inviables en una obra cinematográfica. Y, por supuesto, he disfrutado mucho en los momentos en que soltaba la estilográfica nutriéndome con textos de Crowley que ya conocía y con algunos que no conocía. Cosa que también he hecho con otros personajes, fundamentalmente con el desasosegado Pessoa, al que he dotado de mayor densidad y relevancia argumental tanto en sus apariciones directas como en las indirectas, y a quien debo una dedicación exclusiva en algún proyecto futuro. Por supuesto, la elección del título no ha sido producto del azar. La perplejidad aludida tiene que ver con la atmósfera de la novela, con el efecto que deseo causar en el lector, con la frase que antes cité de Aleister Crowley, y supone, cómo no, el capricho privado de enlazar con el título de Ian Perplexed, la primera etapa de este viaje. Lo que empezó como un balbuceo y un tropezón ha culminado, un cuarto de siglo más tarde, en un colofón que por fin me satisface. Así, de forma circular, clausuro mi larga relación con un personaje, Aleister Crowley, a quien he dedicado más tiempo y esfuerzos de los que yo mismo puedo entender. En 2010, cuando mi prioridad era encontrar financiación para rodar Aleister Crowley en la Boca del Infierno, Jesús Palacios me invitó a participar en el libro colectivo La bestia en la pantalla: Aleister Crowley y el cine fantástico, publicado por la Semana de Cine Fantástico y de Terror de San Sebastián. Allí vertí mis cuitas y traté de explicar el porqué de mi filiación con un señor tan controvertido. Por encima de los motivos de índole dramática, como la naturaleza palmariamente cinematográfica de sus andanzas, destaqué uno que sigue pareciéndome incontestable y, desde mi punto de vista, cautivador: su Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 496 Atanes Unas notas sobre Perplejidad rabiosa heterodoxia. Con estas palabras lo hice constar en el pequeño ensayo Aleister Crowley está vivo: “Crowley sigue siendo indigerible, intriturable, inasumible. El mundo ha cambiado bastante en algo más de cien años, pero quizá no tanto cuanto el cáustico heterodoxo de la sociedad victoriana sigue siendo cáustico y heterodoxo ahora. Esta es también una de las razones de que Crowley tampoco esté tan muerto como han contado”. Si lo que dije era cierto en 2010, no digamos ya en los tiempos que corren. Perplejidad, creo, ha esperado a ser escrita cuando tenía que ser escrita. Queda claro entonces que el círculo se ha cerrado, pero solo en su dimensión artística. Queda pendiente la vital. La última vez que viajé a Lisboa fue al poco de terminar el guion, en compañía de unos amigos. Deambulé por las calles de esa ciudad que adoro pisando las mismas calçadas que pisó Fernando Pessoa. De regreso a Madrid, en automóvil, pasamos por Cascais y vimos el letrero que indicaba el desvío a la Boca del Infierno. Hubiera bastado un volantazo, pero el anochecer y las prisas se interpusieron. No sé hasta qué punto es inoportuno confesar que, habiendo estado solo a escasos metros de ella, habiéndola visitado tantas veces y de forma tan detallada en mi imaginación, nunca he puesto realmente un pie en la Boca del Infierno. Pero a día de hoy es la pura verdad. Algún día repararé la omisión. Hacerlo sí supondrá el cierre del círculo con Crowley. Aunque intuyo que podría ser el inicio de otro similar con Pessoa. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 497 Atanes Unas notas sobre Perplejidad ANEXO Perplejidad (Carlos Atanes) Fragmento de la novela Encuentro de Aleister Crowley con Fernando Pessoa –¿Señor Crowley? Se volvió hacia la voz, un poco sobresaltado. Al final iba a resultar que el sótano del mundo estaba tan concurrido como Picadilly Circus. Un hombre delgado, vestido con gabán y sombrero de ala ancha, algunos años más joven que él, esperaba su respuesta. –¿Qué se le ofrece? –dijo Crowley, apartándose el pañuelo de la boca y doblándolo con meticulosidad, como si su tos horrible fuera un rasgo de coquetería. –¿No me reconoce? Soy su anfitrión –respondió́ el otro con voz queda. –No –respondió́ Crowley–. No le recuerdo. No se ofenda, pero apenas es usted un manchurrón en la niebla. Por cierto, qué niebla tan espesa. ¡Y qué humedad! ¿Haría usted el favor de decirme qué lugar es este? El ala del sombrero ensombrecía las facciones de aquel hombre, pero un característico bigotillo triangular resaltaba por encima de su labio superior. –Pensé que le acompañaría la señorita Jäger, Sr. Crowley. Pero ahora descubro que ha acudido sin ella. –Por supuesto que me acompaña. Estamos dando la vuelta al mundo. Lisboa, los Mares del Sur... ¿No la ha visto pasar, hace un momento? Está por ahí, estirando las piernas. Y me acompaña, no le quepa duda. Es solo que Anu... –¿Por qué la llama Anu? Sepa que no es muy cortés referirse a una dama en esos términos. ¿Cómo se atreve, el mojigato? También la llamo El Monstruo, pensó Crowley con secreto regocijo. Guardó el pañuelo ya doblado y extrajo la pitillera del bolsillo. Fijó su atención en aquel bigotito, las gafas, las cejas pobladas, la mirada vidriosa, una miscelánea anodina donde nada resultaba especialmente llamativo. Crowley entornó los ojos para obligarse a sí mismo a ser más perspicaz. Entonces le reconoció. –Ah, sí –dijo, sin demasiado entusiasmo–. Usted es el traductor portugués. –Poeta. –Déjeme pensar. Sí. Pessoa. Corrigió un error de mi carta astral –golpeó un cigarrillo contra el depósito de la pitillera–. O al menos se jactaba de haber corregido un error. Un error que yo había cometido. Sí, se jactaba bastante. Pessoa asintió y siguió hablando: Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 498 Atanes Unas notas sobre Perplejidad –También jugamos al ajedrez, ¿se acuerda? Y le invité a venir. Me halaga mucho que aceptara. No imaginé que atendería la petición de un simple aficionado. Confió en que no interprete la corrección que hice de su carta como una insolencia. Crowley dejó de dar golpecitos. –¿Está seguro de que fue usted quien me invitó? Pero calle un momento. Antes le he preguntado algo. ¿Dónde estamos? Esto no parece Lisboa. –¡Oh! Permítame. Pessoa se descubrió, trazando un amplio arco con el sombrero. Como si descorriera un telón, una potente luz vespertina bañó a los dos hombres. El viento fresco azotó sus cabellos y sus ropas, rociándoles con un intenso aroma a salitre. Crowley retuvo su sombrero, que pugnaba por salir volando, y se adelantó unos pasos hacia la luz. Los pies trastabillaron en un firme que ya no era de arena, sino abrupto y pedregoso. Resultaba muy sencillo torcerse un tobillo si uno no se andaba con tiento. Aquel lugar le resultó familiar. Se asomó al precipicio para cerciorarse y, en efecto, tuvo la repentina certeza de que se hallaba en un puente natural de roca sobre el océano, en la costa agreste de Portugal. A orillas de Cascais, concretamente. Varios metros por debajo de ellos las olas embravecidas rompían contra el ojo del puente, una entrada medio sumergida que daba paso a una caldera de rocas, el vestigio de lo que antaño fuera una caverna. –Éste es el lugar que los portugueses llamáis Boca del Infierno –dijo Crowley–. Sí, lo recuerdo bien, estuve aquí antes. –Antes no, señor Crowley –se apresuró a puntualizar Pessoa–. Ahora. Su carta astral predice su venida, ¿quiere que se la muestre? Muy bien, conforme: ahora y no antes. Allí estaban los dos hombres, a la fresca, congregados en el equinoccio de otoño, encaramados a un mirador sobre el Atlántico. Eso es lo que contaba, eso era real. No un maldito sentimiento ni una conjetura, sino aire real en un lugar real. Cascais, el estruendo de las olas, la última puesta de sol del verano. Pessoa no transfiguraba a voluntad el espacio enarbolando su sombrero, esas cosas no suceden en el mundo de los adultos. Era más fácil achacar lo sucedido en las horas previas a una especie de trance, a un tránsito por la versión más cicatera del Plano Astral. Y ahora, allí, en aquel mismo momento, gracias a la injerencia del portugués, Crowley había despertado de un episodio de inconsciencia y volvía a afianzar, una vez más, los pies en el borde mismo del abismo. Sobrevolando el mar a baja altura, en dirección a la costa, el dirigible Graf Zeppelin LZ 127 culminaba para entonces el último tramo del trayecto Berlín-Lisboa. En un punto concreto del recorrido la majestuosa aeronave se interpuso entre el sol y Crowley, eclipsando parcialmente el fulgor del ocaso. Las pupilas de Crowley se dilataron ansiosas. ¿Y Anu? ¿Se dispondría a embarcar en el dirigible, de vuelta a Alemania? ¿Cómo, en el dirigible? Crowley recapacitó. ¡No, qué bobada! El coste de un pasaje era inasumible para ella. A duras penas alcanzaría a costearse un billete de tercera en un vapor herrumbroso, como el que les había traído a Portugal. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 499 Atanes Unas notas sobre Perplejidad –Debería estar aquí́ conmigo viendo esto. Qué boba. Estaba dispuesto a poner el mundo en sus manos –la indignación de Crowley menguó hasta caber en un suspiro–. Me ha abandonado en el peor momento. Ahora, justo ahora, cuando sobre mí se cierne una corriente de fuerza mágica, pesada, negra, silenciosa... –...como la bocaza abierta de Choronzon –remató Pessoa. Crowley le lanzó una mirada de soslayo, pasándose una mano por la cabeza afeitada como si alisase el recuerdo de su cabellera. Quizá no fuera un simple aficionado. Había algo turbador en la mirada un poco estrábica del portugués. Una atonía desasosegante refutada por una chispa extremadamente sutil de vivacidad, en virtud de la cual el carácter inexpresivo de su rostro adquiría una inquietante condición de máscara. Crowley supo entonces que se hallaba ante un fingidor profesional. A sus pies la Boca del Infierno seguía devolviendo chorros furiosos de espuma al océano. –Usted se piensa que me conoce –dijo, agarrando el sombrero que la ventisca amenazaba con arrebatarle. –Por supuesto. ¿Y quién no? Usted es una estrella –le respondió Pessoa, señalando la pitillera. Crowley se la entregó sin dejar de darle la espalda. –Todo hombre y toda mujer es una estrella. –¿Se la regaló ella? Es muy bonita –dijo Pessoa, abriendo la pitillera–. Muy bonita. Pero está vacía. Le conozco bien, Sr. Crowley. De otro modo no me hubiera atrevido a corregir su carta astral. Permítame –rebuscó en sus bolsillos y extrajo un papel doblado–. Permítame que se la muestre. –¡Qué va a saber de mí! –protestó Crowley–. He vivido cien vidas y solo he cosechado calumnias. Usted no puede conocerme. –Claro que sí –Pessoa desplegó la hoja–. Qué importa lo que digan los demás. Los poetas no tenemos biografía, sino obras, Sr. Crowley. –¿Obras? ¿Qué obras? –Crowley chasqueó la lengua y siguió hablando más para sí que para Pessoa– ¿Los poemas que nadie lee, mis invocaciones a dioses imaginarios? Suspiró, terriblemente cansado, deshaciendo entre los dedos el cigarrillo que no había encendido y viendo cómo el viento esparcía las briznas en el aire, de la misma forma que el paso del tiempo habría de esparcir, tal vez, el recuerdo de sus obras. En algún lugar había puesto por escrito que ni siquiera la destrucción del mundo significaría algo para un observador ubicado en las estrellas. Por ejemplo, en el sistema estelar de Sirio. Polvo, insignificancias. Astrónomos de Sirio. Por cierto, ¿dónde se había metido Anu? –Usted ha vivido su vida. No ha sido vivido por ella. No todos podemos presumir de algo así –insistió Pessoa. Notando que Crowley estaba ensimismado en sus pensamientos, se aproximó a él sigilosamente. Sostenía la hoja en una mano. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 500 Atanes Unas notas sobre Perplejidad –Soy un viejo ridículo –se lamentó Crowley, apretándose los labios para cerciorarse de que los dientes aún seguían en su sitio–. Enfermo, arruinado y solo. No tengo excusa, me lo he ganado. Pessoa miró la hoja y a Crowley alternativamente, y durante un pestañeo vaciló y se detuvo. –No sé por qué le confieso todo esto –añadió Crowley. Entonces Pessoa siguió acercándose, conduciendo su mano hacia la espalda de Crowley, quizá para tocarle el hombro y recordarle así su presencia. –Será mejor que me vaya –concluyó Crowley. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 501 Atanes Unas notas sobre Perplejidad Filmografia de Carlos Atanes Largometrajes 2024 2012 2010 2007 2004 2003 Alter Ego Film Project / Autofocus Gallino, the Chicken System Maximum Shame PROXIMA FAQ: Frequently Asked Questions Perdurabo (Where is Aleister Crowley?) Cortometrajes, documentales y otros 2017 2008 2008 2007 2002 2002 1999 1999 1999 1998 1997 1997 1996 1995 1993 1993 1992 1991 1991 1991 1991 1990 1990 1989 1989 1987 Romance bizarro Scream Queen CODEX ATANICUS (antología) Made in PROXIMA Manuel Meller, señor de Barcelona e-Nachiana Cyberspace Under Control Welcome to Spain Metaminds & Metabodies Die Sieben Hügel Rom's Salomé Borneo Morfing Tríptico (largometraje inacabado) La Metamorfosis de Franz Kafka El Tenor Mental El Parc La Muerte Els Peixos Argentats a la Peixera The Marvellous World of the Cucu Bird Romanzio in il sècolo ventuno Morir de calor Le descente à l'enfer d'un poète El garaje de los coches La Ira El hombre de las gafas oscuras Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 502 Atanes Unas notas sobre Perplejidad CARLOS ATANES es un prolífico cineasta y escritor español, reconocido por su enfoque transgresor y su incursión en el cine underground. Miembro de The Film-Makers’ Cooperative, fundada por figuras como Jonas Mekas y Andy Warhol, Atanes ha dejado una marca distintiva en la escena cultural contemporánea. Desde sus inicios en 1987, cuando comenzó a rodar cortometrajes de manera amateur, Atanes demostró una gran audacia creativa. Su primera incursión en el cine, El Meravellòs Món de l'Ocell Cúcù (1991), dejó entrever su singular visión cinematográfica. A lo largo de los años, ha explorado diversos géneros y formatos, desde cortometrajes estrambóticos hasta obras de ciencia ficción distópica. Atanes no se limita al cine; su incursión en el teatro ha sido igualmente impactante. Con obras como Un genio olvidado (Un rato en la vida de Charles Howard Hinton) y Antimateria, ha desafiado las convenciones teatrales, explorando temas que van desde la metafísica hasta la sátira social, desde la magia del caos hasta la exploración de dimensiones paralelas. CARLOS ATANES é um prolífico cineasta e escritor espanhol, reconhecido pela sua abordagem transgressora e a sua incursão no cinema underground. Como membro de The Film-Makers’ Cooperative, fundada por figuras como Jonas Mekas e Andy Warhol, Atanes deixou uma marca distinta na cena cultural contemporânea. Desde os seus primeiros passos em 1987, quando começou a fazer curtas-metragens amadoras, Atanes demonstrou grande audácia criativa. A sua primeira incursão no cinema, El Meravellòs Món de l'Ocell Cúcù (1991), insinuou a sua visão cinematográfica única. Ao longo dos anos, ele explorou diversos gêneros e formatos, desde curtasmetragens peculiares até obras de ficção científica distópica. Atanes não se limita ao cinema; a sua incursão no teatro tem sido igualmente impactante. Com obras como Un genio olvidado (Un rato en la vida de Charles Howard Hinton) e Antimateria, ele desafiou convenções teatrais, explorando temas que vão desde a metafísica até a sátira social, da magia do caos à exploração de dimensões paralelas. CARLOS ATANES is a prolific Spanish filmmaker and writer, recognized for his transgressive approach and his foray into underground cinema. As a member of The Film-Makers’ Cooperative, founded by figures like Jonas Mekas and Andy Warhol, Atanes has left a distinctive mark on the contemporary cultural scene. Since his beginnings in 1987, when he started making amateur short films, Atanes demonstrated great creative audacity. His first foray into cinema, El Meravellòs Món de l'Ocell Cúcù (1991), hinted at his unique cinematic vision. Over the years, he has explored various genres and formats, from quirky short films to dystopian science fiction works. Atanes is not limited to cinema; his foray into theater has been equally impactful. With works like Un genio olvidado (Un rato en la vida de Charles Howard Hinton) and Antimateria, he has challenged theatrical conventions, exploring themes ranging from metaphysics to social satire, from chaos magic to the exploration of parallel dimensions. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 503 !"#$%&'%(#)*+',#-(+.+&%/!" ! #$%&'"('")*+, (,"-,..,%./","0%+/* !!"#$%&'%(#)*+',#-(+.+&%/"# !"#$%&'$()*+,-$./$0#**#+*1$123$4+'1&$ !"#$"%&'%()#&'*%+",-"$./ 01&#2%03,'$&"// !"#"$%"&'()"$* "#$%&'(!)#''#*'$+!,*-.#/!0*1$/+!!"#$%&'%(#)*+',#-(+.+&%/+!2*%#1$+!3.*4(5 +*&,-. 61!-#'$/+!.1!-.*4(!7!.1!8#98(!8'$%:*8*;(!#!#1!8'<%:*8(!= $/-(!*%8#'17&*(!#%8'#!(!8#98(!$&$>8$&( #!(!'#:./8$&(!&#::#!>'(?#::(+!.1$!(@'$!A.8.'$5!B#:>'(;*&(!&#!$.8(%(1*$+!(!-.*4(!7!.1!$'8#A$?8(! ;#'@$/!C.#!('*#%8$!$!?'*$D4(!?*%#1$8(-'EA*?$+!1(/&$%&(F:#!G:!;*:H#:!&(:!&*;#':(: *%8#';#%*#%8#:5! 61@('$!?(%?#@*&(!>$'$!&#:$>$'#?#'!#1!>'(/!&(!I/1#+!(!-.*4(!-$%J$!;*&$!>'K>'*$!#1!>/$8$F A('1$:!&*-*8$*:!#!?(/#DH#:+!&#:$I$%&(!:.$!#A#1#'*&$&#5!6%C.$%8(!$/-.%:!&#A#%&#1!:.$!*%F ?/.:4(!%(!.%*;#':(!$'8L:8*?(+!(.8'(:!&#:8$?$1!:.$!A.%D4(!.8*/*8E'*$5 M!-.*4(!&#!!"#$%&'%(#)*+',# -(+.+&%/ #9#1>/*I?$!#::$!8'$%:*D4(+!$1$/-$1$%&(!%$''$8*;$!&'$1E8*?$!#!&(?.1#%8(!87?%*?(! >$'$!&#:&(@'$'F:#!#1!.1$!#9>#'*N%?*$!?*%#1$8(-'EI?$!?(1>/#8$5 0*1/2.%3& "#$%&'(!)#''#*'$+!,*-.#/!0*1$/+!!"#$%&'%(#)*+',#-(+.+&%/+!2*%#1$+!0?'*>85 45&6%"(6 O%!-#%#'$/+!$!:?'*>8!*:!$!8'$%:*8*;#!$%&!8'$%:*8*(%$/!8#98!= :(1#8J*%-!*%8#'1#&*$'P!@#8Q##%!8J#! $&$>8#&!8#98!$%&!8J#!'#:./8!(A!8J*:!>'(?#::+!$!A.8.'#!Q('R5!B#;(*&!(A!$.8(%(1P+!8J#!:?'*>8! :#';#:!$:!$!;#'@$/!$'8*A$?8!-.*&*%-!?*%#1$8*?!?'#$8*(%+!$&$>8*%-!8(!8J#!;*:*(%:!(A!;$'*(.:!:8$R#F J(/&#':5!SJ*/#!?(%?#*;#&!8(!A$&#!*%8(!8J#!I/1+!8J#!:?'*>8!-$*%:!*8:!(Q%!/*A#!*%!&*-*8$/!>/$8A('1:! $%&!?(//#?8*(%:+!?J$//#%-*%-!*8:!8'$%:*#%?#5!SJ*/#!:(1#!$&;(?$8#!A('!*8:!*%?/.:*(%!*%!8J#!$'8*:8*?! 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Partindo de um texto prévio – com existência autónoma – ou escrevendo um texto de raiz, os guionistas produzem um documento interno com uma finalidade prática e com diretrizes claras para toda uma equipa, que dele se serve de modos diferentes. O guião é escrito sendo imaginado como filme: que tipo de pessoa interpretaria um dado papel, como certo gesto seria filmado, que movimento de câmara daria conta desta ou daquela cena, como seria a montagem, e assim por diante. Correlativamente, cada interveniente num filme (do ator ao fotógrafo) será um leitor que procederá a uma “leitura egoísta do roteiro” procurando nele “o seu alimento [individual]” (CARRIÈRE e BONITZER, 1996: 11), já que a leitura do guião na íntegra só interessa(va), na maior parte dos casos, ao diretor cinematográfico. Portanto, em princípio, o guião é um objeto estranho à publicação, espécie de “planta baixa”, i.e., blue printing, destinado a transformar-se no filme projetado e a ser esquecido. Como sintetizam Jean-Paul CARRIÈRE e Pascal BONITZER, no supracitado Prática do Roteiro Cinematográfico, um roteiro é algo passageiro: “não é concebido para perdurar, mas para se apagar, para tornar-se outro” (1996: 11). Poderíamos dizer que aquilo que define o guião é a sua função utilitária (que preside à sua génese), a transitividade e a efemeridade. Uma vez realizado o filme, ele está condenado ao desaparecimento (lixo ou espólios). Ou estava. Atualmente, existem sites que disponibilizam guiões para aprendizes de cinema e para leitores heterogéneos movidos pela curiosidade.1 Outros há que, por fetichismo, os colecionam. Mas, a autonomia de um guião preservado é relativa; separado da curta ou longametragem a que deu origem, paira sobre ele o fantasma da sua produção – mesmo quando o filme nem sequer se concretizou. Há que contemplar, no entanto, debates mais recentes que procedem a uma revisão deste entendimento do guião, com propostas que vão no sentido da sua inclusão no universo artístico. De imediato, diríamos que na história da arte encontramos justificação mais do que suficiente para esta posição: desde a prática da intermedialidade ao longo dos séculos (com adaptações incontáveis de peças do teatro grego) à arte concetual (que pode sobrevalorizar a ideia em detrimento do produto final). De entre os defensores da tese do guião como arte, sobressai o nome de Ted Nanniceli, ensaísta e professor de Comunicação e Artes na Universidade de Queensland. Autor de inúmeros estudos sobre meios audiovisuais, NANNICELI (2021) invectiva os investigadores a levar a Vejam-se, a título de exemplo, os sites: h\ps://imsdb.com/; h\ps://www.simplyscripts.com/; ou também h\p://www.roteirodecinema.com.br/index.htm 1 Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 505 Sampaio & Almeida Um Jantar Muito Original cabo uma reflexão filosófica sobre a ontologia do guião à luz de novas ferramentas concetuais e de novas formas de arte. Não é, porém, o estatuto de obra de arte literária que justifica a publicação do guião elaborado por Leandro Ferreira e Miguel Simal. De entre as várias razões (para além da curiosidade de leitores de guiões), destacamos quatro, interligadas: i) O grau de desenvolvimento e de finalização deste texto; ii) O modo como ele ilustra a tese de que o guionista é, em primeiro lugar, um intérprete do texto que adapta; iii) O gesto de dessacralização do nome e autor Fernando Pessoa / Alexander Search, reavivando, desejavelmente, o interesse pela ficção pessoana; iv) o contributo que a sua publicação pode dar a uma reflexão sobre a condição ontológica do guião e sobre a elaboração e aperfeiçoamento de uma tipologia do guião. Não se espera de um guião um caráter tão definitivo, com notações tão pormenorizadas e específicas como o que este evidencia – embora, há que reconhecê-lo, haja todo o tipo de guiões, com variações que vão da extensão ao estilo.2 Em muitos casos, o guião, sem que se confunda com uma sinopse, é um texto de caráter bem esquemático, que privilegia as construções paratáticas e as frases nominais. É também, com frequência, um texto aberto; um qualquer leitor terá eventualmente vontade de intervir, de fazer sugestões. O guião de Um Jantar Muito Original está já muito próximo de devir filme, pois apresenta indicações ou marcações muito detalhadas e amadurecidas, visando a realização cinematográfica; planos, cortes, junções tudo é elencado com rigor e clareza.3 Os guionistas fazem uso de ferramentas que são da ordem da realização, como sejam a montagem, a decupagem e a movimentação da câmara. Estamos perante um guião no seu último estágio de acabamento – com os guionistas a registarem alternativas que nos levam proleticamente para a filmagem. Vejamos como isso acontece logo na parte inicial do guião. A abertura do filme, segundo o guião, divide-se em três cenas. A primeira, começa a nível do chão, numa praça com um imponente prédio à frente. No segundo andar deste edifício, com as janelas dando para a rua, fica o salão de jantar da Sociedade Gastronómica de Lisboa. Ouve-se um grito vindo de lá e o texto conduz-nos (“corta”) para dentro do salão. Prositt, o presidente da Sociedade, está a ser carregado pelos outros membros em direção à janela. Quando é enfim lançado através dela, a sequência assume uma terceira posição: está novamente do lado de fora, mas agora à altura da janela, de onde pode focalizar Prositt sendo lançado através do vidro. O guião propõe uma outra maneira de se resolver a sequência em um único momento. “GERAL – UMA CARRUAGEM ATRAVESSA O QUADRO DIREITA ESQUERDA. COCHEIRO Poder-se-ia ilustrar a questão do estilo – aparentemente alheia ao guião em geral – com um guião de adaptação do romance White Jazz, de James Ellroy, por parte dos irmãos Ma\hew Michael Carnahan e Joe Carnahan, que tem todas as linhas de ação escritas na primeira pessoa (ou seja, com narrador autodiegético). 2 Este dado é reforçado pela data inserida na capa: novembro de 2020. E o filme foi exibido pela primeira vez a 5 de março de 2021. 3 Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 506 Sampaio & Almeida Um Jantar Muito Original SÓ. A CARRUAGEM SAI, GRITOS, PAN. ASCENDENTE RÁPIDA PARA A JANELA, IDEALMENTE CONJUGADA COM MOVIMENTO DE GRUA DE APROXIMAÇÃO À JANELA. NOTA: ESTE PLANO, CASO O PROSITT SAIA PELA JANELA, POUPAVA AS CENAS 2 E 3”. E, de fato, na altura da filmagem, o realizador escolheu fazer a sequência de abertura com apenas um plano, que começa na praça, tem o movimento ascendente em direção a janela – e onde vemos alguns elementos do grupo a levar Prosil em direção à janela semiaberta. Um traço interessante do guião de Um Jantar Muito Original reside na sua articulação fortemente coesa com um documento expressamente técnico. Ou seja, surge no corpo do texto uma narração dramática, que relata a história do filme através de cenas, descrições de ação e diálogos; mas corre, em paralelo, bem demarcado a cor azul, um documento técnico voltado para a rodagem do filme, com a decupagem de todas as cenas. Cada cena é, portanto, fatiada (“quebrada”) numa lista de planos: sabemos exatamente qual o enquadramento previsto (Geral; Grande Plano; Americano; Conjunto), se haverá movimento (Travelling; Panorâmicas; Movimento de Grua), se a câmara estará angulada (há muitos planos picados no filme) e quais personagens serão focalizados na ação. Qualquer leitor se aperceberá deste traço de finalização, ao deparar-se com a seleção dos temas musicais: em vez de indicações mais genéricas, com uma playlist contendo nomes de música clássica (“Beethoven” e outros) – pois um dos objetivos desta escolha é acentuar o elitismo das personagens e o seu estatuto de classe privilegiada – temos já uma especificação das peças. Compreende-se com essa seleção que a banda sonora não visa apenas a criação de efeitos, de emoções e sensações; é parte constitutiva da diegese (como se fosse uma narrativa paralela), aludindo a histórias de traição, de violência e de lutas de poder – que reforçam o contexto históricopolítico do conto de Pessoa. A leitura do guião de A Very Original Dinner e o visionamento do telefilme permitem-nos perceber de forma clara como um roteiro se vai desenvolvendo em direção a uma forma definitiva de filme. Assim, ao lermos este guião, podemos colocar lado a lado duas versões diferentes da mesma cena. E, ao veros o filme, se ele não corresponder à decupagem, teremos uma terceira. Termos acesso ao guião, neste caso, nos coloca num espaço privilegiado e estimulante, a partir do qual compreendemos melhor as engrenagens da construção de um filme. O guião de Um Jantar Muito Original faz justiça à tese de que um guião pode ser a primeira forma de um filme. O facto de ele ter sido o produto de um trabalho de colaboração a quatro mãos e de o realizador ser coguionista explicará em parte o grau de acabamento e de aperfeiçoamento deste guião. Por outro lado, o guião de Leandro Ferreira e Miguel Simal põe bem em evidência o modo como um guionista – quando parte de um texto prévio – se transforma em intérprete desse texto, encarado como um palimpsesto ou um objeto-leque (e o conto de Pessoa é-o sem dúvida). Decidida a transplantação da história de “A Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 507 Sampaio & Almeida Um Jantar Muito Original Very Original Dinner” de Berlim para Lisboa, a data de 1907 que, no conto de Pessoa, figura logo abaixo do título, será determinante para a domesticação (no aportuguesamento) da história e para uma leitura politizada da narrativa pessoana.4 Os guionistas recriam, a partir de dados extrínsecos ao conto, a atmosfera política de instabilidade e de conspiração que precede a instauração da República e adicionam um enredo que opõe Republicanos a Monárquicos, sem que a oposição entre gastrónomos seja anulada ou substituída. Pelo contrário, o guião permite perceber que se imagina um filme que apela às sensações do espectador, aguçando todos os sentidos, do visual ao acústico, passando, naturalmente, pelo gustativo. Como intérpretes que textualizam as suas interpretações, Leandro Ferreira e Miguel Simal tornam-se produtores de texto (deixando entrever o prazer da escrita e do engendrar estórias a partir do conto de Pessoa, que também se cita de forma a ter aqui uma sobrevida): preenchem as elipses, dilatam as cenas pessoanas sumariamente descritas, desdobram os espaços físicos, multiplicam os diálogos, criam na figura do respeitável General uma figura alcoólica e patética, acrescentam mulheres ao enredo, episódios amorosos e familiares, e duplicam a prática do canibalismo. Procuram criar uma história dinâmica, com ação, diluindo o estatismo, a incerteza e o mistério que dominam o conto “A Very Original Dinner”. As cenas amorosas, que Pessoa decerto reprovaria (e basta lembrar que o seu gosto por novelas policiais derivava grandemente da ausência de questões de ordem passional), provam a independência dos guionistas e a diferença de linguagens e de códigos em causa. Nem este episódio nem as cenas em que pai e filha se enfrentam têm uma função decorativa ou dilatória da ação. Eles dão um tom de normalidade (numa atmosfera de conspirações no masculino) a um grupo de pessoas da sociedade lisboeta, ao mesmo tempo que desviam a atenção da figura de Prositt (conotada com a loucura e o mistério) para a figura empática do jovem enamorado Duarte Rodrigues. Mais do que o efeito de surpresa final, uma mensagem parece clara (e está contida no conto de Pessoa): a violência extrema pode estar em qualquer lado e as lutas de poder engendram monstros. Apreende-se uma vertente satírica no tema da gastronomia e do canibalismo – parecendo surgir este também como paródia da banalização deste tópico no cinema e nas séries televisivas das últimas décadas. A unidade e o fio ténue do também ténue enredo do breve conto pessoano dão lugar a várias linhas narrativas que os guionistas ambiciosamente entretecem, visando um telefilme com a duração de 45 minutos: A Arte, a Originalidade, a Gastronomia, a Política, a Violência. Talvez decorra desse emaranhado de fios um excesso de explicitude e de informação nos diálogos e nas cenas descritas (numa sobreorientação do olhar do espectador). Numa primeira leitura, a adaptação (“livre” – diz-se no guião, mas não no filme) que apreendemos no guião é um texto bem Cf. neste número da revista, estudo de Maria de Lurdes Sampaio sobre o filme de Leandro Ferreira e Miguel Simal, intitulado “Um Jantar Muito Original: Recontextualização e Amplificação”. 4 Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 508 Sampaio & Almeida Um Jantar Muito Original distinto do conto pessoano – e até ao nível quantitativo, de massa textual, se apreende essa diferença. Mas o guião coloca-nos perante leitores competentes do conto, que vão além das máscaras pessoanas e dos processos de camuflagem presentes em “A Very Original Dinner”. É possível que nesta interpretação (que põe em alto relevo a matéria histórico-política) se tenha resgatado uma textualidade subjacente ao conto de Pessoa / Search. Afinal, como escreve Linda HUTCHEON: “In the workings of the human imagination, adaptation is the norm, not the exception” (2013: 177). Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 509 Sampaio & Almeida Um Jantar Muito Original ANEXO Um Jantar Muito Original Adaptação livre do conto homónimo de Fernando Pessoa sob o pseudónimo de Alexander Search Argumento: Miguel Simal & Leandro Ferreira Realização: Leandro Ferreira Versão: 22 de Novembro de 2020 1 EXT. SOCIEDADE GASTRONÓMICA NOITE Legenda sobre fundo negro: PORTUGAL 1907. AS IDEIAS REPUBLICANAS VÃO-SE IMPONDO E AS INSTITUIÇÕES MONÁRQUICAS COMEÇAM A SER ABALADAS. MAS A SOCIEDADE GASTRONÓMICA DE LISBOA RESISTE E APARENTEMENTE É UM DOS MAIS SÓLIDOS BASTIÕES DA MONARQUIA. É uma breve imagem acompanhada pelo concerto para violino Nº2 de Shostakovich, para em seguida passarmos para uma típica praceta portuguesa. Estamos em frente do seu prédio mais imponente. É uma noite fria e a rua vazia proporciona um ambiente calmo, que é subitamente interrompido por um conjunto de GRITOS oriundos do segundo andar do prédio, o único que tem a luz acesa. 1. GERAL – UMA CARRUAGEM ATRAVESSA O QUADRO DIREITA ESQUERDA. COCHEIRO SÓ. A CARRUAGEM SAI, GRITOS, PAN. ASCENDENTE RÁPIDA PARA A JANELA IDEALMENTE CONJUGADA COM MOVIMENTO DE GRUA DE APROXIMAÇÃO À JANELA. NOTA: ESTE PLANO, CASO O PROSITT SAIA PELA JANELA, POUPAVA AS CENAS 2 E 3. 2 INT. SALÃO DE JANTAR DA SOCIEDADE GASTRONÓMICA NOITE Num ambiente tumultuoso, UM GRUPO DE HOMENS, perto da histeria, carrega em Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) grande algazarra um corpo ensanguentado em direcção à janela. A sala, decorada de forma luxuosa e marcada por uma enorme mesa central rectangular, encontra-se num estado caótico, com loiça partida e cadeiras no chão, sinais de uma luta recente. O homem, PROSITT (55 anos), que é carregado pelo grupo, apesar dos maus-tratos, não pára de rir, uma gargalhada louca que se sobrepõe às injúrias intensas do bando. 1. GERAL COM TODA A ACÇÃO DE PROSITT A SER CARREGADO – MASTER 1 2. PICADO COM A MESMA ACÇÃO, MAS MAIS CERRADO. SAEM PELA PARTE DE BAIXO DO QUADRO – MASTER 2 3. APROXIMADO/GP PROSITT – ACOMPANHAMENTO DO MOVIMENTO – GIMBAL OU STEADY CAM 4. + DOS HOMENS QUE CARREGAM PROSITT, COM DESTAQUE PARA PERES e XAVIER, IDÊNTICO AO PLANO DE PROSITT, SEMPRE EM MOVIMENTO 5. CONJUNTO – ACÇÃO, COM TODOS DE COSTAS, A JANELA AO FUNDO. PROSITT, TODO ENSANGUENTADO É ARREMESSADO CONTRA A JANELA, QUE ESTILHAÇA POR TODO O LADO. PROSITT NÃO PÁRA DE RIR. DEVERÁ SER FEITO EM DUAS ESCALAS 3 INT/EXT. JANELA DA SOCIEDADE GASTRONÓMICA NOITE 510 Sampaio & Almeida Um Jantar Muito Original O corpo que víramos a ser carregado dentro da casa de jantar é projectado selvaticamente pela janela. Vêem-se os estilhaços de madeira e vidro partido. PROSITT não pára de rir. Quando o seu corpo se encontra a meio da janela, a imagem congela. 1. GP PROSITT A SAIR PELA JANELA 2. CONJUNTO – CORPO DE PROSITT SAI PELA JANELA. FREEZE. DUARTE RODRIGUES (OFF) Perdoem-me! Mas não foi assim que aconteceu, talvez seja melhor recuarmos até ao início. FADE OUT 4 INT. SALÃO DE JANTAR DA SOCIEDADE GASTRONÓMICA NOITE 11 HOMENS estão presentes no jantar anual da Sociedade Gastronómica de Lisboa. O ambiente é bastante requintado. excêntrico, facto visível através das roupas usadas pelas 3 EMPREGADAS, um misto de espartilhos “Moulin Rouge” com Carnaval de Veneza, que servem à mesa, sempre sorridentes e sem se fazerem rogadas para agradar aos homens que vão servindo. A mesa onde estão sentados, cinco de cada lado e o presidente ao centro, é comprida e rectangular. O jantar já se encontra numa fase adiantada. Os comensais conversam entre si. O ambiente é efusivo, e apenas o homem à cabeceira, o Presidente PROSITT, parece estar distante. DUARTE RODRIGUES (discurso directo) Estamos na quingentésima reunião da Sociedade Gastronómica de Lisboa, presidida pelo distinto gastrónomo, o Professor Sebastião Prosi\. Um habitual e extravagante hino aos mais diversos prazeres da vida. Este ano, o grande tema de debate é aquilo a que decidimos chamar “O Problema”. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 1. APROXIMADO DUARTE, SENTADO À MESA, FALA PARA A CÂMARA, COMO SE ESTIVESSE SOZINHO NA SALA, FUNDO DESFOCADO. DUAS ESCALAS.NO INÍCIO DIZ A RÉPLICA DA CENA 3: “Perdoem-me! Mas não foi assim que aconteceu, talvez seja melhor recuarmos até ao início” 2. PROSITT, SENTADO À CABECEIRA, PARA INTERCALAR NO PLANO DE DUARTE 3. DUARTE DE NOVO. COMEÇA A OUVIRSE A VOZ DO GENERAL. DUARTE OLHA NA DIRECÇÃO DELE.COM A VOZ DO GENERAL COMEÇA A OUVIR-SE O AMBIENTE E ENTRAMOS NO REAL. ESTE PLANO É MESMO (1), MAS FOTOGRAFADO DE FORMA REALISTA. 4. CONJUNTO FRONTAL, COM PROSITT À CABECEIRA. GENERAL EM PÉ FALA E TODA A ACÇÃO DA CENA. GIRLS SERVEM À MESA - MASTER Um dos convivas, ao meio na fila do lado esquerdo do Presidente, em pé, fala de forma arrastada, denunciando um acentuado estado de embriaguez, num discurso que se percebe já vir longo. É o GENERAL CAEIRO (70 anos). GENERAL CAEIRO ...o problema? O problema, é muito mais do que um simples problema! E por isso não nos devemos restringir ao que ele é, mas sim ao que ele representa! Não consideram que o marasmo em que se encontra a arte gastronómica é bem mais difícil de resolver do que a larica desses republicanos peralvilhos que se atiram aos bons costumes da tradição monárquica? É preciso mais... originalidade, é preciso... mais... (olha para o copo) vinho! 511 Sampaio & Almeida 5. FRONTAL GENERAL QUE DISCURSA PARA TODOS – DUAS ESCALAS COM TODO O DIÁLOGO. NA MAIS ABERTA COM ALEXANDRE EM CAMPO O primeiro na fila à direita de PROSITT é o Dr. DUARTE RODRIGUES (28 anos). Ao seu lado, XAVIER (30 anos). Os dois segredam. XAVIER (divertido) O general hoje está todo entornado! DUARTE Não mais do que o costume. 6. XAVIER E DUARTE, FRONTAL COM TODO O DIÁLOGO ENTRE OS DOIS São interrompidos pelo General, que eleva a voz. GENERAL CAEIRO O-RI-GI-NA-LI-DA-DE! Compreendem? É o que é preciso! Um Jantar Muito Original Gouveia, e que sai em seu auxílio, quando percebe que o estado de embriaguez do GENERAL o faz perder o fio à meada. Sentado à mesa está ainda o PROFESSOR CAMPOS (50 anos), entre o GENERAL CAEIRO e o Engenheiro PERES. O CAPITÃO LENCASTRE (40 anos), senta-se no extremo da fila à direita de PROSITT e o ARQUITECTO MAIA (55 anos) à sua frente. 7. ENGENHEIRO PERES DEBITA TUDO – DUAS ESCALAS. NA MAIS ABERTA COM CAMPOS (MESMA RECEITA PARA OS OUTROS, COM REACÇÕES EM TODOS OS PLANOS) 8. DR. BAYARD 9. ENGENHEIRO GOUVEIA 10. XAVIER SOZINHO. A OUTRA ESCALA É COM DUARTE DUARTE volta a segredar para Xavier. 11. ALEXANDRE. NA ESCALA MAIS ABERTA COM O ARQUITECTO MAIA EM CAMPO DUARTE Original seria, isso sim, vê-lo sóbrio nestas condições! 12.(3) DUARTE SOZINHO, MAS DIFERENTE DO PLANO INICIAL EM QUE FALA PARA A CÂMARA XAVIER Duarte, não se esqueça que ele vai ser seu sogro... 13. PROSITT DUARTE e XAVIER trocam um sorriso. O GENERAL senta-se e o Engenheiro PERES (55 anos), o primeiro à esquerda de PROSITT, levanta-se por sua vez e, exibindo um jornal, toma a palavra. O Dr. BAYARD (50 anos), sentado na fila do lado direito de PROSITT, em frente ao GENERAL CAEIRO, e o Engenheiro GOUVEIA (45 nos), sentado na fila à direita do Presidente, ao lado do Dr. BAYARD, vão intervindo, enquanto o Engenheiro PERES fala, mas mantêm-se sentados. Assim como XAVIER, DUARTE e o PROFESSOR ALEXANDRE (60 anos), sentado à esquerda do GENERAL CAEIRO, entre este e o Engenheiro Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 14. CONJUNTO PICADO – PROSITT DE COSTAS, COM TODOS A OUVIR O SEU DISCURSO (SALTO DE EIXO, EM RELAÇÃO AO 4. MASTER) ENG. PERES Este artigo da “Gastronómica do Porto”, ou “o Problema”, como lhe chamam, é só mais um ataque aos bons costumes e à excelência da nossa sociedade. DR. BAYARD Um ultraje! Isto é gente que se intitula republicana. 512 Sampaio & Almeida ENG. GOUVEIA Efetivamente. E ainda ousam dizer Que o nosso presidente é uma fraude... XAVIER É um texto panfletário, mas pelo caminho que as coisas tomam, outros se seguirão. ENG. GOUVEIA Depois da conquista da Câmara do Porto por essa gentalha republicana, também me parece inevitável.... A menos que alguém os trave. XAVIER Escrevam o que vos digo, porque não será o nosso Primeiro João Franco nem o Rei que os conseguirão parar. O GENERAL intervém, mas mostra-se perdido na conversa. O Professor ALEXANDRE logo o ajuda. Um Jantar Muito Original se alargou a todos. O Engenheiro PERES senta-se e DUARTE intervém de imediato. DUARTE São tempos diferentes, hoje em dia as instituições já são questionadas. Todos estamos sujeitos a escrutínio. Até o Rei! PROFESSOR ALEXANDRE Cuidado meu caro, por menos já foram bons homens parar à cadeia! DUARTE O nosso presidente sabe que estou longe de ser um revoltoso! DUARTE, mantendo-se sentado, brinda a PROSITT, que continua sem prestar grande atenção à conversa, mas responde ao brinde. O Engenheiro GOUVEIA dirige-se de forma ostensiva a PROSITT. GENERAL CAEIRO Então, se a Coroa está em perigo, trata-se de uma declaração de Guerra!!! ENG. GOUVEIA Não diz nada, Prosi\? Na sua qualidade de Presidente, não diz nada? O assunto não o incomoda? PROFESSOR ALEXANDRE Que precisa de uma desforra imediata, porque, isto há uns anos não acontecia! DUARTE (secundando o Engenheiro Gouveia) Sim, afinal foi o mais visado no artigo. DUARTE Está a questionar a liderança, Alexandre? PROFESSOR ALEXANDRE Não foi isso que eu disse, lá está você... ENGENHEIRO PERES Ninguém teria coragem de nos questionar há dez, ou quinze anos atrás. Permitam que me sente, uma vez que a conversa Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) PROSITT levanta-se lentamente, mantendo o ar misterioso. Em toda a sua conversa nunca perde o sorriso enigmático. Pega no jornal que o Engenheiro Peres acabara de exibir. PROSITT O artigo deste pasquim inútil, francamente, só merece o meu desprezo e os seus autores terão a resposta adequada. E para o provar, quero fazer-lhes uma proposta, um convite… Estão todos 513 Sampaio & Almeida a dar-me atenção? PROSITT bate com uma colher num copo, a pedir atenção. Toda a sala entra em silêncio. PROSITT (CONT'D) ...Senhores, vou convidá-los para um jantar. Declaro que nunca foram a nenhum como este. O meu convite é simultaneamente um desafio. PROSITT faz uma pausa para beber vinho, estuda a sala, a antecipar os seus pares. PROSITT (CONT'D) O desafio está contido no facto de que de hoje a dez dias darei uma nova espécie de refeição... Bem, usando as palavras do meu caro General... Um jantar muito original! Considerem-se convidados! Inicia-se um burburinho entre todos, que se transforma num tumulto de perguntas. ENGENHEIRO PERES Que espécie de jantar? DOUTOR BAYARD A que género de desafio se refere? PROSITT ganha uma nova disposição. PROSITT Na altura devida ficarão a saber o que vos espera. Prometo-vos que vai ser uma novidade absoluta! Todos aplaudem PROSITT, com gritos de incentivo. PROSITT conclui a sua intervenção. PROSITT (CONT'D) A originalidade do jantar... Não está no que vai parecer que está a ser servido nos vossos pratos, Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) Um Jantar Muito Original mas naquilo que significa, no que contém. O repto que vos lanço, é que, depois de terminado, me digam em que medida ele é original. Garanto que ninguém vai adivinhar... Mas terminemos o assunto, afinal, ainda nos falta a sobremesa! PROSITT enfatiza com um estudado sorriso a sua última frase e faz um gesto largo, num sinal que indica a entrada em cena de cinco mulheres jovens, vestidas de forma idêntica às EMPREGADAS, e que estão ali para agradar aos homens. Duas delas dirigem-se logo para PROSITT, rodeando-o provocatoriamente. Ele olha-as, como quem faz uma escolha e opta por uma delas, enquanto a outra vai para o lado esquerdo da mesa, ficando duas de cada lado e uma com PROSITT. 15. GERAL PICADO, COM AS DUAS ÚLTIMAS FALAS DE PROSITT E TODA A ACÇÃO, ANTES E DEPOIS DA ENTRADA DAS GIRLS ou (13) PROSITT – A CÂMARA AFASTA-SE E SOBE ATÉ FICAR EM GERAL PICADO. 5 INT. LOBBY DA SOCIEDADE GASTRONÓMICA NOITE Os convidados preparam-se para abandonar o local do banquete. A grande maioria ainda se encontra no hall perto do bengaleiro. O Engenheiro GOUVEIA tenta partilhar as suas dúvidas, mas também o seu entusiasmo com DUARTE e XAVIER. 1. AMERICANO/MÉDIO – A MENINA DO BENGALEIRO ENTREGA OS SOBRETUDOS AO ENG. GOUVEIA, DUARTE E XAVIER. A CÂMARA RECUA ACOMPANHANDO O MOVIMENTO DELA E DESCOBRINDO OS TRÊS HOMENS, COM A FRASE DE GOUVEIA MEIA EM OFF. FICAM OS TRÊS EM CAMPO, QUE SE VÃO APERALTANDO. DE- 514 Sampaio & Almeida POIS PROSITT ENTRA EM CAMPO E DIRIGE-SE AO BENGALEIRO ENQUANTO FALA – A CÂMARA RECUA ENQUADRANDO PROSITT SOBRE A DIREITA. MASTER 1 ATÉ SAÍDA DE PROSITT E GOUVEIA 2. DUARTE EM APROXIMADO. EVENTUALMENTE COM AMORCE DOS OUTROS, CONFORME O DIÁLOGO 3. GOUVEIA, IDEM 4. XAVIER IDEM 5. PROSITT DESDE QUE ENTRA ATÉ SAIR. AÍ GOUVEIA ENTRA EM CAMPO, POSSIVELMENTE PELA DIREITA ENGENHEIRO GOUVEIA Então o que acharam do convite? DUARTE Acima de tudo achei-o misterioso. Prosi\ nem parecia ele, costuma ser menos enigmático e estranhei toda aquela euforia. ENGENHEIRO GOUVEIA É natural que tenha uma reacção destas, atacaram-no forte no artigo, nem nós o poupámos hoje ao jantar. XAVIER O Prosi\ é um homem orgulhoso na sua arte. O que será que está a preparar? ENGENHEIRO GOUVEIA Talvez carne de algum animal exótico? DUARTE Duvido. O nosso presidente não gosta de se repetir... E ainda temos problemas com a sociedade Zoológica à conta do jantar em Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) Um Jantar Muito Original que lhes roubamos as zebras! Os três homens riem-se. O grupo é interrompido por PROSITT. PROSITT Vejo que continuam a falar do meu convite. Só para vos aguçar a curiosidade, vou dizer-vos que em relação aos vis e desprezíveis autores do artigo, já está tudo tratado. XAVIER Vai-lhes responder num texto... Talvez a relatar o jantar que tem em mente? PROSITT A resposta não será por escrito... Eles vão sentir na pele o jantar que preparo! ENG. GOUVEIA Está a pensar convidá-los? Não me parece que eles aceitem... As dúvidas dos seus companheiros só aguçam o sentido de diversão de PROSITT. PROSITT (ironicamente divertido) Talvez mostrem alguma resistência, mas garanto-vos que faz parte dos meus planos a sua presença, aliás o jantar não seria o mesmo sem eles! DUARTE Intriga-me este seu desafio Prosi\, do modo como fala dele parece-me que vamos ter uma aventura sem igual... PROSITT Não duvide. Em especial para si, meu bom Duarte! DUARTE 515 Sampaio & Almeida Encontramo-nos dentro de quanto tempo? Dez dias? PROSITT Ou talvez antes, nunca se sabe... Agora que a aventura começou! Meus amigos, desejo-vos uma boa noite! PROSITT abandona a sala, seguido pelo Engenheiro Gouveia. FIM MASTER 1 O Dr. BAYARD aproxima-se de Duarte e Xavier, falando para Duarte. Um Jantar Muito Original atiça o fogo e mantém-se em pé junto da lareira. Fica uma cadeira vazia. O GENERAL está numa fase mais soturna da sua bebedeira. 1. CONJUNTO – GENERAL E PERES, SENTADOS, REAGEM À APROXIMAÇÃO DE DUARTE E BAYARD. PAN LATERAL COM TRAVELLING ATRÁS ATÉ FICAREM OS QUATRO EM CAMPO. BAYARD VAI PARA A LAREIRA, PEGA NO ATIÇADOR E FAZ UM COMENTÁRIO: “NÃO PODEMOS DEIXAR MORRER A CHAMA”, RI DA PRÓPRIA PIADA E COMEÇA A ATIÇAR A LAREIRA. MASTER 6. DUARTE E XAVIER FICAM A VER PROSITT E GOUVEIA SAIR. XAVIER FAZ MENÇÃO DE TAMBÉM SAIR, MAS DUARTE FAZ-LHE UM SINAL PARA DAR UM TEMPO. NESSE INSTANTE VOLTAM-SE, REAGINDO À VOZ DO DR. BAYARD 2. GENERAL CAEIRO, COM TODO O DIÁLOGO. DUAS ESCALAS. NO FINAL FAZ UM SINAL AO DR. BAYARD 7. BAYARD AVANÇA PARA ELES, A CÂMARA RECUA ATÉ ENQUADRAR OS TRÊS – MASTER E ÚNICO ATÉ FIM DA CENA. NO FINAL XAVIER SAI PELA ESQUERDA E DUARTE E BAYARD AFASTAM-SE DE COSTAS PARA A CÂMARA – PAN ESQ./DIREITA, EM PRINCÍPIO 4. ENGENHEIRO PERES, COM TODO O DIÁLOGO. DUAS ESCALAS DR. BAYARD Preciso que me acompanhe, é o General... Ele pede a sua presença. XAVIER Meu caro amigo, deixo-o com a velha guarda. XAVIER sai e DUARTE segue o Dr. Bayard. 6 INT. SALA DE FUMO SOCIEDADE GASTRONÓMICA NOITE A sala de fumo está mal iluminada. Sentados junto a uma lareira, a fumar charuto, estão o GENERAL CAEIRO e o ENGENHEIRO PERES. O Dr. BAYARD caminha até à lareira, Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 3. DUARTE, COM TODO O DIÁLOGO. DUAS ESCALAS 5. BAYARD EM PÉ JUNTO DA LAREIRA, COM TODO O DIÁLOGO. DUAS ESCALAS. NO FINAL, CORRESPONDENDO AO SINAL DO GENERAL, ATRAVESSA O CAMPO DIREITA/ESQUERDA E SAI. GENERAL CAEIRO Sente-se, meu bom rapaz. DUARTE hesita antes de se sentar. O general insiste e ele acede. DUARTE (sentando-se) O Dr. Bayard disse-me que o General não se estava a sentir bem. GENERAL CAEIRO Obviamente. Quem se sente bem perante aquilo que estamos a vivenciar? DUARTE 516 Sampaio & Almeida É só um jantar. E é só um artigo, General. GENERAL CAEIRO E daqui a nada está a dizer que é só uma monarquia, só um império... Eu ouço-o a dizer coisas em que sei que não acredita. Tem todo um passado atrás de si. ENGENHEIRO PERES E é por isso que lhe queremos fazer uma proposta. DUARTE O Engenheiro não acha que já tivemos emoção suficiente para uma noite? DR. BAYARD A nossa sociedade gastronómica é um dos pilares desta nação. Não concorda? DUARTE Não descuro a sua importância, nem a influência que os seus membros têm no destino deste país. ENGENHEIRO PERES (num tom condescendente) Nós sabemos as suas inclinações, mas se os reis, as dinastias, os governos, são passageiros, acredite que se vier a república o caos vai ser ainda maior, porque vão ser sete cães a um osso em busca do poder. Mas a nossa sociedade já provou que resiste a tudo e assim vai continuar. GENERAL CAEIRO Nada nem ninguém derruba uma tradição de cinco séculos. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) Um Jantar Muito Original DR. BAYARD No entanto, cometemos um erro na altura em que aceitámos o Prosi\. E outro quando o deixámos subir a presidente... GENERAL CAEIRO Um emergente que fez fortuna nas colónias. De que maneira, quem o sabe? Vocês não estiveram lá, não viram coisas que eu vi... DUARTE Esta conversa tem um propósito? O homem é um génio gastronómico. ENGENHEIRO PERES Inegável. Mas os ciclos terminam. O que esta sociedade precisa neste momento não é de truques de circo ou guerras com o exterior. DR. BAYARD Precisamos de estabilidade para os tempos que se avizinham. Uma nova liderança, que nos traga sangue novo e que junte originalidade à tradição. ENGENHEIRO PERES O Duarte tem ambições. Estamos a propor que pense num jantar que bata em tudo a originalidade a que o Prosi\ se propõe. DUARTE Estão a propor uma traição ao nosso presidente...? GENERAL CAEIRO O diabo para o Prosi\... é o único culpado da situação em que nos encontramos!... Pensamos em si, Duarte, porque política à parte, apreciamos o seu arrojo e sabemos que é digno da nossa confiança. Seria importante para mim... E para a minha filha, 517 Sampaio & Almeida estou certo. DUARTE hesita na resposta, não se querendo comprometer. Depois levanta-se, num movimento determinado. DUARTE Meus senhores, a noite vai longa... Encontramo-nos dentro de dez dias. Nessa altura, e após avaliarmos a prestação do nosso presidente, pensaremos no futuro da nossa sociedade...E agora, se me dão licença. ENGENHEIRO PERES Caro doutor, há toda uma tradição que não podemos deixar morrer… Contamos consigo. Um Jantar Muito Original fortuna do General. DUARTE responde com um sorriso condescendente ao sorriso matreiro do Dr. BAYARD, que o acompanha até à porta. Despedem-se de forma afável. DUARTE sai e o Dr. BAYARD volta para junto do General e do Engenheiro Peres. 7 INT. CASA GENERAL CAEIRO/QUARTO MADALENA DIA MADALENA (20 anos), de bom traço, elegante, jovial, está a ser vestida pela empregada, CLEMENTINA (23 anos). 1. MÉDIO DAS DUAS, COM TODA A ACÇÃO – MASTER DUARTE esboça um sorriso vago e faz menção de abandonar a sala. 2. GP MADALENA, COM TODA A ACÇÃO E DIÁLOGO (1). DUARTE SAI LADO ESQUERDO. FIM MASTER 3. APROXIMADO MADALENA, COM TODA A ACÇÃO E DIÁLOGO O GENERAL CAEIRO faz um gesto na direcção do DR. BAYARD, que DUARTE já não vê. O DR. BAYARD aproxima-se dele e pegandolhe no braço, acompanha-o na direcção da porta de saída. 4. APROXIMADO CLEMENTINA, COM TODA A ACÇÃO E DIÁLOGO 6. DUARTE DE COSTAS, JÁ NO HALL. BAYARD ENTRA EM CAMPO, PEGANDOLHE NO BRAÇO. DUARTE SURPRESO, MAS POUCO. PAN DIREITA / ESQUERDA OU TRAVELLING LATERAL ACOMPANHANDOOS. DUARTE SAI PELA PORTA, ESQUERDA E BAYARD SAI DE CAMPO PELA DIREITA (VOLTA À SALA). FICAMOS COM A MENINA DO BENGALEIRO, QUE ATENDE DOIS FIGURÕES. DOUTOR BAYARD (falando-lhe ao ouvido) Duarte, você é um homem apaixonado e a Madalena é uma mulher linda e filha única…mais tarde ou mais cedo vai herdar a Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) MADALENA Se o papá te perguntar onde é que eu estou, o que é que dizes Clementina? CLEMENTINA Menina... Eu preferia não ter de mentir ao senhor General. MADALENA Não seria a primeira vez. CLEMENTINA Por que é que a menina insiste em meter-me nestas situações? MADALENA O que é isso comparado com aquele teu namorado republicano? Diz-me, ele continua por aí a 518 Sampaio & Almeida Um Jantar Muito Original colocar bombas? CLEMENTINA Credo, o meu Octávio não faz dessas coisas, menina... Se o Senhor General perguntar, eu digo que foi às aulas de piano... Mas se me permite, alguém na sua posição não devia encontrar-se sozinha com homens. MADALENA Com o meu noivo, Clementina. Que é um homem moderno, tal como o teu namorado. Além disso estamos num novo século, há sete anos que estamos no século vinte. Os costumes agora são diferentes. CLEMENTINA Se isso fosse verdade, a menina não tinha de ir ter com ele às escondidas. Se o senhor seu pai sonha sequer... MADALENA O meu pai sabe muito mais do que dá a entender... Sabes como é o papá! E não queres que eu seja feliz? Então ajuda-me, vá! 8 INT. CASA DE DUARTE GUES/SALA FIM DO DIA RODRI- A grafonola da sala, toca o “Air Suit Nº3 Em Ré Maior” de Johann Sebastian Bach. 1. INSERT GRAFONOLA COM DISCO A RODAR (PODE OU NÃO SER UTILIZADO, MAS É DE FAZER) 2. INSERT MÃOS DE DUARTE A ACENDER LAMPARINA. A CÂMARA RECUA COM PAN (IDEALMENTE DIREITA/ESQ.) ENQUADRANDO DUARTE E REVELANDO A SALA, ATÉ DESCOBRIR MADALENA NA CHAISE LONGUE, NA FRENTE DELE. DIÁ- Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) LOGO E TODA A ACÇÃO – QUANDO MADALENA SE LEVANTA A CÂMARA ACOMPANHA-A, APROXIMANDO-SE DELA E DUARTE. DEPOIS MADALENA SAI DE CAMPO PELA ESQUERDA E FICAMOS SOBRE DUARTE. DUARTE, junto a um carrinho de sobremesas adaptado a cozinha portátil, está vestido de maneira formal, mas de avental. A sala da sua casa é um reflexo da sua personalidade, decorada de uma forma faustosa, com diversas gravuras e livros de anatomia, medicina, mas igualmente de culinária. Sentada numa chaiselongue encontra-se MADALENA, que observa DUARTE com curiosidade. Ele acende cuidadosamente uma pequena lamparina e coloca-a por baixo de um suporte metálico, que funciona como bico de fogão. Em seguida põe manteiga numa frigideira e deixa-a ao lume a derreter, sempre sob o olhar atento de MADALENA, que se levanta e aproxima-se dele com modos insinuantes. MADALENA Sinto que estamos numa situação sacra... Devo ajoelhar-me? DUARTE sorri e olha-a sugestivamente. DUARTE Primeiro, comemos! Depois... o resto! MADALENA faz menção de o abraçar, mas fica com o gesto a meio. MADALENA Compreendo, o dever antes do prazer. DUARTE Não, cada prazer a seu tempo, minha querida. MADALENA simula ficar amuada e volta a sentar-se na chaise-longue. 519 Sampaio & Almeida 3. MADALENA QUE VOLTA A SENTAR-SE NA CHAISE LONGUE. TODO O DIÁLOGO ATÉ SE LEVANTAR. SAI DE CAMPO PELA DIREITA. DUAS ESCALAS 4. DUARTE – DUAS ESCALAS. TODA A ACÇÃO. NO FINAL MADALENA ENTRA EM CAMPO PELA ESQUERDA. A CÂMARA MOVIMENTA-SE À VOLTA DELES – STEADY OU GIMBAL MADALENA Antes de o conhecer, nem imaginei possível que um homem cozinhasse, muito menos com a sua paixão e arte... DUARTE abre uma cesta onde tem alguns ovos e escolhe minuciosamente um deles. Responde-lhe maquinalmente, enquanto parte o ovo apenas com uma mão. DUARTE Está a ver o movimento do pulso? É como um maestro a marcar o compasso de uma orquestra... MADALENA Ou a delicadeza de acariciar... a crina de um cavalo. DUARTE Também aqui temos que saber domar os alimentos... Cada um tem vida própria, como um animal selvagem. MADALENA Eu não digo, fala de comida como um verdadeiro artista fala da sua obra. DUARTE O seu pai também faz parte da Sociedade Gastronómica de Lisboa. MADALENA O papá dá ordens à nossa Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) Um Jantar Muito Original cozinheira. Não é como o Duarte, o Duarte experimenta, suja as mãos. DUARTE Para se mandar, é preciso primeiro saber fazer. É o mal de muitos líderes hoje em dia. Limitam-se a falar, mas não se comprometem com o que dizem. MADALENA É isso que quer ser? Um líder? Achei que tivesse alma de artista... DUARTE Não se pode querer ter os dois mundos? MADALENA Eu parece-me que o Duarte pode alcançar tudo aquilo que deseja. Exactamente, porque não tem medo de experimentar... DUARTE Nunca existiu um bom artista que não duvidasse da sua arte... Da mesma forma que nunca um homem alcançou a excelência sem uma musa. Quer ser a minha musa, Madalena? MADALENA Quero levá-lo a essa excelência que tanto procura. DUARTE Venha, deixe-me ensiná-la. DUARTE estende-lhe a mão. Ela levanta-se, de uma maneira coquete, sedutora. (4) MADALENA ENTRA EM CAMPO PELA ESQUERDA. A CÂMARA MOVIMENTA-SE À VOLTA DELES – ACÇÃO ATÉ FINAL STEADY OU GIMBAL. DEPOIS DUARTE SAI 520 Sampaio & Almeida DE CAMPO NA DIRECÇÃO DA PORTA, FICAMOS SOBRE MADALENA, TODA LIXADA MADALENA Sim Mestre! DUARTE sorri e pega na mão de Madalena. Juntos tiram um ovo da cesta. Ela na frente dele, com os corpos colados. DUARTE Vá, é tudo uma questão de pulso. 1... 2... e...3 MADALENA parte o ovo só com uma mão. Ri-se. MADALENA Sou uma discípula aplicada. DUARTE Uma musa não é uma discípula, é uma diva. DUARTE envolve MADALENA nos seus braços, segura-lhe nas mãos enquanto ela começa a bater os ovos, com o corpo sensualmente colado ao dele. DUARTE (CONT’D) (enquanto a acaricia) Isso, isso, compassadamente.1...2...3...4... 1...2...3...4... MADALENA pousa a tigela dos ovos e voltase, enlaçando DUARTE. MADALENA (falando-lhe ouvido) É agora que devo ajoelhar-me? DUARTE está pronto a ceder à provocação. DUARTE Não vejo motivo para não o fazer... Mas antes… Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) Um Jantar Muito Original DUARTE puxa-a para si e beijam-se intensamente, com paixão e evidente volúpia. Nesse momento a campainha da porta começa a tocar. DUARTE fica visivelmente irritado, hesita em atender, mas perante a insistência da campainha, solta MADALENA e dirige-se até ao hall de entrada. Ela faz um gesto de decepção e segue-o à distância. Sim, o que é? DUARTE (irritado) 9 INT. CASA DUARTE RODRIGUES/HALL DE ENTRADA FIM DO DIA DUARTE abre a porta de sua casa. É surpreendido por um homem enorme, africano, vestido de forma exótica, mas ocidentalizada. Trata-se de EZEQUIEL (30 anos), o mordomo de Prosi\, que lhe passa um envelope. 1. AMERICANO – DUARTE ENTRA PELA DIREITA, ABRE A PORTA – MASTER TODA A ACÇÃO ATÉ MADALENA – PAN OU TRAVELLING LATERAL 2. EZEQUIEL, COM DUARTE EM AMORCE 3. DUARTE, COM EZEQUIEL EM AMORCE. NO FINAL DUARTE VOLTA- SE – A CÂMARA ACOMPANHA-O EM PAN, ATÉ ENQUADRAR MADALENA. DIÁLOGO E TODA A ACÇÃO DE MADALENA EZEQUIEL Dr. Duarte Rodrigues, o senhor Prosi\ convocou-o. DUARTE abre o envelope, enquanto MADALENA, ao fundo, o observa, conseguindo perceber a conversa entre os dois homens. EZEQUIEL (CONT'D) (peremptório) A carruagem está à sua espera! DUARTE Agora? O Prosi\ não pode 521 Sampaio & Almeida simplesmente pensar que eu... estou acompanhado, compreende? EZEQUIEL não liga a DUARTE. 4. INSERT CARTA – “PRECISO DA SUA PRESENÇA. URGENTE. P.” 5. GP DUARTE, REPETE ACÇÃO DESDE A ABERTURA DA CARTA ATÉ IR NA DIRECÇÃO DE MADALENA EZEQUIEL A carruagem está à sua espera, Dr. Duarte Rodrigues. DUARTE hesita. DUARTE Eu... vou precisar de uns momentos. DUARTE volta-se e depara com Madalena, que o olha com ar furioso. DUARTE (CONT'D) Minha querida, peço desculpa, mas vou ter de me ausentar. 6. GP DUARTE, QUE FICA A VÊ-LA E NÃO REAGE, MAS AMARROTA A CARTA. 7. INSERT CARTA A SER AMARROTADA. LIGEIRA HESITAÇÃO E DUARTE METE-A NO BOLSO. MADALENA rejeita a tentativa de Duarte a abraçar e, não escondendo a sua irritação. Começa a pegar nas suas coisas. MADALENA Já é tarde, tenho de me ir embora, o Papá já deve estar preocupado. 10 EXT. ESTRADA/INT. CARRUAGEM NOITE Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) Um Jantar Muito Original DUARTE vai sozinho na carruagem. Move a sua bengala de forma nervosa. A carruagem segue por uma rua escura e pouco movimentada, ao som de “A ilha dos mortos”, Poema sinfónico Op. 29 de Rachmaninov. Estica a cabeça para fora, de forma a falar com EZEQUIEL. DUARTE O Prosi\, não disse qual o motivo desta urgência? 1. DUARTE DENTRO DA CARRUAGEM EM MOVIMENTO. DEITA A CABEÇA DE FORA. DIÁLOGO, TODA A ACÇÃO 2. DUARTE VISTO DO EXTERIOR. DIÁLOGO, TODA A ACÇÃO 3. EZEQUIEL CONDUZ A CARRUAGEM IMPÁVIDO E SERENO, SEM REAGIR À PERGUNTA DE DUARTE. BATE COM AS RÉDEAS 4. GERAL – CARRUAGEM ATRAVESSA O QUADRO. ENTRA E SAI DE CAMPO EZEQUIEL não responde, limita-se a bater com as rédeas e a aumentar a velocidade da carruagem. Duarte regressa para o interior. 11 INT. CASA GENERAL / SALA PIANO NOITE MADALENA está ao piano. A sua irritação nota-se na forma furiosa como toca o 3º movimento da Sonata ao Luar de Beethoven. CLEMENTINA entra CLEMENTINA Menina, o seu paizinho pede se pode tocar uma música mais... alegre. Por causa das visitas. 1. INSERT MÃOS DE MADALENA A TOCAR FURIOSAMENTE. 522 Sampaio & Almeida MADALENA contém a sua fúria, observa as pautas, coloca a partitura de Arabesque Nº1 & Nº2 de Debussy e começa a tocar. MADALENA Vamos ver se ele anima com um republicano. CLEMENTINA Não devia provocá-lo hoje... Ele está mesmo aqui ao lado na sala de fumo. MADALENA Provocá-lo, eu? Clementina, vai perguntar ao papá se a música agora está mais do seu agrado! 2. APROXIMADO/AMERICANO DE MADALENA SOBRE A DIREITA E CLEMENTINA QUE AVANÇA DO LADO ESQUERDO – TODA A ACÇÃO. QUANDO CLEMENTINA SAI, A CÂMARA APROXIMA-SE DE MADALENA E RODEIA-A DIREITA/ESQUERDA. CLEMENTINA sai. MADALENA continua a tocar. 12 EXT. PORTA RESTAURANTE “CREPES” NOITE É uma noite de nevoeiro, onde ainda se consegue vislumbrar um ou outro transeunte. PROSITT está sozinho à porta de um Restaurante. A sua atenção é chamada pelo ruído de uma charrete que se aproxima ao fundo da rua. PROSITT sorri agradado ao verificar que dentro da charrete, conduzida por EZEQUIEL, vem DUARTE. A charrete pára e PROSITT apressa-se a abrir a porta. DUARTE sai e PROSITT faz um gesto para EZEQUIEL que lhe responde com um sinal afirmativo com a cabeça e depois parte. 1. CONJUNTO COM TODA A ACÇÃO, ATÉ A CHARRETE PARTIR – MASTER Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) Um Jantar Muito Original 2. AMERICANO PROSITT. CONSULTA O RELÓGIO E BOLSO. DEPOIS REAGE À APROXIMAÇÃO DA CHARRETE, OLHANDO ESQUERDA. 3. CHARRETE A APROXIMAR-SE – TRAVELLING PARA TRÁS ATÉ ENQUADRAR PROSITT QUE ACOMPANHA O MOVIMENTO DA CARRUAGEM, ATÉ PARAR. DUARTE SAI – PAN ESQUERDA/DIREITA ATÉ ENQUADRAR TAMBÉM PROSITT, QUE OLHA PARA EZEQUIEL SEM QUE DUARTE DÊ IMPORTÂNCIA A ISSO – MASTER 2, DIÁLOGO DOS DOIS 4. EZEQUIEL QUE FAZ UM SINAL AFIRMATIVO PARA PROSITT. A CARRUAGEM AVANÇA, EZEQUIEL SAI DE CAMPO DIREITA/ESQUERDA PROSITT Meu bom doutor, espero que o Ezequiel não o tenha apanhado em má altura. DUARTE Pode explicar-me qual a urgência da sua chamada? PROSITT (fugindo à pergunta de Duarte) Não me diga que estava às voltas com alguma cortesã? DUARTE Sabe perfeitamente com quem estava. Aliás, tive que dizer à Madalena que o Prosi\ se encontrava terrivelmente doente, para a abandonar assim... PROSITT Relaxe homem, as mulheres gostam que lhes mintam! Aguça o mistério, sabe? DUARTE Você agora é muito dado ao mistério, Prosi\. 523 Sampaio & Almeida PROSITT (na inevitabilidade da sua ironia) Acha que o General Caeiro não suspeita que se encontra a sós com a filha dele? DUARTE Acho que é capaz de ver mais perigo em eu estar reunido sozinho consigo. PROSITT (no mesmo tom irónico) E não teme que eu o possa denunciar? DUARTE (competindo com Prosi\ em ironia) Pelo sim, pelo não, talvez tenha de o mandar matar para garantir o seu silêncio! Nesse momento, PROSITT faz menção de dar passagem a DUARTE para entrarem no restaurante, mas volta atrás e aproxima-se de DUARTE. 5. APROXIMADO DE PROSITT COM DUARTE EM AMORCE 6. CONTRA-CAMPO DE DUARTE, COM PROSITT EM AMORCE PROSITT O Duarte, matar? Tinha fibra para isso? Os dois homens fitam-se, num duelo de olhares, que PROSITT desfaz com uma estudada afabilidade. PROSITT (CONT'D) Falemos de coisas mais sérias... chamei-o porque preciso da sua ajuda. DUARTE mostra-se surpreendido com as palavras de Prosi\. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) Um Jantar Muito Original DUARTE Da minha ajuda? Para o seu jantar? PROSITT Não... Ou melhor, de uma certa forma, sim. DUARTE E em que o posso ajudar? PROSITT Isso cabe-lhe a si descobrir, quando chegar a altura! Vamos? PROSITT abre a porta e dá passagem a DUARTE. Entram no restaurante. (1) CONJUNTO – ENTRAM NO RESTAURANTE DE COSTAS PARA A CÂMARA 13 INT. CASA GENERAL/SALA DO PIANO NOITE MADALENA termina a sua peça de piano. Observa a porta que dá para a sala de fumo, contígua à sala do piano, e depois caminha de forma cuidadosa, abrindo apenas uma fresta para observar e escutar a conversa no seu interior. 1. MADALENA ACABA DE TOCAR. APERCEBE-SE DE VOZES E CAMINHA CAUTELOSA NA DIRECÇÃO DA PORTA, AFASTANDO-SE DA CÂMARA 2. MADALENA JUNTO DA PORTA, TENTANDO OUVIR A CONVERSA DO PAI COM BAYARD E PERES E REAGINDO – DUAS ESCALAS: APROXIMADO E GP. 14 INT. CASA GENERAL-SALA DO PIANO/SALA DE FUMONOITE 1. POV DE MADALENA – DUAS ESCALAS, ENQUADRANDO OS TRÊS HOMENS COM TODA A CONVERSA ATÉ AO BRINDE. 524 Sampaio & Almeida NESSA ALTURA MADALENA ENTRA NA SALA Na sala de fumo, encontram-se o GENERAL CAEIRO, o ENG. PERES e o DR. BAYARD. Bebem brandy e fumam. MADALENA observaos, sem ser notada. Um Jantar Muito Original DR. BAYARD Podemos confiar no seu futuro genro? GENERAL CAEIRO É necessária uma ala jovem para que Prosi\ caia. O Duarte é a pessoa certa. DR. BAYARD O talhante habitual do Prosi\ diz que ele não o contactou... E nós? ENG. PERES É natural que mude de fornecedores, ele suspeitaria que nós o íamos espiar. GENERAL CAEIRO Nós faremos com que a presidência do meu futuro genro não seja um sucesso... GENERAL CAEIRO A camareira também foi dispensada. ENGENHEIRO PERES Está disposto a sacrificá-lo? DR. BAYARD O homem sabe manter um segredo e uma expectativa. DR. BAYARD GENERAL CAEIRO Não é um sacrifício... Estou apenas a ajudar na formação de carácter do rapaz. GENERAL CAEIRO E exactamente por isso é tão perigoso e deve ser destituído. Os três homens brindam em concordância. MADALENA faz sentir a sua presença. Os três homens levantam-se. ENG. PERES Acredita mesmo nisso General? Como diz o seu futuro genro, é apenas gastronomia. 2. CONJUNTO – MADALENA ENTRA NA SALA. OS TRÊS REAGEM GENERAL CAEIRO A juventude do Duarte dá-lhe o privilégio de poder ser inocente nestas matérias. Privilégio que não temos. Aproximam-se dias de revolta. E nós vamos travá-la. DR. BAYARD Será que o Prosi\ desconfia de alguma coisa? ENGENHEIRO PERES Não me parece. Mas com ele todo o cuidado é pouco. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) MADALENA Peço desculpa, mas queria saber se o Papá gostou da música... ENGENHEIRO PERES Permita-me que lhe diga que mais melodiosa do que a sua música, só a sua presença Madalena. MADALENA O engenheiro é demasiado gentil. Devo tocar mais, papá? DR. BAYARD Seria um prazer para todos. 525 Sampaio & Almeida Um Jantar Muito Original MADALENA prepara-se para sair, volta atrás. Faz-se de sonsa. 15 INT. RESTAURANTE “CREPES” / SALA PRIVADA NOITE 3. MADALENA DE COSTAS. DEPOIS VOLTA-SE, PÁRA E AFASTA-SE NO FINAL – DUAS ESCALAS O CHEFE DE SALA, vestido com uma jaqueta branca e de calças pretas, prepara com elegância uns Crepes Suzete para PROSITT e DUARTE. Os dois homens observam com fascínio as chamas. 4. OS TRÊS, QUE FAZEM MENÇÃO DE SE SENTAREM, MAS LEVANTAM- SE DE NOVO, DE FORMA UM TANTO CARICATA. EVENTUALMENTE DUAS ESCALAS MADALENA (disfarçando em ingenuidade a sua ironia) Peço desculpa pela intromissão, mas pareceu-me ouvir falar sobre o Duarte... Aliás, imaginei que ele estivesse presente, não é uma reunião da vossa sociedade “Agronómica”? A expressão de MADALENA permite um riso ao Dr. BAYARD e ao Engenheiro PERES. DR. BAYARD Gastronómica, minha querida, não nos tome por comuns jardineiros! MADALENA Ambos criam, não é verdade? ENGENHEIRO PERES Aproximadamente. Nós… MADALENA (interrompendo-o) Por outro lado, sempre me pareceu mais justo fazer crescer um jardim de rosas, do que embebedar um peru para ser servido a um jantar... Se os senhores e o papá me permitem, vou tocar mais um pouco. Com a vossa licença. Perante o olhar estupefacto dos homens, MADALENA volta para a sala do piano. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 1. CHEFE DE SALA ACABA DE PREPARAR OS CREPES. A CÂMARA ACOMPANHA-O EM PAN ATÉ DESCOBRIR DUARTE E PROSITT SENTADOS À MESA. DEPOIS O CHEFE SAI E A CÂMARA APROXIMA-SE DA MESA – MASTER 2. APROXIMADO DE DUARTE COM PROSITT EM AMORCE.DIÁLOGO TODO 3. CONTRA-CAMPO DE PROSITT 4. GP DUARTE. DIÁLOGO TODO 5. GP PROSITT – CONTRA-CAMPO PROSITT Mas diga-me, meu caro doutor, afinal qual foi o alimento mais estranho que provou? O chefe de mesa termina os crepes, serve-os a PROSITT e a DUARTE, faz uma pequena vénia e sai da sala. Os dois homens iniciam a degustação dos crepes. DUARTE saboreia o crepe enquanto pensa. Demora o seu tempo, como que a testar a paciência de PROSITT. DUARTE Olhos de cabra viva na viagem diplomática à Jordânia. E que tal? PROSITT DUARTE Não sei se repetia... Mas até nem era mau de todo (ri-se). E você, Prosi\? 526 Sampaio & Almeida Um Jantar Muito Original PROSITT Lamento informá-lo, mas o meu prato supera a traços largos o seu. Aprendi nos anos em que estive em África. DUARTE Em África... Escaravelhos? Jacaré? Hiena? Bípede! PROSITT DUARTE pensa um pouco. DUARTE Ah claro, macaco! Melhor, miolos de macaco! E sabe cozinhá-los? Devem ser difíceis de arranjar? PROSITT Engano seu, olhe que há por aí bípedes em todo o lado! Os dois homens soltam uma gargalhada DUARTE Já pode revelar o motivo deste nosso encontro? Vai dar-me uma dica sobre o jantar? PROSITT Não seria correcto dizer-lhe alguma coisa que o pusesse em vantagem em relação aos demais... E garanto-lhe que não ia gostar de saber o segredo antes do tempo! DUARTE Se não sei o que precisa, como o posso ajudar? PROSITT Achei apenas que lhe devia uma explicação em relação ao que vou organizar. Não lhe posso contar muito, mas vai perceber que é uma coisa que tinha de ser Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) feita... um acto de líder. DUARTE Eu sei que o Prosi\ pensa que eu ponho em causa a sua liderança... PROSITT Meu amigo, até ao dia do jantar, nada disso interessa. Mas no momento certo, o doutor terá a oportunidade de perceber o que lhe estou a dizer... DUARTE Garanto-lhe que vou descobrir o segredo desse seu “jantar muito original”! PROSITT Não duvido que tente, meu caro! Não duvido que tente! Os dois homens continuam a comer os seus crepes. 16 INT. CASA GENERAL/SALA DO PIANO NOITE MADALENA está a tocar a abertura da Ópera Julius Caesar (HWV 17: I Overture) de Handel, quando entra na sala o GENERAL CAEIRO. Vem de copo na mão, bebido, irritado. 1. MADALENA AO PIANO. O GENERAL ENTRA EM CAMPO, SEM QUE ELA O VEJA. MADALENA VOLTA-SE PARA ELE. ELA SENTADA, ELE EM PÉ. TODA A CENA – MASTER 2. MADALENA, DUAS ESCALAS, COM TODA A ACÇÃO 3. GENERAL, DUAS ESCALAS, COM TODA A ACÇÃO GENERAL CAEIRO Não sei o que pensa que ouviu na 527 Sampaio & Almeida sala para fazer aquela triste entrada, mas se me volta a envergonhar perante os meus convidados... MADALENA finge mostrar-se espantada. MADALENA Eu, papá? Estava a tocar assim tão mal? GENERAL CAEIRO Não faça essa coisa de parecer tola, quando sabe perfeitamente do que estou a falar. Não me agradava na sua mãe, que Deus a tenha, e certamente não me agrada em si. MADALENA Apenas quis proporcionar um acompanhamento musical ao seu serão. Ouvi relatos que são do seu agrado nos jantares da vossa Sociedade… Gastronómica. O GENERAL termina a sua bebida. Depois tira um cantil de prata do seu casaco e volta a encher o copo. GENERAL CAEIRO Agora já sabe o nome... MADALENA Os seus convidados foram muito gentis em explicar-me a diferença. Para uma mulher certas palavras parecem todas iguais. GENERAL CAEIRO Vocês mulheres e os vossos artifícios. É por isso que um homem deve ter um filho, alguém que siga os seus passos, alguém que o compreenda. MADALENA Mas não é isso que estou a fazer Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) Um Jantar Muito Original ao aceitar o noivado com o Duarte, papá? Dar-lhe o herdeiro que sempre quis? GENERAL CAEIRO Por muito interessante que ache o doutor Duarte Rodrigues, ele não se equipara à nossa vasta linhagem militar. MADALENA Certamente. GENERAL CAEIRO Os Caeiros estiveram ao lado do Vasco da Gama na Índia, fomos os primeiros a passar por cima do Martim Moniz quando ele ficou entalado nas portas... O que fizeram esses Rodrigues que se equipare? MADALENA Poder casar-se com a sua filha e dar-lhe o varão que a mamã nunca lhe deu. Não era esse o seu desígnio quando me apresentou ao Duarte? O GENERAL tenta concentrar-se. GENERAL CAEIRO Eu não tenho a certeza que a menina compreenda do que estamos a falar. Há coisas mais importantes... MADALENA (interrompendo-o) Que o futuro desta família, que também passa pelo melhor para o meu futuro esposo? O papá não acredita que ele possa ser um dia um bom presidente? A bebida tolda o julgamento do GENERAL. GENERAL CAEIRO Presidente? Presidente de quê? 528 Sampaio & Almeida MADALENA (fazendo um gesto de evidência) Da vossa sociedade...(hesita)... gastronómica!... O Papá sabe que eu não percebo nada de política... Mas acho que basta ao Duarte não passar tanto tempo rodeado daquele horrendo Prosi\ para poder atingir grandes feitos. GENERAL CAEIRO Nada de bom vem desse homem. MADALENA E por isso mesmo o Duarte Precisa de apoio, para não se rodear das pessoas erradas. O Duarte é o futuro... que pode abrir caminho para que os seus netos possam almejar a serem líderes desta nação. GENERAL CAEIRO Os meus netos... MADALENA Guiado pelo Papá e apoiado por mim... O Duarte pode ser o símbolo de um novo império. O GENERAL termina o seu segundo copo, tenta servir-se de mais bebida, mas o cantil está vazio. Olha para a filha. Absorve as suas palavras. Consulta o seu relógio. GENERAL CAEIRO Mas já é tarde... MADALENA Tarde para ir dormir ou para apoiar o Duarte? Mas o GENERAL parece não se aperceber da provocação da filha. GENERAL CAEIRO Vou retirar-me. Não volte a Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) Um Jantar Muito Original tocar modernices como as desse Debussy, ou a meter-se em conversas de homens que não entende. MADALENA Claro senhor meu pai, tenha uma boa noite. O GENERAL sai, deixando MADALENA sozinha, que esboça um leve sorriso de triunfo. 17 INT. RESTAURANTE “CREPES”-SALA PRIVADA/SALA RESTAURANTE NOITE PROSITT e DUARTE levantam-se da mesa, saem da sala privada e passam para a sala principal do restaurante. Ainda se encontram algumas pessoas a comer no restaurante. PROSITT olha em volta, consulta o seu relógio. Por fim, ao fundo, avista uma mesa onde jantam animadamente dois jovens. PROSITT sorri e dá uma palmada nas costas de Duarte Rodrigues. 1. DUARTE E PROSITT, JÁ EM PÉ NA SALA PRIVADA, CAMINHAM DIREITA/ESQUERDA – A CÂMARA ACOMPANHA-OS EM TRAVELLING LATERAL, DESCOBRINDO A SALA PRINCIPAL E A MESA DOS DOIS HOMENS DO PORTO – MASTER COM TODA A ACÇÃO. NO FINAL PROSITT E DUARTE SAEM E FICAMOS COM OS OUTROS DOIS E A GRAVATA PROSITT Meu caro doutor, gostava de o apresentar àqueles dois jovens ilustres. Os dois homens que se encontram na mesa são jovens, na casa dos vinte anos. Claramente dandies e de uma geração bem mais próxima de Duarte do que de Prosi\. São eles: PEREIRA CARVALHO (28 anos) e AFONSO PINHO (32 anos, respectivamente editor e editor adjunto da “Gastronómica do Porto”. Falam com um notório sotaque nortenho. 529 Sampaio & Almeida 2. PROSITT E DUARTE, EM PÉ COM TODO O DIÁLOGO E ACÇÃO 3. PEREIRA CARVALHO E AFONSO PINHO, TODO O DIÁLOGO E ACÇÃO 4. PROSITT 5. DUARTE 6. PEREIRA CAVALHO 7. AFONSO PINHO PROSITT (CONT'D) Ora, muito boa tarde, cavalheiros, que surpresa vê-los por aqui! Pensei que não viessem à capital onde... E deixem-me citá-los, “se come pretensiosamente mal!” Os homens sorriem, com ironia. PEREIRA CARVALHO Prosi\! É sempre um dissabor vê-lo! PROSITT (não acusando o toque, para Duarte) Não sei se o doutor já conhece estes meus jovens amigos... Os dois cumprimentam DUARTE, e é obvio que já o conhecem. Instala-se um clima de falso cavalheirismo entre eles. DUARTE (OFF) Era óbvio que eu conhecia o casalinho ali sentado: Pereira Carvalho e Afonso Pinho, os autores do infame artigo da “Gastronómica do Porto”. Agora tornara-se clara a máxima urgência de Prosi\, ele precisava de uma testemunha para o que se ia passar. PROSITT Sabem que é uma sorte encontrar- Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) Um Jantar Muito Original vos aqui hoje, porque tenho a anunciar-lhes um acontecimento que será determinante nas vossas vidas. AFONSO PINHO Não nos diga que se vai reformar, Prosi\? Era uma grande alegria que dava ao mundo gastronómico. Os dois homens riem. Prosi\ não se mostra incomodado com a piada. PROSITT Não é da minha reforma que se trata, antes da forma com vão honrar um jantar muito especial que preparo na Sociedade Gastronómica de Lisboa, a única digna desse nome, aliás. PEREIRA CARVALHO Não me faça rir, com o seu humor requentado. Mas não deve estar bom da cabeça se pensa que nos consegue pôr, a nós, num dos seus abomináveis eventos. PROSITT (Sorri, desafiador) Garanto-vos que por muito que resistam agora, vocês vão estar presentes no meu jantar… em carne e osso! PEREIRA CARVALHO enerva-se, tenta levantar-se, ameaçando PROSITT, mas é impedido por Afonso Pinho. PEREIRA CARVALHO Ouça seu velho louco, tem que perceber que nós nunca na vida vamos estar presentes num dos seus execráveis jantares. Não leu o artigo? Você é uma fraude! AFONSO PINHO Sim, acha mesmo que nós íamos 530 Sampaio & Almeida estar presentes numa daquelas reuniões dessa vossa sociedade? Aquilo não é gastronomia, é um lupanar! PROSITT Acho estranho que diga isso, meu caro Afonso Pinho, afinal... antigamente não reclamava. Está a fazer-lhe mal a nova companhia! AFONSO PINHO Maldito seja Prosi\! PROSITT Vá, vá jovens... Tentemos manternos civilizados! Daqui a dois dias em minha casa, um por um, os meus amigos vão ser a alma da festa! Pereira Carvalho agora consegue levantar-se, já que Afonso Pinho não o impede. Confronta PROSITT. PEREIRA CARVALHO Raios, homem! Não vê que essa sua insistência irrita? Quantas vezes teremos que dizer que não vamos ao seu jantar? Não percebe que não gostamos da sua presença? DUARTE tenta serenar os ânimos. Afonso Pinho, que continua sentado, limita-se a um sorriso irónico. DUARTE Venha, Prosi\, não vale a pena continuarmos nisto…cavalheiros... PROSITT Vemo-nos em breve meus amigos... Ah, só mais uma coisa, Pereira Carvalho, essa sua gravata é um luxo de bom gosto! Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) Um Jantar Muito Original DUARTE e PROSITT abandonam o restaurante. PEREIRA CARVALHO faz um gesto agressivo, mas fica a olhar para a sua gravata. AFONSO PINHO acalma-o, mas não resiste a olhar também para a gravata do amigo. 18 INT. CASA GENERAL / QUARTO MADALENA SALA PIANO NOITE MADALENA, com indisfarçável ansiedade, escreve uma carta. Coloca-a num envelope, lacrando-o de seguida. CLEMENTINA bate à porta e entra a um sinal de Madalena. 1. MADALENA, SENTADA A UMA ESCRIVANINHA, ACABA DE ESCREVER UMA CARTA, QUE METE NUM ENVELOPE. OUVE-SE BATER À PORTA. MADALENA DIZ A CLEMENTINA PARA ENTRAR. 2. INSERT ENVELOPE, COM MADALENA A ESCREVER: DR. DUARTE RODRIGUES 3. MADALENA, MAIS ABERTO QUE 1. CLEMENTINA ENTRA EM CAMPO – DIÁLOGO E RESPECTIVA ACÇÃO. CLEMENTINA SAI DE CAMPO. FICAMOS COM MADALENA, ANSIOSA, MAS SATISFEITA CONSIGO PRÓPRIA, TOMOU A DECISÃO CERTA MADALENA Preciso que entregues agora mesmo esta carta ao doutor Duarte Rodrigues. CLEMENTINA Menina... Eu não posso fazer isso, se o seu pai me descobre... MADALENA É uma questão da máxima importância, Clementina. O Duarte tem de saber o que lhe preparam... Por favor Clementina, é o último segredo que te peço... 531 Sampaio & Almeida CLEMENTINA acede ao pedido de MADALENA. 19 EXT. PORTA DO RESTAURANTE DOS CREPES NOITE Um Jantar Muito Original DUARTE Estou a ver que eles tinham razão, você está a ficar louco, Prosi\! É impossível convencêlos a lá ir! O nevoeiro é agora bem mais cerrado e não se vê vivalma. PROSITT e DUARTE RODRIGUES abandonam o Restaurante. PROSITT apresenta um semblante divertido, enquanto Duarte não esconde a sua irritação. PROSITT Isso é o que eles dizem agora, mas no dia do meu jantar eles vão estar presentes e numa posição de destaque! Ou não fossem republicanos! 1. PROSITT E DUARTE SAEM DO RESTAURANTE. PARAM NO PASSEIO. FICAM DE FRENTE, LADO A LADO – MASTER 1 ATÉ CHEGADA DA CARRUAGEM DUARTE Começo a ficar farto desses seus mistérios. 2. DUARTE 3. PROSITT DUARTE Não sei como é que soube que o Pereira Carvalho e o seu acólito iam cá estar, mas é a última vez que me usa desta forma. PROSITT faz um ar falsamente surpreendido. PROSITT Usar? Não o compreendo... Enquanto, DUARTE fala, PROSITT mostra-se meio distraído, olha para o relógio e começa a ficar preocupado, como se esperasse alguém. DUARTE Toda aquela encenação da urgência do nosso encontro, quando no fundo apenas necessitava de uma testemunha para presenciar o seu convite aos tipos daquela pseudo “gastronómica”... PROSITT Garanto que eles vão estar presentes no jantar! Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) PROSITT Eu prometi um momento diferente de tudo o que a nossa sociedade já vivenciou até hoje. E vou cumprir! É o que um presidente deve fazer. A carruagem chega, o COCHEIRO entrega um embrulho a PROSITT. Nessa altura, DUARTE apercebe-se que não se trata de Ezequiel. Percebe-se alguma estranheza na sua expressão. 4. CONJUNTO – A CARRUAGEM CHEGA. TODA A ACÇÃO ATÉ FINAL MASTER 2 5. AMERICANO PROSITT E DUARTE, DEPOIS DA SAÍDA DO COCHEIRO 6. INSERT LIVRO 7. GP DUARTE, DEPOIS DO LIVRO 8. GP PROSITT, DEPOIS DO LIVRO PROSITT (CONT'D) Peça para o levarem onde quiser. Eu tenho afazeres. DUARTE Não vai novamente incomodar aqueles diletantes, pois não? 532 Sampaio & Almeida PROSITT Não me faça ser indiscreto com a verdade meu caro doutor... Já agora isto é para si. PROSITT dá o embrulho a DUARTE, que o abre de imediato, curioso. É um volume antigo do livro de culinária “De Re Coquinaria”. DUARTE parece fica surpreendido, mas não esconde o seu entusiasmo e é evidente que já deixou de se questionar sobre a razão do Cocheiro não ser Ezequiel. PROSITT (CONT’D) Aqui está o livro que precisa, “De Re Coquinaria”, o livro de receitas mais antigo da Europa... DUARTE (estupefacto, mas rendido) Mas é uma raridade, um livro precioso… PROSITT Eu gosto de si Duarte! É dos poucos que me dá luta... Posso sugerir-lhe as beringelas à Moura? Mandei preparar umas... há cerca de quinze anos, no meu primeiro banquete como presidente. DUARTE (corrigindo-o) O seu primeiro jantar... PROSITT Não acredita? Pergunte ao General, ele deve-se lembrar. Na altura achou-as bastante... originais! (4) Prosi\ abre a porta da carruagem a Duarte. Os dois despedem-se. Mas DUARTE, ainda não refeito da surpresa da “prenda” de Prosi\, não deixa de reparar que ele começa a ficar agitado. E enquanto vai a entrar na carruagem, segue com o olhar... o olhar de Prosi\. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) Um Jantar Muito Original 9. DUARTE A ENTRAR NA CARRUAGEM, OLHA PARA PROSITT – DUAS ESCALAS 10. PROSITT AGITADO, OLHA A RUA 11. POV DUARTE: AO FUNDO DA RUA, DO LADO OPOSTO, SURGINDO DO NEVOEIRO, DOIS VULTOS AVANÇAM NA DIRECÇÃO DE PROSITT. 20 INT/EXT CARRUAGEM / RUA NOITE Já no interior da carruagem, DUARTE tenta identificar os dois vultos saídos do nevoeiro. 1. APROXIMADO DUARTE, A CARRUAGEM COMEÇA A ANDAR 2. POV DUARTE: UM DOS HOMENS É EZEQUIEL. O OUTRO, IGUALMENTE AFRICANO E DE ESTATURA IDÊNTICA À DE EZEQUIEL. APROXIMAM-SE DE PROSITT, QUE LHES FAZ UM SINAL. OS DOIS HOMENS, DE IMEDIATO PÁRAM. PROSITT OLHA NA DIRECÇÃO DA CARRUAGEM E DEPOIS CAMINHA NA DIRECÇÃO DOS DOIS HOMENS. 3. GP DUARTE COM A MESMA ACÇÃO E DEPOIS A ESTICAR A CABEÇA PARA FORA DA JANELA 4. POV DUARTE: ACÇÃO DE PEREIRA CARVALHO E AFONSO PINHO, ATÉ NA CURVA DEIXAR DE OS VER 5. GP DUARTE INTRIGADO E CHATEADO POR DEIXAR DE VER O QUE SE PASSA. MAS COMEÇA A FOLHEAR O LIVRO 6. CARRUAGEM A DESCREVER A CURVA – PAN ESQUERDA / DIREITA ACOMPANHANDO-A E AFASTANDO-SE AO FUNDO DA RUA E PERDER- SE NO NEVOEIRO DUARTE estica a cabeça para fora da janela, fazendo tenção de falar com o Cocheiro, mas 533 Sampaio & Almeida Um Jantar Muito Original nessa altura apercebe-se que dois homens saem do Restaurante. A distância já é considerável, mas DUARTE não tem dúvidas que se trata de PEREIRA CARVALHO e AFONSO PINHO, que atravessam a rua, na direcção do sítio onde desapareceram, no meio do nevoeiro, Prosi\, EZEQUIEL e o outro homem africano. Entretanto, a carruagem descreve uma curva e DUARTE não consegue ver mais nada. Está visivelmente intrigado, mas o apelo do livro que tem na mão é mais forte e começa a folheá-lo avidamente. FADE OUT 21 INT. CASA DE DUARTE RODRIGUES / SALA NOITE 1. A COMEÇAR NA GRAFONOLA, A CÂMARA VAI VAGUEANDO PELA SALA, EM PAN ESQUERDA/DIREITA, CONJUGADA COM TRAVELLING LATERAL, ATÉ DESCOBRIR DUARTE. COM A CARTA DE MADALENA, LEVANTA-SE MEIO TRÔPEGO E APROXIMA-SE DA JANELA. ESPREITA PARA A RUA 2. GERAL RUA, PICADO: UMA CARRUAGEM ATRAVESSA A RUA, ESQUERDA/DIREITA, A UMA VELOCIDADE EXCESSIVAMENTE RÁPIDA 3. GP DE DUARTE, QUE PARECE MEIO ATORDOADO E DEPOIS DEAMBULA PELA SALA, MUITO COMPRIDA (GRANDE ANGULAR) ATÉ SE DEIXAR CAIR NA CHAISELONGUE DUARTE RODRIGUES está na sua sala, sozinho. Bebe um brandy. Está menos formal do que é costume, sem gravata, apenas em mangas de camisa. A sala também se encontra desarrumada. Sobre a mesa ainda a loiça suja e alguns pratos espalhados. Há diversos livros de culinária abertos. DUARTE fecha o “De Re Coquinaria”, olha para a carta de Madalena. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) Pega nela. levanta-se e observa a janela. Na grafonola toca “Danse Macabre” de Liszt. DUARTE (VO) Faltavam apenas dois dias para o jantar e eu encontrava-me tão às escuras em relação à sua originalidade como no momento em que Prosi\ o tinha anunciado. O desafio, tal como uma hidra, tinha agora várias cabeças. Não bastava desafiar Prosi\ ou descobrir os seus segredos, mas mostrar ao General e à velha ala da sociedade que eu estava à altura do futuro e dos seus golpes palacianos. Que jantar poderia eu preparar que os superasse a todos? E de que serviria se primeiro não superasse Prosi\? Nada era mais importante do que vencer o seu desafio. Depois DUARTE deixa-se cair na sua chaiselongue. Não há ruídos, não há ambientes, nada. Só a música se ouve, alto, muito alto. 4. GP DUARTE, CAÍDO NA CHAISE-LONGUE. MURMURA DUARTE (murmura) Nada... Mesmo nada é mais importante do que isso. 22 INT. SALA DUARTE RODRIGUES DIA Passou tempo. Agora, uma fresta de luz do dia já ilumina a sala e o rosto ensonado e por barbear de DUARTE, mas ainda pairando no ar um tom onírico, uma certa irrealidade. 1. INSERT DA JANELA – UMA MÃO DE MULHER ABRE A CORTINA E A LUZ DO DIA ENTRA VIOLENTAMENTE. 534 Sampaio & Almeida 2. GP DE DUARTE, QUE ACORDA REPENTINAMENTE COM UMA FORTE LUZ NA CARA. OLHA EM FRENTE. DIÁLOGO E ACÇÃO ATÉ SE LEVANTAR 3. EM CONTRA-LUZ, MADALENA APROXIMA-SE DE DUARTE, DE FRENTE PARA A CÂMARA. DIÁLOGO E ACÇÃO ATÉ DUARTE SE LEVANTAR 4. CONJUNTO LATERAL – MADALENA AGACHA-SE NA FRENTE DE DUARTE E ABANA-O. QUANDO DUARTE SE LEVANTA, MADALENA FAZ O MESMO. A CÂMARA APROXIMA-SE DELES. CAEM SOBRE A CHAISE LONGUE, A CÂMARA ACOMPANHA-OS – MASTER COM TODA A ACÇÃO Parecendo surgir do nada, e numa volta à realidade, MADALENA abre as cortinas de par em par, de forma a entrar a luz de uma forma violenta. MADALENA Estava a ficar preocupada consigo... Desde que me abandonou, para ir ter com aquele homem horrível, que não tenho notícias suas! DUARTE (para si próprio) Nada é mais importante... MADALENA Recebeu a minha carta? Percebe o que lhe querem fazer? DUARTE desperta do transe. DUARTE Eu estou preparado. MADALENA Preferia não o ver envolvido com gente daquela estirpe. Assustame. Prometa-me que isto acaba... Se me ama, se pretende casar Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) Um Jantar Muito Original Comigo, prometa-me que se afasta dessa gente. DUARTE levanta-se num impulso. DUARTE A Madalena não compreende, eu tenho de os superar. Provar-lhes que tenho mais génio que todos eles juntos. MADALENA aproxima-se agarra-o. Beija-o. de DUARTE, MADALENA (enquanto o vai beijando, falando de forma sussurrada) Não percebe que já tem? Não há nada para provar, Duarte, tudo o que precisa é cozinhar… para mim... Esqueça o Prosi\, o meu pai, a maldita monarquia e essa sua prometida república. Partimos, só os dois… Esqueça-os todos. DUARTE corresponde agora aos beijos de MADALENA. Começa a desapertar-lhe a roupa. Caem sobre a chaise-longue. 23 INT. SALÃO JANTAR DA SOCIEDADE GASTRONÓMICA NOITE 1. GERAL DA SALA COM TODA A ACÇÃO, NO INÍCIO EM PICADO, DEPOIS A CÂMARA DESCE, FICANDO A MESA EM PRIMEIRO PLANO COM A ACÇÃO DE PROSITT, QUE NO FINAL SAI EM PROFUNDIDADE SEGUIDO POR EZEQUIEL EZEQUIEL acende velas pela sala de jantar, decorada de forma luxuosa. A mesma sala das cenas 2 e 4. A mesa está impecavelmente posta. A disposição das luzes é estratégica, de forma a que a iluminação se centra na mesa, deixando o resto da sala numa propositada penumbra. PROSITT, que ainda não está tra- 535 Sampaio & Almeida jado a rigor para o seu jantar, com uma fita métrica mede meticulosamente a distâncias entre os pratos e talheres e a distância entre cadeiras. Não deixa nada ao acaso na preparação do banquete. Tudo aquilo parece provocar-lhe um enorme prazer. 24 EXT. SOCIEDADE GASTRONÓMICA NOITE 1. COMEÇANDO NA JANELA, PERCEBENDO-SE NO INTERIOR A SALA ILUMINADA PELA LUZ DAS VELAS. A CÂMARA DESCE E RECUA, ATÉ DESCOBRIR A RUA, COM TODA A ACÇÃO, EM PLANO GERAL Vemos a fachada do Prédio da Sociedade Gastronómica. Uma imagem, em muito parecida com a da CENA 1, só que agora encontram-se algumas carruagens a circular, e pessoas (os convidados) a entrar no prédio. Ouvimos a MARCHA DE “IDOMENEO” de Mozart. 25 INT. SALÃO JANTAR DA SOCIEDADE GASTRONÓMICA NOITE 1. GERAL PICADO (DAR A IDEIA DA CONTINUAÇÃO DO MOVIMENTO DO PLANO ANTERIOR), SENDO QUE OS 5 À ESQUERDA DE PROSITT FICAM DE COSTAS. FRASE DE PROSITT E TODOS SE SENTAM 2. CONJUNTO, FRONTAL, COM PROSITT AO FUNDO À CABECEIRA. REPETE-SE A ACÇÃO DE 1 E TODA A CENA – MASTER 3. AMERICANO DE EZEQUIEL A ANUNCIAR OS PRATOS, NA RELATIVA PENUMBRA. ESTÁ SEMPRE FIRME E HIRTO, A OLHAR EM FRENTE. PARA INTERCALAR OS 10 CONVIDADOS e PROSITT, já trajado a rigor, todos dispostos pela mesma ordem que no jantar da cena 4, encontram-se em pé à volta da mesa, apenas iluminada com a luz das velas, o que cria um efeito estranho que realça principalmente o centro da mesa. A servir à mesa estão as mesmas mulheres do jantar da Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) Um Jantar Muito Original cena 4, vestidas com roupas idênticas, mas mais coloridas. PROSITT Meus amigos, chegou o tão esperado momento! Lembrem-se que tão importante como desfrutar do jantar é descobrir o que ele tem de muito original. PROSITT faz uma pequena vénia de cortesia para o GENERAL CAEIRO, ao dizer a palavra original. Todos se sentam. 4. GENERAL CAEIRO FRONTAL. OLHA ESQUERDA QUADRO PARA PROSITT, RESPONDENDO À SUA VÉNIA. SENTA-SE 5. ENGENHEIRO GOUVEIA, JÁ SENTADO – TODAS AS SUAS RÉPLICAS ENG. GOUVEIA Sempre convidou o Pereira Carvalho? PROSITT O Dr. Duarte Rodrigues pode-vos confirmar que sim! E não só o convidei a ele como também ao Afonso Pinho, ao Pinto Garrido e ao Bernardo Palma da Silva. 6. APROXIMADO DUARTE, QUE FAZ OLHA PARA PROSITT (DIREITA QUADRO) E DEPOIS FAZ UM GESTO PARA TODOS, MAS NÃO MUITO CONVICTO Os outros não se mostram muito convencidos. É o ENGENHEIRO PERES quem manifesta a desconfiança geral. 7. APROXIMADO PERES ENGENHEIRO PERES E acha mesmo que esses republicanos têm o bom senso de aprender connosco? PROSITT Avisaram-me agora mesmo que 536 Sampaio & Almeida ainda não estão prontos. De qualquer maneira, a comida não se compadece com esperas. Eles juntam-se a nós numa fase mais adiantada. Assim sendo, dou por iniciado o jantar! 8. APROXIMADO PROSITT BATE AS PALMAS 9. GERAL PICADO, COM A AZÁFAMA DO JANTAR A SER SERVIDO PROSITT bate as palmas e as empregadas começam a trazer a comida. O jantar é uma sequência de pratos ao ritmo da “MARCHA RADETZKY” de Strauss. Várias entradas, prato de peixe e prato de carne. EZEQUIEL vai anunciando cada prato que é servido. EZEQUIEL Salada de conchiglie com carnes frias! As empregadas servem o prato individualmente. Cada prato é requintadamente cuidado. Durante todo o processo, PROSITT mantém um ar extasiado, como se estivesse com uma embriaguez de felicidade. 10. PLANOS PARA INTERCALAR NA ACÇÃO – ELIPSES TEMPO: A) TRAVELLING LATERAL DIREITA/ESQUERDA A COMEÇAR EM PROSITT, COM OS CONVIVAS À ESQUERDA DE PROSITT DE COSTAS B) TRAVELLING LATERAL ESQUERDA/DIREITA A ACABAR EM PROSITT, COM OS CONVIVAS À ESQUERDA DE PROSITT DE COSTAS C) TRAVELLING LATERAL ESQUERDA/DIREITA A COMEÇAR EM PROSITT, COM OS CONVIVAS À DIREITA DE PROSITT DE COSTAS D) TRAVELLING LATERAL DIREITA / ESQUERDA A ACABAR EM PROSITT, COM OS CONVIVAS À DIREITA DE PROSITT DE COSTAS Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) Um Jantar Muito Original EZEQUIEL (CONT'D) Sopa de amêndoa feliz à camponesa! As empregadas servem a sopa, enquanto alguns dos convidados falam entre si. XAVIER, sentado ao lado de DUARTE, fala-lhe sem se preocupar que PROSITT o ouça. O mesmo se passa com DUARTE quando lhe responde. 11. XAVIER E DUARTE – ACÇÃO TODA DOS DOIS, ATÉ DUARTE SE DESCULPARA A XAVIER E LEVANTAR-SE ATRÁS DE PROSITT XAVIER Acha que a originalidade está no serviço? DUARTE (divertido) Não sei, mas talvez seja de inspecionar a mesa, a ver se tem algum alçapão. 12. PROSITT A ACENAR-LHES, TRANQUILO PROSITT ouve os dois homens, sorri e acenalhes a dizer que não. Apesar do aspecto sombrio da sala, o ambiente animado mantém-se. EZEQUIEL anuncia um novo prato. EZEQUIEL Cherne com “bacon” e molho de manga! O cherne é servido também em pratos individuais, o ENGENHEIRO GOUVEIA parece ser, entre os demais, o que melhor aprecia o prato. (5) GOUVEIA ENGENHEIRO GOUVEIA Diga-me Prosi\, a surpresa não será a combinação de bacon com peixe? Para grande alegria sua, PROSITT dá uma resposta negativa. Entretanto, o GENERAL CAEIRO, como habitualmente já um pouco entornado, fala para o seu copo. 537 Sampaio & Almeida 12. GENERAL CAEIRO GENERAL CAEIRO Originalidade. Que da sua origem latina pode ser originale ou mirus que significa fora do comum... Ora isso quer dizer que... DUARTE mantém-se atento e apesar de se divertir, não deixa de observar PROSITT, e os pratos servidos. 13, DUARTE, DUAS ESCALAS. NO FINAL VÊ PROSITT A LEVANTAR-SE E LEVANTASE TAMBÉM, VAI ATRÁS DELE XAVIER Até agora... nada extraordinariamente singular que o deva assustar, não acha meu caro? DUARTE Ainda é cedo, aguardemos pela tal originalidade que nos foi prometida. 14. POV FALSO DE DUARTE E ELIPSE DE TEMPO – TRAVELLING ESQUERDA/DIREITA SOBRE A MESA E OS PRATOS QUE ESTÃO A SER SERVIDOS 15. PROSITT LEVANTA-SE E SAI DE CAMPO, ESQUERDA DO QUADRO Nessa altura, PROSITT levanta-se e sai em direcção ao corredor que conduz à porta da cozinha e por onde as empregadas têm vindo a entrar e onde se encontra EZEQUIEL. DUARTE desculpa-se a XAVIER, levanta-se também e segue-o. PROSITT pára junto de EZEQUIEL. 16. PROSITT JUNTO DE EZEQUIEL, QUE SAI PARA A COZINHA PROSITT Estamos prontos para o prato Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) Um Jantar Muito Original principal. Sem falhas, Ezequiel! 26 INT. CORREDOR / SALÃO JANTAR SOCIEDADE GASTRONÓMICA NOITE 1. A CÂMARA ACOMPANHA DUARTE, DE COSTAS, EM TRAVELLING PARA A FRENTE, COM A ACÇÃO DE PROSITT E EZEQUIEL EM FUNDO. NO FINAL PROSITT VOLTA-SE PARA DUARTE, SURPREENDIDO Ezequiel sai para a cozinha e PROSITT, ao voltar-se, fica surpreendido ao deparar com DUARTE. 2. APROXIMADO PROSITT COM DUARTE EM AMORCE – TODO O DIÁLOGO, QUE PODE SER O 1. 3. CONTRA CAMPO -DUARTE, COM PROSITT EM AMORCE 4. GP DUARTE 5. GP PROSITT DUARTE Então Prosi\, está a correr-lhe de feição? PROSITT Meu caro doutor, não está a tentar subverter as regras do nosso jogo, pois não? DUARTE Quero que saiba que pretendo desafiar a sua liderança da sociedade. Irei anunciá-lo no final do jantar. PROSITT Não me diga que cedeu à pressão do seu sogro... Ou terá cedido aos perversos encantos da sua noiva? DUARTE 538 Sampaio & Almeida Faço-o apenas por mim, e pelo futuro da gastronomia. PROSITT E acha que tem o que é necessário para me destronar? DUARTE De todos os presentes? Tenho a certeza que sou o único. PROSITT Gosto de si Duarte, mesmo estando do outro lado da barricada. E por isso mesmo digo-lhe, avance! Mas garantolhe que o Doutor seria incapaz de organizar um jantar como o de hoje. DUARTE É isso que teremos de ver. 6. CONJUNTO DOS DOIS, LATERAL. EZEQUIEL ENTRA EM CAMPO PELA ESQUERDA. PROSITT E DUARTE SAEM PELA DIREITA E A CÂMARA FICA SOBRE EZEQUIEL, QUE ANUNCIA O “CHATEAUBRIAND COM MOLHO DE TORANJA” – MASTER EZEQUIEL volta ao corredor e faz um sinal a PROSITT, indicando que tudo está pronto. PROSITT É justo. Venha, iniciemos o último acto desta nossa aventura PROSITT e DUARTE seguem para a sala do banquete. 27 INT. SALÃO JANTAR DA SOCIEDADE GASTRONÓMICA NOITE Já com DUARTE E PROSITT sentados e a beber vinho, todos assistem à entrada das empregadas com o prato principal. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) Um Jantar Muito Original 1. GERAL DA MESA COM PROSITT AO FUNDO. TODA A ACÇÃO – MASTER EZEQUIEL Chateaubriand com molho de toranja! PROSITT levanta-se ligeiramente para chamar a atenção dos demais. Volta a sentar-se. 2. PROSITT, DUAS ESCALAS. 3. GENERAL CAEIRO, QUE FALA PARA PROSITT E DEPOIS PARA DUARTE. 4. BAYARD REAGE ÀS PALAVRAS DO GENERAL 5. PERES TAMBÉM REAGE AO GENERAL 6. DUARTE REAGE AO GENERAL. XAVIER TAMBÉM EM CAMPO PROSITT Aconselho-vos vivamente este prato! Tem muita alma investida nele! GENERAL CAEIRO As sua palavras, caro Presidente, merecem o nosso aplauso… e quiçá (faz uma pausa, olhando para Duarte) o apoio de todos para um próximo mandato, assim a originalidade do seu prato… nos deixe sem palavras. Entre risos e aplausos, o prato começa a ser servido e é por todos apreciado, que repetem e elogiam e dão os parabéns a PROSITT pela sua confecção. Quando estão quase a terminar, DUARTE aproxima-se de PROSITT de modo a que apenas este o ouça. 7. + PLANOS VÁRIOS DOS HOMENS A COMER E A FELICITAREM PROSITT 8. INSERTS DOS PRATOS A SEREM ESVAZIADOS 539 Sampaio & Almeida Um Jantar Muito Original 9. TRAVELLING LATERAL ESQUERDA/DIEITA, COM A FILA DE DUARTE DE FRENTE E A OUTRA DE COSTAS. NO FINAL A CÂMARA ENQUADRA DUARTE (À ESQUERDA) E PROSITT. DIÁLOGO DOS DOIS 10. DUARTE, NO DIÁLOGO COM PROSITT 11. PROSIT, NO DIÁLOGO COM DUARTE DUARTE O seu segredo está relacionado com o grupo do Pereira Carvalho... É ou não verdade? PROSITT faz um ar sério e preocupado, como se o seu segredo estivesse prestes a ser desvendado. Continue... PROSITT DUARTE Eu achei estranho que o Pereira Carvalho estivesse incontactável nestes dias... Por momentos até confesso que a sua obsessão por os trazer implicasse tê-los no jantar. PROSITT Portanto, compreende? E a razão porque o fiz... E porque o Duarte seria incapaz de o fazer? DUARTE Obviamente! O artigo falava do futuro, de como estávamos estagnados numa regência que a nada nos leva... Que é necessário apostar num novo modelo, no futuro. Tudo isso estava presente nos pratos que serviu hoje. Diga-me, como convenceu os rapazes do Porto a cozinhar-lhe este jantar? E quando os chama à mesa para os nossos aplausos? Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) O olhar sério de PROSITT transforma-se numa expressão de alívio, que se torna numa gargalhada compulsiva ao ouvir as últimas palavras de Duarte Rodrigues PROSITT (a rir) Meu caro... você acha que eles é que confeccionaram o jantar? DUARTE É de um tremendo arrojo! Será do desagrado do General e da velha ala ter republicanos a prepararem-nos o jantar. Mas curvo-me perante o seu génio e coragem. É de facto este o futuro que nos aguarda! PROSITT Meu caro Doutor... É uma pena que não use essa sua imaginação prodigiosa na sua gastronomia... (2) PROSITT levanta-se e pede silêncio ao Grupo, no seu já habitual toque nos copos com uma colher. Está num estado de excitação, como uma criança que quer contar um segredo. PROSITT (CONT'D) (em tom de discurso) Meus amigos, agora que já quase todos tentaram adivinhar, acho que chegou a altura de vos revelar o segredo! O Doutor Duarte Rodrigues andou perto ao referir que o segredo estava ligado ao grupo do Pereira Carvalho. De facto, está... Mas ao contrário do que o bom doutor pensa, os jovens nortenhos seus amigos não estão a confeccionar o jantar, mas sim a ser... confeccionados! (2) PROSITT tira uma caveira debaixo da mesa e coloca-a à vista de todos. Em seguida molha o dedo na travessa com a carne e prova o molho libidinosamente. 540 Sampaio & Almeida PROSITT (CONT'D) E a mim...parece-me que não está nada mau! Bem-vindos ao meu convivium bellua! 12. GP PROSITT PROSITT começa a rir loucamente perante o ar horrorizado dos demais. Alguns dos homens olham para os pratos enquanto outros se esforçam por não vomitar mesmo ali. 13. CONJUNTO DOS CINCO DA FILA DE DUARTE 14. CONJUNTO DOS CINCO DA FILA DO GENERAL DUARTE fica sentado sem reacção a observar o que se passa. Começa a ouvir frases reveladoras e a rever na sua cabeça: 15. DUARTE, DUAS ESCALAS, PARA INTERCALAR COM OS FLASHES E COM TODA A ACÇÃO EM RÁPIDOS “FLASHES” OS ACONTECIMENTOS RECENTES (ESTILO VERTIGO). Lembra-se de frases como “ELES VÃO SENTIR NA PELE O JANTAR QUE LHES PREPARO!” “VÃO ESTAR PRESENTES NO MEU JANTAR EM CARNE E OSSO”. Os “flashes” sucedem-se, agora com maior nitidez: “EZEQUIEL E O OUTRO HOMEM AFRICANO A SAÍREM DO NEVOEIRO” leva-o a pensar no rapto dos dois nortenhos, na sua confecção… “PROSITT PARA PEREIRA CARVALHO: ESSA SUA GRAVATA É UM LUXO DE BOM GOSTO!” 16. INSERT DA GRAVATA DE PROSITT Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) Um Jantar Muito Original Repara então na gravata de PROSITT: é a mesma que Pereira Carvalho usava! DUARTE levanta-se completamente fora de si. DUARTE (VO) Este é o momento em que perdemos o controle! (15) DUARTE agarra num jarro com vinho e atira-o contra a cara de PROSITT, que não pára de rir. Em seguida atira-se a PROSITT, como um selvagem. Os restantes membros do grupo seguem-no, destruindo o espaço e atacando PROSITT. No meio da confusão alguém grita “PELA JANELA!”. 17. DUARTE ATIRA-SE A PROSITT Como um bando enlouquecido, incitado pelo GENERAL CAEIRO, que em pé explode de raiva, agarram PROSITT e preparam-se para o atirar pela janela. XAVIER e o ENGENHEIRO PERES são os primeiros a agarrá-lo, logo seguidos por todos os outros. Mas DUARTE deixa-se ficar para trás e o GENERAL CAEIRO continua a vociferar e a dar ordens, em pé no seu lugar. As empregadas ficam a observar tudo, muito juntinhas primeiro e depois fogem para o corredor. EZEQUIEL, num primeiro momento faz menção de socorrer PROSITT, mas depois dá uma gargalhada de satisfação e fica a assistir ao “espectáculo”. Já PROSITT está prestes a ser lançado pela janela, quando se ouve um assobio que os trava. É DUARTE, que tem na sua mão uma enorme faca de trinchar. 18. CONJUNTO DOS HOMENS A ATIRAREM-SE A PROSITT E A CARREGAREM-NO NA DIRECÇÃO DA JANELA 19. AS MENINAS E EZEQUIEL, COM TODA A SUA ACÇÃO – DUAS ESCALAS 20. GP DUARTE DUARTE Párem!...Tenho uma proposta 541 Sampaio & Almeida Um Jantar Muito Original muito mais... ORIGINAL! 2. APROXIMADO/GP DE DUARTE, FALANDO PARA A CÂMARA 21. CONJUNTO – OS HOMENS PÁRAM DE REPENTE, CARREGANDO PROSITT 3. INSERT DA BANDEJA A SER DESTAPADA, DESCOBRINDO A CABEÇA DE PROSITT Os homens páram e olham para DUARTE RODRIGUES. Na sala passa a ouvir-se só A GARGALHADA de PROSITT, que se transforma num GRITO, que se prolonga pela imagem que funde em negro, para depois abrir na cena seguinte. DUARTE (em discurso directo, irónico e pausado) No fim, tal como Prosi\ previra, tudo acabou por fazer sentido… Novos tempos se adivinham, mas até lá... pelo menos, ganhámos um bom prato! 28 INT. SALÃO DE JANTAR DA SOCIEDADE GASTRONÓMICA NOITE Os diversos membros da Sociedade Gastronómica de Lisboa deliciam-se com o jantar. DUARTE levanta-se e pausadamente tira a tampa de uma bandeja de prata de colocada à sua frente, descobrindo, nada mais nada menos, do que a CABEÇA DE PROSITT, com uma maçã na boca (ao vermos a cabeça começamos a ouvir o HINO DA ALEGRIA SINFONIA Nº 9 “CORAL 2” DE BEETHOVEN). O gáudio é geral. A Sociedade Gastronómica de Lisboa está reunida para mais um jantar. O cenário é em tudo igual ao que vimos na CENA 4, a única diferença é o modo como os membros da Sociedade estão sentados. Na cabeceira, encontrase agora o Dr. DUARTE RODRIGUES. 1. DUARTE À CABECEIRA DA MESA, FALA PARA A CÂMARA - TRAVELLING PARA TRÁS SOBRE A MESA: DUARTE TIRA A TAMPA DA BANDEJA, DESCOBRINDO A CABEÇA DE PROSITT. A CÂMARA PÁRA E QUANDO ENTRA A MÚSICA RETOMA O MOVIMENTO AGORA MAIS RÁPIDO E SUBINDO, ATÉ MOSTRAR A SALA EM PICADO E TODOS A BANQUETEAREM-SE. A IMAGEM FUNDE A NEGRO E A MÚSICA PROLONGA-SE PELO GENÉRICO FINAL / FICHA TÉCNICA. FINIS Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 542 Sampaio & Almeida Um Jantar Muito Original Bibliografia CARRIÈRE, Jean-Paul; BONITZER, Ted (1996). Prática do Roteiro Cinematográfico. São Paulo: JSN Editora. (2013). A Theory of Adaptation. Oxford: Routledge. Second edition. NANNICELI, Ted (2021). “Seria o roteiro uma obra de arte?” [trad. de Pablo Gonçalo e Lúcia Ramos Monteiro]. Esferas, n.º 21, dossiê “Estudos de roteiro: histórias e poéticas entre a palavra e a imagem”, pp. 28-46. https://doi.org/10.31501/esf.v1i21.13445. PESSOA, Fernando (2017). “Um Jantar Muito Original. A Very Original Dinner”. A Porta e Outras Ficções. Edição e tradução de Ana Maria Freitas. Lisboa: Assírio & Alvim, pp. 77-137. _____ ([2008] 2014). Quaresma Decifrador – As Novelas Policiárias. Edição de Ana Maria Freitas. Lisboa: Assírio & Alvim. 1.a ed., 2008; 2.a ed., 2014. _____ (1978). “Um Jantar Muito Original”. Fernando Pessoa e a Literatura de Ficção. Editado e traduzido por Maria Leonor Machado de Sousa Lisboa: Novaera, pp. 98-105. HUTCHEON, Linda Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 543 Sampaio & Almeida Um Jantar Muito Original MARIA DE LURDES SAMPAIO é Professora na Faculdade de Letras da Universidade do Porto e investigadora do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa (ILCML). Tese de mestrado em Estudos Anglo-Americanos sobre Ezra Pound (Universidade de Coimbra) e doutoramento em Literatura (Literatura Comparada), na Universidade do Porto, com a tese História Crítica do Género Policial em Portugal (1870-1970): Transfusões e Transferências, 2 vols. Áreas de investigação: Literaturas em Língua Portuguesa (séculos XX e XXI), Tradução e Cultura / Interculturalidades, Modernismos, Literatura Policial / Criminal, Cânone vs. Não Cânone, Censura. MARIA DE LURDES SAMPAIO is Professor at Faculdade de Letras of the University of Porto and researcher of Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa (ILCML). She holds a MA on Anglo-American Studies (about Ezra Pound) from University of Coimbra and a Ph.D. (Comparative Literature) from University of Porto (dissertation: História Crítica do Género Policial em Portugal (1870-1970): Transfusões e Transferências). Areas of research: Portuguese-language literatures (from 19th to 21st cent.), Translation and Culture / Interculturalities; Modernisms, Detective / Crime Fiction, Canon vs. Non-Canon, Censorship. ––– ANDRÉ ALMEIDA graduou-se em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e atualmente frequenta o mestrado em Estudos Literários, Culturais e Interartes na Faculdade de Letras da Universidade do Porto (FLUP), onde desenvolve uma dissertação com o título “A Miscelânea como Método nos Mistérios de Lisboa de Camilo e Ruiz”. É co-fundador do cineclube Lastro e está neste momento a organizar um colóquio sobre cinema e literatura giallo – duas iniciativas apoiadas pelo Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa (ILCML). É também guionista, sendo o seu mais recente trabalho o curta-metragem The Strange Disappearance of Comrade Kuliakov (2022). ANDRÉ ALMEIDA graduated in Image and Sound from the Federal University of São Carlos (UFSCar) and is currently pursuing a master's degree in Literary, Cultural, and Interarts Studies at the Faculty of Le_ers of the University of Porto (FLUP), where he is developing a dissertation titled “The Miscellany as Method in the Mysteries of Lisbon by Camilo and Ruiz”. He is a cofounder of the Lastro cineclub and is currently organizing a colloquium on giallo cinema and literature – both initiatives supported by the Margarida Losa Institute of Comparative Literature (ILCML). He is also a screenwriter, with his most recent work being the short film The Strange Disappearance of Comrade Kuliakov (2022). Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 544 !"#$%&'()*"+'$*",*"'$$'$$-(*",#")#%#&.(-/*$ !"#$%&'()*+$%,)&$%-.%'#$%#$'$(-*/0&%1233$(4 !"#$%&'("&)%*#! !!"#" #$%&' )*+*,!"# $%& '&(# $)*)# + ,-.# $&/-0121.33# 45(6- !.'/0%&1-( 2*( 345-( 67&148&9:.;( #$%&'( !<'&-( ='%0375/.;( >0?@&( A.@/&( B.37@( 7( #$%&'( !<'&"( C.3( D.73&@( 7( /7E/.@( $7( F7'5&5$.( !7@@.&( 7( @70@( G7/7'H543.@-( #175C.;( I4%071( J.'%7@"( K4C/.'4&( B07''&"( =1L&5.( M7'H543."( K?/.'(A.''74&"(I&'C.(!&4N&"(=5/H54.(O0':7@"(!&01.(!4'7@"(I4%071(I.'74'&"(I4%071(P057@"( !&01.(A&1&/'Q"(>&R'75C7(=114@/.5SB'7457'"(75/'7(.0/'.@ !"#$%&'(%$&)*+,*-./0&1-02&1-$+"*&34-&506$&5%4/04%$&3072& "#$%! &%#'%( 89:;<=2& "0& >$34"& ?@+)A2& B4)*-& "0& ,$6& B*%/$& 4/5%0CC4*+$"*&1-02&/$6&C$4-&"$&C$6$2&"4%4#4-.C0&D&E46A0,04%$ 5$%$&)*/5%$%&*&E46A0,0&5$%$&30%&*&B46/0&+*3$/0+,0F&G4+A$& 1-0&)*/5%00+"0%&/06A*%&*&1-0&$)$E$%$&"0&30%F&H$&0+,%0. 34C,$&1-0&6A0&B47&5$%$&*&)*!+ ),-./#!0%!*%(-/1!2-(%1!%!30%4/15 $& 5%*5IC4,*& "$& 0C,%04$& "0& 67,! 8,$! 6/0/! + 9:%! 6,(:4.;.%11! <#$=!8*&,J,-6*&0/&4+#6(C&C*$&/06A*%=2&0/&*-,-E%*&"0&KLKM2& )*+B0CC*-./0&1-0&$&C-$&0N50,$,43$&0%$&,$/EO/&0CC$F&HP*& $/E4)4*+$3$& +0)0CC$%4$/0+,0& 1-0& *& B46/0& ,430CC0& -/& +Q/0%*&%0)*%"0&"0&0C50),$"*%0C2&+0/&1-0&0C#*,$CC0&C$6$C& C-)0CC43$C2& ,%*)$3$& ,-"*& 4CC*& 5*%& -/& 5QE64)*& /$4C& 64/4. ,$"*2&/$C&1-0&C0&"0CC0&$*&,%$E$6A*&"0&30%&-/&B46/0&"-$C&3070C2&5$%$&/06A*%&%05$%$%& +*C&C0-C&5*%/0+*%0CF&67,!8,$!6/0/ O&0B0,43$/0+,0&-/&B46/0&)A04*&"0&)$/$"$C2&+*& /04*& "$& *%#4$& 34C-$6& A$E4,-$6& +*& )4+0/$& "0& '(%$2& B04,$& "0& -/& 0N50%4/0+,$64C/*& +$%%$,43*&0&)*+)05,-$6&0&"0&+P*&64+0$%4"$"0CF !C,$& 5*C,-%$& 50%$+,0& *& )4+0/$& O2& "0& %0C,*2& -/$& 6-,$& $+,4#$& "*& %0$647$"*%F& !"#$%&'(%$&)*+B0CC$.C0&4+30R*C*&"$C&$%,0C&50%B*%/$,43$C&0&"$&C-$&3*6$,464"$"0&0&RS& 5%*)-%*-&$C&/$4C&"430%C$C&B*%/$C&"0&)*+,%$%4$%&$&4+034,S306&)%4C,$647$TP*&"*&)4+0/$F& !+,0+"$.C0U&-/&0C50,S)-6*&"0&"$+T$&*-&,0$,%*&3$%4$&4+034,$306/0+,0&"0&$5%0C0+,$TP* 5$%$&$5%0C0+,$TP*2&5*%&/$4C&1-0&*C&4+,O%5%0,0C&C0&0CB*%)0/&5$%$&C0&%050,4%0/V&0+1-$+,* -/&B46/02&$CC4/&)*/*&-/&643%*2&O&$6#*&"0&0C,S,4)*2&$)$E$"*&0&4/-,S3062&C0/&/$%#0/& 5$%$&,%$+CB*%/$TP* "0&C0CCP*&5$%$&C0CCP*F& H$& 6-,$& 4+C$+$& )*+,%$& 0C,$& 604& "$& +$,-%07$& "*& *ER0,*& B46/02& !"#$%& '(%$& RS& 0N50%4/0+,*-&)4+0/$.50%B*%/$+)0&0&C0CCW0C&4+,0%$,43$C2&1-0&B$70/&"0&)$"$&0N4E4TP*& -/& /*/0+,*& Q+4)*& 0& 4%%050,J306F& XP*& 0N0%)J)4*C& "0& B%*+,04%$& "0& B*%/$,*2& 0+,%0& *& )4+0/$&0&$C&*-,%$C&$%,0C2&%$%*C&0&/$6&)*/5%00+"4"*CF&'*%1-0&"0&%0C,*2&$&B*%/$&1-0&*& )4+0/$&,0/2&,$6&)*/*&$&64,0%$,-%$2&"0&+P*&C0&%0+"0%&D&4/-,$E464"$"0&0+1-$+,*&*ER0,*& ! #$%&'()&*"%&+('%)",-"%'.-/0 -"1)&.02'$(03 Halpern O estranho caso está do lado do espectador. Ou seja, apesar do objeto permanecer inalterável, a perceção de cada espectador a cada visionamento pode modificar-se, criando, no limite, a sensação de que se poderá estar a ver um filme diferente. Para tal é determinante a criação de um filme com várias camadas e uma riqueza de pormenores que poderá escapar a uma primeira leitura. Tal acontece em Não Sou Nada. Aliás, Pêra é um adepto de criar literalmente camadas visuais, através do recurso à técnica da sobreposição de imagens. No caso de Não Sou Nada, parece claro, logo à partida, que haverá diferenças substanciais na perceção de um filme para um pessoano e um espectador estrangeiro que nunca teve contacto com a escrita do maior dos poetas portugueses. Tal não quer dizer que a ignorância perante a vastidão do universo pessoano prejudique drasticamente a leitura ou fruição do filme, até porque, na sua base, o filme está desenhado como um thriller psicótico com contornos surrealistas. Quem conhecer bem o universo pessoano tem muito por onde se entreter, na identificação das falas de cada personagem, embora corra eventualmente o risco de passar ao lado das curvas da narrativa, que nem sempre são de seguimento claro. Edgar Pêra propõe-se à missão impossível de imaginar o que se passa dentro da cabeça de Pessoa e montar ou desmontar o seu processo criativo plural e fragmentário. Pessoa é uma multidão, um conjunto de vozes que se atropelam e desafiam numa esquizofrenia criativa. Cinematograficamente isto traduz-se numa multidão de Pessoas, que disputam tarefas num escritório sob a égide de Pessoa homónimo. Tudo aquilo funciona como uma redação de um jornal do início do século XIX. O pressuposto é fácil: para responder à latitude dos impulsos criativos de Pessoa não bastaria um homem, seria necessária uma multidão. O português comum, que estudou Pessoa na escola, conhece a existência de heterónimos, mas limita-os normalmente aos três mais determinantes – Álvaro, de Campos, Ricardo Reis e Alberto Caeiro – e eventualmente Bernardo Soares, o autor do Livro do Desassossego, para muitos (e para Pessoa) considerado um semi-heterónimo. Aliás, a disputa entre os heterónimos pela autoria do Livro dos Desassossego repete-se ao longo o filme e é um dos elementos de humor. Socorrendo-se de um livro editado por Jerónimo Pizarro e Patricio Ferrari (Eu Sou Uma Antologia), Edgar Pêra dá rosto a dezenas de heterónimos, sendo que a grande maioria surge quase como figurantes – a verdade é que quase todos têm um papel muito secundário na própria criação de Pessoa. Desta linha emergem várias figuras, que se disputam, digladiam, num conflito permanente com frutos criativos. É uma amálgama intelectual e formal, terreno tranquilo para Pêra, realizador que trabalha bem com a organização ou assumpção do caos, sem receio de deixar o espectador perdido. Claro que nesta multidão de heterónimos há protagonistas, que são os heterónimos mais significativos. Não só Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis, mas também o Barão de Teive e António Mora. São todos vítimas e Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 546 Halpern O estranho caso predadores. Ou por outra, elementos do policial que Pêra vai desenhando na cabeça de Fernando Pessoa. Dentro deste casino de heterónimo, que o próprio Pessoa controla com dificuldade, Edgar Pêra acrescenta um elemento impositivo e desestabilizador: Ofélia Queiroz. Pêra faz da companheira intermitente de Pessoa um heterónimo feminino, que entra nos jogos de disputa de poder e que geralmente lhes ganha ascendente. Curiosamente, Ofélia não é retratada como a tímida namorada de Pessoa, apresentase antes com uma verdadeira femme fatale, chamada para o papel a atriz e modelo Victória Abril, que aparece deslumbrante. A explicação é simples: passando-se tudo no cérebro de Pessoa, Ofélia, apesar de, ao contrário dos outros, ter uma existência carnal, ganha na sua imaginação uma imagem de exacerbada beleza e influência. É como Pessoa a perceciona. Edgar Pêra corre, porém, alguns riscos no elenco. O papel de Pessoa heterónimo acabou por ser entregue a Miguel Borges, ator de perfil galã e extrovertido, que contraria a imagem tantas vezes divulgada de um Pessoa misógino ou assexuado. A verdade é que o Pessoa de Não Sou Nada é o CEO de uma grande equipa de conteúdos criativos. O resto do elenco é menos surpreendente, mas cumprem sempre bem os seus papéis atores talentosos como Paulo Pires, Albano Jerónimo, Vítor Correia, Miguel Nunes ou António Durães. No meio deste ambiente louco, o filme desenha-se simultaneamente como um thriller. Alguém anda a matar heterónimos, e Fernando Pessoa homónimo lidera a investigação para descortinar quem é o assassino (supostamente será um dos próprios heterónimos). O contexto é demasiado difuso para espoletar as emoções típicas de um thriller. Ainda mais porque, o realizador acaba por fazer uma alternância de planos, mostrando também Pessoa num hospício, aumentando ainda as camadas, ou a ideia de fusão da realidade com a imaginação. Esta não é a primeira vez que Edgar Pêra se dedica a Fernando Pessoa. Já o havia feito em diferentes ocasiões e agora está a terminar um documentário onde imagina uma troca de correspondência entre o poeta português e o americano H. P. Lovecraft. Eles que nem sequer se conheceram, mas Pêra descobre afinidades através dos seus próprios textos. Edgar Pêra é um dos maiores ícones mundiais de cinema independente, com mais de uma centena de filmes realizados e uma pulsão para filmar compulsivamente. Está permanentemente a trilhar caminhos alternativos dentro do próprio cinema, que vão muito além de propostas narrativas diferentes. Aliás, o seu trabalho 3D é algo tão ousado quanto raro no mundo inteiro. Em Não Sou Nada, filme apanhado pela pandemia, conseguiu condições muito especiais. Um orçamento acima do costume, bastante tempo de preparação e uma equipa técnica e artística fechada numa antiga fábrica, sem poder abandonar o espaço, devido às regras do confinamento. Tal fez com que Pêra criasse e recriasse com meios pouco habituais (costuma fazer um cinema de guerrilha, com poucos Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 547 Halpern O estranho caso meios). Se ele pudesse, teria feito o estúdio em forma de labirinto, assim como, de alguma forma, desenhou o filme. Manoel de Oliveira dizia que não é possível filmar o pensamento. Edgar Pêra, contudo, não tem pudor em ousar fazê-lo. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 548 Halpern O estranho caso MANUEL HALPERN é jornalista e crítico de cinema do Jornal de Letras, Artes e Ideias, desde 1998, colaborador permanente da revista Visão e fundador da revista literária A Morte do Artista. É autor dos livros O Futuro da Saudade – O Novo Fado e os Novos Fadistas (ensaio, 2004); O Segredo do Teu Corpo/Palco (teatro, 2006); Fora de Mim (ficção, 2008), O Homem do Leme (crónicas, 2018) e Escama Rímel Carapaça (poesia, 2023). Nascido em Lisboa, no ano da Revolução dos Cravos, é licenciado em Comunicação Social, pela Universidade Católica Portuguesa, com pós-graduação em Crítica de Cinema e Música Pop, na Universidade Ramon Lull em Barcelona e foi bolseiro da FLAD (Washington, EUA, 2013) e da Fundação Gabriel García Márquez (Cartagena de Índias, Colômbia, 2014). Membro da Federação Internacional de Críticos de Cinema (FIPRESCI), foi jurado de diversos festivais, integrando atualmente os júris de atribuição de subsídios do Instituto do Cinema e Audiovisuañ (ICA). MANUEL HALPERN is a journalist and film critic for Jornal de Letras, Artes e Ideias since 1998, a regular contributor of Visão magazine, and the founder of the literary magazine A Morte do Artista. He is the author of several books, including O Futuro da Saudade – O Novo Fado e os Novos Fadistas (essay, 2004); O Segredo do Teu Corpo/Palco (theatre, 2006); Fora de Mim (fiction, 2008); O Homem do Leme (chronicles, 2018); and Escama Rímel Carapaça (poetry, 2023). Born in Lisbon, in the year of the Carnation Revolution, he graduated in Social Communication from the Portuguese Catholic University, with a postgraduate degree in Film and Pop Music Criticism from Ramon Lull University in Barcelona. He was a scholarship recipient of FLAD (Washington, USA, 2013) and the Gabriel García Márquez Foundation (Cartagena de Índias, Colombia, 2014). A member of the International Federation of Film Critics (FIPRESCI), he has served as a jury member for various festivals and is currently a member of the grant allocation juries at the Institute of Cinema and Audiovisual (ICA). Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 549 !"#$%&'()*+,('-$%'."+%&/ !"#$%&'()*+%))(#*,%#('-. !"#$%&'"()*#+! !!"#$%" #$%&'()*+,-.!"#$%&'()&*#+*,-%&.#&/#%0#1,20#3&%#4/5'&*/,6#7%#89':/#/9/20#5'%;03, */0123')45) 4(6$78'&9:)/;!<)=170&4)/01>1'7:)-?,)66:)@ABCD)EF?G-H?.EHIIH-J !"#$%&%$'()*'$%#%+",-'"-.$%'-'/(0,-'1%'()'203)%'4(%'+,-' 2-0'203)*1-'#-)5-$6*'*3/()*"'1020#(31*1%"7'8(%)'39'6%)'1%' 0)*/0+*$ #-)-' *"' 5*3*&$*"' 1-' /(0,-' 5-1%$0*)' %+6,-' "%$' 6$*+"2-$)*1*"'%)'0)*/%+"7':,-'5-1%)-"'"*.%$'#-)'#%$6%;*' #-)-' -' $%*30;*1-$' 0$0*' 53*")*$' %)' 0)*/%+"' -' 6%<6-7' =*' )%")*' 2-$)*>' 6-1* * -.$*' 1%' 20#?,-' @' ()*' -.$*' 4(%' +,-' +%#%""*$0*)%+6%'@'20%3>'4(%$'A'"(5-"6*'$%*301*1%'4(%'$%5$%B "%+6*>'4(%$'A"'-.$*"'+*"'4(*0"'"%'.*"%0*7'"#$%&'$(!)(*+#$,!$-!#.! /*0.!1$#!2-3%$(-*4!5#!67%8-!-7-0.!3%#9.1* CDEFGH>'1%'I*$3-"'J6*+%"> @' -' /(0,-' 1%' ()' 203)%' 4(%' -' 10$%6-$' #*6*3,-' +,-' #K%/-(' *' 203)*$ %'4(% $%#-+"6$L0'*'M-$+*1*')N"60#*'1%'I$-O3%P'+*'Q-#*' 1-'R+2%$+->'+-'#-+6%<6-'1*'S(*6'%/N5#0* C"(.)(+1-H>')%10*+6%' %+#-+6$-"' #-)' 20/($*"' 0)5-$6*+6%"' 1%' "(*' &01*' %' *6$*&@"' 1% ()' #-+2$-+6-' #-)' -' 1%)L+0-'IK-$-+;-+7'J'%"6$(6($*'1-'/(0,-'"%/(%'*'-$1%)'0+&%$"*'1-"'J$#*+-"'T*0-$%" 1-'S*$U'1%'I$-O3%P>'*'"*.%$V'W'X+0&%$"-Y'W'J%-+Y'W'Z-3Y'J'[(*Y'J'!"6$%3*Y'J'S-$$%Y' W'=0*.-Y'J'J$6%Y'J'T-$6%Y'W'\%+1($*1-Y'J'[(<]$0*Y'J'^-$6(+*Y'W'!$%)06*Y'J'_("60?*Y' W'I*$$-Y'W"':*)-$*1-"Y'W'`0%$-2*+6%Y'W'R)5%$*1-$Y'J'R)5%$*6$0;Y'J'Z*#%$1-60"*Y'W' T*/-Y'%'W'[-(#-7'J""0)>'%)'Ga'"%4(9+#0*">'J6*+%"'$%#$0*$b'-'1%"#%+"-'*-'"(.)(+1-' 1-')*/->'1%"#$%&%+1-'-'%+#-+6$-'4(%$'#-)'5%$"-+*/%+"'1*'&01*'1%'I$-O3%P> 4(%$' #-)'1%01*1%"'%'1%)L+0-"'%"-6@$0#-"7'=%"1%'()'5-+6-'1%'&0"6*'5%""-*+->'-'%"#$06-$' 5-$6(/(9"'*5%+*"'*5*$%#%'+-'0+N#0-'%'+-'20)'1-'%+$%1- 5*$*'M("6020#*$'-')(+1- 0)*/0B +b$0-'1%'I$-O3%P +-'#-+6%<6-'1*'&0"06*'$%*3'1-')*/-'*'\-$6(/*3'%'1-'"(0#N10-'20+/01-7' J'0+6$0/*'@'*5*$%+6%)%+6%'"0)53%"7 J'"%4(9+#0*'4(%'*.$%'-'/(0,->'0+606(3*1*' cR+2$*)(+1-d>'"06(*'J3%0"6%$'I$-O3%P'%'`*++0'[*$0""*'_*%/%$> 4(%'"%'%+#-+6$*)'#-)' ^%$+*+1-'\%""-*>'5-""0&%3)%+6%'+()*'5$*0*'1%'I*"#*0"'5%$6-'1*'Q-#*'1-'R+2%$+-7' :*"'"%4(9+#0*"'"%/(0+6%">'\%""-*'%'I$-O3%P'10$0/%)B"% A'Q-#*'1-'R+2%$+-'%> 5-(#-' 1%5-0"> I$-O3%P'"*36*>'-('@'%)5($$*1-'5-$'\%""-*>'*-')*$7'J'5*$60$'1%""%')-)%+6-> #-)%?*'*'1%"#01*'1-')*/-'A'S(*6'%/N5#0*7':*"'"%4(9+#0*"'5-"6%$0-$%"> -'3%06-$'*""0"6%' *'()*'"@$0%'1%'#%+*"'%)'4(%'-'5$-6*/-+0"6*'"%'%+2$%+6*'#-)'-"'1%("%"'%/N5#0-"'1*' &01*'%'1*')-$6%'%'#-)'-'1%)L+0-'IK-$-+;-+7'W'/(0,-'%"6*.%3%#%'()'M-/-'%"5%#(3*$' ! #$%&'()*+,-." ,&" /0'1,-2(-.+3&$(-" $-" 4&$(.-" ,&" 5)(&.+(2.+" 6-.(2*2&'+" ,+" 7$)%&.'),+,&" ,& 4-)38.+9"8-:'&).-";4<16=4>? Giménez Cinema oculto sem filmar entre o imaginário de Crowley na descida ao submundo e a estância do mago num Hotel de Estoril, sugerindo, assim, certa obliquidade entre a realidade e a ficção da personagem. Misturam-se, desta forma, dados da biografia de Crowley junto com o relato da luta do protagonista pela sua alma após ter caído na Boca do Inferno. O mago vence a batalha e nas sequências finais volta a encontrar-se com Pessoa e com um conjunto de jornalistas que procuravam o mago desaparecido. Nessa sequência, Pessoa desvela que se tratou de uma farsa, ao que Crowley responde: CROWLEY Si todo es una farsa nada lo es. Ser o no ser, ésa es mi cuestión. He esquivado la venganza de Choronzón, no he mordido su anzuelo y he sorteado el Abismo. A medida que habla, Crowley va subiendo el tono de voz, por encima del rumor de las olas, dirigiéndose a toda la concurrencia, que en estos momentos parecen más interesados en Hanni / Leila que en lo que él pueda decirles. CROWLEY He vencido a una muerte peor que la muerte. Y aquí tengo la prueba. Crowley se recoge la túnica y mete una mano en la entrepierna del pantalón. Hurga buscando algo. Extrae la oreja cortada de Chorozón. CROWLEY (pletórico, dando la vuelta al ruedo) Sólo hay una verdad, y la tengo en la mano. ¿Es que no la veis, ni a la luz del día? ¿Tan necios sois, que vencida ya la noche perseveráis en vuestra miserable comedia? ¿Aún pretenderéis juzgarme? ¡Bien, adelante! Pero el único testimonio que obtendréis de mí será mi risa. Por que yo me río de vosotros, de todos, de vuestra fe, de vuestros miedos y hasta de vuestras pequeñas vidas. Miro a mi alrededor y sólo veo... ¿Masturbación?... Si. Y ¿sabéis qué, mocosos? No siento odio no desprecio ni lástima. Crowley, de pie en medio del círculo de arena, triunfante, alza la oreja de Choronzón. (ATANES, 2013: 176-177) Acredita-se que o guião é uma criação livre a partir dos tópicos mencionados. Apesar desse esclarecimento, a construção de Atanes cai em alguns clichés sobre Fernando Pessoa, o ocultismo e o esoterismo que terminam por embaçar o projeto no seu conjunto, como na sequência XI, em que Crowley dialoga com o seu reflexo no espelho e define Pessoa com base na saúde mental: “No. Pero padece un trastorno de personalidad múltiple, como tú” (ATANES, 2013: 53). Além disso, como demonstram a correspondência e os testemunhos, Pessoa perdeu rapidamente o interesse em Crowley, durante e depois da visita do mago a Portugal. Apesar da estrutura narrativa ser bem pensada, numa ordem inversa aos Arcanos do Tarô, a transição entre sequências, no roteiro, carece de uma diegese mais completa que contextualize o discurso direto e possa oferecer também indicações de como seriam filmados os planos. O texto não consegue descrever aquilo que vai estar na imagem e não há Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 551 Giménez Cinema oculto sem filmar indicações sobre que estética se vai integrar no filme quando realizado. O leitor pode ficar perdido no simbolismo ocultista que, sem diegese, parece excessivo: HORUS (OFF) La clave del reino de los muertos está en la palabra secreta que te ha sido dada. Pronuncia ahora tu nombre mágico de eternidad... Horus queda callado, inmóvil, con el cetro en alto, unos segundos interminables. Nadie se mueve. Al cabo, retoma el discurso. HORUS (OFF) Pronuncia ahora tu nombre mágico de eternidad sin el que ningún dios te considerará un Justificado, y sin el que no podrás sobrevivir en el inframundo. No ha acabado Horus de pronunciar el último párrafo, e Isis y Neftis ya le han extraído la máscara a Crowley, develando su rostro: CROWLEY Mi nombre es La Bestia. (ATANES, 2013: 29) Mesmo que se trate de uma criação livre, acredita-se que o guião poderia terse beneficiado de uma maior investigação prévia. Em 2012, na revista Pessoa Plural, Marco Pasi publicou importantes textos sobre a relação entre Pessoa e Crowley. Em 2019, Steffen Dix publicou, na Tinta-da-china, um dos melhores estudos sobre o poeta e o mago: O Mistério da Boca do Inferno (2019). No mesmo ano, Cristina Zhou (2019) defendeu a tese de doutoramento Problemática Metafísica e Especulação Esotérica na Poesia Portuguesa da Modernidade: de Antero a Régio, e, em 2022, Rita Marrone defendeu a tese Os “Livros Ocultos” de Fernando Pessoa: Um Estudo da Biblioteca Esotérica de Fernando Pessoa. Todos estes trabalhos, quase todos posteriores à publicação do guião, apresentam um esforço científico para justificar o discurso sobre esoterismo e ocultismo na academia, para que seja estudado com um objeto e um marco teórico despojado do preconceito ao qual está comumente associado. Por exemplo, as leituras esotéricas de Fernando Pessoa nutrem a atividade de criação entre arte e conhecimento ao mesmo tempo em que situam o pensamento esotérico num lugar de relevância dentro da obra pessoana e do debate académico. O discurso esotérico alumbra mais um sentido do puzzle pessoano que é preciso reivindicar. Como dito anteriormente, resulta complicado, se não impossível, imaginar como o realizador teria representado em imagem-movimento o guião que nos propõe. As imagens poderiam sobrepor-se às palavras para apresentar um filme pictórico além da letra. Não se pode saber. Mas o texto que foi analisado, sem o suporte das imagens e sem uma diegese mais detalhada, ou menos elíptica, que contextualize o discurso direto, pode cair na banalidade e na superficialidade associada comumente ao ocultismo e que esforços académicos recentes tentam contextualizar e desmitificar. Neste sentido, torna-se obscuro justificar em termos Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 552 Giménez Cinema oculto sem filmar estéticos, para além do cliché, descrições de extração de órgãos, relações sexuais, diálogos esotéricos, Arcanos e sonhos vários associados à viagem de Crowley à Boca do Inferno. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 553 Giménez Cinema oculto sem filmar Bibliografia MARRONE, Rita Catania (2022). Os “Livros Ocultos” de Fernando Pessoa: Um Estudo da Biblioteca Esotérica de Fernando Pessoa [Tese de doutoramento]. Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. https://hdl.handle.net/10316/100123 PASI, Marco (2012). “September 1930, Lisbon: Aleister Crowley's lost diary of his Portuguese trip”. Pessoa Plural—A Journal of Fernando Pessoa Studies, n.º 1, Primavera, pp. 253-283. Brown Digital Repository, Brown University Library. https://doi.org/10.7301/Z03N21MS PASI, Marco; FERRARI, Patricio (2012). “Fernando Pessoa and Aleister Crowley: New discoveries and a new analysis of the documents in the Gerald Yorke Collection”. Pessoa Plural—A Journal of Fernando Pessoa Studies, n.º 1, Primavera, pp. 284-313. Brown Digital Repository, Brown University Library. https://doi.org/10.7301/Z07D2SCK PESSOA, Fernando (2019). O Mistério da Boca do Inferno. Correspondência e Novela Policial. Edição de Steffen Dix; tradução de Sofia Rodrigues. Lisboa: Tinta-da-china. ZHOU, Cristina (2019). Problemática Metafísica e Especulação Esotérica na Poesia Portuguesa da Modernidade: de Antero a Régio [Tese de doutoramento]. Coimbra: Faculdade de Letras. https://hdl.handle.net/10316/87606 Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 554 Giménez Cinema oculto sem filmar DIEGO GIMÉNEZ, Doutor em literatura e pensamento pela Universidade de Barcelona, com uma tese sobre o Livro do Desassossego, é também Mestre em Estudos Literários e Licenciado em Filosofia pela mesma universidade. Trabalhou na redação de LaVanguardia.com e cofundou em 2008 Revista de Letras. Foi bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian e investigador no projeto financiado pela FCT “Nenhum problema tem solução: um arquivo digital do Livro do Desassossego” da Universidade de Coimbra. Foi investigador de pós-doutoramento na Universidade Estadual de Londrina onde continuou os estudos sobre Fernando Pessoa e onde lecionou as disciplinas Teoria do Poema e Teoria da Narrativa. Atualmente é investigador de pós-doutoramento no Centro de Literatura Portuguesa da Universidade de Coimbra com uma bolsa da FCT. DIEGO GIMÉNEZ holds a PhD in Philosophy and Literature by the University of Barcelona, with a thesis on The Book of Disquiet by Fernando Pessoa. He also holds a Master’s degree on Literary Studies and a Bachelor degree on Philosophy from the same institution. He worked as a journalist in LaVanguardia.com, and, in 2008, he cofounded Revista de Letras. As researcher at the Calouste Gulbenkian Foundation and at the Center for Portuguese Literature at the University of Coimbra, he worked on the Book of Disquiet Digital Archive. He was a post-doctoral fellow at the Universidade Estadual de Londrina (Brazil), where he continued to study Fernando Pessoa and taught Theory of the Poem and Theory of Narrative. Currently he is a post-doctoral fellow FCT-POCH at the Centro de Literatura Portuguesa of the University of Coimbra (Portugal). Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 555 !"##$%&"&%&'()%)"*&"+&,(-$, !"#$$%&'&()'*+#',-*./'-('0-1%02 !"#"$%&'(")&*(+ !"#$%&&'( ) *+'( ,$-'-.( -.( /.01'1-2( 3.&&2' "#$%#&'! ()*+,-*./0 )! 1023*4)15! 6)72*280! 9*77,+:0' ;74*2,-*./0!)!<708=./05!>1*4)2?!80!@AB=+0C!D7E=,F0!G=2,B,<*+!8)!H,?I0*!J K,8)03)B*'! L)M30?!+,80?!<075!D+1)20!N02.*+F)?C!>F0!9*2)+*?C!O0?A!P*++)2?3),2'!6,4=7*./0!8)!6)72*280 Q)??0*5!(=,!GR7,0C S=20!K,B)23)C DT02?0!G)2802.*' "! #$%&%'()*&+! ,-! *&)$.+! ,-*/.$)'+0! +! 1$#)+),-! 2$%%-+! 3! &)'#&4+)'$5 67&%'$.!+8$)+%!*&)*-!9&0.$%!$%'#&'+.$)'$!:&-4#;< 9&*-%= !"#$%$&'( )"**'%( + ,-&%( "( ./#% >?@ABCD! ,$! 1#&$,#&*E! 1$##F-! G+'H$)%'$&)I! )%**'*( &"( )"**'% >?@AACD! ,$ J+)/$0! K+#$00+I! 0-'1#%2%#()"**'% >?@A@CD! ,$! L-%3! J+)/$0! M+&7$&#-I! !"#$%$&'()"**'%(3(.(,-%4%$5"(6789": >?@@BCD!,$!N%+:$0!M+08$I $ !"#$%$&'()"**'% >OPPQCD!,$!R&*+#,-!R$H$),$!>8+#+!+!%3#&$! ,+! !"# S%! T#+),$%! 2-#'/4/$%$%C5! 2-,$! +*#$%*$)'+#<%$! /.! $8&%U,&-!,-!8#-4#+.+!)'"*-%("(;'9-7"$5'D ,$!?@VBD!9$&'-! )-! 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Também tem interesse Mário Viegas explorando em 1991, no programa Palavras Vivas, a última morada de Pessoa em Campo de Ourique, antes de se converter na Casa Fernando Pessoa, ou até João Villaret contando como foi apresentado a ele por António Botto, relatado em 1959 num dos seus programas de poesia. Tudo isto é visionável no website Arquivos RTP – um fundo que poderá ter outros elementos semelhantes ainda por revelar (ver: CUÉLLAR DOS SANTOS, 2020). Para mais, há várias entrevistas gravadas com os sobrinhos de Pessoa, Manuela Nogueira (1925-) e Luís Miguel Rosa Dias (1931-2019), e até curtos depoimentos televisivos de sua irmã, Henriqueta Madalena (1896-1992), para a RTP e a brasileira Globo.2 Por comparação, Almada Negreiros mereceu desde cedo um tratamento mais dedicado, com a vantagem de alguns realizadores terem acedido a ele directamente e de o terem entrevistado na tela. É o caso de Almada, Um Nome de Guerra (1969), de Ernesto de Sousa; Almada Negreiros – Vivo, Hoje, do mesmo ano, de António de Macedo; e Almada & Tudo (2000), do já referido Manuel Varella, filme começado em 1970, mas só concluído e estreado 30 anos depois (ANON., 1970). Existem também pelo menos seis produções para a RTP, a maioria delas documentários de médiametragem, de entre 1970 e 1986.3 Talvez a pergunta não seja tanto “Por que há pouca vontade para documentários sobre Pessoa?”, mas mais “Por que se faz tantos filmes de todos os outros géneros?”. Em 2017, o historiador de cinema José de MATTOS-CRUZ publicou uma lista de 44 produções portuguesas em torno do poeta de entre 1947 e aquele ano, onde se incluem os cinco documentários mencionados no começo deste texto. A topologia é interessante. Existem obras com “alusão” ao escritor (citações literárias, menções biográficas); com “recriação” (leituras encenadas, leituras ilustradas, dramatizações de poemas e peças teatrais); como “referência” (documentários, análises da obra, dramatizações especulativas); e como “reconstituição” (dramatizações mais ou menos rigorosas de períodos biográficos). A estatística mostra a compulsão de toda a sorte de realizadores e argumentistas para projectar o mundo-Pessoa, seja lá o que isso for. É, usando um termo hollywoodesco (já arrematado por uma antologia; cf. PESSOA, 2013), o verdadeiro “multiverso Pessoa”, e continua em expansão. Na RTP: peça noticiosa de 1977, em https://arquivos.rtp.pt/conteudos/encontro-fernando-pessoana-fundacao-calouste-gulbenkian. Na Globo: programa Globo Repórter de 1986, disponível em https://www.youtube.com/watch?v=9EjIgx5yQFg. 2 A saber: “Almada Negreiros” (1970) segunda parte de um episódio do programa Ensaio, realização de António Damião; “Almada Negreiros” (1977), programa A Ideia e a Imagem, por Álvaro Manuel Machado e Emídio Uva; “Almada Negreiros, um dos Inventores da Arte Portuguesa” (1977), programa Intervenção Artística, realização de José Elyseu; “Almada Negreiros – Se não for por arte não serei de outro modo”, programa Artistas Portugueses, realização de José Elyseu; Almada – Português e Mito (1985), realização de José Elyseu; “Almada Negreiros” (1986), programa Trovas Novas, realização de Dórdio Guimarães. 3 Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 557 Macdonald Pessoa e a cidade Ophiussa4 – Uma Cidade de Fernando Pessoa (70 mins., vídeo5), o filme de 2012 de Fernando Carrilho, é um caso de sobriedade. O realizador, numa nota inicial de apresentação, chama-lhe “ensaio cinematográfico”, “cine-poema”, acto de “imaginar [...] Lisboa através das palavras do poeta”, que são excertos de Bernardo Soares, Vicente Guedes e Álvaro de Campos lidos em voz-off. A cidade surge com duas faces: em imagens de agora, recolhidas para o filme, sem nunca vermos os habitantes (salvo uma excepção fugaz, no largo do chafariz da Rua de O Século) e em certas fotografias de arquivo, coevas da vida de Pessoa, aí sim com habitantes. A opção de esvaziar a Lisboa de agora e de, aliás, filmá-la com algum distanciamento, protege o espectador do lugar-comum do poderoso espectro literário daquele que ainda anda por cá a assistir à vida dos outros e a sussurrar versos. Se é para localizar Pessoa, faça-se em rigor, como Carrilho: os três actores que o representam (aos 25, 35 e 45 anos de idade, sendo que há um outro, um menino que o mostra em criança) surgem em interiores, geralmente o quarto de dormir e de escrever (não que seja um quarto em específico). Não vemos Pessoa passeando pela cidade. Os actores não falam (só se ouve a voz-off, de outros três actores). Melhor, em vez dos actores representarem Pessoa, iconografam-no, em cenários de reconstituição legítima, mas minimalista, sem de facto ser necessário mais. Há situações muito bem resolvidas. Por exemplo, por volta dos minutos 12-14, passa-se de uma dessas cenas de reconstituição inorgânica, Pessoa dactilografando num quarto e depois espreitando à janela, para um travelling lento no Miradouro de São Pedro de Alcântara – travelling que no fim pára e repousa, em vez de ceder ao expediente sedutor do movimento infinito – e a seguir corta-se para duas fotografias antigas do Tejo que, como todas no filme, respeitam a integridade dos originais e estão fixas, não incorrem no artifício do chamado “efeito Ken Burns”, o zoom em detalhes (a deferência de Carrilho pelo documento não é estranha: profissionalmente, ele coordena a Videoteca do Arquivo Municipal de Lisboa). É uma estratégia equilibrada. Vem de um autor que, depois deste filme, olhou para a cidade e o país e outros autores em documentarismo apurado: Bairro Alto – 500 Anos (2013); A Paisagem de Artur Pastor (2014); As Artes da Luz de Lisboa (2015), co-realização de Miguel Amaral; Ventura Terra – Projectar a Modernidade (2017). Ora, é essa estratégia que não faz de Ophiussa um “cine-poema”, como o realizador disse, o que é bom. Entende-se o ensejo, mas, paradoxalmente, não o cumpriu, não resvalou para a mera ilustração do texto ou para a poetização pelo filmado. A solução de Carrilho para absorvermos Pessoa é plausível. Leitura e cena não se mutilam ou banalizam mutuamente, o que costuma ser habitual neste tipo de projectos, por mais que leitura e cena tenham sido seleccionadas e concebidas com cuidado; veja-se esses ímpetos em obras tão opostas como Mistério de Lisboa – O que o turista deve ver (2008), de José Fonseca e Costa (não propriamente uma grande escolha literária) e Lisbon 4 “Ophiussa” é um nome mitológico de Lisboa, supostamente do período pré-romano. 5 60 mins. visonáveis em: https://arquivos.rtp.pt/conteudos/ophiussa-uma-cidade-de-fernando-pessoa Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 558 Macdonald Pessoa e a cidade Revisited (2014), de Edgar Pêra (exponenciado em 3D). Há, é certo, um momento em que uma certa tentação simbólica vem perturbar a licitude concebida por Carrilho: na parede de um quarto projecta-se uma sombra tripla do poeta, o tal branding heteronímico, consagrado desde 1978 numa célebre tela de António Costa Pinheiro (1932-2015), Fernando Pessoa – Heterónimo (colecção do Centro de Arte Moderna da Fundação Gulbenkian).6 Mas é um momento breve. Noutra cena, das raras construídas no exterior, com figurantes, uma jovem dentro de um elétrico sugere Ofélia, sem passar disso, portanto uma espécie de encenação mais eficaz (é quando ouvimos a passagem do Livro do Desassosego “Vou num carro eléctrico”, em parte remetente para o poema “Apostila” de Álvaro de Campos, “Passageira que viajas tantas vezes no mesmo compartimento comigo”7). Perante aquela imensidão de cinematografia pessoana até 2012, ano de estreia deste filme, e olhando para toda a outra produzida desde então, Carrilho demonstra que o Pessoa fílmico, por mais exigente que seja, está longe de ser intratável, e, por outro lado, que a captura visual da (de uma) Lisboa literária é mais surpreendente quando mais contida, principalmente se colocada acima do fenómeno do turismo literário hoje espalhado pela cidade (muito superficial na exploração do escritor, note-se, até em merchandising selvagem: parafraseando o Almada Negreiros antiDantas8, as lojas de souvenirs estão cheias de canecas Pessoa e t-shirts Pessoa e sacolas Pessoa e porta-chaves Pessoa, um sem fim). Perante tudo isto, voltando à inquirição lançada no começo do texto, conclui-se: o filme de Carrilho abre possibilidades sérias para futuros esforços de cinema objectivamente documental sobre Pessoa.9 Ver em https://gulbenkian.pt/cam/works_cam/fernando-pessoa-heteronimo-139236. Costa Pinheiro dedicou-se profundamente a Pessoa; em 1981 a Fundação Calouste Gulbenkian organizou uma exposição dedicada aos seus trabalhos sobre o escritor: Costa Pinheiro – O Poeta Fernando Pessoa (ver em https://gulbenkian.pt/historia-das-exposicoes/exhibitions/429). Essa sombra tripla, com variantes, é um cliché recorrente entre vários artistas (sem que daí venha mal ao mundo), como, por exemplo, mais recentemente, na ilustração que Nuno Saraiva (1969-) fez em 2023 para as toalhas de mesa do café A Brasileira do Chiado (ver em: https://amensagem.pt/2023/01/25/cafe-a-brasileira-chiado-novastoalhas-homenagem-lisboa-mesas-ilustrador-nuno-saraiva). 6 “(Passageira que viajas tantas vezes no mesmo compartimento comigo | No comboio suburbano, | Chegaste a interessar-te por mim? | Aproveitei o tempo olhando para ti? | Qual foi o ritmo do nosso sossego no comboio andante? | Qual foi o entendimento que não chegámos a ter? | Qual foi a vida que houve nisto? Que foi isto à vida?)”. Presença, 2.ª série, n.º 1, Coimbra, Nov. 1939; cf. PESSOA (2014: 207). 7 8 “[...] E SABONETES EM CONTA ‘JULIO DANTAS’ E PASTAS DANTAS P’RÓS DENTES, E GRAXA DANTAS P’RÁS BOTAS, E NIVEINA DANTAS, E COMPRIMIDOS DANTAS E AUTOCLISMOS DANTAS E DANTAS, DANTAS, DANTAS, DANTAS... E LIMONADAS DANTAS-MAGNESIA”. Manifesto Anti-Dantas, 1916, https://purl.pt/38677 Mesmo que ZENITH o considere impraticável no prefácio da sua biografia: “I have tried to construct, with as much credible detail as I could muster, a ‘cinematographic’ life: what Pessoa looked like and how he behaved, where his steps took him, the people he interacted with, and the lively settings where his life unfolded. But this film, on its own, would tell us little about Pessoa the writer, whose essential life took place in the imagination” (2021: xxxi). O autor, bem visto, usa os termos “film” e “cinematographic” enquanto projecções de escrita. 9 Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 559 Macdonald Pessoa e a cidade Bibliografia ANON. (1970). “Dois mil metros de filme sobre Almada Negreiros em breve, na RTP”. Diário Popular, n.º [n.d.], 17 de Junho, Lisboa, p. 6. Acessível em: https://modernismo.pt/index.php/arquivoalmada-negreiros/details/33/453 CUÉLLAR DOS SANTOS, Clara (2020). “A Pessoa por detrás da obra: Três documentários do Arquivo RTP”. Pessoa Plural—A Journal of Fernando Pessoa Studies, n.º 18, Outono, pp. 506-572. Brown Digital Repository. Brown University Library. https://doi.org/10.26300/z0x4-4r67 MATTOS-CRUZ, José de (2017). “Filmografia e presencismo”. Arte e Teoria, s. 2, n.º 20, Lisboa, pp. 245-246. Direcção de José Carlos Pereira e António Vargas. Centro de Investigação e Estudos em Belas-Artes / Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa. Acessível em: https://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/48695/2/CIEBA_ARTETEORIA_N20.pdf PESSOA, Fernando (2023). Multiverso Pessoa. Edição e prefácio de Macckeey Soto Aguirre; tradução de Jesús Caso e Renato Sandoval. Lima: Quimérica Editorial / Zafiro. _____ (2014). Obra Completa de Álvaro de Campos. Edição de Jerónimo Pizarro e Antonio Cardiello. Lisboa: Tinta-da-china. _____ (2013). Eu Sou Uma Antologia: 136 autores fictícios. Edição de Jerónimo Pizarro e Patricio Ferrari. Lisboa: Tinta-da-china. ZENITH, Richard (2021). Pessoa: A Biography. New York: Liveright. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 560 Macdonald Pessoa e a cidade JOÃO MACDONALD é jornalista desde 1994, e historiador de arte. Mestrando na Faculdade de BelasArtes da Universidade de Lisboa. Publicou estudos sobre o Modernismo português em: Performance na Esfera Pública, organização de Ana Pais (Orfeu Negro, 2017); E – Revista do Expresso (2018, 2020); Santa Rita Pintor – Polémicas e controvérsias, coordenação de Fernando Rosa Dias (Documenta, 2019); Convocarte – Revista de Ciências da Arte (CIEBA-FBAUL, 2019, 2021); Modernités Portugaises, organização de Anne Bonnin (Maison Caillebotte / In Fine – Éditions d'Art, 2022); Pessoa Plural— A Journal of Fernando Pessoa Studies (2022). JOÃO MACDONALD is a journalist since 1994, and an art historian. Master’s student at the Faculty of Fine Arts of the University of Lisbon. He has published studies on Portuguese Modernism in: Performance in the Public Sphere, organized by Ana Pais (Orfeu Negro, 2017); E – Revista do Expresso (2018, 2020); Santa Rita Pintor – Polémicas e controvérsias, coordinated by Fernando Rosa Dias (Documenta, 2019); Convocarte – Revista de Ciências da Arte (CIEBA-FBAUL, 2019, 2021); Modernités Portugaises, organized by Anne Bonnin (Maison Caillebotte / In Fine – Éditions d'Art, 2022); Pessoa Plural—A Journal of Fernando Pessoa Studies (2022). Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 561 !"#$%&'()"#*$#(+",$-%#*.#/(0+$#!"#$%&'#'"#(%)'* !"#$%&'$()*+'$,-(%(#+$./$%&'$/(0)$!"#$%&'#'"#(%)'*1 !"#$%&'()'*+! !!!"#$%&'" #$%&'() +,--.!" $%# &'()# )%# *'+),# - .,(+/+)'# 0,11'//* 0'$12$/* .3* 4(1/* 567(8$9* 5$'8* 5$:;')/* <%)18;9* =;>%* ?$'@;ABC"* D%$(1* D(BC1$':"* 0$@()11)* ?$'E)%%("* FC(%(GG)* ?;'()7* ) H;@)'B*?$''/ !"#$%&'#$"($)"*)'+$,"&-".$#%)*/01"2")-/"&34#'%)#/"3'5*)0/#, 4)6/" 7$#-/" #&8&0/" /" '534#'9+$" :&" '-/*&53" 5$" 4$#;$" :$" %&<%$=">&5:$"$"#$%&'#'3%/")-"7/?)0/:$#,"/:-'%&@3&"A)&"3&6/" )-" 4$57/?)0/:$#" /A)&0&" A)&" '-/*'5/" $" 7'0-&" &5A)/5%$" 0B="!"#$%&'#$":$"7'0-&""#!$%&'!'#!(%)'*!+ ,*&)-)'%!.*//%2")-"4$58'%&"C"7/?)0/9+$,")-"&<&#4D4'$":&"'-/*'5/9+$":$" 7'0-&=" E0*$" A)&" /" &;D*#/7&" :$" /#%'3%/" 3)##&/0'3%/" F&/5" G$4%&/)"(HIIJ@HJKL1";#&5)54'/"/$"3)?0'5M/#"A)&"$";#'8'@ 02*'$":$"4'5&-/"2";&#-'%'# A)&"/3";&33$/3 3$5M&-"6)5%/3" $ -&3-$"3$5M$= N-/":/3"/-?'9O&3":$3"3)##&/0'3%/3"&#/"%$#5/#"$3"7'0@ -&3 )-"#&4)#3$";/#/"&<;0$#/#":&"7$#-/"$5D#'4/"/"-&5%&" M)-/5/=""#!$%&'!'#!(%)'*0 /$ 7/P&#":$"3$5M$"/"-/%2#'/":$"7'0-&,"4$57&#&")-/"&3%2%'4/ ;&33$/5/"/$":&3&5M$"5/##/%'8$"&"3&"#&8&0/,"&-"*#/5:&"-&:':/,")-/"&<;&#'-&5%/9+$" '-/*2%'4/"3)##&/0'3%/="Q)'/:/";&0/3";/0/8#/3":&".&33$/,"/"7#/54&3/"R/02#'&"N%%34M&':," A)&"/33'5/"$"#$%&'#$"&"/":'#&9+$":$"7'0-&,"4#'/")-")5'8&#3$ A)&"&8$4/")-/"'53%S54'/" ;$2%'4/"T&5%#&"$"3$5$"&"$"3$5M$U"(.!""#$, VWHIX"HHH1=" >'5%$5'P/:$"4$-"$"4'5&-/"&<;&#'-&5%/0":/"2;$4/":&"3)/";#$:)9+$,"HJJV,"$" 4)#%/@-&%#/*&-"&8':&54'/")-"&3%'0$"/33)-':/-&5%&"T#)'P'/5$U,"%&#-$")3/:$";&0/" ;#Y;#'/" :'#&%$#/," &-" :&;$'-&5%$" 4$54&:':$" &-" VWVL=" Z0/" #&8&0/" A)&" %&8&" &5%+$" /" $;$#%)5':/:&":&"%#/?/0M/#"4$-"[/$)0"[)'P"(HJ\H@VWHH1,"4'5&/3%/"4M'0&5$"#/:'4/:$"5/" ]#/59/,"A)&"0&*$)"&-"3)/"8/3%/"7'0-$*#/7'/"$"#&*'3%#$":&"*&3%$3"/#%D3%'4$3"A)&"3$)?&#/:&3&3%/?'0'P/# /3"4$58&59O&3"4'5&-/%$*#^7'4/3="Z-""#!$%&'!'#!(%)'*,"/"/%)/9+$":&" F/4A)&3"_$)A)'5,":'#&%$#":&"7$%$*#/7'/":&"-)'%$3"7'0-&3":&"[)'P,"7&P":/"8'3)/0':/:&" :&"/0*)-/3"4&5/3")-"%#'?)%$"/$"4'5&/3%/,"4$53':&#/:$")-"-&3%#&";&0/":'#&%$#/=" E5%&3":&"/?$#:/#-$3"/3;&4%$3":$"#$%&'#$,"7/#&-$3")-/"/;#&3&5%/9+$";#&0'-'5/# :$"7'0-&="Z-"3&)3"VL"-'5)%$3":&":)#/9+$,"/"$?#/";#$;O&"4&5/3"A)&";/#%&-":&"%&<%$3" :&"]&#5/5:$".&33$/=">+$"&<4&#%$3"A)&":'5/-'P/-"HV"4&5/3"'5:&;&5:&5%&3,";$'3"5+$" ! #$%&'()%*+*'",)-+*.+/"*'"01%2)3"4$)-%-.-1"*'"5%6$7%+)"817%+%)"9:/%7+*+); Levy Da escrita de imagens prevalece o princípio da causalidade no encadeamento dos eventos: a opção é por uma exposição fragmentária. Ainda que cada cena do filme seja um fragmento, elas constelam em torno de certas temáticas. Identificamos três sequências, ou conjuntos de cenas, que preservam entre si uma unidade de sentido. Para fins explicativos, nomeamos assim cada sequência: a aventura (cenas 1, 2, 3 e 4); o outro (cenas 5 e 6); o desassossego (cenas 7, 8, 9, 10, 11 e 12). Na primeira sequência, que compreende os cinco minutos iniciais do filme, é evocado o passado heroico português no contexto das grandes navegações. Na cena de abertura, vê-se uma caravela projetada sobre a imagem de um descampado. Um homem acena para uma criança que caminha ao longe em direção à imagem evanescente da caravela no horizonte. Os sons percebidos na cena criam a ambiência de um porto, ouvimos o apito da embarcação, a movimentação da água, o canto das gaivotas. Fig. 1. Cena de abertura. Fotograma de Au bord du monde. O ambiente acústico criado em um filme, ao emular os sons característicos de um lugar, torna possível ao espectador a experimentação de uma paisagem sonora. O termo soundscape é um neologismo cunhado pelo compositor e teórico canadense R. Murray Schafer, uma derivação de landscape, que tem sido traduzida para a língua portuguesa como paisagem sonora. SCHAFER (2001) destaca que o ambiente sonoro no qual estamos imersos é composto pelos mais variados sons, sejam humanos, da natureza ou de máquinas, e que a experiência sonora é marcadamente histórica, geográfica e cultural. Por isso, certos sons remetem a contextos e lugares específicos. No desenho de som de Au bord du monde, predomina o uso da acusmática (CHION, 2011: 61) na criação de paisagens sonoras. Acusmático é o som que nos chega sem que possamos ver a fonte sonora, de maneira que certos ruídos são suficientes para ativar no espectador a imaginação do espaço cênico. Esse recurso, presente na cena acima descrita, é utilizado em vários momentos de Au bord du monde e pode ser localizado previamente no roteiro. A cena de abertura do filme finaliza com uma voice over: a certa altura, uma voz masculina enuncia os versos de Pessoa como se meditasse: Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 563 Levy Da escrita de imagens Entre o sono e o sonho, Entre mim e o que em mim É o quem eu me suponho, Corre um rio sem fim. (PESSOA, 2018: 111)1 O ordenamento dessa cena está invertido entre roteiro e filme. O texto indica que se trata de uma cena de fechamento, mas na tela ela funciona como uma abertura. Essa reorganização narrativa é o indício de que o filme, invariavelmente, segue sendo “reescrito” na montagem. Na cena seguinte, ao som de uma tempestade, a imagem percorre uma superfície que a princípio parece um mar escuro, depois uma porção de terra numa visão aérea, mas logo a imagem se fixa e percebemos que a superfície se move: é uma pele áspera de um ser que respira e emite um som característico. É uma baleia. A imagem do animal preenche a tela. Trata-se de uma figuração do “mostrengo” (PESSOA, 1977: 79-80), alegoria referenciada na obra pessoana como a representação dos perigos que se impunham de ordinário aos navegadores que desbravavam os mares, e, por extensão, um elemento simbólico da coragem em transpor limites e enfrentar o medo do desconhecido. Até o final desta sequência e na próxima, a locação é um teatro, de tal modo que o cenário, os adereços e a disposição dos atores assemelham-se a um espetáculo teatral. Para além de uma escolha estética, a utilização de um palco como set de filmagem pode ter sido uma alternativa para contornar o baixo orçamento da produção. Os elementos cênicos construídos em uma escala menor, como a miniatura de uma caravela, conferem um aspecto de irrealidade que contribui para a proposta onírica do filme, mas também convocam à reflexão. O timoneiro da caravela, “o homem do leme”, é um gigante negro. Essa desproporção, entre o tamanho da embarcação e do homem que a conduz, acentua que a aventura portuguesa se deu ao custo da força de trabalho dos negros escravizados. Fig. 2. O homem do leme. Fotograma de Au bord du monde. Os diálogos no roteiro estão em francês (provavelmente retirados de edições francesas de Pessoa, com eventuais adaptações). Porém, optamos aqui pelo original em português. 1 Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 564 Levy Da escrita de imagens Nesta sequência, recorre-se também a objetos simbólicos, como uma bola de luz, por exemplo, que lembra uma esfera armilar, instrumento de orientação utilizado pelos navegadores. A bola de luz aparece como um brinquedo nas mãos de uma criança. O menino é então embalado por uma mulher sentada em um trono, talvez uma alusão a um futuro rei que viria a desbravar os oceanos. Fig. 3. O menino e a bola de luz. Fotograma de Au bord du monde. A segunda sequência do filme, aqui nomeada “o outro”, tem nove minutos e reúne duas cenas que exploram a incomunicabilidade. Na cena cinco, temos a presença de oito pessoas que não falam a mesma língua; ou melhor, que se apresentam num idioma que não existe. Esses diálogos não constam no roteiro, pois, como revela a diretora, os atores foram solicitados a improvisar. Uma mulher se junta ao grupo e tem início uma sessão espírita. A médium é a atriz e cantora brasileira Mônica Passos. Em certo momento, a médium invoca as palavras do semi-heterônimo Bernardo Soares: “Somos morte”, e adverte que “quando julgamos que vivemos, estamos mortos”2. A cena seis é uma coreografia: um casal dança executando movimentos que aludem à impossibilidade do encontro amoroso. A terceira e última sequência do filme tem duração aproximada de nove minutos. Ao nomeá-la “desassossego” não estamos sugerindo que os excertos sejam exclusivos do Livro do Desassossego, mas que as reflexões filosóficas que as cenas suscitam expressam inquietações existenciais e metafísicas. Na cena sete, dois homens discutem sobre o conceito de infinito. Essa é a discussão que está nas Notas Para a Recordação do Meu Mestre Caeiro,3 atribuídas a Álvaro de Campos. Os homens estão dentro de um trem em movimento. Aqui temos a utilização de um criativo raccord de eixo. Primeiro temos um plano aberto de um trem de brinquedo se movimentando no chão. Depois, um plano fechado em dois homens que conversam no que parece ser um trem, por causa da disposição das cadeiras, dos ruídos e da projeção de uma paisagem em movimento vista pela janela. A justaposição desses planos, apesar da economia de objetos de referência, leva o espectador a inferir que os personagens 2 Cf. https://ldod.uc.pt/fragments/fragment/Fr132/inter/Fr132_WIT_ED_CRIT_P_2. 3 Algumas publicadas na revista Presença, n.º 30, de janeiro-fevereiro de 1931; ver: PESSOA (2014). Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 565 Levy Da escrita de imagens em cena são, de fato, passageiros de um trem. Apesar desse efeito ser executado na última etapa da produção do filme, que é a montagem, ele já estava previsto no roteiro. Figs. 4 e 5. Cena do trem. Fotogramas de Au bord du monde. Na mise en scene, a discussão entre os dois passageiros se intensifica até que um joga o outro pela janela do trem. Com um efeito visual, a cena oito mostra o homem em queda, flutuando, como se caísse do céu até pousar em cima do trem de brinquedo, que vemos ser conduzido por uma criança. É uma cena em que as imagens oferecem muitas camadas de sentido: o abismo, a queda, a repetição, o destino. As três cenas que se seguem são as únicas filmadas em ambientes externos. O “homem que veio do céu” tem no colo a “criança que conduzia o trem”, eles se apoiam no balaústre de uma janela e observam um homem que caminha na rua. Um fenômeno ocorre com o transeunte, que tem o seu espectro desprendido do corpo. De aspecto transparente, esse corpo fantasmático espia um grupo de pessoas que conversam numa esquina qualquer. Uma das mulheres, ao escutar algo que lhe é cochichado ao ouvido, gargalha desbragadamente. O riso ressoa no ambiente. Temos no mesmo espaço: o prosaico e o insólito, o ordinário e o extraordinário, o humano e o transcendente. Fig. 6. O fantasma que espia. Fotograma de Au bord du monde. Na última cena, filmada em uma aparente sala de estudos ou laboratório, dois homens vestindo jalecos brancos, referidos no roteiro como professores, conversam sobre sonho. Um terceiro homem, parcialmente coberto por um lençol (um cadáver?), jaz deitado sobre uma mesa. Em dado momento, surge magicamente Dom Sebastião, Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 566 Levy Da escrita de imagens o rei de Portugal desaparecido durante uma batalha no século XVI, circunstância que alimentou no imaginário lusitano a profecia do seu regresso ao reino. Dom Sebastião é interpretado por uma atriz, Fabienne Bargelli. O diálogo da personagem é composto por alguns versos do sexto soneto do ciclo “Passos da Cruz” (PESSOA, 1977: 125-126). Uma conexão curiosa é que uma das alcunhas de Dom Sebastião era “o adormecido”, nome similar atribuído no roteiro ao personagem que permanece deitado: dormeur. Fig. 7. Os sonhadores. Fotograma de Au bord du monde. Depois que a aparição do rei se esvai lentamente na sombra, os professores discorrem sobre o “provincianismo português”4 e um certo ideal de civilidade. São retomadas as reflexões sobre o sonho, agora acompanhadas de questionamentos sobre a noção de realidade e lucidez. Um dos professores diz: We are our dreams of ourselves, souls by gleams, And each to each other dreams of others’ dreams. (PESSOA, 1977: 589) Esse diálogo, que não está escrito no roteiro, é o único na língua inglesa. Já nos momentos finais do filme, o homem que dormia acorda e, tomando para si as palavras do autor do Livro do Desassossego, diz ser um “sonhador exclusivamente”.5 O roteiro de Au bord du monde é um raro exemplar de um guia de trabalho, um documento que carrega as marcas do processo de criação do filme. Em sua materialidade, podemos olhá-lo como um objeto. Por sobre o texto datilografado em francês, há comentários manuscritos, indicação das obras de referência, anotações em português, rasuras, linhas transversais que editam o texto, falas escritas à mão que se sobrepõem a registros impressos. Pequenas manchas amareladas no canto superior das páginas denunciam a ferrugem, vestígios dos grampos que prendiam as folhas de papel. A superfície da página oito revela seu avesso, uma espécie de marca d’água do que foi manuscrito no verso da folha: “O último sortilégio” (PESSOA, 1977: 155156). Na materialidade da página, um feitiço do tempo e da umidade. 4 “O provincianismo português”, texto de 1928, figura em Textos de Crítica e de Intervenção (PESSOA, 1980). 5 Cf. https://ldod.uc.pt/fragments/fragment/Fr393/inter/Fr393_WIT_ED_CRIT_P. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 567 Levy Da escrita de imagens Figs. 8 e 9. Frente e verso da página oito. Fac-símile do roteiro de Au bord du monde. É importante destacar que a digitalização do roteiro (feita pela diretora em 2023) e a sua conversão em objeto de estudo, além de garantir a preservação como documento histórico, torna possível a afluência de novos leitores e outras leituras. Ao investigar sobre a poética do roteiro, o pesquisador Ian W. MACDONALD (2013) propõe que os princípios e regras do ofício, as normas que padronizam o texto, os saberes aplicados e as técnicas estabelecidas são variáveis sujeitas ao contexto de produção. Essa perspectiva nos possibilita enxergar a singularidade de cada roteiro e de seu processo de criação. No roteiro escrito por Uttscheid, em uma primeira visada, é possível notar sua heterodoxia formal. As cenas não são enumeradas; também não há a inscrição de cabeçalhos, indicando o lugar e o tempo da cena; as ações não se limitam a descrever o que pode ser filmável; a disposição dos diálogos na página nem sempre respeita o alinhamento centralizado; e também não há a indicação dos nomes dos personagens que proferem as falas. Esses itens ausentes são característicos do chamado formato master scenes, um padrão de roteiros que foi se estruturando no mercado dos Estados Unidos da América a partir dos anos 1940. Este formato atende a um modo de produção cinematográfica industrial, algo que historicamente teve pouca aderência no sistema europeu e francês, em particular. Contudo, atualmente esse é o formato profissional usado no mundo todo. Outra peculiaridade do roteiro Au bord du monde é a inscrição de uma (já referida) epígrafe; outra, a lista de personagens e atores, curiosamente denominados comédiens ao invés de acteurs. Do ponto de vista semântico, os termos são sinônimos e designam as pessoas que trabalham como atores, mas no âmbito cultural, os franceses tendem a associar acteurs ao cinema e televisão. No roteiro, segue ainda uma lista da equipe técnica e outra de agradecimentos. A presença desses elementos textuais Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 568 Levy Da escrita de imagens sugere que essa versão foi elaborada numa fase adiantada da produção. E estando a direção do filme nas mãos da mesma pessoa que assina o roteiro, os ajustes no texto, frente às demandas do set, são inevitáveis. O texto com o enredo do filme começa na página 4 e segue até à 14, ou seja, tem 10 páginas. Não há, portanto, uma coincidência, como é de praxe nos roteiros comerciais, entre o número de páginas e a duração do filme (23 minutos). Em parte, isso se justifica pela omissão da descrição de ações ou diálogos no roteiro e pela inclusão de diálogos manuscritos no verso das folhas. O documento digitalizado tem, no total, 27 páginas. O fato de ser um filme concebido em um contexto de produção menos comercial conferiu uma maior liberdade formal ao roteiro de Au bord du monde. O projeto do filme teve início em 1988, por ocasião do centenário de nascimento de Fernando Pessoa. Segundo relato da cineasta, canais de televisão franceses foram buscados para financiar a produção, mas o capital levantado não foi suficiente. Uttscheid precisou custear com recursos próprios as despesas de laboratório, a montagem do negativo e a impressão das cópias. Uma aventura, como define a diretora, que envolveu quatro anos de dedicação e endividamento até alcançar as telas de cinema. A estreia foi numa sala do Centro Nacional de Cinematografia, órgão vinculado ao Ministério da Cultura francês, que subsidiou o desenvolvimento da trilha musical na etapa de pós-produção. O curta-metragem participou de alguns festivais de cinema, tais como Clermont-Ferrant, Nantes e Biarritz. Atualmente, Uttscheid trabalha como montadora, especialmente para produções de TV e mídias digitais.6 Em Fausto, drama pessoano para o teatro, encontramos os seguintes versos: Paro à beira de mim e me debruço... Abismo...E nesse abismo o Universo. (PESSOA, 1977: 457) O filme Au bord du monde, em tradução livre, “à beira do mundo”, não faz referência direta aos versos citados, mas se mostra em sintonia com a obra pessoana ao assumir como premissa a instabilidade, o risco, o mistério. É uma criação imagética sobre a experiência limiar de estar à beira do abismo. 6 Agradecemos à cineasta pelo apoio ao nosso trabalho de resgate da memória de Au bord du monde. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 569 Levy Da escrita de imagens ANEXO Roteiro Figs. 10 e 11. Capa e epígrafe, Au bord du monde. Figs. 12 e 13. Comediens et techniciens, Au bord du monde. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 570 Levy Da escrita de imagens Fig. 14. Au bord du monde, p. 4. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 571 Levy Da escrita de imagens Fig. 15. Au bord du monde, p. 5. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 572 Levy Da escrita de imagens Fig. 16. Au bord du monde, p. 6. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 573 Levy Da escrita de imagens Fig. 17. Au bord du monde, p. 7. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 574 Levy Da escrita de imagens Fig. 18. Au bord du monde, p. 8. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 575 Levy Da escrita de imagens Fig. 19. Au bord du monde, p. 9. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 576 Levy Da escrita de imagens Fig. 20. Au bord du monde, p. 10. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 577 Levy Da escrita de imagens Fig. 21. Au bord du monde, p. 11. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 578 Levy Da escrita de imagens Fig. 22. Au bord du monde, p. 12. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 579 Levy Da escrita de imagens Fig. 23. Au bord du monde, p. 13. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 580 Levy Da escrita de imagens Fig. 24. Au bord du monde, p. 14. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 581 Levy Da escrita de imagens Bibliografia CHION, Michel (2011). A Audiovisão: Som e Imagem no Cinema. Tradução de Pedro Elói Duarte. Lisboa: Edições Texto & Grafia. MACDONALD, Ian W (2013). Screenwriting Poetics and the Screen Idea. London: Palgrave MacMillan. PESSOA, Fernando (2018). Antologia Mínima – Poesia. Edição de Jerónimo Pizarro. Lisboa: Tinta-da-china. _____ (2014). Obra Completa de Álvaro de Campos. Edição de Jerónimo Pizarro e Antonio Cardiello. Lisboa: Tinta-da-china. _____ (1980). “O provincianismo português”. Textos de Crítica e de Intervenção. Lisboa: Ática, pp. 157161. Primeira publicação em Notícias Ilustrado, 12 de agosto de 1928. _____ (1977). Obra Poética. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar. SCHAFER, R. Murray (2001). A Afinação do Mundo. Tradução de Marisa Trench Fonterrada. São Paulo: Editora UNESP. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 582 Levy Da escrita de imagens JOANISE LEVY é roteirista e professora no curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Estadual de Goiás (UEG). É doutora em Estudos Fílmicos e da Imagem, Universidade de Coimbra, e doutora em Literatura pela Universidade de Brasília (cotutela). É mestre em Educação e graduada em Jornalismo pela Universidade Federal de Goiás. É investigadora no grupo de pesquisa CRIA – Centro de Realização e Investigação Audiovisual, da UEG, e no grupo Estudos de Roteiros: arquivos, processos e cartografias, da UnB. É membro da SRN – Screenwriting Research Network e da Rede Docente de Roteiro do Forcine – Fórum Brasileiro de Ensino de Cinema e Audiovisual. É uma das coordenadoras do Seminário Temático “Estudos de Roteiro e Escrita Audiovisual” (biênio 2023-2024) da Socine – Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual. É coautora do projeto de série de ficção para TV, Fim de Ano, contemplado pelo edital FSA/PRODAV da Ancine. Tem experiência como consultora de roteiros e na curadoria de festivais de cinema. JOANISE LEVY is a screenwriter and professor in the Film and Audiovisual course at the State University of Goiás (UEG). She holds a Ph.D. in Film and Image Studies from the University of Coimbra and a Ph.D. in Literature from the University of Brasília (joint supervision). She also earned a master's degree in Education and a bachelor's degree in Journalism from the Federal University of Goiás. As a researcher, she is affiliated with the CRIA – Center for Audiovisual Achievement and Research at UEG and the Research Group on Screenplays: Archives, Processes, and Cartographies at UnB. Joanise is a member of the SRN – Screenwriting Research Network and the Teaching Network of Screenwriting at Forcine – Brazilian Forum for Teaching Film and Audiovisual. She serves as one of the coordinators for the Thematic Seminar “Screenwriting and Audiovisual Writing Studies” (2023-2024 biennium) at Socine – Brazilian Society of Cinema and Audiovisual Studies. Additionally, she is a co-author of the fiction TV series project Fim de Ano, awarded by the FSA/PRODAV call from Ancine. With experience as a script consultant and in the curation of film festivals, Joanise Levy brings a wealth of expertise to the field. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 583 !"#$%&&'()#*'+'(,-."/#0'#1'&&/23 !"#$!%&%&#'#()!%*+,#'-&%!%&%&#'#()!%.!"+/!"+012'-& !!"#$%%&'(")&*&'+,-."+/"0&%%+12 "#$%##&'()#$*+',$$*$-.#',&.'(/#&)0#&)1)2*+,1 ,$$*$-.#3 !"#$%&'&()#*+#$+, !"#"$%"&'()"$* !"#$%" '$(()*+,&-)*%.%"/&0)((/.,&1%2$345/,&6/7#.,&')2)*/%3#3(#/8 ,*&-./ 95/& 2:#& ;.+2."/& 2)%2.23<.(& ")& .=*/>3#.45/& )%2*)& -)*%.%"/& 0)((/.& )& !"#$%"& '$(()*+,& 3%2)*=*)2.%"/&.&=/?23@.&")&$#&A&+$B&".&;3+/(/;3.&"/&/$2*/,&.3%".&C$)&@/#&.&")<3".&@.$2)+.,& ".".& .& 2/2.+& .$(:%@3.& ")& @/%2.@2/& )%2*)& .#D/(& )& .& )<3")%2)& "3<)*(3".")& ")& 3%2)%4E)(8& F(& *)($+2."/(& 2:#& (3"/,& %/& )%2.%2/,& #.3/*32.*3.#)%2)& %)7.23</(& )& /(& 3%2?*=*)2)(& 2:#& /=2."/& )(()%@3.+#)%2)&=/*&($D+3%G.*&/(&+3#32)(&".&;)%/#)%/+/73.&G$(()*+3.%.&;.@)&./&H/DI)23<3(#/& .D(/+$2/J&"/(&<)*(/(&")&K+D)*2/&L.)3*/,&/&=/)2.&H%)/=.75/J&C$)&-)*%.%"/&0)((/.&")(37%.& @/#/& /& H#)(2*)J "/(& ()$(& G)2)*M%3#/(8& 0)%(.#/(,& %/& )%2.%2/,& C$)& $#.& /$2*.& +)32$*.& ?& =/((N<)+&()#,&=/*&3((/,&%)7.*&/&G3.2/&3%2*.%(=/%N<)+&C$)&()=.*.&!"#$%"&'$(()*+&) K+D)*2/& L.)3*/,& G)2)*M%3#/& ") -)*%.%"/& 0)((/.,& =)+/& =*3%@N=3/& C$)& ($DI.B& 2.%2/& A& .232$")& =/?23@.& @/#/&A&.232$")&;)%/#)%/+M73@.O&.&H<3(5/&=$*.J8 0*12/%3& !"#$%" '$(()*+,&-)*%.%"/&0)((/.,&1%2$323/%,&6/7#.,&')2)*/%P#3(#8 45&6%"(6 K22)#=2(&2/&)(2.D+3(G&.&@/%%)@23/%&D)2Q))%&-)*%.%"/&0)((/.&.%"&!"#$%"&'$(()*+&G.<)&%/2& D))%&+.@R3%7,&3%2)*=*)23%7&2G)&=/)2*P&/;&/%)&3%&+37G2&/;&2G)&=G3+/(/=GP&/;&2G)&/2G)*,&.+D)32&Q32G& "$)&@.$23/%,&73<)%&2G)&@/#=+)2)&.D()%@)&/;&@/%2.@2&D)2Q))%&2G)#&.%"&2G)&)<3")%2&"3<)*(32P& /;& 3%2)%23/%(8& SG)& *)($+2(,& G/Q)<)*,& G.<)& D))%& #/(2+P& %)7.23<),& .%"& 3%2)*=*)2)*(& G.<)& =*3#.*3+P& @G/()%& 2/& )#=G.(3B)& 2G)& +3#32(& /;& '$(()*+T(& =G)%/#)%/+/7P& 3%& 2G)& ;.@)& /;& 2G)& H.D(/+$2)&/DI)@23<3(#J&/;&2G)&<)*()(&/;&K+D)*2/&L.)3*/,&2G)&H%)/U=.7.%J&=/)2&QG/#&-)*%.%"/& 0)((/.&")(37%.2)(&.(&2G)&H#.(2)*J&/;&G3(&G)2)*/%P#(8&9)<)*2G)+)((,&Q)&D)+3)<)&2G.2&.%/2G)*& 3%2)*=*)2.23/%&3(&=/((3D+)&Q32G/$2&")%P3%7&2G)&3%($*#/$%2.D+)&7.=&2G.2&()=.*.2)(&!"#$%"& '$(()*+& .%"& K+D)*2/& L.)3*/,& .& G)2)*/%P#& /;& -)*%.%"/& 0)((/.,& "$)& 2/& 2G)& =*3%@3=+)& $%")*+P3%7&D/2G&2G)&=/)23@&.%"&=G)%/#)%/+/73@.+&.2232$")O&2G)&H=$*)&<3(3/%8J V K+#.&W.2)*&X2$"3/*$#,&Y%3<)*(32A&"3&Z/+/7%.8 Mariani Um Husserl heterónimo de Pessoa Entre os versos de um dos mais célebres livros de versos de Fernando Pessoa, O Guardador de Rebanhos, transparece uma tese que nos permite pensar, não sem paradoxo, a relação entre o ser humano e a natureza.1 Trata-se de uma tese filosófica ou talvez seria mais correto dizer “antifilosófica”, que serve de sugestão e, ao mesmo tempo, de provocação em comparação com o quadro transcendental da fenomenologia husserliana. Sob o nome do heterónimo Alberto Caeiro, Pessoa identifica-se, ou imagina identificar-se, num contínuo jogo de simulação e de despersonalização, com um guardador de rebanhos, uma alma simples, capaz de olhar para as coisas pelo que elas são (uma “árvore”, uma “flor”, um “outeiro”); capaz de olhar para as coisas como as próprias coisas pedem para ser olhadas – olhadas e não pensadas – na plenitude de uma presença que só uma visão imediata, livre de artifícios, seria capaz de captar: O meu olhar azul como o céu É calmo como a água ao sol. É assim, azul e calmo, porque não interroga nem se espanta... (PESSOA, 2001: XXIII, 45 | 2016: 55) Contra todas as poéticas do espanto colocadas nas origens da filosofia e, de forma consequente, da fenomenologia – que, na sua roupagem husserliana, aspira a ser a renovação da filosofia –, Alberto Caeiro, o mestre dos heterónimos, convida-nos a não nos espantarmos com nada para nos mantermos tão fiéis quanto possível àquilo a que pertencemos sem desvio, à natureza; a vivermos “à ras de nature”, como sugere José GIL, 2000), um dos intérpretes filosoficamente mais atentos e originais de Pessoa, para não nos afastarmos daquilo que simplesmente somos: animais humanos que existem num mundo sem porquê, onde as coisas não são nem mais nem menos do que são e onde não há ser para além da aparência. Toda a dificuldade, para o heterónimo do poeta, pensado como um “argonauta das sensações verdadeiras”, reside em resistir à tentação – humana, demasiado humana – de querer ser outra coisa, de imaginar outra coisa, de acreditar que as coisas têm um sentido quando, pelo contrário, são simplesmente. Para o homem que aspira a ser “natural” como uma criança na sua eterna inocência e, igualmente, para o poeta que vive em osmose com o mundo, como uma ninfa nos tempos do paganismo, a dificuldade está em não pensar e em viver sem refletir – “existimos antes de o sabermos” –, como aquele que ama, sem saber que ama, aceitando que “tudo é como é e assim é que é” e que o Os poemas que compõem O Guardador de Rebanhos são indicados por numeração romana seguida da respetiva paginação (Companhia das Letras e Tinta-da-china). Os versos citados dos Poemas Inconjuntos de Alberto Caeiro são indicados por P.I. e pela respetiva paginação. Para um confronto dos testemunhos textuais de O Guardador de Rebanhos, remetemos para esta página do espólio pessoano: https://purl.pt/1000/1/alberto-caeiro/guardador.html 1 Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 585 Mariani Um Husserl heterónimo de Pessoa “Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia”, porque “O Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia” (PESSOA, 2001: XX, 42 | 2016: 53). A glória do visível – “não ver senão o visível!” (PESSOA, 2001: XXVI, 48 | 2016: 57), exclama o mestre Caeiro – decreta a ruína inexorável de toda a hermenêutica filosófica, condenando ao mesmo tempo, e sem apelo, todas as formas reflexivas de pensamento e, poderíamos mesmo acrescentar, a própria filosofia, incapaz de vencer a distância que separa o pensamento da vida; incapaz, em última instância, de aderir ao imediatismo desse laço entre o homem e a vida que faz do homem um ser da natureza. “Pensar é estar doente dos olhos” (PESSOA, 2001: II, 16 | 2016: 34). E os filósofos, não por acaso, acrescenta Caeiro com cortante serenidade, são “homens doidos” que transformam o imediatismo do dado em algo indireto, algo artificial, irremediavelmente. Como um aviso, a mesma condenação aplica-se sem piedade a qualquer tentativa filosófica de questionar a ligação entre o homem e a natureza, ao passo que o mundo “não se fez para pensarmos nele”, “mas para olharmos para ele e estarmos de acordo” (PESSOA, 2001: II, 16 | 2016: 34). Mesmo antes de qualquer possível decisão ou ação individual, coletiva ou política – quanto mais não seja devido à tão propalada “crise ecológica” – não nos apercebemos de que o problema, perante a natureza, somos nós próprios no preciso momento em que começamos a pensar – nós, tristes seres, “que trazemos a alma vestida!” (PESSOA, 2001: XXIV, 46 | 2016: 56). Surge então uma questão, espontânea e, por assim dizer, desesperada, se quisermos dramatizar o impasse perante o qual a advertência de Caeiro nos coloca: o que resta à filosofia e aos filósofos, condenados a suportar o fardo, ainda que emblematicamente, da exceção antropológica? O que resta à filosofia senão a tarefa de uma contínua autossuperação, de uma espoliação do pensamento para retroceder, em vez de avançar, para além do próprio pensamento? Grande parte da filosofia do século XX foi, de resto, confrontada com as exigências desta injunção que, a partir de Nietzsche, se pode identificar com a crise mais geral da modernidade, cujos motivos literários e artísticos, bem como filosóficos, veicularam a expressão de um “mal de viver” acompanhado, de várias maneiras, pelo sentimento de uma perda de pertença ao mundo em que vivemos – pensemos, por exemplo, em Hofmannstahl, Rilke, Blanchot, nos movimentos de vanguarda do início do século XX, de Munch a Schiele, em Camus e em Sartre. Heidegger, a partir da década de 1940, nos seus cursos sobre Nietzsche e, em particular, nos Entwürfe zur Geschichte des Seins als Metaphysik, aborda as razões sistemáticas desta crise, que tem raízes mais profundas do que se poderia imaginar à primeira vista. Na sequência do gesto inaugural de Descartes, o fundamento metafísico da época moderna residiria numa vontade de poder que colocaria o homem, único sujeito autêntico, no centro do mundo (HEIDEGGER, 1997). A questão do ser transformar-se-ia na procura de um método destinado a assegurar o fundamento absoluto e incontroverso da verdade (fundamentum absolutum inconcussum veritatis), que coincidiria com a evidência de uma egologia elevada à medida de tudo (cogito ergo sum). O homem, seguro de si e da sua presumível Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 586 Mariani Um Husserl heterónimo de Pessoa singularidade, acabaria por se proclamar senhor de um mundo reduzido à res extensa, onde o ente não seria mais do que o objeto de uma representação possível, o correlato de uma relação assimétrica estabelecida em benefício do próprio homem, o “sujeito”, que, deixando de se submeter à ideia de um criador, reclamaria plenos poderes sobre o que resta da criação (HEIDEGGER, 1997: 430-431). Merleau-Ponty, para citar outro ilustre exemplo, partilha o mesmo diagnóstico, embora partindo de outros pressupostos, invocando a oportunidade de um novo olhar sobre o mundo, visando fazer justiça à dimensão sensível das coisas, em alternativa aos limites, senão mesmo à insensibilidade, de que a tradição cartesiana terá dado provas. Célebres a este respeito são as conferências radiofónicas de 1948, as Causeries, em que Merleau-Ponty, com a sua caraterística elegância estilística, não hesita em afirmar: C’est donc une tendance assez générale de notre temps de reconnaître entre l’homme et les choses non plus ce rapport de distance et de domination qui existe entre l’esprit souverain et le morceau de cire dans la célèbre analyse de Descartes, mais un rapport moins clair, une proximité vertigineuse qui nous empêche de nous saisir comme pur esprit à part des choses ou de définir les choses comme purs objets [...]. (Exploration du monde sensible : les choses perçues, § 7) [É, pois, uma tendência bastante geral do nosso tempo reconhecer entre o homem e as coisas já não aquela relação de distância e de domínio que existia entre o espírito soberano e o pedaço de cera na célebre análise de Descartes, mas uma relação menos clara, uma proximidade vertiginosa que nos impede de nos apreendermos como puro espírito separado das coisas ou de definir as coisas como puros objetos]. (Trad. nossa) Não somos cabeças de anjo aladas e as coisas que estão diante de nós não são objetos neutros de contemplação desinteressada. Descartes, segundo uma vulgata igualmente célebre, é acusado de ser o principal responsável por este erro que nos leva a acreditar que somos senhores de um mundo desprovido de consistência ontológica. Esta constatação, aparentemente banal, cristaliza um consenso amplamente partilhado por grande parte da tradição filosófica e fenomenológica contemporânea: para sair do impasse da modernidade, a filosofia seria obrigada a abandonar de forma definitiva a grande estação do racionalismo cartesiano. E, neste caso concreto, a fenomenologia, para recuperar uma relação direta com o mundo, teria de avançar para além de Husserl, que identifica a própria fenomenologia – a sua fenomenologia – com uma forma de “neocartesianismo” (HUSSERL, 1991: 44). Ir para além de Husserl para corrigir o erro de Descartes, para redescobrir a dimensão corpórea do nosso ser no mundo e devolver ao mundo a concretude que ele merece, como nos ensina por sua vez Fernando Pessoa, que, identificando-se com a simplicidade desarmante de Alberto Caeiro, ultrapassa “por baixo” as filosofias do cogito, da consciência e da intencionalidade – “sou místico”, afirma o guardador de rebanhos, “mas só com o corpo” (PESSOA, 2001: XXX, 53 | 2016: 60). Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 587 Mariani Um Husserl heterónimo de Pessoa O método fenomenológico da ἐποχή, a suspensão da crença na tese da existência do mundo, as reduções eidéticas e transcendentais que transformam o próprio mundo no correlato de uma consciência absoluta, não seriam mais do que os resultados de uma doença intelectual levada ao paroxismo. Husserl, em confronto com a figura do guardador de rebanhos, não escaparia às tristes fileiras dos “homens doidos”, os filósofos fatalmente modernos – para citar Heidegger e Merleau-Ponty – que preferem pensar o mundo em vez de o olhar e de o experimentar. Entre o poeta e o fenomenólogo, a distância seria intransponível, apesar dos pontos de contacto que os intérpretes têm tentado evidenciar nas suas leituras cruzadas de Husserl e Pessoa – dois ilustres contemporâneos, desconhecidos um do outro. Não têm faltado, por outro lado, tentativas de compreensão fenomenológica da obra pessoana e mesmo de avaliação do ponto de vista do método da fenomenologia (BRAZ, 2008; CARNEIRO, 2011; BORBA e SOUZA, 2014). Tentou-se explicar os pressupostos sui generis do ensino do Alberto Caeiro a partir de uma perspetiva fenomenologicamente compatível (DE GRAMMONT, 2011); a fenomenologia foi mesmo questionada à luz das possibilidades de pensamento filosoficamente provocadoras que Pessoa confia ao mestre dos heterónimos (FRIAS, 2012; GANERI, 2020). Um facto parece, no entanto, ter-se imposto desde o artigo pioneiro de Bruno LINNARTZ (1966), independentemente das orientações dos críticos, mais ou menos fenomenologicamente atentos: o programa husserliano de um “ver puro”, livre de quaisquer pressupostos, se lido à luz do objetivismo absoluto de que Caeiro é porta-voz, não viria a honrar a radicalidade das promessas inicialmente feitas pela fenomenologia. Perdido o caminho de regresso, a variante husserliana erraria em busca de um acesso às coisas, acabando por não conseguir, por excesso de reflexão, habitar as coisas mesmas. E a realidade, coberta pelo véu de um idealismo transcendental a que Husserl forçaria a fenomenologia, reduzir-se-ia a um conjunto de cogitata, aos objetos intencionais de um fluxo de consciência que acabaria por engolir em si tudo o que está lá fora, no mundo. Dos versos de Caeiro emergiriam, quando muito, os lineamentos de uma fenomenologia “pós-husserliana”, como sugere, entre outros, Anibal FRIAS (2012: 62) – no caso da fenomenologia e, em termos ainda mais gerais, da filosofia ser capaz ou estar mesmo à altura, como outros argumentaram, de dialogar com Pessoa (cf. BADIOU, 2000). Cremos, no entanto, que há uma outra forma de abordar, com a devida cautela, a fenomenologia de Edmund Husserl e o manifesto antifilosófico de Alberto Caeiro, de modo a detetar uma subtil e não deliberada comunhão de intenções entre ambos, sem negar a diferença que os separa irredutivelmente. “Comparar”, como se lê nos Poemas Inconjuntos, não significaria mais do que teimar em não ver o que há para ver – “comparar uma coisa com outra”, afirma Caeiro, falando de si e de uma flor, “é esquecer essa coisa” (PESSOA, 2001: P.I., 117; 2016: 117). Centrar-nos-emos, pois, no sentido algo “antifilosófico”, e abertamente declarado, da fenomenologia husserliana, em vez de enuclearmos as teses filosóficas da antifilosofia do mestre dos heterónimos – teses que, se desenvolvidas em termos explícitos, não seguem Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 588 Mariani Um Husserl heterónimo de Pessoa uma direção necessariamente fenomenológica, como o confirma a leitura de José Gil, que vê em Caeiro uma poética da “diferença absoluta”, certamente mais próxima do pensamento de Deleuze do que do de Husserl. Centrar-nos-emos no sentido mais “antifilosófico” e “dogmático” da fenomenologia, reivindicado por Husserl face a uma heterogeneidade irredutível do ser que exige ser vista e reconhecida – como se lê já no início da sua obra de 1913, as Ideen zu einer reinen Phänomenologie und phänomenologischen Philosophie (Sect. I, Cap. I e II), antes de a doutrina transcendental da experiência se desdobrar em função de uma subjetividade constituinte, eideticamente entendida, a maior parte das vezes reprovada, senão mesmo repudiada, pelos seguidores de Husserl e, não menos importante (sem que a referência a Husserl apareça explicitamente), por António Mora, semi-heterónimo de Fernando Pessoa, o discípulo mais abertamente “metafísico” de Caeiro.2 Optaríamos, por outras palavras, por uma leitura caeiriana de Husserl que ganharia, a nosso ver, ainda mais crédito à medida que a fenomenologia, ao tornar-se transcendental, parece contradizer as promessas de um regresso às “coisas mesmas”. Optaríamos, assim, por um Husserl heterónimo de Pessoa, em busca de uma afinidade subterrânea entre a atitude poética e a atitude fenomenológica; entre aquele que, sem reflexão, nada mais quer do que ver e viver poeticamente e aquele que, por outro lado, questionando de forma reflexiva o que é ver, aspira a apreender tudo o que é dado e que, de outro modo, sem a fenomenologia, permaneceria invisível. Filosofia sem filosofia Partamos do princípio de todos os princípios, a “intuição”, que para Husserl não é outra coisa senão um ver imediato, um trazer à presença – “em sua efetividade de carne e osso”, leibhaftig – o que está diante de nós: Am Prinzip aller Prinzipien: daß jede originär gebende Anschauung eine Rechtsquelle der Erkenntnis sei, daß alles, was sich uns in der “Intuition” originär, (sozusagen in seiner leibhaften Wirklichkeit) darbietet, einfach hinzunehmen sei, als was es sich gibt, aber auch nur in den Schranken, in denen es sich da gibt. (HUSSERL, 1976: 44) [Ao princípio de todos os princípios: toda intuição doadora originária é uma fonte de legitimação do conhecimento, tudo que nos é oferecido originariamente na “intuição” (por assim dizer, em sua efetividade de carne e osso) deve ser simplesmente tomado tal como ele se dá, mas também apenas nos limites dentro dos quais ele se dá.] (Trad. port., 2006: 69, ligeiramente modificada) O “princípio de todos os princípios” – explica Husserl no famoso § 24 das Ideen I – é tal porque é anterior a qualquer teoria, estabelecendo o fundamento “pré-teórico” e, 2 Ver, a este respeito, o comentário de FRIAS (2012: 63). Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 589 Mariani Um Husserl heterónimo de Pessoa neste sentido, “pré-filosófico” sobre o qual se constitui qualquer tipo de relação com o mundo em que vivemos. O “princípio de todos os princípios” indica o início – a que Husserl chama de “absoluto” (HUSSERL, 1976: 43) – a partir do qual se desdobra a teoria e, consequentemente, a ciência que visa explicar os dados que a experiência nos oferece de acordo com o domínio em que atuamos. Quer se trate de coisas materiais ou de seres vivos, da realidade espaciotemporal das ciências naturais, do mundo social ou das entidades abstratas das ciências formais, do imaginário ou mesmo do irreal enquanto campo de pura possibilidade desprovido de qualquer posição de existência, o conhecimento realiza-se sempre e necessariamente em função de uma esfera objetual inerente a uma “região do ser”, da qual deriva um tipo de experiência. Este é, aliás, um dos sentidos possíveis da correlação que a intencionalidade nos permite descrever em todo o seu alcance: a experiência, entendida em geral, e, por extensão, a ciência, fundam-se no dado que constitui a sua fonte de legitimação, qualquer que seja o quadro de referência. Uma teoria científica que se queira legítima não pode, pois, fazer outra coisa senão elaborar sob forma mediada, de forma predicativa, aquilo que é diretamente oferecido por uma intuição preliminar, em virtude da qual o domínio que pretende investigar é atestado. O “princípio de todos os princípios” atua, inelutavelmente, como ponto de partida e, ao mesmo tempo – poderíamos acrescentar –, como princípio de fidelidade ao que nos é dado e ao que somos chamados a exprimir tal como é e tal como é dado; fixa o ponto de ancoragem que protege o imediatismo da visão das derivas da teoria que, se desvinculada de um ponto de apoio concreto, nos levaria a ver erradamente o que não está lá ou, então, a não apreciar plenamente tudo o que é dado a ver. Para o fenomenólogo que aspira a aderir às coisas, mesmo antes de as interpretar e mesmo de refletir, como para o guardador de rebanhos ou, se quisermos, para o guardador do ser – num sentido totalmente husserliano – a dificuldade reside em aprender a “ver, distinguir e descrever o que está diante dos olhos” (HUSSERL, 1976: 2), libertando-se dos constrangimentos do hábito, da tradição e, não menos importante, da filosofia, negativamente entendida se vinculada à autoridade de um ipse dixit ou enredada em preconceitos latentes, assumidos acriticamente. Estes preconceitos conduziriam, em princípio, a duas consequências extremas, ambas igualmente falaciosas, uma oposta à outra: privar os conceitos livremente criados pelo nosso pensamento de qualquer forma de intuição, fazendo-os passar, sem qualquer verificação, por coisas efetivamente dadas; velar os olhos perante a riqueza do ser, limitando a nossa visão ao imediatismo de um dado que só seria considerado válido se confirmado empiricamente. “Überall ist die Gegebenheit” afirma Husserl em 1907 (HUSSERL, [1973]: 72) – a doação está em todo o lado, e pouco importa se o que é dado é real ou fictício, percebido ou apenas imaginado como no caso do homem que, ao fantasiar, sonha ser pastor sem nunca ter guardado um rebanho – “O rebanho são os meus pensamentos” – afirma Alberto Caeiro – para logo acrescentar: “E os meus pensamentos são todos sensações” (PESSOA, 2001: IX, 31; 2016: 47). A transcendência Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 590 Mariani Um Husserl heterónimo de Pessoa do objeto inscreve-se na imanência da vivência, como ensina o princípio fenomenológico da intencionalidade que Pessoa, através de Caeiro, parece quase querer radicalizar. O que seria, afinal, a essência de uma flor senão o facto de ser sentida? O significado de um fruto reside, antes de mais, nos sentidos que o colhem e, uma vez colhido, o fruto, ou melhor, a sua forma, como diria Aristóteles, está na alma, intencionalmente, que é em potência todos os seres (De An. 431b). “Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la | E comer um fruto é saber-lhe o sentido” (PESSOA, 2001: IX, 31; 2016: 47) – passando ao ato, a alma apropria-se da coisa mesma, em virtude de uma intuição que fornece ao intelecto uma base sobre a qual se pode erguer. Como refere uma das fórmulas mais conhecidas da tradição fenomenológica, a “consciência” é, enquanto tal, “consciência de algo” e “algo”, transformando-se no correlato objetivo de um ato intencional, é eo ipso “sentido”, “percebido”, “pensado”, “imaginado” ou mesmo apenas “sonhado”. É por isso que Husserl nos convida a fazer o gesto de uma “ἐποχή filosófica” (HUSSERL, 1976: § 18) antes mesmo da fenomenologia começar – uma ἐποχή que não se confunde com a ἐποχή propriamente fenomenológica, enquanto momento posterior do método que, suspendendo a crença na tese da existência do mundo, permitiria transformar tudo o que é em “fenómeno”. Trata-se de uma ἐποχή sui generis dirigida à filosofia tout court, à qual os comentadores têm dedicado uma atenção marginal nas suas leituras da obra de 1913 e que, para Husserl, consistiria numa suspensão programática do juízo sobre a própria possibilidade da filosofia.3 Neste sentido, poderíamos afirmar que a “filosofia”, se é fenomenologicamente possível, tem de começar “sem filosofia”, pelo menos se seguirmos à letra o enredo do argumento que Husserl desenvolve na primeira secção das Ideen I: Die philosophische ἐποχή, die wir uns vornehmen, soll, ausdrücklich formuliert, darin besten, daß wir uns hinsichtlich des Lehrgehaltes aller vorgegebenen Philosophie vollkommen des Urteils enthalten und alle unsere Nachweisungen im Rahmen dieser Enthaltung vollziehen. (Husserliana, Hua III/1: 33) [A ἐποχή filosófica que nós nos propomos deve consistir expressamente nisto: abster-nos inteiramente de julgar acerca do conteúdo doutrinal de toda filosofia previamente dada e efetuar todas as nossas comprovações no âmbito dessa abstenção”]. (Trad. port., 2006: 60) Mesmo a formulação do “princípio de todos os princípios” – vale a pena sublinhá-lo – insere-se no âmbito pré-filosófico desta ἐποχή peculiar, o que implica uma outra Como exemplo, citamos o volume Commentary on Husserl’s Ideas I (STAITI, 2015), entre os mais articulados e abrangentes, onde, no entanto, não há uma única referência ao significado desta ἐποχή específica. O mesmo se aplica aos dois números monográficos mais recentes da revista Phainomenon. Journal of Phenomenological Philosophy inteiramente dedicados às Ideen I (ALVES e MARIANI, 2022). 3 Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 591 Mariani Um Husserl heterónimo de Pessoa injunção, formulada um pouco mais adiante, no § 19 das Ideen I, a “ausência de pressupostos”, como complemento do famoso lema do “regresso às coisas mesmas”. Contra qualquer metodologia que proceda de cima para baixo, contentando-se com conceitos vazios, com “palavras puras e simples” que não encontram uma contrapartida efetiva no plano da evidência, o caminho fenomenológico procede de forma rigorosa de baixo para cima, excluindo do seu campo de ação todas as afirmações que não sejam intuitivamente justificáveis (HUSSERL, 1984: § 2). A mesma prescrição aplica-se, consequentemente, às doutrinas e correntes filosóficas entendidas como factos historicamente atestados que, uma vez colocados entre parênteses, se reduzem a meras convicções de ordem concetual, partilhadas pelos homens de uma dada época e resultantes de uma dada “visão do mundo”. Seria, no entanto, precipitado interpretar a função desta ἐποχή, tal como Husserl a entende, como a simples aplicação em chave histórica de uma ausência, mesmo total, de pressupostos. Para além do sentido crítico, por assim dizer, do princípio que exige que não se recorra a afirmações não comprovadas para assegurar os fundamentos de um certo conhecimento autêntico, a ἐποχή filosófica assume um sentido “dogmático” que Husserl afirma apertis verbis. Espírito crítico e dogma, por paradoxal que pareça, implicam-se mutuamente na medida em que o exame que o fenomenólogo impõe a todo o tipo de conhecimento se torna possível pelo recurso ao “dado intuitivo”, que precede todo o “pensamento teorizante” e, portanto, toda a teoria, toda a ciência e toda a filosofia (HUSSERL, 1976: § 20). Antes mesmo de questionar as coisas que se oferecem à nossa visão, devemos deixar que as coisas apareçam e se deem pelo que são, com base numa atitude de abertura radical. “Não basta abrir a janela para ver os campos e o rio” diria por sua vez Alberto Caeiro, para logo acrescentar: “é preciso também não ter filosofia nenhuma” (PESSOA, 2001: P.I., 158; 2016: 118). A ἐποχή filosófica exige, mutatis mutandis, uma disposição semelhante: a possibilidade da filosofia, que Husserl, apesar de tudo, continua a defender ao contrário do mestre dos heterónimos pessoanos, depende do que precede o pensamento, do outro do pensamento que nos dá a pensar. No § 20 das Ideen I encontramos, à guisa de conclusão, a seguinte afirmação com um sabor abertamente programático: […] nehmen wir unseren Ausgang von dem, was vor allen Standpunkten liegt: von dem Gesamtbereich des anschaulich und noch vor allem theoretisierenden Denken selbst, von alle dem, was man unmittelbar sehen und erfassen kann. (Husserliana, Hua III/1: 38) [(...) nós outros temos nosso ponto de partida naquilo que se encontra antes de todo ponto de vista: na esfera completa do que é dado intuitivamente e antes de todo pensar teorizante, em tudo aquilo que pode ser visto e apreendido imediatamente.] (Trad. port., 2006: 64) Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 592 Mariani Um Husserl heterónimo de Pessoa O dogma do intuicionismo é, enquanto tal, absoluto, não porque exclua qualquer relativismo ou perspetiva – como se uma intuição “pura” pudesse oferecer-se de forma independente de um contexto – mas porque contempla, na sua formalidade, todos os pontos de vista possíveis, encerrando em si a “esfera completa do que é dado intuitivamente”. Basta, aliás, considerar a formulação através da qual Husserl enuncia, algumas páginas mais adiante, o “princípio de todos os princípios” que se refere a toda (“jede”) a intuição doadora originária – e não à intuição tout court, com o artigo definido. A intuição, embora formalmente única enquanto princípio, é contextualmente múltipla e é múltipla porque é “originária”, servindo de origem a uma certa experiência e, consequentemente, a um determinado tipo de conhecimento que varia consoante a esfera em que se constitui a nossa relação com o mundo. Como Husserl também afirma no § 24, exemplificando a função gnosiológica diretiva que a intuição assume, para as ciências naturais é a experiência compreendida em termos empíricos e, em última análise, a perceção que oferece os dados originais em virtude dos quais construímos os enunciados de uma teoria que pretende explicar, com base numa lei causal, os dados factualmente observados. O mesmo se aplica às chamadas “ciências das essências” que se ocupam das propriedades específicas de algo individual, o quid, que pode ser “posto em ideia” e intuitivamente apreendido em termos de uma generalidade de caráter necessário, já não factualmente contingente, isto é – para usar a formulação husserliana – o eidos como “objeto de uma nova espécie”, inerente a um contexto de relações que se articula em generalidades de ordem superior (HUSSERL, 1976: § 3). Aqueles, por outro lado, que se ocupam das ciências sociais – para acrescentar um outro exemplo, examinado em pormenor apenas no segundo volume das Ideen – procurarão ligações já não causais, mas motivacionais, atestáveis num contexto de sentido completamente diferente, onde a natureza é composta não só de coisas, mas também de corpos animados e de objetos aos quais nós, homens deste mundo, atribuímos um valor, um uso em vista de determinadas finalidades, agindo sob o impulso de desejos e aspirações, interagindo uns com os outros, criando relações comunitárias que, partindo de um espaço partilhado, transformam as coisas em bens de vária ordem e a natureza num mundo culturalmente estruturado, no qual se sedimentam um conjunto de hábitos, uma tradição e, finalmente, uma história. Teremos, então, tantos tipos de intuição doadora originária como tantas regiões do ser. Regiões que podemos entender materialmente, como no caso do mundo natural, do mundo vivo ou do mundo social, cujos conteúdos são especificados em função de uma esfera de objetividade, ou, então, formalmente, se considerarmos as conexões entre os conteúdos para além dos próprios conteúdos – as conexões que vêm definir as categorias da ontologia formal, dentro das quais encontramos a forma de todas as ontologias possíveis. O “objeto em geral”, universalmente compreendido, é realizado, ou melhor, nas palavras de Husserl, “desformalizado” nos objetos da experiência, através de uma “saturação” (Ausfüllung) do elemento formal que se Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 593 Mariani Um Husserl heterónimo de Pessoa aplica à especificidade dos âmbitos a partir dos quais as respetivas regiões do ser são constituídas. Seria, no entanto, um erro – como Husserl se apressa a explicitar – considerar o “algo vazio” da ontologia formalmente entendida como o género supremo ao qual todos os objetos possíveis devem ser atribuídos. A noção de “objeto” não é mais do que “uma designação para configurações diversas, mas inter-relacionadas” (HUSSERL, 1976: 21); indica tudo o que podemos experimentar e, ao mesmo tempo, a essência formal da própria experiência irredutível, em princípio, a um único campo de investigação ou a uma única fonte de legitimação. O conceito de objeto não poderia, aliás, ascender a um papel indiscriminadamente privilegiado, ao contrário do que tem sido sugerido por mais do que um intérprete de Husserl, se aceitarmos o primado da intuição, que opera em virtude de uma racionalidade que, por sua vez, varia em função dos contextos em que se realiza.4 Den allgemeinen Gegenstandsbegriff habe ich ja auch nicht erfunden – “Tampouco fui eu que inventei o conceito geral de objeto”, admite Husserl com extrema simplicidade, defendendo-se da acusação de “realismo platónico” quando ideias e essências, como realidades naturais, são reunidas sob a designação de “objeto” segundo o sentido do “discurso científico geral” (HUSSERL, 1976: 40). “Eu vejo” Em termos equivalentes poderíamos, portanto, dizer: há tantos âmbitos de objetos e regiões do ser como intuições doadoras originárias. Trata-se de noções estreitamente relacionadas (“intuição”, “doação”, “objeto”, “região” e “ser”), como atesta a primeira secção da obra de 1913, dedicada a uma exposição do vínculo de inseparabilidade entre “facto” e “essência”, a partir da qual Husserl enucleia as estruturas que regulam a ontologia, ou melhor, as ontologias, rigorosamente no plural, subjacentes a cada esfera regional. Tudo o que é dado hic et nunc, factualmente, pode apresentarse noutro lugar ou noutro tempo e, sob certas condições, não existiria. O “poder ser de outro modo” (Anderssein) que caracteriza a contingência dos factos coincide com o seu modo específico de ser (Sosein); denota as suas propriedades fundamentais que podemos generalizar ao ponto de apreender os elos que regulam as relações entre os próprios factos. A contingência remete, então, para uma necessidade que estabelece o seu limite, e o objeto, individualmente entendido, por mais mutável que seja, não pode ser assimilado a algo irrepetível, a uma mera haecceitas desprovida de predicados. O “indivíduo”, para usar a formulação husserliana, enquanto singularidade concreta, traz em si “uma essência, um eidos” que podemos apreender na sua pureza. E tudo A título de exemplo, referimo-nos à crítica da fenomenologia husserliana elaborada por Jean-Luc Marion em favor de uma fenomenologia da doação que libertaria o conceito de Gegebenheit do seu supostamente indevido achatamento no conceito de objeto (Objekt / Gegenstand). Entre as várias referências possíveis na obra de Marion, assinalamos: Reprise du donné (MARION, 2016). 4 Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 594 Mariani Um Husserl heterónimo de Pessoa o que pertence à essência de um indivíduo pode eo ipso pertencer a outro indivíduo (cf. HUSSERL, 1976: 9). Consideremos, a título de exemplo, uma coisa que se manifesta através de certas propriedades como a duração temporal, a forma e a extensão – propriedades que podemos apreender intuitivamente ou fixar como elementos comuns, se compararmos essa coisa, individualmente, com outras. Podemos assim, por generalização, fazer emergir os predicados e as relações em virtude dos quais se configura uma dada região ontológica, como a natureza física composta por coisas materiais ou, mutatis mutandis, o mundo social, cujos indivíduos de referência já não são coisas tout court, mas sim pessoas que reconhecemos através de uma modalidade específica da intencionalidade, a empatia, graças à qual compreendemos os seus comportamentos, ações e interações. Cada “região” é determinada pelos indivíduos que a compõem; é, por outras palavras, uma região de indivíduo eideticamente definido. Como Husserl não deixa de sublinhar, o “indivíduo” serve de “objeto originário” (Urgegenstand) em função do qual, por variação, se formam todas as outras objetividades possíveis; é o núcleo de origem com base no qual se ramificam as ligações que dão unidade à região correspondente. Se examinarmos uma coisa à luz das suas propriedades materiais, estaremos perante estados de coisas, predicados e características de ordem material, e a região em causa será determinada através de relações causais que permitem interpretar o que se manifesta como a objetividade de um mundo constituído materialmente; a estrutura do mundo social, pelo contrário, articula-se a partir de propriedades, características e relações de ordem pessoal, interpessoal ou comunitária, quando é a pessoa que funciona como objetividade de referência.5. A cada região cabe, portanto, o seu próprio objeto como termo último que não pode ser mais dividido, a partir do qual se pode estabelecer uma ordem de relações e detetar uma essência segundo o sentido de uma legalidade intrínseca ao âmbito em análise. “Toda essência”, afirma Husserl, “insere-se numa escala eidética” (HUSSERL, 1976: 25) e, por conseguinte, a essência mais geral está “imediata ou mediatamente contida na essência do particular” (HUSSERL, 1976: 26). No vermelho apreendemos a qualidade que nos permite generalizar uma forma determinada sensivelmente, passando do vermelho entendido singularmente – o “isto-aqui” (Dies-da), para usar o vocabulário husserliano – para o “vermelho” como um género que se insere no género mais amplo da “qualidade visual”. O mesmo se aplica ao género da extensão que podemos encontrar em qualquer figura espacial. A qualidade sensível e a extensão vêm, por sua vez, a constituir dois momentos abstratos, Husserl diria “não independentes”, de um “concreto”, a coisa que nos aparece em termos Cf. HUSSERL (1976, 29): “Das Individuum ist der reinlogisch geforderte Urgegenstand, das logisch Absolute, auf das alle logischen Abwandlungen zurückweisen” [“Indivíduo é o proto-objecto requerido pela lógica pura, o absoluto lógico, a que se refere todas as variações lógicas”] (Trad. port., 2006: 54). Para um exame mais aprofundado do conceito de “indivíduo” no contexto da fenomenologia husserliana, remetemos para as análises de MAJOLINO (2015). 5 Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 595 Mariani Um Husserl heterónimo de Pessoa fenomenais, como uma “árvore” ou uma “flor” enquanto “indivíduos” de um “género supremo” ou, o que é o mesmo, de uma região do ser (HUSSERL, 1976: §§ 14-15), a “natureza” no sentido meramente naturalista que poderíamos mesmo definir, nas palavras de Caeiro, como uma “natureza sem gente” (PESSOA, 2001: I, 13; 2016: 31). Assim se desenha uma teia de conexões eideticamente relevantes como fundamento de todas as ontologias, que preordena os modos como qualquer esfera de objetualidade é composta. Husserl fala, a este respeito, de uma “estrutura formal” (formal Verfassung) que engloba na sua generalidade todo o espetro de distinções inerentes aos conceitos de objeto e região (cf. HUSSERL, 1976: 21). Trata-se de uma estrutura do ser – poderíamos acrescentar – que se ergue à imagem de uma escada (Stufenreihe), que poderia ser percorrida por degraus de baixo para cima e, viceversa, de cima para baixo – das singularidades aos géneros supremos, passando pelas espécies e pelos géneros intermédios. Aliás, não seria ousado recorrer à célebre expressão kantiana de uma arquitetónica, organizada em função de um objeto contextualmente preferencial, o “indivíduo”, cujo privilégio (Vorzug) reside em ser a referência orientadora para a constituição de uma esfera específica de pertença. “Constatações assim efetuadas”, afirma Husserl na conclusão desta primeira secção das Ideen I, “são de uma generalidade referida a todas as regiões abrangentes do ser” e fazem parte, em princípio, da filosofia quando concebida nos termos de uma possibilidade ideal, independentemente do corpus historicamente estabelecido das doutrinas filosóficas (HUSSERL, 1976: 33). Dito de outro modo, e em termos inequívocos, a ideia da filosofia radicaria nas coisas que podemos apreender e ver – desde que compreendamos as próprias coisas à luz da “estrutura fundamental” (Grundverfassung) que inerva, eideticamente, tudo o que é. Onde podemos começar a refletir filosoficamente, afinal, senão a partir do que cai sob o nosso olhar, direitamente, quer se trate de qualquer coisa que experimentamos, sem necessidade de mediação concetual, quer se trate de uma sensação, de uma emoção, de um ato de imaginação ou, para o dizer em termos gerais, de uma vivência, e o mesmo se aplica a uma pessoa, um amigo ou um estranho que encontramos no mundo em que vivemos? Impõe-se, portanto, uma tarefa de grande envergadura, que abre o início da filosofia propriamente dita, construída sobre bases fenomenológicas: Im Umkreise unser individuellen Anschauungen die obersten Gattungen von Konkretionen zu bestimmen, und auf diese Weise eine Austeilung alles anschaulichen individuellen Seins nach Seinsregionen zu vollziehen, deren jede eine [...] Wissenschaft (bzw. Wissenschaftsgruppe) bezeichnet. (HUSSERL, 1976: 32) [Determinar os gêneros supremos de concreções no círculo de nossas intuições individuais e, desta maneira, levar a cabo uma distribuição de todos os seres individuais intuídos segundo regiões do ser, cada uma das quais designando por princípio [...] uma ciência (ou grupo científico).] (Trad. port., 2006: 40) Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 596 Mariani Um Husserl heterónimo de Pessoa Seria, então, possível derivar de um núcleo de positividade originalmente apreensível, as espécies, os géneros e os géneros supremos que traçam o perímetro da investigação científica. E a intuição, em conformidade com as categorias lógicas que estão na base de uma ontologia possível, diferenciar-se-ia numa multiplicidade de figuras inerentes à essência dos objetos que, por sua vez, se agrupam em domínios de pertença. Teremos, portanto, tantos tipos regionais de intuições quantas as regiões fundamentais do ser e, na base de cada ciência, juízos imediatamente evidentes que aderem ao que é dado na intuição.6 “O ver imediato”, acrescenta Husserl a este respeito, “não meramente o ver sensível, empírico, mas o ver em geral, como consciência doadora originária, não importa qual seja a sua espécie, é a fonte última de legitimidade de todas as afirmações racionais” (HUSSERL, 1976: 36). Por outro lado, seria “absurdo” – lemos algumas linhas mais adiante – “não conferir valor algum ao ‘eu o vejo’ [Ich sehe es]”, na tentativa de legitimar o sentido de qualquer afirmação (HUSSERL, 1976: 36). “Eu vejo”: eis, em suma, a razão, tão simples quanto radical, que faz do “princípio de todos os princípios” um “património” (Bestand) inalienável da filosofia no seu estado nascente, pouco importa se se trata de um ver percetivo ou imaginativo, se o que é dado é uma fantasia devaneante ou a realidade empírica; o “eu vejo”, continua o filósofo, “é chamado a servir de fundamento no sentido autêntico da palavra” (HUSSERL, 1976: 44). Negá-lo seria contradizer-se, como, aliás, acontece com o empirista que, refletindo sobre a possibilidade de conhecer, circunscreve o âmbito da intuição ao sentido de uma experiência considerada naturalisticamente. Se a realidade se limitasse ao que é factualmente dado, seríamos, por outro lado, forçados a reconhecer que a exigência de um retorno às coisas mesmas coincidiria com a exigência de uma redução de todo o conhecimento a uma base experimental; a ciência em geral e a ciência empírica seriam uma e a mesma coisa (HUSSERL, 1976: § 19). Basta, no entanto, perguntarmo-nos qual é o princípio de tal sobreposição para compreendermos o equívoco a que se expõe o empirista, quando avança uma tese que ultrapassa o domínio dos factos, com a pretensão de que é incondicionalmente válida. Contra o empirismo – que, para Husserl, deve ser considerado, mais precisamente, como uma variante do ceticismo – o antídoto reside numa reflexão capaz de dar conta do progresso positivo das ciências, acolhendo as objetividades do conhecimento onde Cf. Husserliana, Hua III/1, § 19, 36: “Die fundamentale Regionen von Gegenständen und korrelativ die regionalen Typen gebender Anschauungen, die zugehörigen Urteilstypen und endlich die noetischen Normen, welche für die Begründung von Urteilen solcher Typen jeweils gerade diese und keine andere Anschauungsart fordern – all das kann man nicht von obenher postulieren oder dekretieren; man kann es nur einsichtig feststellen, und das heißt selbst wieder: durch originär gebende Anschauung ausweisen, und es durch Urteile, die sich dem in ihr Gegebenen getreu anpassen, fixieren” [“As regiões fundamentais de objetos e, correlativamente, os tipos regionais de intuições doadoras, os tipos correspondentes de juízos e, finalmente, as normas noéticas, que exigem, para a fundação de juízos desses tipos, exatamente esta e nenhuma outra espécie de intuição – tudo isso não pode ser postulado ou decretado de cima para baixo, mas apenas constatado com evidência, o que significa mais uma vez: mostrar em intuição doadora originária e fixar por juízos que se ajustam fielmente àquilo que nela é dado”] (Trad. port., 2006: 62). 6 Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 597 Mariani Um Husserl heterónimo de Pessoa elas realmente se encontram (HUSSERL, 1976: 46); no deixar-se guiar pelas coisas para não cair no impasse de uma “teoria do conhecimento” incapaz de “distinguir as espécies fundamentais de dados e de descrevê-las segundo suas essências próprias” (HUSSERL, 1976: 41). Aqui reside a tarefa da filosofia que, ao mesmo tempo, determina a sua natureza: refletir, para conseguir apreciar a legitimidade originária de todos os dados; para assegurar o alcance e a extensão do conhecimento para depois fixar o valor dos resultados a que as ciências chegam – com base numa atitude diametralmente oposta ao ceticismo que, em termos ainda mais gerais, antes de ser uma doutrina filosófica, representaria uma atitude de pensamento dirigida contra a própria possibilidade da filosofia (HUSSERL, 1976: § 26). À fenomenologia cabe, então, uma missão precisa para não perder o contacto com o que, por assim dizer, nos dá a pensar: o regresso à origem, no decurso de uma reflexão em que o pensamento é chamado a voltar-se sobre si próprio. Por meio de uma série de operações que Husserl só iniciará a partir da segunda secção das Ideen I (a ἐποχή fenomenológica, a suspensão da tese da existência do mundo, as reduções eidética e transcendental), a análise transforma-se numa interrogação que não consiste senão em querer ver o ver, de modo a tornar claro o que de outro modo permaneceria latente: as atuações intencionais da subjetividade transcendental e eideticamente reconfigurada, em virtude da qual se constitui o sentido de tudo o que experimentamos – o sentido que só podemos apreender questionando e, consequentemente, problematizando o dogma das “coisas mesmas”, do qual procede o pensamento, o conhecimento e toda a reflexão filosófica sobre o conhecimento. Ver ou ver-se? Seria esta, então, a diferença entre o fenomenólogo e o poeta? A filosofia, refundada fenomenologicamente, aspiraria a poder apreender reflexivamente tudo o que é, ao passo que a simplicidade desarmante do guardador de rebanhos permaneceria voltada irrefletidamente para o Grand Dehors, onde o sujeito não é mais do que a vibração de uma natureza sem unidade na qual se dispersa a multiplicidade fervilhante das suas partes. Para o “neopaganismo moderno” expresso nos versos de Alberto Caeiro, só o ver conta, face a uma redução radical do sentido à existência que transforma o gesto poético numa espécie de tautologia, numa atitude de encarar o mundo sem mais perguntas e sem espanto: “O que nós vemos das coisas são as coisas” (PESSOA, 2001: XXIV, 46; 2016: 56). O diálogo entre o recuo para uma interioridade redefinida fenomenologicamente e o impulso de uma poética da exteriorização seria, no entanto, irremediavelmente enviesado se nos detivéssemos na letra de O Guardador de Rebanhos, apesar de Alberto Caeiro proibir abertamente a procura de uma suposta profundidade da linguagem para além do imediatismo do falado – “Caeiro tem uma disciplina: as coisas devem ser sentidas tal como são”, lemos num texto datável de 1915 sobre o “sensacionismo” enquanto estilo poético, assim como de vida, de quem elege a Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 598 Mariani Um Husserl heterónimo de Pessoa “simplicidade” como regra de ouro, substituindo o pensamento pelo dado imediato de uma sensação pura e direta (PESSOA, 1966, 350; 2012: 308). É preciso não esquecer, aliás, que o objetivismo absoluto na chave de Caeiro se inscreve no prisma do heteronimismo em que se refrata uma constelação de personalidades típica da escrita pessoana, dando origem a um “drama” – como Pessoa afirma na “Tábua bibliográfica” de 1928 – composto não em atos, mas “em gente” (Presença, n.º 17). O heteronimismo situa a obra do autor “fora da sua pessoa”: Alberto Caeiro, juntamente com os seus discípulos, Ricardo Reis e Álvaro de Campos, não são meros alter egos, mas outras tantas individualidades que fazem de Pessoa o ortónimo dos seus heterónimos, assim contribuindo, cada um com o seu estilo, para dissimular e diversificar a figura autoral a ponto de a tornar inseparável das vozes que a animam – ao contrário do artifício do pseudónimo que, salvo o nome, coincidiria com o “autor em pessoa”. O heterónimo encarna uma “personalidade literária”, numa aceção do termo – convém recordar – introduzida por Pessoa para qualificar uma “totalidade textual” que muda de sentido consoante o nome a que se associa: “Serei eu próprio toda uma literatura”, lê-se noutro fragmento de 1915, onde Pessoa acrescenta “não publico tudo sob o meu nome, porque isso seria contradizer-me” (PESSOA, 2009: 296 e 576; 2012: 142). Em virtude de um princípio de atribuição – o “efeito-heterónimo”, como afirma Fernando Cabral Martins – pelo qual o sujeito da enunciação se dissolve no enunciado, é inevitável vincular um nome ao texto para ler a obra pessoana, na medida em que a função autoral é entendida como um efeito do próprio texto (cf. MARTINS, 2012: 2223). A heteronímia – continua Cabral Martins – constitui, neste sentido, um vasto repertório de formas em que se exprimem as flutuações, as aventuras e as desventuras, da subjetividade, concebida através de um processo de proliferação do “espaço interior” que destina a quase todas as páginas a construção de um sujeito singular (MARTINS, 2012: 31); um sujeito que só se pode manifestar intermitentemente, no intervalo entre os diferentes sujeitos que a escrita heteronímica instaura (cf. GIL, 1993) – à luz do que Pessoa parece sugerir na estrofe de um poema ortónimo de 1933: Temos, todos que vivemos, Uma vida que é vivida E outra vida que é pensada, E a única vida que temos É essa que é dividida Entre a verdadeira e a errada. (PESSOA, 1960: 107) O resultado desta oscilação, entre a simulação e a intensificação, da subjetividade reside não só na encenação de “poetas-personagens”, como então sublinhava Octavio PAZ (1965: 19), mas também na criação de “poetas-obras”, de acordo com o sentido de “poesia dramática” que simboliza, para Pessoa, a realização da arte tout court – como refere numa carta a João Gaspar Simões, a 11 de dezembro de 1931 (cf. PESSOA, Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 599 Mariani Um Husserl heterónimo de Pessoa 1960: 714). “O ponto central da minha personalidade como artista é que sou um poeta dramático”, Pessoa confessa, identificando as raízes do seu impulso numa certa sobreposição entre a “exaltação íntima do poeta” e a “despersonalização do dramaturgo”, com vista a um fim essencialmente estético: ser capaz de sentir dissociado de si mesmo, construindo com base em diferentes estados de alma a expressão de uma outra personalidade, de um eu inexistente – mas não insincero – que sente e escreve de forma alheia ou, no limite, antitética ao eu original do poeta. Escrever “dramaticamente” é sentir “na pessoa de outro”, confidencia Pessoa em 1915 a Armando Cortês-Rodrigues, usando o exemplo de Shakespeare (PESSOA, 2009: 356; 2012: 138); um exemplo significativamente retomado num texto posterior, provavelmente de 1932, em que Shakespeare é definido nos termos de um “supremo despersonalizado” e Hamlet é transformado de personagem de um drama num drama por si só ou, nas palavras de Pessoa, numa “simples personagem, sem drama” que já não faz parte de um todo, com um estilo e uma visão próprios, através dos quais se exprime o que o poeta não sente (PESSOA, 1966: 107-108; 2012: 269). Seria, pois, ilegítimo, acrescenta Pessoa, procurar nas ficções de Hamlet uma definição dos sentimentos ou pensamentos de Shakespeare, a não ser que se pretenda rebaixar Shakespeare à categoria de “mau dramaturgo” – uma vez que o mau dramaturgo se deixa desmascarar com demasiada facilidade, projetando-se, como uma sombra, nas suas próprias personagens ficcionais (PESSOA, 1966: 108; 2012: 270). Eis, em suma, os trilhos da chamada “viagem heteronímica”, imaginação e despersonalização, através dos quais o eu se refrata numa variedade de figuras que já não podem ser recompostas numa única singularidade, embora – é importante notar – os críticos nem sempre tenham estado de acordo na interpretação do significado deste fenómeno literário. Apesar das advertências de Pessoa para que não se confundisse “arte” e “vida”, não faltaram exegeses a partir da psicopatologia, auxiliadas, quase paradoxalmente, pelo próprio Pessoa que, ainda que en passant, indicou a histeria e a neurastenia como possíveis etiologias do processo heteronímico (SIMÕES, 1950). Recorrendo às contradições de uma época de crise, tentou-se também uma interpretação sociológica, equiparando a proliferação de heterónimos a uma espécie de fuga do mundo (SACRAMENTO, 1959). Procurou-se ainda garantir uma unidade temática e estilística à poética pessoana através de uma abordagem de índole histórico-literária que foi buscar os seus antecedentes e influências (COELHO, [1949] 1963). A partir da década de 1970, optou-se finalmente por um paradigma hermenêutico alternativo que reconheceu a escrita heteronímica como uma expressão poética a pleno título, já não associada a um dispositivo literário exterior ao texto (LOURENÇO, 1973). “Pessoa é heteronímia”, afirma, entre outros, Antonio TABUCCHI, 1990: 24), na linha das tendências quase unânimes da crítica mais recente. E a heteronímia, longe de ser uma criação a partir do nada, corresponderia ao acontecimento que torna possível a proliferação ontológica da subjetividade, em virtude da qual o ego, para se atestar, é paradoxalmente forçado a tornar-se plural; Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 600 Mariani Um Husserl heterónimo de Pessoa a viver várias vidas para viver verdadeiramente, para libertar, através da arte, a potencialidade da vida, arrancando-a ao anonimato do viver que enfraquece a nossa capacidade de sentir, de outro modo insuficiente para apreender o mistério da existência humana.7 Metafísica sem metafísica Para efeitos da nossa análise comparativa, uma interpretação particularmente significativa é-nos oferecida pela leitura filosófica de José Gil, que concebe o heteronimismo em termos de uma “metafísica das sensações” assente num mecanismo literário de produção sensorial; um procedimento que Pessoa, desde 1912, ainda antes de se apresentar publicamente como poeta, designaria como o aspeto mais relevante da “nova poesia portuguesa”. “Encontrar em tudo um além”: uma distância de ordem metafísica inervaria a textura da realidade, atuando como origem de um “sentimento poético” através do qual, ao apreendermos uma coisa, hic et nunc, apreendemos, ao mesmo tempo, o seu plus ultra (GIL, 1987). Perante o facto nu da existência, apercebemo-nos do mistério abissal da própria existência; a invocação do sentido do nosso ser entrelaça-se com a indiferença do ser perante as nossas interrogações, como se relata, entre outros, num poema ortónimo (“Trila na noite uma flauta”) em que o mistério da vida é comparado à sequência, sem princípio nem fim, das notas de uma flauta suspensa na noite – “pobre ária [...] tão cheia | De não ser nada!” (PESSOA, 2018: 99). A estética pessoana permitiria, então, reformular a questão metafísica por excelência – porque há algo em vez de nada? – partindo da gratuitidade de uma existência sem porquê, transformando a metafísica em poesia. E a metafísica, como explicitado num texto de 1924, viria a ser redefinida num duplo sentido como “atividade científica” e como “atividade artística”, pelo menos segundo as teses do heterónimo Álvaro de Campos que, contrariando, e em parte retificando, o próprio Pessoa, atribui à metafísica esteticamente entendida a tarefa de sentir, e já não a de saber; de fazer do abstrato e do absoluto o objeto de um sentimento capaz de conter em si uma coisa e o seu contrário – já que “tudo pode ser, e é, sentido” (PESSOA, 1986: I, 11). Caeiro representaria uma variante e, ao mesmo tempo, a exemplificação mais autorizada desta visão que faz do “sentir tudo de todas as maneiras” o seu lema, não sem paradoxo se considerarmos a postura declaradamente anti-metafísica dos seus versos em O Guardador de Rebanhos. “Eu não tenho filosofia: tenho sentidos” (PESSOA, 2001: II, 24; 2016: 34); e, de forma não menos equívoca: “Que metafísica têm aquelas Exemplar neste sentido é o que se afirma no Ultimatum de Álvaro de Campos: “Só tem o direito ou o dever de exprimir o que sente, em arte, o indivíduo que sente por vários” (https://purl.pt/17263). Para um estudo aprofundado da relação entre estética e poética em Pessoa, remetemos para as subtis análises de GIANCARLI (2020). 7 Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 601 Mariani Um Husserl heterónimo de Pessoa árvores?” (PESSOA, 2001: V, 30; 2016: 38). Mas os discípulos de Caeiro, incluindo Pessoa, não hesitam em denunciar o “temperamento abertamente metafísico” do mestre, apresentando-o como um “pure mystic” (PESSOA, 1966: 343; “místico puro”, PESSOA, 2012: 309). A aporia – é fácil de demonstrar – é, no entanto, apenas aparente. Basta perguntarmo-nos como é que o jogo poético pode continuar a ser produzido, se nos mantivermos fiéis aos princípios de uma visão que, ao recusar todo o recurso aos tropos (o símile, a metáfora, a metonímia etc.), achata o dizer em tautologia. Se as árvores são árvores, o vento é vento e as coisas da natureza são apenas as coisas da natureza, que mais há a dizer? E, sobretudo, porquê insistir em dizer, mesmo poeticamente, uma existência que se basta a si mesma? A positividade absoluta, a que nos convida a visão de Caeiro, não seria de modo algum exprimível sem a referência ao seu contrário: a simplicidade daquele que não vê senão o visível afirma-se contra o pano de fundo de um meta-discurso que insiste nas derivas daqueles que, pelo contrário, teimam em ver apenas com a mente. O saber ver sem estar a pensar anda de mãos dadas com uma “metafísica negativa” ou, se quisermos, com uma “metafísica sem metafísica” – como sugere, mais uma vez, José Gil – segundo a qual o que é, em todo o seu imediatismo, remete para o que não é: “O luar através dos altos ramos” (PESSOA, 2001: XXXV, 59; 2016: 63) não é mais que o luar através dos altos ramos. O princípio de individuação deve ser procurado, poeticamente, naquilo que uma coisa não é, poderíamos observar para salientar como a positividade do discurso caeiriano é apenas o efeito de uma negação – uma negação que, numa análise mais atenta, não surge de uma oposição frontal à metafísica, mas antes de uma tensão entre a rejeição da metafísica e a própria metafísica. Positivo e negativo relacionam-se como as duas faces da mesma moeda – “Porque o único sentido oculto das coisas | É elas não terem sentido oculto nenhum” (PESSOA, 2001: XXXIX, 63; 2016: 66). Nesta tensão assenta, em última análise, o princípio de transparência entre o ser e o parecer que orienta a vida poética do guardador dos rebanhos: Fig. 1. Versos do caderno do Guardador (BNP/E3, 145-33v). Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 602 Mariani Um Husserl heterónimo de Pessoa É mais estranho do que todas as estranhezas E do que os sonhos de todos os poetas E os pensamentos de todos os filósofos, Que as coisas sejam realmente o que parecem ser E não haja nada que compreender. (PESSOA, 2001: XXXIX, 63; 2016: 66) O dogma caeiriano da visão decorre diretamente deste princípio, cuja nuance fenomenológica não é difícil de apreender: esse e percipi correspondem-se e não existe discrepância. Seria, pois, enganador pensar a aparência como um modo da nossa subjetividade, distinto e afastado do ser do que aparece. Se, pelo contrário, a aparência é o modo pelo qual o ser é dado, poderíamos afirmar em termos estritamente fenomenológicos: Soviel Schein, soviel Sein – “tanto de aparência como de realidade” (HUSSERL, 1991: § 46). Ao fazer da aparência a porta de entrada para o ser, a interrogação sobre o ser ultrapassa, por princípio, os limites de qualquer interpretação do real; o ser, poderíamos acrescentar, é mais real do que o real para aqueles que aspiram a abraçar tudo o que é dado. Como, aliás, escreveu Husserl em 1907 numa carta a Hugo von Hoffmansthal, tudo se torna “fenómeno” através do olhar do poeta capaz, tanto quanto o fenomenólogo, de se indiferenciar perante o sentido da existência, para captar o mistério da própria existência, a qual se afirma simples e indizível, presente e inacessível, finita e sempre aberta; um mistério que faz do “ver” um ato afinal anfíbio, simultaneamente sensível e concetual, natural e metafísico, numa tentativa – talvez impossível (cf. MARTINS, 2001: 259) – de se adaptar ao que está dado antes de qualquer instituição de sentido. “Perante cada coisa o que o sonhador deve procurar sentir é a nítida indiferença que ela, no que coisa, lhe causa”, escreve Pessoa, num texto da primeira fase do Livro do Desassossego (https://ldod.uc.pt/ | Pesquisa). A “metafísica das sensações” é composta, não por acaso, de conceitos aparentemente incongruentes, como assinala Jodarnon Garneri, tais como “sonho”, “imaginação”, “simulação” e “despersonalização”, provando que o sentir pessoano não se pretende redutor; não visa limitar, mas antes alargar as fronteiras da experiência através do exercício de uma “imaginação performativa” (enactive imagination) que permite ao sujeito perceber atualmente o efeito de uma experiência virtual; sonhar de outro modo ao ponto de se sentir outro (GANERI, 2020: 44). O olhar pode, então, tornar-se “azul como o céu” ou “calmo como a água ao sol” para quem sabe ver até as suas próprias ideias, como um pastor sem rebanho que brinca, no sentido lúdico do termo invocado por mais do que um comentador, com o ser e o aparecer, recorrendo a expressões que não devem ser lidas em termos metafóricos. Somos porque vemos, e quando, ao pensar, deixamos de ver ou, pior ainda, acreditamos que só há uma forma de ver, afastamo-nos drasticamente, e também tristemente, de nós próprios. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 603 Mariani Um Husserl heterónimo de Pessoa Conclusões “Eu nem sequer sou poeta: vejo” (PESSOA, 2001: P.I., 90; 2016: 92) – eis a tese, tão simples quanto prenhe de consequências, que nos permite apreender filosoficamente o ponto mais relevante para efeitos da nossa leitura comparada: a pureza da visão de Caeiro corresponde, nem mais nem menos, ao modo como Caeiro vê, e esse ver, para se mostrar, tem de poder ser visto. Caeiro, para ser mais preciso, vê-se a si próprio no próprio ato de ver; e ao ver exibe, conscientemente, o seu ver, distinguindo-se dos outros – os “homens doidos” que se deixam incomodar pela vacuidade dos seus pensamentos, como os que andam à chuva, “quando o vento cresce e parece que chove mais” (PESSOA, 2001: I, 13; 2016: 32). A “metafísica sem metafísica” do mestre dos outros heterónimos (e de Pessoa) concretiza-se numa reflexão sobre o ver em que o sujeito, ao exteriorizar-se, se torna o objeto da sua própria visão. O ver é então uma consequência, ou melhor, poderíamos dizer em termos propriamente fenomenológicos, um momento intrínseco ao ato de ver, uma intencionalidade oblíqua que torna o ver intuitivamente acessível. A aparente ingenuidade de O Guardador de Rebanhos assenta numa visão reflexiva que não pretende afetar as coisas, mas a experiência das próprias coisas; define as suas condições fenomenológicas de possibilidade, permitindo-nos apreender no que vemos o modo como vemos – o “quê” no “como” da visão. Detetamos, portanto, um quiasma entre o guardador de rebanhos e o guardador do ser, entendido fenomenologicamente, em virtude de uma assonância mútua que permite apreciar o impulso, por assim dizer, caeiriano da fenomenologia husserliana. Evitando explicitamente qualquer forma de mediação, Caeiro recorre, quase de forma despercebida, ao auxílio da reflexão para nos mostrar o imediatismo irrefletido do ver, ao passo que o gesto fenomenológico, que decorre de uma atitude reflexiva, aspira a ver o ver para poder descrever tudo o que é dado a quem pode ver de modo verdadeiro. Tanto para o poeta como para o fenomenólogo, a origem é comum: a intenção do olhar, se for livre de preconceitos, vem de outro lugar, e não desse do observador. O dogma da visão descende diretamente das coisas, na medida em que são as próprias coisas que tornam possível a visão, num mundo que se refrata através de uma heterogeneidade irredutível de aparências, como num caleidoscópio – uma nuvem no céu atravessada pela luz da manhã; o ar fresco do vento; uma cadeira à soleira da porta; e até sensações, humores ou versos escritos numa folha de papel que só existe na mente de um pastor imaginário (cf. PESSOA, 2001: I, 14; 2016: 32). Perante a autoridade imperturbável do que é (“basta existir para se ser completo”), é essencial ver e não dizer mais do que se vê – é a injunção do poeta que o fenomenólogo, acenando com a cabeça, se apressaria a completar: ver para não deixar de fora nada do que se vê. “A nossa única riqueza é ver” – confessa, aliás, o guardador de rebanhos, para concluir: “mas isso exige um estudo profundo, uma aprendizagem de desaprender” (PESSOA, 2001: XXIV, 46; 2016: 56). Não se aplicará o mesmo à fenomenologia na sua forma husserliana? A ἐποχή, a suspensão da tese da Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 604 Mariani Um Husserl heterónimo de Pessoa existência do mundo, a redução eidética e, depois, transcendental, que outra coisa seriam senão as operações de um método que exige, por sua vez, um “estudo profundo” que nos permitiria tirar os antolhos do hábito, dos preconceitos e das teorias filosoficamente preconcebidas, do empirismo ao idealismo, que nos impedem de apreciar o sentido de uma “visão pura” capaz de apreender reflexivamente tudo o que é dado antes mesmo de começar a reflexão?8 À “metafísica sem metafísica” de Alberto Caeiro, que se apoia na transcendência imanente das sensações, contrapõese a “filosofia sem filosofia” de Husserl, que marca o início da fenomenologia transcendental, assente no dogma da intuição, em virtude do qual o dado precede e orienta o pensamento teorizante. O fenomenólogo e o poeta não partilham, no entanto, os mesmos objetivos. E é aqui que os caminhos divergem de forma definitiva: a filosofia, para Husserl, continua, apesar de tudo, a ser animada por um desejo de saber em sintonia com as suas origens gregas e é ao título de ciência que ela aspira através da sua refundação em bases fenomenológicas; a arte, pelo contrário, para Pessoa, não aspira a mais do que sentir, e se, para sentir mais intensamente, for necessário o auxílio da filosofia, será ainda assim uma filosofia plasmada esteticamente que não procura o sentido das coisas – as coisas, se vistas verdadeiramente, não têm sentido, quando muito existem (“as coisas não têm significação: têm existência”). Poderíamos então concluir, de forma paradoxal, com as palavras que o próprio Husserl proferiu em 1916, por ocasião da sua nomeação para a Universidade de Friburgo – palavras que teriam provavelmente levado Caeiro, falecido apenas um ano antes, se nos cingirmos à biografia de Pessoa, a captar uma ressonância entre os seus versos e os motivos aparentemente distantes da fenomenologia husserliana. Colocado o problema do conhecimento, Husserl parte em busca de uma certeza que fundamente, para além de qualquer dúvida possível, a relação entre a imanência da experiência vivida e a transcendência das coisas, formulando uma pergunta de tom surpreendentemente caeiriano: “que importa ao ser o nosso conhecimento?” (HUSSERL, 1987: 138). A Cf. Einleitung às Ideen I: “Die gesamten bisherigen Denkgewohnheiten ausschalten, die Geistesschranken erkennen und niederreißen, mit denen sie den Horizont unseres Denkens umstellen, und nun in voller Denkfreiheit die echten, die völlig neu zu stellenden philosophischen Probleme erfassen, die erst der allseitig entschränkte Horizont uns zugänglich macht – das sind harte Zumutungen. [...] eine neue, gegenüber den natürlichen Erfahrungs- und Denkeinstellungen völlig geänderte Weise der Einstellung nötig ist. In ihr, ohne jeden Rückfall in die alten Einstellungen, sich frei bewegen, das vor Augen Stehende sehen, unterscheiden, beschreiben zu lernen, erfordert zudem eigene und mühselige Studien” (HUSSERL, 1976: 3). [Colocar fora de circuito todos os atuais hábitos de pensar, reconhecer e pôr abaixo as barreiras espirituais com que eles restringem o horizonte de nosso pensar, e então apreender, em plena liberdade de pensamento, os autênticos problemas filosóficos, que deverão ser postos de maneira inteiramente nova e que somente se tornarão acessíveis a nós num horizonte totalmente desobstruído – são exigências duras. (...) é necessária uma nova maneira de se orientar, inteiramente diferente da orientação natural na experiência e no pensar. Aprender a se mover livremente nela, sem nenhuma recaída nas velhas maneiras de se orientar, aprender a ver, diferenciar, descrever o que está diante dos olhos, exige, ademais, estudos próprios e laboriosos]. 8 Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 605 Mariani Um Husserl heterónimo de Pessoa pergunta transcendental sobre a possibilidade do conhecimento surge perante a indiferença do ser face à nossa própria interrogação, provando que de uma visão comum ao fenomenólogo e ao poeta podem resultar efeitos diferentes, senão mesmo opostos, como, de resto, nos ensina o heteronimismo de Pessoa que, continuando a ser ele mesmo no outro, nos oferece, pelo menos virtualmente, o pretexto para uma leitura heteronímica da fenomenologia, em nome da diferença radical que separa Edmund Husserl de Fernando Pessoa e Alberto Caeiro. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 606 Mariani Um Husserl heterónimo de Pessoa Bibliografia ALVES, Pedro M. S.; MARIANI, Emanuele (2022) (eds.). Phainomenon. 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Scritti su Fernando Pessoa. Milano: Feltrinelli. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 609 Mariani Um Husserl heterónimo de Pessoa EMANUELE MARIANI formou-se na Universidade de Bolonha e doutorou-se em filosofia na Universidade Sorbonne (Paris IV) sob a direção de Jean-Luc Marion. Depois de ter sido pós-doc e investigador na Universidade de Lisboa, é atualmente investigador na Universidade de Bolonha, onde trabalha sobre a fase alemã da fenomenologia (Brentano, Husserl, Heidegger), o aristotelismo alemão do século XIX (Trendelenburg), o nascimento da psicologia moderna (Wundt, Dilthey, Stumpf), o neo-kantismo e a relação entre fenomenologia e filosofia da religião. Para além de vários artigos científicos sobre estes domínios de investigação, publicou a monografia “Nient’altro che l’essere. Ricerche sull’analogia e la tradizione aristotelica della fenomenologia”. EMANUELE MARIANI graduated at the University of Bologna and obtained a Ph.D. in Philosophy at the Sorbonne University (Paris IV) under the supervision of Jean-Luc Marion. After being a post-doc and researcher at the University of Lisbon, he is currently researcher at the University of Bologna, where he is working on the German phase of phenomenology (Brentano, Husserl, Heidegger), 19th century German Aristotelianism (Trendelenburg), the birth of modern psychology (Wundt, Dilthey, Stumpf), neo-Kantianism and the relationship between phenomenology and the philosophy of religion. In addition to several academic articles on these fields of research, he published the monograph “Nient’altro che l’essere. Ricerche sull'analogia e la tradizione aristotelica della fenomenologia”. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 610 !"#$%#&'()'*&+,%)-. ! #$%&'(")*+,%)-"./#"0-1,-2!!"#$%#&'()'*&+,%)-. "#$%&'()(&*+%$,()(-.%)#*)%/*0%1(00(.2/ !"#$%&'#()"*#+%"# " !"#"$%"&'()"$* "#$%&%'(!)#**(&+!,-.&$(!'#!/&01(*+!2345$4(!%&!6(07$&8+!9'4:;(!/$<=4>&+!)(#*4&? ,*&-./ @1$#*#%=&A*#!&BC4!1#-&!1$40#4$&!.#D!&!#'4:;(!>$<=4>&!'(!1(#0&!2345$4( %&!6(07$&8+!(C=$($&! &=$47C<'(!&!,-.&$(!'#!/&01(*? 34.#$EF%>4&*!=#G=C&4*!*4E%4H4>&=4.&*!0#-I($&0!&!*C&!-#4=C$&+! 1(*4>4(%&%'(A(!>(0(!C0&!1#:&!J%4>&!%&!(7$&!'#!"#$%&%'(!)#**(&?!K&!2L%=$('C:;(8!'&!!"#$% &'()*+,$%-+%.*/$#'%-+%&$()'0+!(*!#'4=($#*!'4*>C=#0!'#D!1(#0&*!#G>-C<'(*!&1#*&$!'#!>(%*=&$#0 %(C=$&*!#'4:M#*?!N0!'(*!1(#0&*!O!234&$4(!%&!6(07$&8+!1C7-4>&'(!I5!0&4*!'#!=$4%=&!&%(*+! *#0!&1&$&=(!E#%O=4>(?!/-#(%4>#!P#$&'4%#--4!&=$47C4A(!&!,-.&$(!'#!/&01(*+!#%BC&%=(!Q#$#*&! 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Miraglia “Diário na Sombra” Na “Apresentação” do volume Obra Completa de Álvaro de Campos (PESSOA, 2014), os editores, Jerónimo Pizarro e Antonio Cardiello, enumeram e comentam dez textos em verso que decidiram excluir, apesar de integrarem outras edições da poesia do heterónimo, nomeadamente as organizadas por Cleonice Berardinelli e Teresa Rita Lopes. Encabeça a lista de poemas “Diário na Sombra”, ou seja, o bifólio 88-13 e 13a, cuja primeira publicação aconteceu há mais de trinta anos em volume da Edição Crítica de Fernando Pessoa (PESSOA, 1992), mas sem o complemento do aparato genético. Este facto, aparentemente curioso, deve-se às vicissitudes que rodearam o aguardado lançamento do tomo inaugural dessa edição, Poemas de Álvaro de Campos (PESSOA, 1990a). Com efeito, quando o volume já ia sair do prelo, surgiu nas livrarias Vida e Obras do Engenheiro (PESSOA, 1990b), um pequeno livro preparado por Teresa Rita Lopes que dava a conhecer numerosos textos do heterónimo, nessa altura inéditos, sendo que doze deles não figurariam no volume da Imprensa NacionalCasa da Moeda (INCM). Para contornar o incómodo, a Equipa Pessoa, responsável pelos volumes da edição crítica, resolveu avançar de imediato com a edição do volume da chamada “série menor”, que viria à luz em 1992. Esse volume, além de acolher os ditos doze poemas, acrescentaria ao corpus vinte e seis inéditos, entretanto localizados graças a uma afincada investigação, pois, convém lembrá-lo, nesses tempos o espólio à guarda da Biblioteca Nacional era ainda um imenso território a desbravar. Mas tais textos, entre os quais se inclui “Diário na Sombra”, foram publicados sem “os extensos comentários e as notas de natureza filológica que descrevem o estado dos manuscritos e o modo como foram aproveitados para estabelecer o texto dos poemas” (PESSOA, 1992: 311), atendendo às características editoriais da série. Ora, enquanto a edição crítica corroborou sucessivamente a atribuição de “Diário na Sombra” a Álvaro de Campos1, Teresa Rita Lopes, discordando dela, não o incluiu nas suas edições da poesia do heterónimo e o texto voltaria a ser publicado apenas por Richard Zenith, desta vez como sendo de autoria do ortónimo (PESSOA, 2006: 87-89). Do cotejo da transcrição constante do volume da série menor com a que se lê na edição de Zenith ressaltam algumas divergências que redundam numa leitura proveitosamente melhorada do documento original. Notável é, em particular, o caso do verso 45, que, de “O meu grande interesse de impedir na infância,” passa para “O meu garbo interior de imperador sem império,”. Merecem destaque igualmente outras decifrações mais consistentes como “Houve” em lugar de “Amo” no verso 42 e, no verso seguinte, “gozo” e “dom” em lugar de “fim” e “dever”. Nas notas Veja-se a “Introdução” ao volume I, tomo II da edição crítica da INCM, onde se explicam os critérios de seleção dos poemas: “Ortónimo. Recebem este qualificativo todos os poemas que são acompanhados pela assinatura ‘Fernando Pessoa’ ou que, na sua ausência, não são atribuíveis a algum heterónimo. Dado que a criação dos principais heterónimos foi datada retrospectivamente por Pessoa de 4-3-1914, compreende-se bem que muitos poemas do arco cronológica que interessa a este tomo não apareçam aqui precisamente por causa de deslocações heteronímicas. Assim ‘Diario na Sombra’ [58-13 e 13a], de 17-9-1916, foi publicado na série menor da poesia de Álvaro de Campos” (PESSOA, 2005: 8). 1 Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 612 Miraglia “Diário na Sombra” que complementam o volume, Zenith, para além de lembrar que “a edição crítica publicada pela INCM atribui o poema a Álvaro de Campos” (PESSOA, 2006: 475), limita-se a assinalar uma única variante, “mostra” para “faz”, relativa ao verso 16. A transcrição do documento 88-13 e 13a que se apresenta a seguir, e para qual foi determinante o anterior trabalho de decifração levado a cabo por Berardinelli e Zenith, assim como a colaboração generosa de Jerónimo Pizarro, diferencia-se fundamentalmente por reproduzir a grafia original de Fernando Pessoa, por ser acompanhada de aparato genético e por incluir uma anotação do autor à margem do poema. Além disso, contém algumas leituras divergentes, sendo de realçar, entre outros casos, o dos versos 19 e 35, onde “solo” passa para “sombra”, uma leitura que, sugerida pela grafia da parte final da palavra, onde em lugar da letra “l” parece estar mais a letra “b”, encontra conforto, pelo que diz respeito à parte inicial do lexema, na grafia da última palavra do verso 32, que também Berardinelli e Zenith leram como “sombrio”. Resta dizer que “Diário na Sombra” é uma composição atípica, singular, porventura um hápax, na obra poética pessoana do ortónimo. Conhecem-se textos em verso livre, escritos na sua maioria na década de 1910 e pertencentes à fase modernista2, mas cuja linguagem é nitidamente distinta, e, de resto, terá sido justamente o depurado coloquialismo desses versos a convencer Cleonice Berardinelli que o seu autor pudesse ser Álvaro de Campos. Por outro lado, os motivos que levam a excluir “Diário na Sombra” do corpus poético do heterónimo baseiam-se mais na sua evidente incongruência com o que se considera seguramente de Campos do que em afinidades, semelhanças ou paralelismos com poemas de autoria do ortónimo. Mas compare-se também com o poema de cariz esotérico “Rondam ás vezes o meu espirito desprevenido”, que apresenta a mesma data de “Diário na Sombra” (PESSOA, 2005: 97-99). 2 Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 613 Miraglia “Diário na Sombra” Fig. 1. “Diário na Sombra”, p. 1 (BNP/E3, 58-13r). Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 614 Miraglia “Diário na Sombra” Fig. 2. “Diário na Sombra”, p. 2 (BNP/E3, 58-13ar). Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 615 Miraglia “Diário na Sombra” Fig. 3. “Diário na Sombra”, p. 3 (BNP/E3, 58-13av). Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 616 Miraglia “Diário na Sombra” Fig. 4. “Diário na Sombra”, p. 5 (BNP/E3, 58-13v). Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 617 Miraglia “Diário na Sombra” ANEXO Edição crítica [58-13 e 13a] Materiais: Duas folhas manuscritas a lápis roxo. A data, sublinhada, encontra-se no rosto do documento 58-13r, na margem superior à direita do título. Existe numeração, ao alto e ao centro, no cabeçalho: 2, 3 e 4. O texto apresenta algumas emendas que, em dois casos, incidem no começo de um verso, por isso na transcrição a primeira letra das palavras que deixam de ser inicias passa para minúscula. Nos versos 48 e 49 desenvolve-se a abreviatura m/ que o autor utiliza para “minha”. Diario na Sombra Lembras-te ainda de mim? Tu conheceste-me3 ha muito tempo… Eu era aquella creança triste de quem tu não gostavas, E por quem depois, pouco a pouco, te fôste interessando. (Pela angustia, e a tristeza, e mais qualquer cousa,)4 E de quem5 tu acabaste por gostar, quasi sem o saber; Lembras-te? A creança triste que brincava na praia Sozinha, longe6 dos outros socegadamente, E de vez em quando lhes lançava um olhar triste mas sem pena… Vejo que olhas para mim disfarçadamente de vez em quando … Estas recordado? Queres ver se te recordas?7 bem sei… Sem saber sentes ainda8 no meu rosto calmo e triste [13ar] A creança triste que brincava sempre longe dos outros E de vez em quando olhava tristemente para elles, mas sem pena? Sei que olhas, e que não comprehendes qual a tristeza Que me mostra9 triste… Que não é pena, nem é saudade, nem desgosto, nem magoa… 3 <D>/T\u conheceste-me O facto de todo o verso, incluída a virgula final, estar fechado entre parênteses indicia que o autor hesitou em mantê-lo. 4 5 E [↑ de] quem 6 [↑ Sozinha] Longe 7 <ainda estás recordado?> [↑ Queres ver se te recordas?] 8 [↓ Sem saber] Sentes ainda 9 faz [↑ mostra] variantes alternativas. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 618 Miraglia “Diário na Sombra” Ah, é a tristeza10 D’aquelle a quem, na grande sombra antenatal, Deus disse o Segredo11 – O segredo da vacuidade absoluta das cousas, E da illusão do mundo – A tristeza12 irreparavel D’aquelle que sabe que nada serve ou vale, Que o esforço é um absurdo desgaste, Que a vida é um espaço vazio, Por que13 a desillusão vem sempre atravez da illusão [13av] E parece que a Morte é o sentido da Vida… É isto, mas não é só isto, que tu vês no meu rosto E faz com que olhes para mim, de vez em quando, disfarçadamente… Ha, além d’isto, Aquelle pasmo negro, aquelle arrepio sombrio, Que deixa na alma O ter havido um segredo de Deus Dito na grande14 sombra antenatal, quando a vida Não raiava ainda ao longe, E todo o Universo luminoso e complexo Era ainda um destino mentalmente a cumprir. Se isto me não define, nada me define E isto não me define – Pois o segredo15 que Deus16 me disse não era só isto [13v] Houve outra cousa que é hoje estar do lado do irreal,17 O goso que ha nisso, o meu dom de comprehender o incomprehensivel, O meu sentimento d’aquillo que não se pode sentir, O meu garbo interior de imperador sem imperio, O dominio de sonhos architectados na luz. Sim, é isto que põe Uma velhice anterior á minha infancia na minha face, 10 <pena> tristeza 11 <s>/S\egredo 12 <pena> tristeza 13 <Que> Por que 14 <ante> [↑ na grande] 15 <no †> o segredo 16 <me> Deus Na margem superior direita, e separada do texto por um traço, existe uma anotação do autor: Duvida sobre titulo, por acabar 17 Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 619 Miraglia “Diário na Sombra” E no meu olhar uma angustia18 interior á minha alegria.19 Olhas-me disfarçadamente, de vez em quando, E me não comprehendes, E tornas a olhar, disfarçadamente e sempre… Sem Deus não ha nada senão vida E não poderás nunca comprehender… 17-9-1916 18 E [↑ no meu olhar] uma angustia 19 alegria[.] <no meu olhar.> Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 620 Miraglia “Diário na Sombra” Bibliografia PESSOA, Fernando (2014). Obra Completa de Álvaro de Campos. Edição de Jerónimo Pizarro e Antonio Cardiello. Lisboa: Tinta-da-china. _____ (2008). Poesia do Eu. Edição de Richard Zenith. Lisboa: Assírio & Alvim. _____ (2005). Poemas 1915-1920. Edição crítica de João Dionísio. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda. _____ (2002). Álvaro de Campos – Poesia. Edição de Teresa Rita Lopes. Lisboa: Assírio & Alvim. _____ (1993). Álvaro de Campos – Livro de Versos. Edição de Teresa Rita Lopes. Lisboa: Estampa. _____ (1992). Poemas de Álvaro de Campos. Edição de Cleonice Berardinelli. Lisboa: Imprensa NacionalCasa da Moeda. Série menor, vol. I. _____ (1990a). Poemas de Álvaro de Campos. Edição crítica de Cleonice Berardinelli. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda. Série maior, vol. II. ______ (1990b). Vida e Obra do Engenheiro. Edição de Teresa Rita Lopes. Lisboa: Estampa. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 621 Miraglia “Diário na Sombra” GIANLUCA MIRAGLIA é investigador do Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias (CLEPUL) da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. No âmbito dos Estudos Pessoanos publicou vários artigos, entre os quais: “Essay on Detective Literature & The Detective Story: dois ensaios de Fernando Pessoa sobre a ficção policial”, in Pessoa Plural, n.º 13, primavera de 2018; “The Reception of Futurism in Portugal”, in Portuguese Modernisms―Multiple Perspectives in Literature and the Visual Arts, editado por Jerónimo Pizarro e Steffen Dix (Oxford: Legenda, 2010; Routledge, 2017); “Londres, 1914 – Junho: a obra-prima do Futurismo”, in Pessoa Plural, n.º 11, primavera de 2017; “Do ‘Dia Triunfal’ ao Orpheu: ascensão e queda de Alberto Caeiro”, in Pessoa Plural, n.º 18, outono de 2020. Recentemente editou, de Álvaro do Carvalhal, Os Canibais e Outros Contos (Lisboa: Porto Editora, 2021). GIANLUCA MIRAGLIA is an Associate Researcher at the Center for Lusophone and European Literatures and Cultures (CLEPUL), at the Faculty of Arts and Humanities of the University of Lisbon. Within the field of Pessoan studies he has published several articles: “Essay on Detective Literature & The Detective Story: dois ensaios de Fernando Pessoa sobre a ficção policial”, in Pessoa Plural, no. 13, Spring 2018; “The Reception of Futurism in Portugal,” in Portuguese Modernisms: Multiple Perspectives in Literature and the Visual Arts, edited by Jerónimo Pizarro and Steffen Dix (Oxford: Legenda, 2010; Routledge, 2017); “Londres, 1914 – Junho: a obra-prima do Futurismo,” in Pessoa Plural, no. 11, Spring 2017; “Do ‘Dia Triunfal’ ao Orpheu: ascensão e queda de Alberto Caeiro”, in Pessoa Plural, n.º 18, Fall 2020. He has recently edited, by Álvaro do Carvalhal, Os Canibais e Outros Contos (Lisboa: Porto Editora, 2021). Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 622 !"#$%&%"'$("($)#$( !"#$%&'(%)*%+,$'&-. !"#$%$&'()*'#%! !!"#"#!$%&'( )*+*,-. !"##$%&'"(')$*+,"'-"'($#'#."/$#.#/$01'(2%$3#456162%'7#5'#7&87&'(2"#9+* ::.# ;<=/>3#?9@@AB**9CA?+D. "#$%&'!(#) #*!+,++)!-%*!.*!&/0#1234%!(# $%.-%'!*#'#')! 0#1#*!'&(%!$.54&-3(3'!(.3'!5&%6137&3'!(#!8#1/3/(%!9#''%3)! +,+:!351&.!-%*!*3&'!.*3)!*.&0%!-.1&%'3*#/0#!&/0&0.43(3! !"##$%&'"(')$*+,"'-"'($#'#."/$#;!<!3.0%1)!=3/.#4!=%>3 ?@AB,C) D!.*!-%/E#-&(%!013(.0%1!(%!$%#03!$%10.6.F' $313!4G/6.3! -3'0#4E3/3)!3''&*!-%*%!.*!(%'!'#.' #(&0%1#' #*!H'$3/E3;! I&/(3!1#-#/0#*#/0#)!*.&0%!$%.-%!3/0#'!(3!%513!5&%61J7&-3) 0&/E3!43/K3(%!0(.12%'$+(23.%;!L#'03!/%2#43)!M.#!N--&%/3!%'! O40&*%'! (&3'! (#! 9#''%3)! 'P% QJ! #R$4%13(%'! 346./'! (%'! 3'$#0%'!*3&'!'&/6.431#'!(3!5&%613N3!36%13!$.54&-3(3; S! -%*.*! -%/'&(#131T'#! M.#! =3/.#4! =%>3! D)! #*! $1&*#&1%!4.631)!.*!$%#03;!I''&*!'#1J;!H!4%6%!'#!3-1#'-#/03! % '#.!013534E%!-%*% 013(.0%1!#!#'0.(&%'%!(#!9#''%3 ?#!/P% 'U)!$%1M.#!=%>3!0#*!013(.V&(%!%.01%'!#'-1&0%1#'!$%10.6.#'#'!#!&034&3/%'C;!=.&03'! 2#V#') 'U!#*!0#1-#&1% 4.631!'#!1#7#1# =%>3!-%*%!1%*3/-&'03)!6D/#1% #*!M.#!%!3(*&1% $310&-.431*#/0#)!#!M.#!QJ!4E#!234#.!2J1&%' $1D*&%'!?-%*%!%!W.&X%/#') -%*!4256%#'-"' 7+,2(Y %!Z&(3(#!(#!H'0#$%/3) -%*!0%'8.29,",%Y #!%!I/(34.V&3!(3!Z1G0&-3) -%*!4%6%':%;$,) #/01#!%.01%'C; <13) #'03!M.34&(3(#!(#!=%>3!*3/&7#'03T'#!(#!7%1*3!#2&(#/0#!#*!!"##$%& "(')$*+,"'-"'($#'#."/$#[ %!$13V#1!(#!M.#*!-%/03!#!#'-.03!E&'0U1&3')!*#'*%!M.#!/P%! #735.43(3') 73V!(#'03!5&%613N3!.*3!%513!M.#!'#!4F!(#!.*3!3''#/03(3)!'#Q3T'#!%.!/P%! #'$#-&34&'03!(#!9#''%3!?M.3'#!*#!301#2&3!3!(&V#1[ -%/E#K3T'#!%.!/P%!9#''%3C; W.#1! $%1! #'0#! (%*G/&%! (3! /31130&23! $%1! $310#! (%! '#.! 3.0%1)! 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Porque el pensamiento político de Pessoa es con suma frecuencia muy irritante y aquí no vale la argucia del relativismo temporal. Su natural desconfianza en el pueblo y su ultraconfianza en las élites, de las que él se siente parte, nos resultan fastidiosas y difícilmente asumibles. (368) Do mesmo modo, pode um leitor seguir, acompanhando um dos seus cidadãos, cuja vida conhecerá e a importância reconhecerá, os tempos de desassossego em Portugal e no mundo entre 1888 e 1935. Este caminho de análise de Pessoa como homem do seu tempo, e inserido numa história pessoal e familiar com laivos de tragédia, abre a porta à compreensão da dimensão humana do mito. E esta será a grande força da obra: um Pessoa que acaba por ser vítima do seu tempo. Um homem que fracassa em tudo na vida (exceto na imortalidade, como se fosse de derrota em derrota até à vitória final), um homem a quem as circunstâncias não favoreceram. Neste caminho de Pessoa, Moya acentua (como Gaspar Simões mas mais do que as biografias antes publicadas) a infância e a relação com a mãe, destacando os tempos de Durban (o que podíamos já adivinhar em Lluvia oblicua). Recorda as suas origens, determinantes também para as suas convicções políticas, as perdas familiares em tenra idade, que lhe irão marcar a vida, os tempos na África do Sul. Segundo Moya, Durban será determinante para Pessoa: é em Durban que se forma o Pessoa anglófono, british (“El inglés será su lengua y su cultura, e inglesa será su manera de entender el mundo, su manera de vestir, su pensamiento, su forma de relacionarse e incluso sus expectativas”; 66); é em Durban que Pessoa descobre a literatura: Milton, Carlyle, e, sobretudo, Shakespeare, autores que Moya disseca na influência que exerceram no jovem Fernando, destacando o papel central de Shakespeare (“Shakespeare significa también un punto de conexión con su propia experiencia de la pluralidad y con sus intuiciones más íntimas e inexpresables. Una liberación. Cuando Pessoa habla de su obra heteronímica como drama em gente, no tiene únicamente en la cabeza la numerosa cantidad de personajes shakespearianos y la lección que supone para él cada uno de ellos, sino su comunidad”; 95); é em Durban que conhece Mr. Nicholas, porventura o seu professor mais decisivo; finalmente, é em Durban que Pessoa experimenta também a solidão, o ser estrangeiro, o “escapista” (termo que Moya usa amiúde para o caracterizar), as dificuldades de relacionamento com o outro, levantando-se a hipótese de ter sido vítima de intimidação, daquilo a que hoje se chama bullying. Momento a que Moya dá igualmente especial atenção é à breve passagem de Pessoa pela ilha Terceira, em 1902 (cf., nesta revista, hkps://doi.org/10.26300/nwb32k64). No seu jornal manuscrito O Palrador parece eclodir a heteronímia pessoana, Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 624 Évora O homem dos sonhos ou proto heteronímia, no dizer de Pablo Javier Pérez López, citado por Moya. Na Terceira, nascem 48 dos 136 personagens fictícios, fixados por Pizarro e Ferrari, em Eu sou uma Antologia (Tinta-da-china, 2013). Momento de eclosão tão significativo como o dos Açores, só acontecerá em 1914, com o trio de heterónimos mais conhecidos. E, sobre este discutido assunto – o da eclosão do heteronimismo – Moya também se posiciona, ou, pelo menos, entra na discussão. Aliás, é característica desta biografia o autor não se furtar a nenhuma das polémicas em torno de Pessoa que têm ocupado o meio académico. No tocante à eclosão da heteronímia, faz um ponto de situação do estado da arte: Se han escrito miles de páginas para tratar de explicar el fenómeno de la heteronímia en Pessoa. Unos lo han hecho desde el campo de la filología, otros desde la psiquiatría o desde una visión filosófica o sociológica, unos atisban en ese fenómeno la fragmentación del yo, otros la disolución del ser, otros hablan del vacío o lo creen consecuencia de su trato com lo oculto… En fin, hay tantas teorías como teóricos se acercan al problema. Casi todas son aportaciones valiosas y bien traídas, pero todas analizan el fenómeno desde prismas que privilegian un determinado ángulo teórico de visión, siendo así que casi siempre se nos escapa la visión de conjunto. (208) Moya analisa detalhadamente as várias perspetivas, acabando por considerar que a heteronímia resulta de um lento processo (um “rio”) e não de um click. Um processo que passa por diversas fases, sublinhando Moya a estadia nos Açores, o regresso a Durban, a influência de Shakespeare, a passagem pelo teatro. Disse que Moya não se furta a polémicas em torno de Pessoa. Entre essas polémicas, ou, pelo menos, controvérsias, contam-se a questão da sexualidade e do alcoolismo. Em relação ao primeiro assunto, embora abordado, percebe-se uma desvalorização de Moya: ao contrário do que poderá acontecer com outros autores, a questão da sexualidade não será, no seu entender, determinante para avaliar a obra pessoana. De qualquer maneira, analisa a relação com Ofélia e com Madge, assim como a questão da “senhora loira”. Já no que respeita ao alcoolismo de Pessoa, não adianta, segundo Moya, desvalorizá-lo, sendo notório que tal afetou Pessoa no final da sua vida, seguindo a linha de João Gaspar Simões que, na sua Vida e Obra de Fernando Pessoa, publicada pela primeira vez em 1950, abordou este assunto, gerando alguma polémica (cf., nesta revista, em acesso aberto, https://doi.org/10.7301/Z0QJ7FJ9 e https://doi.org/10.26300/mfrw-sm68). Há outros dois aspetos que não queria deixar de mencionar neste Pessoa, el hombre de los sueños. O primeiro prende-se com a análise dos autores que conviveram com ou influenciaram Fernando Pessoa. Depreende-se que os leitores desta obra não serão todos especialistas em literatura, não conhecerão todos os autores de literatura inglesa, ou a obra dos escritores da revista Orpheu. Ora, Moya faz uma análise, e curta biografia, de todos eles. Das influências inglesas e portuguesas, mas também dos contemporâneos de Pessoa (grande importância atribui à relação com Mário de Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 625 Évora O homem dos sonhos Sá-Carneiro) e dos seus estudiosos. Enfim, de todos os que tiveram importância, mais ou menos significativa, para Pessoa. E este é um ponto que enriquece o livro. Outro é a análise da obra de Pessoa: do ortónimo, dos seus heterónimos mais significativos, do Livro do Desassossego (que Moya qualifica como “una epopeya del siglo XX”; 515), da Mensagem (muito curiosa abordagem ao livro, que abre caminho a reinterpretações com base, precisamente, na compreensão de Pessoa como homem do seu tempo). E não resulta fastidiosa a análise de Moya, entrecortada com as deliciosas descrições de Lisboa (também a relação entre Lisboa e o poeta merece na biografia uma reflexão curiosa) e da época em que viveu. No início da biografia, o autor propõe-se desmentir três ideias que se têm usualmente de Pessoa e que considera falsas: a de que a sua singularidade heteronímica se sobrepõe à qualidade (ou seja, o que faz de Pessoa um escritor único é a sua multiplicidade de heterónimos e não, necessariamente, o valor da sua poesia); a da sua “ausência de vida”, quer dizer, do seu apagamento social, do “homem sem biografia” e, finalmente, o seu “caráter solitário e indolente”. Os objetivos de Moya são plenamente conseguidos. Outra ideia feita, diria eu, combatida por Moya é a de que a qualidade dos heterónimos se sobrepõe à qualidade do ortónimo; ou ainda outra, que Moya insiste ao longo do livro: Pessoa foi admirado no seu tempo, pese embora tenha editado pouco. Por último, destacaria nesta biografia como aportação diferente das anteriores que lhe são mais próximas: o abrir de caminhos interpretativos, de perspetivas de Pessoa, da compreensão da sua personalidade. Isto transforma-o num livro primordial. Em contrapartida, será, das três biografias recentes, a que nos revela menos novos dados da vida de Pessoa. No final de El hombre de los sueños fica-nos um Fernando Pessoa profundamente humano, produto do seu tempo. Um homem a quem a vida fintou, que sofreu, embora se visse como membro de uma elite. Um trabalhador que não foi bem recompensado. Um tímido que era um polemista. Ainda assim, este homem que morreu talvez alcoólico e despedaçado, foi genial na sua poesia. Talvez porque ninguém tenha sonhado tanto como Fernando António Nogueira Pessoa. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 626 Évora O homem dos sonhos FERNANDO ÉVORA (Faro, 1965). Escritor português, autor de obras como No País das Porcas-Saras (2010), Amor e Liberdade de Germana Pata-Roxa (2012), O Mel e as Vespas (2015) e Hamsters de Biblioteca (2016) (este em conjunto com o artista plástico Gonçalo Condeixa). Traduziu para português Lluvia oblicua, de Manuel Moya. FERNANDO ÉVORA (Faro, 1965). Portuguese writer, author, among others, of the books: No País das Porcas-Saras (2010), Amor e Liberdade de Germana Pata-Roxa (2012), O Mel e as Vespas (2015) and Hamsters de Biblioteca (2016) (this one with the plastic artist Gonçalo Condeixa). He translated into Portuguese Manuel Moya’s Lluvia oblicua. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 627 !"#$%&$'(#$()*%()$%(#&(%+),-'%.$%(/%(#$%/0(')-$%1/23-45 !"#$%&'()"*+,-%(#%).&-#/)-% !!"#$$#%$&'(%#%)(*#%+,&%-&%,.&%(#%&/0&12#1%3&)(%&$04025(67 "#$%&'#()*+,-$*$#.%-/0%,-1 !"#$%&'()*+%,-%.*/-(,*0% !!""#$"#$%&'(')*#+,-,./0#!"#$%&'()#*#$+&,-.$&/$0)12,&$3#$%2'(&.4$1)23%)#45#6%&7'28*#!29(&&*# (')#:'3*'2*#;(&)2%<<*"#3&('=<(3%)#45#>(&?(&%3#6@<<#;*=3(#(')#!(3&2A2*#$%&&(&20 B%C#D*&EF# B%C#G2&%A32*'=0#HI-#JJ0#KLMNB#OPI-IQQ,,OII.R0 "#$%&'()!*'+,$$)!,&-!.&/%&')!0,$-'#11)23!#-'/')&!)4!!"#$ %&'()#*#$+&,-.$&/$0)12,&$3#$%2'(&.$56#7!8'$#9/')&3:!;<;=> 3?#-3!&#7!1'@?/!)&!A#$&,&-)!*#33),23!?#/#$)&B(!C1D,$)! -#! 0,(E)3:! /?#! 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'3! ! #$%&'()$*("+,"-%&*./0"&*1"2+'(343$/$5"6&7$"8*.9$'/.(:; Lacerda ““The aesthetic tie...” natural that [Campos] should love the stronger better than the weak sensations, and the strong sensations are, at least all selfish and occasionally the sensations of cruelty and lust” (PESSOA, 1966: 342). Writing on the aesthetic principles of sensationism in Fernando Pessoa’s The Mad Fiddler, I have noted (LACERDA, 2023) how Álvaro de Campos writes against the idea that art should be beautiful or emerge as a sensationist response to beautiful things or experiences. Art, in his regard, should emerge from such elements as force, disruption, and integration. Nothingness and emptiness, or, existence emerging from a state of lack, provide the guiding tenets for the engineer’s poetry. And indeed, as Pizarro and Cardiello remind us in their editorial introduction, one of Álvaro de Campos’s first statements after emerging as a heteronym in 1914 is that Fernando Pessoa, “properly speaking, did not exist.” In a countermove, Pessoa states, “Álvaro de Campos is a character in a play; what’s missing is the play.” The two poets enact a mise-en-scène where they poetically contain each other, one demanding the acknowledgment of Nothing as a force for poetic creation, the other ensuring that the only thing needed for the creation of a poetic world is the guiding principle of the heteronymic self. In either case, the mood is set, and the set is staged: Álvaro de Campos, in denying the facilities of certain emotional expressions, is the most wellsuited for the sensationist tendencies of the poet Fernando Pessoa. In “Ode Marítima” (“Maritime Ode”), a “symphony of incompatible, analogous sensations,” Campos follows a somber theme of violence and excess. The poem opens with the poetic subject “Alone, on the deserted quayside,” contemplating the wharf on a summer morning and asserting his anxiety to merge with the universe, which, in this case, is maritime: “All the seas, all the straits, all the bays, all the gulfs, | I felt like clutching them to me so as to feel them properly and then die!” The naval elements of the poem become “the toys [he] played with in [his] childhood dreams” which exist “outside of [his] inner world” (PESSOA, 2023: 45). Campos’s initial exuberance devolves into a state of melancholy, suggesting that his taking in of items that are purely his and his alone is insufficient. What matters is not to hold everything, but to feel everything: Tema de cantos meus, sangue nas veias da minha inteligência, Vosso seja o laço que me une ao exterior pela estética, Fornecei-me metáforas imagens, literatura, Porque em real verdade, a sério, literalmente, Minhas sensações são um barco de quilha pró ar, Minha imaginação uma âncora meio submersa, Minha ânsia um remo partido, E a tessitura dos meus nervos uma rede a secar na praia! The subject of my songs, the blood in the veins of my intelligence. Be the aesthetic tie that binds me to the outside world, Furnish me with metaphors, images, literature, Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 629 Lacerda ““The aesthetic tie...” Because really, truly, literally, My sensations are a ship with its keel in the air, My imagination a half-submerged anchor, My longing a broken oar, And the fabric of my nerves a net left to dry on the beach! (PESSOA, 2023: 45) In this Whitmanian ode to the universe — and as Pessoa describes it, Campos “resembles Whitman most of the three [heteronyms]” — the poet continues searching for real experiences, his soul becoming a metaphoric sea, a source for aesthetic knowledge. The hyperbolic enumerations, the diversity of onomatopoeia emulating the crash of the waves against the boat, sailors’ salutes, and pirate songs all reflect the overwhelming impulse of sensation sounding in Álvaro de Campos’s poetry. And it is worth noting how, with an attention to detail fitting the poignancy with which Álvaro de Campos selects his words, celebrated translators Margaret Jull Costa and Patricio Ferrari excel in their English translations of the Portuguese poet’s work. What most distinguishes the work of the two translators is attention to linguistic accuracy and meter, rendering Campos’s works increasingly accessible to a growing international readership of Fernando Pessoa’s heteronymic oeuvre. As editors Pizarro and Cardiello highlight, this new edition provides full translations of Álvaro de Campos’s “Book of Verses,” which Pessoa at one point called “Intervals,” and “Book of Prose,” which he once deemed “Episodes.” Also included are a selection of undated poems and Campos’ prose writings, which range from philosophical to political. Opening the prose section is Campos’ 1917 “Ultimatum,” an avant-garde manifesto written as a satirical critique of European politics at the turn of the century. And thereby lies a small issue with this collection: for its extensive and thought-out translations of lesser-known works by the poet, The Complete Works of Álvaro de Campos misses an opportunity in not including explanatory notes for some of the author’s more complex texts—for instance, in explaining the turbulent political contexts that engendered controversial texts such as the afore-mentioned manifesto. While some poems and prose texts are accompanied by a brief explanatory endnote for the occasional odd fact or translational difficulty, for the most part, the collection of poems stands on its own. Perhaps just as well, as the beginner Álvaro de Campos reader is incentivized to research context and form, jumping headfirst into the poet’s orderly yet dissident poetic world. In their introductory biographical note, translators Jull Costa and Ferrari delve into Fernando Pessoa’s profound connection with Lisbon, his childhood home, and the pivotal moments that left a mark on the Portuguese poet, such as the death of his father in 1893, his 1895 move to Durban, South Africa with his mother and stepfather, and his eventual return to Portugal, which he would never again leave, in 1905. Jull Costa and Ferrari briefly note Pessoa’s professional ventures, like his short-lived publication house, Ibis, and his writings at the poetic vanguard, dissemiPessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 630 Lacerda ““The aesthetic tie...” nated in Porto and Lisbon throughout the 1910s, the same period during which his heteronymic selves first came to life. The Complete Works of Álvaro de Campos— alongside the companion volumes The Book of Disquiet (2017) and The Complete Works of Alberto Caeiro (2021), both New Directions—thus provides a comprehensive overview of Álvaro de Campos’s work in a way that encapsulates the essence of Pessoa’s literary journey, providing a nuanced understanding of his diverse contributions and the intricate interplay between his life and art. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 631 Lacerda ““The aesthetic tie...” Bibliography LACERDA, Inês Forjaz de (2023). “‘By links of being past imagining’: Fernando Pessoa’s The Mad Fiddler and Sensationism”. Pessoa Plural—A Journal of Fernando Pessoa Studies, n.º 23, Spring, pp. 1-17. Brown Digital Repository, Brown University Library. https://doi.org/10.26300/837e-6245 PESSOA, Fernando (2023). The Complete Works of Álvaro de Campos. Edited by Jerónimo Pizarro and Antonio Cardiello, translated by Margaret Jull Costa and Patricio Ferrari. New York: New Directions Publishing. _____ (1966). Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho. Lisboa: Ática. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 632 Lacerda ““The aesthetic tie...” INÊS FORJAZ DE LACERDA holds a bachelor’s degree in English and Comparative Literature from Kenyon College (Ohio) and a master’s degree in Comparative Studies from the Faculty of Letters of the University of Lisbon. An educator and translator, she is currently a doctoral student in Luso-Brazilian literature and culture at Yale University (Connecticut), where she investigates multimodal approaches to literature, as well as the construction of individual and collective perspectives of the self through authorship in modern and contemporary literature emerging from the Portuguese expansion in Asia. INÊS FORJAZ DE LACERDA é licenciada em literatura inglesa e estudos comparados por Kenyon College (Ohio) e mestre em estudos comparatistas pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Educadora e tradutora, atualmente é doutoranda em literatura e cultura luso-brasileira na Universidade de Yale (Connecticut), onde investiga abordagens multimodais à literatura, assim como a construção de perspetivas individuais e coletivas do ser através da autoria em literatura moderna e contemporânea proveniente da expansão portuguesa na Ásia. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 633 !" $%&'()#*'$#+,)#-$%%. ($#+,)#%$ $%&'(./ !!"#$%&'"$()$"*+,+-".+)#+# */$ $/"0+ #$%&1+&" !"#$%&'($()*"%+ !!"#$%&"# $%&'(# )*+*,-.# !"#$%$&'( )"**'%+( ,##"%-,&%&.( "*/#,01#%( 2( &"*%*'*,"3'.# /(01(02# 34/536# 71%8%(09. 4&99(:#38;1%&9#9&<%&9"#=(>.#?. @AB#CC.#DE3FG2#A?H@A@*,AA,A+I. "#$!%&'$($)*!+&,,*(!-(!&,.'/01'(!$*!.&,(!)&!$*!&,.'/2/',&3! .*4*!.*$,&.1&$./(3!$*!.&,(!)&!$*!&)/0(',&3!$*!.&,(!)&!$*! '&(-/5(',&! 6! $*! .&,(! )&! $*! $*4/$(',&7! 89:;<! =>* &,0(, (, ?1(0'* 0&,&,!?1&!@/&A*!B/4C$&5!)&,&$D*-D&!&4!!"#$%$&'( )"**'%+(,##"%-,&%&.("*/#,01#%(2(&"*%*'*,"3'< E!)1F-(!$&A(0/D(!)(, ,1(, 0&,&, G *1!('A14&$0* F'/$./F(- &!,12('A14&$0*, G HI! /$)/./(! (! F'*2-&4(0/5(J>*! .'K0/.(! &! $1$.(! 0(L(0/D(4&$0&! )&M/$/0/D(!?1&!(F'&,&$0( (*!-*$A*!)*!&,01)*< N1/0*!(-C4!)(! 0&,& )&!)*10*'(4&$0*!8O$/D< P('.&-*$(3!QR9S;3 ?1&!,&'D&!)&! 2(,&! T! '&&,.'/0(! )&,0& -/D'*! F('(! 14! FU2-/.*! 4(/,! (4F-*3 B/4C$&5!0&4!0'(2(-V*!M&/0*!&!'&.*$V&./)*!,*2'&!+&,,*(!&3! &4! F('0/.1-('3! ,*2'&! *! 4,5#'( &'( 6"*%**'**"3'<! W(42C4! 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Em certos casos, trata-se da comparação entre edições, noutros entre testemunhos, fragmentos, teorias, pontos de vista e todos aqueles elementos que o autor traz à discussão à medida que, paulatinamente, desenvolve o seu argumento. De tudo isto resulta um estudo afinado da escrita, edição e leitura. Uma perspetiva prismática, que nos permite inclusive afirmar que se trata de uma teoria da edição como leitura, mas também da edição como escrita. Por exemplo, para Giménez, “[e]l lector, si no tiene una sensación de ruptura es debido a las ediciones” (108). Por outras palavras, são as edições do LdoD que dão uma certa unidade na leitura àquilo que, em última instância, não o tem nem poderia ter na escrita. Invocando várias classificações genológicas que têm sido feitas do LdoD, Giménez antepõe, também aqui, a ideia de multiplicidade à de unidade: “si aceptamos que el Livro es una novela, también tenemos que aceptar que es un texto suicida, que es un laboratorio de escritura, que es un tratado de las pasiones humanas, que es un ensayo existencialista, etc.” (111). Vale a pena percorrer de seguida os quatro capítulos do livro para melhor observar as teses que estes enunciam, justificam e interligam. No primeiro capítulo, Diego Giménez traça uma breve história das diferentes fases de criação e edição do LdoD. O mote neste capítulo é o da “escrita que não cessa de não se editar” e, com efeito, são conhecidos os planos atribulados da escrita do livro por Pessoa e seus (semi-)heterónimos, como ainda o são mais os trabalhos sucessivos de edição e reedição pelos especialistas pessoanos. Giménez discute a história do LdoD através de todos os elementos que a seu ver constituem o Livro: os primeiros fragmentos conhecidos, os indícios do projeto de livro em trocas de correspondência de Pessoa, aquilo que a arca revelou e as listas dos planos de publicação confirmaram, e, por último mas não menos importante, o que as diversas edições trouxeram à luz uma e outra vez. Partindo deste último aspeto, o segundo capítulo aprofunda a análise da fragmentariedade do LdoD com especial ênfase no modo como os vários editores lidaram com esse aspeto crucial da obra. A partir do mote “uma escrita que não cessa de não se escrever”, o raciocínio de Giménez a respeito do fragmento reporta-se quer à problemática de seleção e ordenação na obra entendida no seu conjunto, quer à seleção e ordenação ao nível de cada fragmento. Nas palavras do autor, entre as várias edições do LdoD “las diferencias se hallan no sólo en lo macro, es decir la obra, sino también en lo micro, a saber, el fragmento” (76). Para entender o que isto implica, Giménez orienta a sua análise de acordo com quatro categorias que, como refere, Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 635 Ministro Um estudo que não cessa toma de empréstimo de Manuel Portela: “una fragmentación material, una fragmentación textual, una fragmentación con respecto a la obra y una fragmentación estética” (83). Como já havia adiantado na introdução, estas categorias de fragmentação correspondem às seguintes tipologias de fragmentos: “el fragmento como una pieza de papel, el fragmento como una pieza de escritura, el fragmento como una pieza de escritura de un todo y el fragmento como género” (53). A partir deste dispositivo conceptual e das análises que permite, Giménez conclui de forma não dicotómica: “si analizamos por separado los modos de fragmentariedad sería difícil sostener que estamos ante una obra fragmentaria. Pero si nos atenemos al conjunto, resulta claro que negar la importancia de la fragmentariedad en la interpretación de la obra es un equívoco” (96). Ainda neste capítulo, de um modo que inicialmente poderia parecer desavisado, Giménez reflete sobre a codificação informática de textos literários de acordo com as práticas no campo das humanidades digitais. É particularmente interessante a este respeito a observação do autor, logo na introdução, quando de algum modo sintetiza as várias facetas dessa “escrita que não cessa de se escrever” a partir justamente dos mecanismos de codificação informática do LdoD. São estes os termos de Giménez: “Estos mecanismos llevan a pensar en las diferentes fases de composición del texto en que cabe preguntarse si es el mismo el sujeto que escribe, el sujeto que relee, el sujeto que corrige y el sujeto que publica” (31). Nesta mesma linha, há uma segunda observação que reforça a hipótese apresentada pelo autor de que a codificação e edição digital colocam em evidência algo sobre a escrita, a edição e a leitura do Livro. Lemos no final do segundo capítulo: “La edición digital aúna los rostros existentes y facilita las condiciones para que los potenciales rostros acontezcan, ofreciendo una experiencia material de la pluralidad del texto sin cierre y, al mismo tiempo, facilitando la experiencia del Livro como potencialidad” (102). De forma a pensar sobre essa “escrita que não cessa de não se realizar”, o terceiro capítulo recorre inicialmente a Octavio Paz, “que resumió la obra de Pessoa como el tránsito de la irrealidad de su vida a la realidad de sus escritos” (104-105). Sob este ponto de vista, sempre que Giménez se debruça sobre as edições, os testemunhos, os fragmentos, sempre que os compara, relaciona e interpreta, é para os “escritos” que olha – uma escrita que é sempre leitura e reescrita do escrito. Segundo esta mesma ordem de ideias, como assinala, também “[l]a relación entre pensamiento y poesía en Fernando Pessoa pasa por la escrita” (107). Na perspetiva do autor, “el Livro do Desassossego no expone un sistema filosófico, pero que sí puede ser considerado como la expresión estética de una serie de fundamentos filosóficos” (116). Em alguns desses fundamentos Giménez encontra um paralelismo com as teorias idealistas e subjetivistas de George Berkeley sobre a percepção e a representação do mundo. Para Berkeley como para Pessoa, o sensacionismo é absolutamente central na medida em que “la realidad es equiparable a las sensaciones” (122). Distingue-os, no entanto, o facto de Berkeley solucionar o Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 636 Ministro Um estudo que não cessa problema da ordem das sensações, da hierarquia da experiência e do conhecimento da realidade através da figura de Deus como garante de união e coerência do “eu” e do “mundo”, enquanto Pessoa não o pode fazer (130-135). Como sublinha Giménez, o lugar de Pessoa é do lado de uma filosofia da suspeita perante o fim dos grandes relatos e a impossibilidade de completude. Ainda mais interessante, para Giménez, este é um fracasso sem o ser. Segundo o autor, Pessoa resolve a ausência de Deus e o descentramento do sujeito com a escrita: operação estética sobre a realidade por via da intelectualização das sensações, como apontará mais adiante nas conclusões (180). Estas sensações, contudo, relembra aí, “no cesan de no realizarse, por tanto, no llegan al absoluto” (180). A fechar o livro, e embora este inclua efetivamente uma excelente secção de conclusões (173-185), podemos ver o quarto capítulo como uma espécie de ponto de chegada da reflexão mantida antes, neste caso frente à possibilidade de “uma escrita que não cessa de não se nomear”. Atestam este movimento construtivo do raciocínio as várias remissões a pontos anteriores da reflexão, que o autor vai relembrando e ligando na sustentação de um argumento de ordem progressiva. Quero, não obstante a proliferação destes exemplos no livro, centrar-me apenas num, não só porque é ilustrativo mas também porque é crucial no argumento geral. Ainda no primeiro capítulo, mesmo no seu início, Giménez propõe que “[l]a identidad no parece ser un punto de partida sino un resultado del acto de escribir” (44). Já no quarto capítulo vai declarar que “[l]as identidades no son un punto de partida, sino la manifestación del mismo proceso de construcción que es el que soporta la arquitectura de los nombres” (141). O que isto mostra a partir dos casos de Vicente Guedes e Bernardo Soares é que “Pessoa no parte de una identidad literaria definida, sino que dicha identidad es el resultado del acto de producción” (146). Portanto, “[e]l intervalo que hay entre él y él, es un intervalo de emergencia o de la toma de consciencia que da a cada estilo una identidad diferenciada y en la que los procesos de lectura y reescritura tienen un lugar predominante” (143). E, então, a identidade “es la escritura la que termina por nominar” (148). A identidade é a escrita. A escrita é a leitura. A edição é a escrita e a leitura. Num cômputo geral, um aspeto menos positivo do livro, de foro editorial, prende-se com o facto de as ilustrações nem sempre serem bem conseguidas. Alguns testemunhos não têm qualidade de leitura. Também os gráficos das páginas 113-114 não cumprem o seu efeito visto que é impossível distinguir as cores que compõem as diferentes frações. Se é de lamentar que assim seja, a verdade é que há uma redundância que acaba por não prejudicar o argumento mesmo nestes momentos: o importante da informação desses testemunhos e gráficos é também descrito (quando não transcrito), analisado e interpretado pelo autor no texto. Para terminar, gostaria ainda de assinalar um outro contributo do livro, até porque o atravessa e torna operacionais as suas teses. Giménez parte da ideia de que aos editores do LdoD lhes é pedido (exigido) que se transformem em coautores do Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 637 Ministro Um estudo que não cessa livro ou mesmo heterónimos (Pizarro dixit) para depois propor, arriscando, um movimento inverso: também Fernando Pessoa, mesmo sem terminar o Livro, atuou no papel de editor, atendendo ao facto de fazerem parte do processo de escritaedição os atos de selecionar, ordenar, corrigir, etc. Como refere Giménez a determinado momento: “Un primer proceso en que la subjetividad del escritor queda fijada en forma de cicatriz que señala cómo el proceso de escritura es un proceso de selección” (77). Tudo se mistura, confunde, complexifica entre escrita e leitura e isso acontece através da edição. Claro que a afetação entre papéis de autor e editor só se torna mais visível porque, neste caso, Pessoa não acabou a sua seleção e são os editores quem tem de o fazer à medida das suas possibilidades, interpretando algumas cicatrizes, suturando outras que permaneceram abertas. Não há outra solução, nem vale a pena apelar aos deuses para que, oxalá, fosse de outro modo: “De la misma manera que afirmamos que de vivir Pessoa este hubiese terminado muchos de esos proyectos, podemos afirmar con la misma solvencia y tranquilidad que de haber vivido más hubiese multiplicado los proyectos por terminar” (82).1 Esta recensão foi escrita no âmbito da investigação desenvolvida no Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa, Unidade I&D financiada por fundos nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia (https://doi.org/10.54499/UIDB/00500/2020). 1 Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 638 Ministro Um estudo que não cessa BRUNO MINISTRO é investigador no Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa (Univ. do Porto). É doutorado em Materialidades da Literatura (Univ. de Coimbra). A sua investigação tem sido dedicada às múltiplas intersecções entre os estudos literários, a teoria dos meios e os estudos culturais, com ênfase na intermedialidade e nos estudos comparados dos média. Nestes contextos, tem trabalhado sobretudo com objetos híbridos da poesia experimental, copy art e literatura eletrónica. O principal objetivo da sua investigação tem sido gerar um entendimento abrangente e interdisciplinar do modo como as formas literárias se ligam a aspetos materiais e tecnológicas dos meios em que se inscrevem. BRUNO MINISTRO is a researcher at the Institute for Comparative Literature (University of Porto). He holds a Ph.D. in Materialities of Literature (University of Coimbra). His research has been dedicated to the multiple intersections between literary studies, media theory, and cultural studies, with an emphasis on intermediality and comparative media studies. In these contexts, he has primarily worked with hybrid objects of experimental poetry, copy art, and electronic literature. The main objective of his research has been to develop a comprehensive and interdisciplinary understanding of how literary forms engage with the material and technological aspects of the media in which they are inscribed. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 639 !"#!"#$ &'()#& !"#$!"#$%&'()#&% !"#$%&'()*+%',%'-%.)/ !!"#$ "#!%&#$%&'()*&'$+,-,./0$!"#$%$&'()"**'%+(, -"#(."#/%00$1&*2'34$56789(*3$:3;&'(3<=>3*3$?3$ "'9?3#$@A@770 +>'<9BC'$DE9**'3(3F/$G5HI:4$JKL=JK,=,K=.A--=.M0 "#$! %&'()$! *+&! (,-! ./&01)2)3! 4! $5)! &.1)! 6! )! $5)! ./&01)2)3! 7'$$&)8! 95'! :5;/:&5! $'-%1'! :)! 1')</:):'! :'$('!-5*:&8!)%1&;)1/)!$'-!;)=/<)1!95'!$'!>&$$'!:/1'? ()-'*('! )&$! $'5$! %&'-)$8! '$95'='*:&! &$! /*=/:'*('$ '! )=/:'*('$!:)!$5)!'@/$(,*=/)!('11'$(1'A3 B'-.1&!:'!-'? -C1/)!&!/*D=/&!:&!'*$)/&!!"#$%&'()$&*+'"+$",*"-$%.'8!:'! #=(E;/&! 7)F8! =&*$/:'1):&! 5-! :&$! 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Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, Almada Negreiros e António Ferro: Crise e Superação do Sujeito (2003) – obra que resulta da sua tese de doutoramento, igualmente orientada por Carlos Reis –, lembro outras, como, por exemplo: Introdução ao Modernismo (1994); Literatura em Discurso(s). Saramago, Pessoa, Cinema e Identidade (2001); Estudos Pessoanos (2004); Sob o Signo de Calíope. Sentidos Modernistas (2018); Il Modernismo Portoghese. Guida alla leNura con antologia selezionata (2021). Entretanto, DVM foi convidado a proferir conferências sobre Pessoa um pouco por todo o mundo, por conceituadas universidades europeias, brasileiras e norte-americanas. E, ao longo deste percurso, foi igualmente publicando em revistas de referência um conjunto extenso de ensaios, que comparecem neste Fernando Pessoa: O Ser Verbal. Em “Uma discursividade polifónica”, é abordada a problemática da heteronímia pessoana, à luz das teses de Mikhail Bakhtine, procurando DVM dimensionar a heteronímia como um espaço polifónico e pluridiscursivo –mostrando até que ponto é admissível dimensionar a heteronímia como um espaço plural. Nesse sentido, reflete sobre o vasto campo das Teorias do Sujeito e da Linguagem, de Bakhtine: analisando e articulando os termos alteridade, dialogismo e polifonia / pluridiscursividade; avaliando as consequências do contexto histórico-cultural e literário que envolve Pessoa no discurso deste; enquadrando os heterónimos numa discursividade de teor alteronímico, dialógico e polifónico, procurando considerar até que ponto os intuitos inerentes à eficácia dos seus discursos visam a autonomia daqueles. Já no ensaio anterior, o autor promove uma leitura dialógica entre dois poetas geniais, no ensaio “Fernando Pessoa e a voz de Shakespeare”. Aí, reflete sobre o sentido de emulação percetível em alguns textos de Pessoa, no que às relações que com Shakespeare diz respeito. Neste ensaio, DVM aborda a relação de pensamento e de admiração que Pessoa manteve, ao longo de toda a sua vida, com Shakespeare, bem como a relação dialógica possível de deduzir nos procedimentos de criação heteronímica pessoana e na criação de personagens shakespeareanas. Por essa perspetiva, concentra-se em diversas questões: no problema shakespeareano; na problemática da alteridade; na conceção pessoana de poeta dramático, dos “graus da poesia lírica” e da dinâmica dialógica inerente à heteronímia de Fernando Pessoa; no problema da figuração psicológica inerente a Pessoa e a Shakespeare; na “ansiedade da influência”. No segundo ensaio, “O instinto modernista”, desenvolve considerações sobre a crise de valores que marcou os finais do século XIX e os princípios do século XX, relembrando, por um lado, que essa crise se traduziu na necessidade de se ter em consideração um quadro geral onde prevalece o valor de desterritorialização do Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 641 Leão Um opus magnum discurso monológico, validado pelas noções de subversão, pluridiscursividade e de decadência e, por outro lado, que a leitura dessa crise deve estar de acordo com a precisão histórico-literária e teórico-metodológica, assim se apreender melhor o gesto vanguardista. Visão muito interessante é igualmente a que DVM oferece nos ensaios seguintes. Em “Figurações e propósitos do processo autorreflexivo”, reflete sobre o processo de produção poética de Pessoa, com incidência na sua consciência poética, sublinhando o autor alguns dos pressupostos teóricos de Pessoa acerca do ato de produção literária – pressupostos esses relacionados com um leque de noções, como, entre várias outras, alteridade, desdobramento, verdade, mentira, fingimento, exotopia, autoconsciência e interioridade reflexiva. Já em “A Arte e a nostalgia do encantamento”, interpela a conceção de arte como forma de conhecimento, acentuando a vivência da totalidade artística comprometida com o continuum entre o temporal e o eterno – ideia compaginável com a tristeza essencial configurada no ato de produção artística (Pessoa), com o paradoxo envolvido por esse ato no jogo permanente de perde-ganha (Bourdieu), com a noção de negatividade subjacente à produção do objeto artístico (Adorno), com a responsabilidade implicada pela sua produção e pela sua receção (Steiner) e com a duplicidade histórica entre o desejo de encantamento e o de estranhamento encerrados na sua finalidade. Nesse sentido, DVM insiste na conceção que Pessoa tem da “Arte suprema” (que ele considera ser a Literatura), encarada como processo de personalização e de despersonalização. E, orientado o autor por esta ideia, desenvolve neste ensaio uma reflexão sobre o trabalho do artista e os propósitos da arte, para terminar com uma leitura sobre as consequências (como, por exemplo, a dissolução do encantamento do pensamento mágico adorniano) a que conduzirá a racionalização subjacente ao positivismo lógico da Ciência. Os quatro ensaios seguintes são fundamentalmente dedicados aos três heterónimos pessoanos. Em “Alberto Caeiro e as lições de Fernando Pessoa” e em “Alberto Caeiro e a terna perversidade poética”, o autor apresenta algumas reflexões que assentam nas lições que Pessoa, pela voz do mestre Alberto Caeiro, nos ofereceu. No primeiro, aborda a relação entre final / início de século e o perfil do professor de Português e de Literatura, matizando esta problemática com algumas reflexões que assentam fundamentalmente num ponto nuclear: as lições que podemos retirar do poema VIII d’O Guardador de Rebanhos. Assim, lembra DVM o modo como Caeiro acabou por edificar uma filosofia da imaginação, que permitiria aos seus leitores nunca perder de vista a funcionalidade do discurso literário. E, quando o que está em causa é um processo de ensino / aprendizagem, esse processo não se pode dissociar das funções do professor de português e de literatura, de entre as quais se ressalta a de consciencializar, a de corrigir e aperfeiçoar (desenvolvendo e estimulando a imaginação do aluno), a de prolongar o encontro do aluno com as estabilidades que a língua e a literatura portuguesas oferecem. No segundo, DVM apresenta a poética, paradoxal, de Caeiro, no que diz essencialmente respeito ao seu objetivismo sensacionista, à sua Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 642 Leão Um opus magnum desmistificação da Natureza naturante, à sua antifilosofia e antimetafísica, bem como à lição última que, também com Caeiro e Pessoa, devemos aprender: a perceção homeostática, vital, do humano e do não humano. No ensaio “Revisitando a regra clássica de Ricardo Reis”, DVM sistematiza a poética deste heterónimo, desenvolvendo, de forma muito estruturada, linhas axiais e programáticas que definem o seu pensamento e a sua produção poética, de forma a perceber-se a dimensão pedagógica neles presente. Já no último destes quatro ensaios, “Álvaro de Campos, Pessoa, Almada e Sá-Carneiro: as frágeis resistências do eu total”, lembra o contexto histórico europeu dos inícios do século XX, profundamente caracterizado pelo triunfalismo excessivo e por um intenso desassossego – sensação diversamente representada por Pessoa, Almada e Sá-Carneiro. Paralelamente, o discurso da subjetividade, o discurso da pluralidade e o vaticínio pessoano da ‘criação científica do Super-Homem’ tornam-se, a este nível, questões incontornáveis, encontrando-se as fórmulas paradigmáticas daqueles três modernistas na representação quer de uma determinada totalidade, quer da impossibilidade dessa mesma fruição. À Mensagem e ao Livro do Desassossego dedica igualmente DVM a sua atenção em dois ensaios: “A Mensagem e o sentido do tangível” e “O Livro do Desassossego e a essência literária da escrita”. Encara o texto ortónimo como domínio textual onde variavelmente se manifestam múltiplas virtualidades de informação estética, tendo essencialmente em conta o seu perfil de texto mítico-épico dos tempos modernos, bem como, entre outras, algumas linhas temáticas centrais relacionadas com a conceção quinto-imperialista e sebastianista. Quanto ao Livro do Desassossego, reflete DVM sobre problemáticas importantes, como, por exemplo: a problemática da referencialidade; o sentido de liberdade que se encontra na esfera do literário; o modo como o Soares vai fixando a (re)constituição de um eu na sua “autobiografia sem factos”; a desconstrução do autobiográfico e a compleição diarística que acaba por determinar em parte o processo de representação do Livro; a busca identitária por parte de Soares, que procura reconstruir-se através do vigor estético-literário com que vai divagando constantemente sobre núcleos temáticos rubricados pela angústia, pelo ceticismo. O equacionamento da temática amorosa e da discursividade alteronímica feminina comparece noutros três ensaios. Em “Pessoa e Eros”, DVM aborda a figuração do erótico em Fernando Pessoa, enquanto espaço pluri-isotópico do interdito; em “Da essência amorosa à demanda da totalidade”, desenvolve a tese segundo a qual podemos encarar o fenómeno amoroso como um fenómeno cuja vivência é marcada por um registo de essencialidade, de fragmentação do sujeito e de fingimento, permitindo-nos por aí considerar as estratégias pessoanas para resgate da perfeição e da unidade do sujeito. Em “Alteridade e Discurso Feminino”, escrito em 1993, desenvolve pertinente reflexão sobre um texto de Pessoa assinado pelo pseudónimo feminino Maria José, operacionalizando-se a leitura desse texto no âmbito hermenêutico dos Estudos Femininos. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 643 Leão Um opus magnum O pensamento de Pessoa sobre a língua portuguesa, as línguas universais, o Quinto Império e o imperialismo cultural não são tão-pouco esquecidas. Em “Diálogo com a lusofonia”, DVM segue o pensamento de Pessoa e trabalha sobre matrizes operatórias configuradas por termos e conceitos como língua, discurso identitário, unidade e diversidade, consolidando a noção que fundamenta o princípio de existência de uma ampla Comunidade linguística lusófona traçada pelo diapasão da unidade. No último texto, “Fernando Pessoa e a mitificação do génio”, o autor prova, mais uma vez, cuidadosa e calculada sistematização, na disposição sequencial dos seus ensaios; nele estuda as reflexões de Pessoa sobre as particularidades essenciais da anima portuguesa, acabando por emprestar ao poeta dos heterónimos a possibilidade de nele comparecer a consciência da sua própria genialidade. Por esse prisma, DVM empresta a Pessoa uma consciencialização da vitalidade, da memória e da identidade coletiva dessa anima, lembrando o autor que o poeta dos heterónimos acaba por registar, em diversos passos da sua produção, a consciência de clara excecionalidade da sua própria obra, pelo contributo que ela traz para a Arte Superior – cujo propósito, conforme Pessoa repetidamente diz, é “o aperfeiçoamento subjectivo da vida”. Fernando Pessoa: o Ser Verbal, opus magnum do autor, institui-se incontornável e reconhecida referência no âmbito dos estudos pessoanos. E refiro-me a este reconhecimento como forma subtil de hoje se poder considerar Dionísio Vila Maior como um dos mais reputados pessoanos, como, aliás, sublinha Arnaldo Saraiva na nota prefacial aposta – “Um ensaísta Polifónico” –, onde considera: O filho de um crítico musical deixou-nos uma música superior, que o professor de literatura e diretor artístico Dionísio Vila Maior vem polifonicamente analisando e promovendo há quase três décadas. Hoje, podemos com razão considerá-lo um dos mais reputados sucessores de pessoanos ilustres como – para citar só meia dúzia – Adolfo Casais Monteiro, João Gaspar Simões, Jorge de Sena, Maria Aliete Galhoz, António Quadros e Eduardo Lourenço. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 644 Leão Um opus magnum ISABEL PONCE DE LEÃO é Professora Catedrática da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Fernando Pessoa, Porto, Portugal, membro do Centro de Estudos Globais (CEG – U. Aberta), do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade (CECS – U. Minho), do Círculo de Estudos do Centralismo (CEC) e do INfAST; vogal do Conselho de Administração da Cooperativa Árvore e vice-presidente do Centro de Estudos Regianos. Como docente e investigadora colabora com outras instituições de ensino superior, em Portugal, América Latina, sobretudo Brasil, e vários países europeus. Faz parte do conselho editorial e / ou científico de várias revistas, jornais e outras publicações e integra comissões científicas de colóquios, congressos e outros eventos, que também promove, bem como júris académicos e de prémios literários aos níveis nacional e internacional. A sua atividade estende-se à comunidade civil cooperando com diversas Câmaras Municipais, particularmente com a do Porto, onde é Presidente da Comissão de Toponímia. Áreas de investigação: Jornalismo Cultural, Antropoceno, Ecocrítica, Literatura Moderna e Contemporânea e Interartes. É autora de inúmeras publicações, particularmente nas duas últimas áreas referenciadas. ISABEL PONCE DE LEÃO is a Full Professor at the Faculty of Humanities and Social Sciences of the Fernando Pessoa University in Porto, Portugal. She is a member of the Center for Global Studies (CEG – Open University), the Center for Communication and Society Studies (CECS – University of Minho), the Center for the Study of Centralism (CEC), and INfAST. She serves as a board member of the Árvore Cooperative and is the vice-president of the Center for Regian Studies. As a teacher and researcher, she collaborates with other higher education institutions in Portugal, Latin America, especially Brazil, and various European countries. She is part of the editorial and/or scientific boards of several journals, newspapers, and other publications and participates in scientific commicees for colloquia, conferences, and other events, which she also promotes. She is also involved in academic juries and literary awards at the national and international levels. Her activities extend to the civil community, collaborating with various Municipal Chambers, particularly with the Porto Chamber, where she is the President of the Toponymy Commission. Her research areas include Cultural Journalism, Anthropocene, Ecocriticism, Modern and Contemporary Literature, and Interarts. She is the author of numerous publications, particularly in the last two mentioned areas. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 645 !"#$%&"'()'*'+,&$-*-. +$/*%. !"#$%&'(#)*%)+, -%./*()-0'%1210(3 !"#$%&'$$()&*+,-(. !!"#$%&'"#$%&'(')*#+,#-,##./0//1,#!"#$%&'"()'(*$+,)'(-$""',.',#2345*(6#73'8(9)(9:;3'(,#<=>#??,# @AB-C#D=E9DED9F=G9FDD9EH, !"""#$%&'(%)*$#$*%+,#,%-#%*'#,%',%.$/),0%/-#%1$23*4,% 5'664.,% 1$% +,46'% #,.41'7" 8"""!"#!$ %#&'($ %'$ ("#&'$ )*&'$ #$ +,#-."$ *-$ !"'$ /*-01$ *-$ #$ 2#((*3'$ 0')*,*4%$ 56$ #$ !"*-7$ +'*-7$ %53'09" :8*3,5$05$9'(#((5(('75; "#$%&'( )*+,-)*!$%)!,$$)'$&.)!),/!,'0!)1)!#2!3)/','0#!45!65 7,/$&'%#5!8'!$%&*!9##:;!).)'!$%)!<#*$!/)<#$)!)+#!&*!/)*+=)0 91!%&<!2#/!=*!$#!'#$&+) $%)!+,/)2=>!*$)-*!#2!,' ,/$&*$ ,<&0! $%)!.,*$!2&)>0*!#2!-#)$/1;!,*!3)/','0#!?)**#,!@#=>0!%,.)! *,&05 A'0! 8! <),'! @&$%! )+#;! '#$! #'>1! $%)! )+#! #2! ?)**#,! ,<#'(!%&*!<,'1!%)&/*!9=$!,>*#!$%)!)+#!#2!?#/$=(=)*)!,'0! 2#/)&('!-#)$/1!&'!?)**#,B*!#@'!@#/:5 !"#$%&'"()'(*$+,)'(-$""',.' 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This approach is sometimes a pairing of a poet with Pessoa or one of his heteronymous personae to find his traces in their poetry, like he does with Sophia de Mello, Alexandre O’Neill, Ruy Belo, Ana Hatherly, Mário Cesariny, and M. S. Lourenço. Other times, he goes through a great group of poets in search of Pessoa’s presence among them, like he does with the Surrealists and Neo-Realists. The studies dedicated to Casais Monteiro and Eduardo Lourenço, should be considered separately, because here Martinho deals with the critical reception of Pessoa by these two renowned writers to whom Pessoa’s poetry owes a great deal of its dissemination. The second is more of a close reading model, in which Martinho chooses a topos or a poem and thoroughly studies it until he uncloses what he aims to discover. These essays are very pleasurable readings and reveal not only the great critical insight of Martinho, but also new critical horizons. Towards the end of the book, there is also a single case of a memoir, in which Martinho narrates his own experiences at the first Congress organized to analyse and discuss Pessoa’s writings. One thing, though, is common to all the texts contained in this book: they arise from the notion of an intertext. Reading J. B. Martinho’s essays is like attending a literary salon in which the most interesting conversations between a great number of Portuguese poets of the 20th century, a selected number of foreign guests, and Fernando Pessoa and his heteronymous poets take place. The book is still full of little surprises and curious pieces of information. In Uma Relação Ambivalente: Os Neo-Realistas e Pessoa [An Ambivalent Relation: The NeoRealists and Pessoa], Martinho mentions some Neo-Realist poets might have heard of Pessoa’s “Ode Marítima” for the first time, when recited, unabridged, by Manuela Porto in 1938, who at the time was a well-known diseuse, as the author refers to her. These kinds of details leave the reader travel in time and remember that not only books brought words about in times forgone. The line I selected as an epigraph to this review comes from The Book of Disquiet, as the name of the Livro do Desassossego has been translated. It appears quoted in two different essays of Martinho’s book, who very much like Jorge Luis Borges, comes back to certain motifs. Both essays are on The Book of Disquiet. The first time, on page 179, in “Reflexões sobre a Literatura no Livro do Desassossego de Bernardo Soares” Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 647 Bothe Aspects of a literary legacy [Reflexions on Literature in Bernardo Soares’ The Book of Disquiet]; the second time, on page 221, in “Autoconsciência Literária em Bernardo Soares, com uma Coda sobre o Livro como Livro de Sabedoria [Literary Self-Awareness of Bernardo Soares, with a Coda on the Book as a Wisdom Book]. The quote appears to illustrate the admiration Pessoa felt for Vieira’s prose. This trait of Martinho’s style repeats itself with several other motifs and makes the readers reach moments of pure delight, moving them steadily into his leading thoughts. As to the second essay, “Literary Self-Awareness…”, I may add, it advances a promising future project we are already very much expecting. For those who have never heard of professor Martinho, the book closes with a brief biographical note. But I don’t think reading the note will ever give the reader an idea of the real credentials of the author. Martinho’s essays are a journey through the Portuguese poetry of the second half of the 20th century, and not only. Fernando Pessoa is the intertext, and pretext to set out by the hand of a true connoisseur of the very best places to visit. Reading this book has made me remember my days as a student of Martinho at the University of Lisbon, where I took my very first steps in search of Pessoa, who I still believe to be one of the best poetical figures of our world’s literature. I highly recommend this book to anybody who is seriously interested in Pessoa Studies. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 648 Bothe Aspects of a literary legacy PAULY ELLEN BOTHE é Doutora em Letras pela Universidad Nacional Autónoma de México; Mestre em Literatura Comparada pela Universidade de Lisboa; e Licenciada em Letras Espanholas pela Universidad de Guanajuato. Fez uma investigação de pós-doutoramento no Centro de Linguística da Universidade de Lisboa (CLUL) de 2010 a 2012 (cf. Fernando Pessoa, Apreciações Literárias. Lisboa: INCM, 2013). Colaborou no Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias (CLEPUL). Trabalhou como professora da Licenciatura em Letras Portuguesas do Colegio de Letras Modernas da Universidad Nacional Autónoma de México (UNAM). Foi professora da área de Formação Humana e da Licenciatura em Lenguas Modernas e Interculturalidade da Universidad La Salle Oaxaca e da Licenciatura em Humanidades do Instituto de Investigaciones en Humanidades da Universidad Autónoma Benito Juárez de Oaxaca. PAULY ELLEN BOTHE holds a Ph.D. in Literature from the National Autonomous University of Mexico; a Master’s degree in Comparative Literature from the University of Lisbon; and a Bachelor’s degree in Spanish Literature from the University of Guanajuato. She conducted post-doctoral research at the Center for Linguistics of the University of Lisbon (CLUL) from 2010 to 2012 (cf. Fernando Pessoa, Apreciações Literárias. Lisbon: INCM, 2013). She collaborated at the Center for Lusophone and European Literatures and Cultures (CLEPUL). She worked as a professor in the Portuguese Literature Bachelor’s program at the Colegio de Letras Modernas of the National Autonomous University of Mexico (UNAM). She was a professor in the area of Human Formation and in the Bachelor’s program in Modern Languages and Interculturality at Universidad La Salle Oaxaca, and in the Bachelor’s program in Humanities at the Institute of Humanities Research at the Benito Juárez Autonomous University of Oaxaca. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 649 !"#$%&'()"*+()"($",$-')'(."/$##.) !"#$%&%'()*#++(&,+)+#-(%')./0#1 !"#"$%&'() !!"#$#"%&'(#$%&'&$()*)*+,$!"#$%&'()"*+()"($",$-')'(."/$00.),$-./0&12$345661$7$819,$):)$;;,$<=">?2$ @:A@A@:*)BCBBD, !"#$"%&"'()*$##)("%+,-$(#,./(,)0 #$&"'($.$+#1$# 2$"&3,)(0" %&"2,3"#$".(3+#*)(&3##$ 345%,&,63&$+.$"$&"7,6$+.$"8%$2$#0 9$.$(:+,&)"2$";$(+3+2)"<$##)30"'3(3"2,-%4=3(")"5%$"3,+23" #$"2$#6)+9$6$"23"#%3")>(3"$"3463+?3(")"($6)+9$6,&$+.)"5%$" ) $#6(,.)("+@)".$-$"$&"-,23A"B"$#.3"3")%#323"'($&,##3"2$"! #$%&'()"*+()"($",$-')'(."/$00.)0"5%3(.)"()&3+6$"2)"$#6(,.)( $"C)(+34,#.3"D)@)"EF%"$"G,4-3 HDEGI0"'%>4,632)")(,=,+34&$+.$ $&" JKJK" #)>" 3" *)(&3" 2$" *)49$.,&0" $&" 2)L$" 63'M.%4)#0" +) 1+2-+."($"3.456+)0N O,63(2)"P$4)"2$"Q)(3,#"6)+-)63(3"C/"7,6$+.$"8%$2$#" '3(3")"#$%"()&3+6$"7"8&)-4."!9&%)(. 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Georg Rudolf Lind, crítico alemão que estudou a obra pessoana, escreveu, em 1962, no Diário de Notícias: “Às futuras gerações de filólogos, à procura das fontes que inspiraram o maior poeta português desde Camões, recomendamos uma pesquisa na biblioteca de Fernando Pessoa”. O apelo foi levado a sério, embora tenha demorado anos a concretizar-se. Em 1988, a Câmara Municipal de Lisboa comprava à família cerca de 1200 livros da sua biblioteca, e entre 2008 e 2009 era realizada a sua digitalização integral por uma equipa coordenada por Jerónimo Pizarro. A Biblioteca Particular de Fernando Pessoa encontra-se desde 2010 disponível no site da Casa Fernando Pessoa, e são inúmeros os livros relacionados com temas místicos e ocultos de autores como Mabel Collins, A. E. Waite ou Helena Blavatsky, de quem Pessoa chegou a traduzir algumas obras. O poeta foi-se transformando através das leituras que fez, e foi exatamente por aí que JCS iniciou a transformação do seu protagonista. Ao decidir tirar um ano sabático para aceitar um trabalho de “invenção literária”, muito bem pago, na aldeia do Freixo, um lugar “no fim do mundo” (21), o protagonista do romance de JCS desconhecia ao que ia. Contratado por um estranho homem de nome Sena, que lhe pedia que transcrevesse excertos de livros, enquanto lhe dava outros a ler, foi-se moldando pouco a pouco àquilo que se pretendia dele, sem que ele o soubesse: tornar-se Vicente Guedes. Os primeiros autores que Sena lhe dá a ler são escritores que se cruzaram com Aleister Crowley, a Besta, ocultista inglês “da linha cinzenta ou negra, em que o egoísmo predomina sobre o altruísmo e os fins justificam os meios” (30). Crowley ficara impressionado com os conhecimentos do poeta português, que lhe escrevera uma carta a corrigir um horóscopo publicado numa revista inglesa, e resolveu visitá-lo em Lisboa, em setembro de 1930, com a pretensão de o envolver na sua Ordem, mas também nos seus negócios. Ao longo da primeira metade do romance, há referências a episódios ocorridos nesses dias – as discussões entre Crowley e Hanni Larissa Jaeger, que o acompanhava; o falso suicídio da Besta na Boca do Inferno e a forma como Pessoa participou nessa blague, tendo em mente escrever um livro policial que nunca viu a luz do dia –, talvez como prenúncio do que viria a acontecer ao protagonista: entrar numa encruzilhada mística que envolvia uma alegada morte e uma intrincada ressurreição, com vista à promoção de uma obra. Mas vários outros prenúncios estão presentes no romance, revestidos de uma carga simbólica que só se vai revelando numa leitura mais atenta. É o caso do palácio onde Sena habita, no Freixo, que poderia ter pertencido a “ordens medievais militares dos cavaleiros [...] Templários” (24). Já quando o protagonista é incumbido de ir a um leilão arrematar a arca original de Fernando Pessoa, acaba por levá-la até ao Freixo numa caravana de ciganos. Sabemos que esse leilão existiu, em 2008, e que a arca de madeira se encontra nas mãos de um particular residente no norte do país, Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 651 Rodi A segunda vida que bem podia ser Sena, o excêntrico habitante da aldeia do Freixo, “o ponto habitado mais a norte” (21). E poderá esta arca remeter-nos para a Arca da Aliança, a relíquia mais sagrada dos israelitas, que continha as tábuas dos 10 Mandamentos e simbolizava a aliança deste povo (nómada, como os ciganos) com Deus? O paralelismo termina, felizmente, no paradeiro das arcas físicas, já que o conteúdo da segunda, apesar de muito procurado pelos arqueólogos, continua em parte incerta, enquanto o da primeira se encontra na Biblioteca Nacional, com estatuto de tesouro. O próprio nome Sena remete-nos para Jorge de Sena, um dos primeiros escritores e investigadores a procurarem dar visibilidade à obra de Pessoa, tendo ainda sido Jorge de Sena um dos primeiros a trabalhar na organização do Livro do Desassossego. E, ao longo do romance, outros nomes saltam à vista: Adolfo, com quem o protagonista se cruza (141), e que nos remete para Adolfo Casais Monteiro; e Ferreira Gomes, alegado descendente do jornalista místico, amigo de Pessoa, que no romance dá a conhecer ao protagonista os arquivos do Diário de Notícias, e depois o entrevista já como Vicente Guedes, contribuindo assim para o seu reconhecimento público. JCS conduz-nos assim por um labiríntico “jogo de espelhos” – como sugere o escritor e investigador João Lopes, na frase partilhada na contracapa –, que é tanto mais interessante, quanto melhor se conhecer a vida e obra de Pessoa. O que pode parecer, à partida, uma limitação, faz, na verdade, jus à temática central do romance, porque o conhecimento hermético não é para todos, exige um certo grau de Iniciação. Confirmada a presença de uma malha simbólica no romance (a face visível da Alquimia), resta saber se a operação alquímica engendrada por JCS foi bemsucedida. Centremo-nos nas três etapas de transformação definidas pelos alquimistas: Nigredo, Albedo e Rubedo. O Nigredo consiste na morte espiritual, para dar lugar ao novo. O Homem preso à matéria (elemento TERRA) seria como o chumbo, um metal inferior que simboliza um estado de ignorância e pouca consciência em relação à natureza divina. No despertar para a alegada verdade, que implica a morte do ego, renasce o Homem novo, o Albedo (elemento ÁGUA). No romance, o protagonista ruma à aldeia do Freixo (TERRA) num estado de grande inconsciência em relação ao que está para vir, bem como às suas capacidades para o conseguir. Muitas sessões de leitura e alguns caricatos episódios depois, o protagonista mergulha na Boca do Inferno (ÁGUA), renascendo das ondas como Vicente Guedes. Foi também nesse lugar que a Besta simulou o suicídio, assumindo-se como um profundo conhecedor dos símbolos, mas também como uma fraude na sua execução prática, pretendendo apenas conquistar a fama e libertar-se de dívidas pendentes. Já o protagonista do romance atirou-se, de facto, para as águas turbulentas do local, que o devolveram a terra sem um arranhão, mas o sentimento de fraude não deixou de estar presente: “Os poucos segundos passados entre o momento em que perdi o pé e aquele em que me afundei na água foram os suficientes para reler a Comédia até ao penúltimo dos seus nove cantos, aquele que Dante intitulou como Fraude” (177). Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 652 Rodi A segunda vida E terá o protagonista, agora como Vicente Guedes, atingido a terceira e última etapa do processo alquímico? Nela nasce uma verdadeira consciência cósmica, alcança-se a Pedra Filosofal. Mas o que se segue ao episódio na Boca do Inferno é uma iluminação questionável, que parece apenas perpetuar a fraude. “Esse merdoso (Vicente Guedes) vai ser um herói e, como os nossos grandes heróis, vai abandonar o país e reencontrar-se. Depois, voltará e será reconhecido. É assim que gostam, é isso que lhes vou dar” (201). E o protagonista ruma, com uma mulher de nome Beatriz, até à Baía da Traição (o que remete mais uma vez para um dos círculos do Inferno de Dante), embarcando numa viagem transatlântica com sósias de escritores já falecidos, também eles fingindo ser quem não são: Proust, Joyce, Hemingway, Virginia Woolf, Torga. O próprio regresso de Vicente Guedes a Portugal, depois da sua delirante viagem, o sucesso que faz no Martinho da Arcada e a discussão pública em torno da sua candidatura ao Prémio Nobel, alegada consagração máxima para um escritor, só funcionam no plano da Fraude e da Traição, já que a verdadeira transformação alquímica tem pouco que ver com mutação exterior ou reconhecimento dos pares. Mas JCS também não parece preocupado. A sua pretensão, para além de muito divertida, é também legítima, à sua maneira: quem, minimamente conhecedor da obra de Fernando Pessoa, não desejaria que ele tivesse tido esse reconhecimento no tempo devido? E se o fizesse em nome de Vicente Guedes, que nunca teve direito à vida, e foi até preterido como autor do Livro do Desassossego, melhor seria. JCS, mesmo defraudando o divino, acaba por repor a justiça terrestre, como um Deus farto de planos cósmicos impenetráveis, que de repente resolve intervir diretamente na história do mundo. E não é esse (ou pode ser) o papel de um escritor? JCS não deu muito crédito à verdadeira transformação alquímica, mas Pessoa era mais crente. E, não tendo tido uma vida que nos permita falar propriamente num percurso de iluminação – perdido que andava nos apelos da vida mundana e nas contradições da mente, desgastado também pelos vícios do corpo –, deixou-nos pelo menos uma obra que contém a capacidade de transformar quem a lê. A leitura tem esse poder, como a História bem o comprova, através de episódios variados de censura ou de imposição, que nos devem fazer questionar a liberdade do leitor. Fernando Pessoa nada nos impôs ou censurou, mas parece ter atuado (se não sempre, quando conseguiu essa lucidez) com um objetivo claro. Conforme escreveu a Armando Côrtes-Rodrigues, em janeiro de 1915, “pouco a pouco, mas seguramente, no divino cumprimento íntimo de uma evolução cujos fins me são ocultos, tenho vindo erguendo os meus propósitos e as minhas ambições cada vez mais à altura daquelas qualidades que recebi. Ter uma ação sobre a humanidade, contribuir com todo o poder do meu esforço para a civilização vêm-se-me tornando os graves e pesados fins da minha vida” (PESSOA, 2009: 355). Estará o seu plano em marcha? Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 653 Rodi A segunda vida Bibliografia CENTENO, Yvette (2022). O Pensamento Esotérico de Fernando Pessoa. Lajes do Pico: Companhia das Ilhas. LAGE, Rui (2018). O Invisível. Lisboa: Gradiva. MORAIS, Ricardo Belo de (2014). O Quarto Alugado. Lisboa: Verso de Kapa. ROOB, Alexander (1997). Alquimia & Misticismo. Colónia: Taschen. PESSOA, Fernando (2019). O Mistério da Boca do Inferno. Correspondência e novela policial. Edição de Steffen Dix; traduções de Sofia Rodrigues. Lisboa: Tinta-da-china. _____ (2015). Hermetistmo e Iniciação. Organização, prefácio e notas de Manuel J. Gandra. Sintra: Zéfiro. _____ (2009). Sensacionismo e Outros Ismos. Edição crítica de Jerónimo Pizarro. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda. _____ (1998). Cartas entre Fernando Pessoa e os Directores da “presença”. Edição e estudo de Enrico Martines. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda. SARAMAGO, José (2016). O Ano da Morte de Ricardo Reis. Porto: Porto Editora. SILVA, Freddy (2019). Os Grandes Mistérios da Iniciação. Lisboa: Alma dos Livros. Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 654 Rodi A segunda vida SARA RODI é licenciada em Ciências da Comunicação. Publicou os dois primeiros romances no ano de 2000, Frio e Sombra dos Anjos. Dedicou-se à literatura infanto-juvenil, com coleções como “As Gémeas” e “Escola das Artes”, e escreveu dois romances históricos: D. Estefânia – Um Trágico Amor e D. Teresa de Távora – A Amante do Rei. Como argumentista, tem trabalhado em dezenas de produtos televisivos, como “Morangos com Açúcar”, “Crimes Submersos/Sequía” ou “Senhor Rui – Um Homem do Povo” e adaptou a sua coleção “Escola das Artes” para cinema. Durante dez anos, dedicou-se também à elaboração de biografias personalizadas com tiragens limitadas, através da sua empresa “O Livro da Minha Vida”. Experimentou a apresentação em “Tenho um Adolescente. E agora?”, no canal de saúde S+, e foi co-fundadora do movimento “Por Uma Escola Diferente”, participando como oradora e moderadora em encontros dedicados à educação, sustentabilidade e saúde. É membro do Clube das Mulheres Escritoras e escreve com frequência para a imprensa sobre os temas que a movem. É autora do romance O Quanto Amei – Fernando Pessoa e as Mulheres da Sua Vida (2021). SARA RODI holds a degree in Communication Sciences. She published her first two novels in 2000, Frio and Sombra dos Anjos. She dedicated herself to children’s and young adult literature, with collections such as “The Twins” and “School of the Arts,” and wrote two historical novels: D. Estefânia – Um Trágico Amor and D. Teresa de Távora – A Amante do Rei. As a screenwriter, she has worked on dozens of television productions, such as “Morangos com Açúcar”, “Crimes Submersos/Sequía” or “Senhor Rui – Um Homem do Povo”, and adapted her collection “School of the Arts” for cinema. For ten years, she also dedicated herself to the elaboration of personalized biographies with limited editions, through her company “The Book of My Life.” She experimented with hosting “I Have a Teenager. And Now?” on the S+ health channel, and was a co-founder of the “For a Different School” movement, participating as a speaker and moderator in meetings dedicated to education, sustainability, and health. She is a member of the Women’s Writers Club and frequently writes for the press about the topics that move her. She is the author of the novel O Quanto Amei – Fernando Pessoa e as Mulheres da Sua Vida (2021). Pessoa Plural: 25 (P./Spring 2024) 655