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O conto da aia de Margaret Atwood ANA LORYM CAPÍTULO

2019, Estética, política e epistemologia a partir do romance distópico O conto da aia, de Margaret Atwood

https://doi.org/10.46401/ajh.2019.v11.9371

Neste texto realizo um exame de O conto da aia do ponto de vista da literatura distópica escrita por mulheres e narrada do ponto de vista feminino.

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CDD – 306.7 Livro de acordo com a normalização técnica da ABNT Editora e Livraria Appris Ltda. Av. Manoel Ribas, 2265 – Mercês Curitiba/PR – CEP: 80810-002 Tel. (41) 3156 - 4731 www.editoraappris.com.br Printed in Brazil Impresso no Brasil ESTÉTICA, POLÍTICA E EPISTEMOLOGIA A PARTIR DO ROMANCE DISTÓPICO O CONTO DA AIA, DE MARGARET ATWOOD Ana Lorym Soares [...] há a enorme e óbvia diferença de experiências; mas a diferença essencial não é que homens descrevem batalhas e as mulheres o nascimento dos filhos, e sim que cada sexo descreve a si mesmo. Virginia Woolf. Mulheres romancistas, 1918 Introdução Acontecimentos políticos recentes e que se assemelham, em certos pontos, a enredos de distopias, como a eleição do improvável Donald Trump à presidência dos Estados Unidos, aumentaram a ansiedade em torno de possíveis ameaças aos direitos civis das mulheres e direitos humanos como um todo, contribuindo para que livros de literatura distópica tivessem suas vendas disparadas. O livro 1984, de George Orwell e O conto da aia, de Margaret Atwood estão na lista dos best-sellers da Amazon, exibindo a longevidade dessas narrativas.43 Uma infinidade de obras do gênero distópico ambientadas em um futuro próximo, de qualidade às vezes duvidosa, tem sido publicada recentemente por toda parte (LEPORE, 2017). Esse interesse por obras que apresentam projeções futuristas lastreadas em um pessimismo radical fez a historiadora Jill Lepore considerar o momento em que vivemos como “era de ouro para a ficção distópica” (LEPORE, 2017). No Brasil, O conto da aia também aparece entre os dez livros estrangeiros mais vendidos pelo site Estante Virtual no ano de 2019, junto com A revolução dos bichos, de George Orwell; Fahrenheit 451, de Ray Bradbury; e Admirável mundo novo, de Aldous Huxley, todos identificados como distópicos. Mas The Handmaid’s tale (O conto da aia) também é o nome de uma série de TV e Streaming baseada na obra de Margaret Atwood, que vem arrebatando públicos do mundo inteiro e ganhando vários prêmios do setor, como Emmy de melhor série dramática em 2017. A série já está com a terceira temporada pronta para a estreia e a partir do sucesso da montagem, a escritora canadense decidiu escrever uma continuação do seu romance de 1985. Em breve, portanto, teremos mais um romance distópico de Atwood à disposição dos leitores. 43 121 MARTHA S. SANTOS | MARCOS ANTONIO DE MENEZES | ROBSON PEREIRA DA SILVA (ORG.) também aparecem no conjunto dos mais vendidos, os livros Sejamos todos feministas e Amaricanah da escritora feminista Chimamanda Ngozi Adchie (Estante Virtual, 2019). Convergido com o cenário de interesse tanto por literatura distópica quanto por livros de temáticas feministas, neste texto lançamos um olhar sobre o romance de Margaret Atwood (1939), O conto da aia (The handmaid’s tale), publicado originalmente em 1985, para apresentá-lo enquanto contributo estético, político e epistemológico ao gênero literário distópico. Mesmo não tendo sido a primeira mulher a escrever uma obra desse gênero, a sua foi, entre as obras de autoria feminina, a que alcançou maior destaque entre leitores e críticos, que reconhecem nela um importante exemplar da ficção distópica. Para esta reflexão, O conto da aia se faz relevante também por ter sido escrito por uma mulher, narrado do ponto de vista feminino e por imaginar um mundo distópico levando em consideração praticamente todas as tópicas clássicas desse gênero, ao mesmo tempo em que traz para o centro da narrativa os efeitos de uma sociedade autoritária e patriarcal na vida das mulheres. Sem apequenar questões existenciais, políticas e sociais que afetam a todas as pessoas, o teor principal do enredo é a dominação sofrida pelas mulheres diante de um patriarcado sem disfarces que, além de eliminar todos os direitos civis femininos, tem na exploração sexual compulsória de parte delas (as aias) o ápice desse controle. Em vista disso, o argumento central deste texto é que ao escrever essa obra, Margaret Atwood traz um aporte considerável à tese de que a ficção feminina, escrita por mulheres, sob o ponto de vista feminino, não reduz a literatura, não empobrece a imaginação, setorizando-a. Pelo contrário, tem o potencial de enriquecê-la, representando um contributo ao mesmo tempo estético (por inserir personagens femininas relevantes e por narrar do ponto de vista de mulheres), político (ao expor a crueldade da espoliação dos direitos femininos e por ratificar que o corpo, sobretudo o das mulheres, é objeto de disputa e de poder) e epistemológico (visto que permite lançar luzes sobre o debate acerca da dicotomia entre feminino e masculino associados respectivamente à mente/corpo, espírito/matéria, razão/afeto nos quais os primeiros polos têm quase sempre privilégios e são concebidos hierarquicamente superiores aos segundos, na cultura ocidental. 122 HISTÓRIA & OUTRAS ERÓTICAS O Conto da Aia como literatura distópica Em O conto da aia Margaret Atwood nos apresenta um enredo sustentado no relato de uma mulher, personagem central na trama, que narra sob seu ângulo, como reconstrução do passado, o pesadelo vivido sob o regime da República de Gilead. Trata-se de uma sociedade totalitária e conservadora instaurada nos Estados Unidos na passagem dos anos 1980 para 1990, quando um grupo indefinido de pessoas assassinam o presidente da República, fecham o Congresso Americano e assumem o controle do país, construindo uma nova e rígida hierarquia social. A ideologia que orienta esse tour de force retrógrado é basicamente uma interpretação literal de trechos da Bíblia, por um lado, e um puritanismo estrito, por outro, que enxerga, inclusive, em algumas correntes protestantes menos obscurantistas inimigas a serem eliminadas: quakers, batistas, presbiterianos. O problema maior a ser resolvido para o grupo que assume o poder em Gilead é o declínio da natalidade que punha a continuidade dos grupos humanos caucasianos em risco de extinção. Mutações de vírus da sífilis e da AIDS se disseminaram sem controle eliminando pessoas jovens e sexualmente ativas. O uso indiscriminado de inseticidas químicos, vazamento de estoques de armas químicas e biológicas, descartes irresponsáveis de lixo tóxico e acidentes nucleares ajudaram a tornar grande parte dessas pessoas estéreis. Ao mesmo tempo em que mais e mais mulheres saudáveis optam pelo uso de contraceptivos ou praticam aborto escolhendo não ser mães. A solução encontrada por Gilead foi a reestruturação da sociedade a partir da intenção de produzir filhos para os grupos sociais mais abastados, que tinham o privilégio de possuir, além de esposas, em geral inférteis, servas exclusivas para a reprodução compulsória, as aias. A narradora pensada por Atwood para descrever a sua distopia é uma aia. As aias são os instrumentos principais de sustentação da nova sociedade, porque são vistas como capazes de gerar os filhos desejados pelas famílias do topo da hierarquia gileadiana. Mas pelo mesmo motivo, elas são as pessoas mais vigiadas. Controle excessivo, inclusive, é um dos elementos que caracterizam essa sociedade distópica, além de outros fundamentos comuns ao gênero: insularismo (a cidade é cercada por muralhas e sistemas de segurança que impedem a livre circulação); rígida hierarquia (a organização da sociedade se dá a partir da elite dos comandantes no topo, seguidos pelos demais homens que tinham e os que não tinham condições sociais suficientes para ter esposas); militarismo (o Estado se encontra em 123 MARTHA S. SANTOS | MARCOS ANTONIO DE MENEZES | ROBSON PEREIRA DA SILVA (ORG.) guerra permanente); totalitarismo (que faz com que cada setor da vida das pessoas seja controlado de perto pelo regime); supressão da individualidade (as pessoas devem agir de acordo com o definido para seu grupo (TROUSSON, 1995, p. 7-54). As mulheres, por exemplo, são classificadas como esposas, martas, aias e econoesposas, cada qual ocupando uma função determinada e sendo diferenciada pela cor de suas vestimentas: esposas vestem azul e tem por função administrar a casa e a família; martas vestem verde e executam trabalhos; aias vestem vermelho e desempenham funções sexuais com fins de reprodução; econoesposas vestem as três cores juntas porque são pobres e devem exercer todas as funções ao mesmo tempo. Para o historiador Gregory Claeys, antes que as utopias e as distopias se tornassem futuros imaginados, eram passados imaginários, ou lugares imaginários, como o Jardim do Éden para os cristãos ou o Novo Mundo para navegadores europeus no início da Modernidade. Em ambas as situações uma noção de utopia foi mobilizada para reforçar o senso de coletividade e oferecer esperança em mundo incerto. Porém, a distância entre utopia e distopia às vezes não é tão grande e em muitas utopias, desde Platão, a semente da distopia já está implantada, precisando apenas ser regada em um ambiente favorável para evoluir da sociedade ideal à sua antípoda (CLAEYS, 2013). Jill Lepore acrescenta que “As distopias seguem as utopias da maneira como o trovão segue os relâmpagos.” Tendo em mente a realidade americana, acredita que o trovão atualmente está rugindo e que as pessoas tão ocupadas com “pequenos tiranos” se esquecem “o quão recentemente um relâmpago aconteceu”. A historiadora cita uma reportagem de maio de 2000 para ilustrar a crença americana em um futuro promissor naquele momento. Na matéria, o diagnóstico é que os americanos já eram, “como nação, mais instruídos, mais tolerantes e mais conectados por causa da convergência da internet e da vida pública” e que “O partidarismo, a religião, a geografia, a raça, o gênero e outras divisões políticas tradicionais estão dando lugar a um novo padrão, menos rígido, como princípio organizador.” Para ela, “esse foi o raio, o lampejo de esperança, a promessa de perfectibilidade” que agora cede espaço para o trovão da distopia (LEPORE, 2017). Mesmo sem concordar na totalidade com essa articilação quase automática entre utopia e distopia, apresentada por Jill Lepore,verificamos que, em O conto da aia também há um “clarão de relâmpago” que antecede o “estrondo do trovão” Gilead. A partir de flachbacks da narradora, Ofred, sabemos que antes da implantação do regime as mulheres levavam uma vida 124 HISTÓRIA & OUTRAS ERÓTICAS normal comparável ao padrão norte-americano do início dos anos 1980. Elas tinham acesso à formação universitária, ao trabalho, certa liberdade sexual, acesso a métodos contraceptivos e algumas praticavam aborto em clínicas cada vez mais comuns para esse fim. O movimento feminista e questões próprias dele se fazem presentes nesse cenário pré-Gilead. Ofred recorda que sua mãe era feminista e participava de manifestações públicas em defesa dos direitos das mulheres (ATWOOD, 2017, p. 146). Moira, sua melhor amiga, era uma jovem autônoma e também se identificava com esses ideiais. Antes da “catástrofe” ela trabalhava em um coletivo de mulheres que “publicavam livros sobre controle de natalidade e estupro e coisas desse tipo” (ATWOOD, 2017, p. 213). A personagem central da obra não parece ter sido, “no tempo de antes”, uma mulher muito ligada aos movimentos e pensamentos feministas. Ela apenas seguia vivendo as liberdades possíveis às mulheres da época, sem refletir muito sobre sua condição. Contudo, posteriormente, ao se ver aprisionada na realidade asfixiante das aias, reflete saudosa sobre o passado, quando tinha controle sobre sua vida, seu dinheiro, seu corpo e uma família que ela escolheu, numa construção que se adequa à ponderação de Jill Lepore de que “uma utopia é um paraíso, uma distopia, um paraíso perdido” (LEPORE, 2017). Podemos considerar que, nesse ponto, Margaret Atwood constrói uma relação entre realidade diegética (própria do romanesco) e realidade empírica (própria da concretude histórica), ao abordar a partir de seu romance questões trazidas pelo feminismo de “Segunda onda” e os desdobramentos possíveis mediante as críticas que direcionava à sociedade patriarcal. Enquanto o feminismo dito de primeira onda se manteve atrelado à reinvindicação dos direitos políticos, como votar e ser eleita, o dito de segunda onda, emergiu no pós-guerra priorizando as lutas pelo direito ao corpo, ao prazer e contra o patriarcado, fazendo ecoar como palavra de ordem: “o privado é político” (PEDRO, 2006, p. 269). Nesse sentido, ao enunciar o privado como político, está se reconhecendo a rede de poder que envolve historicamente o corpo feminino; está se percebendo que durante muito tempo homens, sobretudo, elaboraram discursos disciplinadores para o corpo feminino, instituindo maneiras de ser e de se sentir mulher, de forma homogeneizada. Sua obra pode ser lida, ao mesmo tempo, como uma recusa a esse controle, a reivindicação da autonomia e um ataque ao poder estabelecido. E quando Atwood traz esse debate para o centro do seu romance, fazendo desse um tema para uma ficção distópica, ela exerce uma das principais características desse tipo de literatura que é servir de 125 MARTHA S. SANTOS | MARCOS ANTONIO DE MENEZES | ROBSON PEREIRA DA SILVA (ORG.) alerta. Podemos ler O conto da aia, portanto, como um aviso dos riscos que os direitos e conquistas das mulheres corriam naquele momento histórico. Ainda mais porque a autora observa, em algumas entrevistas, que, guardadas as devidas proporções, muito da matéria que sustenta a história imaginada em seu livro já aconteceu a alguma mulher em algum lugar historicamente situado. Quando, em O conto da aia, o comandante conta a Ofred o que motivou a “revolução”, notamos que o que está em jogo, para ele, é mais a perda de poder que os homens experimentavam ao ter seu patriarcado ameaçado: “O problema não era só as mulheres [...]. O problema principal era com os homens. Não havia nada para eles. [...] Incapacidade de sentir. Os homens estavam perdendo o interesse pelo sexo. Perdendo o interesse pelo casamento” (ATWOOD, 2017, p. 248-249). A maneira de se comportar em relação às mulheres deveria mudar porque as mulheres haviam mudado. Mas eles, os homens pré-Gilead, não estavam prontos para mudar, não queriam mudar, não viam sentido em mudar para se adequar a elas. Daí eles mudaram toda a sociedade, moldando-a ao seu desejo. No texto O mal-estar na civilização, de 1930, Freud menciona a noção de “narcisismo das pequenas diferenças” (FREUD, 2010, p. 81)44 referindo-se à forma psíquica de ver e sentir tudo o que difere de si mesmo, o “outro”, como ameaça, podendo-se expressar em relação a etnias diferentes dentro de um mesmo país ou região, comunidades vizinhas entre outras. Se utilizada para ler a relação aqui expressa entre os gêneros, entre mulheres (que adquirem direitos e agem de formas variadas e não mais conforme um estereótipo construído por uma cultura patriarcal) e homens (que não conseguem enxergá-las fora de um padrão), a noção de “narcisismo das pequenas diferenças” ilumina um ponto importante para a compreensão do leitmotiv do regime de Gilead: a intolerância. A intolerância se expressa, inclusive de forma radical, exatamente quando as diferenças entre os diferentes diminuem. Quando as mulheres passam a se comportar fora da estereotipia machista, quando seus comportamentos se aproximam do que se compreendia como exclusivo dos homens elas se tornam alvo de sectarismo. É quando o “outro” se aproxima demais e se torna espelho que o narcisismo das pequenas diferenças se manifesta pela aversão, pelo ódio, pela vontade de disciplinar ou até mesmo eliminar esse “outro”. 44 Formulado por ele anteriormente em O tabu da virgindade (1918) e Psicologia das massas e análise do eu (1921). 126 HISTÓRIA & OUTRAS ERÓTICAS O fato de Margaret Atwood ter imaginado um motivo central para a implantação do regime totalitário baseado no controle do corpo feminino, quando justamente esse controle se esmaecia notoriamente, nos faz pensar que ela estava atenta aos perigos que a autonomia desse corpo representava, historicamente, como sabemos, mas especialmente, na concretude do seu presente, a sociedade patriarcal do segundo quartel do século XX. Porque a literatura é capaz de dialogar com a história de forma dialética: ao refletir conteúdos que nascem da realidade empírica, mas também, ao propor e antecipar temas que podem ser absorvidos pela história. Nessa perspectiva, a literatura distópica, enquanto prognóstico, é, em larga medida, “aviso de incêndio”. Corpo, perigo, poder Ao construir uma história de longa duração do conceito “distopia”, Gregory Claeys recupera a ideia de “monstruosidade” como constituidora da origem do enredo distópico. A monstruosidade estava conectada ao medo do mal contido, sobretudo, na figura cristã do diabo, que dominou a Europa durante boa parte da Idade Média e Modernidade. A existência do medo foi usada para justificar um imenso sistema opressivo como a perseguição às bruxas e demais dissidentes, vistos como ameaça “à fé verdadeira”. Esse sistema foi operado para manter a autoridade de um grupo dominante ao longo de muitos séculos e serviu para suprimir mulheres, hereges e desviantes de vários tipos das estruturas de poder (CLAEYS, 2018, p. 108-109). O autor vai além e retoma os nexos da ideia de monstruosidade com a noção de gênero, sobretudo pelo aspecto sexual que o conceito comporta, em que a mulher era vista como signo de perigo, a representação ou a encarnação do mal, em uma atualização constante do mito do pecado original. Na construção desses traços de monstruosidade, a mulher era associada ao tabu da poluição por causa da menstruação. Os aspectos físicos do corpo da mulher estariam ainda relacionados ao mal pela presunção de que ela poderia copular com o demônio. Mulheres denunciadas por feitiçaria e bruxaria não raro também eram acusadas de terem relações sexuais com o diabo. Vê-se assim que, o corpo da mulher, dentro da tradição cristã foi associado à sujeira, à luxúria e às forças do mal. Gregory Claeys arrola uma série de estudos que identificam nas mulheres denunciadas por bruxaria mulheres normalmente pobres, solteiras, 127 MARTHA S. SANTOS | MARCOS ANTONIO DE MENEZES | ROBSON PEREIRA DA SILVA (ORG.) viúvas e muitas delas ligadas ao conhecimento da natureza e às práticas de cura. Eram, portanto, mulheres que viviam por conta própria e justamente por isso eram vistas como ameaça à estrutura feudal e patriarcal. Elas não se colocavam sob o domínio masculino e institucional da Igreja, porque não estavam atreladas a um compromisso pelo casamento. Como a grande maioria das utopias e distopias não se apega de maneira central ao aspecto religioso, pelo contrário, em geral são antropocêntricas e laicas, os temas da família, do casamento e da relação sexual entre homens e mulheres costuma ser tratado sem muito moralismo. É comum preferirem-se a dissolução das famílias em nome da coletividade regida pelo Estado. No texto fundador Utopia, de Thomas More, o sexo antes do casamento é considerado crime, porém, tanto homens quanto mulheres têm o direito de ver um ao outro sem roupas antes de se casarem, podendo desistir se não se agradarem do que vêm. Na distopia 1984, de George Orwell, a prática do sexo é encorajada apenas com fins de reprodução e chega a ser vista como corrosivo ao regime, pela possibilidade de criação de laços de carinho entre as pessoas, o que implicaria menos obediência ao Partido. Já em Nós, de Eugene Zamiatin, e Admirável mundo novo, de Aldous Huxley, o sexo é praticado de forma quase banal, sem compromisso afetivo: no primeiro, “os números” podem fazer sexo com quem desejarem, desde que no dia determinado para esse fim; no segundo, o sexo é apenas instrumento de prazer, já que a reprodução humana é controlada artificialmente. Na verdade, o tema do sexo e do corpo comumente não é central nesse gênero literário, apesar de serem perceptíveis. O Conto da Aia representa um desvio na tradição, ao trazer a questão da opressão das mulheres e do domínio sobre os seus corpos, pela quase completa alienação, como cerne do enredo. E ao fazer isso, ela constrói uma linha de continuidade com visões religiosas passadas que viam o corpo feminino como algo ao mesmo tempo abjeto, monstruoso e sinal de perigo. Em seu primeiro romance publicado, Carrie (1974), Stephen King narra a história de uma adolescente atormentada pelos colegas de escola e pela mãe ao entrar na menarca. A primeira menstruação de Carrie desencadeia uma série de problemas. Sua mãe, que era uma fervorosa religiosa, a educava de forma severa, não deixando que Carrie tivesse uma vida comum de adolescente e nem soubesse o que era menstruação, porque associava à maldição e ao pecado. Carrie tem seu primeiro sangramento na escola e é percebida por colegas e professores. Seguem-se repreensões e ataques de 128 HISTÓRIA & OUTRAS ERÓTICAS bulling. Nesse contexto, a personagem Carrie, pode ser vista como símbolo da feminilidade monstruosa que, embora deite raízes em longa tradição do passado, é uma ideia que não deixa de se atualizar (KING, 2007). “Tudo, exceto a touca de grandes abas ao redor de minha cabeça, é vermelho: da cor do sague, que nos define” (ATWOOD, 2017, p. 16). Esse é um pensamento que Ofred compartilha com o leitor logo no início da narrativa imaginada por Atwood. Ao seguirmos a leitura, notamos que o centro de treinamento para as aias, o Centro Raquel e Lea, também é chamado de Centro Vermelho, e vermelho é também a cor do partomóvel que transporta as aias nas ocasiões em que uma delas vai parir. Em outra ocasião, Ofred descreve uma lembrança ao sentir um cheiro familiar, deixando escapar o peso que a menstruação pode assumir na vida de uma mulher: Inalo o perfume achando que deveria apreciá-lo. É a fragrância de garotas pré-pubescentes, dos presentes de crianças para suas mães, no Dia das Mães; o cheiro de meias soquetes brancas de algodão e de anáguas brancas de algodão, de pó perfumado para o corpo, da inocência da carne feminina que ainda não cedeu ao surgimento de pelos e ao sangue. (ATWOOD, 2017, p. 98). Na linha de raciocínio que associa a mulher à monstruosidade, o vermelho, a cor da menstruação, pode ser a cor da luxúria, a cor do perigo, a cor da morte. Porque em cada menstruação que desce há um filho que se perde, há uma certa rejeição da vida. Nessa perspectiva, o aborto só pode ser algo abjeto, deplorável. Por outro lado, esse mesmo vermelho não deixa de ser também símbolo da vida, se nos ativermos ao fato de que sem menstruação, em geral, não há gestação, não há possibilidade de vida. A existência, portanto, de todas as pessoas, depende do corpo da mulher, que abriga e alimenta a todos ao nascer. E essa existência submete-se, em larga medida, à vontade da mulher, que pode desejar não engravidar, desejar não seguir com uma gravidez, abortando um princípio de vida que se desenvolveria dentro do seu corpo. Só a mulher pode se fazer lugar para o outro existir. Desta forma, ser mulher é sinônimo de poder, poder demais, inclusive, para administrar sozinha. Por isso, na perspectiva cristã e patriarcal apresentada, ela passa a ser identificada com o perigo, e um corpo eivado de perigos deve ser controlado, pelo discurso ou pela força. Notemos que ao colocar em lados opostos a “inocência da carne feminina” e o “surgimento de pelos e sangue” de algum modo a personagem Ofred veicula o pensamento de que a mulher, ao iniciar seu período 129 MARTHA S. SANTOS | MARCOS ANTONIO DE MENEZES | ROBSON PEREIRA DA SILVA (ORG.) menstrual, não está ganhando poder ou qualquer outra coisa, pelo contrário, está perdendo: inocência e pureza. Trata-se aqui da atualização da mentalidade religiosa que associa a mulher à monstruosidade, ao pecado e ao tabu da poluição, que enquadra o corpo feminino, pelo fato de sangrar regularmente, a algo sujo e impuro, equiparando a menstruação a outras secreções do corpo humano, como o pus de uma ferida, podendo trazer doenças ou atrair maus espíritos (DOUGLAS, 1991, p. 29). Em O Conto da Aia há uma cena que se passa no Centro Vermelho, quando Tia Lydia, uma das administradoras da instituição (e colaboradora do regime) condena veementemente a atitude de mulheres pré-Gelead que “mandaram fazer ligaduras de categute fechando-se ou feriram-se para sempre com substâncias químicas”, perguntando-se: “Como foram capazes de fazer uma coisa dessas? Jezebéis! Desprezando a dádiva de Deus!”. Na sequência, acrescenta: eram “mulheres preguiçosas” e “vagabundas” (ATWOOD, 2017, p. 137-138). Por ter naturalmente o maior dos poderes, “a dádiva de Deus”, capaz de gerar e abrigar a vida, a mulher, na distopia de Margaret Atwood, deveria ser controlada e utilizada para garantir a continuidade do grupo social que dominava o regime. Ao final do romance, quando não se sabe ao certo se Ofred é resgatada por um suposto grupo de resistência ou se está prestes a sofrer as punições previstas pelo regime em decorrência de suas “imposturas” na função de aia, ela conjetura amedrontada, que seria capaz de qualquer coisa que o regime quisesse, desde que escapasse impune, prometia em silêncio se anular, se esvaziar de si mesma verdadeiramente, esquecendo todos os afetos, deixando de reclamar, aceitando o seu destino de aia. Sei que tudo isso não pode estar certo, mas penso de qualquer maneira. Tudo que me ensinaram no Centro Vermelho, tudo a que resisti, flui para dentro de mim numa torrente. Não quero dor. Não quero ser uma dançarina, com pés no ar, minha cabeça um retângulo sem rosto de pano branco. Não quero ser uma boneca dependurada no Muro, não quero ser um anjo sem asas. Quero continuar vivendo, de qualquer forma que seja. Renuncio a meu corpo voluntariamente, para submetê-lo ao uso de outros. Eles podem fazer o que quiserem comigo. Sou abjeta. Sinto, pela primeira vez, o verdadeiro poder deles. (ATWOOD, 2017, p. 337-338). O poder do regime de Gilead é exercido por meio de um conjunto de instituições materializadas em sujeitos como “comandantes”, “tias”, “anjos”, 130 HISTÓRIA & OUTRAS ERÓTICAS “guardiões”, “olhos”, mas também está presente de forma difusa em cada aia e em cada marta. Elas temem umas às outras, por não ter como saber ao certo quem aderiu ideologicamente ao regime ou quem apenas finge ser crente em seus princípios como forma de se preservar. Isso fazia com que se vivesse em permanente tensão, em constante sensação de vigilância. Certa vez Ofred recorda o que Tia Lydia dizia às aias em treinamento: “A República de Gilead [...] não conhece fronteiras. Gilead está dentro de você” (ATWOOD, 2017, p. 34). Esse ambiente tipicamente distópico é eficiente em aterrorizar as pessoas, fazendo-as sucumbir ao um medo que nem entendem com exatidão. Reside aí, talvez, o maior poder do regime: o de alienar as pessoas daquilo que elas são, fazendo-as se esvaziar, se submeter, renunciar a si próprias em nome de um terror permanente e generalizado. No romance 1984, o membro do Núcleo do Partido, O’Brien, explica ao Winston, personagem central da trama, que ele não poderia resistir ao regime, mas certamente sucumbiria a ele e o amaria, escolheria amar o Partido e o Grande Irmão. Explica ainda que o que alimenta a estrutura do Partido é “o poder pelo poder”, não interessa riqueza, vida longa ou felicidade, e o que diferencia o seu regime das “oligarquias do passado” é que ele reconhece e assume as suas reais motivações: “o poder em si”, o “poder puro” (ORWELL, 2009, p. 307-308). Em O conto da aia há um tratamento interessante dado ao tema do poder. Há, como dito, a presença de um macro poder, que se nota em todos os ambientes, afinal, a República de Gilead é totalitária. Mas há também uma constelação de micropoderes encenados no cotidiano como parte de uma disputa constante entre as personagens: entre mulheres e mulheres, homens e homens, mas principalmente, entre mulheres e homens. Ofred se sentia, às vezes, como um “pertence da casa”, “uma mobília” da casa que pertence ao comandante. Ele é o dono da casa, ele a possui, como a tudo que está dentro dela. Possui e mantém sob o seu domínio. Ela não poderia recusá-lo, não o recusa, reconhece que é dele o verdadeiro poder (ATWOOD, 2017, p. 98; 165). Em outra ocasião, a personagem Ofred pensa sobre como era ter tanto poder quando se controlava a si própria, como “no tempo de antes” quando, mesmo com certos cuidados, ia sozinha à lavanderia lavar as próprias roupas, com seu próprio sabão, com seu próprio dinheiro, dinheiro que ela mesma ganhava. Porque a roupa que ela usa na função de aia, não é dela, 131 MARTHA S. SANTOS | MARCOS ANTONIO DE MENEZES | ROBSON PEREIRA DA SILVA (ORG.) não a pertence, é mais um dispositivo de controle do regime. A roupas das aias também são chamadas de hábitos, nome que Ofred acha apropriado, pois, segundo ela, “Hábitos são difíceis de abandonar ou despir” (ATWOOD, 2017, p. 35). As roupas das mulheres são colocadas, nesse contexto, como símbolo de liberdade ou aprisionamento: se por um lado os hábitos as atam a um padrão, as roupas das mulheres independentes, que tomam suas próprias decisões são imaginadas por Ofred como portando botões na frente. Botões e amarrações na parte da frente da blusa sugerem a possibilidade de desabotoar, de desatar, de se vestir ou desnudar por conta própria, sozinha (ATWOOD, 2017, p. 35-36). No dia a dia Ofred opera seus micropoderes porque sente prazer ao ver-se capaz de exercê-lo. Planeja roubar objetos da casa, detê-los sob sua posse: um cinzeiro, uma flor desidratada que pudesse esconder nas pregas do vestido, dentro do sapato ou embaixo da cama, para olhar para ela, de vez em quando, sentindo com isso que tem poder (ATWOOD, 2017, p. 99). Remexe os quadris intencionalmente para provocar os guardiões que não podem ter mulheres ou quaisquer substitutos. E pensa sobre isso: Então descubro que não estou envergonhada. Aprecio o poder; o poder de um osso de cachorro, passivo mas presente. E espero que fiquem de pau duro ao nos verem e que tenham que se esfregar contra as barreiras pintadas, às escondidas (ATWOOD, 2017, p. 33). Constatamos que, em O conto da aia o poder se exerce principalmente sobre os corpos e por meio dos corpos das mulheres. Seus corpos são objetos, mas também instrumentos de poder. Ao mesmo tempo em que a alienação de seus corpos, pelo controle de outros sobre eles, as mortifica, aprisiona, também as concede momentos de vivificação, pela possibilidade de usarem seus corpos como se desejam, mesmo que sob os condicionamentos do regime. Há um “biopoder”, no sentido de “administração dos corpos e gestão calculista da vida” (FOUCAULT, 2006, p. 152), na distopia de Margaret Atwood, que é macro, ao ser exercido de forma difusa pelo Estado; mas há também um que é micro, percebido e operado no cotidiano dos pequenos prazeres, pelos personagens individualizados.45 Para uma boa leitura sobre o conceito “biopoder”, a partir de uma perspectiva comparativa entre Michel Foucault e Hannah Arendt, ver o texto de Aruanã Antônio dos Passos em: Novos caminhos em velhos mapas: cultura, política & historiografia. Organizado por Ana Lorym Soares, Eduardo Henrique Barbosa de Vasconcelos e Edson Arantes Júnior. São Leopoldo-RS: Oikos; Anápolis-GO: Editora UEG, 2014. p. 79-100. 45 132 HISTÓRIA & OUTRAS ERÓTICAS “O diabo mora nos detalhes” Na sociedade imaginada por Margaret Atwood, muitas atitudes que outrora eram comezinhas agora estão proibidas: não se permite, por exemplo, ter livros, revistas, filmes ou discos em casa, só a Bíblia. Imagina-se que todos esses materiais haviam sido destruídos no início do regime. No entanto, o comandante tem uma biblioteca inteira em casa, às escondidas. Porque ele se permite transgredir as regras que teria ajudado a criar, como um dos supostos idealizadores de Gilead. Mas essa não é a única transgressão que o ele comete: o comandante leva sua aia Ofred para o seu escritório, quando esse tipo de aproximação é terminantemente proibido. Nos encontros, o comandante faz concessões a Ofred, joga com ela e dá revistas e livros para ela ler, enquanto ele a assiste. Ele gosta de vê-la lendo o que ele oferece. Certa noite, pela primeira vez, Ofred teve permissão para escrever algo. Pegar a caneta entre meus dedos é sensual, parece quase viva, posso sentir seu poder, o poder que as palavras contêm. Inveja da Pena, diria Tia Lydia, citando mais um dos lemas do Centro, advertindo-nos a nos manter longe de tais objetos. E elas estavam certas, é inveja. Só tê-la na mão é inveja. Eu invejo a pena do Comandante. É mais uma coisa que gostaria de roubar (ATWOOD, 2017, p. 222-223). Na distopia em foco, a escrita, a palavra, o discurso são vetados às mulheres, a todas as mulheres, exceto às tias. “Que a mulher aprenda em silêncio com toda a sujeição”, lê o comandante os fundamentos religiosos para a audiência feminina: sua esposa e sua aia. Continua: “Mas não tolerarei que uma mulher ensine, nem usurpe a autoridade do homem, apenas que se mantenha em silêncio” (ATWOOD, 2017, p. 262). “Bem-aventurados os que se calam”, brada Tia Lydia para as aias no Centro Vermelho (ATWOOD, 2017, p. 109). No “tempo de antes” a esposa do comandante fazia discursos, escrevia livros, tinha programa de televisão, era boa oradora. Seus discursos eram sobre a santidade do lar, sobre como as mulheres deveriam ficar em casa, embora ela mesma não ficasse, observa Ofred. Na sociedade ultra patriarcal de Gilead até a esposa do comandante se tornou incapaz de falar, não faz mais discursos, suas palavras foram levadas a sério e ela foi silenciada (ATWOOD, 2017, p. 58). O lugar da mulher, portanto, é o do silêncio, da escuta, da subordinação. Na obra já mencionada, Freud diz que enquanto nas civilizações modernas os homens pertencem ao mundo da cultura, desempenhando 133 MARTHA S. SANTOS | MARCOS ANTONIO DE MENEZES | ROBSON PEREIRA DA SILVA (ORG.) tarefas difíceis que exigem sublimação, as mulheres pertencem ao lar, representam os interesses da família e do sexo. As mulheres não são muito capazes de sublimação, acrescenta, no máximo, tramam os tecidos com que cobrem a sua castração (FREUD, 2010, p. 67). Mesmo sem concordar com o teor da afirmação de Freud, visto que quando ele escreve já havia certa ruptura com esse padrão de comportamento feminino e masculino, operemos com a ideia de castração feminina que ele expressa. A “angústia da castração”, se compreendida como metáfora da ordem cultural, implica proibição (ROUDINESCO; PLON, 1998, p. 106). As mulheres não têm as mesmas possibilidades que os homens têm diante da vida, e por isso os invejam. Ofred inveja a pena do comandante, seria algo que roubaria dele, se pudesse. A alusão ao complexo de castração por meio da expressão “inveja da Pena” (em Freud, “inveja do pênis”) é clara. Atwood retoma esse ponto várias vezes em seu romance, sua personagem principal e narradora, reconhece que o comandante, e os homens, por conseguinte, têm algo que as mulheres não têm: a palavra; e lamenta por tê-la desperdiçado quando podia exercê-la, no mundo pré-Gilead (ATWOOD, 2017, p. 109). Ao considerar a realidade histórica, consideramos que, mesmo o século XX tendo sido em muitos aspectos libertador para as mulheres, no campo da escrita e da arte, uma certa estereotipia insiste em permanecer. Ricardo Piglia, em um texto instigante, nos permite observar como Franz Kafka, por exemplo, atava a figura feminina ao lugar da espera, como leitora ideal. Em sua relação epistolar, sobretudo com Felice Bauer, nota-se a emergência de uma idealização da mulher, vista como aquela que complementaria a condição de isolamento ideal para a escrita: uma mulher que espera, uma mulher leitora, uma empregada. Felice Bauer desempenha, por um tempo, esse papel triplo. Kafka desejava que ela esperasse suas cartas com desabafos sobre a escrita e orientações sobre o serviço ela deveria fazer, gratuitamente; ele desejava que ela lesse seus textos e comentasse-os generosamente, mostrando-se transformada por eles; ele desejava que ela copiasse seus manuscritos (ela era datilógrafa profissional), trabalho que ele não se dignava a fazer, pois via a escrita como algo artesanal, quase orgânico. Assim, Felice Bauer é para Kafka, a mulher ideal: leitora-copista-passiva-empregada. Piglia aponta a figura da empregada como de grande interesse na literatura de Kafka. A empregada é quase a única figura da mulher (com suas transformações) que aparece nas narrativas do escritor tcheco com uma função muito concreta na trama. “Essas criadas vulgares rondam as cenas masculinas e têm algo em comum com as prostitutas. Basicamente, uma mulher a quem paga para 134 HISTÓRIA & OUTRAS ERÓTICAS que nos atenda. A empregada, figura social clássica na família de classe média, é também figura de iniciação nesse âmbito” (PIGLIA, 2006, p. 58.). De algum modo, todas as mulheres no romance de Margaret Atwood são empregadas, cada uma delas, contudo, desempenha uma função específica. Mas todas servem aos homens: as tias são empregadas do regime patriarcal, as esposas, martas e aias servem diretamente aos comandantes. Obviamente aqui a intenção e o efeito são diferentes da literatura de Kafka. Atwood produz uma paródia, uma sátira do mundo idealizado pelos homens. Trata-se de uma tradição, registra Piglia, a idealização da mulher como leitora fiel, que vive a sua vida para ler e copiar o manuscrito do homem que escreve. Sofia Tolstói copiou sete versões completas de Guerra e paz. Quando concebia ao mesmo tempo Crime e castigo e O jogador, Dostoiévski contratou uma datilógrafa, Anna Giriegorievna Snitkine, com quem se casou. Véra Nabokov redigia cartas em nome do esposo famoso, era sua copista, ajudante. Borges teve uma série de secretárias que copiavam os textos que ele as ditava. Nora Joyce, porém, era o inverso das outras: recusava-se a ler uma só página escrita pelo marido e nem se dava conta de que o romance Ulisses transcorre em um só dia, 16 de junho de 1904, como recordação do dia em que os dois se conheceram (PIGLIA, 2006, p. 67-68). Ingrid Schwamborn, em texto sobre a obra de Stefan Zweig, observa que em seu livro de recordações, o escritor austríaco fala unicamente de “europeus” e nunca de “europeias”, a rigor, não pensava em mulher alguma: sua primeira mulher, Friderike, “só é mencionada duas vezes de passagem numa oração subordinada”, e sem referência ao nome; e Lotte, sua segunda “futura companheira”, que “datilografou a obra em sua máquina de escrever portátil”, não é mencionada a não ser indiretamente, quando registra que por coincidência ele contraiu “um segundo casamento” no dia em que irrompeu a Segunda Guerra Mundial. Schwamborn aponta que, com apenas uma exceção, nas páginas das memórias de Zweig, que considera muito bem escritas, nenhuma mulher é mencionada pelo nome: “A mulher só aparece aí – quando aparece – em um plural sem rosto, como “damas”, “moças”, “mulheres”, “criadas”, “prostitutas”, num mundo europeu de escritores, pensadores, músicos, de homens que transformam o mundo, e guerreiros” (SCHWAMBORN, 2000, p. 28). Com efeito, é forçoso perceber que o lugar atribuído à mulher por parte significante da literatura ocidental, em geral não tem sido adequado ao que elas lutaram para conquistar, desde o século XIX, mas principalmente, 135 MARTHA S. SANTOS | MARCOS ANTONIO DE MENEZES | ROBSON PEREIRA DA SILVA (ORG.) ao longo do século XX. A obliteração, a redução e a subordinação aparecem como lugar comum. No caso das “mulheres de escritores”, mesmo quando o registro muda da leitora-copista (Felice Bauer) para a musa inspiradora (Nora Joyce), há que se observar um certo aprisionamento, a determinação de um espaço periférico, acessório na cena literária. Tanto na mulher fatal e arredia que inspira e que se recusa a ler, como na mulher dócil que copia, há uma forma de servidão, estão a serviço da escrita masculina (PIGLIA, 2006, p. 68). Em algumas das distopias mais conhecidas do século XX o tratamento dado à figura feminina não foge a essa tradição. Em Nós, as personagens femininas são reduzidas à formas corporais que se movimentam e fornecem prazer gratuito; em 1984, Júlia, uma das poucas mulheres que tem um nome identificável na trama, não passa da representação da figura idealizada da jovem sexualmente estimulante, mas intelectualmente limitada que se entedia facilmente com grandes questões; em Fahrenheit 451, a esposa do bombeiro Montag e suas amigas são fúteis e abjetas, e a adolescente Clarisse, um ser quase descarnado, é uma espécie de musa que o faz despertar do torpor e o guia na resistência ao regime; e em Androides sonham com ovelhas elétricas?, o caçador de androides Rick Deckard, ao se questionar sobre a diferença entre os humanos e máquinas humanoides considera estes mais vivos do que sua apática esposa, e de fato, Iran, confinada às cenas domésticas, vive em torpor quase permanente, escolhendo pelo “sintetizador de ânimo” permanecer em profunda depressão. Em O conto da aia a personagem central é uma mulher, é ela quem narra, a história é contada sob sua perspectiva, as grandes e pequenas questões que o romance desenvolve são enunciadas por ela. Por esse aspecto a obra de Margaret Atwood já implica uma inflexão importante na cena literária distópica. Nas primeiras décadas do século XX, Virginia Woolf se debatia com críticos literários que diminuíam a contribuição feminina nas letras. Em 1905 publicou uma resenha da obra A nota feminina da literatura, do escritor inglês William Leonard Courtney (1850-1928). Woolf rebateu os argumentos apresentados por ele de que “as mulheres raramente são artistas devido à paixão que têm pelo detalhe, o que entra em conflito com a proporção artística correta da obra”, dado que a escrita feminina, na opinião do crítico, se destaca por um “trabalho de cerrada análise em miniatura”, saindo-se melhores “quando reproduzem do que quando criam” (WOOLF, 2016, p. 22). 136 HISTÓRIA & OUTRAS ERÓTICAS Observa-se que da mesma forma que nos ditos pequenos ou grandes escritores ocidentais a tópica da inaptidão das mulheres para a vida da cultura, para a arte e para a literatura é recorrente. O Sr. Courtney, a quem Virginia Woolf rebateu, chegou a dizer que parecia evidente que o declínio do romance enquanto obra de arte se devia à “quantidade cada vez maior de romances escritos para mulheres” (WOOLF, 2016, p. 23). Na interpretação dele, a inserção da mulher na literatura, como escritora ou como leitora, implicava a deterioração da arte. Ao conversar com o comandante, no escritório, a personagem Ofred ouve dele, em tom de pilhéria, que as mulheres não sabem somar, pois “para elas, um mais um mais um mais um não fazem quatro”, mas “apenas um mais um mais um mais um” (ATWOOD, 2017, p. 222). Ou seja, mulheres não são capazes de abstração. Já no apêndice que a autora inclui no seu romance, chamado “Notas Históricas Sobre O Conto da Aia”, a escrita feminina é a todo momento colocada sob suspeita. Imaginando que a República de Gilead tivesse evoluído e se consolidado historicamente, no espaço diegético, Atwood cria uma cena em que um historiador gileadiano, do futuro, analisa os registros deixados por Ofred, que corresponderiam ao romance que o leitor acaba de ler. Nesse exercício metaliterário, vemos o historiador expor suas pesquisas em uma palestra intitulada “Problemas de Autenticação com Relação a O Conto da aia”. O historiador se recusa a usar o termo “documento” para os relatos que ele reconhece expressarem uma voz feminina; ele considera a possibilidade do relato se tratar de falsificação porque, segundo ele, vários registros daquele tipo tinham vindo à tona anteriormente por editores sensacionalistas; e por fim, o historiador admite a possibilidade de “o conto da aia” não passar de “lendas não especificamente edificantes” (ATWOOD, 2017, p. 351-366). Tanto na ficção de Margaret Atwood quanto nos textos dos escritores supracitados, de modo invertido, há um modelo de pensamento que se repete e que é sustentado por um pressuposto cognitivo. A literatura constrói lugares, formas de pensar, maneiras de ver o mundo. E na maior parte dos textos apresentados a voz feminina é, em geral, suspeita porque a mulher não é considerada capaz de sair da obviedade dos dados para empreender uma abstração; a mulher não poderia ser romancista por focalizar o detalhe em detrimento da proporção que a obra de arte exige; a mulher seria melhor ao reproduzir, copiar (obras feitas por homens, certamente) do que 137 MARTHA S. SANTOS | MARCOS ANTONIO DE MENEZES | ROBSON PEREIRA DA SILVA (ORG.) quando cria por si; a mulher seria a leitora ideal e o homem o escritor ideal; a mulher pertenceria ao mundo da casa e o homem ao mundo da cultura. Temos de considerar que, mesmo com especificidades de tempo e de lugar, na civilização moderna, a ciência e as letras herdam o prestígio que outrora foi da religião na tarefa de explicar o mundo. E se no tocante à diferença entre os gêneros, no passado dominado pela ideologia religiosa e pela metafísica, a mulher foi tida por inferior por estar associada ao corpo, ao pecado e ao monstruoso que deveria ser controlado; o homem estava conectado às ideias de espírito, essência, causa eficiente que deveria conformar as coisas e controlar os desviantes. A evolução desse pensamento mantém atualizada a dicotomia que aprisiona homens e mulheres em estereótipos: mulheres são inferiores porque são ligadas à emoção, ao específico, ao familiar, enquanto homens são superiores porque são mais racionais, representam o universal e se interessam pela essência das coisas. Notamos aí uma dimensão cognitiva e uma moral que são utilizadas, consciente ou inconscientemente, para embasar o lugar de subalternidade da mulher na cultura ocidental. Esse pensamento é facilmente adaptável para justificar outras hierarquias historicamente estabelecidas: povos civilizados e não civilizados, regiões centrais e regiões periféricas, caucasianos e não caucasianos. A lista pode ser extensa e explicita como, ao longo do tempo e em diferentes lugares, temos nos tornado especialistas em definir os nossos “outros, transformando diferença em desigualdade. Conclusão Na chave de leitura proposta pelos historiados Jill Lepore e Gregory Claeys de que a utopia pode ser vista como o paraíso imaginado e a distopia como o paraíso perdido, O conto da aia, enquanto exemplar da literatura distópica, pode ser compreendido como um prognóstico de tempo, uma antecipação de um futuro possível. Futuro esse marcado pelo pessimismo em relação à evolução das relações de poder entre os gêneros e das conquistas dos direitos femininos. Ao construir seu prognóstico, Atwood opera uma projeção temporal, tal como já teorizada por Reinhart Koselleck (2014, p. 192), que parece extrair sua evidência de experiências já concretizadas, processadas e registradas historicamente. Não é ficção pura, pelo contrário, parte de uma combinação entre múltiplos dados da experiência, mas que 138 HISTÓRIA & OUTRAS ERÓTICAS ela apresenta como ameaça ao futuro próximo, constituinte do “horizonte de expectativa” possível para a sociedade da época em que escreve. No texto, ela constrói, sob a fabulação, uma crítica à estrutura patriarcal da sociedade moderna da segunda metade do século XX. Dialoga com o pensamento feminista vigente nos anos 1970 e 1980 e reverbera que o privado é político, o corpo é político. Nesse sentido, a questão da perspectiva pela qual o romance é narrado faz toda a diferença. Aqui, a personagem central é uma mulher, é ela quem narra e as grandes e pequenas questões que o romance encerra são enunciadas por ela. Por essa circunstância ao mesmo tempo estética e política, a obra de Margaret Atwood já realiza uma importante variação na cena literária distópica do século XX. Reconhecemos, contudo, que seu trabalho tem um alcance ainda maior. Não exatamente por ser, do ponto de vista literário, uma obra grandiosa (não é o caso), mas porque nos permite refletir sobre toda uma tradição do gênero utopia/distopia, mas não só, que estabelece a mulher como sujeito subalterno. Fato que ocorre quando ela mobiliza, pela sátira, vários lugares comuns que sustentam um argumento machista que impregna textos de escritores reconhecidos pelo cânone. Ela não faz isso diretamente, mas ao insinuar, de modo às vezes sutil, a relação que pode ser operada entre sua obra e uma produção literária mais ampla. Por fim, lembramos que esses lugares comuns não são dados naturais da realidade, eles são produzidos como respostas a interesses historicamente situados e se conectam a um modelo epistemológico hegemônico que remonta à antiguidade, desde Platão e Aristóteles, passando pela tradição cristã na Idade Média e Modernidade, mas que de algum modo ainda se faz observar no pensamento e literatura do século XX, mesmo que de forma difusa. REFERÊNCIAS ATWOOD, Margaret. O conto da aia (The handmaid’s tale). Rio de Janeiro: Rocco, 2017. BLADBURRY, Ray. Fahrenheit 451. São Paulo: Globo, 2012. CLAEYS, Gregory. Dystopia: a natural history. Oxford: Oxford University Press, 2018. CLAEYS, Gregory. Utopia: a história de uma ideia. São Paulo: Edições Sesc SP, 2013. 139 MARTHA S. SANTOS | MARCOS ANTONIO DE MENEZES | ROBSON PEREIRA DA SILVA (ORG.) DICK, Philip K. Androides sonham com ovelhas elétricas? São Paulo: Aleph, 2014. DOUGLAS, Mary. Pureza e perigo. Ensaio sobre a noção de poluição e tabu. 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