Editora Appris Ltda.
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Catalogação na Fonte
Elaborado por: Josefina A. S. Guedes
Bibliotecária CRB 9/870
H673h
2019
História & outras eróticas / Martha S. Santos, Marcos Antonio de Menezes,
Robson Pereira da Silva (organizadores). - 1. ed. – Curitiba : Appris, 2019.
357 p. ; 23 cm. (Ciências Sociais - Seção História)
Inclui bibliografias
ISBN 978-85-473-3915-9
1. Sexologia. 2. Feminismo. 3. Identidade de gênero. 4. Erotismo.
I. Santos, Martha S. II. Menezes, Marcos Antonio de. III. Silva, Robson Pereira da.
IV. Título. V. Série.
CDD – 306.7
Livro de acordo com a normalização técnica da ABNT
Editora e Livraria Appris Ltda.
Av. Manoel Ribas, 2265 – Mercês
Curitiba/PR – CEP: 80810-002
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Printed in Brazil
Impresso no Brasil
ESTÉTICA, POLÍTICA E EPISTEMOLOGIA A
PARTIR DO ROMANCE DISTÓPICO O CONTO DA
AIA, DE MARGARET ATWOOD
Ana Lorym Soares
[...] há a enorme e óbvia diferença de experiências; mas a diferença
essencial não é que homens descrevem batalhas e as mulheres o
nascimento dos filhos, e sim que cada sexo descreve a si mesmo.
Virginia Woolf. Mulheres romancistas, 1918
Introdução
Acontecimentos políticos recentes e que se assemelham, em certos
pontos, a enredos de distopias, como a eleição do improvável Donald Trump
à presidência dos Estados Unidos, aumentaram a ansiedade em torno de
possíveis ameaças aos direitos civis das mulheres e direitos humanos como
um todo, contribuindo para que livros de literatura distópica tivessem
suas vendas disparadas. O livro 1984, de George Orwell e O conto da aia,
de Margaret Atwood estão na lista dos best-sellers da Amazon, exibindo a
longevidade dessas narrativas.43 Uma infinidade de obras do gênero distópico ambientadas em um futuro próximo, de qualidade às vezes duvidosa,
tem sido publicada recentemente por toda parte (LEPORE, 2017). Esse
interesse por obras que apresentam projeções futuristas lastreadas em um
pessimismo radical fez a historiadora Jill Lepore considerar o momento em
que vivemos como “era de ouro para a ficção distópica” (LEPORE, 2017). No
Brasil, O conto da aia também aparece entre os dez livros estrangeiros mais
vendidos pelo site Estante Virtual no ano de 2019, junto com A revolução
dos bichos, de George Orwell; Fahrenheit 451, de Ray Bradbury; e Admirável
mundo novo, de Aldous Huxley, todos identificados como distópicos. Mas
The Handmaid’s tale (O conto da aia) também é o nome de uma série de TV e Streaming baseada na obra de
Margaret Atwood, que vem arrebatando públicos do mundo inteiro e ganhando vários prêmios do setor, como
Emmy de melhor série dramática em 2017. A série já está com a terceira temporada pronta para a estreia e a partir
do sucesso da montagem, a escritora canadense decidiu escrever uma continuação do seu romance de 1985. Em
breve, portanto, teremos mais um romance distópico de Atwood à disposição dos leitores.
43
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MARTHA S. SANTOS | MARCOS ANTONIO DE MENEZES | ROBSON PEREIRA DA SILVA (ORG.)
também aparecem no conjunto dos mais vendidos, os livros Sejamos todos
feministas e Amaricanah da escritora feminista Chimamanda Ngozi Adchie
(Estante Virtual, 2019).
Convergido com o cenário de interesse tanto por literatura distópica
quanto por livros de temáticas feministas, neste texto lançamos um olhar
sobre o romance de Margaret Atwood (1939), O conto da aia (The handmaid’s
tale), publicado originalmente em 1985, para apresentá-lo enquanto contributo estético, político e epistemológico ao gênero literário distópico. Mesmo
não tendo sido a primeira mulher a escrever uma obra desse gênero, a
sua foi, entre as obras de autoria feminina, a que alcançou maior destaque
entre leitores e críticos, que reconhecem nela um importante exemplar da
ficção distópica.
Para esta reflexão, O conto da aia se faz relevante também por ter sido
escrito por uma mulher, narrado do ponto de vista feminino e por imaginar um mundo distópico levando em consideração praticamente todas as
tópicas clássicas desse gênero, ao mesmo tempo em que traz para o centro
da narrativa os efeitos de uma sociedade autoritária e patriarcal na vida
das mulheres. Sem apequenar questões existenciais, políticas e sociais que
afetam a todas as pessoas, o teor principal do enredo é a dominação sofrida
pelas mulheres diante de um patriarcado sem disfarces que, além de eliminar
todos os direitos civis femininos, tem na exploração sexual compulsória
de parte delas (as aias) o ápice desse controle. Em vista disso, o argumento
central deste texto é que ao escrever essa obra, Margaret Atwood traz um
aporte considerável à tese de que a ficção feminina, escrita por mulheres,
sob o ponto de vista feminino, não reduz a literatura, não empobrece a
imaginação, setorizando-a. Pelo contrário, tem o potencial de enriquecê-la,
representando um contributo ao mesmo tempo estético (por inserir personagens femininas relevantes e por narrar do ponto de vista de mulheres),
político (ao expor a crueldade da espoliação dos direitos femininos e por
ratificar que o corpo, sobretudo o das mulheres, é objeto de disputa e de
poder) e epistemológico (visto que permite lançar luzes sobre o debate acerca
da dicotomia entre feminino e masculino associados respectivamente à
mente/corpo, espírito/matéria, razão/afeto nos quais os primeiros polos
têm quase sempre privilégios e são concebidos hierarquicamente superiores
aos segundos, na cultura ocidental.
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HISTÓRIA & OUTRAS ERÓTICAS
O Conto da Aia como literatura distópica
Em O conto da aia Margaret Atwood nos apresenta um enredo sustentado no relato de uma mulher, personagem central na trama, que narra
sob seu ângulo, como reconstrução do passado, o pesadelo vivido sob o
regime da República de Gilead. Trata-se de uma sociedade totalitária e conservadora instaurada nos Estados Unidos na passagem dos anos 1980 para
1990, quando um grupo indefinido de pessoas assassinam o presidente da
República, fecham o Congresso Americano e assumem o controle do país,
construindo uma nova e rígida hierarquia social. A ideologia que orienta esse
tour de force retrógrado é basicamente uma interpretação literal de trechos
da Bíblia, por um lado, e um puritanismo estrito, por outro, que enxerga,
inclusive, em algumas correntes protestantes menos obscurantistas inimigas
a serem eliminadas: quakers, batistas, presbiterianos. O problema maior a
ser resolvido para o grupo que assume o poder em Gilead é o declínio da
natalidade que punha a continuidade dos grupos humanos caucasianos em
risco de extinção. Mutações de vírus da sífilis e da AIDS se disseminaram
sem controle eliminando pessoas jovens e sexualmente ativas. O uso indiscriminado de inseticidas químicos, vazamento de estoques de armas químicas
e biológicas, descartes irresponsáveis de lixo tóxico e acidentes nucleares
ajudaram a tornar grande parte dessas pessoas estéreis. Ao mesmo tempo
em que mais e mais mulheres saudáveis optam pelo uso de contraceptivos
ou praticam aborto escolhendo não ser mães. A solução encontrada por
Gilead foi a reestruturação da sociedade a partir da intenção de produzir
filhos para os grupos sociais mais abastados, que tinham o privilégio de
possuir, além de esposas, em geral inférteis, servas exclusivas para a reprodução compulsória, as aias.
A narradora pensada por Atwood para descrever a sua distopia é
uma aia. As aias são os instrumentos principais de sustentação da nova
sociedade, porque são vistas como capazes de gerar os filhos desejados
pelas famílias do topo da hierarquia gileadiana. Mas pelo mesmo motivo,
elas são as pessoas mais vigiadas. Controle excessivo, inclusive, é um dos
elementos que caracterizam essa sociedade distópica, além de outros fundamentos comuns ao gênero: insularismo (a cidade é cercada por muralhas
e sistemas de segurança que impedem a livre circulação); rígida hierarquia (a
organização da sociedade se dá a partir da elite dos comandantes no topo,
seguidos pelos demais homens que tinham e os que não tinham condições
sociais suficientes para ter esposas); militarismo (o Estado se encontra em
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MARTHA S. SANTOS | MARCOS ANTONIO DE MENEZES | ROBSON PEREIRA DA SILVA (ORG.)
guerra permanente); totalitarismo (que faz com que cada setor da vida das
pessoas seja controlado de perto pelo regime); supressão da individualidade (as
pessoas devem agir de acordo com o definido para seu grupo (TROUSSON,
1995, p. 7-54). As mulheres, por exemplo, são classificadas como esposas,
martas, aias e econoesposas, cada qual ocupando uma função determinada e
sendo diferenciada pela cor de suas vestimentas: esposas vestem azul e tem
por função administrar a casa e a família; martas vestem verde e executam
trabalhos; aias vestem vermelho e desempenham funções sexuais com fins
de reprodução; econoesposas vestem as três cores juntas porque são pobres
e devem exercer todas as funções ao mesmo tempo.
Para o historiador Gregory Claeys, antes que as utopias e as distopias
se tornassem futuros imaginados, eram passados imaginários, ou lugares
imaginários, como o Jardim do Éden para os cristãos ou o Novo Mundo para
navegadores europeus no início da Modernidade. Em ambas as situações
uma noção de utopia foi mobilizada para reforçar o senso de coletividade
e oferecer esperança em mundo incerto. Porém, a distância entre utopia
e distopia às vezes não é tão grande e em muitas utopias, desde Platão, a
semente da distopia já está implantada, precisando apenas ser regada em um
ambiente favorável para evoluir da sociedade ideal à sua antípoda (CLAEYS,
2013). Jill Lepore acrescenta que “As distopias seguem as utopias da maneira
como o trovão segue os relâmpagos.” Tendo em mente a realidade americana, acredita que o trovão atualmente está rugindo e que as pessoas tão
ocupadas com “pequenos tiranos” se esquecem “o quão recentemente um
relâmpago aconteceu”. A historiadora cita uma reportagem de maio de 2000
para ilustrar a crença americana em um futuro promissor naquele momento.
Na matéria, o diagnóstico é que os americanos já eram, “como nação, mais
instruídos, mais tolerantes e mais conectados por causa da convergência
da internet e da vida pública” e que “O partidarismo, a religião, a geografia,
a raça, o gênero e outras divisões políticas tradicionais estão dando lugar
a um novo padrão, menos rígido, como princípio organizador.” Para ela,
“esse foi o raio, o lampejo de esperança, a promessa de perfectibilidade” que
agora cede espaço para o trovão da distopia (LEPORE, 2017).
Mesmo sem concordar na totalidade com essa articilação quase
automática entre utopia e distopia, apresentada por Jill Lepore,verificamos
que, em O conto da aia também há um “clarão de relâmpago” que antecede
o “estrondo do trovão” Gilead. A partir de flachbacks da narradora, Ofred,
sabemos que antes da implantação do regime as mulheres levavam uma vida
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HISTÓRIA & OUTRAS ERÓTICAS
normal comparável ao padrão norte-americano do início dos anos 1980.
Elas tinham acesso à formação universitária, ao trabalho, certa liberdade
sexual, acesso a métodos contraceptivos e algumas praticavam aborto em
clínicas cada vez mais comuns para esse fim. O movimento feminista e
questões próprias dele se fazem presentes nesse cenário pré-Gilead. Ofred
recorda que sua mãe era feminista e participava de manifestações públicas
em defesa dos direitos das mulheres (ATWOOD, 2017, p. 146). Moira, sua
melhor amiga, era uma jovem autônoma e também se identificava com esses
ideiais. Antes da “catástrofe” ela trabalhava em um coletivo de mulheres que
“publicavam livros sobre controle de natalidade e estupro e coisas desse
tipo” (ATWOOD, 2017, p. 213). A personagem central da obra não parece
ter sido, “no tempo de antes”, uma mulher muito ligada aos movimentos e
pensamentos feministas. Ela apenas seguia vivendo as liberdades possíveis
às mulheres da época, sem refletir muito sobre sua condição. Contudo,
posteriormente, ao se ver aprisionada na realidade asfixiante das aias,
reflete saudosa sobre o passado, quando tinha controle sobre sua vida, seu
dinheiro, seu corpo e uma família que ela escolheu, numa construção que
se adequa à ponderação de Jill Lepore de que “uma utopia é um paraíso,
uma distopia, um paraíso perdido” (LEPORE, 2017).
Podemos considerar que, nesse ponto, Margaret Atwood constrói
uma relação entre realidade diegética (própria do romanesco) e realidade
empírica (própria da concretude histórica), ao abordar a partir de seu
romance questões trazidas pelo feminismo de “Segunda onda” e os desdobramentos possíveis mediante as críticas que direcionava à sociedade
patriarcal. Enquanto o feminismo dito de primeira onda se manteve atrelado à reinvindicação dos direitos políticos, como votar e ser eleita, o dito
de segunda onda, emergiu no pós-guerra priorizando as lutas pelo direito
ao corpo, ao prazer e contra o patriarcado, fazendo ecoar como palavra
de ordem: “o privado é político” (PEDRO, 2006, p. 269). Nesse sentido, ao
enunciar o privado como político, está se reconhecendo a rede de poder que
envolve historicamente o corpo feminino; está se percebendo que durante
muito tempo homens, sobretudo, elaboraram discursos disciplinadores
para o corpo feminino, instituindo maneiras de ser e de se sentir mulher,
de forma homogeneizada. Sua obra pode ser lida, ao mesmo tempo, como
uma recusa a esse controle, a reivindicação da autonomia e um ataque ao
poder estabelecido. E quando Atwood traz esse debate para o centro do
seu romance, fazendo desse um tema para uma ficção distópica, ela exerce
uma das principais características desse tipo de literatura que é servir de
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MARTHA S. SANTOS | MARCOS ANTONIO DE MENEZES | ROBSON PEREIRA DA SILVA (ORG.)
alerta. Podemos ler O conto da aia, portanto, como um aviso dos riscos
que os direitos e conquistas das mulheres corriam naquele momento histórico. Ainda mais porque a autora observa, em algumas entrevistas, que,
guardadas as devidas proporções, muito da matéria que sustenta a história
imaginada em seu livro já aconteceu a alguma mulher em algum lugar
historicamente situado.
Quando, em O conto da aia, o comandante conta a Ofred o que motivou
a “revolução”, notamos que o que está em jogo, para ele, é mais a perda de
poder que os homens experimentavam ao ter seu patriarcado ameaçado:
“O problema não era só as mulheres [...]. O problema principal era com os
homens. Não havia nada para eles. [...] Incapacidade de sentir. Os homens
estavam perdendo o interesse pelo sexo. Perdendo o interesse pelo casamento” (ATWOOD, 2017, p. 248-249). A maneira de se comportar em
relação às mulheres deveria mudar porque as mulheres haviam mudado.
Mas eles, os homens pré-Gilead, não estavam prontos para mudar, não
queriam mudar, não viam sentido em mudar para se adequar a elas. Daí
eles mudaram toda a sociedade, moldando-a ao seu desejo.
No texto O mal-estar na civilização, de 1930, Freud menciona a noção
de “narcisismo das pequenas diferenças” (FREUD, 2010, p. 81)44 referindo-se
à forma psíquica de ver e sentir tudo o que difere de si mesmo, o “outro”,
como ameaça, podendo-se expressar em relação a etnias diferentes dentro de um mesmo país ou região, comunidades vizinhas entre outras. Se
utilizada para ler a relação aqui expressa entre os gêneros, entre mulheres
(que adquirem direitos e agem de formas variadas e não mais conforme
um estereótipo construído por uma cultura patriarcal) e homens (que não
conseguem enxergá-las fora de um padrão), a noção de “narcisismo das
pequenas diferenças” ilumina um ponto importante para a compreensão
do leitmotiv do regime de Gilead: a intolerância. A intolerância se expressa,
inclusive de forma radical, exatamente quando as diferenças entre os diferentes diminuem. Quando as mulheres passam a se comportar fora da
estereotipia machista, quando seus comportamentos se aproximam do
que se compreendia como exclusivo dos homens elas se tornam alvo de
sectarismo. É quando o “outro” se aproxima demais e se torna espelho que
o narcisismo das pequenas diferenças se manifesta pela aversão, pelo ódio,
pela vontade de disciplinar ou até mesmo eliminar esse “outro”.
44
Formulado por ele anteriormente em O tabu da virgindade (1918) e Psicologia das massas e análise do eu (1921).
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HISTÓRIA & OUTRAS ERÓTICAS
O fato de Margaret Atwood ter imaginado um motivo central para
a implantação do regime totalitário baseado no controle do corpo feminino, quando justamente esse controle se esmaecia notoriamente, nos
faz pensar que ela estava atenta aos perigos que a autonomia desse corpo
representava, historicamente, como sabemos, mas especialmente, na
concretude do seu presente, a sociedade patriarcal do segundo quartel
do século XX. Porque a literatura é capaz de dialogar com a história de
forma dialética: ao refletir conteúdos que nascem da realidade empírica,
mas também, ao propor e antecipar temas que podem ser absorvidos pela
história. Nessa perspectiva, a literatura distópica, enquanto prognóstico,
é, em larga medida, “aviso de incêndio”.
Corpo, perigo, poder
Ao construir uma história de longa duração do conceito “distopia”,
Gregory Claeys recupera a ideia de “monstruosidade” como constituidora
da origem do enredo distópico. A monstruosidade estava conectada ao medo
do mal contido, sobretudo, na figura cristã do diabo, que dominou a Europa
durante boa parte da Idade Média e Modernidade. A existência do medo
foi usada para justificar um imenso sistema opressivo como a perseguição
às bruxas e demais dissidentes, vistos como ameaça “à fé verdadeira”. Esse
sistema foi operado para manter a autoridade de um grupo dominante ao
longo de muitos séculos e serviu para suprimir mulheres, hereges e desviantes de vários tipos das estruturas de poder (CLAEYS, 2018, p. 108-109).
O autor vai além e retoma os nexos da ideia de monstruosidade com
a noção de gênero, sobretudo pelo aspecto sexual que o conceito comporta,
em que a mulher era vista como signo de perigo, a representação ou a encarnação do mal, em uma atualização constante do mito do pecado original.
Na construção desses traços de monstruosidade, a mulher era associada ao
tabu da poluição por causa da menstruação. Os aspectos físicos do corpo
da mulher estariam ainda relacionados ao mal pela presunção de que ela
poderia copular com o demônio. Mulheres denunciadas por feitiçaria e
bruxaria não raro também eram acusadas de terem relações sexuais com
o diabo. Vê-se assim que, o corpo da mulher, dentro da tradição cristã foi
associado à sujeira, à luxúria e às forças do mal.
Gregory Claeys arrola uma série de estudos que identificam nas
mulheres denunciadas por bruxaria mulheres normalmente pobres, solteiras,
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MARTHA S. SANTOS | MARCOS ANTONIO DE MENEZES | ROBSON PEREIRA DA SILVA (ORG.)
viúvas e muitas delas ligadas ao conhecimento da natureza e às práticas de
cura. Eram, portanto, mulheres que viviam por conta própria e justamente
por isso eram vistas como ameaça à estrutura feudal e patriarcal. Elas não
se colocavam sob o domínio masculino e institucional da Igreja, porque
não estavam atreladas a um compromisso pelo casamento.
Como a grande maioria das utopias e distopias não se apega de maneira
central ao aspecto religioso, pelo contrário, em geral são antropocêntricas e
laicas, os temas da família, do casamento e da relação sexual entre homens e
mulheres costuma ser tratado sem muito moralismo. É comum preferirem-se a dissolução das famílias em nome da coletividade regida pelo Estado.
No texto fundador Utopia, de Thomas More, o sexo antes do casamento é
considerado crime, porém, tanto homens quanto mulheres têm o direito de
ver um ao outro sem roupas antes de se casarem, podendo desistir se não
se agradarem do que vêm. Na distopia 1984, de George Orwell, a prática
do sexo é encorajada apenas com fins de reprodução e chega a ser vista
como corrosivo ao regime, pela possibilidade de criação de laços de carinho
entre as pessoas, o que implicaria menos obediência ao Partido. Já em Nós,
de Eugene Zamiatin, e Admirável mundo novo, de Aldous Huxley, o sexo é
praticado de forma quase banal, sem compromisso afetivo: no primeiro, “os
números” podem fazer sexo com quem desejarem, desde que no dia determinado para esse fim; no segundo, o sexo é apenas instrumento de prazer,
já que a reprodução humana é controlada artificialmente. Na verdade, o
tema do sexo e do corpo comumente não é central nesse gênero literário,
apesar de serem perceptíveis. O Conto da Aia representa um desvio na
tradição, ao trazer a questão da opressão das mulheres e do domínio sobre
os seus corpos, pela quase completa alienação, como cerne do enredo. E
ao fazer isso, ela constrói uma linha de continuidade com visões religiosas
passadas que viam o corpo feminino como algo ao mesmo tempo abjeto,
monstruoso e sinal de perigo.
Em seu primeiro romance publicado, Carrie (1974), Stephen King
narra a história de uma adolescente atormentada pelos colegas de escola e
pela mãe ao entrar na menarca. A primeira menstruação de Carrie desencadeia uma série de problemas. Sua mãe, que era uma fervorosa religiosa, a
educava de forma severa, não deixando que Carrie tivesse uma vida comum
de adolescente e nem soubesse o que era menstruação, porque associava à
maldição e ao pecado. Carrie tem seu primeiro sangramento na escola e é
percebida por colegas e professores. Seguem-se repreensões e ataques de
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HISTÓRIA & OUTRAS ERÓTICAS
bulling. Nesse contexto, a personagem Carrie, pode ser vista como símbolo
da feminilidade monstruosa que, embora deite raízes em longa tradição do
passado, é uma ideia que não deixa de se atualizar (KING, 2007).
“Tudo, exceto a touca de grandes abas ao redor de minha cabeça, é
vermelho: da cor do sague, que nos define” (ATWOOD, 2017, p. 16). Esse é
um pensamento que Ofred compartilha com o leitor logo no início da narrativa imaginada por Atwood. Ao seguirmos a leitura, notamos que o centro
de treinamento para as aias, o Centro Raquel e Lea, também é chamado de
Centro Vermelho, e vermelho é também a cor do partomóvel que transporta
as aias nas ocasiões em que uma delas vai parir. Em outra ocasião, Ofred
descreve uma lembrança ao sentir um cheiro familiar, deixando escapar o
peso que a menstruação pode assumir na vida de uma mulher:
Inalo o perfume achando que deveria apreciá-lo. É a fragrância de garotas pré-pubescentes, dos presentes de crianças
para suas mães, no Dia das Mães; o cheiro de meias soquetes
brancas de algodão e de anáguas brancas de algodão, de pó
perfumado para o corpo, da inocência da carne feminina
que ainda não cedeu ao surgimento de pelos e ao sangue.
(ATWOOD, 2017, p. 98).
Na linha de raciocínio que associa a mulher à monstruosidade, o
vermelho, a cor da menstruação, pode ser a cor da luxúria, a cor do perigo,
a cor da morte. Porque em cada menstruação que desce há um filho que se
perde, há uma certa rejeição da vida. Nessa perspectiva, o aborto só pode
ser algo abjeto, deplorável. Por outro lado, esse mesmo vermelho não deixa
de ser também símbolo da vida, se nos ativermos ao fato de que sem menstruação, em geral, não há gestação, não há possibilidade de vida. A existência,
portanto, de todas as pessoas, depende do corpo da mulher, que abriga e
alimenta a todos ao nascer. E essa existência submete-se, em larga medida,
à vontade da mulher, que pode desejar não engravidar, desejar não seguir
com uma gravidez, abortando um princípio de vida que se desenvolveria
dentro do seu corpo. Só a mulher pode se fazer lugar para o outro existir.
Desta forma, ser mulher é sinônimo de poder, poder demais, inclusive, para
administrar sozinha. Por isso, na perspectiva cristã e patriarcal apresentada,
ela passa a ser identificada com o perigo, e um corpo eivado de perigos deve
ser controlado, pelo discurso ou pela força.
Notemos que ao colocar em lados opostos a “inocência da carne
feminina” e o “surgimento de pelos e sangue” de algum modo a personagem Ofred veicula o pensamento de que a mulher, ao iniciar seu período
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MARTHA S. SANTOS | MARCOS ANTONIO DE MENEZES | ROBSON PEREIRA DA SILVA (ORG.)
menstrual, não está ganhando poder ou qualquer outra coisa, pelo contrário, está perdendo: inocência e pureza. Trata-se aqui da atualização da
mentalidade religiosa que associa a mulher à monstruosidade, ao pecado e
ao tabu da poluição, que enquadra o corpo feminino, pelo fato de sangrar
regularmente, a algo sujo e impuro, equiparando a menstruação a outras
secreções do corpo humano, como o pus de uma ferida, podendo trazer
doenças ou atrair maus espíritos (DOUGLAS, 1991, p. 29). Em O Conto
da Aia há uma cena que se passa no Centro Vermelho, quando Tia Lydia,
uma das administradoras da instituição (e colaboradora do regime) condena veementemente a atitude de mulheres pré-Gelead que “mandaram
fazer ligaduras de categute fechando-se ou feriram-se para sempre com
substâncias químicas”, perguntando-se: “Como foram capazes de fazer
uma coisa dessas? Jezebéis! Desprezando a dádiva de Deus!”. Na sequência, acrescenta: eram “mulheres preguiçosas” e “vagabundas” (ATWOOD,
2017, p. 137-138).
Por ter naturalmente o maior dos poderes, “a dádiva de Deus”, capaz
de gerar e abrigar a vida, a mulher, na distopia de Margaret Atwood, deveria
ser controlada e utilizada para garantir a continuidade do grupo social que
dominava o regime. Ao final do romance, quando não se sabe ao certo se
Ofred é resgatada por um suposto grupo de resistência ou se está prestes a
sofrer as punições previstas pelo regime em decorrência de suas “imposturas”
na função de aia, ela conjetura amedrontada, que seria capaz de qualquer
coisa que o regime quisesse, desde que escapasse impune, prometia em
silêncio se anular, se esvaziar de si mesma verdadeiramente, esquecendo
todos os afetos, deixando de reclamar, aceitando o seu destino de aia.
Sei que tudo isso não pode estar certo, mas penso de qualquer
maneira. Tudo que me ensinaram no Centro Vermelho, tudo
a que resisti, flui para dentro de mim numa torrente. Não
quero dor. Não quero ser uma dançarina, com pés no ar,
minha cabeça um retângulo sem rosto de pano branco. Não
quero ser uma boneca dependurada no Muro, não quero ser
um anjo sem asas. Quero continuar vivendo, de qualquer
forma que seja. Renuncio a meu corpo voluntariamente, para
submetê-lo ao uso de outros. Eles podem fazer o que quiserem
comigo. Sou abjeta. Sinto, pela primeira vez, o verdadeiro
poder deles. (ATWOOD, 2017, p. 337-338).
O poder do regime de Gilead é exercido por meio de um conjunto de
instituições materializadas em sujeitos como “comandantes”, “tias”, “anjos”,
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HISTÓRIA & OUTRAS ERÓTICAS
“guardiões”, “olhos”, mas também está presente de forma difusa em cada aia
e em cada marta. Elas temem umas às outras, por não ter como saber ao
certo quem aderiu ideologicamente ao regime ou quem apenas finge ser
crente em seus princípios como forma de se preservar. Isso fazia com que
se vivesse em permanente tensão, em constante sensação de vigilância.
Certa vez Ofred recorda o que Tia Lydia dizia às aias em treinamento: “A
República de Gilead [...] não conhece fronteiras. Gilead está dentro de você”
(ATWOOD, 2017, p. 34).
Esse ambiente tipicamente distópico é eficiente em aterrorizar as
pessoas, fazendo-as sucumbir ao um medo que nem entendem com exatidão. Reside aí, talvez, o maior poder do regime: o de alienar as pessoas
daquilo que elas são, fazendo-as se esvaziar, se submeter, renunciar a si
próprias em nome de um terror permanente e generalizado. No romance
1984, o membro do Núcleo do Partido, O’Brien, explica ao Winston, personagem central da trama, que ele não poderia resistir ao regime, mas
certamente sucumbiria a ele e o amaria, escolheria amar o Partido e o
Grande Irmão. Explica ainda que o que alimenta a estrutura do Partido
é “o poder pelo poder”, não interessa riqueza, vida longa ou felicidade,
e o que diferencia o seu regime das “oligarquias do passado” é que ele
reconhece e assume as suas reais motivações: “o poder em si”, o “poder
puro” (ORWELL, 2009, p. 307-308).
Em O conto da aia há um tratamento interessante dado ao tema do
poder. Há, como dito, a presença de um macro poder, que se nota em todos
os ambientes, afinal, a República de Gilead é totalitária. Mas há também
uma constelação de micropoderes encenados no cotidiano como parte de
uma disputa constante entre as personagens: entre mulheres e mulheres,
homens e homens, mas principalmente, entre mulheres e homens. Ofred
se sentia, às vezes, como um “pertence da casa”, “uma mobília” da casa que
pertence ao comandante. Ele é o dono da casa, ele a possui, como a tudo
que está dentro dela. Possui e mantém sob o seu domínio. Ela não poderia
recusá-lo, não o recusa, reconhece que é dele o verdadeiro poder (ATWOOD,
2017, p. 98; 165).
Em outra ocasião, a personagem Ofred pensa sobre como era ter
tanto poder quando se controlava a si própria, como “no tempo de antes”
quando, mesmo com certos cuidados, ia sozinha à lavanderia lavar as próprias
roupas, com seu próprio sabão, com seu próprio dinheiro, dinheiro que ela
mesma ganhava. Porque a roupa que ela usa na função de aia, não é dela,
131
MARTHA S. SANTOS | MARCOS ANTONIO DE MENEZES | ROBSON PEREIRA DA SILVA (ORG.)
não a pertence, é mais um dispositivo de controle do regime. A roupas das
aias também são chamadas de hábitos, nome que Ofred acha apropriado,
pois, segundo ela, “Hábitos são difíceis de abandonar ou despir” (ATWOOD,
2017, p. 35). As roupas das mulheres são colocadas, nesse contexto, como
símbolo de liberdade ou aprisionamento: se por um lado os hábitos as atam
a um padrão, as roupas das mulheres independentes, que tomam suas próprias decisões são imaginadas por Ofred como portando botões na frente.
Botões e amarrações na parte da frente da blusa sugerem a possibilidade de
desabotoar, de desatar, de se vestir ou desnudar por conta própria, sozinha
(ATWOOD, 2017, p. 35-36).
No dia a dia Ofred opera seus micropoderes porque sente prazer
ao ver-se capaz de exercê-lo. Planeja roubar objetos da casa, detê-los sob
sua posse: um cinzeiro, uma flor desidratada que pudesse esconder nas
pregas do vestido, dentro do sapato ou embaixo da cama, para olhar para
ela, de vez em quando, sentindo com isso que tem poder (ATWOOD, 2017,
p. 99). Remexe os quadris intencionalmente para provocar os guardiões
que não podem ter mulheres ou quaisquer substitutos. E pensa sobre isso:
Então descubro que não estou envergonhada. Aprecio o
poder; o poder de um osso de cachorro, passivo mas presente.
E espero que fiquem de pau duro ao nos verem e que tenham
que se esfregar contra as barreiras pintadas, às escondidas
(ATWOOD, 2017, p. 33).
Constatamos que, em O conto da aia o poder se exerce principalmente
sobre os corpos e por meio dos corpos das mulheres. Seus corpos são objetos,
mas também instrumentos de poder. Ao mesmo tempo em que a alienação
de seus corpos, pelo controle de outros sobre eles, as mortifica, aprisiona,
também as concede momentos de vivificação, pela possibilidade de usarem
seus corpos como se desejam, mesmo que sob os condicionamentos do
regime. Há um “biopoder”, no sentido de “administração dos corpos e gestão calculista da vida” (FOUCAULT, 2006, p. 152), na distopia de Margaret
Atwood, que é macro, ao ser exercido de forma difusa pelo Estado; mas há
também um que é micro, percebido e operado no cotidiano dos pequenos
prazeres, pelos personagens individualizados.45
Para uma boa leitura sobre o conceito “biopoder”, a partir de uma perspectiva comparativa entre Michel Foucault
e Hannah Arendt, ver o texto de Aruanã Antônio dos Passos em: Novos caminhos em velhos mapas: cultura,
política & historiografia. Organizado por Ana Lorym Soares, Eduardo Henrique Barbosa de Vasconcelos e Edson
Arantes Júnior. São Leopoldo-RS: Oikos; Anápolis-GO: Editora UEG, 2014. p. 79-100.
45
132
HISTÓRIA & OUTRAS ERÓTICAS
“O diabo mora nos detalhes”
Na sociedade imaginada por Margaret Atwood, muitas atitudes que
outrora eram comezinhas agora estão proibidas: não se permite, por exemplo,
ter livros, revistas, filmes ou discos em casa, só a Bíblia. Imagina-se que todos
esses materiais haviam sido destruídos no início do regime. No entanto,
o comandante tem uma biblioteca inteira em casa, às escondidas. Porque
ele se permite transgredir as regras que teria ajudado a criar, como um dos
supostos idealizadores de Gilead. Mas essa não é a única transgressão que o
ele comete: o comandante leva sua aia Ofred para o seu escritório, quando
esse tipo de aproximação é terminantemente proibido. Nos encontros, o
comandante faz concessões a Ofred, joga com ela e dá revistas e livros para
ela ler, enquanto ele a assiste. Ele gosta de vê-la lendo o que ele oferece.
Certa noite, pela primeira vez, Ofred teve permissão para escrever algo.
Pegar a caneta entre meus dedos é sensual, parece quase
viva, posso sentir seu poder, o poder que as palavras contêm.
Inveja da Pena, diria Tia Lydia, citando mais um dos lemas do
Centro, advertindo-nos a nos manter longe de tais objetos.
E elas estavam certas, é inveja. Só tê-la na mão é inveja. Eu
invejo a pena do Comandante. É mais uma coisa que gostaria
de roubar (ATWOOD, 2017, p. 222-223).
Na distopia em foco, a escrita, a palavra, o discurso são vetados às
mulheres, a todas as mulheres, exceto às tias. “Que a mulher aprenda em
silêncio com toda a sujeição”, lê o comandante os fundamentos religiosos
para a audiência feminina: sua esposa e sua aia. Continua: “Mas não tolerarei
que uma mulher ensine, nem usurpe a autoridade do homem, apenas que
se mantenha em silêncio” (ATWOOD, 2017, p. 262). “Bem-aventurados os
que se calam”, brada Tia Lydia para as aias no Centro Vermelho (ATWOOD,
2017, p. 109). No “tempo de antes” a esposa do comandante fazia discursos, escrevia livros, tinha programa de televisão, era boa oradora. Seus
discursos eram sobre a santidade do lar, sobre como as mulheres deveriam
ficar em casa, embora ela mesma não ficasse, observa Ofred. Na sociedade
ultra patriarcal de Gilead até a esposa do comandante se tornou incapaz
de falar, não faz mais discursos, suas palavras foram levadas a sério e ela
foi silenciada (ATWOOD, 2017, p. 58). O lugar da mulher, portanto, é o do
silêncio, da escuta, da subordinação.
Na obra já mencionada, Freud diz que enquanto nas civilizações
modernas os homens pertencem ao mundo da cultura, desempenhando
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tarefas difíceis que exigem sublimação, as mulheres pertencem ao lar,
representam os interesses da família e do sexo. As mulheres não são muito
capazes de sublimação, acrescenta, no máximo, tramam os tecidos com
que cobrem a sua castração (FREUD, 2010, p. 67). Mesmo sem concordar
com o teor da afirmação de Freud, visto que quando ele escreve já havia
certa ruptura com esse padrão de comportamento feminino e masculino,
operemos com a ideia de castração feminina que ele expressa. A “angústia
da castração”, se compreendida como metáfora da ordem cultural, implica
proibição (ROUDINESCO; PLON, 1998, p. 106). As mulheres não têm
as mesmas possibilidades que os homens têm diante da vida, e por isso
os invejam. Ofred inveja a pena do comandante, seria algo que roubaria
dele, se pudesse. A alusão ao complexo de castração por meio da expressão
“inveja da Pena” (em Freud, “inveja do pênis”) é clara. Atwood retoma esse
ponto várias vezes em seu romance, sua personagem principal e narradora,
reconhece que o comandante, e os homens, por conseguinte, têm algo que
as mulheres não têm: a palavra; e lamenta por tê-la desperdiçado quando
podia exercê-la, no mundo pré-Gilead (ATWOOD, 2017, p. 109).
Ao considerar a realidade histórica, consideramos que, mesmo o século
XX tendo sido em muitos aspectos libertador para as mulheres, no campo
da escrita e da arte, uma certa estereotipia insiste em permanecer. Ricardo
Piglia, em um texto instigante, nos permite observar como Franz Kafka, por
exemplo, atava a figura feminina ao lugar da espera, como leitora ideal. Em sua
relação epistolar, sobretudo com Felice Bauer, nota-se a emergência de uma
idealização da mulher, vista como aquela que complementaria a condição de
isolamento ideal para a escrita: uma mulher que espera, uma mulher leitora,
uma empregada. Felice Bauer desempenha, por um tempo, esse papel triplo.
Kafka desejava que ela esperasse suas cartas com desabafos sobre a escrita
e orientações sobre o serviço ela deveria fazer, gratuitamente; ele desejava
que ela lesse seus textos e comentasse-os generosamente, mostrando-se
transformada por eles; ele desejava que ela copiasse seus manuscritos (ela
era datilógrafa profissional), trabalho que ele não se dignava a fazer, pois
via a escrita como algo artesanal, quase orgânico. Assim, Felice Bauer é para
Kafka, a mulher ideal: leitora-copista-passiva-empregada. Piglia aponta a
figura da empregada como de grande interesse na literatura de Kafka. A
empregada é quase a única figura da mulher (com suas transformações) que
aparece nas narrativas do escritor tcheco com uma função muito concreta
na trama. “Essas criadas vulgares rondam as cenas masculinas e têm algo
em comum com as prostitutas. Basicamente, uma mulher a quem paga para
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HISTÓRIA & OUTRAS ERÓTICAS
que nos atenda. A empregada, figura social clássica na família de classe
média, é também figura de iniciação nesse âmbito” (PIGLIA, 2006, p. 58.).
De algum modo, todas as mulheres no romance de Margaret Atwood
são empregadas, cada uma delas, contudo, desempenha uma função específica. Mas todas servem aos homens: as tias são empregadas do regime
patriarcal, as esposas, martas e aias servem diretamente aos comandantes.
Obviamente aqui a intenção e o efeito são diferentes da literatura de Kafka.
Atwood produz uma paródia, uma sátira do mundo idealizado pelos homens.
Trata-se de uma tradição, registra Piglia, a idealização da mulher como
leitora fiel, que vive a sua vida para ler e copiar o manuscrito do homem
que escreve. Sofia Tolstói copiou sete versões completas de Guerra e paz.
Quando concebia ao mesmo tempo Crime e castigo e O jogador, Dostoiévski
contratou uma datilógrafa, Anna Giriegorievna Snitkine, com quem se casou.
Véra Nabokov redigia cartas em nome do esposo famoso, era sua copista,
ajudante. Borges teve uma série de secretárias que copiavam os textos que
ele as ditava. Nora Joyce, porém, era o inverso das outras: recusava-se a ler
uma só página escrita pelo marido e nem se dava conta de que o romance
Ulisses transcorre em um só dia, 16 de junho de 1904, como recordação do
dia em que os dois se conheceram (PIGLIA, 2006, p. 67-68).
Ingrid Schwamborn, em texto sobre a obra de Stefan Zweig, observa
que em seu livro de recordações, o escritor austríaco fala unicamente de
“europeus” e nunca de “europeias”, a rigor, não pensava em mulher alguma:
sua primeira mulher, Friderike, “só é mencionada duas vezes de passagem
numa oração subordinada”, e sem referência ao nome; e Lotte, sua segunda
“futura companheira”, que “datilografou a obra em sua máquina de escrever portátil”, não é mencionada a não ser indiretamente, quando registra
que por coincidência ele contraiu “um segundo casamento” no dia em que
irrompeu a Segunda Guerra Mundial. Schwamborn aponta que, com apenas
uma exceção, nas páginas das memórias de Zweig, que considera muito bem
escritas, nenhuma mulher é mencionada pelo nome: “A mulher só aparece
aí – quando aparece – em um plural sem rosto, como “damas”, “moças”,
“mulheres”, “criadas”, “prostitutas”, num mundo europeu de escritores,
pensadores, músicos, de homens que transformam o mundo, e guerreiros”
(SCHWAMBORN, 2000, p. 28).
Com efeito, é forçoso perceber que o lugar atribuído à mulher por
parte significante da literatura ocidental, em geral não tem sido adequado ao
que elas lutaram para conquistar, desde o século XIX, mas principalmente,
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MARTHA S. SANTOS | MARCOS ANTONIO DE MENEZES | ROBSON PEREIRA DA SILVA (ORG.)
ao longo do século XX. A obliteração, a redução e a subordinação aparecem
como lugar comum. No caso das “mulheres de escritores”, mesmo quando
o registro muda da leitora-copista (Felice Bauer) para a musa inspiradora
(Nora Joyce), há que se observar um certo aprisionamento, a determinação
de um espaço periférico, acessório na cena literária. Tanto na mulher fatal
e arredia que inspira e que se recusa a ler, como na mulher dócil que copia,
há uma forma de servidão, estão a serviço da escrita masculina (PIGLIA,
2006, p. 68).
Em algumas das distopias mais conhecidas do século XX o tratamento
dado à figura feminina não foge a essa tradição. Em Nós, as personagens
femininas são reduzidas à formas corporais que se movimentam e fornecem
prazer gratuito; em 1984, Júlia, uma das poucas mulheres que tem um nome
identificável na trama, não passa da representação da figura idealizada da
jovem sexualmente estimulante, mas intelectualmente limitada que se entedia
facilmente com grandes questões; em Fahrenheit 451, a esposa do bombeiro
Montag e suas amigas são fúteis e abjetas, e a adolescente Clarisse, um ser
quase descarnado, é uma espécie de musa que o faz despertar do torpor e o
guia na resistência ao regime; e em Androides sonham com ovelhas elétricas?,
o caçador de androides Rick Deckard, ao se questionar sobre a diferença
entre os humanos e máquinas humanoides considera estes mais vivos do
que sua apática esposa, e de fato, Iran, confinada às cenas domésticas, vive
em torpor quase permanente, escolhendo pelo “sintetizador de ânimo”
permanecer em profunda depressão.
Em O conto da aia a personagem central é uma mulher, é ela quem
narra, a história é contada sob sua perspectiva, as grandes e pequenas questões que o romance desenvolve são enunciadas por ela. Por esse aspecto
a obra de Margaret Atwood já implica uma inflexão importante na cena
literária distópica.
Nas primeiras décadas do século XX, Virginia Woolf se debatia com
críticos literários que diminuíam a contribuição feminina nas letras. Em
1905 publicou uma resenha da obra A nota feminina da literatura, do escritor
inglês William Leonard Courtney (1850-1928). Woolf rebateu os argumentos apresentados por ele de que “as mulheres raramente são artistas devido
à paixão que têm pelo detalhe, o que entra em conflito com a proporção
artística correta da obra”, dado que a escrita feminina, na opinião do crítico,
se destaca por um “trabalho de cerrada análise em miniatura”, saindo-se
melhores “quando reproduzem do que quando criam” (WOOLF, 2016, p. 22).
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HISTÓRIA & OUTRAS ERÓTICAS
Observa-se que da mesma forma que nos ditos pequenos ou grandes
escritores ocidentais a tópica da inaptidão das mulheres para a vida da
cultura, para a arte e para a literatura é recorrente. O Sr. Courtney, a quem
Virginia Woolf rebateu, chegou a dizer que parecia evidente que o declínio
do romance enquanto obra de arte se devia à “quantidade cada vez maior de
romances escritos para mulheres” (WOOLF, 2016, p. 23). Na interpretação
dele, a inserção da mulher na literatura, como escritora ou como leitora,
implicava a deterioração da arte.
Ao conversar com o comandante, no escritório, a personagem Ofred
ouve dele, em tom de pilhéria, que as mulheres não sabem somar, pois “para
elas, um mais um mais um mais um não fazem quatro”, mas “apenas um
mais um mais um mais um” (ATWOOD, 2017, p. 222). Ou seja, mulheres
não são capazes de abstração. Já no apêndice que a autora inclui no seu
romance, chamado “Notas Históricas Sobre O Conto da Aia”, a escrita
feminina é a todo momento colocada sob suspeita. Imaginando que a
República de Gilead tivesse evoluído e se consolidado historicamente, no
espaço diegético, Atwood cria uma cena em que um historiador gileadiano,
do futuro, analisa os registros deixados por Ofred, que corresponderiam
ao romance que o leitor acaba de ler. Nesse exercício metaliterário, vemos
o historiador expor suas pesquisas em uma palestra intitulada “Problemas
de Autenticação com Relação a O Conto da aia”. O historiador se recusa a
usar o termo “documento” para os relatos que ele reconhece expressarem
uma voz feminina; ele considera a possibilidade do relato se tratar de falsificação porque, segundo ele, vários registros daquele tipo tinham vindo à
tona anteriormente por editores sensacionalistas; e por fim, o historiador
admite a possibilidade de “o conto da aia” não passar de “lendas não especificamente edificantes” (ATWOOD, 2017, p. 351-366).
Tanto na ficção de Margaret Atwood quanto nos textos dos escritores supracitados, de modo invertido, há um modelo de pensamento que se
repete e que é sustentado por um pressuposto cognitivo. A literatura constrói
lugares, formas de pensar, maneiras de ver o mundo. E na maior parte dos
textos apresentados a voz feminina é, em geral, suspeita porque a mulher
não é considerada capaz de sair da obviedade dos dados para empreender
uma abstração; a mulher não poderia ser romancista por focalizar o detalhe em detrimento da proporção que a obra de arte exige; a mulher seria
melhor ao reproduzir, copiar (obras feitas por homens, certamente) do que
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quando cria por si; a mulher seria a leitora ideal e o homem o escritor ideal;
a mulher pertenceria ao mundo da casa e o homem ao mundo da cultura.
Temos de considerar que, mesmo com especificidades de tempo e
de lugar, na civilização moderna, a ciência e as letras herdam o prestígio
que outrora foi da religião na tarefa de explicar o mundo. E se no tocante à
diferença entre os gêneros, no passado dominado pela ideologia religiosa e
pela metafísica, a mulher foi tida por inferior por estar associada ao corpo,
ao pecado e ao monstruoso que deveria ser controlado; o homem estava
conectado às ideias de espírito, essência, causa eficiente que deveria conformar as coisas e controlar os desviantes. A evolução desse pensamento
mantém atualizada a dicotomia que aprisiona homens e mulheres em estereótipos: mulheres são inferiores porque são ligadas à emoção, ao específico,
ao familiar, enquanto homens são superiores porque são mais racionais,
representam o universal e se interessam pela essência das coisas. Notamos
aí uma dimensão cognitiva e uma moral que são utilizadas, consciente ou
inconscientemente, para embasar o lugar de subalternidade da mulher na
cultura ocidental. Esse pensamento é facilmente adaptável para justificar
outras hierarquias historicamente estabelecidas: povos civilizados e não
civilizados, regiões centrais e regiões periféricas, caucasianos e não caucasianos. A lista pode ser extensa e explicita como, ao longo do tempo e em
diferentes lugares, temos nos tornado especialistas em definir os nossos
“outros, transformando diferença em desigualdade.
Conclusão
Na chave de leitura proposta pelos historiados Jill Lepore e Gregory
Claeys de que a utopia pode ser vista como o paraíso imaginado e a distopia
como o paraíso perdido, O conto da aia, enquanto exemplar da literatura
distópica, pode ser compreendido como um prognóstico de tempo, uma
antecipação de um futuro possível. Futuro esse marcado pelo pessimismo em
relação à evolução das relações de poder entre os gêneros e das conquistas
dos direitos femininos. Ao construir seu prognóstico, Atwood opera uma
projeção temporal, tal como já teorizada por Reinhart Koselleck (2014, p.
192), que parece extrair sua evidência de experiências já concretizadas,
processadas e registradas historicamente. Não é ficção pura, pelo contrário,
parte de uma combinação entre múltiplos dados da experiência, mas que
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HISTÓRIA & OUTRAS ERÓTICAS
ela apresenta como ameaça ao futuro próximo, constituinte do “horizonte
de expectativa” possível para a sociedade da época em que escreve.
No texto, ela constrói, sob a fabulação, uma crítica à estrutura patriarcal da sociedade moderna da segunda metade do século XX. Dialoga com
o pensamento feminista vigente nos anos 1970 e 1980 e reverbera que o
privado é político, o corpo é político. Nesse sentido, a questão da perspectiva
pela qual o romance é narrado faz toda a diferença. Aqui, a personagem
central é uma mulher, é ela quem narra e as grandes e pequenas questões
que o romance encerra são enunciadas por ela. Por essa circunstância ao
mesmo tempo estética e política, a obra de Margaret Atwood já realiza uma
importante variação na cena literária distópica do século XX.
Reconhecemos, contudo, que seu trabalho tem um alcance ainda maior.
Não exatamente por ser, do ponto de vista literário, uma obra grandiosa
(não é o caso), mas porque nos permite refletir sobre toda uma tradição do
gênero utopia/distopia, mas não só, que estabelece a mulher como sujeito
subalterno. Fato que ocorre quando ela mobiliza, pela sátira, vários lugares
comuns que sustentam um argumento machista que impregna textos de
escritores reconhecidos pelo cânone. Ela não faz isso diretamente, mas ao
insinuar, de modo às vezes sutil, a relação que pode ser operada entre sua
obra e uma produção literária mais ampla. Por fim, lembramos que esses
lugares comuns não são dados naturais da realidade, eles são produzidos
como respostas a interesses historicamente situados e se conectam a um
modelo epistemológico hegemônico que remonta à antiguidade, desde Platão
e Aristóteles, passando pela tradição cristã na Idade Média e Modernidade,
mas que de algum modo ainda se faz observar no pensamento e literatura
do século XX, mesmo que de forma difusa.
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