ENTREVISTA
O Despertar de Tudo no Brasil. Uma
entrevista com David Wengrow
Maria Luísa Lucas1
Carlos Fausto2
Leonardo Marques3
Fernando Ozorio de Almeida4
Universidade de São Paulo, Museu de
Arqueologia e Etnologia. São Paulo, SP,
Brasil.
2
Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Museu Nacional. Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
1
Universidade Federal Fluminense, Instituto
de História. Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
3
Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
Departamento de Arqueologia. Rio de
Janeiro, RJ, Brasil.
4
E-mails: cfausto63@gmail.com;
mlucas@usp.br; lm@id.uff.br;
fernandozorio@hotmail.com
David Wengrow é professor de
Arqueologia Comparada no Instituto
de Arqueologia da University College
London (UCL). Ele se graduou
em arqueologia e antropologia na
Universidade de Oxford, onde fez também seu doutorado. Desde que ingressou na UCL, atuou ainda como professor
visitante nas Universidades de Nova
York, Auckland, Freiburg e Cologne.
Ao longo de sua carreira, conduziu
trabalhos de campo arqueológicos na
África e no Oriente Médio e é autor de
livros como The Archaeology of Early
Egypt: Social Transformations in NorthEast Africa, What Makes Civilization?
The Ancient Near East and the Future of
the West e The Origins of the Monsters:
Image & Cognition in the First Age of
Mechanical Reproduction. Estas e outras
de suas publicações versam sobre temas
como as origens da escrita, a arte antiga,
as sociedades neolíticas e o surgimento
das primeiras cidades e Estados. Junto
com o antropólogo David Graeber, é
autor de The Dawn of Everything: A New
History of Humanity, publicado em 2022
no Brasil pela Companhia das Letras
sob o título O Despertar de Tudo: uma
nova história da humanidade.
Em outubro de 2023, David
Wengrow visitou o Brasil para uma
série de eventos sobre este livro. Na ocasião, o Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social do Museu Nacional
organizou, no Colégio de Altos Estudos
da UFRJ, o evento “O Despertar de Tudo
no Brasil: uma conversa com David
Wengrow”, no qual também estiveram
presentes Carlos Fausto, Maria Luísa
Lucas, Leonardo Marques e Fernando
Ozorio de Almeida. Com a mediação
de Luiz Costa, do Programa de PósGraduação em Antropologia Social
do Museu Nacional/UFRJ, cada participante apresentou ao público um
comentário crítico a respeito da obra
e, em seguida, David Wengrow reagiu
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O DESPERTAR DE TUDO NO BRASIL. UMA ENTREVISTA COM DAVID WENGROW
espontaneamente. Na transcrição e na
tradução do debate que segue, eles conversam sobre antropologia, arqueologia
e história, discutindo tanto conceitos
como humanidade, civilização, liberdade, criatividade e autonomia quanto
autores que influenciaram o processo
de escrita da obra e os planos futuros de
Wengrow após o falecimento precoce
de seu amigo David Graeber. Tradução
de Maria Luísa Lucas.
Leonardo Marques: Uma das maiores contribuições de O Despertar de
Tudo é limpar o terreno ideológico
que ficou entranhado nas ciências
sociais, com o questionamento radical
de diversas narrativas evolucionistas e
eurocêntricas que continuam a permear
trabalhos populares até o presente.
Ao fazê-lo, a obra oferece um novo
olhar sobre temas clássicos como a
discussão a respeito de Teotihuacan
e os Tlaxcaltecas, ou a reconsideração
dos quipus andinos não apenas como
simples instrumentos do império, mas
também como ferramentas para o armazenamento de narrativas e canções. Esta
discussão imediatamente me remeteu a uma bela passagem de As Hiper
Mulheres, documentário de Takumã
Kuikuro, Leonardo Sette e Carlos
Fausto, no qual uma mulher indígena
canta algumas canções com seu pai
com base em um conjunto de pequenos
galhos que lembram muito os quipus, o
que não apenas fortalece o argumento
dos autores a respeito destes, mas também nos ajuda a transcender a divisão
clássica entre impérios nas terras altas
dos Andes e os grupos descentralizados
da Amazônia. Estes são apenas alguns
dos muitos exemplos de como temas
clássicos podem ser explorados de
novas maneiras a partir do abandono
de narrativas estadocêntricas.
Uma das estratégias para fazer isso
é a reconsideração do conceito de civilização, que vocês incorporam de Marcel
Mauss de modo a questionar os usos
clássicos do termo, geralmente associado a Estados, hierarquias, grandes
monumentos etc. A partir disto, podemos então falar de uma civilização
andina ou uma civilização mesoamericana sem necessariamente associá-las
aos Astecas, Incas, ou qualquer outro
império pré-colombiano. Isto também
não está distante, acredito, da ideia
de “áreas de cultura” ou “círculos de
cultura”, que vocês usam em outros
momentos do livro. Nos dois casos,
penso que estes conceitos não apenas
nos ajudam a abandonar o foco clássico
em Estados e grandes monumentos,
mas também a entender as diferenças
no tempo e no espaço, já que podemos
pensar em diferentes civilizações ou
círculos de cultura.
Ao mesmo tempo, contudo, o livro
oferece uma visão específica de humanidade, que certamente não é o individualismo metodológico das teorias
da modernização, mas que não deixa
de ser uma interpretação da humanidade, como podemos ver quando
vocês argumentam que “uma das coisas que nos diferenciam dos animais
não humanos é que eles produzem
única e exclusivamente aquilo de que
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precisam; os seres humanos produzem
sempre mais”. Da mesma forma, há um
esforço para se construir um modelo,
em parte inspirado em Lévi-Strauss e na
sua observação da sazonalidade entre
os Nambikwara, que vocês usam de
forma brilhante para entender outros
povos, em outros lugares e épocas, mas
que no fim leva a um dos argumentos
que permeiam o livro, qual seja, o da
sazonalidade como uma característica
recorrente das sociedades humanas (e
daí as diferentes combinações entre
formas elementares de dominação e
as três liberdades primordiais).
Me parece haver uma tensão entre
esse esforço em entender a história
da humanidade em termos amplos e a
discussão de diferenças que as ideias
de círculos de cultura ou civilização
ajudam a destacar. A minha questão é:
não há o perigo de achatar as diferenças de modo a ignorar formas que não
se enquadrem nesses modelos (como
a ideia dos humanos como criaturas
do excesso)? Também me pergunto,
contudo, se isso não é um movimento
inevitável ao escrevermos uma história
da humanidade, como vocês fazem aqui.
Afinal de contas, uma coisa é explorar
a fundo a história de um grupo específico da Amazônia ou de Yucatán de
modo a enfatizar a diferença, mas algo
completamente diferente é contar uma
história da humanidade em que esses
lugares e povos são apenas componentes de uma narrativa maior. Talvez seja
impossível fazer isto sem achatar tais
diferenças. Gostaria de ouvir mais de
você a respeito dos desafios inerentes
à escrita de uma obra com o escopo de
O Despertar de Tudo.
David Wengrow: Agradeço ao meu
grande amigo Luiz Costa pela organização desta conversa, a todas as pessoas
envolvidas na realização deste evento
e aos meus amigos que aceitaram vir
aqui hoje e conversar sobre o livro. Eu
realmente agradeço.
Para começar, devo dizer que não
sou especialista em arqueologia ou
antropologia das Américas em nenhum
aspecto. Na verdade, se você tivesse
me dito há quinze anos que eu escreveria um livro desse tamanho, provavelmente pelo menos 60% dele dedicados às Américas, eu teria dito que você
enlouqueceu. Mas o problema com meu
amigo David Graeber é que ele tinha
um jeito muito contagiante e, quando
ele se agarrava a uma pergunta, tinha
que seguir a resposta até onde ela o
levasse. E as perguntas que fazíamos
nos levavam a direções completamente
distantes de nossas áreas de trabalho de
campo e de especialização.
David [Graeber] fez a maior parte
de seu trabalho antropológico em
Madagascar, mas também era muito
generalista e gostava da comparação.
O meu próprio trabalho de campo foi
realizado principalmente no nordeste
da África e no Oriente Médio, mas também não tenho muito o perfil de um
especialista e tendo a vagar por aí. Foi
assim que chegamos a esses assuntos.
Pensando no capítulo sobre o México,
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por exemplo, a maior parte dele era
nova para nós, e eu ficava constantemente surpreso.
Uma das vantagens de ter a sorte
de trabalhar em uma grande universidade metropolitana, como a que eu
trabalho em Londres, é que é muito
fácil encontrar especialistas. Se você
tem uma pergunta sobre as primeiras
fontes coloniais espanholas, no final do
corredor há Elizabeth Paquedano, que
pode lhe dizer tudo sobre o assunto. E
eu de fato ficava constantemente surpreso com o quanto muitas dessas fontes eram negligenciadas, algumas das
quais considerávamos extremamente
importantes. Às vezes, chegava a ser
ridículo. Lembro-me de quando me
deparei com uma das antigas crônicas
de um acadêmico espanhol que, na
verdade, foi um dos primeiros reitores
da Universidade do México no século
XVI, chamado Cervantes de Salazar. Ele
foi patrocinado pelo governo colonial
espanhol para escrever uma crônica,
conseguiu financiamento para o trabalho de campo e foi a Tlaxcala, onde
Cortés havia formado uma aliança antes
de invadir Tenochtitlan. Ele entrevistou
os filhos e os netos de pessoas como
Xicotenca, o Velho, que de fato participou do parlamento de Tlaxcala e
debateu a chegada dos europeus.
Por definição, qualquer pessoa
pensaria que esta deve ser uma obra
de importância monumental para a história mundial. Contudo, ela não existe
em nenhuma edição moderna, nem em
espanhol moderno e muito menos em
inglês. Além disso, não há comentários
críticos, não há nada. E se meu espanhol moderno já é ruim o suficiente,
meu espanhol antigo é ridículo. Isto
se tornou cômico em dado momento.
Nós nos pegamos literalmente colando
pedaços de texto no Google Tradutor
e dizendo: “Isso não pode estar certo.
Não é possível que seja o que parece
ser. Onde estão os comentários, as resenhas? O que estamos deixando passar?
Será que isso se deve à nossa incompetência linguística?”. Mas, então, você
conversa com especialistas no assunto
e eles dizem: “Na verdade, não. Muitas
dessas coisas simplesmente desapareceram com a Inquisição”.
Este texto específico [de Cervantes
de Salazar] foi escavado na Biblioteca
Nacional de Madri em 1910 por uma
mulher chamada Zelia Nuttall, que foi
uma grande descobridora de códices
perdidos. Ela escreveu o único ensaio
crítico sério sobre esta obra. Sabe, há
uma expressão em inglês que diz que
“os tolos correm para onde os anjos
temem pisar”. Então pensamos: “Que se
dane. Vamos usá-la, colocá-la em destaque e dizer: ‘Bem, esse material é importante’”. E, posteriormente, quando fui
convidado para eventos e conheci acadêmicos que são grandes especialistas
neste tipo de coisa, eu lhes perguntei:
“Eu posso ler algo deste material? Por
que vocês não produzem uma tradução
moderna?”. Mas a resposta sempre foi
que não podemos porque não há financiamento para a publicação e ninguém
de fato tem a expertise para fazê-lo.
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A gente nem sequer imaginava tudo
isso antes. Quero dizer, acho que realmente existem esses corpos inteiros de
evidências que, de alguma forma, passaram despercebidos pelo establishment
acadêmico e que de fato valem a pena
ser trazidos à tona novamente. Isto é
algo muito interessante a se fazer. Por
exemplo, eu nunca fui a Teotihuacán.
Nunca estive lá. Nós dois queríamos ir,
pouco antes da pandemia, mas nunca
conseguimos. Sei que o lugar se transformou num tipo de atração turística
terrível, mas se você puder ir quando
arqueólogos estiverem lá, imagino que
seja mais divertido. Esta é uma das áreas
em que eu adoraria ter entrado em mais
detalhes no livro, porque há muitas
informações novas surgindo.
Por exemplo, ontem mesmo eu conversava sobre as interfaces que existem
entre os Andes e a Amazônia, especialmente no caso da Bolívia. Jason Nesbitt
e Ryan Clasby lançaram um volume
sobre isto recentemente. Na verdade,
eles estão voltando a uma teoria que
tem mais de cem anos. Acho que o primeiro arqueólogo indígena do Peru foi
um homem chamado Julio César Tello,
que tem um obelisco com seu nome – o
obelisco de Tello é um monólito no estilo
Chavín de Huantar. Bom, o que Tello
fez não é exatamente iconografia. Na
verdade, ele identificou alguns vínculos
claros nesse tipo de arte quimérica de
Chavín que apresentam imagens dos
empréstimos e até mesmo representações de flora e fauna que não são nativas
das Terras Altas. Mas esta se tornou
uma daquelas teorias que todo mundo
descartou. Ela foi meio que desacreditada e todos se esqueceram dela. Porém,
parece-me que agora as pessoas estão
falando sobre este assunto novamente,
e será incrivelmente interessante se ele
retornar à discussão.
Então, sobre sua pergunta, sobre a
ideia de “civilização”. Uma das coisas
que começamos a tentar fazer no livro
é ver se poderíamos dar alguns passos
para resgatar o conceito de civilização
daquilo que poderíamos chamar de
“sociologia da dominação” e recuperá-lo em prol de uma “sociologia da
liberdade”. Como seria isso? Nós nos
baseamos parcialmente em Marcel
Mauss e em seus ensaios, que andaram
meio esquecidos até bem recentemente.
Houve uma nova edição maravilhosa dos escritos de Mauss das décadas de 1910 e 1920 sobre civilização.
Essencialmente, a civilização, no sentido em que tentamos desenvolver o
termo, é a primeira de nossas três liberdades. Portanto, no livro, apresentamos
um argumento, mas ele não é realmente
um argumento. O livro não está completo, não é um trabalho finalizado. Ele
sempre teve a intenção de ser uma espécie de introdução. O filósofo favorito
de David [Graeber] se chamava Roy
Basker, e ele gostava desta expressão:
“limpar o mato”. Como quando você tira
as teias de aranha e todo o lixo depois
de se livrar da vegetação. Como quando
você está caminhando na selva e precisa
tirar todo o mato do caminho. “Abrir
a picada”. Sim, este livro é algo como
“abrir a picada”.
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Estamos tentando eliminar todo o
lixo que vem junto com as descobertas científicas genuínas. Há muito lixo
filosófico que fica por aí por centenas
de anos e ninguém se preocupa em criticá-lo. Então, queríamos varrer tudo
isso, ver o que resta e quais outras perguntas poderíamos fazer sobre a história humana em grande escala. A mais
importante a que chegamos foi sobre
a natureza das liberdades, as liberdades humanas e as liberdades sociais.
Então, identificamos e sugerimos três
formas de liberdade que ainda são apenas uma hipótese que precisa ser mais
bem explorada. De toda forma, sugerimos que elas tenham sido, na verdade,
muito comuns ao longo da configuração
das sociedades humanas em praticamente qualquer lugar fora da sombra
do Estado-nação moderno.
A primeira liberdade é a liberdade de se mover, de se afastar de seu
ambiente e ser recebido em outro lugar.
Portanto, não se trata apenas de mobilidade, mas também de hospitalidade ou
asilo. A segunda liberdade é a liberdade
de desobedecer a comandos arbitrários
e não ser punido, mas sim ouvido. E é
assim que de fato concebemos a base da
democracia participativa, com a pessoa
podendo se afastar e desobedecer. E a
terceira liberdade, a mais importante, é
a liberdade de realmente desmantelar
os ordenamentos sociais específicos em
que você vive e construir algo diferente.
Levantamos a hipótese de que a liberdade número três é realmente baseada,
de um ponto de vista operacional, nas
outras duas liberdades. Para nós, o
colapso destas leva, em última análise,
ao colapso da terceira e a uma condição
que chamamos de “ficar preso”, seja em
um modo de produção específico ou em
um conjunto específico de arranjos hierárquicos. Portanto, a civilização, como
nós usamos o termo, é basicamente a
primeira liberdade. É nesse ponto que as
áreas culturais se tornam importantes.
Trata-se de tentar capturar esse conjunto de evidências sobre essas grandes distribuições de cultura, algo que é
uma característica tão óbvia e marcante
do registro arqueológico e do registro
etno-histórico: formas de domesticidade, formas de ritual, formas de culinária e processamento de alimentos. Elas
abrangem regiões enormes, muito maiores do que um Estado-nação moderno,
mas que não temos uma linguagem para
descrevê-las. Assim, não estamos apenas desafiando a ideia de civilização
como dominação, mas também sua ligação com as ideias de “urbanização” e de
“cidade” – já que, em última análise,
entendo que a etimologia de “civilização” vem de “cidades”. Entretanto,
quando observamos a sequência de
eventos no registro arqueológico, o que
acontece é o contrário. O que aparece
primeiro são essas grandes confederações regionais, ou como quisermos
chamá-las. Acho que Lévi-Strauss, em
Raça e Cultura, as chama de coalizões,
certo? É basicamente a mesma coisa.
Portanto, primeiro temos essas grandes coalizões regionais. E, na verdade,
elas vêm antes das cidades. Logo, as
cidades são uma contração, elas não
são uma expansão. Elas são como uma
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dessas áreas de cultura regional encolhendo em diversos pequenos pontos.
E é isso que você tende a ver concretamente, pelo menos nas áreas com as
quais estou mais familiarizado, como a
Mesopotâmia e a Europa pré-histórica.
Porém, eu queria entender um
pouco melhor onde você encontrou a
tensão entre esses dois projetos. Não
sei se entendi bem.
Leonardo Marques: Bom, talvez eu
esteja criando essa tensão... A ideia
de áreas de cultura é certamente mais
ampla do que o Estado-nação, mas,
ainda assim, ela nos ajuda a pensar
sobre a ideia de diferença. Ao mesmo
tempo, vocês elaboram alguns modelos, como o das três liberdades, que
basicamente busca dar conta de todos
os grupos humanos. Então, eu queria
ouvir sobre o desafio de como escrever
sobre essa história da humanidade sem
achatar as diferenças.
David Wengrow: Bom, acho que tem
muito a ver com outro conceito que
pegamos da literatura antropológica
mais antiga e que tentamos trazer de
volta, que é o conceito de “cismogênese
cultural”. Esta é uma ideia muito latente
da década de 1930. Na verdade, ela
começa com a discussão sobre gênero
no nível micro das relações em um grupo
específico, os Iatmul, no rio Sepik, na
Papua Nova Guiné, onde as pessoas,
meninos e meninas, aprendem as regras
de gênero e socialidade sem um manual
explicativo. Neste caso, isto acontece
por meio de um exercício performativo
de espelhamento e imitação cômica que
culmina na rejeição da outra categoria.
E a ideia de que isto poderia ser aplicado de forma mais ampla à cultura foi
desenvolvida pelo professor e mentor de
David [Graeber], Marshall Sahlins, em
toda uma série de trabalhos. Seu livro
sobre Atenas e Esparta, Apologies to
Thucydides (que, diga-se de passagem,
tem um título muito engraçado), realmente tenta expandir esta ideia para
as relações entre sociedades e entre
culturas.
Trata-se, de fato, de uma teoria da
identidade. E esta é uma característica
muito marcante do registro arqueológico, digamos, desde o início do
Holoceno. Ou seja, há cerca de 10.000
anos, quando começamos a ver a formação de zonas culturais muito distintas. Na Eurásia, no chamado período
Mesolítico, as pessoas parecem estar se
identificando coletivamente em oposição ao que está ao lado ou ao que veio
antes – ou, possivelmente, embora
nunca sejamos capazes de afirmar, ao
que pode vir no futuro. Para nós, isto
é importante justamente porque é um
processo muito consciente. E entramos
nos mínimos detalhes porque ninguém
realmente entende o que são essas áreas
culturais ou o que de fato constitui uma
fronteira entre elas.
Portanto, estamos falando sobre a
natureza da política humana na ausência de um mundo de Estados-nação com
fronteiras rígidas. Como se forma uma
fronteira, por exemplo, entre um grupo
de sociedades em que é considerado
completamente normal invadir umas às
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outras em busca de escravizados, capturar pessoas e incorporá-las à sua casa
como escravizados, e outro grupo de
sociedades vizinhas em que este tipo de
coisa não é apenas rejeitado, mas culturalmente visto como inaceitável? Neste
caso, de fato, encontramos um exemplo
bem preciso. Mais uma vez, estamos
diante de uma literatura negligenciada,
aquela sobre a costa oeste da América
do Norte – e, mais especificamente,
sobre as áreas culturais da Califórnia e
da Costa Noroeste.
De um ponto de vista geográfico, essas culturas estão exatamente
no ponto de encontro de duas áreas
culturais. Isto é o que Alfred Kroeber
chamou de “zona de fragmentação”
entre duas culturas, onde elas se chocam uma contra a outra. Ali, não há
uma fronteira rígida, e essas não são
sociedades com exércitos permanentes
que podem deter a circulação das pessoas. Na verdade, o que existe é uma
enorme interação e muita complexidade
linguística. Mas também ocorre esse
processo de cismogênese no qual as
sociedades se constroem mutuamente
como uma imagem espelhada, como o
oposto uma da outra. E, nessa zona de
fragmentação, encontramos evidências
que demonstram a natureza consciente
desse processo. Não somos capazes de
datá-lo, pois as fontes arqueológicas
não são suficientemente boas. O que
sabemos é que houve uma interação que
remonta a centenas, talvez milhares de
anos, mas não temos certeza de onde
ocorreu a cisão.
No entanto, justamente nessa
região há, por exemplo, grupos como
os Tolowa, os Yurok, os Miwok e assim
por diante. Isso está presente em suas
histórias orais ou narrativas, que são
como contos de admoestação sobre o
que pode acontecer se você escravizar
outro povo e lucrar com seu trabalho
duro. E posso adiantar que o resultado
não é bom. Portanto, não há dúvida de
que algo aconteceu ali [na Costa Oeste].
O que nos leva, finalmente, à sua pergunta sobre o achatamento.
Na verdade, todas essas sociedades
foram achatadas. A Costa Noroeste e a
Califórnia foram completamente achatadas em uma única categoria. No modelo
antigo do evolucionismo social, elas
eram todas classificadas como a mesma
coisa: “caçadores-coletores complexos”.
Outras pessoas os chamariam de “caçadores-coletores de retorno tardio”, ou
ainda “caçadores-coletores afluentes”,
mas sempre sem levar em consideração
o fato de que, na verdade, as bases de
seus sistemas culturais são completamente diferentes. Ou, melhor dizendo,
radicalmente diferentes. Como mostramos na comparação, um dos sistemas
é uma sociedade doméstica, enquanto
o outro se parece mais com uma corte
feudal. O primeiro, ainda, tem algo que
se parece um pouco com a ética de trabalho protestante. Ou seja, essas sociedades não poderiam ser mais diferentes.
Portanto, elas foram achatadas antes,
e tratamos de desachatá-las para que
a gente possa finalmente começar a
vê-las como entidades históricas. Por
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isso, eu me oporia à acusação de achatamento. Acho que, na verdade, fizemos
algo como um “desachatamento”, pelo
menos neste caso.
Maria Luísa Lucas: Em primeiro lugar,
gostaria de agradecer o convite para
conversar com um dos autores desse
livro que tanto me influenciou nos últimos anos. Como o David sabe, junto
com a minha querida colega e amiga,
a arqueóloga Jennifer Watling, estou
atualmente ministrando um curso de
graduação na USP sobre O Despertar
de Tudo. Assim, o que trago aqui hoje é
em grande parte o resultado de nossas
discussões em sala.
Quando li o livro pela primeira
vez, em 2021, logo ficou óbvio que ele
apresentava, principalmente por meio
de dados arqueológicos e históricos,
algo que eu, por experiência pessoal,
conhecia etnograficamente: experimentos sociais altamente criativos em que
um grupo de pessoas concebe e coloca
em prática novas formas de vida. Vou
resumir do que se trata.
Os Bora, um povo indígena com
o qual venho trabalhando há algum
tempo, passaram por uma crise radical
no início do século XX. Exploradores
de borracha, em pouco mais de vinte
anos, torturaram, escravizaram, assassinaram e realocaram à força dezenas
de milhares de pessoas. Mesmo que
eles tenham se recusado a trabalhar e
organizado movimentos de resistência
armada várias vezes, o boom da borracha acabou causando um colapso
demográfico de pelo menos noventa por
cento. Portanto, por algum tempo, eles
não tiveram liberdade para se mover,
desobedecer ou moldar novas realidades. No entanto, as coisas começaram
a mudar no século XX. Optando por
fazer poucas declarações sobre traumas
passados, eles decidiram, por um lado,
depender menos dos não indígenas em
todas as áreas de suas vidas. Por outro,
eles decidiram reconstruir ou recuperar clãs, rituais, artefatos e canções que
haviam sido perdidos. Nesse processo,
embora tenham transformado alguns
elementos agora vistos como indesejados, outros foram incrivelmente resilientes. Este é o caso da relação entre
“chefes” e “órfãos”.
Os chefes ou nobres são, idealmente, os primogênitos dos clãs patrilineares. Os órfãos são pessoas que vivem
(definitivamente ou não) na ausência
de relações com seu chefe original.
Em geral, quando são incorporados à
parentela de novos chefes, os órfãos
precisam se dedicar a tarefas domésticas que consomem grande parte de
suas vidas e contam com menos acesso
a alimentos ou bens que os demais. Em
suma, eles não são equivalentes aos
chefes ou a outras pessoas. Entretanto,
não há chefes sem órfãos, e nenhum
órfão quer ficar sem um chefe por muito
tempo. Esta é uma relação que organiza
profundamente a vida bora e que persistiu mesmo depois de uma crise radical.
Vivendo com eles, entendi que não
se trata de uma relação de exploração,
mas de coprodução do self ou de “exogênese”. Assim, embora a autonomia
dos Bora como povo não esteja aberta à
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negociação, a autonomia individual não
é nem um valor, nem um desejo. Nesse
contexto, o que foi e continua sendo
desejável é a preservação de um sistema evidentemente contraigualitário.
Tenho certeza de que uma “vida boa”
que não se baseia nem na igualdade
nem na autonomia individual poderia
deixar os órfãos de Rousseau muito
desconfortáveis.
Por meio de processos cujos detalhes não posso especificar aqui, as
decisões tomadas após essa crise são
marcadas por uma notável capacidade
bora. Ao transformarem algumas regras,
eles puderam imaginar e criar formas
de vida que antes existiam apenas como
uma possibilidade. Mesmo que a história de Bora apresente algumas circunstâncias incomuns, elas certamente não
são de natureza demográfica. Como
mostram algumas projeções recentes,
crises demográficas profundas e abruptas marcaram a história de basicamente
todos os povos indígenas da América do
Sul desde o século XVI. Portanto, nosso
continente certamente foi (e ainda é!)
um incrível laboratório para experimentos sociais criativos, muitos dos quais
surgiram após a usurpação de diferentes
liberdades pela máquina colonial.
Nossos alunos trouxeram vários
desses exemplos a partir da história,
da arqueologia e da antropologia. Eles
estão especialmente interessados na
região e no período que receberam relativamente pouca atenção no livro: as
terras baixas da América do Sul após
a invasão europeia. Especialmente
quando discutimos os povos indígenas
dessa área (e não, por exemplo, as
pessoas escravizadas no tráfico transatlântico), noções como liberdade ou
autonomia apareceram muito menos do
que criatividade e agência. Eles então
notaram que estes termos aparecem
pouquíssimas vezes no livro (menos de
dez vezes cada um na tradução para o
português). Imaginamos que esta tenha
sido uma escolha ativa e gostaríamos
de saber mais sobre isso.
Pensando especificamente sobre
a ideia de criatividade, o antropólogo
melanesianista James Leach aponta
como ela tem contornos muito particulares no mundo euro-norte-americano.
Em resumo, a criatividade no Ocidente
baseia-se em uma ideia apropriativa na
qual um indivíduo autônomo e dono
de si modifica um mundo previamente
estabelecido por meio de ideias originais, raras e valiosas (como no mítico
“eureka” de Arquimedes). Entretanto,
existiriam outras formas possíveis de
criatividade, e nosso problema em reconhecê-las decorreria de uma dificuldade subjacente em imaginar mundos
em que uma pessoa é vista como uma
combinação de outras pessoas (como a
“exogênese” que mencionei há pouco),
ou mundos em que os não humanos
também são seres dotados de agência.
Neste sentido, o notável desenvolvimento das teorias multiespécies nas
últimas décadas vai ao encontro do
argumento de Ailton Krenak segundo
o qual “os humanos não são os únicos
seres interessantes que têm uma perspectiva sobre a existência”.
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Entendemos que a análise de fontes
históricas dos últimos cinco séculos,
o material etnográfico e arqueológico
contemporâneo e a crescente produção
de intelectuais e artistas indígenas na
América do Sul apontam para formas de
viver e experimentar as três liberdades
abordadas no livro. No entanto, esse
mesmo material também desafia, de
diversas maneiras, pressupostos euro-norte-americanos críticos, tais como a
forma como concebemos os processos
de tomada de decisão; a constituição
de sujeitos políticos como seres autônomos, autoconscientes e proprietários
de si; e a agência entendida exclusivamente a partir de uma perspectiva antropocêntrica. Algumas destas premissas
são reiteradas no livro, enquanto outras
são criticadas. Gostaria de saber como
as coisas se desenvolveram quando
ele estava sendo escrito e se, depois
de sua publicação, algumas dessas críticas transformaram de alguma maneira
seu olhar para o trabalho.
Na sala de aula, combinamos que
eu seria uma porta-voz ou tradutora
das ideias e opiniões debatidas todas
as semanas por mais de trinta alunos
jovens e dedicados que estão devorando
avidamente o livro e pensando sobre as
possíveis implicações para seus percursos acadêmicos e seus engajamentos
políticos com diferentes pautas sociais.
Como um coletivo, eles o convidam a
pensar com esse material sul-americano
contemporâneo em futuras publicações
que todos esperamos que estejam no
horizonte. Acreditamos que esta seria
uma forma, como disse um de nossos
alunos, de construir um “ecossistema
para novas abordagens de divulgação
científica”. Algo que, a propósito, a
antropologia e a arqueologia vêm ignorando há muito tempo, mas que o livro
faz com maestria.
David Wengrow: Espero que possamos continuar conversando sobre essas
questões, pois não há uma resposta
rápida ou fácil para elas. Quando você
pergunta sobre a escolha dos termos e
fala sobre termos como “criatividade”
e “agência”, penso que a escolha da
linguagem é de fato importante. Porém,
não foi algo que David [Graeber] e eu
nos preocupamos particularmente ou
tentamos formular de maneira muito
consciente. Em parte porque queríamos nos afastar desse hábito de supor
que poderia haver algo que se assemelhasse a uma caracterização total
que fosse aplicável a qualquer grupo
de pessoas. Portanto, a maneira mais
clara de responder é com um exemplo,
que é a parte do livro em que falamos
sobre o que chamamos de “crítica indígena”. Eu percebi que alguns leitores
do livro interpretaram erroneamente
essas seções em que falamos sobre uma
perspectiva [indígena] crítica sobre as
sociedades europeias, algo que surgiu
em um meio histórico muito particular
entre os povos de língua algonquina
e iroquesa nas florestas do leste da
América do Norte.
Ali, estamos falando sobre suas
observações sobre a civilização europeia. Mas certamente não estamos
falando de sua visão de mundo. Não
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estamos falando de uma ontologia. Não
estamos falando sobre a questão da criatividade ou da agência. Estamos falando
de filosofia. E escolhemos esses termos,
acho que deliberadamente, para nivelar
o campo do jogo, porque filosofia é um
termo pesado. Filosofia é o que deveríamos ter, e eles têm algo chamado
agência, que não sabemos muito bem
o que é.
Nosso argumento é que as perspectivas oferecidas nesse caso específico
eram estratégicas, da mesma forma que
o livro de [Ailton] Krenak é estratégico
ou que os escritos de David Kopenawa
não são uma totalidade, mas o segmento
de uma visão de mundo específica ou
de uma civilização específica. Mesmo
assim, eles são estratégicos. Eles são
o que se pode chamar de uma espécie
de “arma de escolha”, que tem como
alvo um inimigo específico. E, é claro,
o inimigo mudou desde os séculos XVII
e XVIII. Mas ele não mudou completamente, pois há uma relação histórica.
Em suma, nós estávamos apenas
tentando manter o campo de jogo nivelado. Assim, quaisquer perspectivas que
sentimos poder extrair das sociedades
não europeias sobre as quais estamos
falando também são derivadas deste
tipo de autorrepresentação que, presumivelmente – e você sabe disso
melhor do que eu –, afeta de forma
considerável a etnografia e os encontros
etnográficos. E ficamos muito impressionados com alguns casos parecidos ao
que você traz quando se refere a pessoas
que conscientemente mudam as regras
– por exemplo, regras de parentesco e
casamento ou herança para evitar um
determinado resultado ou criar um tipo
alternativo de sociedade. Para entender
o que está acontecendo ali, como você
também sabe muito melhor do que eu,
é preciso atingir um grau incrível de
familiaridade e competência.
Nós ficamos muito impressionados,
por exemplo, com o caso histórico da
Nação Osage, que hoje está em algum
lugar no meio-oeste americano, perto de
Minnesota. Este é um dos únicos casos
que temos de um grupo cuja etnografia
foi escrita no século XIX por um etnógrafo indígena. Ele não era Osage, era
Omaha, um homem chamado Francis La
Flesche, mas ele falava línguas relacionadas e suas etnografias são totalmente
diferentes do que foi escrito pelos
europeus na mesma época. Elas são
incríveis! Ele utiliza notação musical e
possui uma grande compreensão do que
as pessoas de fato estão dizendo. Assim
sabemos que eles [Osage] têm esses
pequenos concelhos de homens idosos
que, ao se reunirem, entram em debates filosóficos muito profundos sobre a
natureza da realidade.
Com certeza, isto é incrivelmente
criativo. Mas dizer que eles têm agência é dizer muito pouco. Ou seja, essas
pessoas estão envolvidas em argumentos constitucionais e filosóficos ou teorias sobre os sonhos que são realmente
muito sofisticados e que em nossa
própria cultura, creio eu, creditaríamos com palavras mais pesadas, com
termos mais pesados. Toda a reflexão
aqui é retrospectiva porque, como eu
disse, não acho que tenhamos sido
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muito conscientes em nossa escolha das
palavras. Mas, retrospectivamente, acho
que é por isso que usamos a linguagem
que usamos.
Fernando Ozorio de Almeida: Entre as
muitas coisas que me vieram à mente ao
ler o livro foi que o ponto de partida foi
transferido da América do Norte para
a América do Sul, com Bartolomeu de
Las Casas servindo como exemplo do
retrato do “Nobre Selvagem”, e a crítica
de Michel de Montaigne à sociedade
francesa baseada na “liberdade platônica” de que gozavam os Tupinambá
que habitavam o litoral brasileiro no
século XVI.
Acho que teríamos um desfecho
semelhante para a história. Admito que
fiquei em um primeiro momento triste
ao ver as críticas a autores que valorizo, como Pierre Clastres e Christopher
Boehm, embora concorde com elas. Por
outro lado, parabenizo os autores pela
capacidade de identificar boas ideias
(como as apresentadas por meus colegas etnólogos da Amazônia), ao mesmo
tempo em que separam outras aparentemente elegantes e atraentes, mas que
na verdade não são baseadas em bons
dados, e simplesmente não funcionam. Gostaria também de parabenizar
os autores pela calorosa inclusão de
contextos arqueológicos “periféricos”,
como a Amazônia, onde tenho trabalhado nos últimos vinte anos.
Em um artigo publicado recentemente, baseado em amostragem Lidar
de pequenas áreas, foi projetada a existência de mais de 10.000 estruturas de
terra ainda escondidas na Amazônia. Só
posso imaginar o impacto do que está
por vir em discussões como as apresentadas pelos autores. Na Amazônia,
tivemos a tendência de pensar em temas
como desigualdade e hierarquia como
materializados nessas diferentes estruturas de terra. No entanto, a documentação recente sobre os povos indígenas
Guató do Pantanal brasileiro, que ainda
produzem montículos (para viver, para
enterrar os seus mortos ou para plantar)
e que o fazem em um nível comunitário,
está nos levando a pensar em modelos
alternativos.
Como o livro possui uma linha político-filosófica com a qual eu de maneira
geral concordo, gostaria de ouvir mais
de David sobre questões ambientais, em
diferentes escalas. Por um lado, gostaria
de compreender um pouco melhor a
importância dos lugares naturais dentro
da teoria: as hierarquias naturais ocupadas pelas sociedades humanas. Já que
você diz que o ritual é o laboratório da
experimentação, não seria o caso de
enfatizar que, mesmo antes de os monumentos humanos começarem a surgir
pelo mundo, certos lugares eram o lar
de trocas, rituais, concentração e conhecimento, trocas filosóficas (incluindo
a comparação de diferentes sistemas
políticos), experimentação de diferentes
usos de plantas nativas e estrangeiras,
e talvez diferentes tipos de organização
social? Estou pensando aqui em lugares como as cachoeiras do noroeste da
América do Norte (Columbia Britânica)
e a do Teotônio, na Amazônia, onde
trabalhamos.
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Em segundo lugar, numa escala
mais ampla, senti um pouco de falta
da discussão dos fatores macroambientais que influenciam a economia,
como a expansão e a retração da agricultura e, portanto, as decisões políticas.
Embora de forma alguma eu apoiasse,
por exemplo, o modelo determinista
e ingênuo de “Colapso” de Jared
Diamonds, por outro lado, parece ser
uma grande coincidência que grandes
Centros Indígenas Americanos, como
Cahokia, no Mississippi, Marajó, no
Baixo Amazonas, a cultura Casarabé e
os produtores de Geoglifos, no sudoeste
do Amazonas, e mesmo o período Maia
Clássico, estavam em declínio por
volta de 1200 d.C., durante a Anomalia
Climática Medieval (MCA) de 900-1250
d.C. Considero que esta questão pode
ser importante para ajudar a pensar em
que nível devemos esperar mudanças
políticas à medida que o resultado da
atual crise climática se desenrola.
David Wengrow: Certo, há muitas coisas a dizer. Tentarei ser rápido, abordando ponto por ponto. Acho que houve
uma iteração anterior, ou uma série de
iterações anteriores, do que chamamos de crítica indígena e das reações
contra ela. O motivo de recorrermos a
Rousseau e, por meio dele, ao século
18, aos Haudenosaunee e aos Wendat,
é porque começamos com esta questão
sobre as origens da desigualdade. Até
onde sabemos, esta é uma questão de
meados do século 18 que não tem muita
validade antes disso, ou pelo menos não
se apresenta da mesma maneira. Mas,
sem dúvida, há mais coisas acontecendo
pelo menos duzentos anos antes.
Para pensar sobre isso, Michel de
Montaigne é certamente uma peça
central. Porém, sempre achei que o
texto-chave era o de seu amigo, e provavelmente seu parceiro, Etienne de la
Boétie, que se chama “Sobre a Servidão
Voluntária”. Não sei se você já o leu. É
um texto extraordinário, que expressa
ideias que classicamente associamos
à era do Iluminismo, mas que aparece
cerca de duzentos anos antes. La Boétie
e Montaigne são tão próximos quanto
possível, e eu nunca entendi muito
bem por que ele [La Boétie] é sempre
tratado como uma espécie de anomalia. Ninguém sabe ao certo o que fazer
com esse texto e seus comentários sobre
liberdade, opressão e tudo o mais. De
todo modo, sempre me pareceu improvável que a relação dele com Montaigne
– e tudo o que Montaigne aprendeu
com seu encontro com os Tupinambá
– seja apenas uma coincidência. Eu
não conheço a cronologia de tudo isso
suficientemente bem, mas suspeito que
haja outra história a ser revelada.
Então, eu gostaria de me adiantar
e abordar uma de suas últimas perguntas, que era exatamente sobre histórias,
ou as histórias que as pessoas contam
sobre as origens da desigualdade e as
origens da hierarquia. Acho que isso
ilustra o fato de que não podemos presumir a quem pertence a história e quem
a recebeu de quem. Sobre isso, há um
exemplo da mesma época, de meados
do século XVI, que me surpreendeu
quando o encontrei.
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Trata-se dos escritos de um frade
franciscano chamado Toribio de
Benavente, que era conhecido pelos
Mexica como “Motolinía”, que significa “o aflito”, porque ele era um desses
caras que andavam por aí em trapos. Em
suas crônicas, ele fala sobre as histórias
de origem que os Mexica, os Asteca,
contavam sobre si mesmos. Elas diziam
assim: “Nós somos descendentes desse
pessoal chamado Chichimeca, que são
caçadores-coletores. Eles vivem no
deserto, não cultivam, não têm bens
materiais e não acumulam riquezas,
mas eles são muito felizes e vivem nesse
tipo de existência nobre”. Na época, eu
estava lendo isso e pensando: “Bem,
isso é Rousseau, mas duzentos anos
antes de Rousseau”. E este [Motolinía]
é um autor espanhol.
Ou seja, é possível que, na verdade,
o que consideramos ser nosso tipo de
história padrão, nosso próprio mito
sobre as origens da desigualdade, tenha
se originado como um mito urbano
mexica sobre suas próprias origens?
Sabe, esta pode parecer uma ideia um
pouco maluca, mas talvez ela não seja
tão maluca assim. Talvez haja, de fato,
essas influências cruzadas, e talvez seja
a nossa própria maneira de fazer historiografia que as faça parecer malucas. É tudo uma questão de “a história
de quem”, ou melhor: qual história de
fato vem de que lugar? A quem ela
pertence?
Então, estes autores, Rousseau,
Pierre Clastres e Boehm, eles são heróis.
O que estamos tentando fazer é levar
adiante as agendas deles. Sobre Boehm,
ficamos frustrados com ele, mas, na
verdade, seus argumentos são provavelmente o melhor e mais substancial
apoio à nossa ideia sobre as três liberdades – especialmente a segunda liberdade, a de desobedecer. Ele argumenta
que nossa espécie basicamente divergiu social e cognitivamente de nossos
parentes biológicos mais próximos (os
grandes símios da África) em parte por
meio da elaboração de estratégias de
desobediência, de maneiras de realmente controlar e conter agressores e
possíveis dominadores. Portanto, aceitamos e adotamos completamente o
argumento de que, já no Paleolítico,
teria havido experimentos políticos
altamente autoconscientes.
O que não conseguimos entender é
porque ele descreve o curso da história
humana exatamente em termos opostos,
como se nada tivesse acontecido antes
do início da agricultura e todos fossem
apenas igualitários. É bem confuso, e
já não podemos perguntar-lhe diretamente sobre isto. No entanto, em essência, queremos explorar as implicações
dessa teoria mais além do que ele fez, e
queremos usar evidências arqueológicas para fazer isto – o que ele tampouco
faz. Esta é a diferença. Basicamente,
estas são as pessoas nas quais estamos
tentando nos basear.
Bom, sobre as macrotendências.
Você de fato as encontrará no livro.
Por exemplo, quando falamos sobre
cidades, falamos longamente sobre o
fato de que, há cerca de 5.000 anos,
houve a estabilização global do nível
do mar e o fenômeno das formações
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de deltas, a estabilização do Delta do
Nilo, do Delta do Mississippi, do Delta
do Mekong, e daquele que eu deveria conhecer melhor, o Samaritano, no
sul do Iraque... (sabe, a gente sempre
esquece aquilo que realmente estudamos no doutorado!). O clima é um ponto
obviamente fundamental para entender
a concentração de seres humanos nessas regiões em números sem precedentes. Mas isto não acontece em todos os
lugares. Sem dúvida, isto não aconteceu
nas Américas, com a possível exceção
do Rio Supe e da chamada civilização
Caral, no Peru, sobre a qual ainda não
sabemos muito. Isto tudo é muito interessante. Afinal, se você tem essas oportunidades repentinas para as pessoas
se reunirem em ambientes ecológicos
incrivelmente ricos em números sem
precedentes, por que isso não acontece
em todos os lugares?
Obviamente, eu não tenho uma resposta definitiva. Porém, suspeito que
tenha algo a ver com o fato de que os
lugares onde isso acontece, como no
Vale do Indo, no Tigre-Eufrates, ou no
Vale do Nilo, o tipo de concentração
que se tem lá é bastante voltado para
a indústria e a manufatura, para a produção de mercadorias e para a criação
de centros urbanos por meio de uma
verdadeira revolução na organização
das capacidades humanas de produção
material. No livro, nossa suspeita é a
de que o que constitui um centro em
grande parte das Américas é diferente e
está menos relacionado a fatores materiais de produção, e talvez mais associado a algumas das coisas mencionadas
por você, como diferentes formas de
conhecimento: conhecimento esotérico, conhecimento dos calendários,
compreensão de plantas e animais e do
mundo não humano – em suma, conhecimentos concentrados em centros
como Cahokia. É exatamente por isto
que falamos sobre a reação dos moradores de Cahokia como uma reforma
no acesso das pessoas a certos tipos de
conhecimento ou uma democratização
de certos tipos de conhecimento.
Carlos Fausto: Gostaria de começar
agradecendo ao Luiz pelo convite e
ao David por nos dar o prazer de participar desta conversa. Eu li The Dawn
of Everything, ainda em formato PDF,
no final de 2021. Sou um leitor anárquico que raramente lê um livro do
começo ao fim, mas li The Dawn of
Everything da primeira à última palavra.
Extremamente bem escrito, bem planejado e ambicioso, o livro capturou minha
imaginação e estimulou minha reflexão,
falando diretamente sobre questões cruciais que me interessam, especialmente
em relação com as formas sociopolíticas indígenas sul-americanas. De certa
maneira, a América do Sul ocupa um
lugar marginal na economia do livro,
apesar da centralidade da América do
Norte – e das ideias de Pierre Clastres
– para o desenvolvimento de seu argumento. Isto não é de forma alguma uma
crítica, mas sim um convite para que
David se envolva em um diálogo com
a etnologia sul-americana.
O entendimento hegemônico do
cenário político sul-americano antes
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da invasão europeia é o de uma grande
divisão: de um lado, temos as grandes
civilizações dos Andes e da costa do
Pacífico; do outro, os povos da floresta:
aqueles que ficaram presos e não chegaram lá, ou seja, não desenvolveram
instituições do tipo estatal. Essa cismogênese conceitual foi posteriormente
matizada por categorias intermediárias
(como a chefia) e confrontada de frente
por Clastres, que questionou a própria
ideia de “estar preso”. Para Clastres,
as “deficiências” das sociedades das
florestas tropicais decorriam de uma
vontade positiva de perseverar em seu
próprio estado de ser e, portanto, de
evitar o Estado. Assim, poderíamos perguntar, agora nos termos de Graeber e
Wengrow, por que os povos amazônicos
não ficaram presos? Por que eles não
ficaram, mas os povos andinos sim?
Obviamente, eu não vou responder a esta pergunta aqui. Estou apenas
localizando esta questão em meu próprio campo etnográfico para discutir as
três formas básicas de liberdade social,
por meio das quais Graeber e Wengrow
esboçam uma possível resposta a esta
pergunta em seu sentido mais amplo.
Começo com “a liberdade de se
afastar de seu entorno”. Como isto se
aplicaria à Amazônia? O deslocamento
coletivo requer: a) muito espaço para
se realocar (ou seja, baixa densidade
demográfica); e b) ampla hospitalidade entre as populações vizinhas (ou
seja, a ausência de guerra). A demografia foi um elemento fundamental
no modelo de Clastres: “As coisas só
podem funcionar no modelo primitivo
se as pessoas forem poucas”, escreveu
ele em Sociedade contra o Estado. A
atomização e a dispersão também foram
elementos-chave, e mais tarde ele passou a ver a guerra como um mecanismo
crucial para a fragmentação, não para a
unificação (como é o caso da teoria da
circunscrição de Robert Carneiro). A
hospitalidade parece não ter sido uma
prática social importante na Amazônia,
pelo menos não quando comparada à
guerra. Com exceção de alguns sistemas
regionais multiétnicos, a paz de longo
prazo era um estado difícil de ser alcançado, o que sugere que havia limites
importantes para a primeira liberdade,
especialmente se levarmos em consideração que a densidade populacional indígena era pelo menos dez vezes
maior há quinhentos anos.
Agora, o que podemos dizer sobre
a segunda liberdade, “a liberdade de
ignorar ordens”? Na verdade, esta
parece ser a tonalidade da maioria das
relações políticas na Amazônia, mesmo
dentro de sistemas hierárquicos com
chefias institucionalizadas, como no
caso do Alto Xingu. A única vez em
que vi uma pessoa comandando outras
(e sendo obedecida) foi durante um
levante messiânico em que um homem
começou a curar aldeias inteiras. Os
grandes chefes, ao contrário, se impõem
aos outros por meio de discursos formais e rituais que, por definição, são
autoderrogatórios. Isto não significa
que não existam relações assimétricas
na Amazônia. Muito pelo contrário, as
relações de dependência assimétrica
são bastante importantes e estruturam
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muitos domínios da vida social. Então,
como as relações de dependência generalizadas não se convertem em relações
de poder de dominação? Como pode
haver liberdade e dependência?
Esta pergunta me leva à última e
mais importante liberdade, sobre a qual
os autores apresentam duas formulações diferentes: por um lado, eles se
referem à “liberdade de moldar realidades sociais inteiramente novas”; por
outro, “a liberdade de alternar entre
realidades diferentes” (como na variação sazonal dos Inuítes). A primeira é
uma mudança revolucionária (mais do
que uma reforma social), enquanto a
segunda é apenas um padrão políticoeconômico dual característico, por
exemplo, dos Kayapó e de outros povos
de língua jê. Meu interesse, aqui, é apenas no primeiro.
Temos vários exemplos de reformas
sociais conduzidas pelos povos indígenas da Amazônia, como é o caso, por
exemplo, dos Bora, dos Parakanã, dos
Yanesha ou dos Marubo. Suas inovações
marcantes não podem ser concebidas
fora dos efeitos do domínio colonial e da
violência. No entanto, a maneira como
reformaram e recriaram suas formas de
vida decorre de lógicas e práticas indígenas de produção de transformação e
mudança. E aqui está a principal pergunta que tenho para David: podemos
caracterizar a criatividade social indígena como uma forma de liberdade?
Que tipo de agente e de ação política
essa liberdade requer?
Ao longo de The Dawn of Everything,
esse agente é frequentemente
caracterizado como um “ator político
consciente” e suas ações são qualificadas como “autoconscientes”. Aqui, o
conceito de liberdade parece ser construído sobre uma noção de autonomia
que, por sua vez, implica autopossessão
e autoconsciência. Os mundos amazônicos, no entanto, raramente são baseados
em autonomia. Então, como os povos
amazônicos podem ser tão dependentes
e, ao mesmo tempo, tão livres?
Como Judith Butler diz de forma
mais geral em Dispossession: “não nos
movemos simplesmente a nós mesmos,
mas somos movidos pelo que está fora
de nós, pelos outros, mas também por
qualquer coisa ‘externa’ que resida em
nós”. Se isto for verdade, pelo menos
para a Amazônia, o que constituiria uma
liberdade que não implica autonomia
e autopossessão? Como a democracia
(antiga ou não) seria concebida? Que
tipo de agentes políticos e mecanismos
de tomada de decisão estariam envolvidos aqui? Encerro esses comentários com uma passagem de [Jacques]
Derrida que, para mim, captura nosso
desafio comum de pensar: “essa coisa
inconcebível e incognoscível, uma liberdade que não seria mais o poder de um
sujeito, uma liberdade sem autonomia,
uma heteronomia sem servidão”.
David Wengrow: Muito obrigado. Na
verdade, eu tenho que seguir em frente
com este livro em algum momento, e as
perguntas que você está fazendo são
exatamente as que mais me interessam
nesse momento em que estou pensando
para onde ir em seguida.
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Então, começando pelo final. Sobre
a liberdade. Como você sabe, Terry
Turner e seu trabalho sobre os Kayapó
foi algo muito importante para o pensamento de David Graeber, e seria muito
melhor se ele pudesse nos falar sobre
isso. Mas há outra influência muito
importante para Graeber e também
para mim, que é o sociólogo jamaicano
Orlando Patterson.
O trabalho de Patterson sobre a
liberdade é muito volumoso. Então,
correndo o risco de simplificar demais,
sua análise do conceito de liberdade
no pensamento ocidental propõe que
tal conceito se origina na escravidão.
Em outras palavras, a liberdade não
é um conceito natural ou universal,
mas uma construção social e histórica
que aparece em relação cismogênica
com as instituições da escravidão. Nós
não devemos esperar encontrá-la em
nenhum lugar onde essas instituições
não tenham surgido primeiro. Assim,
ele começa sua análise na Grécia antiga
e termina na América. Tenho certeza
de que ele está certo, mas Patterson faz
ainda duas outras observações a partir
daí.
A primeira é que, nas civilizações
não ocidentais (e ele está pensando aqui
particularmente nos casos da África
Ocidental e Central analisados por
pessoas como Claude Meillassoux), o
oposto da liberdade não é a autonomia.
Para ele, o oposto da liberdade é o pertencimento ou a dependência. Então, o
fato de estar envolvido em um sistema
de clãs ou em um sistema de relações
sociais é o que garante, por exemplo,
que os órfãos sejam acolhidos. Assim,
a escravidão, como Patterson coloca no
título do seu livro mais conhecido, seria
uma forma de morte social.
A segunda conclusão a que Patterson
chegou, e aqui é onde eu acho que nós
divergimos de seus argumentos, é que
a liberdade em si seria uma espécie de
conceito ocidental estranho, que simplesmente não existe em nenhum outro
lugar. Martin Bernal, cujo livro Black
Athena estava fazendo sucesso mais ou
menos na mesma época, fez uma crítica
muito interessante a Patterson ao dizer
que havia muitos exemplos no budismo,
na China e nas tradições chinesas, onde
de fato há um equivalente ao conceito
de liberdade.
Eu acho que a nossa abordagem
sobre liberdade diverge daquela de
Patterson porque quando você pensa
sobre a liberdade como uma reação contrária à escravidão, você acaba encontrando um conceito de liberdade que
tem peculiaridades muito específicas.
Essencialmente, você encontrará a liberdade como uma forma de poder, ou a
liberdade como autonomia pessoal, o
que é indiscutivelmente uma reação
contrária, de tipo cismogênica, aos processos de mercantilização, violência
e escravidão. Este foi o argumento de
David [Graeber] em um ensaio chamado
Turning Modes of Production Inside
Out, que é exatamente sobre como
podemos entender o capitalismo como
uma transformação da escravidão. No
fundo, o que surge aqui é uma noção
de liberdade como posse pessoal. É
algo que você possui e, portanto, por
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definição, também é algo que você pode
trocar na forma de trabalho assalariado.
É algo transacional. Mas, em nossa
opinião, isto não esgota as possibilidades do conceito. Em nossa abordagem, acho que tomamos precisamente
o caminho contrário.
É possível fazer uma análise mais
detalhada e identificar uma certa
linhagem ao analisar concepções
particulares de liberdade. Porém,
assim que você examina para além
dessa tradição específica, o que você
vê são conceitos de liberdade baseados
precisamente na ideia de dependência e que além disso são, em essência,
liberdades sociais. Em outras palavras,
liberdades que possibilitam a liberdade
de outras pessoas e que não são expressas como formas de poder.
Isto nos leva à primeira parte de
sua pergunta, aquela que não vamos
responder hoje, sobre porque certas
sociedades ficaram enredadas ou presas em formas e relações muito hierárquicas. No livro On Kings, que David
[Graeber] e Marshall [Sahlins] escreveram, Sahlins destaca, como faz em todos
os lugares, que os Maia clássicos, os
Mexicas e os Incas têm alguma versão
desse complexo que os antropólogos
descreveram como “realeza estranha”.
Recentemente me ocorreu que pode
haver algo interessante aqui. A “realeza
estranha” é a ideia – às vezes enraizada
na história, às vezes flutuando livre dos
fatos e sendo apenas uma espécie de
mitologia ou história de origem sobre a
desigualdade ou a realeza – de que o
poder, no sentido de poder coercitivo,
vem de fora da sociedade na forma de
conquista violenta, mas nunca é totalmente adotado ou aceito. Na verdade,
a existência deste tipo de poder acaba
entrando em um processo de negociação com as normas e as regras internas da democracia ou da socialidade
humana.
Mas, se você pensar bem, isto é na
verdade uma inversão, ou talvez até
mesmo uma perversão das três liberdades: a de afastar-se, porque o rei vem
como um estrangeiro, como um estranho que chega de outro lugar, e a de
desobedecer, porque o rei estabelece
sua soberania violando, da maneira
mais horrível, todas as normas básicas da civilização. Isto geralmente é
expresso como um ato de sexualidade
grotesca, de incesto ou de parasitismo,
ou simplesmente como algo repugnante
de acordo com qualquer outra definição. Contudo, de maneiras que não são
muito bem conhecidas, este ato estabelece o rei como um estranho poderoso.
Por fim, a terceira liberdade também é
pervertida, porque o objetivo da “realeza estranha” é justamente estabelecer
uma dinastia perpétua, que permaneça
a mesma para todo o sempre. Isto é exatamente o oposto da terceira liberdade,
que tem a ver com a flexibilidade, a
capacidade de mudar, desmontar ou
se mover entre diferentes ordenamentos
sociais. Eu não sei o que tudo isto significa, mas acho que há uma lógica aqui
que vale a pena ser explorada. E acho
que o desafio é dar substância, antropológica, histórica e arqueologicamente,
a essa outra noção de liberdade, que,
como você bem disse, não tem exatamente a ver com autonomia – e que,
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na minha opinião, é muito empobrecida
enquanto conceito na tradição ocidental. O trabalho de Patterson realmente
destaca isto, sem que necessariamente
precisemos concordar com todas as suas
conclusões.
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Referências
GRAEBER, David & WENGROW, David.
2021. The Dawn of Everything: A New
History of Humanity. Londres: Penguin
Random House.
GRAEBER, David & WENGROW, David.
2022. O Despertar de Tudo: Uma nova
história da humanidade. São Paulo:
Companhia das Letras.
WENGROW, David. 2006. The Archaeology
of Early Egypt: Social Transformations in
North-East Africa, C.10,000 to 2,650 BC.
Cambridge: Cambridge University Press.
WENGROW, David. 2014. The Origins of
the Monsters: Image & Cognition in the
First Age of Mechanical Reproduction.
Princeton: The Princeton Univesity
Press.
WENGROW, David. 2018. What Makes
Civilization? The Ancient Near East and
the Future of the West. Oxford: Oxford
University Press.
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Maria Luísa Lucas é professora do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP. Trabalha
na Amazônia desde 2010, em especial com os Bora, na Colômbia. Suas pesquisas abordam
temas como os regimes de historicidade e as relações assimétricas nas Terras Baixas
da América do Sul, a antropologia da arte, dos objetos e dos museus e as iniciativas de
retorno, análise e produção de coleções e acervos.
Carlos Fausto é professor do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do
Museu Nacional-UFRJ, pesquisador do CNPq e Global Scholar da Universidade de
Princeton. Realiza pesquisas na Amazônia desde 1988, com os Parakanã no Pará e os
Kuikuro no Alto Xingu. Seu livro mais recente é Art Effects: Image, Agency and Ritual
in Amazonia (2020).
Leonardo Marques é professor de História da América Colonial na Universidade Federal
Fluminense. É autor de Por aí e por muito longe: migrações, dívidas e os libertos de 1888
(Apicuri, 2009) e The United States and the Transatlantic Slave Trade to the Americas,
1776-1867 (Yale University Press, 2016). Atualmente, explora temas relacionados à história
ambiental do capitalismo, com foco específico na história da mineração na América.
Fernando Ozorio de Almeida é professor do Departamento de Arqueologia da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro e especialista em cerâmicas arqueológicas indígenas das
terras baixas da América do Sul. Suas publicações estão relacionadas com suas pesquisas
no sudeste e sudoeste da Amazônia, no baixo rio São Francisco e mais recentemente no
Pantanal setentrional.
Editora-Chefe: María Elvira Díaz Benítez
Editor Associado: John Comeford
Editora Associada: Adriana Vianna
Recebido em: 21/11/2023
Aprovado em: 21/02/2024
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