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Dissertação Iury Aragonez da Silva

2023, Intra-ações na educação digital onlife: uma leitura pós-humanista de uma sala de aula de francês

Esta dissertação tem como objetivo discutir experiências com a educação linguística em francês em uma sala de aula de um centro de línguas de uma universidade pública, localizada no estado de Goiás, com estudantes brasileiros/as. O estudo foi realizado entre os meses de setembro a dezembro de 2021 de forma remota, devido à pandemia de COVID-19, com 12 estudantes de um grupo de Francês 6. Para problematizar as experiências compartilhadas ao longo do curso, tomo como alicerce praxiológico o Pós-humanismo, fundamentado na noção de que a matéria e o discurso são coconstitutivos (Barad, 2003, 2007). Entendo que uma orientação (neo)materialista (Canagarajah, 2018a) desestabiliza nossos entendimentos acerca dos eventos que (re)configuram o mundo ao ampliar o foco para além das relações humanas, possibilitando novas formas de apreender língua(gem) e educação linguística. Com base nisso, recorro à Linguística Aplicada Pós-Humanista (Canagarajah, 2018a, 2018b; Pennycook, 2018a, 2018b; Sousa, 2022), a qual busca problematizar língua-matéria-discurso-poder a partir das materialidades, isto é, da assemblagem de actantes humanos/as e não humanos/as. No escopo da perspectiva pós-qualitativa (St. Pierre, 2014a, 2014b, 2018), os materiais desta perguntação (Matos, 2021) compreendem: um questionário, aulas gravadas em áudio e vídeo pelo Google Meet, um diário de campo e produções escritas, orais e polissemióticas dos/as alunos/as. A partir de leituras difrativas (Barad, 2012) desses aparatos, busquei problematizar de que maneiras as pessoas, os materiais didáticos, as Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs), as subjetividades, as emoções e as espaçotemporalidades intra-agiram para oportunizar a emergência de repertórios polissemióticos (Magalhães; Silva, 2022) atrelados à língua francesa em um contexto de educação digital onlife (Moreira; Schlemmer, 2020). Ao abordar as percepções dos/estudantes acerca de suas corpovivências (Almeida, 2023), brilhou o entendimento da sala de aula digital como um espaço liso (Deleuze; Guattari, 1997) que bagunça a produção linguageira ao mesmo tempo em que permite o exercício de intranomia (Sousa, 2022) para a coconstrução de repertórios em assemblagem com actantes não humanos/as e em espaçotempos distintos. Além disso, os eventos corpovivenciados apontam para a necessidade de uma educação linguística corporificada, entendendo que significados/sentidos emergem de maneira polissemiótica, para além do processamento mental de regras que resulta na primazia de formas verbais de expressão. Espero que o trabalho desenvolvido contribua para o fortalecimento de uma concepção rizomática (Canagarajah, 2018a) de língua(gem) como matéria, de modo a encorajar uma visão menos antropocêntrica acerca das produções linguageiras.

UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS (UFG) FACULDADE DE LETRAS (FL) PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS E LINGUÍSTICA (PPGLL) IURY ARAGONEZ DA SILVA Intra-ações na educação digital onlife: uma leitura pós-humanista de uma sala de aula de francês GOIÂNIA 2023 UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS FACULDADE DE LETRAS TERMO DE CIÊNCIA E DE AUTORIZAÇÃO (TECA) PARA DISPONIBILIZAR VERSÕES ELETRÔNICAS DE TESES E DISSERTAÇÕES NA BIBLIOTECA DIGITAL DA UFG Na qualidade de titular dos direitos de autor, autorizo a Universidade Federal de Goiás (UFG) a disponibilizar, gratuitamente, por meio da Biblioteca Digital de Teses e Dissertações (BDTD/UFG), regulamentada pela Resolução CEPEC nº 832/2007, sem ressarcimento dos direitos autorais, de acordo com a Lei 9.610/98, o documento conforme permissões assinaladas abaixo, para fins de leitura, impressão e/ou download, a título de divulgação da produção científica brasileira, a partir desta data. O conteúdo das Teses e Dissertações disponibilizado na BDTD/UFG é de responsabilidade exclusiva do autor. Ao encaminhar o produto final, o autor(a) e o(a) orientador(a) firmam o compromisso de que o trabalho não contém nenhuma violação de quaisquer direitos autorais ou outro direito de terceiros. 1. Identificação do material bibliográfico [ X ] Dissertação [ ] Tese [ ] Outro*: *No caso de mestrado/doutorado profissional, indique o formato do Trabalho de Conclusão de Curso, permitido no documento de área, correspondente aoprograma de pós-graduação, orientado pela legislação vigente da CAPES. Exemplos: Estudo de caso ou Revisão sistemática ou outros formatos. 2. Nome completo do autor Iury Aragonez da Silva 3. Título do trabalho Intra-ações na educação digital onlife: uma leitura pós-humanista de uma sala de aula de francês 4. Informações de acesso ao documento (este campo deve ser preenchido pelo orientador) Concorda com a liberação total do documento [ X ] SIM [ ] NÃO¹ [1] Neste caso o documento será embargado por até um ano a partir da data de defesa. Após esse período,a possível disponibilização ocorrerá apenas mediante: a) consulta ao(à) autor(a) e ao(à) orientador(a); b) novo Termo de Ciência e de Autorização (TECA) assinado e inserido no arquivo da tese ou dissertação.O documento não será disponibilizado durante o período de embargo. Casos de embargo: - Solicitação de registro de patente; - Submissão de artigo em revista científica; - Publicação como capítulo de livro; - Publicação da dissertação/tese em livro. Obs. Este termo deverá ser assinado no SEI pelo orientador e pelo autor. Documento assinado eletronicamente por Rosane Rocha Pessoa, Usuário Externo, em 11/01/2024,às 11:41, conforme horário oficial de Brasília, com fundamento no § 3º do art. 4º do Decreto nº 10.543, de 13 de novembro de 2020. Documento assinado eletronicamente por Iury Aragonez Da Silva, Discente, em 12/01/2024, às 09:31, conforme horário oficial de Brasília, com fundamento no § 3º do art. 4º do Decreto nº 10.543,de 13 de novembro de 2020. A autenticidade deste documento pode ser conferida no site https://sei.ufg.br/sei/controlador_externo.php?acao=documento_conferir&id_ orgao_acesso_externo=0, informando ocódigo verificador 4309754 e o código CRC 1A6727AA. Referência: Processo nº 23070.040945/2023-31 SEI nº 4309754 IURY ARAGONEZ DA SILVA Intra-ações na educação digital onlife: uma leitura pós-humanista de uma sala de aula de francês Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Letras e Linguística, da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Goiás, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Letras e Linguística. Área de concentração: Estudos Linguísticos Linha de pesquisa: Ensino e aprendizagem de línguas adicionais Orientadora: Dra. Rosane Rocha Pessoa GOIÂNIA 2023 Ficha de identificação da obra elaborada pelo autor, através do Programa de Geração Automática do Sistema de Bibliotecas da UFG. Silva, Iury Aragonez da Intra-ações na educação digital onlife [manuscrito] : uma leitura pós-humanista de uma sala de aula de francês / Iury Aragonez da Silva. - 2023. 156 f.: il. Orientadora: Profa. Dra. Rosane Rocha Pessoa. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal de Goiás, Faculdade de Letras (FL), Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística, Goiânia, 2023. Bibliografia. Anexos. Apêndice. Inclui fotografias, símbolos, lista de figuras. 1. Educação linguística. 2. Educação digital. 3. Língua francesa. 4. Pós-humanismo. 5. Repertórios polissemióticos. I. Pessoa, Rosane Rocha, orient. II. Título. CDU 81 UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS FACULDADE DE LETRAS ATA DE DEFESA DE DISSERTAÇÃO Ata Nº 23 da sessão de defesa de dissertação de Iury Aragonez da Silva que confere o título de Mestre em Letras e Linguística, na área de concentração em Estudos Linguísticos Aos dezessete dias do mês de agosto do ano de dois mil e vinte e três, a partir das nove horas, via Google Meet, realizou-se a sessão pública de defesa de dissertação intitulada "Intra-ações na educação digital onlife: uma leitura pós-humanista de uma sala de aula de francês". Os trabalhos foram instalados pela orientadora, Profa. Dra. Rosane Rocha Pessoa (Presidente/PPGLL/FL/UFG), com a participação dos demais membros da banca examinadora: Profa. Dra. Nara HirokoTakaki (PPGEL/UFMS), Profa. Dra. Cláudia Hilsdorf Rocha (PPGLA/UNICAMP) e Profa. Dra. Laryssa Paulino de Queiroz Sousa (PPGIELT/UEG), membros titulares externos. Durante a arguição, os membros da banca não fizeram sugestão de alteração do título do trabalho. A banca examinadora reuniu-se em sessão secreta a fim de concluir o julgamento da dissertação tendo sido o candidato aprovado pelos seus membros. Proclamados os resultados pela Profa. Dra. Rosane Rocha Pessoa, presidente da banca examinadora, foram encerrados os trabalhos e, para constar, lavrou-se a presente ata que é assinada pelos membros da banca examinadora, aos dezessete dias do mês de agosto do ano de dois mil e vinte e três. TÍTULO SUGERIDO PELA BANCA Documento assinado eletronicamente por Cláudia Hilsdorf Rocha, Usuário Externo, em 21/08/2023,às 13:30, conforme horário oficial de Brasília, com fundamento no § 3º do art. 4º do Decreto nº 10.543, de 13 de novembro de 2020. Documento assinado eletronicamente por Nara Hiroko Takaki, Usuário Externo, em 21/08/2023, às13:59, conforme horário oficial de Brasília, com fundamento no § 3º do art. 4º do Decreto nº 10.543,de 13 de novembro de 2020. Documento assinado eletronicamente por Laryssa Paulino De Queiroz Sousa, Usuário Externo, em21/08/2023, às 17:32, conforme horário oficial de Brasília, com fundamento no § 3º do art. 4º do Decreto nº 10.543, de 13 de novembro de 2020. Documento assinado eletronicamente por Rosane Rocha Pessoa, Usuário Externo, em 21/08/2023,às 21:17, conforme horário oficial de Brasília, com fundamento no § 3º do art. 4º do Decreto nº 10.543, de 13 de novembro de 2020. A autenticidade deste documento pode ser conferida no site https://sei.ufg.br/sei/controlador_externo.php?acao=documento_conferir&id_orga o_acesso_externo=0, informando ocódigo verificador 3929214 e o código CRC D85AE617. Referência: Processo nº 23070.040945/2023-31 SEI nº 3929214 Banca Examinadora: Dra. Rosane Rocha Pessoa (Presidenta) Universidade Federal de Goiás (UFG) Dra. Cláudia Hilsdorf Rocha (Membra titular) Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) Dra. Laryssa Paulino de Queiroz Sousa (Membra titular) Universidade Estadual de Goiás (UEG) Dra. Nara Hiroko Takaki (Membra titular) Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS) Dra. Neuda Alves do Lago (Membra suplente) Universidade Federal de Goiás (UFG) AGRADECIMENTOS Dedico minha mais sincera e afetuosa gratidão: A minha mãe, Maria das Graças Silva, e a meu pai, Cícero Antônio da Silva, que jamais mediram esforços e sempre fizeram de tudo a seu alcance para que minha irmã e eu tivéssemos uma educação de qualidade e conseguíssemos realizar nossos estudos da forma mais tranquila possível. A minha irmã, Jéssica Mayara da Silva, junto a quem, quando jovem, descobri meu interesse pelas línguas estrangeiras. A meu companheiro de vida, Samuel Rufino de Carvalho, com quem partilhei os melhores e piores momentos de cada passo dado nesses anos de mestrado; que me auxiliou na formatação e na revisão deste texto; que é meu maior incentivador e a força que me move quando mais preciso. Tu es ma plus grande inspiration, mon amour ! A minha orientadora, Rosane Rocha Pessoa, que me acompanhou desde o processo seletivo de ingresso no mestrado, me acolheu pacientemente sob sua supervisão e me apoiou sem receios em todas as minhas experimentações. Seu espírito crítico, sua dedicação e sua ética responsável são inspiradoras! A meus/minhas alunos/as do grupo de Francês 6, que gentilmente se dispuseram a colaborar para o desenvolvimento deste trabalho e com quem dividi momentos preciosos durante nossas aulas. Je vous remercie, mes choux ! Ao Centro de Línguas da Universidade Federal de Goiás, pelo espaço para a produção deste estudo. Às professoras Cláudia Hilsdorf Rocha e Nara Hiroko Takaki, que compuseram a banca de qualificação como membras titulares; e à professora Neuda Alves do Lago e ao professor Avram Stanley Blum, que atuaram como membra e membro suplentes da banca de qualificação. Seus apontamentos foram de grande valia para o devir desta dissertação! Às professoras Cláudia Hilsdorf Rocha, Laryssa Paulino de Queiroz Sousa e Nara Hiroko Takaki, que compuseram a banca de defesa como membras titulares; e à professora Neuda Alves do Lago, que participou como membra suplentesda banca de defesa. Suas leituras críticas e cuidadosas deste trabalho demonstram seu compromisso éticoontoepistemológico com a produção de saberes na educação linguística. À professora Neuda Alves do Lago, que tem me acompanhado desde minha primeira graduação (em Relações Internacionais), sempre de forma muito carinhosa, e com quem tive o privilégio de trabalhar por muitos anos. Aprecio imensamente nossas parcerias e espero que elas se multipliquem cada vez mais! À professora Alexandra Almeida de Oliveira, minha primeira professora de francês, que exala um entusiasmo apaixonante pela docência, cujo incentivo foi primordial para que eu me tornasse professor de francês. Mille mercis, chérie ! A Gabriel Gomes Pereira Moreira e Rodrigo Santos Neves, amizades que floresceram na Faculdade de Letras e colegas de profissão por quem tenho profunda admiração. A Bismarck Chaussê Oliveira, amigo que me deu apoio em minha trajetória durante o mestrado. Ao grupo de orientandos/as da professora Rosane: Camila dos Passos Araújo Capparelli, Fernanda Caiado da Costa Ferreira, Laryssa Paulino de Queiroz Sousa, Maria José Lacerda Rodrigues Hoelzle, Ricardo Regis de Almeida e Victor Hugo Oliveira Magalhães, com quem tive trocas críticas e fundamentais sobre o andamento deste trabalho. Em especial, a Laryssa e a Victor, colegas com quem dividi os amores e os temores pelo Pós-Humanismo. Ao Transição, grupo de estudos coordenado pelas professoras Rosane Rocha Pessoa e Viviane Pires Viana Silvestre, que se empenha combativamente em projetos de educação linguística de enfrentamento às diversas formas de colonialidade e na coconstrução de posturas críticas perante o mundo. Às professoras Neuda Alves do Lago, Rosane Rocha Pessoa, Rosângela Aparecida Ribeiro Carreira e Tânia Ferreira Rezende, e aos professores Francisco José Quaresma de Figueiredo, Hildomar José de Lima e Wilton Divino da Silva Júnior, com quem construí saberes potentes durante as aulas na pós-graduação. Aos/Às professores/as, coordenadores/as, técnicos/as-administrativos/as e colegas do Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística da Universidade Federal de Goiás, que trabalham exaustivamente em defesa do fazer científico e em prol da melhoria de nosso programa. À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, pelo apoio financeiro durante a realização deste trabalho. Enfim, a todos os corpos, humanos e não humanos, que contribuíram direta ou indiretamente para o desenvolvimento desta dissertação. O título de Mestre em Letras e Linguística se construiu como uma conquista coletiva. Serei eternamente grato a todos/as vocês. Muito obrigado! Merci beaucoup ! RESUMO Esta dissertação tem como objetivo discutir experiências com a educação linguística em francês em uma sala de aula de um centro de línguas de uma universidade pública, localizada no estado de Goiás, com estudantes brasileiros/as. O estudo foi realizado entre os meses de setembro a dezembro de 2021 de forma remota, devido à pandemia de COVID-19, com 12 estudantes de um grupo de Francês 6. Para problematizar as experiências compartilhadas ao longo do curso, tomo como alicerce praxiológico o Pós-humanismo, fundamentado na noção de que a matéria e o discurso são coconstitutivos (Barad, 2003, 2007). Entendo que uma orientação (neo)materialista (Canagarajah, 2018a) desestabiliza nossos entendimentos acerca dos eventos que (re)configuram o mundo ao ampliar o foco para além das relações humanas, possibilitando novas formas de apreender língua(gem) e educação linguística. Com base nisso, recorro à Linguística Aplicada Pós-Humanista (Canagarajah, 2018a, 2018b; Pennycook, 2018a, 2018b; Sousa, 2022), a qual busca problematizar língua-matéria-discurso-poder a partir das materialidades, isto é, da assemblagem de actantes humanos/as e não humanos/as. No escopo da perspectiva pós-qualitativa (St. Pierre, 2014a, 2014b, 2018), os materiais desta perguntação (Matos, 2021) compreendem: um questionário, aulas gravadas em áudio e vídeo pelo Google Meet, um diário de campo e produções escritas, orais e polissemióticas dos/as alunos/as. A partir de leituras difrativas (Barad, 2012) desses aparatos, busquei problematizar de que maneiras as pessoas, os materiais didáticos, as Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs), as subjetividades, as emoções e as espaçotemporalidades intra-agiram para oportunizar a emergência de repertórios polissemióticos (Magalhães; Silva, 2022) atrelados à língua francesa em um contexto de educação digital onlife (Moreira; Schlemmer, 2020). Ao abordar as percepções dos/estudantes acerca de suas corpovivências (Almeida, 2023), brilhou o entendimento da sala de aula digital como um espaço liso (Deleuze; Guattari, 1997) que bagunça a produção linguageira ao mesmo tempo em que permite o exercício de intranomia (Sousa, 2022) para a coconstrução de repertórios em assemblagem com actantes não humanos/as e em espaçotempos distintos. Além disso, os eventos corpovivenciados apontam para a necessidade de uma educação linguística corporificada, entendendo que significados/sentidos emergem de maneira polissemiótica, para além do processamento mental de regras que resulta na primazia de formas verbais de expressão. Espero que o trabalho desenvolvido contribua para o fortalecimento de uma concepção rizomática (Canagarajah, 2018a) de língua(gem) como matéria, de modo a encorajar uma visão menos antropocêntrica acerca das produções linguageiras. Palavras-chave: educação linguística; educação digital; língua francesa; Pós-humanismo; repertórios polissemióticos. ABSTRACT This thesis aims to discuss some French language education experiences in a classroom with Brazilian students of a language center of a public university, located in the state of Goiás. Due to the COVID-19 pandemic, the study was conducted remotely from September to December 2021, with 12 students from a French 6 group. To problematize the experiences shared throughout the course, I rely on posthumanism, grounded on the notion that matter and discourse are co-constitutive (Barad, 2003, 2007). As I see it, a (new) materialist orientation (Canagarajah, 2018a) destabilizes our understandings of the events that (re)configure the world by broadening the focus beyond human relations, enabling new ways of apprehending language and language education. Based on this, I turn to posthumanist applied linguistics (Canagarajah, 2018a, 2018b; Pennycook, 2018a, 2018b; Sousa, 2022), which seeks to problematize languagematter-discourse-power from a new materialist viewpoint, that is, considering an assemblage of human and nonhuman actants. In the scope of post-qualitative inquiry (St. Pierre, 2014a, 2014b, 2018), the materials of this perguntação (Matos, 2021) comprise: a questionnaire, classes recorded in audio and video via Google Meet, a field diary, and students’ written, oral and polysemiotic productions. Through diffractive readings (Barad, 2012) of these apparatuses, I sought to problematize how people, teaching materials, Information and Communication Technologies (ICTs), subjectivities, emotions, and spacetime intra-acted to foster the emergence of polysemiotic repertoires (Magalhães; Silva, 2022) connected to the French language in a context of onlife digital education (Moreira; Schlemmer, 2020). According to the students’ perceptions of their corpovivências (Almeida, 2023), what glowed was the understanding of the digital classroom as a smooth space (Deleuze; Guattari, 1997) that messes up language production while allowing for the exercise of intranomy (Sousa, 2022) in the coconstruction of repertoires in assemblage with nonhuman actants and in different spacetimes. In addition, the events we experienced point to the need for an embodied language education that comprehends that meanings emerge in a polysemiotic way, going beyond the mental processing of rules that results in the primacy of verbal forms of expression. I hope that this work may contribute to strengthen a rhizomatic conception (Canagarajah, 2018a) of language as matter and encourage a less anthropocentric view of languaging. Keywords: language education; digital education; French language; posthumanism; polysemiotic repertoires. RÉSUMÉ Ce mémoire de recherche a pour objectif de discuter de l’éducation linguistique en français dans une salle de classe d’un centre de langues d’une université publique, située dans l’état de Goiás, avec des étudiant.e.s brésilien.ne.s. L’étude a été réalisée entre septembre et décembre 2021 à distance, en raison de la pandémie de COVID-19, avec 12 étudiant.e.s d’un groupe de Français 6. Pour problématiser les expériences partagées tout au long du cours, je prends le Posthumanisme comme fondement praxéologique, basé sur la notion que la matière et le discours sont co-constitutifs (Barad, 2003, 2007). Je soutiens qu’une orientation (néo)matérialiste (Canagarajah, 2018a) déstabilise notre compréhension des événements qui (re)configurent le monde en élargissant notre point de vue au-delà des relations humaines, ce qui permet de nouvelles façons d’appréhender la langue/le langage et l’éducation linguistique. En tenant compte de cela, je me tourne vers la Linguistique Appliquée Posthumaniste (Canagarajah, 2018a, 2018b ; Pennycook, 2018a, 2018b ; Sousa, 2022), qui cherche à problématiser le rapport langue-matière-discours-pouvoir d’un point de vue des matérialités, c'est-à-dire de l’agencement d’actant.e.s humain.e.s et non-humain.e.s. S’inscrivant dans le cadre de la perspective postqualitative (St. Pierre, 2014a, 2014b, 2018), les matériels de cette perguntação (Matos, 2021) comprennent : un questionnaire, des cours enregistrés en audio et vidéo via Google Meet, un journal de terrain et des productions écrites, orales et polysémiotiques des étudiant.e.s. À partir de lectures diffractives (Barad, 2012) de ces appareils, j’ai cherché à problématiser comment les personnes, les matériels didactiques, les Technologies de l’Information et de la Communication (TICs), les subjectivités, les émotions et les spatiotemporalités ont intra-agi afin de permettre l’émergence de répertoires polysémiotiques (Magalhães ; Silva, 2022) liés à la langue française dans un contexte d’éducation numérique onlife (Moreira ; Schlemmer, 2020). En abordant les perceptions des étudiant.e.s de leurs corpovivências (Almeida, 2023), il a brillé la compréhension de la salle de classe numérique comme un espace lisse (Deleuze ; Guattari, 1997) qui perturbe la production langagière tout en permettant l’exercice de l’intranomie (Sousa, 2022) pour la co-construction de répertoires en agencement avec des actant.e.s non-humain.e.s et dans différents espacetemps. En outre, les événements corpovécus soulignent la nécessité d’une éducation linguistique corporifiée, comprenant que les significations/sens émergent de manière polysémiotique, audelà du traitement mental des règles qui aboutit à la primauté des formes verbales d’expression. J’espère que ce travail contribuera au renforcement d’une conception rhizomatique (Canagarajah, 2018a) de langue comme matière, afin d’encourager une vision moins anthropocentrique des productions langagières. Mots-clés : éducation linguistique ; éducation numérique ; langue française ; Posthumanisme ; répertoires polysémiotiques. SUMÁRIO GERMINAÇÃO: enredando a conversa pelo meio............................................................. 18 INTRANÓS: bases ético-ontoepistemológicas da perguntação.......................................... 35 Contexto sociomaterioespaçotemporal ................................................................................. 42 Materiais ............................................................................................................................... 53 Questionário ..................................................................................................................... 54 Aulas ................................................................................................................................. 56 Produções dos/as estudantes ............................................................................................ 60 Diário de campo ............................................................................................................... 61 Discussão dos materiais ........................................................................................................ 64 PRIMEIRO NÓ: “on-line é mais difícil”?............................................................................ 69 SEGUNDO NÓ: que linguagem resta se continuamos venerando as palavras? .............. 87 DESCONSIDERAÇÕES DE FINAIS ................................................................................ 118 REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 125 APÊNDICES ......................................................................................................................... 137 Apêndice A – Termo de Anuência...................................................................................... 138 Apêndice B – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido para participantes ............... 139 Apêndice C – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido para pais/mães/responsáveis ............................................................................................................................................ 142 Apêndice D – Termo de Assentimento Livre e Esclarecido ............................................... 144 Apêndice E – Questionário ................................................................................................. 147 ANEXOS ............................................................................................................................... 151 Anexo A – Parecer do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade Federal de Goiás ............................................................................................................................................ 152 LISTA DE FIGURAS Figura 1 – Colagem digital I: série Pós-humanos .................................................................... 20 Figura 2 – Colagem digital II: série Pós-humanos ................................................................... 21 Figura 3 – Colagem digital III: série Pós-humanos .................................................................. 22 Figura 4 – Colagem digital IV: série Pós-humanos.................................................................. 23 Figura 5 – Rizoma .................................................................................................................... 29 Figura 6 – Assemblagem dos/as colaboradores/as do estudo ................................................... 48 Figura 7 – Imagem em movimento do Google Sala de Aula ................................................... 52 Figura 8 – Imagem em movimento da sala de aula virtual do portal do/a aluno/a*................. 52 Figura 9 – Aulas do curso de Francês 6 ................................................................................... 60 Figura 10 – Exemplo de difração de onda sonora .................................................................... 66 Figura 11 – Imagem em movimento das perguntas apresentadas ao grupo no último encontro síncrono .................................................................................................................................... 69 Figura 12 – Imagem em movimento das respostas dos/as estudantes ...................................... 70 Figura 13 – Paisagem parcial da sala de aula digital ................................................................ 72 Figura 14 – Isolamento social na pandemia de COVID-19 ..................................................... 83 Figura 15 – Narrativa de Hiago revisada pelo professor .......................................................... 85 Figura 16 – Expressão corpórea do professor .......................................................................... 89 Figura 17 – Imagem apresentada por Profa em seu comentário ............................................ 104 Figura 18 – Atividade de Leia sobre Les misérables ............................................................. 105 Figura 19 – Monumento de Marta .......................................................................................... 107 Figura 20 – Monumento de Jeane .......................................................................................... 108 Figura 21 – Monumento de Profa ........................................................................................... 108 Figura 22 – Monumento de Leia ............................................................................................ 108 Figura 23 – Monumento de Julio Pinheiro ............................................................................. 109 Figura 24 – Monumento de r.c. .............................................................................................. 110 Figura 25 – Monumento de Maria .......................................................................................... 110 Figura 26 – Monumento de Gigi ............................................................................................ 111 Figura 27 – Monumento de Hiago.......................................................................................... 112 Figura 28 – Monumento de Toni ............................................................................................ 112 Figura 29 – Monumento de FX .............................................................................................. 113 Figura 30 – Monumento de Croissant .................................................................................... 113 Figura 31 – Tirinha ................................................................................................................. 118 LISTA DE VÍDEOS Vídeo 1 – Poema Metodologia ................................................................................................. 35 Vídeo 2 – Ementa e objetivos do Francês 6 ............................................................................. 57 Vídeo 3 – Conjugação de sons e gestos.................................................................................... 97 A desconstrução acontece. O texto se desfaz a si mesmo. O movimento de escrever assume o comando, e o/a escritor/a, a pessoa (nenhum dos substantivos funciona em uma perguntação pós-qualitativa) perde o controle e se vê quase incapaz de acompanhar pensarescrever enquanto as palavras aparecem na tela do computador que ela não poderia ter pensado sem escrever. Essa escritura não começa em reconhecimento (Ah, eu reconheço isso — é isso! Vou descrevê-lo). Essa escritura é aventura, experimentação, empurrando em direção a quê? Em direção ao ininteligível, em direção à différance de Derrida, à pura diferença de Deleuze, em direção, talvez, a um mundo diferente.1 [Deconstruction happens. The text undoes itself. The movement of writing takes over, and the writer, the person (neither noun works in post qualitative inquiry) loses control and finds herself barely able to keep up in the thinkingwriting as words appear on the computer screen she could not have thought without writing. This writing does not begin in recognition (Ah, I recognize that—that’s what that is! I’ll describe it.). This writing is adventure, experimentation, pushing through toward what? Toward the unintelligible, toward Derrida’s différance, Deleuze’s pure difference, perhaps toward a different world.] Elizabeth Adams St. Pierre (2018, p. 605) Desejo que esta [dissertação] chegue até você, caro/a leitor/a, provocando encontros alegres que culminem na mobilização de um pensar rizomático em educação [linguística]. Que a partir do contato com os pensamentos aqui materializados, você possa vir a produzir experimentações ativas que abram modos outros de habitar e recriar a educação [linguística]. Fernanda Monteiro Rigue (2021, p. 6-7) 1 Todas as traduções apresentadas nesta dissertação foram performadas por mim, em colaboração com dicionários e tradutores digitais. 18 GERMINAÇÃO: enredando a conversa pelo meio Sou Matéria De que é feita A matéria que me faz? Impulsos elétricos me fizeram Acordar de madrugada. O eterno Movimento de elétrons ao redor de Prótons e nêutrons me fez suspirar. A repulsão Entre minúsculas cargas negativas me fez Levar a mão à testa de modo que minha Carne encontrasse minha carne Apesar do imenso vácuo nos Átomos do meu corpo. Sou matéria, que Matéria Sou! Mais humano impossível, Wlange Keindé (2015) Sou matéria. Inicio este texto com essa constatação para demarcar o lugar praxiológico2 de onde enuncio: o Pós-Humanismo3. Antes de falar do que se trata, proponho um exercício. Penso que as artes têm o potencial de nos levar a lugares inexplorados, de nos fazer imaginar o inimaginável, de nos impulsionar a conhecer o desconhecido. Sendo assim, tomando como base o poema Mais humano impossível (Keindé, 2015) e a série de colagens digitais intitulada Póshumanos4 (Brilhante, 2019) – exibida nas páginas seguintes –, sugiro que você considere estas questões: a) Que visões de mundo essas obras mobilizam? Emprego o termo “praxiológico” em alinhamento com a proposição de Pessoa, Silva e Freitas (2021, p. 16) de que “[a]s praxiologias […] são nossas epistemologias fundidas com nossas práticas, misturadas de tal forma que não podem ser expressas senão em uma palavra. O termo substitui teorias, pois compreendemos que, pelo menos na nossa área, teorias não podem ser dissociadas da prática”. 3 Recorro à mudança da fonte tipográfica para dar ênfase a determinados conceitos, expressões, ideias e termos em alguns trechos do texto. 4 Ao longo da leitura, você perceberá que há diversos hyperlinks no texto, que se configuram como um convite para acessar outros recursos semióticos. Clique neles sempre que possível. Gostaria de chamar a atenção para o fato de que eles podem parar de funcionar ou ter seus conteúdos transformados, e mesmo excluídos, a qualquer momento. Em sua leitura do trabalho, a professora Laryssa Sousa, membra titular da banca de defesa, deixou o seguinte testemunho, em forma de comentário, em certa parte do texto: “[n]otei que, dos hyperlinks [em] que cliquei até aqui, apenas este ainda está funcionando. Mas acho que isso é mais uma demonstração dessas forças sobre as quais não temos controle – a (in)disponibilidade deles não depende do Iury. rs” (Sousa, 2023, p. 18). Peço que carregue essa compreensão ao longo de sua leitura. 2 19 b) Como elas te5 afetam? c) O que te dizem sobre o Pós-humanismo? “Qual o propósito disso?”, você pode se perguntar. A resposta é muito simples: gostaria de começar esta nossa conversa pelo meio; [é] que o meio não é uma média; ao contrário, é o lugar onde as coisas adquirem velocidade. Entre as coisas não designa uma correlação localizável que vai de uma para outra e reciprocamente, mas uma direção perpendicular, um movimento transversal que as carrega uma e outra, riacho sem início nem fim, que rói suas duas margens e adquire velocidade no meio (Deleuze; Guattari, 1995, n.p.). A velocidade designa uma variação da posição de um corpo no espaço em relação ao tempo, provocando deslocamentos. Eis aí meu intuito: provocar deslocamentos, trânsitos, movimentos em direções e sentidos não premeditados. Vamos lá? O uso do pronome oblíquo “te” em referência ao pronome de tratamento “você”, ao longo deste texto, é proposital. Tenho ciência de que, nesses casos, a norma padrão determina que usemos os pronomes oblíquos da terceira pessoa do singular (o, a, lhe). No entanto, subverto essa norma para dar a minha escrita um tom de cotidianidade, visto que essa troca é corriqueira nas enunciações de grande parte dos/as brasileiros/as. 5 20 Figura 1 – Colagem digital I: série Pós-humanos Fonte: Brilhante (2019). 21 Figura 2 – Colagem digital II: série Pós-humanos Fonte: Brilhante (2019). 22 Figura 3 – Colagem digital III: série Pós-humanos Fonte: Brilhante (2019). 23 Figura 4 – Colagem digital IV: série Pós-humanos Fonte: Brilhante (2019). E então? Para socializar suas ideias, a fim de construirmos saberes coletivamente, peço, gentilmente, que registre aqui suas impressões, de forma anônima, no formato que preferir (texto escrito, imagem, áudio, vídeo etc.). 24 Agora que você já teve a oportunidade de se indagar sobre o Pós-humanismo, podemos dar continuidade a esta conversa. Tomo, aqui, emprestadas as palavras de Matos (2021, p. 15): “[e]ntão, venha! Converse comigo e vamos palestrar sobre nossos achados, nossas buscas e as construções que estamos fazendo. A regra é manter-se atento/a, escutar, falar, sem querer encontrar e experienciar as mesmas coisas e vivências já consagradas no cotidiano”. O poema de Keindé (2015) afirma que somos matéria e nos interroga: “que matéria somos?”. Talvez a resposta esteja nas colagens digitais de Brilhante (2019). Somos matéria constituída de várias matérias. Somos corpos compostos de muitos outros corpos. Somos seres atravessados por diversos outros seres. Somos humanos/as conectados/as com plantas, animais, solos, nuvens, objetos, roupas, casas… Somos toda essa matéria. Assim, pergunto: onde começa e onde termina o/a humano/a? Vivemos em uma era denominada Antropoceno, um período histórico-geológico que se produziu por força da húbris humana e sua capacidade de destruição. Uso, aqui, esse termo por ser o mais aceito e difundido, até o momento, no mundo acadêmico. No entanto, reconheço que sua utilização é problemática, uma vez que aponta para uma pretensa humanidade universal. A esse respeito, Haraway (2014, 20min 53s) explica que “a palavra anthrōpos é irremediável”6, porque sua etimologia, no grego, não inclui mulheres, crianças e pessoas escravizadas. Numa veia similar, Parikka (2018, p. 53) disserta que o Antropoceno é sobre culpabilidade, mas a atribuição dessa culpa é controversa e, por isso, questiona: [a]té que ponto é realmente possível discutir a Era dos/as Humanos/as de forma tão homogênea sobre o impacto humano quando ela realmente deveria registrar as ações econômicas e políticas particulares, muitas vezes específicas do capitalismo, que têm efeitos muito desiguais através da divisão global Sul-Norte (ver Chakrabarty 2009)?7 Algumas alternativas a Antropoceno são apresentadas por Haraway (2015), tais como Capitaloceno, Plantationoceno e Chthuluceno, que podem ser lidas em detalhe em seu artigo. Há ainda a proposta do Antrobsceno (Parikka, 2014) para tratar das relações das mídias com o planeta. Há muito tempo, povos originários vêm nos alertando sobre os perigos que a existência humana autocentrada, egoísta e irresponsável representa para o planeta. Ailton Krenak (2020, n.p.) nos provoca a questionar o sentido de ser humano e nos deixa um apelo: “[t]emos que “the word anthrōpos is irredeemable”. “[h]ow far is it really possible to discuss the Age of Humans as really homogeneously about the human impact when it actually should register the specific economic and political actions, often specific to capitalism, that have effects very unevenly across the global south–north divide (see Chakrabarty 2009)?” 6 7 25 abandonar o antropocentrismo; há muita vida além da gente”. Pensando nisso, talvez seja mais pertinente falarmos em Antropo-cego (Anthropo-not-seen), proposta de Cadena (2018, p. 100) para designar o processo de criação de mundo por meio do qual mundos heterogêneos que não se fazem por meio de práticas que separam ontologicamente os[/as] humanos[/as] (ou a cultura) dos[/as] não humanos[/as] (ou a natureza) – nem necessariamente concebem como tal as diferentes entidades presentes em seus agenciamentos – são ambos[/as] obrigados[/as] a operar com essa distinção (deliberadamente destruída) e excedê-la. Em meio ao caos aparentemente irreversível do Antropoceno ou Antropo-cego, a seguinte pergunta vem a calhar: “mas o que podemos fazer em relação a isso?”. Numa linha semelhante à de Ailton Krenak, Ulmer (2021, p. 239) responde que “todos/as podemos fazer muitas coisas, começando pela forma como nos vemos […] [e] nos reavaliando em relação ao todo”8. A meu ver, o Pós-humanismo nos oferece elementos para reconfigurar nosso lugar no mundo, o que não significa, necessariamente, celebrá-lo como “um discurso salvacionista universal”9 (Takaki, 2019b, p. 581). Se eu tiver de defini-lo, faço ecoar as palavras de Ferrando (2012, p. 9): “o Pós-humanismo é práxis”10. É saber-fazer-sentir-pensar mobilizando um lugar outro. Diversos/as autores/as têm produzido trabalhos nessa perspectiva, sob nomes diversos e com particularidades variadas, como Teoria do Ator-Rede, Novos Materialismos, Novos Empiricismos etc. Adoto, aqui, a expressão “Pós-humanismo” como um termo guarda-chuva para designar toda essa heterogeneidade, pois, à semelhança de Gourlay (2015, p. 4), entendo que todas essas praxiologias constituem um arcabouço que questiona a relação entre o “humano” e outras categorias tomadas como dadas, tais como “natureza”, “animais” e “tecnologia”. É um campo complexo com várias áreas de interesse, mas o que as une genericamente é o questionamento dos binarismos usados para separar categorias aparentemente invioláveis e não problemáticas. 11 Ao questionar a relação do ser humano com outros corpos, o Pós-humanismo reconhece que seres não humanos também performam agência, isto é, têm a capacidade de operar mudanças no espaçotempo. Assim como Latour (2007, p. 104), recorro à expressão “não humanos/as”, na ausência de um termo melhor, para designar todos os corpos que se “[w]e can all do many things, beginning with how we view ourselves […] [and] reconsider[ing] ourselves in relation to the broader whole”. 9 “as a universal salvationist discourse”. 10 “Posthumanism is praxis”. 11 “which questions the relationship between the ‘human’ and other taken-for-granted categories such as ‘nature’, ‘animals’ and ‘technology’. It is a complex field with several areas of concern, but what loosely unites these is an interrogation of binaries used to separate seemingly inviolate and unproblematic categories”. 8 26 diferenciam dos/as humanos/as. O autor nos adverte que a expressão carrega marcas antropocêntricas e defende, portanto, que “[n]ão devemos procurar qualquer outro significado nessa noção: ela não especifica um domínio ontológico, mas meramente substitui outra diferença conceitual”12 (Latour, 2007, p. 104). Logo, espero “[q]ue esse prefixo ‘não-’ seja [entendido como] um signo de abertura para todas as permutações de existências, as possíveis e as impossíveis em direção ao avesso do avesso do avesso” (Oliveira, 2022, p. 47). No esforço de assumir que a agência é distribuída, e não uma propriedade humana, uso o termo actante para designar qualquer corpo que participe do desenvolvimento de uma ação (Latour, 1996, 2007), que é “definida por uma lista de performances por meio de tentativas”13 (Akrich; Latour, 1992, p. 9). Por exemplo, na escrita desta dissertação, podemos considerar como actantes, além de mim, o computador, a internet, o dicionário de sinônimos, minha orientadora etc., uma vez que todos/as se emaranharam para fazer emergir a ação de escrever. Nesse sentido, os/as actantes estão sempre conectados/as em alguma medida, formando assemblagens, concebidas como agrupamentos transitórios de agências que afetam umas às outras. De acordo com Deleuze (2006, p. 177), “[e]m assemblagens você encontra estados de coisas, corpos, várias combinações de corpos, miscelâneas; mas você também encontra enunciados, modos de expressão e regimes inteiros de signos”14. Sob essa ótica, Barad (2003) cunha o termo intra-ação, em oposição ao humanismo enraizado em “interação”, para fazer referência à confluência performativa de corpos diversos que estabelecem relações entre si. A autora argumenta em favor de uma dependência ontológica mútua, de modo que os/as actantes não preexistem às relações que se emaranham em um fenômeno, mas se fazem nelas e com elas em um movimento contínuo de tornar-se. A intraação evidencia a necessidade de repensarmos práticas para além do ser humano, de sorte a considerar a capacidade agentiva de objetos, coisas, plantas, animais e tecnologias nas dinâmicas que (des)organizam o cosmos. Em vista disso, considero indispensável atentarmos para os afectos que formam nossas intra-ações. A partir do conceito filosófico de affectus, discutido por Spinoza, Deleuze (1978, para. 11) destaca que o afecto consiste na “variação contínua […] da força de existir ou do “[o]n ne doit chercher aucune autre signification dans cette notion : elle ne spécifie pas un domaine ontologique, mais elle se contente de remplacer une autre différence conceptuelle”. 13 “defined by a list of performances through trials”. 14 “[i]n assemblages you find states of things, bodies, various combinations of bodies, hodgepodges; but you also find utterances, modes of expression, and whole regimes of signs”. 12 27 poder de agir”15. Nessa direção, devo escurecer16 que os afectos não se reduzem às noções de afetividade ou afeição, comumente ligadas à demonstração de sentimentos e emoções, mas antes dizem respeito à “habilidade de afetar os/as outros/as e ser afetado/a por eles/as”17 (Sousa, 2022, p. 16). Foi com isso em corpomente18 (Merrell, 2003) que, no início deste texto, lancei a pergunta sobre como as imagens de Brilhante (2019) te afetam no ensejo de trazer à tona as possibilidades de sentido emergentes de suas intra-ações com as artes apresentadas. Todo esse conjunto praxiológico tem implicações para as formas como entendemos a (materialidade da) língua(gem) e nossas relações com ela, o que demanda uma revisão da Linguística Aplicada. É necessário “[a]bandonarmos nossas suposições a priori sobre o que é a língua(gem) e permanecermos abertos/a à língua(gem) de outra forma”19 (Hauck, 2023, p. 18). Esse movimento nos estimula a confrontar conceitos já estabilizados e sedimentados na área e experimentar vivências epistemológicas, éticas e ontológicas outras. Pennycook (2018b) assinala que pensar em termos pós-humanistas exige uma reconsideração acerca do percurso de construção do nosso pensamento nos moldes em que se configurou e, mais do que isso, uma busca por formas outras de produção de conhecimentos. A esse respeito, propõe uma Linguística Aplicada Pós-Humanista, firmada na problematização/desestabilização da centralidade da figura do ser humano e na busca por alternativas para novos entendimentos sobre os conceitos de língua(gem) e poder. Esse olhar outro permite desconstruir a ideia de que a cognição e a língua pertencem a humanos/as racionais engajados/as em diálogos de compreensão mútua, reconhecendo que ambas estão espalhadas nos espaçotempos, nos artefatos, nos recursos semióticos, nas pessoas, enfim, em toda a materialidade que compõe as dinâmicas iterativas de intra-ação (Barad, 2007; Pennycook, 2018b). Nessa mesma linha, Kuntz e Presnall (2012, p. 734) apontam que a “[l]íngua(gem) resulta de experiências materiais e tem efeitos materiais”20, sendo que as “palavras em si mesmas podem ser entendidas como corpos que afetam e são afetados”21. “variation continue […] de la force d’exister ou de la puissance d’agir”. Devo os créditos dessa perspicaz inversão de valores do binômio esclarecer/escurecer a Rosane, quem vi usar o termo, certa vez, em um recado para a turma da disciplina de Formação docente no ensino de segundas línguas e línguas estrangeiras, ministrada no Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística da Universidade Federal de Goiás. 17 “ability to affect others and be affected by them”. 18 Confrontando a oposição binária mente/corpo, que, numa perspectiva cartesiana se refere a duas unidades autônomas e separadas, Merrell (2003) sugere o termo corpomente (bodymind), escrito de maneira acoplada, para designar que ambas agem de forma conjunta como uma única entidade. 19 “[t]o forego a priori assumptions of what language is and remain open to language otherwise”. 20 “[l]anguage derives from material experiences and has material effects”. 21 “words themselves can be understood as bodies, affected and affecting”. 15 16 28 Assim, a língua(gem) não existe para além da materialidade, ela se torna materialidade enquanto fenômeno em intra-ação. Na esteira desse pensamento, Canagarajah (2018a) problematiza a noção de “competência” na Linguística Aplicada. O autor critica a concepção hegemônica que reduz a competência aos processos cognitivos individuais de internalização de itens gramaticais. Nesse aspecto, contrapõe o modelo arbóreo estruturalista ao modelo rizomático. O primeiro é “causal, cumulativo e linear”22 (Canagarajah, 2018a, p. 3), centrado na primazia da gramática. Nessa visão, os/as actantes não humanos/as, tais como objetos e espacialidades, são considerados/as elementos acessórios, externos à competência. O modelo rizomático, em contrapartida, rompe com a linearidade e engloba elementos não estritamente verbais, de modo a descentrar o indivíduo ao passo que considera a agência distribuída de corpos, cognição, emoção etc. na produção linguageira. Julgo importante enfatizar o qualificador “linguageiro”, em lugar de “linguístico”, para reforçar que a inteligibilidade emerge de formas múltiplas de comunicação para além da língua oral ou escrita. A partir do rizoma, a competência é entendida para além do indivíduo, estando distribuída nas diversas materialidades que constituem as redes sociotécnicas, isto é, coletivos híbridos de humanos/as e não humanos/as (Latour, 1994). Isso porque um rizoma não pode ser justificado por nenhum modelo estrutural ou gerativo […] Um rizoma não começa nem conclui, ele se encontra sempre no meio, entre as coisas, inter-ser, intermezzo. A árvore é filiação, mas o rizoma é aliança, unicamente aliança. A árvore impõe o verbo “ser”, mas o rizoma tem como tecido a conjunção “e... e... e...” Há nesta conjunção força suficiente para sacudir e desenraizar o verbo ser (Deleuze; Guattari, 1995, n.p.). A Figura 5 resume de forma lúdica e descomplicada esse argumento. Como Rigue (2021, p. 5) sinaliza, “[e]sse conceito, quando vinculado com o campo da educação [linguística], expande as possibilidades e ressonâncias para pensar os processos formativos em torno do que entendemos por educar, aprender e escola”. Vemos, assim, que os rizomas nos fornecem um lugar outro para tratar dos eventos e fenômenos linguageiros que constroem nossas vidas, abordados de um ponto de vista relacional, a partir das complexidades de seus inúmeros brotos, nós e entrenós. 22 “causal, cumulative, and linear”. 29 Figura 5 – Rizoma Fonte: Arvoreagua (2022). No lugar de competência, portanto, seria mais produtivo nos debruçarmos sobre a colocação/localização (emplacement). Trata-se da “sintonia estratégica e contínua com uma assemblagem de agentes e recursos em escalas espaçotemporais expansivas para o surgimento do pensamento e do significado/sentido durante uma atividade”23 (Canagarajah, 2018a, p. 18). Isso implica uma compreensão da agência humana atrelada às redes sociotécnicas com as quais está sintonizada, levando em conta as mobilizações estratégicas postas em curso para atingir objetivos específicos. No quesito linguageiro, colocação/localização assume a faceta dos processos rizomáticos que possibilitam a construção de repertórios de forma integrada, superando a tradicional dicotomia competência/performance. Em consonância com Canagarajah (2018a, p. 21), compreendo que as “atividades comunicativas envolvem a negociação de ideologias e normas que se expressam por meio de “the strategic and ongoing attunement to an assemblage of agents and resources in expansive spatiotemporal scales for the emergence of thinking and meaning in activity”. 23 30 recursos semióticos e redes”24. Em vista disso, este trabalho tem como objetivo geral problematizar a educação linguística em francês de um grupo de estudantes brasileiros/as no contexto de educação digital. Partindo dos pressupostos pós-humanistas de que o conhecimento se constrói por/em corpos diversos (Barad, 2003) e de que a cognição e a língua estão espalhadas em materialidades heterogêneas (Pennycook, 2018a, 2018b), este estudo tem como base a intra-ação de actantes humanos/as e não humanos/as para entender as dinâmicas de ensinaprender25 a língua francesa. Os objetivos específicos são: a) problematizar o caráter coconstitutivo das práticas discursivas com as materialidades na formação de repertórios polissemióticos (Magalhães; Silva, 2022) na educação linguística em francês; e b) abordar as percepções dos/as estudantes acerca de sua educação linguística, levando em consideração suas intrarrelações com materialidades diversas (humanas e não humanas). Concebo repertórios como “construções sociomateriais que emergem de atividades” (Magalhães; Silva, 2022, p. 109). Aliado à proposição de Canagarajah (2018a), utilizo o termo polissemióticos para fazer referência às formas de emergência de significado/sentido que mobilizam elementos semióticos variados. A princípio, o prefixo “poli-” pode sugerir certa redundância, pois a semiótica é, em si mesma, multiforme. No entanto, seu emprego, aqui, serve para reforçar a ideia de que minha atenção não se limita a itens “estritamente linguísticos”, se é que algo do tipo exista. Desse modo, sustento que pluralidades semióticas se (des)alinham para gerar inteligibilidade em nossas intraações linguageiras. Muito lutei com os termos para caracterizar este trabalho. “Pesquisa”, em vista de sua forte herança colonial e colonizadora (Ortiz Ocaña; Arias López, 2019), não me parecia apropriado26. Trasladei, então, para “investigação”, na falta de uma tradução melhor, para reproduzir os sentidos de inquiry, na língua inglesa, que designa o processo de fazer perguntas. Por motivo de sua inclinação para a “descoberta” de uma suposta verdade, tampouco esse vocábulo fez jus a meu sentipensar27 (Torre, 2000). Assim, abandonei ambos. Certo dia, “communicative activities involve negotiating the ideologies and norms that find expression through semiotic resources and networks”. 25 Inspirado no termo ensinaraprender, utilizado por Süssekind e Santos (2016), emprego ensinaprender para designar o entendimento de que as práticas de ensinar e aprender são inseparáveis. Essa mudança decorre da compreensão de que, apesar de oportuna, a mera junção dos verbos conota ainda certa separabilidade, de modo a deixar escapar a aglutinação constitutiva do processo. 26 Embora tenha feito a escolha de não usar o termo “pesquisa”, ele aparecerá quando for proveniente da citação de outros/as autores/as. A mesma premissa é válida para “teoria”, “método”, “metodologia” e “dados”. 27 Para Torre (2000, p. 552, ênfases no original), sentipensar corresponde à “fusão ou ‘casamento’ entre sentir e pensar […] é a ação por meio da qual pensamento e sentimento trabalham juntos” [“la fusión o ‘maridaje’ entre pensar y sentir […] es la acción por la que sentimiento y pensamiento trabajan juntos”]. 24 31 ruminando esse assunto, tive o que, naquele momento, se afigurou, para mim, como um insight e cheguei à perguntação. Entendi que, ao combinar “pergunta” e “ação”, esse termo estaria em forte harmonia com “praxiologia”, que congrega teoria e prática indissociavelmente. Guardei essa ideia e, tempos depois, esbarrei na filosofia (da) perguntação, de Matos (2021). Reverberando as palavras do filósofo, posso dizer que “[o] termo perguntação me mobiliza pela dupla possibilidade de entendimento: a ação que move o perguntar e o perguntar que conduz à ação” (Matos, 2021, p. 32). Não se trata, portanto, de um exercício de mera contemplação nem de (se) fazer perguntas com o simples propósito de fazê-las, mas de questionar eventos e fenômenos de modo a provocar deslocamentos. Nesse sentido, é algo mais do que perguntar, é “[a] ação de perguntar induzindo à ação de transformar” (Matos, 2021, p. 37), o que chamarei, aqui, de perguntagir. Afinal, não é isso o que fazemos na condição de “pesquisadores/as”? Não somos afetados/as por perguntas-problemas que nos instigam a sacolejar o mundo tal como o conhecemos? Isso se justifica porque “[a] pergunta tem o potencial de codificação da realidade desde o lugar de fala de quem a realiza. Implica na ampliação de horizontes gnosiológicos, na ampliação das capacidades de crítica e criatividade” (Matos, 2021, p. 37). Perguntagir envolve ousar, experimentar, problematizar, transitar… Nesse movimento, lanço mão de perguntas sem a pretensão de respondê-las necessariamente. Em vez disso, proponho encará-las como “pretextos de ampliação de explicitação ontológica, que se destina muito mais ao não-saber, ao não ser, que ao intento de elevação de uma verdade. Trata-se da construção/desconstrução/reconstrução do posto sob o crivo da crítica” (Matos, 2021, p. 77). Advirto, assim, de que, nesta dissertação, você não encontrará respostas concretas e planos de ação para a educação linguística. Não digo isso no intuito de me esquivar de uma suposta responsabilidade, mas por compartilhar da “compreensão de que a melhor resposta é sempre um modo de perguntar mais” (Ramos, 2021, n.p.); ou, ainda, na esperança de estimular um esforço conjunto, porque “quem pergunta, inclui e oportuniza que as respostas sejam construídas coletiva e democraticamente” (Instituto Pazes, 2022, para. 1). Ainda sobre embates terminológicos, não poderia ignorar a ideia de que expressões como a língua francesa e o francês (com ênfase para a forma singular) carregam sedimentos estabilizadores de ideologias humanistas, antropocêntricas e colonizadoras. Sendo assim, reconheço que, ao me referir à “educação linguística em francês”, incorro numa categorização que Otheguy, García e Reid (2015, p. 286) chamam de língua nomeada, que 32 abrange as entidades contáveis e facilmente enumeráveis que estão intimamente associadas a povos ou nações consolidados/as e, muitas vezes, também a Estados consolidados ou aspirantes (‘Árabe é a língua do Egito, Síria, Tunísia’; ‘Espanhol é a língua de Cuba, México, Uruguai’, ‘Euskara é a língua da nação basca’, ‘Havaiano é a língua dos/as indígenas havaianos/as’)28. Os autores e a autora advertem que essas maneiras de nomear as línguas se assentam em construções sociopolíticas que se mantêm, muitas vezes, nos trabalhos de linguistas sem a problematização devida. Na ausência de um adjetivo mais adequado para nomear a língua de interesse desta perguntação, continuarei a qualificá-la como francesa. No entanto, sigo ciente das implicações desse uso. Espero que as discussões aqui levantadas possam se somar à crescente gama de trabalhos engajados em perspectivas sociomateriais para apreender práticas educativas em contextos distintos. Para exemplificação, cito as produções de Gourlay (2015), Gourlay, Lanclos e Oliver (2015), e Kuby e Christ (2020). Gourlay (2015) discute a intra-ação de assemblagens de humanos/as e não humanos/as em práticas de letramento de estudantes de um instituto de pós-graduação no Reino Unido. Com base no material gerado em grupos focais e diários multimodais, a autora destaca que os/as alunos/as se engajaram em práticas de comunicação e negociação com objetos em seus letramentos. Isso ressalta a agência dos objetos nos processos de produção de significado/sentido, o que assevera seu papel na coconstrução de textos e na emergência das subjetividades autorais. Portanto, mais do que meras ferramentas à mercê do ser humano, os objetos são agentivos nos eventos de (trans)formação de redes sociotécnicas emergentes. Na mesma linha, Gourlay, Lanclos e Oliver (2015) chamam a atenção para o intracruzamento de espaços físicos e digitais nas experiências de discentes em suas relações com textos acadêmicos. As autoras e o autor partem de uma crítica à dicotomia digital/analógico para analisar eventos educativos de estudantes em bibliotecas físicas e digitais, evidenciando que suas práticas se apoiaram em redes que interconectam infraestruturas, espaços e artefatos digitais e impressos. Por esse ângulo, argumentam que a dicotomia digital/analógico promove compreensões distorcidas e simplistas das formas como discentes se envolvem com os textos acadêmicos. Consequentemente, defendem a adoção de uma postura que reconheça “a “encompasses the countable and easily enumerated entities that are tightly associated with established peoples or nations, and often additionally with established or aspiring states (‘Arabic is the language of Egypt, Syria, Tunisia’; ‘Spanish is the language of Cuba, Mexico, Uruguay’, ‘Euskara is the language of the Basque nation,’ ‘Hawaiian is the language of indigenous Hawaiians’)”. 28 33 importância do material como um componente essencial do social”29 (Gourlay; Lanclos; Oliver, 2015, p. 264). Também com enfoque no ensino superior, Kuby e Christ (2020) invocam uma pedagogia intra-ativa para dissertar sobre as relações entre estudantes de pós-graduação com três manuais de pesquisa qualitativa. Segundo as autoras, a pedagogia intra-ativa consiste em uma perspectiva filosófica voltada para as formas de conhecer/saber/ser/tornar-se/fazer em um mundo em constante reconfiguração. A partir das intra-ações dos/as discentes com os livros selecionados, Kuby e Christ (2020, p. 78) afirmam que corpos e teorias se criam uns/umas aos/às outros/as: “[e]ssas leituras estavam se lendo umas às outras assim como os/as estudantes as estavam lendo; esses livros produziram juntos ideias/conhecimento(s)/sentimentos/afectos que eles não poderiam ter produzido sozinhos”30. Esse exemplo nos instiga a pensar sobre ensinaprender em relação a/e com as múltiplas materialidades que formam assemblagens em contextos educativos. Do ponto de vista praxiológico, um olhar voltado às materialidades nos proporciona uma maneira alternativa de abordar a educação linguística, levando em consideração uma multiplicidade de actantes que (des)organizam e (re)transformam práticas, saberes e emoções no desenvolvimento de repertórios polissemióticos. A esse respeito, coaduno com a colocação de Ribas (2019, p. 626) de que “[a]s ideias pós-humanistas podem nos ajudar a melhor entender como os[/as] estudantes, famílias e comunidades conhecem/são/praticam letramentos com outros[/as] humanos[/as] e não humanos[/as]”. Compreender esses emaranhamentos nos permite deslocar o foco de uma concepção de língua(gem) representacional e antropocêntrica quando reconhecemos a agência de actantes não humanos/as nos fenômenos que constituem a vida. Abordo esta dissertação como uma prática de re-torno. De acordo com Barad (2014, p. 168), “retornar” é diferente de “re-tornar”, pois o primeiro traz o sentido de “refletir ou voltar a um passado que já existiu”31, enquanto o segundo trata de “girar repetidamente – iterativamente intra-agindo, re-difratando, difratando novamente, na criação de novas temporalidades (espaçotempomaterialidades), novos padrões de difração”32. Sendo assim, as “the importance of the material as an essential component of the social”. “[t]hese readings were reading each other as much as the students were reading them; these books produced ideas/knowledge(s)/feelings/affect together that they could not have produced alone”. 31 “reflecting on or going back to a past that was”. 32 “turning it over and over again – iteratively intra-acting, re-diffracting, diffracting anew, in the making of new temporalities (spacetimematterings), new diffraction patterns”. 29 30 34 leituras que apresento fazem parte de um movimento de fazer girar eventos de espaçotempos específicos que brilharam em minhas intra-ações com os materiais desta perguntação. Nas seções a seguir, discuto as particularidades deste estudo e as (in)compreensões que emergiram ao longo do processo de escrita desta dissertação. Como vimos, um rizoma possui nós, que são espaços onde se localizam gemas e folhas. Eles também são formados por entrenós, que designam os espaços existentes entre dois nós, sendo responsáveis por conectá-los. Em vista disso, gostaria de conceber este trabalho como a germinação de um rizoma, no qual “cadeias semióticas de toda natureza são aí conectadas a modos de codificação muito diversos, cadeias biológicas, políticas, econômicas, etc., colocando em jogo não somente regimes de signos diferentes, mas também estatutos de estados de coisas” (Deleuze, Guattari, 1995, n.p.). A próxima seção que você lerá consiste nos entrenós desta perguntação, isto é, demarcam as bases que sustentam e integram as relações entre as discussões problematizadas nos nós que brotaram de meus perguntagires. Pensando-com o Pós-humanismo baradiano, proponho a substituição do prefixo “entre-” por “intra-” e, portanto, utilizarei, de agora em diante, intranós. Posteriormente, você encontrará os nós, que são apresentados como perguntas, as quais, esperançosamente, te levarão a fazer mais perguntas para além daquelas que já estão postas. Takaki (2019b, p. 595) e eu “[a]creditamos que, em vez de resolver problemas, fazer perguntas diferentes já é um resultado de ensinamentos pós-human[ista]s e que considerações desse tipo podem inspirar novos caminhos para uma futura Linguística Aplicada Pós-Human[ist]a brasileira e internacional”33. Note que isso não é um convite para desatar os nós, como fazemos com fios, mas para re-torná-los e produzir-com eles diferenças diferentes. Por fim, na última seção, você encontrará algumas desconsiderações de finais. “[i]t is our belief that rather than solving problems, posing different questions is already a result of posthuman teachings, and that food for thought like this might inspire new avenues for future a Brazilian and an international posthuman applied linguistics”. 33 35 INTRANÓS: bases ético-ontoepistemológicas da perguntação Metodologia. Em trabalhos acadêmicos, precisamos falar sobre metodologia. Para fazêlo, trago à roda um poema que emergiu de minhas intra-ações com esta perguntação. Aperte play e sentipense com ele. Vídeo 1 – Poema Metodologia Fonte: Elaborado pelo autor (2022). Como autor parcial, me reservo34 o direito de não explicar o poema – e peço que não se zangue comigo –, pois reconheço que o fazer poderia cercear a pluralidade de leituras e eventuais efeitos de sentido que ele possa engendrar. Não falo por ele; falo-com ele, através dele; mais ainda, ele fala por si. E em sua enunciação, o que ele te diz? Como ele te afeta? O que te faz sentipensar? Compartilhe suas impressões aqui, por favor. Admito, contudo, que o texto que segue, nesta seção, é extensão rizomática do poema; são intranós que se enredam na desconstrução da metodologia. A Linguística Aplicada tem uma forte tradição de cunho humanista, o que desemboca em práticas de “pesquisa” antropocêntricas e representacionais. Essas práticas estão enraizadas 34 Venho escurecer, mais uma vez, que a ruptura da norma padrão é intencional. Conheço as regras de colocação pronominal do português brasileiro, mas as subverto para transitar entre as divisões artificiais que separam a língua falada da língua escrita. 36 nas metodologias qualitativas convencionais, que estão largamente assentadas numa lógica iluminista cartesiana (St. Pierre, 2014a). Há uma preocupação robusta com a prescrição de etapas progressivas, com atividades bem definidas, metas a serem cumpridas e modos de interpretação objetivos, a fim de estabelecer controle sobre a produção do conhecimento. A impressão que fica é a de que devemos ter tudo pronto antes mesmo de começarmos o trabalho. É como se perdêssemos de vista a ideia de que, em um estudo acadêmico, “nem tudo pode ser planejado com antecedência, caso contrário, não é investigação. ‘Investigar’ não é fazer e cumprir um plano predeterminado. ‘Investigar’ é procurar, indagar […]”35 (Ortiz Ocaña; Arias López, 2019, p. 162). Como conciliar metodologias qualitativas convencionais com leituras de mundo voltadas para assemblagens? Pode o qualitativo dar conta de um desprendimento do humano e da representação? St. Pierre (2014a, 2014b) nos alerta para o fato de que o Pós-humanismo exige formas outras de apreender o que se estabeleceu como fazer científico; requer um posicionamento pós-qualitativo. O prefixo “pós-”, aqui, não se refere ao fim ou à exterminação do qualitativo, uma vez que “necessariamente repete o que prefixa”36 (Herbrechter, 2018, p. 94), mas sim à tentativa de des/continuidade (Barad, 2012) com uma tradição éticoontoepistemológica que não consegue se desvencilhar das amarras do humanismo e do positivismo. Em certa medida, essa ideia se aproxima do que Rodrigues Júnior (2018, p. 76) chama de pedagogia das encruzilhadas, pois “não se objetiva, meramente, a substituição de uma perspectiva por outra. A sugestão […] é a de transgressão […] São as potências do domínio de Enugbarijó, a boca que tudo engole e cospe o que engoliu de forma transformada”37. Sendo assim, o pós-qualitativo abocanha o qualitativo, o engole e o regurgita, fazendo emergir algo diferente. De acordo com St. Pierre (2014b), uma perspectiva pós-qualitativa demanda uma reconfiguração daquilo que se consagrou como método. A seu ver, o método não existe a priori, não é anterior ao estudo; sua existência apenas faz sentido a posteriori, ao final do estudo, quando tentamos descrever o que foi feito. Em suas palavras, “método é sempre aquilo que “no todo puede estar planeado anticipadamente, de lo contrario, no es investigación. ‘Investigar’ no es hacer y cumplir un plan previamente fijado. ‘Investigar’ es buscar, indagar […]”. 36 “necessarily repeats what it prefixes”. 37 Enugbarijó é uma entidade de cosmologias negro-africanas, definida por Rufino (2021, on-line) como “a boca coletiva dos orixás, a boca que tudo come, a boca cósmica. Princípio dinâmico que versa sobre toda e qualquer possibilidade de transformação”. Ressalto que não busco me apropriar da pedagogia das encruzilhadas neste trabalho, visto que se trata de uma praxiologia que parte de um universo ético-ontoepistemológico que não integra meus repertórios sociomateriais. A citação tem o intuito de reforçar o entendimento de que a proposição de algo considerado “novo” não implica o desaparecimento do “velho”, mas sim um movimento de tornar-se diferencial. 35 37 ‘teremos feito’”38 (St. Pierre, 2014b, p. 15), evocando o tempo futuro. Dessa forma, devemos concebê-lo sob um olhar retrospectivo crítico em relação às atividades que desenvolvemos ao longo do percurso. Em vista disso, a autora sugere que um trabalho de orientação pós-humanista não pode ser rigidamente concebido nos enquadramentos da metodologia qualitativa humanista, pois a própria ideia de método nos força a uma ordem de pensamento prescrita, linear e sistemática e a práticas que proíbem a natureza experimental de seu empirismo transcendental e da investigação pós-qualitativa em geral. O método proscreve e proíbe. Controla e disciplina. Além disso, o método sempre chega tarde demais, é imediatamente obsoleto e, portanto, inadequado para a tarefa em questão39 (St. Pierre, 2014b, p. 15-16). A metodologia qualitativa convencional enclausura e sedimenta o caráter experimental que o fazer científico exige. Em contrapartida, segundo St. Pierre (2018, p. 604), o trabalho pós-qualitativo se distancia de qualquer pretensão de estabelecimento de passo-a-passo e etapas, uma vez que “[s]eu foco não é nas coisas já prontas, mas nas coisas em processo”40; trata-se de um devir constante. Isso não sugere, por outro lado, que o trabalho pós-qualitativo não requeira nenhuma espécie de preparo. Muito pelo contrário, a autora salienta que é necessária uma longa preparação que envolve “ler, pensar, escrever e viver”41 (St. Pierre, 2018, p. 604) as praxiologias. Na esteira de MacLure (2015, p. 106), simpatizo com a ideia de encarar o trabalho póshumanista como “uma ‘aventura’ que exige tanto cuidado quanto imprudência”42. Entendo a imprudência não como um sinônimo de irresponsabilidade, mas como um ímpeto para a experimentação, uma abertura para o novo, para o inesperado, para o impensado. Afinal, “[u]ma ‘metodologia’ pós-humanista deve ser adaptável e sensível”43 (Ferrando, 2012, p. 11, ênfase adicionada44), volátil e movente, atenta às intra-ações que mobilizam o/a perguntador/a em sua práxis. “method is always what ‘will have been done’”. “the very idea of method forces one into a prescribed, linear, systematic order of thought and practices that prohibits the experimental nature of their transcendental empiricism and of post qualitative inquiry more generally. Method proscribes and prohibits. It controls and disciplines. Further, method always comes too late, is immediately out-of-date, and so is inadequate to the task at hand”. 40 “[i]ts focus is not on things already made but on things in the making”. 41 “reading, thinking, writing, and living”. 42 “as an ‘adventure’ that demands both care and recklessness”. 43 “[a] posthumanist methodology has to be adaptable and sensitive”. 44 De acordo com os ditames da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), os termos empregados, aqui, deveriam ser “grifo nosso”. No entanto, como essa expressão não diz muito para mim, tomei a liberdade de substitui-la por “ênfase adicionada” em todo o texto. 38 39 38 Nessa perspectiva, Barad (2003) acentua que o/a perguntador/a não se encontra em uma posição de exterioridade em relação ao mundo, dado que ele/ela próprio/a o constitui em suas reconfigurações dinâmicas. Consequentemente, argumenta a autora, práticas de conhecer/saber e ser são mutuamente constitutivas: “[n]ão obtemos conhecimento nos colocando fora do mundo; conhecemos/sabemos porque ‘nós’ somos do mundo. Somos parte do mundo em seu tornar-se diferencial”45 (Barad, 2003, p. 829). Isso implica reconhecer que o ser humano não é um reduto da ética, uma vez que todos os corpos, humanos e não humanos, intra-agem em performatividade cosmológica. Segundo Lenters e McDermott (2020), a ética envolve a capacidade agentiva de um corpo em relação aos demais, levando em conta as formas como esses últimos afetam a ação do primeiro. Nessa mesma linha, Barad (2007, p. 393, ênfases adicionadas) afirma que “[a] ética, portanto, não diz respeito a uma resposta correta a um/a outro/a radicalmente exterior/izado/a, mas sim à responsabilidade [capacidade de responder ao/à outro/a] e à prestação de contas pelas vívidas relacionalidades de tornar-se de que fazemos parte”46. Disso resulta que ética, ontologia e epistemologia são inseparáveis. Falamos, pois, em éticoontoepistemologia, que congrega práticas de agir, conhecer/saber e ser/estar no entendimento responsável das intra-ações de coletivos híbridos (Barad, 2007). Em consonância com esse pensamento, MacLure (2015) aponta que a virada dos novos materialismos nos apresenta a noção de transversalidade, segundo a qual os limites epistemológicos são postos em xeque. Palmer e Panayotov (2016) explicam que a transversalidade se opõe à verticalidade e à horizontalidade: trata-se de um corte diagonal que perpassa diversas linhas de modo não categórico, não hierárquico e não seccional. Assim sendo, o prefixo “TRANS quer dizer transversalidade das ciências exatas e anexatas, humanas e não humanas, transdisciplinaridade dos problemas” (Alliez, 1995, n.p.), o que abre espaço para considerar agências que se atravessam, reconhecendo que produzimos conhecimentos incompletos em um mundo-mais-que-humano (Ulmer, 2017). Canagarajah (2018a, p. 21), por sua vez, levanta alguns questionamentos oportunos para um trabalho de orientação pós-humanista: [a] noção de ontologia horizontal também suscita problemas metodológicos na pesquisa e na análise linguísticas. Uma pergunta incômoda é a seguinte: Como definimos a unidade e o foco de análise quando tudo está conectado a tudo? Note-se “[w]e do not obtain knowledge by standing outside of the world; we know because ‘we’ are of the world. We are part of the world in its differential becoming”. 46 “[e]thics is therefore not about right response to a radically exterior/ized other, but about responsibility and accountability for the lively relationalities of becoming of which we are a part”. 45 39 que os/as autores/as [neo]materialistas, assim como os/as teóricos/as da complexidade, estão abertos/as a “cortes” pragmáticos para fins analíticos. O que precisa ser determinado é: quais são os cortes significativos para a análise? Essa decisão dependerá de vários fatores. [...] Entre outras influências, as histórias que queremos contar moldarão nossa unidade e nosso foco de análise 47. Esses pontos nos levam ao conceito de corte agencial discutido por Barad (2003, 2007). A autora defende que os fenômenos são marcados pela inseparabilidade ontológica dos corpos que intra-agem, de modo que não há relação de anterioridade entre eles. No entanto, não é possível abarcar um evento de forma holística; por isso, fazemos cortes: [...] o mundo nunca se caracteriza em sua totalidade; é somente por meio da realização de cortes agenciais, diferenças diferentes, que ele pode vir a conhecer diferentes aspectos de ‘si mesmo’. Somente parte do mundo pode se fazer inteligível para si própria em um dado momento, porque a outra parte do mundo deve ser a parte da qual ele se difere48 (Barad, 2007, p. 432). O corte agencial, portanto, nos permite direcionar nosso olhar para um aspecto específico de um fenômeno, que envolve um emaranhamento de actantes e espaçotemporalidades. Isso se faz necessário para que consigamos compreender minimamente o mundo. Nessa perspectiva, “o corte agencial produz uma resolução local dentro do fenômeno da indeterminação ontológica inerente”49 (Barad, 2003, p. 815). Desse modo, qualquer trabalho científico deve se valer de cortes agenciais para buscar uma resolução local para as questões de seu interesse. Expandindo esse pensamento, Ulmer (2017, p. 5) salienta que uma “pesquisa pós-human[ist]a produz conhecimentos situados, materiais, interconectados, processuais e afirmativos”50. Devo admitir que uma incursão por praxiologias pós-humanistas causa receio e hesitação. No processo de nos engajar com a experimentação, sentimos falta daquele falso senso de segurança que as praxiologias tradicionais humanistas nos oferecem. Sobre esse tópico, partilho o sentimento de que “muitas/os de nós temos um bloqueio quando se trata de se envolver com teorias pesadas como [a de] Deleuze – não nos sentimos ‘dignas/os’ dessas teorias “[t]he notion of flat ontology also raises difficult methodological problems in research and language analysis. A vexing question is this: How do we define the unit and focus of analysis when everything is connected to everything else? Note that materialist scholars, along with complexity theorists, are open to pragmatic ‘cuts’ for analytical purposes. What needs to be determined is: what are the meaningful cuts for analysis? This decision will depend on various factors. […] Among other influences, the stories we want to tell will shape our unit and focus of analysis”. 48 “[…] the world can never characterize its elfin its entirety; it is only through different enactments of agential cuts, different differences, that it can come to know different aspects of ‘itself.’ Only part of the world can be made intelligible to itself at a time, because the other part of the world has to be the part that it makes a difference to”. 49 “the agential cut enacts a local resolution within the phenomenon of the inherent ontological indeterminacy”. 50 “posthuman research produces situated, material, interconnected, processual, and affirmative knowledges”. 47 40 e muitas/os de nós ficamos paralisadas/os quando se trata de experimentar com a metodologia porque ficamos receosas/os de não ‘fazer certo’”51 (Ringrose; Zarabadi, 2018, p. 212). Apesar de ser assombrado por essa angústia, encontro consolo no discernimento de que “[a] questão não é fazer certo ou errado; a questão é fazer talvez de forma diferente”52 (Ringrose; Zarabadi, 2018, p. 213). Escrever esta dissertação não foi, de nenhuma maneira, fácil. Em grande parte do tempo e de variadas formas, senti que, ao invés de escrever com ou por meio de, estava escrevendo contra (Gale; Wyattt; Moreira; Diversi, 2022). “Mas contra o quê?”, você deve estar se perguntando. E eu lhe digo: contra espaçotempos de prazos, contra regras de formatação, contra convenções de números de páginas, contra quantidades de leituras que se espera de um/a mestrando/a, contra metodologias, contra capítulos, contra gêneros acadêmicos, contra conceitos, contra termos, contra citações, contra paráfrases, contra referências, contra traduções, contra a gramática, enfim, contra todo “o ethos institucional e [todas] as restrições que as universidades são estruturadas para criar e sustentar”53 (Gale; Wyattt; Moreira; Diversi, 2022, p. 3-4)… Uma pausa para retomarmos o fôlego. Respiremos fundo. Pronto. Contra sentimentos, contra emoções, contra expectativas e, em certa medida, contra mim mesmo. Paradoxalmente, “[e]nquanto escrevia, comecei a perceber, também, o poder do texto acadêmico mais tradicional, sua capacidade de movimento, de pensar-escrever de forma diferente”54 (St. Pierre, 2018, p. 605). Preenchendo a folha em branco, ziguezagueando entre as letras do teclado, dançando desajeitadamente com as palavras, por vezes, perdido entre emaranhamentos de ideias e sufocado pelos nós dos rizomas, percebi que poderia me transladar para lugares outros. Aprendi que “[e]screver certamente não é impor uma forma (de expressão) sobre um assunto vivido. […] Escrever é uma questão de tornar-se, sempre inacabada, sempre em processo de ser feita, e que transborda toda a matéria vivível ou vivida”55 (Deleuze, 1993, p. 11). Me encontrei, então, entre a dominação e a liberdade, entre a subordinação e a desobediência, entre o antecipado e o inesperado, entre a prosa e a poesia, entre a prontidão e a vacilação, entre o deleite e o desprazer, entre avanços e recuos, entre o vivido e o vivível. Seria “many of us have a block when it comes to engaging with heavy theory like Deleuze-we don’t feel ‘worthy’ of these theories and many of us are paralyzed when it comes to experimenting with methodology because we are worried we will not ‘get it right’”. 52 “[t]he point is not that we get it right or wrong; the point is that we get it perhaps differently”. 53 “the institutional ethos and the constraints the universities are built to create and sustain”. 54 “[a]s I wrote, I also began to realize the power of the more traditional academic essay, its capacity for movement, for thinking-writing differently”. 55 “[é]crire n’est certainement pas imposer une forme (d’expression) à une matière vécue. […] Écrire est une affaire de devenir, toujours inachevé, toujours en train de se faire, et qui déborde toute matière vivable ou vécue”. 51 41 aí o entremeio, o entrelugar? Deleuze (1993, p. 11) nos ensina que “[a] escrita é inseparável de tornar-se: escrevendo, nos tornamos-mulher, nos tornamos-animal ou vegetal, nos tornamosmolécula até nos tornarmos-imperceptíveis”56. Ao final desta escritura, o que terei me tornado? Mestre? Mestre de quê, de quem, para quê, para quem, por quem? Nos devires desta dissertação, performo movimentos tímidos de experimentação críticocriativa, partindo da ótica de que “[n]a escrita, podemos inventar e reinventar o mundo”57 (St. Pierre, 2018, p. 607). Essas experimentações tratam do modo de apresentação do texto, assim como dos materiais do estudo. Por exemplo, inspirado no artigo de Kuby e Christ (2020), utilizo uma fonte tipográfica diferente daquela empregada convencionalmente nesta dissertação para destacar informações e ideias que julgo pertinentes. De acordo com Hyndman (2016), as fontes são recursos cruciais no ato de leitura, pois afetam as relações que estabelecemos com um texto. Segundo a autora, diferentes formas e estilos de fontes se conectam com nossas emoções, memórias e sentidos de maneiras variadas e provocam respostas distintas no/a leitor/a. É com base nesse potencial chamativo (Hyndman, 2016) que justifico a mudança de fontes. “Por que não aplicar itálico para esse fim?”, você pode se perguntar. Embora comumente empregado na escrita acadêmica como estratégia semiótica para demarcar ênfase, acredito que o itálico não produza a mesma experiência sensorial que a mudança para outro estilo de fonte consegue nos oferecer. Isso se dá por dois motivos: 1) há meramente uma variação na forma de apresentação do mesmo tipo de caracteres; e 2) por ordem de convenção, o itálico já está normalizado no mundo acadêmico. Nesse sentido, creio que a mudança tipográfica possa causar um estranhamento maior no/a leitor/a e convocar seu olhar para o trecho em destaque de um modo outro, visto que há uma ruptura com as normas do texto acadêmico convencional. Manterei o itálico, no entanto, para assinalar a utilização de expressões e conceitos provenientes de outros/as autores/as, como o fiz acima com o termo “chamativo”. Além disso, na tentativa de tornar a escrita mais rizomática e polissemiótica, recorro à agência de hiperlinks e de imagens em movimento58. Outros traços experimentais abarcam a leitura robotizada de um texto e a inclusão de áudios provenientes dos materiais do estudo. Não são movimentos inovadores nem revolucionários, mas são gestos que reconfiguram meu lugar “[l]’écriture est inséparable du devenir : en écrivant, on devient-femme, on devient-animal ou végétal, on devient-molécule jusqu’à devenir-imperceptible”. 57 “[i]n writing, we can and do invent and reinvent the world”. 58 Para fins de arquivamento na Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da Universidade Federal de Goiás, o arquivo deste texto foi transformado para o formato PDF (Formato Portátil de Documento, em português), o qual não oferece suporte para a visualização de imagens em movimento. Para solucionar esse problema, você deve clicar diretamente nas figuras em que houver a indicação “imagem em movimento” para ser redirecionado/a a uma página da internet e acessar seu conteúdo por completo. 56 42 na escrita acadêmica, promovendo diferenças diferentes nas formas como me torno-com (Haraway, 2016) minha práxis perguntadora. Assim sendo, “[é] no meandro desses pequenos brotamentos de invenção que espero que es[t]e texto chegue aos[/às] leitores[/as] como um vento quente, um espinho incomodativo, um nascimento tardio, qualquer fenômeno metamórfico que inspire um novo jeito de viver e habitar o mundo vivo” (Dalmaso, 2021, p. 30). A seguir, nas seções que formam estes intranós, disserto a respeito do contexto e dos materiais que se emaranharam no corte agencial desta perguntação. Contexto sociomaterioespaçotemporal Uma imensa quantidade de brasileiros e brasileiras – sobretudo empobrecidos[/as] – que foram a óbito por conta da Pandemia da Covid-19 e do descaso do gestor público [o então presidente Jair Bolsonaro] em não fazer de sua liderança uma política de efetiva atenção às necessidades básicas da população acompanha minha escrita – na angústia, no entristecimento, no adoecimento promovido e gestado pelos donos do poder. Não tenho como não me solidarizar com essas perdas, que me deixam indignado e sacodem meu guri indagador. Junot Cornélio Matos (2021, p. 24) A pandemia do novo coronavírus desestabilizou as relações sociomateriais, econômicas e culturais em curso. De acordo com Santos (2020), essa conjuntura se insere em um quadro mais amplo de crise permanente que se instaurou na década de 1980 com a ascensão do neoliberalismo. Seguindo esse intranó, a pandemia acabou por agravar uma situação já problemática, colocando em evidência questões negligenciadas em tempos de “normalidade”, entre elas, a educação. Em diversos lugares do planeta, professores/as, estudantes, coordenadores/as, técnicos/as-administrativos/as etc. se viram impedidos/as de dar continuidade aos processos educativos nos moldes tradicionalmente empregados. Devido à impossibilidade de manter contato de forma presencial, aulas foram suspensas e fomos impelidos/as a buscar formas alternativas para garantir a manutenção das atividades escolares. Consequentemente, ganhou destaque o ensino remoto emergencial. Ou, como costumava dizer uma professora que tive na pós-graduação, ensino (ter)remoto. Esse modelo se caracteriza pelo uso de tecnologias, de forma temporária, como resposta a circunstâncias adversas, para dar continuidade aos processos educativos que antes eram conduzidos no regime presencial ou híbrido (Hodges et al., 2020). Nesse sentido, docentes e discentes tiveram que se adaptar rapidamente a uma nova configuração em que o uso das Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) se fez imperativo. Moreira e Schlemmer 43 (2020) explicam que, de modo geral, o ensino remoto se ancorou na transposição de práticas da modalidade presencial para encontros virtuais síncronos nos quais a comunicação se dá de modo bidirecional, com protagonismo do/a professor/a em detrimento dos/as estudantes, e cujo enfoque recai sobre o conteúdo. Segundo o autor e a autora, no contexto da pandemia da COVID-19, as tecnologias digitais foram abordadas de maneira instrumental, o que reduz seu potencial como agentes do fazer educativo. Por outro lado, sugerem que o cenário pandêmico nos direcionou à implementação de uma educação digital, “entendida como um movimento entre atores humanos e não humanos que coexistem e estão em comunicação direta, não mediada pela representação, em que nada se passa com um que não afete o outro” (Moreira; Schlemmer, 2020, p. 23). Ainda que não declarem abertamente sua ligação ao Pós-humanismo, a definição apresentada não deixa dúvidas quanto a sua conexão com esse campo praxiológico. A educação digital, pois, se estabelece ao longo de redes que facilitam os processos pedagógicos por meio de uma ampla gama de tecnologias, plataformas e modalidades. A fim de superar uma lógica reducionista, dicotômica (on-line/off-line) e antropocêntrica, Moreira e Schlemmer (2020) vão mais além e propõem o conceito de educação digital onlife. A ideia toma como base The onlife manifesto: being human in a hyperconnected era (Floridi, 2015a), livro resultante do projeto The onlife initiative: concept reengineering for rethinking societal concerns in the digital transition, cujo escopo concerne aos desafios das novas tecnologias digitais no mundo contemporâneo. O manifesto preconiza que as TICs não são meras ferramentas, mas sim forças ambientais que estão, de maneira crescente, afetando: 1. nossa autoconcepção (quem somos); 2. nossas interações mútuas (como socializamos); 3. nossa concepção da realidade (nossa metafísica); e 4. nossas interações com a realidade (nossa agência)59 (Floridi, 2015b, p. 2). Essas concepções se apoiam no entendimento de que há uma diluição das fronteiras que supostamente separam realidade e virtualidade e natureza, ser humano e máquina. Isso demanda reconhecer que não existe um “mundo virtual” desconectado de um “mundo real”, visto que os fenômenos que ocorrem nos espaços digitais afetam de forma drástica nossas formas de ser, estar, conhecer e experienciar o mundo, delineando os modos como (des)construímos nossas percepções do que acreditamos ser a realidade. Reforçando esse 59 “ICTs are not mere tools but rather environmental forces that are increasingly affecting: 1. our self-conception (who we are); 2. our mutual interactions (how we socialise); 3. our conception of reality (our metaphysics); and 4. our interactions with reality (our agency)”. 44 posicionamento, Gabriel (2012, para. 3) aponta que “[n]ão somos mais ON ou OFF – somos ON e OFF ao mesmo tempo, simbioticamente, formando um ser maior que o nosso corpo/cérebro biológico nos expandindo para todo tipo de dispositivo e abrangendo outras mentes e corpos”. A partir dessa compreensão, Moreira e Schlemmer (2020) invocam uma ontoepistemologia que reconceitualiza as práticas de ensinaprender, levando em conta o papel de seres humanos e não humanos em um espaçotempo disruptivo no qual a distinção online/off-line não mais se sustenta. A ideia de educação digital onlife é especialmente relevante no contexto do ensino remoto resultante da pandemia do novo coronavírus, uma vez que os limites entre as espaçotemporalidades que distinguiam o público do privado esmoreceram, imiscuindo escola e lar, agentes educativos/as e família, privacidade e exposição e atividades síncronas e assíncronas. A educação escapa às amarras das divisões e se emaranha nos diversos âmbitos da vida, por isso o uso do termo onlife (“na vida”). Na órbita desse raciocínio, Scheifer e Rego (2020, p. 120) sinalizam que [t]al questão espaço-temporal fica patente e ganha novas dimensões quando levamos em consideração as recentes reconfigurações das práticas escolares (sem contar as laborais, religiosas, familiares, entre outras tantas) que estão se dando massivamente em razão da quarentena pelo Coronavírus. Nos rearranjos propostos pelas instituições escolares [...], organizam-se redes sociotécnicas que interligam e mesclam o espaçotempo escolar e o doméstico, o público e privado. Nessas novas configurações espaçotemporais, o domínio da casa passa a ser visto como uma extensão da escola e a figura dos[/as] pais[/mães/responsáveis legais] como uma extensão da figura do[/a] professor[/a]. Logo, deixa de fazer sentido o modelo pedagógico “tradicional” marcado [por] um único tempo e espaço que tem orientado nossas práticas de ensino. Esse cenário turbulento de reconfiguração da vida sociomaterial, em função da pandemia de um vírus letal, demarca o macrocontexto em que este estudo se desenvolveu. De forma mais situada, o trabalho ganhou forma no âmbito do Centro de Línguas60, um projeto de extensão da Universidade Federal de Goiás, voltado à promoção da educação linguística. Criado em 1994, nas dependências da Faculdade de Letras, o Centro de Línguas se orienta a partir de quatro objetivos: [1] Suprir as necessidades de alunos[/as], professores[/as], funcionários[/as] técnicoadministrativos[/as] e [d]a comunidade em geral, no que diz respeito à aprendizagem de línguas, ampliando, com esse intuito, a oferta de ensino de línguas e reforçando, assim, a extensão na nossa Universidade. [2] Oferecer oportunidades de estágio a alunos[/as] da Faculdade de Letras/ UFG. 60 Para mais informações sobre a história e o funcionamento do projeto, acesse a página oficial da instituição: https://cl.letras.ufg.br/ 45 [3] Proporcionar, às Áreas da Faculdade de Letras/ UFG, uma oportunidade de observação, de análise e de avaliação de metodologias e de técnicas de ensino e aprendizagem de línguas (Universidade Federal de Goiás, 2022b, on-line). [4] Oferecer, aos[/às] cidadãos[/ãs] do Estado de Goiás, propostas de enriquecimento cultural. O projeto é regido, portanto, pelo compromisso social de oportunizar o acesso a uma educação linguística de qualidade a baixo custo, na tentativa de minimizar, a despeito de todas as suas limitações, as desigualdades que nos segregam. Além disso, constitui-se como um espaço aberto à formação docente e ao fazer científico, possibilitando a diversos/as estudantes dos cursos de licenciatura em Letras a oportunidade de um primeiro contato com a atuação docente em sala de aula, ademais de proporcionar a “pesquisadores/as” um campo fértil para o desenvolvimento de estudos a nível de graduação (iniciação científica, trabalhos de conclusão de curso e monografias) e pós-graduação (dissertações e teses). Atualmente, o Centro de Línguas oferta cursos semestrais em alemão, espanhol, francês, inglês e italiano, nas modalidades presencial e digital, com duração entre seis e oito semestres, dependendo da língua. No caso do francês, a língua de interesse deste trabalho, o curso tem a duração de seis semestres letivos, organizados em níveis supostamente progressivos (do Francês 1 ao Francês 6). Anteriormente à pandemia da COVID-19, eram oferecidos cursos exclusivamente presenciais. Com o surto do novo coronavírus, as atividades do projeto ficaram suspensas por cinco meses – de março a julho de 2020 –, por determinação da administração da Universidade Federal de Goiás, na tentativa de preservar a saúde e o bem-estar de toda a comunidade universitária. O retorno das aulas se deu de modo completamente remoto, o que exigiu grande esforço em termos de adaptação, tanto para docentes quanto para discentes, que já haviam iniciado o semestre letivo presencialmente. Dois anos depois desse episódio, as ações do projeto passaram a ocorrer nas duas modalidades. Vemos, aqui, um exemplo simples de como um actante não humano (um vírus) afeta nossas dinâmicas no campo educacional. Diante disso, como é possível negar sua capacidade agentiva? Faço parte do corpo docente do Centro de Línguas desde 2019, atuando nas áreas de francês e inglês. Realizei meu trabalho de conclusão do curso (Silva, 2021) de graduação em Letras: Inglês na instituição, ocasião na qual problematizei as relações entre concepções de língua e estratégias de aprendizagem de um grupo de estudantes de francês. Agora, escrevo esta dissertação de mestrado a partir de experiências que também lá tiveram lugar. Justifico minha escolha com base na familiaridade que tenho com esse contexto, ciente de que se trata de um projeto engajado com a experimentação e com diferentes perspectivas na educação linguística. 46 De acordo com a aprovação da coordenação do Centro de Línguas, mediante a assinatura do termo de anuência (Apêndice A), o estudo aqui apresentado se desenvolveu com um grupo de Francês 6, entre os meses de setembro a dezembro de 2021. Ofertado na modalidade remota, o curso contou com encontros síncronos semanais de duas horas e quarenta minutos de duração, por meio da plataforma digital Google Meet. Esses encontros ocorreram aos sábados pela manhã e foram divididos em duas partes. A primeira parte compreendia o período das 08h00 às 09h30, seguido por um intervalo de 30 minutos. A segunda parte, por sua vez, se desenrolava entre as 10h00 e as 11h10. O grupo era composto por 18 estudantes, 12 dos/as quais se prontificaram a colaborar com o desenvolvimento deste estudo. Em conformidade com as exigências do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade Federal de Goiás, a participação humana foi subsidiada pela assinatura de termos de consentimento (Apêndices B e C) e assentimento (Apêndice D), mediante a solicitação do emprego de nomes fictícios nos textos resultantes da perguntação, a fim de resguardar as identidades dos/as colaboradores/as. Atuei como professor do grupo colaborador, tendo minha práxis amparada pela Linguística Aplicada Crítica. De acordo com Pennycook (2021, p. 1), o trabalho crítico é “responsivo a um mundo em transformação”61 e se caracteriza pelo enfrentamento às múltiplas formas de desigualdade e discriminação que nos constituem. Sob esse olhar, concebo o ensino de línguas para além da mera reprodução do código linguístico, buscando oportunizar situações para a problematização de questões da vida sociomaterial imbricadas nas diversas relações de poder que nos atravessam. Como pontua Pessoa (2018, p. 189), [t]rata-se de trabalhar realidades sociais que estão presentes em todas as salas de aula, já que elas são microcosmos da sociedade. Essas realidades se reproduzem na escola e em sala de aula por meio das identidades discentes e docentes, das escolhas pedagógicas (conteúdo, materiais, processos instrucionais, uso de repertórios linguísticos), das relações, das interações, das interpretações, dos posicionamentos e das ações de todas/os as/os suas/seus agentes. “O que isso tem a ver com o Pós-humanismo?”, você pode se perguntar. Assim como Pennycook (2020, p. 187), compreendo que a Linguística Aplicada Crítica e o Pós-humanismo “são parte do mesmo projeto”62. O autor aponta que o último nos instiga a abordar as diferentes formas de desigualdade a partir das relações que emergem entre elas, sem hierarquizar previamente as violências que afetam assemblagens situadas. Nesse sentido, assim como a 61 62 “responsive to a changing world”. “are part of the same project”. 47 Linguística Aplicada Crítica, o Pós-humanismo a que me associo tem o compromisso político de problematizar as configurações de poder que constroem, mantêm e, paradoxalmente, ao mesmo tempo, destroem o mundo. A Figura 6 traça o perfil socioeconômico dos/as colaboradores/as. Essas informações, referentes a pseudônimo, cidade e estado de residência, idade, identidade de gênero, raça, grau de escolaridade, renda média familiar e profissão, são provenientes do questionário de identificação, que será discutido em mais detalhes na próxima seção. Na tentativa de dispor esses elementos em uma exposição rizomática, optei por distribuí-los em círculos pontilhados, interligados uns aos outros por linhas tracejadas. Os pontilhados simbolizam as fronteiras porosas que caracterizam nossas existências, visto que não somos unidades fechadas, coesas e rígidas, mas antes sujeitos dispersos e distribuídos em assemblagens. A esse respeito, Barad (2007) sublinha que não existe um sujeito puro, demarcado por linhas fixas que distinguem o interior do exterior. Segundo a autora, o “Pós-humanismo não presume a separação de nenhuma ‘coisa’, muito menos a suposta distinção espacial, ontológica e epistemológica que separa os seres humanos”63 (Barad, 2007, p. 136). “Posthumanism doesn’t presume the separateness of any-‘thing,’ let alone the alleged spatial, ontological, and epistemological distinction that sets humans apart”. 63 48 Figura 6 – Assemblagem dos/as colaboradores/as do estudo Fonte: Elaborada pelo autor a partir dos materiais do estudo (2022). Notas: s.m. = salários mínimos; M cis = mulher cisgênero; H cis = homem cisgênero; E.M. = Ensino Médio; E.S. = Ensino Superior. No questionário, r.c. grafou seu nome fictício em letras minúsculas. Apesar de não saber se foi um ato intencional, manterei a grafia em minúsculo todas as vezes que for citá-lo. No círculo de Marta, os sinais gráficos que representam um rosto triste, acompanhando o termo “desempregada”, foram inseridos pela própria estudante em sua resposta ao questionário. 49 Ainda que não tenhamos limites bem definidos, somos constituídos/as por traços que nos singularizam, o que é representado pelas diferentes cores de cada círculo. As linhas tracejadas, por sua vez, conectam os diversos sujeitos apresentados, demonstrando a noção de que estamos todos/as intraligados/as no espaçotempo de desenvolvimento do estudo. Esse arranjo manifesta um emaranhamento de actantes que são extensão uns/mas dos/as outros/as. As informações dentro dos círculos estão dispostas de modo fluido, dispersas nos sujeitos, sem uma ordenação específica. A partir delas, é possível obter uma paisagem parcial e situada dessa assemblagem, “relacionando as diferenças que ela reúne através de suas diferenças no lugar de qualquer [pretensão de] unidade”64 (Widder, 2009, p. 215). Começando pelo local de residência no período do estudo, dez moravam em Goiânia (GO); um, em Aparecida de Goiânia (GO); uma, em Paragominas (PA); e um, em Guarulhos (SP). No que diz respeito à idade, há uma variação entre 18 e 57 anos, sendo que a maioria tinha entre 20 e 30 anos. Em relação à identidade de gênero, sete se declararam como mulheres cisgênero; cinco, como homens cisgênero; e um, como agênero. Quanto à raça, temos o seguinte retrato: oito brancos/as, quatro pardos/as e uma amarela. Sobre o grau de escolaridade, seis tinham ensino superior; três tinham doutorado; três tinham ensino médio; e um tinha mestrado. No que concerne à renda familiar, sete afirmaram ser superior a cinco salários mínimos; quatro, entre três e quatro salários mínimos; um, entre dois e três salários mínimos; e uma, entre um e dois salários mínimos. Por fim, abordando a profissão, temos: quatro estudantes; quatro professores/as; uma auxiliar de laboratório; um operador bilíngue; um customer service (profissional de atendimento ao/à cliente); uma desempregada; e um que não comunicou nenhuma profissão, mas infiro que também era estudante. Desse modo, os/as colaboradores humanos/as correspondem aos/às 12 estudantes de língua francesa inscritos/as no curso de Francês 6 e a mim, professor da turma. Certamente, diversos/as outros/as actantes humanos/as afetaram a realização deste trabalho. Para nomear alguns/mas, posso citar minha orientadora, funcionários/as do Centro de Línguas, familiares dos/as estudantes, colegas da pós-graduação… A lista é extensa! No entanto, lanço mão, aqui, de um corte agencial para acomodar a discussão aos limites do que é possível nesta dissertação, assumindo seu caráter de conhecimento situado65 (Haraway, 1988). Essa mesma observação é “relating the differences it brings together through their difference rather than any unity”. Haraway (1988, p. 595) formula que “[c]onhecimentos situados exigem que o objeto de conhecimento seja retratado como um ator e agente, não como uma tela, uma base ou um recurso, nunca finalmente como escravo do mestre que confina a dialética em sua agência única e em sua autoria de conhecimento ‘objetivo’” [“[s]ituated knowledges require that the object of knowledge be pictured as an actor and agent, not as a screen or a ground or 64 65 50 válida para os/as actantes não humanos/as. Por mais numerosos/as que sejam, restrinjo meu olhar para a agência de tecnologias digitais, espaços físicos e digitais (plataformas mobilizadas nas aulas) e materiais didáticos. O curso emergiu em uma sala de aula distribuída que imiscuiu espaços físicos e digitais, uma sala de aula onlife. Utilizo “sala de aula distribuída” e “sala de aula onlife” como sinônimos para expressar o entendimento de que a sala de aula não se restringe aos limites físicos das instituições de ensino nem tampouco aos algoritmos das interfaces digitais. Com isso, busco me afastar da noção de “espaço euclidiano, feito de partes integradas e separado de outros espaços pelos efeitos do tempo que se leva para viajar de um ao outro” (Buzato, 2007, p. 47). Assim, a sala de aula deixa de ser um “local em que uma atividade ocorre” e se torna um “espaço produzido através de movimentos contínuos”66 (Leander; Phillips; Taylor, 2010, p. 332), desconstruindo sua iconografia como um ambiente sólido, estático e inerte. Nesse sentido, renego a visão da sala de aula como um contêiner pré-existente de depósito de práticas socioculturais (Buzato, 2007) e caminho em direção a um entendimento da sala de aula como um actante que se forma a partir de inúmeras relações sociomateriais imbricadas em processos de ensinaprender. Aceito, então, o convite de Leander, Phillips e Taylor (2010, p. 381) para pensar a sala de aula como “um lugar dinâmico em construção […] como um ponto ao longo de uma complexa trajetória de aprendizagem, ou como um nó em uma rede”67. A sala de aula distribuída emerge, pois, como uma assemblagem, como um corpo ativo, movente, rizomático e sensível às intra-ações de coletivos de humanos/as e não humanos/as. Na obra intitulada The distributed classroom, Joyner e Isbell (2021, p. 9) assinalam que o qualificador “distribuída significa que a aula não está restrita no tempo ou no espaço, mas que pode ser distribuída por múltiplos espaços e múltiplos tempos”68. Embora utilizemos a mesma terminologia e partilhemos várias ideias, nossas propostas divergem no sentido de que os autores partem de um objetivo pragmático de oferecer um modelo pedagógico e “criar uma infraestrutura para distribuir a experiência da aula no tempo e no espaço sem exigir que os/as professores/as mudem drasticamente o que fazem na sala de aula”69 (Joyner; Isbell, 2021, p. 27), ao passo que preconizo uma reconceitualização ontoepistemológica da sala de aula tal a resource, never finally as slave to the master that closes off the dialectic in his unique agency and his authorship of ‘objective’ knowledge”]. 66 “a location in which activity occurs”; “space as produced through ongoing movements”. 67 “a dynamic place-in-the-making […] as a point along a complex learning trajectory, or as a node in a network” 68 “distributed means that the class is not restricted in time or space, but rather can be distributed across multiple locations and multiple times”. 69 “to create an infrastructure for distributing the class experience across time and space without requiring that teachers dramatically change what they do in the classroom”. 51 como está dada. Em vista disso, minha proposição estaria mais próxima daquilo que Sousa (2022, p. 199) chama de paisagem de sala de aula (classroomscape), conceito que mobiliza para caracterizar “assemblagens semióticas políticas, socioculturais e físicas que fomentam fluxos e movimentos tanto de estabilidade como de mudança”70. Isso posto, neste trabalho, os espaços físicos correspondem aos variados lugares a partir de onde cada um/a dos/as actantes humanos/as participou dos encontros virtuais. Os espaços digitais, por sua vez, foram concentrados em três plataformas principais: o Google Meet, o Google Sala de Aula e a sala de aula virtual do portal do/a aluno/a Eduq. O Google Meet operou como o espaço dos encontros síncronos. Trata-se de um espaço difuso, no qual tínhamos uma reunião principal, para a intra-ação de todos/as aqueles/as presentes, e diversas reuniões paralelas, para o trabalho em pequenos grupos. O Google Sala de Aula e o portal do/a aluno/a emergiram como espaços de intra-ação assíncrona. O Google Sala de Aula se configurou como um ambiente de postagem de materiais, envio de atividades e publicação de avisos. O portal do/a aluno/a Eduq, por sua vez, consiste em uma plataforma adotada pelo Centro de Línguas para a gestão educacional. Além de informações a respeito de matrícula, calendário letivo, faltas, notas, entre outras, o portal conta com uma “sala de aula virtual”. Esse espaço digital intra-agiu na postagem de materiais e na realização de atividades. Adentremos essas duas salas nas Figuras 7 e 8. Clique nas figuras para visualizar as imagens em movimento. “political, sociocultural, and physical semiotic assemblages that foster flows and movements of both stability and change”. 70 52 Figura 7 – Imagem em movimento do Google Sala de Aula Fonte: Elaborada pelo autor a partir dos materiais do estudo (2022). Figura 8 – Imagem em movimento da sala de aula virtual do portal do/a aluno/a* Fonte: Elaborada pelo autor a partir dos materiais do estudo (2022). *Desde a realização do curso, o modo de visualização da sala de aula virtual passou por mudanças em sua interface. Portanto, o modelo aqui apresentado é ligeiramente diferente daquele acessado pelos/as estudantes no segundo semestre de 2021, mas a estrutura da sala de aula é basicamente a mesma. O horário que você vê (08h00 – 11h40) diz respeito às turmas presenciais, que foi mantido na plataforma, apesar da redução da carga horária na modalidade digital. 53 Adicionalmente, tínhamos um grupo no WhatsApp, espaço que era ocupado tanto nos momentos síncronos quanto assíncronos para dar avisos, reportar problemas (como perda de conexão, por exemplo), tirar dúvidas sobre atividades, divulgar eventos acadêmicos e culturais e compartilhar materiais diversos (aplicativos, imagens, vídeos, canções, figurinhas etc.) relacionados à língua francesa. Na seção subsequente, discuto os/as actantes de geração do material da perguntação. Materiais Começo esta seção problematizando a noção de “dado” numa ótica pós-humanista. Para tanto, convido MacLure (2013) à conversa. A autora refuta a abordagem dos “dados” como corpos estáticos, inertes, indiferentes e passivos, à mercê da agência do ser humano. Defende, pelo contrário, que os “dados” são agentivos e se fazem inteligíveis ao/à perguntador/a por meio de intra-ações. A despeito de nosso ímpeto positivista de controlar objetivamente os “dados”, sua agência convoca nosso olhar para os detalhes, a partir dos quais conexões começam a se formar. É aí que emerge o brilho dos dados (data glow) (MacLure, 2013). A título de ilustração, “[i]sso pode ser visto, ou melhor, sentido, nas ocasiões em que você se torna particularmente ‘interessado/a’ em um dado – por exemplo, um comentário sarcástico em uma entrevista, um incidente intrigante, ou um evento observado que te faz sentir um tanto peculiar”71 (MacLure, 2013, p. 660-661). É nesse sentido que o “dado” brilha e intraage com o/a leitor/a, produzindo uma nova reconfiguração que não foi antecipada, rompendo com pressupostos de previsibilidade. Sob esse ângulo, as intervenções materiais operam mudanças nas formas como experenciamos a “realidade” e o campo das possibilidades, resultando em transformações em nossas conceitualizações metafóricas (Kuntz; Presnall, 2012). Entendo que o termo “dados” carrega um ranço positivista e descorporificado. Por isso, em seu lugar, recorro ao vocábulo materiais para designar o conjunto de informações, conhecimentos, saberes, eventos e fenômenos que intra-agiram na produção deste trabalho. Acredito que essa expressão seja mais coerente com o viés praxiológico do Pós-humanismo. Ainda que possamos subverter os sentidos de uma palavra, temo que determinados casos sejam irremediáveis, como exemplifica Haraway (2014), e exijam uma mudança. “[t]his can be seen, or rather felt, on occasions when one becomes especially ‘interested’ in a piece of data – such as a sarcastic comment in an interview, or a perplexing incident, or an observed event that makes you feel kind of peculiar”. 71 54 Os materiais deste estudo englobam: 1) um questionário; 2) as aulas ocorridas entre os meses de setembro a dezembro de 2021, incluindo os materiais didáticos; 3) as produções dos/as estudantes; e 4) um diário de campo72. Nas subseções a seguir, discorro em detalhes sobre cada um deles. Questionário Mas não seria o questionário um instrumento da pesquisa qualitativa cartesiana? Qual o lugar do questionário em um trabalho que se pretende pós-qualitativo? De meu ponto de vista, a proposta pós-qualitativa não se fundamenta como uma negação radical a tudo o que é proveniente da tradição qualitativa, mas sim como uma reconceitualização ontoepistemológica da práxis perguntadora. Na esteira de Pennycook (2010), sustento que a repetição pode ter um potencial criativo e transgressor. Nesse sentido, é completamente plausível se valer de um mesmo material, porém, a partir de uma nova configuração. Sendo assim, ao repetir, aqui, o uso de um questionário em um trabalho acadêmico, espero fazê-lo por meio de sua diferença. Pensando-com Barad (2012, p. 16), entendo que se trata de “uma questão de des/continuidade, nem contínua nem descontínua no sentido usual”73. Como explica a autora, “[d]es/continuidade é um corte junto-separado (um movimento) que não nega a criatividade e a inovação, mas entende sua dívida e suas ligações com o passado e o futuro”74 (Barad, 2012, p. 16). Ao final do curso, um questionário on-line (Apêndice E) foi enviado aos/às estudantes com o intuito de obter uma paisagem do perfil socioeconômico do grupo, bem como informações acerca de sua educação linguística em francês. O questionário foi elaborado no Google Forms e compartilhado com os/as colaboradores/as via email. Relembro, aqui, o contexto pandêmico que circunstanciou esse momento do estudo, fator impositivo para que toda a intra-ação do grupo ocorresse remotamente, por meio das tecnologias disponíveis. Salvo o texto de apresentação, que mescla português e francês, todos os campos do questionário foram apresentados em língua portuguesa. As respostas obtidas foram escritas, igualmente, em nossa língua materna. Entre os itens que integram o questionário constam: nome completo, pseudônimo, cidade e estado de residência, idade, raça, identidade de gênero, renda média familiar, grau de escolaridade e profissão. A Figura 6, exibida na seção anterior, 72 A razão pela qual esta expressão aparece tachada será debatida mais adiante na subseção em que discuto especificamente esse material. 73 “a matter of dis/continuity, neither continuous nor discontinuous in the usual sense”. 74 “[d]is/continuity is a cutting together-apart (one move) that doesn’t deny creativity and innovation but understands its indebtedness and entanglements to the past and the future”. 55 resume as respostas dos/as colaboradores/as, com exceção de seus nomes completos, que foram substituídos pelos nomes fictícios escolhidos por eles/as no intuito de preservar suas identidades. O propósito dessas questões reside na busca por compreender, mesmo que minimamente, as diferentes diferenças que situam o lugar de existência dos/as actantes humanos/as do grupo de Francês 6. O documento contou ainda com quatro questões abertas sobre a educação linguística dos/as estudantes: 1) Há quanto tempo você estuda francês? 2) Há quanto tempo você estuda francês no Centro de Línguas da UFG? 3) Durante o curso de Francês 6, você estava em seu local de residência? Se não, em que local(is) esteve? A mudança de local impactou de alguma forma sua educação linguística? Como? 4) Que materialidades (pessoas, objetos, espaços, seres não humanos etc.) contribuíram para a sua educação linguística no curso de Francês 6? Comente a respeito. As três primeiras perguntas tinham o objetivo de vislumbrar as espaçotemporalidades que constituíam as relações dos/as estudantes com a língua francesa. Supondo que a educação linguística em francês em um ambiente formal poderia ter sido iniciada antes da inscrição no curso do Centro de Línguas, a questão 1 procurou entender a longevidade da história dos/as estudantes com a língua-alvo. Na tentativa de localizar o papel do Centro de Línguas nessa história, a questão 2 atentou para o tempo de estudo dos/as colaboradores/as nessa instituição. A questão 3, por sua vez, partiu do princípio de agência do espaço, reconhecendo seu caráter performativo e suas implicações para o desenvolvimento de repertórios polissemióticos. Afinal de contas, “[h]á uma pedagogicidade indiscutível na materialidade do espaço” (Freire, 1996, p. 20). Por fim, a questão 4 foi concebida no intuito de considerar a percepção dos/as estudantes sobre as materialidades que afetaram suas intra-ações na língua francesa durante o semestre letivo. Assim como Matos (2021, p. 60), abordo a percepção “como o julgamento dado pelo sujeito com base nos achados das sensações”. Cerceados/as por uma lógica calcada no humanismo antropocêntrico, muitas vezes, falhamos em reconhecer a agência de outros seres sobre os eventos que constroem nosso cotidiano. Nesse sentido, a questão buscou estimular os/as colaboradores/as a perceber suas experiências no curso a partir de uma ótica de 56 assemblagem. Isso não quer dizer, no entanto, que todos/as o tenham feito, uma vez que o reconhecimento da capacidade agentiva de actantes não humanos/as é ponto de controvérsia. Aulas De acordo com Lemke (2010, p. 469), as instituições educacionais, de maneira geral, se amparam em um paradigma de aprendizagem curricular, que, aliado a uma lógica do capitalismo industrial, “assume que alguém decidirá o que você precisa saber e planejará para que você aprenda tudo em uma ordem fixa e em um cronograma fixo”. Inserido nesse paradigma, o curso de Francês 6 do Centro de Línguas se organiza a partir de um currículo específico. Para Silva (2005, p. 15, ênfase adicionada), o currículo tem como preocupação central os conhecimentos e saberes que devem ser ensinados, tendo como base uma inquietação sobre os efeitos que se espera que ele produza, dado que “está inextricavelmente, centralmente, vitalmente, envolvido naquilo que somos, naquilo que nos tornamos: na nossa identidade, na nossa subjetividade”. Assim, o currículo não é neutro; antes, é informado por uma agenda com interesses bem definidos. Em vista disso, podemos conceber o currículo como um aparato. Barad (2007) nos explica que um aparato é uma prática materiodiscursiva75 que produz diferenças nas reconfigurações do mundo. Segundo a autora, os aparatos operam cortes agenciais que constroem fronteiras, delimitando o que importa e o que é excluído. O currículo se ancora sempre numa seleção (Silva, 2005), um corte que lança luz sobre determinados fenômenos ao mesmo tempo em que escamoteia outros. Vejamos, então, o que nos diz esse aparato sobre o Francês 6. A fim de pluralizar as vozes presentes neste texto e polissemiotizá-lo um pouco mais, convido a leitora de texto do Word para fazer a apresentação oral da ementa e dos objetivos do curso de Francês 6 (Universidade Federal de Goiás, 2022a, on-line): Na literatura acadêmica pós-humanista, o termo usualmente empregado consiste em “material-discursivo/a”. No entanto, a fim de romper com a separação semiótica entre matéria e discursivo que segue presente nessa grafia, utilizarei, ao longo deste texto, a expressão “materiodiscursivo/a”. 75 57 Vídeo 2 – Ementa e objetivos do Francês 6 Fonte: Elaborado pelo autor e pela leitora de texto do Word (2022). Em consonância com outros cursos de línguas no Brasil, o Centro de Línguas se atém ao desenvolvimento das quatro habilidades comunicativas, a saber: produção oral, compreensão oral, produção escrita e compreensão escrita. A ementa e os objetivos do Francês 6 despendem atenção à capacidade dos/as estudantes de produzir textos, prioritariamente, argumentativos, tanto orais quanto escritos, de nível intermediário. Além disso, há um apontamento para a celebração das diversidades que atravessam a língua francesa, dando abertura para romper com uma longeva tradição de ensino centrada na França, fenômeno que tenho chamado de francocentrismo (Silva, 2021). Do ponto de vista linguístico-normativo, o conteúdo programático contém uma lista de itens que devem ser abordados ao longo das 60 horas que integram a carga horária total do curso. São eles: « expression de l'opposition ; expression de la concession ; expression du but ; le style indirect ; le discours indirect au présent et au passé ; la forme passive ; le participe présent ; le gérondif ; l'adjectif verbal ; et le passé simple »76 (Universidade Federal de Goiás, 2022a, on-line). Essa proposta curricular é subsidiada pelas unidades oito, nove e dez do Nouveau Rond-Point 2 (Flumian; Labascoule; Priniotakis; Royer, 2011), livro didático adotado pela instituição. O curso teve 16 encontros, com início no dia 21 de agosto e término no dia 4 de dezembro de 2021. No entanto, apenas 13 desses encontros constituem o material deste estudo. Isso se deu por motivos de uma adaptação que precisou ser feita no projeto inicial previsto para Em francês, as aspas angulares (« ») são os sinais gráficos correspondentes às aspas curvas (“ ”) no português brasileiro. Em vista disso, utilizarei, no corpo do texto, as aspas angulares nas citações de textos em francês e as aspas curvas nas citações de texto em português. Além disso, “o espaço rígido ou fixo precede os sinais de pontuação alta (:;?!) em francês internacional” (Mancko, 2023, para. 4), incluindo as aspas. Esse padrão de espaçamento será igualmente empregado nos trechos em francês. 76 58 esta dissertação, o qual seria realizado com um grupo de professores/as de inglês da rede pública de ensino77. A partir de 11 de setembro, todos os encontros síncronos foram gravados em áudio e vídeo pelo Google Meet, o que incluiu também um registro por escrito das conversas no chat da sala de aula digital. Procuro me embasar no entendimento de que “o currículo não é normativo, rígido, estanque e vertical, mas está em constante mutação de acordo com as (re)configurações que emergem na sala de aula” (Magalhães; Silva, 2022, p. 110). Por isso, gosto de pensar nesse aparato como uma criação cotidiana (Süssekind; Santos, 2016), que se torna-com (Haraway, 2016) a assemblagem de actantes que intra-agem no espaçotempo da aula. Para ser coerente com esse ponto de vista, é indispensável incorporar as demandas dos/as estudantes no conteúdo programático. Sendo assim, no primeiro dia de aula, indaguei o grupo sobre os assuntos que gostariam de discutir ao longo do semestre. Suas respostas incluíram: canções, filmes e séries, atualidades, DELF (Diploma de Estudos em Língua Francesa)78, gírias e palavrões. Com exceção do DELF79, todos os temas sugeridos foram incorporados no currículo do Francês 6. Nossas aulas congregaram tópicos da vida sociomaterial, aliados aos pontos gramaticais previstos. A Figura 9 propõe uma paisagem do curso, com as datas e os assuntos discutidos em cada um dos encontros síncronos. Todas as aulas foram ministradas em língua francesa e era esperado dos/as estudantes que utilizassem, majoritariamente, repertórios na língua-alvo. Os materiais didáticos que intra-agiram no curso consistem em apresentações de PowerPoint preparadas por mim, espaços digitais de colaboração (Jamboard e Padlet), jogos digitais do WordWall e do Kahoot, duas canções, um conto literário, um longa-metragem, atividades gramaticais, imagens, áudios, vídeos e textos escritos diversos. Por entender que o livro didático Nouveau Rond-Point 2 não comportava elementos suficientes para promover uma práxis docente crítica e problematizadora que atendesse às demandas temáticas sugeridas pelos/as estudantes, tomei a decisão de não utilizá-lo, escolha essa que foi corroborada pelo 77 Esse curso seria realizado no Centro de Línguas, no segundo semestre de 2021; porém, como não tivemos o número mínimo esperado de inscrições, a proposta não foi levada adiante. Em vista disso, Rossane e eu decidimos redirecionar o trabalho para minha turma de Francês 6. 78 O DELF é “o diploma oficial do Ministério da Educação Nacional Francês para certificar as competências em francês dos[/as] candidatos[/as] estrangeiros[/as]. Os certificados são reconhecidos internacionalmente e não têm prazo de validade” (Aliança Francesa Rio de Janeiro, 2022, para. 1). A certificação atesta do nível A1 ao B2, de acordo com o Quadro Europeu Comum de Referência para Línguas (QECR). 79 Talvez por falta de familiaridade com as especificidades do funcionamento desse exame de certificação e levando em consideração que a demanda partiu de uma única aluna, acabei, consciente ou (e?) inconscientemente, excluindo o assunto de nossas aulas. Olhando em retrospecto, percebo que o trabalho com o DELF poderia ter sido uma ótima oportunidade não só para que o grupo pudesse conhecer e se preparar para esse tipo de exame, mas também para problematizar como testes padronizados afetam nossas relações com as línguas que aprendemos. 59 grupo em nosso primeiro encontro, no momento de apresentação do curso. Assim como Kumaravadivelu (2012, 2016), acredito que os livros didáticos, em sua maioria, reproduzem crenças, valores e ideologias socioculturais do Ocidente, contribuindo para a preservação de ontoepistemologias dominantes dos centros coloniais de poder. Dessa forma, concebo que a preparação de meus próprios materiais didáticos com foco na situacionalidade da assemblagem do Francês 6 se configurou como um movimento em direção a uma ruptura epistêmica (Kumaravadivelu, 2012) com as colonialidades que perduram na educação linguística. Esses cortes que fazemos em relação aos componentes de nossas aulas são cruciais, pois “quando os/as estudantes intra-agem com os materiais, eles/as não só aprendem a língua, mas também se engajam em práticas sociais específicas e constroem percepções sobre a educação linguística”80 (Sousa, 2022, p. 201). Nesse sentido, não podemos perder de vista os possíveis efeitos de nossas escolhas pedagógicas na (des)construção/manutenção da vida sociomaterial. Essa compreensão nos leva a reconhecer que “não só o que os estudantes aprendem é importante, mas também como aprendem”81 (Sousa, 2022, p. 201). Portanto, os materiais didáticos estabelecem fortes relações de afecto com os/as demais actantes envolvidos/as nos processos educativos. “when students intra-act with materials, they do not just learn language but also engage in particular social practices and construct perceptions of language education”. 81 “not only is what students learn important, but also how they learn it”. 80 60 Figura 9 – Aulas do curso de Francês 6 Fonte: Elaborado pelo autor a partir dos materiais do estudo (2022). Produções dos/as estudantes Ao longo do semestre, os/as estudantes realizaram uma série de atividades como requisito parcial para a aprovação no curso. A maior parte dessas atividades foi desenvolvida de forma assíncrona, no Google Sala de Aula ou na sala de aula virtual do portal Eduq, e tinham o objetivo de impulsionar os/as estudantes a mobilizar e expandir seus repertórios na (e para 61 além da) língua francesa. Nesse sentido, do ponto de vista normativo, as propostas apresentadas buscaram não só estimular a prática das estruturas linguísticas estudadas nas aulas, mas também a experimentação com a língua-alvo de forma mais ampla. Do ponto de vista éticoontoepistemológico, por outro lado, o interesse residia em nos tornarmos-com a língua francesa mediante a discussão de questões da vida sociomaterial. Em conformidade com a orientação da ementa de promover o “aperfeiçoamento […] das produções oral e escrita” (Universidade Federal de Goiás, 2022a, on-line), os/as estudantes se engajaram na performance de textos escritos, orais e polissemióticos. Diferentes gêneros textuais foram explorados nessas produções, entre eles constam: narrativa de aprendizagem de língua, comentário, tuíte, apresentação oral, cartaz, perguntas e relato pessoal. Seus temas abrangeram os assuntos discutidos nas aulas: história de aprendizagem da língua francesa; palavrões e questões de gênero; denúncia de uma situação de injustiça; monumentos; consumo; o filme Les misérables (2019); e experiências com a educação linguística em francês de forma remota. Os/as estudantes foram encorajados/as a intra-agir com as produções de seus/suas colegas para que tivessem contato com posicionamentos diferentes e divergentes e pudessem coconstruir repertórios polissemióticos a partir de suas diferenças. Afinal, uma postura problematizadora está sempre aberta ao dissenso. Em vista disso, quase a totalidade das atividades foi postada em espaços digitais de acesso público do grupo, tais como o Padlet, o Jamboard e, mais frequentemente, o fórum da sala de aula virtual do portal do/a aluno/a. De modo geral, encaro essas atividades como decisões inten(c/s)ionais (Kuby; Christ, 2020) tomadas na esperança de criar oportunidades para que os/as estudantes pudessem performar criticidade, entendida aqui como “um fenômeno corporificado, afetivo, performático e material-discursivo. A criticidade não é apenas algo a ser adquirido, armazenado e conhecido. É uma prática que existe no fluxo, na materialidade, emaranhada com e no cotidiano”82 (Bayley, 2018, p. 231-232). Veremos, mais adiante, como isso se desenrolou. Diário de campo Antes de adentrar no mérito do diário de campo, gostaria de abordar um assunto que, nos últimos tempos, tem me inquietado bastante: a noção tradicional de campo como “o local “an embodied, affective, performative and material-discursive phenomenon. Criticality is not just something to be acquired, banked and known. It is a practice, existing in flow, in materiality, entangled with and in the everyday”. 82 62 onde o fenômeno sob estudo – objeto de estudo – está ocorrendo” (Ferreira, 2019, 0min 50s). Pensando-com a perspectiva onlife e a sala de aula distribuída, me pergunto: onde/quando começa e termina “meu” campo? Se ministro aulas on-line de minha casa, quando é que entro efetivamente no campo de perguntação? Quando saio dele? Antes de começar o curso de Francês 6, quando fazia leituras e preparava meu projeto, não estava em campo? Ou quando conversei com Rosane e colegas de pós-graduação sobre meu trabalho? Esses questionamentos me impulsionaram a buscar visões mais expansivas acerca do que pode vir a ser o campo, de modo a concebê-lo para além de uma lógica espacial de contêiner. Assim como Kroef, Gavillon e Ramm (2020), considero o campo como uma rede complexa de relações na qual nos emaranhamos. Nesse sentido, não se trata de um espaço determinado, mas de intra-ações situadas em espaçotempos em torno de um tema de nosso interesse. Disso decorre uma compreensão corporificada do campo, que deixa de ser “um lugar específico, delineado, separado e distante” (Spink, 2003, p. 28), um espaço alheio ao/à perguntador/a, para se tornar um espaçotempo rizomático do qual fazemos parte, de modo “que estamos sempre potencialmente em múltiplos campos” (Spink, 2003, p. 28) devido à multiplicidade de relações que estabelecemos com o fenômeno estudado. Seguindo esse intranó, Spink (2003) sugere que o campo consiste em um argumento, um assunto; uma perguntação, adiciono. Consequentemente, o autor nos apresenta a ideia de campo-tema, um complexo de redes de sentidos que se interconectam, é um espaço criado – usando a noção de Henri Lefebvre (1991) – herdado ou incorporado pelo[/a] pesquisador ou pesquisadora e negociado na medida em que este[/a] busca se inserir nas suas teias de ação. Entretanto isso não quer dizer que é um espaço criado voluntariamente. Ao contrário, ele é debatido e negociado, ou melhor ainda, é argüido dentro de um processo que também tem lugar e tempo (Spink, 2003, p. 28, ênfase adicionada). Com base nisso, não vejo sentido em expressões como “trabalho de campo” ou “ir ao campo”83, uma vez que todo o nosso trabalho ocorre no campo, pois integramos esse espaçotempo desde o momento em que iniciamos nossas perguntações, independentemente do local onde estejamos. Por conseguinte, o campo, ou campo-tema, se configura como um actante da 83 Recentemente, li uma notícia que informava sobre a exclusão dessas expressões na Escola de Serviço Social Suzanne Dworak-Peck da Universidade do Sul da Califórnia mediante a justificativa de que elas “talvez tenham conotações que não são benignas para descendentes de pessoas escravizadas e trabalhadores/as imigrantes” [“maybe have connotations for descendants of slavery and immigrant workers that are not benign”] (Keane, 2023, para. 5). Visto que o assunto não toca meu lugar de existência, não sei dizer em que medida esses termos são ou deixam de ser gatilhos para traumas intergeracionais, mas acredito que a problematização seja válida. 63 perguntação, formado por uma correlação de agências que se sintonizam e se desalinham para produzir sentidos sobre determinados eventos. Em perguntações que envolvem a sala de aula, é comum a prática de fazer anotações, as quais se convencionou chamar, na metodologia qualitativa, de diário de campo (ou notas de campo). Levando em consideração a discussão acima, suspeito que a expressão diário de campo, ao menos para a situacionalidade desta dissertação, não seja adequada. No entanto, na falta de uma melhor, decidi mantê-la; farei isso, porém, sob rasura (Derrida, 1967). Spivak (1997, p. xiv) explana que essa prática corresponde a “escrever uma palavra, riscá-la e depois imprimir tanto a palavra quanto a exclusão. (Como a palavra é imprecisa, ela é riscada. Uma vez que é necessária, permanece legível)”84. Oliveira (2014, p. 71) define o diário de campo como “o lugar de registro dos movimentos, das leituras, dos tempos, espaços e das observações que ocorrem/ocorreram, enfim, do que na escola e comunidade vimos, ouvimos e vivemos”. As formas mais habituais de fazer esses registros incluem escrever textos ou gravar áudios após a ocorrência de algum evento que nos tenha fisgado a atenção. Na busca por facilitar a organização de meus sentipensares, optei pela forma escrita, em um documento do Word. No entanto, não obtive bons resultados. Absorto na cotidianidade da rotina de sala de aula, falhei em me reportar ao diário de campo. Após cada aula, minhas preocupações giravam em torno de lidar com os encargos do dia de trabalho (registrar presenças, postar materiais e atividades, almoçar, descansar e me organizar para as aulas do turno vespertino). Minha identidade de professor colidiu com a de perguntador e não foi do tipo de colisão em que as duas se justapuseram, mas do tipo em que uma se sobrepôs à outra. Isso me lembrou de uma conversa que tive com Rosane na qual ela me alertou para olhar os eventos da sala de aula não mais como apenas professor, mas também como perguntador. Entretanto, não soube conciliar bem esses papéis e, no meio da colisão, me esqueci do diário, e ele se tornou ausência durante todo o período do curso, de maneira que registrei apenas uma entrada, que data de um dia antes do início da gravação das aulas: 10/09/2021 Amanhã começarei a produzir o material empírico do estudo. Enquanto dormia, na noite de ontem, sonhei com a aula de amanhã de minha turma de Francês 6. Não me lembro dos detalhes do sonho, mas sei que foi impulsionado pela ansiedade de começar essa fase da pesquisa. “to write a word, cross it out, and then print both word and deletion. (Since the word is inaccurate, it is crossed out. Since it is necessary, it remains legible.)”. 84 64 Essa única entrada, ainda que não diga muito, serve para ilustrar alguns deslocamentos terminológicos que me ocorreram ao longo do processo. Como você pode ver, naquele momento, empreguei termos como “material empírico” e “pesquisa”, os quais tenho substituído por “material” e “perguntação”. Devo ressaltar que não se trata de uma mera mudança de vocabulário, mas de uma reconfiguração de um olhar ontoepistemológico, uma vez que a língua(gem) não é uma matéria que descreve o mundo ingenuamente; mais do que isso, é “a base sobre a qual o conhecimento, o logos, repousa”85 (St. Pierre, 1997, p. 175). Dado meu fracasso em me engajar com o diário de campo, hesitei em escrever sobre ele. “O que teria para dizer?”, pensei. Contudo, exclusões requerem prestação de contas (Barad, 2003). Lather (2007, p. 93) nos adverte que “momentos de falha são particularmente importantes para demarcar o tipo de trabalho que algo faz”86. E o que o diário de campo fez? Me fez questionar o construto campo, me fez pensar sobre a conflituosa relação entre minhas identidades de professor e perguntador, me fez contestar minhas escolhas, me fez admitir que minha relação com esse aparato não foi produtiva, enfim, me fez viver os caminhos tortuosos da perspectiva pós-qualitativa. Talvez meu diário de campo seja, despretensiosamente, minha memória e todas as intra-ações nelas impressas durante o período do mestrado, o que eu não seria capaz de textualizar, efetivamente, aqui ou em qualquer outro espaço que seja. Discussão dos materiais A discussão dos materiais tem como alicerce a intra-ação de práticas materiodiscursivas na educação linguística dos/as colaboradores/as humanos/as em conjunção com actantes não humanos/as. Nesse sentido, busco compreender de que maneira as pessoas, os materiais didáticos, as tecnologias, as emoções, as espaçotemporalidades se conectaram para (des)oportunizar a coconstrução de repertórios polissemióticos em um contexto de educação digital onlife a partir da língua francesa. Essa problematização se dá mediante o viés da Linguística Aplicada Pós-Humanista (Canagarajah, 2018a, 2018b; Pennycook, 2018a, 2018b; Sousa, 2022). O tratamento dos materiais tomou forma a partir de leituras difrativas (Barad, 2012). Partindo do fenômeno ótico, Haraway (1992, 2018) tece uma crítica à ideia de reflexão, 85 86 “the foundation upon which knowledge, the logos, rests”. “moments of failure are particularly important in tracing the kind of work that something does”. 65 mediante a justificativa de que ela apenas gera uma replicação do mesmo em outro lugar, pautando-se por um preceito de igualdade desigual. Em razão disso, assinala que o conceito de difração é mais produtivo, pois trabalha sob a ótica da heterogeneidade, da diferença. Para a autora, a difração é uma “performance material-semiótica, não uma ilustração”87 (Haraway, 2018, p. xlvi), é “uma metáfora ótica para o esforço de fazer a diferença no mundo”88 (p. 16). Inspirada por essa crítica, Barad (2007, p. 74) propõe um aprofundamento desse construto. Segundo a autora, a difração é um fenômeno físico que “tem a ver com a forma como as ondas se combinam quando se sobrepõem e a aparente flexão e propagação das ondas que ocorre quando encontram uma obstrução”89. No fenômeno difrativo, as ondas atravessam fendas e contornam obstáculos, sofrendo mudanças em seu padrão de propagação. Uma forma muito simples de apreender a difração é por meio das ondas sonoras. Vejamos o seguinte exemplo (Figura 10). Um golpista que invadiu e depredou a sede dos Três Poderes, em Brasília, após a posse do presidente democraticamente eleito Luiz Inácio Lula da Silva, está em sua casa assistindo à Jovem Pan News quando ouve batidas à porta. Sem abri-la, o golpista braveja: — Quem é?!? Do outro lado, vem a resposta: — A polícia federal! Embora haja um obstáculo entre o golpista e a polícia, o diálogo se torna possível porque a onda sonora facilmente atravessa a porta, por frestas, permitindo que ambos se ouçam, ainda que com alterações em suas vozes90. “as a material semiotic enactment, not an illustration”. “an optical metaphor for the effort to make a difference in the world”. 89 “has to do with the way waves combine when they overlap and the apparent bending and spreading of waves that occurs when waves encounter an obstruction”. 90 Embora hipotético, esse exemplo tem como base eventos que ocorreram em 8 de janeiro de 2022, no Brasil, quando apoiadores/as golpistas do ex-presidente Jair Bolsonaro, inconformados/as com os resultados das eleições, invadiram e depredaram o Congresso Nacional, a sede do Supremo Tribunal Federal (STF) e o Palácio do Planalto, em Brasília. Para saber mais, leia esta notícia: https://www.dw.com/pt-br/bolsonaristas-golpistas-invadem-edepredam-sedes-dos-tr%C3%AAs-poderes/a-64320429. 87 88 66 Figura 10 – Exemplo de difração de onda sonora Fonte: Adaptação de imagem gerada pela inteligência artificial Midjourney (2023) 91. Transpondo essa ideia para nossas formas de leitura do mundo, Barad (2007) propõe que a difração opera a partir de práticas de ler através, opondo-se à reflexão, que se configuraria como um ato de ler contra. Ler através traduz uma estratégia de leitura que atravessa os eventos para mapear interferências e os efeitos de diferença que marcam os emaranhamentos de um fenômeno e produzem mudanças (Haraway, 1992; van der Tuin, 2018). Barad (2007) sugere, portanto, que o princípio de difração pode ser transversalizado, por meio de um engajamento transdisciplinar, para ler através de diversos eventos da vida sociomaterial, pois as fronteiras entre as disciplinas são práticas materiodiscursivas de produção do conhecimento. Sendo assim, proponho uma leitura difrativa das intra-ações que constituíram o curso de Francês 6. Isso implica que não me toca levantar generalizações e estabelecer categorias de análise para os materiais do estudo. Em vez disso, procuro apreender os eventos a partir de um olhar relacional cujo foco reside não no resultado, mas sim nos processos. Assim como MacLure (2013, p. 662, ênfases adicionadas), considero que “não podemos dominar o[s] sentido[s] ou o[s] evento[s]”92 e que “na relação da ‘pesquisa’ com os ‘dados’, devemos ser convidados/as a entrar”93. Logo, os desdobramentos do trabalho surgem das intraações com os materiais, e não de especulações racionalmente predeterminadas. Seguindo esse 91 Gostaria de expressar minha afetuosa gratidão a Gabriel Rufino e Samuel Rufino, que colaboraram na geração dessa imagem. 92 “[w]e cannot master sense or the event”. 93 “in the research relation with data, we must be invited in”. 67 rizoma, minhas leituras difrativas dos materiais almejam proporcionar compreensões emergentes (Martin, 2018) da assemblagem do estudo, reconhecendo seu caráter parcial e situado. Esse processo se fundamenta em múltiplas leituras do material, retendo a atenção para os eventos que brilham. Em minha práxis perguntadora, acionei as seguintes questões: quais materiais me convidaram a entrar? Que efeitos de difração fizeram brilhar? Como se relacionaram com a emergência de repertórios polissemióticos na educação linguística em francês? Quais actantes estiveram envolvidos/as nesses processos? Que afectos emergiram? Como diferentes diferenças foram produzidas? A esse respeito, é pertinente destacar a importância dos detalhes. De acordo com Barad (2007, p. 90), a difração é uma prática crítica atenta aos detalhes, uma vez que é crucial “compreender quais diferenças são importantes, como elas são importantes e para quem”94. No intuito de apresentar o material de forma corporificada, optei por não fazer a transcrição das gravações das aulas. Os momentos em que esses materiais brilharam serão expostos no formato de áudio. Embora o vídeo fosse mais interessante para uma proposta corporificada, excluo essa opção por motivo de preservar as identidades dos/as colaboradores/as. Concordo com St. Pierre (1997, p. 179, ênfase adicionada) sobre a ideia de que praxiologias tradicionais nos levam a supor “que os ‘dados’, sejam eles quais forem, devem ser traduzidos em palavras para que possam ser explicados e interpretados”95. É certo, no entanto, que “[a] língua/linguagem – seja na forma de textos, sons ou imagens – representa insuficientemente as interações [intra-ações] entre a sociedade, a cultura, a geologia e a ecologia”96 (Ulmer, 2017, p. 3). Apesar disso, acredito que a gravação em áudio em si mesma aporta mais elementos do que a transcrição, pois contém barulhos de múltiplas materialidades que acabam sendo suprimidos no texto escrito (Kuntz; Presnall, 2012). Difratando a relação entrevista-transcrição, Kuntz e Presnall (2012) chamam a atenção para o fato de que, no momento de leitura dos materiais de um estudo, tendemos a privilegiar a transcrição em detrimento da assemblagem de sons que intra-agem em um evento. Ainda que não esteja trabalhando com entrevistas – ou melhor, intravistas, termo proposto pelo autor e pela autora –, esse ponto é relevante para o argumento que sustenta minha escolha. Segundo o autor e a autora, o som tem um potencial afetivo sobre o/a ouvinte, o que gera implicações sobre “understanding which differences matter, how they matter, and for whom”. “that ‘data’, whatever they are, must be translated into words so that they can be accounted for and interpreted”. 96 “[l]anguage – whether it be in the forms of texts, sounds, or images – insufficiently represents the interactions among society, culture, geology, and ecology”. 94 95 68 os processos de tornar-se-com as (in)compreensões emergentes dos materiais em discussão. Nesse sentido, reiteram que o trabalho de um/a perguntador/a crítico/a requer um engajamento com uma escuta responsiva. Resgatando as proposições de MacLure (2013), poderia dizer que a gravação nos convida a entrar e brilha. Como reagimos a essa intra-ação? Não se trata, pois, de esgotar todos os possíveis significados/sentidos do fenômeno, muito menos de agrupá-los em categorias fechadas que podem ser generalizadas e replicadas em outros estudos. Trata-se de empreender uma leitura difrativa atenta aos detalhes, leitura essa que parte de espaçotempos distintos daqueles dos eventos e se justapõe a eles. Visto que a repetição tem o potencial de gerar algo novo (Pennycook, 2010), ler as gravações das aulas múltiplas vezes carrega a possibilidade de nos fazer perceber a copresença de materialidades variadas, abrindo caminho para a consideração de assemblagens mais-quehumanas. Isso porque uma leitura difrativa mobiliza “[q]uestões ontológicas e epistemológicas que entram na recriação metodológica que prioriza a agência partilhada e criativa” (Takaki, 2019a, p. 10), reconhecendo o papel de actantes para além do ser humano. Os nós seguintes dispersam as (in)compreensões emergentes de minhas leituras difrativas das intra-ações do curso de Francês 6. 69 PRIMEIRO NÓ: “on-line é mais difícil”? Inicio minhas leituras a partir da percepção dos/as estudantes sobre suas experiências com a educação linguística digital em francês. Para tanto, intra-ajo com a gravação de nossa última aula do semestre e com textos produzidos pelos/as alunos/as. No dia 4 de dezembro de 2021, utilizamos nosso encontro síncrono para discutir como se deu o andamento do curso. Na ocasião, apresentei as seguintes perguntas (Figura 10): “como você avalia sua experiência no Francês 6? Como você avalia sua experiência em relação à aprendizagem on-line? Quais são os pontos positivos? E os negativos?” Figura 11 – Imagem em movimento das perguntas apresentadas ao grupo no último encontro síncrono Fonte: Elaborada pelo autor a partir dos materiais do estudo (2022). Pedi a cada aluno/a que registrasse sua resposta à primeira pergunta no espaço colaborativo do Jamboard (Figura 12). Textos escritos, imagens, GIFs (Formato de Intercâmbio Gráfico, em português) e memes foram mobilizados para fazer emergir significados/sentidos. Além disso, os/as estudantes expressaram suas opiniões oralmente. 70 Figura 12 – Imagem em movimento das respostas dos/as estudantes Fonte: Elaborada pelo autor a partir dos materiais do estudo (2022). Antes desse momento, eu havia elaborado uma atividade avaliativa assíncrona com o mesmo propósito. Resolvi re-tornar o tema durante nosso último encontro síncrono para que os/as estudantes pudessem se expressar sem o peso (ou medo?) da avaliação. O enunciado da atividade foi o seguinte: Écrivez un texte ou enregistrez un audio/une vidéo en décrivant votre expérience d’apprentissage de français en ligne ce semestre. Les questions suivantes peuvent vous servir d’inspiration : Comment décririez-vous votre expérience d’éducation linguistique de français en ligne ? Quels sentiments l’éducation en ligne vous éveille ? Quelles différences percevez-vous entre l’éducation en présentiel et celle en ligne ? Quels éléments affectent-ils l’apprentissage de français en ligne ? Êtes-vous satisfait.e de ce semestre ? Expliquez. [Escreva um texto ou grave um áudio/vídeo descrevendo sua experiência de aprendizagem de francês on-line neste semestre. As seguintes perguntas podem servir de inspiração: Como você descreveria sua experiência com a educação linguística em francês on-line? Que sentimentos a educação on-line desperta em você? Que diferenças você percebe entre a educação presencial e a on-line? Que elementos afetam a aprendizagem de francês on-line? Você está satisfeito/a com este semestre? Explique.] Agora, conjugo esses dois aparatos para problematizar as percepções dos/as estudantes. Devo ressaltar que a distinção entre educação presencial e remota (ou on-line, digital), da forma como abordo aqui, constitui um corte agencial, e não uma dicotomia. De acordo com o 71 paradigma onlife, as duas modalidades se atravessam, sem fronteiras específicas, o que não significa, porém, que não haja diferenças significativas entre elas. Como explicam Moreira e Schlemmer (2020, p. 23-24), [n]esse contexto, podemos pensar num cont[i]nuum da Educação Digital que compreende desde processos de ensino e aprendizagem enriquecidos por TD [tecnologias digitais] e/ou redes de comunicação, até o desenvolvimento de uma educação totalmente online e digital, tendo variabilidade na frequência e na intensidade tanto de TD, quanto de redes de comunicação. As produções dos/as estudantes incorporam elementos referentes à cognição, aos sentimentos, à socialização, às espaçotemporalidades, à produção de conhecimento e à comunicação, apontando as maneiras como diversos/as actantes se (des)alinharam para produzir repertórios ligados à língua-alvo. Em muitos dos relatos, brilhou o entendimento de que o espaço digital tem implicações negativas sobre nossa capacidade de concentração. Como exemplo, vejamos o que nos diz Croissant: Cette forme d'éducation a ses difficultés, comme par exemple, je trouve un peu plus difficile pour me concentrer et faire attention à la classe. [Essa forma de educação tem suas dificuldades, como por exemplo, acho um pouco mais difícil de me concentrar e prestar atenção à aula.] (Croissant, texto escrito, 2021)97 Algumas das justificativas apresentadas pelos/as estudantes se referem às múltiplas distrações que a internet oferece, aos espaços físicos de onde participavam das aulas e ao contexto pandêmico. Creio que a primeira justificativa demande certa problematização. Em que medida as distrações da internet não intra-agem nas dinâmicas presenciais? Quantos relatos temos de professores/as reclamando sobre a agência de aparelhos eletrônicos (e objetos em geral) que “desviam o foco da aula”? Talvez a questão se refira não à internet como uma actante em si, mas às reconfigurações de poder em uma sala de aula distribuída digitalmente. Em uma sala física, a presença do/a professor/a costuma operar como um mecanismo de monitoramento e vigilância que constrange a ação dos/as discentes. Em uma sala digital, esse mecanismo de controle se perde quando não há algum software instalado nas máquinas dos/as estudantes que os/as impeça de acessar outros conteúdos, como é o caso do curso de Francês 6. 97 Nesta dissertação, os textos dos/as estudantes estão dispostos tais como foram performados por eles/as, isto é, não passaram por nenhuma revisão linguística (ortográfica, morfossintática etc.). 72 Como destaquei na seção sobre o contexto sociomaterioespaçotemporal, para muitos/as de nós, nossas casas se tornaram extensão da sala de aula digital. A Figura 13 nos fornece uma paisagem parcial da configuração da sala de aula digital, a partir da combinação de cortes de espaçotempos distintos, na qual podemos ver objetos que normalmente não fazem parte de uma sala de aula tradicional (armários, espelhos, guarda-roupas, televisores, utensílios domésticos etc.). Figura 13 – Paisagem parcial da sala de aula digital Fonte: Elaborada pelo autor a partir dos materiais do estudo (2023). Em suas respostas à terceira questão aberta do questionário (“Durante o curso de Francês 6, você estava em seu local de residência? Se não, em que local(is) esteve? A mudança de local impactou de alguma forma sua educação linguística? Como?”), alguns/mas estudantes apontaram que o espaço domiciliar impôs dificuldades para a manutenção do foco, para o estabelecimento de uma rotina de estudos e para o engajamento com o grupo. Vejamos a resposta de Toni: 73 Estive em minha residência na maioria das aulas. Ocasionalmente, precisei participar das aulas no carro enquanto viajava e a mudança de local com certeza atrapalhou o meu desempenho e aprendizado. Tanto na minha residência quanto nos outros locais em que eu participava das aulas haviam muitas distrações, principalmente a interrupção de familiares, que acabavam tirando a minha atenção. (Toni, questionário, 2021) A estudante menciona que chegou a participar de aulas enquanto se locomovia de carro. Essa situação torna palpável o argumento de que as disposições sociomateriais do espaço podem transformar as intra-ações educacionais de diversas formas, como pela falta de estabilidade de conexão à internet, pelo (des)conforto e pela presença de pessoas não matriculadas no curso. A resposta de Toni nos ajuda a vislumbrar que a sala de aula tomava uma configuração nova a cada encontro. Ainda que a maioria dos/as estudantes tenha participado das aulas desde suas casas, é plausível que o tenham feito em cômodos distintos, o que poderia afetar suas formas de engajamento devido às propriedades disposicionais (Sousa, 2022) daquele espaço. Sendo assim, não podemos negligenciar o fato de que os letramentos estão imbricados em práticas espaciais (Scheifer, 2014). A noção de sala de aula distribuída nos ajuda a reconceitualizar o espaço pedagógico como parte integrante do mundo sociomaterial, ao contrário de uma visão tradicional que concebe a sala de aula como um espaço isolado do mundo “lá fora”. Isso implica reconhecer os modos como actantes inesperados/as se inserem na aula e afetam seu desenrolar, podendo emergir como “distrações”. Um momento do encontro de 4 de dezembro de 2021 nos ajuda a vislumbrar esse ponto: FX expressa sua opinião sobre o semestre quando um barulho irrompe de meu microfone. A hesitação do aluno é acompanhada pelo som do motor de uma motocicleta que passava em minha rua naquele instante. Me pergunto se sua hesitação se prolongou em intra-ação com o som da motocicleta. Posteriormente, tento agradecer a FX, mas minha fala é atravessada por sons de carros, o que me leva a interromper minha elocução para aguardar que o barulho se esvaia. Nesse intervalo, outra aluna toma o turno, de modo que só pude concluir meu texto quase dois minutos depois. A materialidade dos barulhos “lá de fora”, portanto, reconfiguraram a dinâmica comunicativa daquele espaçotempo. A respeito da “interrupção de familiares”, mencionada por Toni, um evento relacionado à discussão que realizamos no dia 11 de setembro de 2021 sobre palavrões exemplifica bem esse tema. Na ocasião, levantei a seguinte pergunta: « quel est votre gros mot préféré (en portugais) ? Pourquoi ? » [“qual é seu palavrão preferido (em português)? Por quê?”]. Alguns/mas estudantes compartilharam suas preferências oralmente, mas Hiago não pôde fazê- 74 lo e justificou no chat: « je ne peux parler ici, ma mére n'aime pas :x » [“não posso falar aqui, minha mãe não gosta :x”]. O intracruzamento do espaço domiciliar com o espaço escolar afetou a agência de Hiago, que se sentiu impedido de oralizar seu palavrão preferido por conta do desconforto que isso poderia gerar em seu ambiente familiar. Mais uma vez, uma actante “externa” (a mãe do aluno) mudou, em certo grau, os rumos da aula. Por outro lado, os/as estudantes apontaram, também, a praticidade de participar das aulas a partir de suas casas. Em princípio, isso se justifica pela distância física. As aulas presenciais do Centro de Línguas ocorrem, majoritariamente, no câmpus Samambaia, localizado na região norte de Goiânia. Para muitos/as de nós, o acesso ao câmpus pode ser um problema devido à distância relativa aos demais bairros e às condições lamentáveis da mobilidade urbana na capital goiana, sobretudo no tocante ao transporte público. Ao abordar o assunto, Maria afirma ter “ganhado” tempo de vida ao evitar o deslocamento. À época, eu morava em Aparecida de Goiânia, na região metropolitana de Goiânia, e minha casa ficava a pouco mais de 20km do câmpus. Quanto tempo de vida devo ter “ganhado” evitando me deslocar cerca de 40km para ir e voltar ao trabalho? Esse ponto nos ajuda a perceber, ainda que de modo simplório, como espaço e tempo estão intraligados de maneira indissociável e as implicações dessa relação sobre nossas vidas sociomateriais. Para além da mobilidade, o espaço domiciliar se enredou em questões institucionais e identitárias. Profa inicia seu texto da seguinte maneira: D’abord, je qualifierais mon expérience d'éducation linguistique de français en ligne ce semestre de très positive et productive. J'ai découvert que j'aimais étudier de chez moi et être à l'abri de l'environnement universitaire intimidant. Oui, même si je suis enseignant, je trouve l'environnement académique intimidant, dans le sens où l'on nous demande constamment de bien performer. De plus, la tranche d'âge de la classe est composée de personnes beaucoup plus jeunes que moi, ce qui en quelque sorte me gêne moins en étant en ligne. [A princípio, descreveria minha experiência de educação linguística de francês on-line neste semestre como muito positiva e produtiva. Descobri que gostava de estudar em casa e de estar longe do ambiente acadêmico intimidante. Sim, apesar de ser professora, acho o ambiente acadêmico intimidante, no sentido de que somos constantemente cobrados/as a ter um bom desempenho. Além disso, a faixa etária da turma é composta de pessoas muito mais jovens do que eu, o que, de alguma forma, é menos desconfortável, para mim, estando on-line.] (Profa, texto escrito, 2021) Profa associa sua casa a um espaço de conforto e acolhimento, em contraposição ao espaço acadêmico, onde se sente pressionada. Embora não tenha especificado seu contexto de atuação no questionário, Profa trabalhava como docente universitária. É certo que o ambiente 75 acadêmico pode ser “intimidante”, especialmente quando se faz parte de grupos minorizados, como mulheres, idosos/as, indígenas, negros/as, pessoas transgênero, pessoas com deficiência etc. No caso de Profa, ela ainda carregava o rótulo de professora universitária, o que poderia funcionar como mais um elemento que pesaria na balança da cobrança sociomaterial, pois há uma visão arraigada de intelectualidade atrelada à docência. Logo, esperamos que professores/as sejam excelentes alunos/as em termos de performance. Aparentemente, a mudança espacial transformou a autopercepção de Profa. Ao estar em seu ambiente domiciliar, ela parece ter se libertado do sentimento de cobrança que sentia nas salas da universidade. Além disso, a estudante menciona sua idade como um ponto de desconforto nas dinâmicas presenciais. É preciso vermos essa questão a partir das relacionalidades, pois, como sublinha Sousa (2022, p. 153), “[a] idade não diz respeito a corpos individuais, mas a como esses corpos se relacionam com o mundo”98. Na assemblagem do Francês 6, Profa era a mais velha do grupo, com 57 anos, enquanto seus colegas estavam, em sua maioria, na faixa dos 2030 anos. Na aula 15, durante uma discussão com Croissant e Marta sobre arrependimentos e remorsos, Profa confessou se sentir « très, très vieille » [“muito, muito velha”]. O desconforto com o devir da velhice é bastante comum na contemporaneidade, “[p]orque na sociedade ocidental capitalista ninguém quer ser velho[/a]. […] A velhice tem um tempo, um nome, um status, várias facetas e muito preconceito associado a tudo que a ela se relaciona” (Vilhena; Novaes; Rosa, 2014a, p. 252). Cultivamos um etarismo que é seriamente prejudicial para nossos corpos e nossas relações sociomateriais, principalmente se levarmos em conta questões como gênero e sexualidade (pensemos sobre o envelhecimento de mulheres e homens gays, por exemplo). A sala de aula digital parece ter difratado a percepção das diferenças etárias, tornandose-com a educação linguística de Profa. Terá isso a ver com a agência das câmeras? A corporeidade do sentimento de velhice pode ter sido atenuada pela circunstância de que as câmeras permaneceram desligadas durante grande parte do curso? Manstead, Lea e Goh (2011) sugerem que a comunicação via internet tem o potencial de libertar os/as interlocutores/as de certas imposições e normas sociais que regulam as trocas presenciais, podendo diminuir as sensações de vulnerabilidade e insegurança. Com base no relato de Profa, sustento que a idade possa ser um desses elementos reguladores que se dissipam nas intra-ações remotas. Ainda que a velhice envolva inúmeros fatores, não podemos negar que tem “o corpo como lócus primordial de investimento, sendo a aparência um capital precioso. É neste corpo, 98 “[a]ge is not about individual bodies but about how these bodies relate to the world”. 76 transformado em um registro vivo, que serão inscritos afetos, emoções, representações da história do sujeito, do seu tempo e também da sua dor” (Vilhena; Novaes; Rosa, 2014b, p. 5). A falta de visão do corpo físico pode, assim, ter contribuído para diluir os marcadores corporais da idade, fazendo com que Profa experimentasse uma corpovivência (Almeida, 2023) outra e não se percebesse como “velha” com a mesma frequência que isso ocorreria numa sala física de um curso presencial. Re-tornando a discussão sobre mecanismos de controle, um comentário de Profa evidencia como os espaços digitais abrem margem para que actantes não humanos/as participem da coconstrução de repertórios na língua francesa. A aluna assinala que, durante as aulas, intra-agiu com tradutores e conjugadores on-line, o que facilitou a produção de significados/sentidos. Na gravação de uma atividade em grupo, encontramos um exemplo desse evento quando a estudante se pergunta sobre a palavra correct (correto/a) e intra-age com o Google Tradutor. A máquina traduz “correto” como droit e Croissant questiona essa resposta, o que leva Profa a inverter o fluxo da tradução. Então, ela traduz correct para o português e obtém “correto”. Nesse evento, encontramos um exemplo de como actantes humanas e tecnológicos se colocam (emplace) em intra-ação para negociar o significado de uma palavra, de maneira a evidenciar que a língua(gem) emerge em assemblagens (Canagarajah, 2018b). Voltando ao comentário, Profa sublinha que esse tipo de intra-ação era motivo de constrangimento nas aulas presenciais. Suponho que esse desconforto parta da lógica de que ela supostamente estaria produzindo a língua de forma “autônoma”, o que poderia ser facilmente identificado pelo/a professor/a à sua frente. No entanto, é inútil sustentar a tese da autonomia kantiana, que leva a individualidade às últimas consequências, dado que estamos ontologicamente conectados/as a outros corpos, os quais, em maior ou menor medida, participam da produção de significados/sentidos e dos processos de ensinaprender. Como indica Lemke (2010, p. 458), “[n]ão é mais suficiente imaginar que as sociedades são constituídas por indivíduos isolados, ligados imprevisivelmente através de contatos sociais voluntários, com ‘mentes’ individuais e autônomas de algum modo dissociadas do mundo material”. Em referência à educação linguística, Atkinson (2019, p. 10) argumenta que, “em vez de nos tornarmos aprendizes mais ‘autorregulados/as’, ‘autônomos/as’, à medida que aprendemos uma língua, nos tornamos mais altamente adaptados/as/alinhados/as com/integrados/as ao ambiente ecossocial no qual essa língua opera”99. Em consonância com esse pensamento, Sousa (2022) nos estimula a trabalhar com a ideia de intranomia, que desvia “rather than becoming a more ‘self-regulated,’ ‘autonomous’ learner as one learns a language, one becomes more highly adapted to/aligned with/integrated into the ecosocial environment in which that language functions”. 99 77 o foco exclusivamente sobre o indivíduo e promove um olhar atento à agência de um/a actante em relação às assemblagens em que se emaranha. No evento apresentado no parágrafo anterior, vemos como Profa performou intranomia ao se alinhar com uma colega de classe e com uma inteligência artificial para expandir seus repertórios em língua francesa. Como professores/as, somos fortemente influenciados/as por um viés cognitivista que prega que a produção de língua(gem) ocorre no cérebro do indivíduo (Pennycook, 2018b), o que nos incentiva a tentar constranger as assemblagens envolvidas no processo, pois o foco recai na singularidade do/a actante humano/a. Na sala de aula digital, por outro lado, o/a professor/a não tem uma visão abrangente do espaço, o que garante certa liberdade aos/às estudantes, que podem intra-agir com tecnologias de língua diversas (dicionários, tradutores, conjugadores etc.) sem serem notados/as. Do lugar de existência de docente, posso dizer que o inverso também é válido. Em nossos encontros síncronos, várias vezes me perguntaram a tradução de termos que não conhecia e me senti mais à vontade para pesquisá-los na internet sabendo que essa ação não era vista pela turma. A todo o momento, tropeçamos nas pedras que as colonialidades do humanismo deixam pelo caminho, que nos fazem nos envergonhar dos limites de nossos conhecimentos e nos impedem de exercer uma modéstia ontoepistêmica (Murris, 2016a) de modo pleno. Outro ponto que toca a questão da intranomia concerne às temporalidades que consubstanciam os momentos de aprendizagem. Profa e Toni ressaltaram que o espaço digital possibilita às/aos estudantes trabalhar em tempos distintos: De plus, je pense que les cours en ligne sont plus nivelants pour les étudiant[.e.]s, car ceux[/celles] qui ont besoin de plus de temps pour comprendre un audio ou une vidéo peuvent répéter [le matériel] tant qu'il y a le temps dans la classe. Além disso, penso que os cursos on-line são mais niveladores para os[/as] alunos[/as], pois aqueles[/as] que precisam de mais tempo para entender um áudio ou vídeo podem repetir [o material] desde que haja tempo na aula. (Toni, texto escrito, 2021) De plus, l'envoi des liens vidéo via le chat nous a permis de regarder les vidéos à notre rythme. [Além disso, o envio dos links de vídeos via chat nos permitiu assistir aos vídeos em nosso próprio ritmo.] (Profa, texto escrito, 2021) Tradicionalmente, em atividades de compreensão oral, os/as professores/as executam o áudio ou vídeo até três vezes para toda a turma. Nesse sentido, supomos que todos/as seguem um mesmo ritmo. Em nossas aulas, no entanto, eu enviava os links de acesso ao material (desde 78 que estivessem disponíveis on-line) no chat para que cada estudante pudesse ouvi-lo ou assistilo a partir de seu próprio aparelho. Além de evitar possíveis problemas de má compreensão por questões técnicas (som defeituoso na transmissão, por exemplo), isso permitia que os/as estudantes intra-agissem com o material da forma como julgassem melhor para realizar as atividades propostas, o que poderia incluir as ações de pausar, retroceder, acelerar, repetir etc. A partir disso, cada um/a tinha a chance, de fato, de trabalhar em “seu próprio ritmo”, exercendo intranomia ao se conectar com temporalidades que facilitassem o desenvolvimento de sua educação linguística. Em seu relato, Toni explica que esse movimento é importante para aqueles/as que costumam ter mais dificuldade na compreensão de textos orais, uma vez que não precisam seguir o ritmo dos/as alunos/as que eventualmente tenham mais facilidade. Isso consiste em um ponto positivo para a dispersão do poder pedagógico na sala de aula digital, pois o/a professor/a não controla todas as etapas da atividade, compartilhando a responsabilidade com o grupo. Por outro lado, a ausência de controle docente foi percebida de forma negativa, por alguns/mas estudantes, no que diz respeito ao tempo de fala nos encontros síncronos: Une des difficultés du cours en ligne par rapport au cours présentiel est la manière d’interagir avec le professeur car il y a trop de monde pour parler en même temps. [Uma das dificuldades da aula on-line em relação à aula presencial é a maneira de interagir com o professor, porque há muita gente para falar ao mesmo tempo.] (Gigi, texto escrito, 2021) Selon moi, les éléments qui affectent l'apprentissage en ligne le plus sont la difficulté de faire attention au cours tout le temps, comme j'ai déjà parlé avant, et surtout de participer aux discussions. Soit je parle beaucoup, soit je me tais complètement. Il est plus difficile de trouver un équilibre que dans les cours face-en-face, parce que, dans ce cas là, les profs dirigent la conversation plus directement. [Na minha opinião, os elementos que mais afetam a aprendizagem on-line são a dificuldade de prestar atenção à aula o tempo todo, como já falei antes, e sobretudo de participar das discussões. Ou eu falo muito ou me calo completamente. É mais difícil encontrar um equilíbrio do que nas aulas presenciais, porque, neste caso, os/as professores dirigem a conversa mais diretamente.] (FX, texto escrito, 2021) Esses trechos sugerem que, para Gigi e FX, o espaço digital bagunça os processos de tomada de turno. Entretanto, questiono: eles ocorrem de forma ordenada e controlada nas dinâmicas presenciais? Não “há muita gente para falar ao mesmo tempo” em uma sala de aula física? Os/As professores/as não podem dirigir a conversa diretamente em cursos on-line? É 79 certo que, em intra-ações presenciais, a tomada de turno é regulada por sinais (direcionamento do olhar, por exemplo) que não estão necessariamente disponíveis em intra-ações digitais, o que torna o processo mais complexo nesta última (Bitti; Garotti, 2011). Ao fazer esse tipo de comparação, contudo, podemos ser seduzidos/as pela falsa impressão de que a comunicação face a face é naturalmente harmônica. Teria o espaço digital, assim, escancarado o fato de que a inteligibilidade se constrói em processos linguageiros desordenados e conflituosos? Devo contrapor essa visão da falta de controle nas dinâmicas digitais às propriedades disposicionais do Google Meet. A plataforma permite que o/a administrador/a da reunião silencie os microfones dos/as demais participantes a qualquer momento. Por diversas vezes, exerci esse poder quando alguém esquecia seu microfone ligado. Aparentemente, essas distinções feitas pelos/as estudantes entre a sala de aula física e a sala de aula digital conformam a oposição entre o que Deleuze e Guattari (1997) denominam espaço estriado e espaço liso. Para os autores, o espaço estriado é caracterizado pela padronização, pela regularidade, pela ordenação, pela delimitação e pela territorialização; “[n]o espaço estriado, fecha-se uma superfície, a ser ‘repartida’ segundo intervalos determinados, conforme cortes assinalados” (Deleuze; Guattari, 1997, n.p.). Em contraste, o espaço liso se define pela informalidade, pela ausência de formas estáveis, pela irregularidade, por intervalos abertos, pela desterritorialização; “é [um espaço] infinito de direito, aberto ou ilimitado em todas as direções; não tem direito nem avesso, nem centro; não estabelece fixos e móveis, mas antes distribui uma variação contínua” (Deleuze; Guattari, 1997, n.p.). Em geral, os/as estudantes parecem associar a sala de aula física ao espaço estriado, onde os eventos supostamente ocorrem de forma ordenada e controlada. Lá, a comunicação tende a acontecer organizadamente e a presença do/a professor/a frequentemente constrange a intra-ação com tecnologias de língua (tradutores digitais, por exemplo). Por outro lado, sugerem uma associação da sala de aula digital ao espaço liso, onde os eventos são bagunçados e onde há menos regulação e mais liberdade. No entanto, como ressaltam Deleuze e Guattari (1997, n.p.), esses dois tipos de espaço não constituem entidades puras; pelo contrário, “só existem de fato graças às misturas entre si: o espaço liso não pára de ser traduzido, transvertido num espaço estriado; o espaço estriado é constantemente revertido, devolvido a um espaço liso”. O evento apresentado anteriormente sobre o uso de palavrões por parte de Hiago é indicativo dessa mistura: ainda que o espaço digital possa ser “mais livre”, ele está conectado a um espaço físico que o limita. Como tenho argumentado em favor do paradigma onlife, os processos que ocorrem em salas físicas se transmutam obliquamente para as salas digitais, e vice-versa. 80 Questiono se, talvez, o cerne do problema apontado pelos/as estudantes seja a falta de estímulo visual, de observar o corpo do/a falante e perceber o momento de “entrar” na conversa, de tomar o turno. Como já dito, em nossas aulas, a maior parte dos/as estudantes não ligava suas câmeras, sendo assim, a comunicação ficava restrita aos textos orais, por meio do microfone, e aos textos escritos e não verbais, por meio do chat. Mas e o corpo? Onde foi parar? Nossos corpos desaparecem nos espaços digitais? O que isso implica para a educação linguística? Aqui, mais uma vez, a câmera surge como uma actante que desempenha um papel crucial. Discutirei a relação da câmera com a expressão linguageira mais adiante, no próximo nó. Fique à vontade para “pular” adiante e retornar aqui posteriormente. Ekdahl (2021, p. 1, ênfase adicionada) chama a atenção para o fato de que tendemos a ver os espaços digitais como descorporificados, como “algo que nos impede de nos envolvermos com o tipo de trocas corporais sutis e complexas que caracterizam as interações sociais ‘normais’”100. Porém, como o título de seu artigo sinaliza, “[n]osso corpo não tem que acabar onde as telas digitais começam”101. Ao discutir a performance de praticantes de esportes eletrônicos (ou eSports), Ekdahl e Ravn (2022) evidenciam que os/as jogadores/as experienciam movimentos corpóreos, cognitivos e emotivos por meio de seus avatares. Isso nos leva ao entendimento de que nossos corpos se imiscuem aos ambientes de que participam, assumindo novas formas e capacidades agentivas outras. Alaimo (2010) chama esse fenômeno de transcorporealidade. Para a autora, esse conceito sinaliza para o movimento de/entre corpos e para a compreensão de que o ambiente não é um ente exterior, mas parte das naturezas corpóreas que nos integram. Como podemos entender a transcorporealidade na educação digital onlife? Bayne et al. (2020) apontam que a copresença humana é geralmente entendida como um elemento indispensável para um ensino autêntico e de qualidade. Confesso que já partilhei esse pensamento. Na brusca transição que tivemos para o ensino remoto – e, aqui, o trocadilho (ter)remoto vem a calhar, pois senti tremer as bases sobre as quais meus pés se apoiavam e fui chacoalhado para um lugar outro –, tive receios acerca dos efeitos que essa mudança de espaço acarretaria para a educação linguística. Bitti e Garotti (2011, p. 89) ressaltam que “o ensino por videoconferência […] força os/as professores/as a adaptar seu desempenho a um contexto interativo [intra-ativo] decididamente novo (familiarização com a tecnologia, otimização do “something that prevents us from engaging with the kind of subtle and complex bodily exchanges that characterize normal social interactions”. 101 “[o]ur body does not have to end where digital screens begin”. 100 81 tempo e do ritmo da interação [intra-ação], manutenção da atenção dos/as alunos/as etc.)”102. Eu nunca havia trabalhado de forma completamente remota tampouco havia tido o devido preparo para tanto. Consequentemente, minha práxis assumiu o formato de uma pedagogia da gambiarra (Scheifer; Rego, 2020). Amiel (2018) define a gambiarra como uma prática brasileira que se caracteriza pelo fornecimento de uma resposta instantânea a situações que requerem tratamento imediato. Transversalizando esse construto para a educação linguística, Scheifer e Rego (2020, p. 124) concebem a “gambiarra enquanto arranjo improvisado de recursos humanos, técnicos, semióticos e midiáticos para a construção de sentidos na sala de aula de línguas estrangeiras”. Remixando os conhecimentos, saberes, práticas e materiais que tinha disponíveis, me lancei na educação digital com muitas preocupações. De início, tinha a impressão de que o sucesso das aulas e das produções linguageiras dependia quase que exclusivamente do contato face a face. Com base nisso, reconheço que a distância não é meramente espacial, mas temporal, política e afetiva (Bayne et al., 2020); ela transforma nossas intra-ações e as percepções que temos dos fenômenos. Diversos/as estudantes mencionaram a falta da copresença física como um elemento negativo: […] Je trouve que le contact directement avec mes collègues est très important. Sur l'internet c'est pas possible. Je pense aussi que l'education en ligne est un peu limité par l'espace. C'est pas possible quelques dinamiques mais, pour moi, le professeur, il a très bien fait ça. Donc, l'apprendissage en ligne est très différent. [[…] Acredito que o contato direto com meus/minhas colegas é muito importante. Na internet, isso não é possível. Penso, também, que a educação on-line é um pouco limitada pelo espaço. Algumas dinâmicas não são possíveis, mas, para mim, o professor fez isso muito bem. Portanto, a aprendizagem on-line é muito diferente.] (r.c., texto escrito, 2021) Na passagem do ensino presencial para o remoto, sofremos um fenômeno de metafísica da presença, pautada pela ausência do contato presencial. Esse sentimento de ausência nos impulsiona a tratar a educação digital como uma cópia, uma farsa, uma réplica ilegítima, uma versão piorada. Bayne et al. (2020, n.p.) explicam que esse “foco no versionamento implica que o on-line é um desvio da coisa real, que o curso real deve ser aquele em que os/as “videoconference teaching […] forces teachers to adapt their performance to a decidedly new interactive context (familiarization with the technology, optimization of timing and rhythm of the interaction, keeping pupils’ attention, etc.)”. 102 82 humanos/as estão copresentes em um ambiente físico”103. Suponho que essa visão distorcida tenha a ver com a territorialização que a sala de aula física, como espaço estriado, institui. De acordo com Hickey-Moody e Matins (2007, p. 11), “[o]s corpos tendem a criar relações habituais particulares com os espaços que encontram; criando, por exemplo, um espaço que é ‘lar’”104. A familiaridade com a sala física, que se consagrou como o espaço educativo formal por excelência no Ocidente, cria um sentimento de pertença, previsibilidade e segurança, o que se perdeu, em certa medida, na sala digital. Em vista disso, é necessário desterritorializar a sala física para reterritorializá-la como um lugar de acolhimento na sala digital, levando em consideração que esse movimento “não exprime um retorno ao território, mas essas relações diferenciais interiores à própria D[esterritorialização], essa multiplicidade interior à linha de fuga”105 (Deleuze; Guattari, 1997, n.p.). Para tanto, Bayne et al. (2020, n.p.) sugerem uma reconceitualização do que entendemos por contato ao abordá-lo “como uma sensação de proximidade e conexão com os/as outros/as, um momento comunicativo que será necessariamente vivido de forma diferente em cada encontro de pessoas, tecnologias e contextos”106. Essa reformulação nos permite conceber as intra-ações digitais de acordo com suas especificidades e nos afastar de uma visão que as enxerga como uma reprodução deficitária da copresença física. Ao final do semestre, FX parece ter caminhado em direção a essa perspectiva: L'éducation en ligne m'éveille un sentiment d'accomplissement, parce que la plupart de la responsabilité reste sur moi et la réussite est en effet plus difficile. Il m'éveille aussi un sentiment de distance, à cause du fait que je n'avais jamais rencontré certain[.e.]s de mes collègues ou même le prof face-en-face. Malgré cela, je me sens connecté d'une certaine façon plus subtile, parce que en général tout le monde avait le même objectif d'apprentissage. [A educação on-line me desperta um sentimento de realização, porque a maior parte da responsabilidade recai sobre mim e o êxito é, de fato, mais difícil. Também me dá uma sensação de distância, devido ao fato de que nunca encontrei alguns[/mas] de meus[/minhas] colegas ou mesmo o professor presencialmente. Apesar disso, me sinto conectado de uma forma mais sutil, porque, em geral, todos/as tinham o mesmo objetivo de aprendizagem.] (FX, texto escrito, 2021) “focus on versioning implies that online is a deviation from the real thing, that the real course must be the one where humans are co-present in a physical environment”. 104 “[b]odies tend to create particular habitual relations with the spaces they encounter; creating, for example, a space that is ‘home’”. 105 Para Deleuze e Guattari (1995, n.p.), “[a] linha de fuga marca, ao mesmo tempo: a realidade de um número de dimensões finitas que a multiplicidade preenche efetivamente; a impossibilidade de toda dimensão suplementar, sem que a multiplicidade se transforme segundo esta linha; a possibilidade e a necessidade de achatar todas estas multiplicidades sobre um mesmo plano de consistência ou de exterioridade, sejam quais forem suas dimensões”. 106 “as a sense of nearness and connection to others, a communicative moment that will necessarily be differently experienced in every coming together of people, technologies, and contexts”. 103 83 É na assemblagem que o contato se materializa e ganha novas dimensões, permitindo que FX reconheça uma conexão com sua turma por meio da partilha de um objetivo em comum. Em uma sala digital em que as câmeras permanecem desligadas em encontros síncronos, os/as estudantes se transcorporificam em redes de conexão, em inteligências artificiais, em algoritmos etc. Contudo, a natureza corpórea desse movimento não é facilmente perceptível e causa estranhamento. Ciente disso, busquei, com frequência, promover uma maior aproximação dos/as estudantes por meio de discussões em grupos e da realização de atividades cooperativas/colaborativas, na tentativa de difratar o sentimento de socialização escassa. Devo relembrar que vivíamos um período marcado pelo isolamento social, o que determinou uma interrupção abrupta do contato físico entre pessoas e nos fez nos afastar de familiares, amigos/as, colegas etc. em diferentes níveis. Ademais, milhares de brasileiros/as vivenciavam o luto da perda de entes queridos em decorrência da COVID-19107. Nesse sentido, a sensação de nostalgia da copresença física é absolutamente compreensível. A tirinha abaixo (Figura 14) expressa o sentimento desolador de solidão causado pelo distanciamento social. Figura 14 – Isolamento social na pandemia de COVID-19 Fonte: Dahmer (2023). Aparentemente, o trabalho em grupos surtiu um efeito positivo para a construção de um senso de coletividade humana. Nas respostas à última questão aberta do questionário (“Que materialidades (pessoas, objetos, espaços, seres não humanos etc.) contribuíram para a sua educação linguística no curso de Francês 6? Comente a respeito”), grande parte dos/as estudantes ressaltou a importância dos/as colegas, com algumas menções às atividades em grupo, para o bom desenvolvimento do semestre letivo: 107 Até 6 de janeiro de 2023, foram registrados 708.739 óbitos por COVID-19 no Brasil (PAINEL CORONAVÍRUS, 2023). 84 Creio que o q[ue] mais contribuiu para a educação linguística foi o professor, o contato com os alunos e principalmente as atividades em grupo. (Julio Pinheiro, questionário, 2021) Durante o curso de francês 6 as ferramentas que utilizei para a minha educação linguística foram filmes, séries, músicas e notícias, além das aulas teóricas e de conversação com os colegas. Gostei muito da parte das aulas em que interagíamos em pequenos grupos com os colegas, acredito que nos sentimos mais a vontade para conversarmos quando estamos em grupos menores. (Toni, questionário, 2021) Além do sentimento de ausência, várias sensações e emoções acompanharam o grupo durante o semestre. Algumas delas podem ser vistas na Figura 12. Entre as mencionadas pelos/as estudantes estão: a comodidade, a (des)motivação, a insegurança, a diversão, a inferioridade, a frustração, o medo, a realização, a tristeza, o cansaço e a (in)satisfação. O relato de Hiago é bem marcante nesse quesito. O aluno escolheu a imagem do Bob Esponja cansado para expressar seus sentimentos em relação ao semestre. Em sua explanação oral, afirmou ter sentido medo de aprender francês, pois não gostava de cometer “erros” e sentia que precisava estudar mais. Essa aversão conforma um quadro do que Rezende (2015) entende como linguofobia, um mal-estar que causa insegurança em relação à língua, materna ou adicional, na escola e nas trocas cotidianas. Tal desconforto costuma ser recorrente em cursos de línguas, sobretudo das línguas coloniais, como é o caso do francês. Creio que a sensação de medo pode ter sido desencadeada ou acentuada pelas intraações envolvendo as produções escritas do aluno, o professor e o recurso de revisão textual do Word. A Figura 15 mostra minha revisão do primeiro texto escrito por Hiago no semestre. Como podemos ver, há várias marcações no arquivo. É possível que a materialidade da revisão, que apresenta palavras tachadas e sublinhadas, com cor distinta, e caixas de comentários, tenha provocado um sentimento de ausência em Hiago?108 Rezende (2015) destaca que a correção escolar, especialmente em textos escritos, é capaz de suscitar um efeito pedagógico nocivo e levar o/a estudante a se considerar incapaz de aprender. Em nossa aula do dia 23 de outubro de 2021, quando discutíamos o feedback das atividades, o aluno desabafou no chat: « j’ai fait plus erreurs que j’ai pensé que je ferais haha » [“cometi mais erros do que pensei que cometeria haha”]. Olhando agora para o arquivo, a revisão não parece um tanto agressiva visualmente? Essa sensação emerge a partir de uma assemblagem, uma vez que “[a] percepção visual envolve 108 Ressalto que o foco, aqui, reside no tema da revisão do texto, e não da avaliação, uma vez que a atribuição da nota levou em consideração os critérios de adequação textual, organização, uso da língua e conteúdo. A atividade valia 2,0 pontos e o aluno recebeu 1,5. Com base nisso, insisto na problemática da revisão. 85 uma mistura complexa – durante o intervalo de meio segundo entre a recepção da experiência sensorial e a formação de uma imagem – de linguagem, afecto, sentimento, toque e antecipação”109 (Connolly, 2010, p. 181). Figura 15 – Narrativa de Hiago revisada pelo professor Fonte: Elaborada pelo autor a partir dos materiais do estudo (2022). O confronto com a norma padrão nos induz à ideia errônea de que há uma completude na língua que pode ser alcançada caso nos atenhamos rigorosamente às regras da gramática. O “erro linguístico” é acompanhado pelo medo e pela incompletude. Se não seguimos as normas da gramática, que punição nos aguarda? Somos dignos/as de nos fazermos inteligíveis? Há uma ideia generalizada de que se há “erro”, falta algo; é preciso, pois, estudar mais, se esforçar mais. Ao intra-agir na assemblagem que configura a revisão de seu texto, Hiago pode ter se dado conta de que há coisas que não sabia ou de que não sabia tanto quanto imaginava, abrindo espaço para a agência do medo e da insegurança. O caso de Hiago serve para me fazer difratar “[v]isual perception involves a complex mixing – during the half-second delay between the reception of sensory experience and the formation of an image – of language, affect, feeling, touch, and anticipation”. 109 86 minha práxis docente: de que maneiras poderia tratar a revisão textual a partir de uma éticoontoepistemologia diferente? Deixe suas sugestões aqui, por favor. Todo o estranhamento causado pela lisura do espaço digital contribuiu para que o grupo de Francês 6 chegasse ao entendimento de que “on-line é mais difícil”. Apesar de reconhecerem a qualidade do trabalho que realizamos juntos/as, o grupo espelha um sentimento que Bayne et al. (2020, n.p.) chamam de inveja do câmpus, que consiste na “tendência de alguns/mas estudantes, mesmo aqueles/as que estão extremamente satisfeitos/as com seus cursos on-line, de terem a vaga sensação de que suas experiências de aprendizagem seriam de alguma forma ainda melhores se estivessem no câmpus”110. Para os autores e autoras, esse sentimento projeta o câmpus como um “lar emocional e simbólico” (Bayne et al., 2020, n.p.), aliado a uma ideia de autenticidade. Na contramão desse movimento, argumentam que o câmpus é “constituído de muitas maneiras diferentes por pessoas, tecnologias, espaços, textos, conjuntos de dados e redes que se unem com uma fluidez que torna os limites da própria universidade [ou instituição educativa] extremamente porosos”111 (Bayne et al., 2020, n.p.). Ao sublinhar essa discussão, não é meu intuito invalidar os sentimentos de meus/minhas alunos/as em relação às experiências que tiveram. Meu objetivo se resume a mostrar que temos um olhar enviesado para a educação presencial e que há formas outras de abordarmos a educação digital. Nesse sentido, pensar a partir do paradigma onlife pode nos ajudar a difratar a reprodução de uma separação abrupta entre o espaço físico e o digital, reconhecendo as potencialidades e limitações de ambos, bem como as variadas maneiras como se entrelaçam. “tendency for some students, even those who are extremely happy with their online courses, to have the vague sense that their learning experience would somehow be even better if they were on campus”. 111 “constituted in many different ways by people, technologies, spaces, texts, data sets, and networks coming together with a fluidity that makes the boundaries of the university itself extremely porous”. 110 87 SEGUNDO NÓ: que linguagem resta se continuamos venerando as palavras? Para dar continuidade às leituras difrativas que proponho, conto, para começarmos este nó, com a performance do poema Ao contrário, as cem existem, de Loris Malaguzzi, publicado na obra As cem linguagens da criança (Edwards; Gandini; Forman, 1999, n.p.): Ao contrário, as cem existem. Dizem-lhe: A criança é feita de cem. de pensar sem as mãos A criança tem de fazer sem a cabeça cem mãos de escutar e de não falar cem pensamentos de compreender sem alegrias cem modos de pensar de amar e maravilhar-se de jogar e de falar. só na Páscoa e no Natal. Cem sempre cem Dizem-lhe: modos de escutar de descobrir o mundo que já existe as maravilhas de amar. e de cem Cem alegrias roubaram-lhe noventa e nove. para cantar e compreender. Dizem-lhe: Cem mundos que o jogo e o trabalho para descobrir. a realidade e a fantasia Cem mundos a ciência e a imaginação para inventar. o céu e a terra Cem mundos a razão e o sonho para sonhar. são coisas A criança tem que não estão juntas. cem linguagens Dizem-lhe: (e depois cem cem cem) que as cem não existem mas roubaram-lhe noventa e nove. A criança diz: A escola e a cultura ao contrário, as cem existem. lhe separam a cabeça do corpo. 88 Loris Malaguzzi foi um pedagogo italiano responsável pelo desenvolvimento da abordagem filosófica que embasa o sistema municipal de educação para a primeira infância em Reggio Emilia, cidade localizada na região de Emilia Romagna, no nordeste da Itália. Reggio Emilia se consagrou como um conjunto de práxis pedagógicas renomadas devido a seu caráter inovador, criativo e progressista. De acordo com Edwards, Gandini e Forman (1999, n.p.), “[e]ssa abordagem incentiva o desenvolvimento intelectual das crianças por meio de um foco sistemático sobre a representação simbólica”. Isso implica a construção de repertórios polissemióticos desde os estágios mais primários dos processos de letramentos. No poema, Malaguzzi denuncia uma educação cartesiana e descorporificada, que separa a cabeça (mente/cognição) do corpo, como se se tratasse de duas unidades individuais, autônomas e desconexas. A esse respeito, Pennycook (2018b, p. 58) discute que o binarismo ocidental mente/corpo atribuiu papeis distintos a nossos sentidos, “de modo que os olhos e os ouvidos foram convidados a acompanhar a mente (olhos e ouvidos tornando-se, estranhamente, descorporificados), enquanto a boca, o nariz e a pele foram atribuídos ao corpo” 112. Dessa forma, podem ser categorizados em dois grupos hierárquicos: superiores (visão e audição) e inferiores (olfato, paladar e tato). Para o autor, o primeiro grupo estaria ligado ao processamento dos pensamentos e da linguagem enquanto o segundo estaria atrelado a atividades corporais, logo, menos importantes. Em vista disso, projetos de educação humanista nos condicionam a “pensar sem as mãos”, “fazer sem a cabeça” e “escutar sem falar”, mediante o argumento de que a cognição supostamente independe de operações “meramente” físicas e fisiológicas, e vice-versa. Na contramão desse ponto de vista, Lemke (2010, p. 460) nos lembra de que “[p]essoascom-corpos participam em atividades e práticas, […] em que o que nós somos e a forma como agimos é tanto uma função daquilo que está à mão, quanto daquilo que está na cabeça”. Assim, mente e corpo agem em conjunto. Complementarmente, Connolly (2010) destaca que nossa percepção se comporta de modo intersensorial (para ser coerente com as propostas do Póshumanismo, diria intrassensorial); consequentemente, não é possível dividir nossas experiências sensoriais em unidades isoladas. Portanto, nossos sentidos funcionam como extensões uns dos outros, performando suas funções rizomaticamente em assemblagem. Um evento ocorrido na aula do dia 11 de setembro de 2021 nos direcionou a um entendimento similar. Na ocasião, os/as estudantes foram organizados/as em quatro grupos, em salas separadas, para discutir algumas questões sobre palavrões (abordei um fragmento desse “so that the eyes and ears were invited to accompany the mind (eyes and ears becoming, strangely, disembodied), while the mouth, nose and skin were assigned to the body”. 112 89 episódio no nó anterior). Quando fazíamos esse tipo de atividade, era comum que muitos/as estudantes ocupassem duas salas ao mesmo tempo: a sala de nossa reunião principal, com todos/as os/as participantes, e a sala paralela, apenas com os/as membros/as de seus respectivos grupos. Já eu participava de todas as reuniões. Essa dinâmica poderia ocasionar disrupções na comunicação, dado que se alguém usasse o microfone na sala principal, sua voz ressoaria em todas as salas paralelas, pois, ao ocuparem as duas salas simultaneamente, os/as estudantes estariam em contato com as intra-ações de ambos os espaços. As barreiras espaçotemporais estavam conectadas e bagunçadas. Ao finalizar a discussão com seu grupo, Profa retornou à sala principal e, por conta de minha expressão corpórea (Figura 16), me fez a seguinte pergunta no microfone: « Iury, vous êtes pensatif ? » [“Iury, você está pensativo?”]. Eu escutava todas as salas ao mesmo tempo e não consegui compreender o que ela havia dito. Além disso, ciente da interferência nas demais salas, pedi que usasse o chat. Vejamos o registro da conversa a seguir. Figura 16 – Expressão corpórea do professor Fonte: Elaborada pelo autor a partir dos materiais do estudo (2023). 01:21:19.275,01:21:22.275 IURY ARAGONEZ DA SILVA: Tu peux écrire, [Profa], stp ? [Você pode escrever, [Profa], por favor?] 01:21:32.594,01:21:35.594 IURY ARAGONEZ DA SILVA: Parce que les autres groupes t'écoutent [Porque os outros grupos estão te ouvindo] 01:21:54.915,01:21:57.915 [Profa]: Tu ne m'écoutes pas? [Você não está me ouvindo?] 01:22:04.442,01:22:07.442 [Profa]: ok 01:22:27.885,01:22:30.885 90 IURY ARAGONEZ DA SILVA: [Si], je t´écoute, mais je ne comprends pas [ce que tu dis] parce que j'écoute les autres salles aussi [Sim, estou te ouvindo, mas não entendo [o que está dizendo], porque estou ouvindo as outras salas também] 01:22:41.349,01:22:44.349 [Profa]: ok (Registro do chat do Google Meet, 11 set. 2021) Depois de todos os grupos terem finalizado suas discussões e retornado à sala principal, recuperei a questão de Profa. No momento, informei novamente que ouvia todas as salas ao mesmo tempo, o que levou FX a me perguntar como conseguia administrar a escuta de inúmeras conversas. Profa, então, explicou que eu funcionava “em paralelo” e adicionou que podemos ver, ouvir e sentir simultaneamente. A fala da estudante corrobora o argumento em favor da integração dos sentidos, o que se evidencia em minha própria experiência: eu escutava as falas dos/as alunos/as (audição), lia o chat (visão) e digitava mensagens (tato) concomitantemente. A metáfora das cem linguagens é um aceno para a pluralidade de possibilidades semióticas que somos capazes de produzir de maneira inventiva, as quais se multiplicam em ramificações infinitas – “(e depois cem cem cem)”. Peirce (2005), considerado o precursor dos estudos semióticos, ainda que parta de uma premissa representacional, postula que um signo, qualquer que seja sua natureza, tem o potencial de gerar inúmeros outros, criando uma cadeia sígnica interminável. A despeito disso, o poema de Malaguzzi sugere que somos limitados/as a performar uma única forma de linguagem. Das 100, 99 nos são roubadas e nos resta apenas uma. Que linguagem é essa? Diria que é a língua verbal normatizada, prescritiva e colonizadora. Na educação em línguas estrangeiras, isso tem se traduzido no ensino a partir das quatro habilidades (produção oral, compreensão oral, produção escrita e compreensão escrita), como é o caso do curso de Francês 6. Essa divisão se torna problemática na medida em que reduz a complexidade que sustenta os processos linguageiros. Além disso, ela se fundamenta em uma colonialidade, pois essa estrutura, segundo Hinkel (2010), tem o intuito de reproduzir o/a falante nativo/a. O princípio basilar dessa divisão é o de que o/a falante nativo/a possui quatro necessidades linguísticas básicas: ler, escrever, ouvir e falar (Sadiku, 2015). Ainda que essa ideia tenha certa validade, vincular a educação linguística à figura do/a falante nativo/a historicamente contribuiu (e continua a fazê-lo) para a disseminação de diversos preconceitos e apagamentos. Outro problema dessa divisão consiste no fato de que ela se assenta em dicotomias. Em primeiro lugar, operacionaliza a cisão entre língua oral (compreensão e produção orais) e língua escrita (compreensão e produção escritas); e, em segundo, a separação entre habilidades 91 receptivas (compreensão oral e escrita) e produtivas (produção oral e escrita). Problematizar essa partição dual é inevitável em uma leitura difrativa, uma vez que a difração, nas palavras de Barad (2014, p. 168), “desestabiliza dicotomias, incluindo alguns dos binários mais sedimentados e estabilizados/estabilizadores”113. A autora argumenta que ao passo que a dicotomia envolve cortar em dois, a difração implica quebrar em diferentes direções, o que é mais proveitoso em termos de diferenciação. Sendo assim, difratar as quatro habilidades implica vislumbrar possibilidades outras para a educação linguística para além do que já se estabeleceu como canônico na área. Essas dicotomias tomam o verbal como alicerce, desconsiderando que “a língua/linguagem trabalha com uma assemblagem de recursos semióticos, artefatos e propiciamentos ambientais em cenários específicos para facilitar o sucesso da comunicação”114 (Canagarajah, 2018b, p. 36). Se nosso objetivo como professores/as de línguas estrangeiras consiste em apresentar possibilidades que facilitem a inteligibilidade em intra-ações, por que insistimos na primazia do verbal? Por que negligenciamos outras formas de expressão? Por que perpetuamos uma lógica estruturalista que reduz a língua à gramática? Por que excluímos o corpo de nossas práxis? Por que validamos a construção de repertórios representacionais, e não performáticos? Por que continuamos a roubar as outras 99 linguagens de nossos/as alunos/as? Sabemos que, conforme postula Canagarajah (2018b, p. 39), em muitas situações, “[a] língua é considerada ineficiente e insuficiente por si só para o resultado bem-sucedido da atividade”115 linguageira em questão. Ao abordar a práxis de um professor assistente de matemática, o autor discute como seu trabalho corporificado, envolvendo o uso do quadro e de gestos, foi primordial para a geração de inteligibilidade. Esse exemplo reforça o argumento de Lemke (2010, p. 456) de que a construção de significados não ocorre estritamente por meio de elementos linguísticos, pois [é] preciso que haja sempre uma realização visual ou vocal de signos linguísticos que também carrega significado não-linguístico (por ex.: tom da voz ou estilo da ortografia). Para funcionarem como signos, os signos devem ter alguma realidade material, mas toda forma material carrega, potencialmente, significados definidos por mais de um código. Apesar disso, a Linguística Aplicada tem falhado em considerar a língua(gem) sob uma perspectiva de assemblagem. Ao confrontar o modelo arbóreo, Canagarajah (2018a, 2018b) “troubles dichotomies, including some of the most sedimented and stabilized/stabilizing binaries”. “language works with an assemblage of semiotic resources, artifacts, and environmental affordances in specific settings to facilitate communicative success”. 115 “[l]anguage is considered inefficient and insufficient by itself for the successful outcome of the activity”. 113 114 92 assinala que recursos não linguísticos são tradicionalmente tomados como acessórios, e não como partícipes legítimos da criação das condições de inteligibilidade de uma intra-ação. Veja bem, reforçar esse ponto não pressupõe que uma perguntação pós-humanista pretenda “retirar a língua de cena, mas [sim] complexificar a língua e sua relação com o mundo”116 (Pennycook, 2018b, p. 32). Esse movimento implica não cair na armadilha de hierarquizar os elementos semióticos que atuam na comunicação e buscar compreender de que formas eles agem em conjunto para possibilitar (des)entendimentos no corte agencial de um espaçotempo específico. O foco nas quatro habilidades tem como objetivo o desenvolvimento de proficiência nas línguas oral e escrita, fator que tem se sustentado institucionalmente na organização de níveis crescentes que variam do básico ao avançado. A configuração desses níveis é largamente embasada no Quadro Europeu Comum de Referência para Línguas (QECR), documento que se anuncia como “uma ferramenta para auxiliar o planejamento de currículos, cursos e exames, trabalhando a partir do que os/as usuários/as/aprendizes precisam ser capazes de fazer na língua”117 (Council of Europe, 2020, p. 28). Embora tenha sido primariamente planejado como um aparato de política linguística para os países-membros da União Europeia, dadas as dimensões das colonialidades do poder e do saber, o QECR não se manteve restrito ao velho continente, sendo utilizado nas variadas regiões do mundo, inclusive no Brasil, ainda que nem sempre de forma explícita. O QECR aborda a proficiência como a capacidade de realizar atividades comunicativas a partir do emprego de competências e estratégias adequadas. A partir dessa visão, a proficiência é classificada em sete níveis de referência progressivos, agrupados em três categorias: usuário/a básico/a (Pré-A1118, A1 e A2), usuário/a independente (B1 e B2) e usuário/a proficiente (C1 e C2). Essa divisão é utilizada pelos mais renomados testes padronizados internacionais que certificam o grau de proficiência em uma língua estrangeira, tal como o DELF, citado anteriormente. Cada nível de referência é acompanhado por uma série de descritores ilustrativos que apresentam exemplos de atividades linguísticas que o/a “usuário/a”119 é supostamente capaz de performar. O documento faz a ressalva de que “a associação de um descritor a um nível específico não deve ser vista como exclusiva ou “to cut language out of the picture but to complexify language and its relation to the world”. “a tool to assist the planning of curricula, courses and examinations by working backwards from what the users/learners need to be able to do in the language”. 118 O nível “Pré-A1” foi adicionado na versão mais recente e atualizada do QECR, publicada em 2020. Anteriormente, eram considerados apenas seis níveis (do A1 ao C2). 119 Uso as aspas para sinalizar minha insatisfação com a ideia que o termo veicula. Na esteira de Harris (2010), sustento que somos produtores/as da língua(gem) em vez de meros usuários/as. 116 117 93 obrigatória. Os descritores aparecem no primeiro nível em que é mais provável que um/a usuário/a/aprendiz seja capaz de realizar a tarefa descrita”120 (Council of Europe, 2020, p. 41). A versão mais atualizada do QECR rompe com alguns preceitos de uma concepção mais tradicional de língua(gem). Uma dessas rupturas consiste em sua desvinculação à imagem do/a falante nativo/a. O documento afirma que o nível C2, intitulado “domínio” (mastery), não tem a pretensão de espelhar a performance linguística de um/a falante nativo/a. Outra ruptura concerne às quatro habilidades tradicionais, criticadas por sua inadequação para lidar com a complexidade da comunicação. Em seu lugar, são propostos quatro modos de comunicação: recepção, produção, interação e mediação. Nessa reformulação, as quatro habilidades tradicionais são acopladas nas atividades de recepção e produção, que são subdivididas na dicotomia escrita/oral (para a compreensão escrita, é utilizada a expressão “compreensão leitora”). A elas, somam-se as três subcategorias da interação (escrita, oral e on-line) e as três subcategorias da mediação (mediação de um texto, mediação de conceitos e mediação da comunicação). Essas atualizações constituem avanços significativos para a educação linguística, sobretudo tendo em vista o alcance institucional e político das proposições do Conselho Europeu. Por outro lado, o QECR permanece robustamente humanista e descorporificado. Sua premissa básica reside na coconstrução de significados/sentidos exclusivamente entre/por/para/com humanos/as, excluindo o papel de outros/as actantes na produção semiótica. As menções a seres não humanos/as os instrumentalizam e os deslocam para um lugar marginalizado. Observemos os exemplos a seguir, retirados dos quadros que resumem os descritores dos modos de comunicação: Produção escrita (Pré-A1): “É capaz de fornecer informações pessoais básicas (por exemplo, nome, endereço, nacionalidade), talvez com o uso de um dicionário”121 (Council of Europe, 2020, p. 66, ênfases adicionadas). Interação escrita (Pré-A1): “É capaz de transmitir informações básicas (por exemplo, nome, endereço, família) em frases curtas em um formulário ou em um bilhete, com o uso de um dicionário”122 (Council of Europe, 2020, p. 82, ênfases adicionadas). Note que o aspecto humano é prevalente e determinante para o sucesso da comunicação, como se esta dependesse unicamente de sua agência cognitiva, daquilo que a pessoa “é capaz” “the association of a descriptor with a specific level should not be seen as exclusive or mandatory. The descriptors appear at the first level at which a user/learner is most likely to be able to perform the task described”. 121 “Can give basic personal information (e.g. name, address, nationality), perhaps with the use of a dictionary”. 122 “Can convey basic information (e.g. name, address, family) in short phrases on a form or in a note, with the use of a dictionary”. 120 94 de realizar. O dicionário aparece como um actante dispensável. Além disso, de modo geral, os descritores para as línguas orais incluem atividades que levam em conta somente aspectos verbais e cognitivos. Práticas corporais que incluem linguagem não verbal são classificadas como parte do repertório de pessoas com baixa proficiência (estrato A dos níveis de referência): Compreensão oral (Pré-A1): “É capaz de entender perguntas e afirmações curtas e muito simples, desde que sejam feitas de forma lenta e clara, acompanhadas de recursos visuais ou gestos manuais para apoiar a compreensão, e repetidas, se necessário”123 (Council of Europe, 2020, p. 48). Compreensão leitora (Pré-A1): “É capaz de reconhecer palavras/sinais124 familiares acompanhados de imagens, como um cardápio de restaurante de fast-food ilustrado com fotos ou um livro ilustrado usando vocabulário familiar”125 (Council of Europe, 2020, p. 54). Interação oral (Pré-A1): “É capaz de fazer e responder a perguntas sobre si mesmo/a e sobre rotinas diárias, usando expressões curtas e formulaicas e contando com gestos para reforçar as informações”126 (Council of Europe, 2020, p. 72). Mediação (A2): “É capaz de usar palavras/sinais simples e sinais não verbais para demonstrar interesse em uma ideia. É capaz de transmitir informações simples e previsíveis de interesse imediato em sinais e avisos, cartazes e programas simples e curtos”127 (Council of Europe, 2020, p. 92). É nítido o tratamento de elementos não verbais como uma estratégia comunicativa que serve somente para preencher lacunas deixadas pela linguagem verbal. Os gestos e recursos visuais, como imagens, são abordados como “compensatórios – ou seja, recursos que ajudam quando a língua não é adequada para o propósito”128 (Canagarajah, 2018b, p. 39). A despeito da ressalva feita acerca da atribuição dos descritores a níveis de referência específicos, curiosamente, as únicas menções a esses recursos, chamados de paralinguísticos, ocorrem nos estágios iniciais de desenvolvimento da proficiência. É pertinente supor, portanto, que os/as “usuários/as” mais proficientes, que têm “domínio” sobre as normas, tendem a abandonar a linguagem corporal, uma vez que a gramática por si só daria conta da construção sígnica. Esse tipo de posicionamento ignora a concepção de que “[o] uso da língua(gem) é sempre acompanhado por gestos e outras formas de comportamento corporificado”129 (Hauck, 2023, p. “Can understand short, very simple questions and statements, provided they are delivered slowly and clearly and accompanied by visuals or manual gestures to support understanding and repeated if necessary”. 124 A versão mais atualizada do QECR aborda, também, as línguas de sinais. 125 “Can understand short, very simple questions and statements, provided they are delivered slowly and clearly and accompanied by visuals or manual gestures to support understanding and repeated if necessary”. 126 “Can ask and answer questions about themselves and daily routines, using short, formulaic expressions and relying on gestures to reinforce the information”. 127 “Can use simple words/signs and non-verbal signals to show interest in an idea. Can convey simple, predictable information of immediate interest given in short, simple signs and notices, posters and programmes”. 128 “compensatory—that is resources that help when language is not adequate for the purpose”. 129 “[l]anguage use is always accompanied by gestures and other forms of embodied behavior”. 123 95 6). Vemos, assim, que “[o] projeto humanista situou o significado com tanta ênfase na relação entre cabeças pensantes e palavras escritas que o corpo, os cheiros, o tato e as sensações foram amplamente eliminados/as da equação”130 (Pennycook, 2018b, p. 63). Ora, como produzimos língua sem o corpo? McNeill (2005, n.p.) é assertivo ao proclamar que os gestos “são parte da língua”131, e não unidades acessórias que se somam às palavras, desempenhando um papel secundário. Para o autor, “[é] um erro profundo pensar no gesto como um código ou ‘linguagem corporal’ separado da língua falada. […] Tratar os gestos de forma isolada da fala faz tanto sentido quanto ler um livro olhando apenas para a letra ‘g’”132 (McNeill, 2005, n.p.). Numa perspectiva de assemblagem, é preciso, pois, reconhecermos os gestos como recursos semióticos dinâmicos das intra-ações comunicativas (Pennycook, 2023). Seguindo esse rizoma, Pennycook (2018b) aponta que a sedimentação da primazia do verbal tem respaldado movimentos de violência epistêmica contra as línguas de sinais e a comunidade surda, consideradas inferiores em um mundo ouvintista. Em contrapartida, sugere que olhar para as línguas de sinais pode nos ajudar a complexificar a forma como concebemos as línguas orais. A performance de um sinal exige movimentos corpóreos e a ativação de múltiplos sentidos, tendo em vista o caráter espacial-visual do ato de sinalizar. Dessa maneira, as línguas de sinais nos mostram que “o corpo é língua(gem)” (Pennycook, 2018b, p. 67). Essa discussão assume uma dimensão particular quando levamos em consideração o paradigma onlife. Nas intra-ações nos espaços digitais, o corpo enfrenta restrições espaçotemporais que impactam diretamente nossas maneiras de nos fazermos inteligíveis. Retorno, então, a relevância da câmera como actante. Geralmente, a intra-ação digital por vídeo decorre com câmeras estáticas, estejam elas acopladas aos dispositivos de acesso à internet (notebooks, smartphones etc.) ou intraligadas a eles por uma porta serial universal ou tecnologia sem fio (webcams portáteis). A câmera estática impõe limitações à visualização do corpo em termos de enquadramento, ângulo e resolução da imagem. Parkinson e Lea (2011) chamam a atenção para o fato de que, habitualmente, a câmera tende a se posicionar em um enquadramento do rosto, o que impede o acesso às demais partes do corpo. Isso tem efeitos limitadores para a produção gestual, bem como para a leitura de informações sensoriais. Os autores pontuam, ainda, que essa configuração não permite que “[t]he humanist project located meaning so much in the relation between thinking heads and written words that the body, smells, touch and feeling were largely eliminated from the equation”. 131 “are part of language”. 132 “It is profoundly an error to think of gesture as a code or ‘body language’, separate from spoken language. […] It makes no more sense to treat gestures in isolation from speech than to read a book by looking only at the ‘g’s”. 130 96 estejamos a par do que acontece para além do enquadramento da câmera, isto é, não temos conhecimento a respeito das características do ambiente em que a intra-ação ocorre. Esse fator é relevante para que consigamos definir, mesmo que minimamente, os/as actantes envolvidos/as na assemblagem que tornam possível a comunicação. Como já discutido anteriormente, o espaço é agentivo e sua formatação é primordial para as dinâmicas intra-ativas. Nos eventos retratados no nó precedente, vimos que a presença de actantes fora da câmera podem afetar a produção semiótica, como nos casos da motocicleta que passava em minha rua e da hesitação de Hiago em proferir um palavrão perto de sua mãe. Em nossas aulas, a câmera era facultativa. Como elucida Bordas (2020, on-line), “não se pode impor a ninguém a obrigação de ser filmado[/a] ou gravado[/a] contra sua vontade. Portanto, docente e aluno[/a] podem desligar câmeras e microfones durante a aula, ainda que isso possa causar algum prejuízo no desenvolvimento da aula”. Em nosso primeiro encontro síncrono, expliquei isso ao grupo; porém, pedi àqueles/as que disfrutassem das condições adequadas (aparelho em bom funcionamento, local apropriado etc.) e se sentissem à vontade que ligassem suas câmeras quando possível, especialmente nos momentos de intra-ação em pequenos grupos. A maior parte dos alunos/as optou por não aparecer em vídeo. De todos/as os/as colaboradores/as desta perguntação, Maria, Profa, FX e r.c. foram os/as que intra-agiram em câmera com mais frequência. Minha câmera, por outro lado, esteve ligada durante todo o semestre, exceto nos momentos em que problemas técnicos me impediram de ativá-la. Do ponto de vista pedagógico, minhas intra-ações com a câmera me ajudaram a perceber a importância do corpo na produção semiótica. Em diversos momentos, conjuguei sons e gestos para me expressar. No Vídeo 3, vemos o trecho de um evento durante o qual uma aluna (não participante desta perguntação) falava, mas seu áudio foi abruptamente silenciado. Perguntei ao grupo se a fala havia sido cortada para eles/as também e se conseguiam ouvi-la. Minhas palavras foram acompanhadas dos movimentos de meus dedos gesticulando as ações de “cortar” (movimentos do indicador e do dedo médio imitando tesouras) e “ouvir” (movimento do indicador apontando para a orelha). Esse evento exemplifica o modo como “[a] fala e o gesto ocupam as mesmas fatias de tempo quando compartilham significados e têm as mesmas relações com o contexto”133 (McNeill, 2005, n.p.). “[s]peech and gesture occupy the same time slices when they share meanings and have the same relationships to context”. 133 97 Vídeo 3 – Conjugação de sons e gestos Fonte: Elaborado pelo autor a partir dos materiais do estudo (2023). A partir da aula 9, minha câmera começou a apresentar problemas técnicos, o que se manteve até a aula 13. Às vezes, ela se desligava sozinha e eu não conseguia religá-la. Em outros casos, ela nem mesmo ligava. Nessas ocasiões, me senti bastante frustrado. Parecia que parte de mim estava faltando. E, de fato, estava. Minhas possibilidades de produzir textos polissemióticos se haviam reduzido naquele espaçotempo. As palavras não me bastavam. Como ressalta Pennycook (2023, p. 608), “[o] trabalho que os aspectos da comunicação não verbal realizam […] – comunicar iconicamente, sincronizar-se com a fala, indicar afeto etc. – é fundamental para a interatividade [intra-atividade] comunicativa”134. Disso decorre que “a língua(gem) e a experiência sensorial não são totalmente separadas nem redutíveis uma à outra. Elas estão imbricadas de uma forma que permite que uma exceda a outra na experiência”135 (Connolly, 2010, p. 182). Bitti e Garotti (2011) destacam que a linguagem não verbal tem implicações identitárias. Senti que minha identidade docente estava sendo afetada pelo impedimento de utilizar meu corpo para me fazer inteligível. Similarmente, ela era afetada por não ter acesso aos corpos dos/as alunos. Por exemplo, quando explicava algo, não tinha a resposta corpórea que “[t]he work that aspects of nonverbal communication do […] – communicating iconically, synchronizing with speech, indicating affect, and so on – is central to communicative interactivity”. 135 “language and sense experience are neither entirely separate nor reducible to one another. They are imbricated in a way that allows each to exceed the other in experience”. 134 98 normalmente se evidencia em sala de aula, como o aceno em afirmação com a cabeça ou o olhar furtivo que denuncia a existência de dúvidas. Para nós, professores/as, esse feedback é fundamental para verificarmos o nível de compreensão da turma e regularmos nosso comportamento de acordo com os sinais percebidos (Bitti; Garotti, 2011). Essa ausência demandava uma confirmação verbal compensatória. Em nossa última aula, quando Jeane mencionou que a educação digital requeria um processo de adaptação, compartilhei com o grupo o estranhamento que experenciei quando comecei a ministrar aulas remotas. Com o tempo, passei a apreender o silêncio como um actante que agia em resposta a minhas perguntas: caso ninguém se manifestasse, o silêncio prolongado por alguns segundos se tornava o recurso semiótico que me dava o sinal para prosseguir. O apagamento do estímulo visual gerou incômodo, igualmente, entre os/as estudantes. No nó anterior, discuti como essa ausência parece ter provocado disrupções nas tomadas de turno. Em nosso último encontro, Croissant reportou uma experiência que teve em um curso de curta duração no qual era obrigatório o uso da câmera. Segundo a estudante, a dinâmica foi enriquecida pelo recurso visual em termos de concentração. Hiago, ao abordar os pontos negativos do semestre em relação à educação digital, escreveu o seguinte: […] je trouve que ça été très compliqué d'approcher mes relations avec mes collègues et mon professeur. La majorité du temps, je n’ai vu pas leurs visages (ni eux[/elles] peuvent me voir !). Conclusion : les expressions faciales et la présence physique sont, en fait, pièces importantes de la communication. [[...] achei muito complicado lidar com meu relacionamento com meus/minhas colegas e meu professor. Na maior parte do tempo, eu não vi seus rostos (nem eles/as podiam me ver!). Conclusão: as expressões faciais e a presença física são, de fato, partes importantes da comunicação.] (Hiago, texto escrito, 2021) A conclusão do aluno levanta um debate pertinente sobre as expressões faciais. (Já conversamos sobre a questão da copresença física. Portanto, não entrarei nesse mérito aqui. Caso julgue necessário, perpasse pelo nó precedente para uma reprise da discussão.) FernándezDols e Carrera (2011) propõem que as informações faciais podem ser concebidas como um gênero, de maneira que se organizam para facilitar formas de comunicação. Esse gênero tem o potencial de gerar gatilhos afetivos, que “são mensagens que podem provocar respostas afetivas sem tradução direta em uma mensagem verbal: são eliciadores idiossincráticos de afeto 99 básico”136 (Fernández-Dols; Carrera, 2011, p. 48). Nesse sentido, a falta de acesso a esse gênero pode justificar a dificuldade de Hiago em gerenciar suas relações com o resto do grupo. Certamente, outros/as estudantes se sentiram da mesma forma, apesar de não terem se manifestado sobre o assunto. Por outro lado, o espaço digital possibilita que os/as actantes intra-ajam transcorporificando suas informações faciais. Bitti e Garotti (2011) relatam que os emoticons (e, acrescento, os emojis) se tornaram uma estratégia gráfica para compensar a ausência de linguagem não verbal corpórea. Como explica Magalhães (2023), os emoticons combinam caracteres, letras e sinais gráficos de pontuação com a finalidade de expressar sentimentos. Os emojis, por sua vez, consistem em pictogramas, isto é, se valem de desenhos ou imagens para gerar sentidos. Tal como as informações visuais consistem em um gênero entrelaçado com os textos orais, os emoticons/emojis surgem como um gênero que acompanha os textos escritos na internet e afetam a produção de significados/sentidos. Isso não quer dizer, no entanto, que os emoticons/emojis substituam nossos corpos ou funcionem como suas representações. Levando em consideração a transcorporealidade (Alaimo, 2010), eles agem como extensões de nossos corpos nos espaços digitais, ainda que sejam formas padronizadas que não dão conta da diversidade constitutiva de nossas naturezas corpóreas e identidades sociomateriais. Em nossas aulas, os/as alunos/as e eu utilizamos recorrentemente emoticons/emojis em nossas intra-ações pelo chat. Vejamos alguns exemplos: 00:54:07.975,00:54:10.975 [r.c.]: oui o/ [sim] (Resposta do aluno a minha pergunta se haviam finalizado uma atividade em grupo) (Registro do chat do Google Meet, 6 nov. 2021) 02:43:26.875,02:43:29.875 IURY ARAGONEZ DA SILVA: Une voiture passe ici [dans ma rue] [Um carro está passando aqui [em minha rua]] 02:43:31.431,02:43:34.431 IURY ARAGONEZ DA SILVA: [Attendez] Un moment [[Aguardem] Um momento] (Minha justificativa para a interrupção de minha fala oral) (Registro do chat do Google Meet, 6 nov. 2021) 01:33:46.888,01:33:49.888 [Croissant]: j'aime bien aussi <3 [também adorei] (Reação da aluna à apresentação do trabalho de uma colega) “are messages that can elicit affective responses with no direct translation into a verbal message: They are idiosyncratic elicitors of basic affect”. 136 100 (Registro do chat do Google Meet, 9 out. 2021) 00:28:19.226,00:28:22.226 [Maria]: merci [obrigada] (Resposta da aluna a um elogio feito por uma colega sobre sua boa capacidade de expressão oral) (Registro do chat do Google Meet, 11 set. 2021) Observe como os emoticons/emojis transformam o conteúdo das mensagens, atribuindo um valor emocional e sensorial às palavras enunciadas. Os textos verbal e não verbal intra-agem em superposição produzindo diferenças em multiplicidade (Barad, 2014). Nesses eventos, percebemos que os significados não são fixos e aditivos (o significado da palavra mais o significado da imagem), mas sim, multiplicativos (o significado da palavra se modifica através do contexto imagético e o significado da imagem se modifica pelo contexto textual) fazendo do todo algo muito maior do que a simples soma das partes (Lemke, 2010, p. 456). Outro ponto relevante diz respeito ao desprendimento da gramática nas intra-ações digitais. A lisura do espaço digital o torna um terreno escorregadio para as formalidades e normas linguísticas. De acordo com Crystal (2006, p. 71), o internetês, como se convencionou chamar a linguagem emergente em meios digitais, é caracterizado por “[u]m forte espírito pessoal e criativo”137 que propulsiona não só a criação de novos termos, mas também transformações lúdicas em vocábulos já existentes. No curso de Francês 6, r.c. despontou como o caso mais emblemático desse “espírito criativo”: 02:22:01.402,02:22:04.402 [r.c.]: vai toma cafe no copim de plastico :D 02:32:50.063,02:32:53.063 [r.c.]: no futuro pode valer milhoes ai nois guarda :D (Registro do chat do Google Meet, 6 nov. 2021) 00:00:25.986,00:00:28.986 [r.c.]: Pom xur (Registro do chat do Google Meet, 2 out. 2021) 02:36:48.067,02:36:51.067 [r.c.]: queremos MA QUE TCHY! O/ (Registro do chat do Google Meet, 9 out. 2021) 137 “[a] strong personal, creative spirit”. 101 Nos excertos acima, são notáveis os modos como r.c. performou diferenças para difratar a normatividade da ortografia das línguas portuguesa e francesa. Isso se evidencia, sobretudo, como uma estratégia de confrontar a dicotomia língua escrita/língua oral. Nos casos de copim (“copinho”), nois (“nós”) e maquetchy (“maquete”), por exemplo, a subversão da norma busca uma superposição de sons e sinais gráficos de acordo com sua maneira própria – assim como de uma grande parcela de outros/as brasileiros/as – de produzir a língua portuguesa. Já em pom xur, vemos uma reconfiguração lúdica da ortografia de bonjour (“bom dia” ou “boa tarde”, em português), em que r.c. brinca com os sons e as letras fazendo emergir algo novo. Apesar de estar em um ambiente acadêmico, o aluno se sentiu à vontade para construir e performar repertórios que difratassem padrões de formalidade tanto linguística quanto institucional, o que reforça a configuração da sala de aula digital como um espaço liso (Deleuze; Guattari, 1997). Contudo, preciso ressaltar que isso foi possível por conta das relações que se formaram na situacionalidade daquele espaçotempo, envolvendo uma série de actantes (aluno, colegas, professor, internet, chat etc.). A esse respeito, Pennycook (2018a, p. 452) ressalta que [e]sses ambientes on-line nos ajudam a ver como a gama de recursos à sua disposição pode ser extraída de diferentes línguas/linguagens, possibilidades paralinguísticas, textos e gêneros da cultura popular. Consequentemente, a noção de repertório pode ser entendida como um propiciamento emergente e interactante [intra-actante] do espaço on-line em vez de uma capacidade individual ou comunitária 138. Em nossas aulas, busquei, ainda que timidamente, oportunizar movimentos em direção a um entendimento de língua como assemblagem, no intuito de que os/as estudantes pudessem perceber que a produção linguageira ocorre de modo polissemiótico. Nesse sentido, propus algumas atividades em que os/as discentes poderiam se expressar para além da linguagem verbal. Acredito que, na educação linguística, ainda tenhamos muito a caminhar nesse processo. Talvez Reggio Emilia possa nos servir de inspiração, pois, nessa filosofia, as crianças “são encorajadas a explorar seu ambiente e a expressar a si mesmas através de todas as suas ‘linguagens’ naturais ou modos de expressão, incluindo palavras, movimento, desenhos, pinturas, montagens, escultura, teatro de sombras, colagens, dramatizações e música” (Edwards; Gandini; Forman, 1999, n.p.). Do ponto de vista pós-humanista, urge colocarmos em marcha deslocamentos que devolvam a cabeça (mente) ao corpo e que incentivem pensar- “[t]hese online environments help us see how the range of resources at their disposal may be drawn from different languages, paralinguistic possibilities, texts, and genres of popular culture. The notion of repertoire can consequently be understood as an emergent and interactant affordance of the online space rather than an individual or communal capacity”. 138 102 com as mãos (e os demais órgãos sensoriais), fazer-com a cabeça e escutar-e-falar-e-cheirar-etatear-e-ver-e-sentir-e-afetar. Embora tenhamos performado, igualmente, esse caminhar em nossos encontros síncronos, me atenho, aqui, às atividades que foram realizadas em momentos assíncronos, visto que foram os materiais que mais brilharam para mim ao longo desta perguntação. Pensandocom Takaki (2019b, p. 601), compreendo que as práxis propostas tinham o objetivo de estimular os/as alunos/as [do curso] a buscarem promover pequenas rupturas em termos de: a) produção de um gênero textual/discursivo, b) uso de outros espaços para além da sala de aula, c) reconfiguração de um conjunto de recursos humanos e não humanos, naturais, linguísticos e tecnológicos, e d) potencial para ressignificar (de forma crítica, criativa e ética) um determinado tema ou evento significativo para eles/as139. Na aula do dia 11 de setembro de 2021, iniciamos nossa discussão sobre palavrões. Em nosso encontro subsequente, no dia 18, complicamos nossa conversa com uma problematização de performances de gênero a partir das seguintes perguntas: « Est-ce que les femmes peuvent dire des gros mots ? Comment voit-on les femmes qui disent des gros mots ? » [“As mulheres podem dizer palavrões? Como vemos as mulheres que dizem palavrões?”]. Em seguida, trabalhamos um trecho da letra de Balance ton quoi, bem como seu videoclipe, textos nos quais a cantora belga Angèle confronta o machismo estrutural em relação à linguagem, à indústria da música e ao assédio. O título da canção faz referência ao movimento #balancetonporc (“denuncie seu agressor”), surgido na rede social Twitter (atualmente chamada X), em 2017, como uma forma de incentivar mulheres a denunciar casos de assédio, agressão e violência sexual, sobretudo no âmbito profissional, após a repercussão do processo envolvendo o produtor estadunidense Harvey Weinstein140. Na aula seguinte, no dia 25, abordamos o movimento #balancetonporc e entramos no tema da cultura do cancelamento. Para arrematar a discussão desses três temas, solicitei ao grupo a realização desta atividade avaliativa: “stimulating under-graduate students to seek to promote small ruptures in terms of: a) the production of a textual/discursive genre, b) the use of spaces other than the classroom, c) the reconfiguration of an assemblage of human-nonhumans and natural, linguistic and technological resources, and d) the potential to re-signify (critically, creatively and ethically) a particular theme or event that was meaningful to them”. 140 O movimento é frequentemente referido como uma versão francófona do #metoo (“eu também”), iniciado nos Estados Unidos, naquele mesmo ano, quando a atriz Alyssa Milano utilizou a hashtag para catalisar, no Twitter, a campanha criada pela ativista Tarana Burke, em 2006, em favor de uma rede de acolhimento e apoio às vítimas e sobreviventes de violência sexual. Para mais informações sobre o movimento, acesse o site: https://metoomvmt.org/get-to-know-us/history-inception/. 139 103 Partie 1 : Regardez la vidéo « Fatal Bazooka - C'est une pute ». En tenant compte des discussions en classe à propos des gros mots, du mouvement #balancetonporc et de la cancel culture, enregistrez un audio (entre 2 et 5 minutes) en discutant le contenu de la vidéo. Publiez votre audio sur le forum (Eduq). Partie 2 : Écoutez l’audio d’un.e collègue et réagissez à son opinion. Vous pouvez utiliser n’importe quelle ressource pour faire cela (un commentaire oral ou par écrit, une photo, un meme etc.) à condition que le message soit compréhensible. [Parte 1: Assista ao vídeo “Fatal Bazooka - C'est une pute”. Levando em conta as discussões em sala de aula sobre palavrões, o movimento #balancetonporc e a cultura do cancelamento, grave um áudio (entre 2 e 5 minutos) discutindo o conteúdo do vídeo. Publique seu áudio no fórum (Eduq). Parte 2: Ouça o áudio de um/a colega e reaja a sua opinião. Você pode usar qualquer recurso para fazer isso (um comentário falado ou escrito, uma foto, um meme etc.), desde que a mensagem seja compreensível.] O vídeo referido consiste em um esquete de humor no qual, supostamente, a irmã de um rapper famoso apresenta uma música em denúncia ao machismo presente na língua francesa e nas práticas das pessoas que dela se apropriam. Nessa atividade, busquei balancear o tradicional desenvolvimento da produção oral (parte 1) com possibilidades semióticas outras (parte 2) para que o grupo pudesse performar criticidade em relação a um tema relevante em nossas vidas sociomateriais. Além disso, ao solicitar que os/as estudantes reagissem aos posicionamentos de seus/suas colegas, esperava contribuir para a aproximação entre eles/as e para a instauração de um debate saudável que acomodasse um possível conflito de ideias. Perceba que, na parte 2, o foco recai inteiramente sobre a inteligibilidade, e não sobre a forma da mensagem. A despeito das inúmeras possibilidades semióticas que poderiam ter sido mobilizadas, quase todos/as os estudantes optaram por exprimir suas opiniões verbalmente, majoritariamente, via texto escrito (Maria o fez via áudio). Nessa assemblagem, Profa foi a única que conjugou texto escrito e imagem para produzir sentidos. Em reação ao comentário de Jeane, a estudante apresentou a imagem contida na Figura 17, acompanhada do seguinte texto: « Le taureau de Wall Street est confronté par la ‘fille intrépide’ » [“O touro de Wall Street é confrontado pela ‘menina sem medo’”]. Embora indesejável, esse resultado não me surpreende, visto que, em nossa história de educação linguística, estivemos tanto tempo “ocupados/as venerando/ palavras”141, como apontam os versos de Saadi (2021, estrofe 1). Lemke (2010, p. 456-457) explica que isso tem relação com a prevalência do “‘logocentrismo’ moderno (DERRIDA, 1976) que identificou somente na língua um meio confiável para o pensamento lógico, e na língua escrita, inicialmente, o primeiro meio de autorizar o conhecimento e, 141 “busy worshipping/ words”. 104 posteriormente, o meio mais avançado de capacidade cognitiva”. Ainda assim, fico feliz que Profa tenha difratado uma práxis tradicional, produzindo uma diferença em seu repertório polissemiótico. Figura 17 – Imagem apresentada por Profa em seu comentário Fonte: Materiais do estudo (2021). Em outra oportunidade, propus uma atividade semelhante. No dia 20 de novembro de 2021, trabalhamos o longa-metragem Les misérables (2019), dirigido por Ladj Ly. Depois de nossas trocas síncronas, os/as alunos/as tiveram que realizar a seguinte atividade: Publiez un texte (un paragraphe, un audio, une image, un meme, une vidéo etc.) sur le forum « Film : Les misérables » (sur Eduq) pour générer des discussions à propos du film. Vous devez aussi discuter les publications de vos collègues. [Publique um texto (um parágrafo, um áudio, uma imagem, um meme, um vídeo etc.) no fórum “Film: Les misérables” (Eduq) para gerar discussões sobre o filme. Você também deve discutir as postagens de seus/suas colegas.] Surpreendentemente, os resultados do evento anterior não se repetiram. Dessa vez, cinco estudantes apresentaram suas ideias a partir da combinação de códigos linguageiros diferentes: Jeane e Marta fizeram um comentário escrito unido a uma imagem; Leia (Figura 18) e Profa postaram um texto escrito acompanhado de duas imagens; e r.c. apresentou um parágrafo por escrito junto a um link para um vídeo de uma crítica ao filme no YouTube. Vemos, assim, uma ruptura no paradigma que se havia instaurado. É bem verdade que os textos escritos não perderam seu lugar de primazia; porém, agora, mais estudantes se deram conta de que poderiam 105 mobilizar outros recursos semióticos para expressar suas ideias, o que considero positivo para complexificar suas visões de língua(gem). Figura 18 – Atividade de Leia sobre Les misérables Fonte: Materiais do estudo (2021). [Final aberto do film Les misérables :(: O final aberto é um tipo de final que sempre causa polêmica entre os[/as] espectadores[/as], pois há uma quebra de expectativas. No filme Les misérables, o diretor preferiu deixar o final em aberto, para minha grande tristeza e ansiedade. Eu estava muito tensa com o rumo que o filme estava tomando e imaginava que o final, apesar de tudo, seria feliz e que os personagens aprenderiam algo, a famosa redenção. Mas não foi isso o que aconteceu. E vocês, gostaram do final aberto ou não?] Entre esses dois eventos, performamos uma atividade que pode ter contribuído para essa mudança. No dia 2 de outubro de 2021, a partir da obra La trahison des images (1928-1929), de René Magritte, iniciamos uma discussão sobre artes. Terminamos a aula com os/as estudantes partilhando suas opiniões sobre estátuas. Como atividade assíncrona, pedi que criassem uma estátua ou monumento e se preparassem para apresentá-la/o ao grupo no encontro seguinte. Inicialmente, havia previsto a apresentação para um momento posterior, quando já tivéssemos tratado dos movimentos de derrubada de monumentos que eclodiram mundo afora após uma série de protestos do Black Lives Matter (“Vidas Negras Importam”), movimento antirracista que ganhou tração em maio de 2020, quando George Floyd, homem negro, foi asfixiado até a morte por um policial branco, nos Estados Unidos. No entanto, devido às restrições burocráticas do semestre letivo, eu precisava concluir as notas do primeiro bimestre e não poderia postergar a apresentação para a semana subsequente. Este foi o enunciado da atividade: Créez une statue/un monument pour rendre hommage à quelqu’un ou quelque chose (un objet, une idée, un principe etc.) que vous considérez important.e. Vous pouvez utiliser n’importe quelle ressource pour représenter votre statue/monument, mais vous devez apporter quelque chose que l’on peut voir. Présentez-la/-le oralement le cours prochain. Les questions suivantes peuvent vous aider à préparer votre présentation : o Pourquoi avez-vous choisi cette personne ou chose ? o Qu’est-ce qu’il/elle représente pour vous ? 106 o Où voudriez-vous exposer ce monument/cette statue ? Pourquoi ? o Comment imaginez-vous que les gens réagiraient à cette statue/ce monument ? [Crie uma estátua/monumento para homenagear alguém ou algo (um objeto, uma ideia, um princípio etc.) que você considere importante. Você pode usar qualquer recurso para representar sua estátua/monumento, mas deve fornecer algo que possa ser visto. Apresentea/o oralmente na próxima aula. As perguntas a seguir podem ajudá-lo/a a preparar sua apresentação: o Por que você escolheu essa pessoa ou objeto? o O que ela representa para você? o Onde você gostaria de exibir esse monumento/estátua? Por quê? o Como você acha que as pessoas reagiriam a essa/e estátua/monumento?] Note que minhas instruções escorregam em anseios representacionais. O propósito dessa atividade consistiu em criar uma oportunidade para que o grupo desenvolvesse repertórios polissemióticos a partir do engajamento criativo, ético e, esperançosamente, crítico com e para além da língua francesa. Afinal, como salientam Deleuze e Guattari (1995, n.p.), “[u]m rizoma não cessaria de conectar cadeias semióticas, organizações de poder, ocorrências que remetem às artes, às ciências, às lutas sociais”. Compreendo que “[a]s artes usam artefatos e processos analógicos para tornar desconhecidos nossos recursos habituais de produção de sentido, para descobrir novos caminhos por meio deles e torná-los mais profundamente significativos”142 (Barry; Meisiek, 2010, p. 1506). Sendo assim, esperava que o processo de criação artística – por meio de seu “poder de desfamiliarizar que dá às artes sua capacidade de vibrar, ressoar e avivar”143 (Barry; Meisiek, 2010, p. 1506) – pudesse contribuir positiva e diferentemente para a expansão dos repertórios dos/as estudantes. Pessoa e Urzêda-Freitas (2023) discutem um projeto semelhante, realizado com um grupo de universitários/as de licenciatura em língua inglesa, no qual cada estudante criou um monumento para confrontar as violências que circunstancia(ra)m a história do Brasil. Ainda que minha proposta não tivesse um foco específico, tal como o descrito pela autora e pelo autor, tendo em vista os saberes coconstruídos em nossas aulas até aquele momento, esperava que os/alunos/as se apropriassem da proposta para performar criticidade e difratar suas corpovivências, entendidas “como possibilidade[s] de criação de caminhos outros de ser, estar, pensar, enxergar, escutar, sentir, conhecer” (Almeida, 2023, p. 18). No dia 9 de outubro de 2021, os/as estudantes expuseram suas criações. Suas apresentações podem ser acessadas nesta pasta do Google Drive. Os temas mais recorrentes “[t]he arts use artifacts and analogical processes to make our familiar sensemaking resources unfamiliar, to discover new ways through them, and to make them more deeply meaningful”. 143 “power to defamiliarize that gives the arts their ability to vibrate, resonate, and enliven”. 142 107 contemplaram ciência, gênero, família, violência e animais. Discorrerei brevemente sobre cada um dos trabalhos. Marta decidiu criar uma estátua para confrontar o apagamento sofrido por Lise Meitner, física austríaca e judia que descobriu a fissão nuclear com seu colega Otto Hahn, que recebeu sozinho o prêmio Nobel, em 1944, pelo trabalho (Figura 19). Jeane optou por celebrar Pierre Bourdieu, sociólogo francês, em virtude de suas valiosas contribuições para o campo da sociologia da educação, sobretudo na obra La reproduction: éléments pour une théorie du systhème d’enseignement (1970), publicada em conjunto com Jean-Claude Passeron (Figura 20). Profa escolheu homenagear sua bisavó, descrita como uma política feminista que lutou por causas sociais no Brasil (Figura 21144). Leia propôs uma estátua em tributo a sua mãe, quem considera uma mulher forte e inspiradora (Figura 22). Figura 19 – Monumento de Marta Fonte: Materiais do estudo (2021). 144 Por se tratar de uma figura pública, optei por apresentar a imagem da bisavó da aluna sem censura. 108 Figura 20 – Monumento de Jeane Fonte: Materiais do estudo (2021). Figura 21 – Monumento de Profa Fonte: Materiais do estudo (2021). Figura 22 – Monumento de Leia Fonte: Materiais do estudo (2021). 109 Julio Pinheiro apresentou uma escultura de Pabllo Vittar, drag queen e cantora brasileira, como símbolo de representatividade LGBTQIA+145 (lésbicas, gays, bissexuais, pessoas transgênero, queer, intersexuais, assexuais e demais identidades não cisheteronormativas) (Figura 23). r.c. concebeu uma estátua intitulada Les femmes contre la violence (“As mulheres contra a violência”), personificada na figura de Maria da Penha, ativista brasileira dos direitos das mulheres que teve um papel fundamental na promulgação da Lei n. 11.340, sancionada em 7 de agosto de 2006, também chamada Lei Maria da Penha (Figura 24). Difratando a inocência e humor de Manneken pis, estátua de um menino urinando em uma fonte, localizado no centro de Bruxelas, Maria imaginou um monumento de crianças vítimas de balas perdidas no Brasil (Figura 25). Gigi, por sua vez, criou um monumento para evidenciar as dificuldades enfrentadas pelos/as refugiados/as (Figura 26). Figura 23 – Monumento de Julio Pinheiro Fonte: Material do estudo (2021). 145 Desde a apresentação de Julio Pinheiro, a sigla passou por uma expansão, tornando-se LGBTQIAPN+, para contemplar, também, a existência e a luta de pessoas pansexuais e não binárias. 110 Figura 24 – Monumento de r.c. Fonte: Materiais do estudo (2021). Figura 25 – Monumento de Maria Fonte: Materiais do estudo (2021). 111 Figura 26 – Monumento de Gigi Fonte: Materiais do estudo (2021). Hiago preparou uma escultura em homenagem a Tupac, cachorro que frequentava o câmpus Samambaia e se tornou bastante popular entre os/as universitários/as (Figura 27). Toni aproveitou a oportunidade para destacar seu animal preferido com um monumento chamado Le poulet (“O frango”) (Figura 28). FX concebeu uma ponte cujo caminho estava bipartido e separado para tratar de como posicionamentos distintos podem ser reconciliados (Figura 29). Por fim, tomando como inspiração sua personalidade sonhadora e seu desejo de se tornar escritora, Croissant projetou um monumento interativo de uma bola de sabão com uma superfície marcada por um livro aberto ao lado de um tinteiro e uma pena (Figura 30). 112 Figura 27 – Monumento de Hiago Fonte: Materiais do estudo (2021). Figura 28 – Monumento de Toni Fonte: Materiais do estudo (2021). 113 Figura 29 – Monumento de FX Fonte: Materiais do estudo (2021). Figura 30 – Monumento de Croissant Fonte: Materiais do estudo (2021). De todos/as os/as estudantes, apenas FX construiu de fato um monumento físico. O aluno utilizou peças encaixáveis de plástico para dar vida a sua ideia em três dimensões. O restante do grupo trabalhou com imagens digitais. Seguindo Murris (2016b, p. 287), não me cabe dissertar sobre o que os monumentos representam, dado que “[p]erguntar o significado (representacional) é um tipo de conhecimento (humanista) que mantém o/a conhecedor/a à 114 distância (por meio da linguagem)”146. Esse tipo de postura desemboca na separação dicotômica entre sujeito/objeto, observador/a/observado/a, perguntador/a/perguntado/a, repetindo um ciclo cartesiano de falsa objetividade. De acordo com a autora, mais vale fazer uma leitura da agência performativa desses/as actantes, por meio de perguntas como “o que fazem?” e “como funcionam?”. Então, o que fizeram esses monumentos em nosso contexto de educação linguística? Em primeiro lugar, permitiram que os/as alunos/as experimentassem diferentes linguagens como forma de expressão; permitiram que pensassem-com as mãos, fizessem-com o corpo e escutassem-e-falassem-e… Durante as apresentações, pedi que os/as estudantes ligassem suas câmeras para que pudessem performar suas ideias, também, através de seus corpos físicos, ainda que de forma restrita. Com exceção de Julio Pinheiro, que teve um problema de ordem técnica, todos/as o fizeram. Ao falar de seus trabalhos, os/as estudantes mobilizaram recursos semióticos distintos, envolvendo a língua-alvo, mas não só ela. Em um momento de sua apresentação, Gigi expôs que não conseguiria exprimir tudo o que sentia em relação ao tema dos/as refugiados/as por falta de repertórios na língua francesa. Em resposta, expliquei que ele poderia alternar entre francês e português se julgasse necessário. Assim como Rocha (2014), entendo que o princípio de exclusividade da língua-alvo na sala de aula promove um desserviço à educação linguística no sentido de que gera mais silenciamentos do que engajamento efetivo com a língua não materna. Me permita fazer, aqui, uma breve digressão. Mediante esse evento, me lembro de que, quando tive o privilégio de começar a estudar inglês em uma renomada escola de idiomas, a professora (obviamente orientada pela coordenação), sempre que nos ouvia falar português, nos repreendia: “no English, no talk!” (“sem inglês, sem conversa!”). Depois que me tornei professor, trabalhei nessa mesma rede de escolas. Nas paredes das salas de aulas, havia placas de sinalização com a inscrição “no Portuguese” (“sem português”). Você percebe a violência velada nessas afirmações? Continuamos a reproduzir uma lógica dicotômica que prioriza a forma em detrimento do conteúdo. A despeito de sua suposta “boa intenção”, em minhas experiências como aluno e, posteriormente, como professor, não senti efeitos positivos resultantes desse tipo de abordagem da língua materna. Frequentemente, o efeito foi o silêncio forçado. “[a]sking for (representational) meaning is a kind of (humanist) knowing that keeps the knower at a distance (through language)”. 146 115 Canagarajah (2013, p. 6) reforça que “a comunicação transcende línguas individuais”147 e, além disso, que “[a]s ‘línguas’ estão sempre em contato e se influenciam mutuamente”148. Aparentemente, esse entendimento ainda não alcançou a política linguística de muitas escolas no Brasil. Em nossas aulas, os/as estudantes usavam a língua portuguesa com certa frequência, tanto em seus textos orais quanto em seus textos escritos no chat, alternando a língua materna e a língua-alvo na coconstrução de seus repertórios. Mais ainda, se valiam também de conhecimentos na língua inglesa. Em nosso encontro do dia 30 de outubro de 2021, tratamos da estrutura gramatical ne… que, chamada de restriction (“restrição”). Quando terminamos um exercício de transformação de algumas frases, Profa fez uma observação comparando a restriction com um dos possíveis usos de but em inglês e me perguntou se havia algo equivalente em português. Respondi que uma possibilidade seria “senão”; porém, esse termo tem uso bastante escasso no português brasileiro contemporâneo, ficando restrito à escrita formal culta149, o que pode causar certo estranhamento quando falado, diferentemente de but, que é amplamente empregado em diversas situações comunicativas. Leia intraveio e nos ofereceu “não mais que” como uma opção, o que acatamos como o melhor equivalente em português. Observe como, nesse evento, mobilizamos três línguas diferentes para negociar sentidos e chegar a um lugar comum. O ponto que gostaria de levantar se resume à compreensão de que, a partir de uma perspectiva pós-humanista, devemos abordar as línguas por meio de cortes transversais (que nos levem além da gramática contrastiva), reconhecendo que a troca de códigos é uma estratégia comunicativa em si. Em segundo lugar, os monumentos apresentados confrontaram norma(lizaçõe)s impostas pelas incontáveis manifestações sociomateriais das colonialidades. Livholts (2022, para. 1) aponta que “estátuas tendem a falar a partir de posições de privilégio e da elite, principalmente de masculinidades brancas e sem deficiência”150. Tendo em vista que os monumentos ocupam espaços públicos, “[i]sso desempenha um papel no poder narrativo da governança, privilegiando eventos e memórias específicos em detrimento de outros, excluindo as histórias de mulheres e das minorias”151 (Livholts, 2022, para. 1). Na contramão de “[h]omens privilegiados/ [v]igiando a cidade”152 (Livholts, 2014, p. 33 apud Livholts, 2022, “communication transcends individual languages”. “‘[l]anguages’ are always in contact with and mutually influence each other”. 149 Mesmo em registros formais, o termo não me parece tão recorrente. Ora, em dezenas de páginas desta dissertação, recorri à expressão uma única vez por meio de uma citação. 150 “statues tend to speak from positions of privilege and the elite, mainly white, able-bodied masculinities”. 151 “[t]his plays a role for the narrative power of governance, privileging specific events and memories over others, excluding histories of women and minorities”. 152 “[p]rivileged men/ [w]atching the city”. 147 148 116 on-line), os/as estudantes fizeram escolhas inten(c/s)ionais de colocar em evidência histórias de corpos (não necessariamente humanos) marginalizados, silenciados e vítimas de violências e desigualdades. Ao fazê-lo, corpoevidenciaram (Almeida, 2023) maneiras outras de se colocar no mundo para fazer face ao machismo (Marta, Profa, r.c.), à cisheteronormatividade (Julio Pinheiro), ao nacionalismo (Gigi), ao racismo (Maria) e ao especismo (Hiago e Toni). As intra-ações ocorridas no curso de Francês 6 demonstram que repertórios polissemióticos foram mobilizados nas aulas, combinando a língua francesa com as línguas portuguesa e inglesa, com gestos, com expressões faciais, com imagens, com emoticons/emojis, com silêncios, com emoções… Isso nos leva a perceber que as práticas linguageiras são estratégias híbridas, moventes, fluidas e performáticas, de modo que se materializam de formas diversas para produzir significados/sentidos. Nos processos comunicativos, cadeias semióticas de potencial infinito são formadas. Como explicam Deleuze e Guattari (1995, n.p.), uma cadeia semiótica é como um tubérculo que aglomera atos muito diversos, lingüísticos, mas também perceptivos, mímicos, gestuais, cogitativos: não existe língua em si, nem universalidade da linguagem, mas um concurso de dialetos, de patoás, de gírias, de línguas especiais. Além disso, podemos perceber que a inteligibilidade se faz para além do ser humano, em assemblagem com actantes não humanos/as, como monumentos, por exemplo, que se alinham para coconstruir uma mensagem no corte de determinado tema. Corporificar a língua(gem) exige fazer re-tornar o corpo e romper com binarismos que se sedimentaram ao longo da história. Para tanto, é necessário conceber a língua como algo mais do que um conjunto de regras processado em faculdades mentais. Isso envolve assumir nossas naturezas corpóreas como parte elementar da coconstrução de inteligibilidade e se afastar de uma noção logocêntrica que imputa à expressão verbal uma espécie de verdade ontoepistemológica. Concordo com Lemke (2010, p. 460) sobre a ideia de que “[p]recisamos derrubar os limites artificiais que temos tentado criar entre o mental e o material, entre os aspectos individuais e soci[omateri]ais das pessoas e das coisas que interagem [intra-agem] física e semioticamente com outras pessoas e coisas”. Como tenho argumentado aqui, esse movimento em direção a um devir pós-humanista não implica um apagamento do humanismo, mas formas de difratá-lo e gerar diferenças diferentes. Não podemos negar as mudanças positivas que o humanismo nos proporcionou em termos de produção do conhecimento e de políticas identitárias ao longo da história. Tal como Bayne (2017, p. 210), 117 [p]enso que o principal desafio enfrentado por professoras/es e pesquisadoras/es na era do Antropoceno é tentar se afastar desse legado arraigado, encarnado de humanismo dentro da educação. Estou interessad[o] no que é útil e importante no humanismo em torno da agência e da justiça social. Ao mesmo tempo, estou tentando pensar o que significa estar conectad[o] de forma múltipla, tanto em termos ecológicos quanto em termos maquinoartificiais, e como isso pode mudar o que significa ensinar, o que significa ser um/a educador/a e o que significa ser um/a estudante. Na minha opinião, essa é realmente a questão-chave que precisamos abordar153. Assim sendo, complexificar a língua(gem) demanda um esforço de trabalhar nossas corpovivências e as formas como elas se emaranham em nossas produções polissemióticas. Nossos corpos não são entidades vazias; eles carregam histórias de reprodução de colonialidades, mas podem, ao mesmo tempo, se tornar materialidades de resistência (Gale; Wyattt; Moreira; Diversi, 2022). A educação linguística não pode, pois, se esquivar de seu compromisso ético-ontoepistemológico de responder a um mundo desigual. “I think the main challenge facing teachers and researchers in the age of the Anthropocene is to try and move away from this entrenched, embodied legacy of humanism within education. I am interested in what is useful and important in humanism around agency and social justice. At the same time, I am trying to think what it means to be multiply connected both in ecological terms and in machinicartificial terms, and how that may change what it means to teach, what it means to be an educator, and what it means to be a student. In my opinion, this is really the key question that we need to address”. 153 118 DESCONSIDERAÇÕES DE FINAIS “Desconsidero qualquer final”154 Como terminar algo que começa pelo meio? Curiosamente No espaçotempo em que escrevia Estas palavras Deparei com o seguinte texto: Figura 31 – Tirinha Fonte: Desorientanda (2023). Já tendo dito o que tinha a dizer No corte agencial Desse espaçotempo situado Por força de convenção Me vejo na obrigação 154 Vi esta frase em uma história do Instagram, mas, quando decidi usá-la, não consegui recuperar o lugar de sua autoria para fazer a citação devidamente. Sendo assim, uso as aspas para referenciar as palavras dessa outra pessoa, que, infelizmente, seguirá, aqui, em anonimato. 119 De dizer mais E mais e mais e mais e… Para estar apto a entrar no Museu de Teses e Dissertações Para a apreciação de poucos/as (Pennycook (2018b) já questionou os sentidos das cabeças falantes Pois eu gostaria de questionar os sentidos das mãos escreventes!!!) E escolhi fazê-lo em forma de verso livre Sim, isso mesmo! Em verso livre Mais uma escolha inten(c/s)ional Ressoam, agora, em meus ouvidos Os versos de Pitty (2019, 0min 4s): “eu me domestiquei pra fazer parte do jogo mas não se engane, maluco[/a] continuo bicho solto” Mas quão livres serão estes versos Neste arquivo de PDF? Escrever este texto acadêmico se fez como uma luta Constante Comigo Mesmo Uma escrita de guerrilha (Gale; Wyattt; Moreira; Diversi, 2022)? Ainda assim Não posso negar que “Me divirto com a empolgação de ser o fugitivo, aquele que está em fuga, aquele que está sempre escrevendo em guerrilha, aquele que pode viver na universidade, mas aquele que, cada vez mais, se sente menos parte dela”155 (Gale; Wyattt; Moreira; Diversi, 2022, p. 3) Talvez esse contraformato me ajude A desentravar os entraves A desbloquear os bloqueios “I revel in the excitement of being the fugitive, the one that is on the run, the one that is always guerrilla writing, the one that might live in the university but the one who, increasingly, feels less a part of it”. 155 120 A experimentar em minha experimentação A escrever de um modo outro Encontro na voz poética Uma liberdade performática Que ainda não encontrei Em outros formatos Será um caso de poesia como iluminação (Lorde, 2019)? Ou, melhor, poesia como escuração156? Ou, ainda, poesia como perguntação? Como verbaliza Lorde (2019, p. 44): “é através da poesia que damos nome àquelas ideias que – antes do poema – não têm nome nem forma, que estão para nascer, mas já são sentidas” Mas não se engane: Isto ainda se configura como um texto acadêmico! Um texto acadêmico em seu tornar-se diferencial A despeito de quem diga que não (E dirão, ah, como dirão!) Ora, mas veja bem as referências!!! Prometo não me demorar Desde que me propus a desenvolver Esta dissertação (Disserta a ação?) Tinha muito escuro Que queria que fosse um texto curto Na contramão do próprio gênero E cá estamos Depois de tantas (poucas?) páginas Nas palavras finalizantes Mas não finais! Qual é o objetivo de uma tal seção em um trabalho acadêmico? Normalmente Devo apontar que o termo “escuração” (assim como “escurecer”) não implica em minha autoidentificação como parte da raça negra, mas se refere a uma forma de re-tornar os sentidos que são comumente associados à negritude. 156 121 (O normal mente?) Rematamos os aspectos principais do texto Não é? Visto que temos trabalhado juntos/as Ao longo desse processo No emaranhamento de conceitos-ideias-saberes-perguntações Não posso deixar de pedir sua colaboração em mais este momento Sim, você, afetuoso/a leitor/a Que me acompanhou até aqui Na coconstrução do que virá a ser Esta dissertação Impelido por minha identidade docente Te deixo, portanto, Mais uma atividade: Escreva esta seção comigo Perguntagindo! Está pronto/a? Vamos lá! Responda às questões a seguir: Em que consistiu o objetivo deste trabalho? Que praxiologias sustentaram As discussões apresentadas? Que materiais performaram? Que problematizações foram feitas Sobre a educação linguística? Escreva aqui, por favor Passadas essas formalidades (ufa!) Agora Me conte Sobre sua experiência Com esta dissertação De que formas ela te afetou? O que brilhou para você? Que perguntas acerca da educação linguística 122 Ela te provocou a fazer? Que movimentos de difração Você performou com/a partir d’ela? Escreva aqui, por favor De braços dados com Barad (2014) Rejeito os cortes em dois Me interessam mais Os cortes em múltiplas direções Que produzem diferenças diferentes Entre on-line e off-line Escolho onlife Que é um corte transversal Que está no meio E é no meio que as coisas tomam velocidade Enveredando por experimentações Me aventurei com o pós-qualitativo Numa pandemia de um vírus letal Que desCOnVIDou a copresença física E instaurou um ensino (ter)remoto (bum!) E me lançou numa pedagogia da gambiarra Caí, então, em uma sala de aula distribuída Dispersa entre espaçotempos-e-corpos-e-pessoas-e-coisas-e-casas-e-salas-e-quartos-ecadeiras-e-mesas-e-redes-e-internet-e-computadores-e-smartphones-e-câmeras-e-microfonese-teclados-e-linguagens-e-textos-e-falas-e-escritos-e-emojis-e-emoticons-e-imagens-e-vídeose-áudios-e-barulhos-e-silêncios-e-tradutores-e-dicionários-e-monumentos-e-experiências-eemoções-e-significados-e-sentidos-e-corpovivências-e-diferenças-e-perguntas-e… Onde os/as estudantes escorregaram Na lisura do espaço digital E foram distraídos/as por actantes Supostamente “lá de fora” E sentiram inveja do câmpus Apesar de terem ganhado tempo de vida Evitando deslocamentos E sentiram falta dos corpos alheios 123 Escamoteados por trás de câmeras desligadas Transcorporificados em algoritmos Nas telas de computadores e smartphones E acreditaram que on-line era mais difícil E ao mesmo tempo escorregaram Na lisura do espaço digital Para construir repertórios em assemblagens Com dicionários e tradutores Exercendo intranomia Integrando sentidos Se alinhando com os espaçotempos da aula Para aprender em seus próprios ritmos E trabalhar em grupos E (des)inventar língua(gen)s Mobilizando sons, textos escritos, emojis, emoticons, imagens, monumentos Superpondo verbal-e-não-verbal Multiplicando significados Para se fazer (in)inteligíveis A partir das corpovivências Nesses emaranhamentos Emergiram (in)compreensões Em leituras difrativas Que me fazem Argumentar em favor De uma educação linguística Corporificada Movida pelo desenvolvimento De repertórios polissemióticos Que não se limitam à expressão verbal Nem a uma língua determinada Nem aos seres humanos Entendo a produção de significados/sentidos Como um processo que emerge em assemblagem Atravessando corpos diversos 124 Humanos-e-não-humanos Em reiteradas intra-ações De modo híbrido e performático Mobilizando cadeias semióticas infinitas O Pós-humanismo não é a resposta Para todos os anseios que carregamos Como professores/as-e-linguistas-e-educadores/as Tampouco tem a pretensão de sê-lo Ainda estou me descobrindo-com ele E me permitindo experimentar-com ele Para difratar entendimentos sedimentados Sobre língua(gem) E Numa perspectiva crítica Relações de poder Mas ele nos instiga a questionar Me instiga a perguntagir sobre minha práxis E isso Por si só Já tem relevância E re-torna as praxiologias que aí estão postas 125 REFERÊNCIAS AKRICH, Madeleine; LATOUR, Bruno. 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