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Ainda tem solução: uma proposta semântica

2008

Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Comunicação e Expressão. Programa de Pós-graduação em LinguísticaEsta dissertação se insere no estudo da semântica das línguas naturais, sob a vertente formalista de condições de verdade, e objetiva, com isso, uma semântica para o item lexical ainda. De início, as suspeitas, baseadas nos estudos de Ilari (1987) e Mendes de Souza et al (2007), eram de que o ainda temporal seria um item de polaridade negativa, o que vem a corroborar com os estudos para a língua inglesa de Israel (1996) and Ladusaw (2002, [1980]), os quais consideram o yet um item de polaridade negativa. Inicialmente, porém, distinguimos os usos do ainda em temporal, discursivo e conjuntivo, com enfoque no uso temporal, e, assim, descobrimos que a contra-expectativa é comum a todos eles. Por meio de testes com acionalidades variadas e nos diversos tempos verbais, concluímos que o ainda só não ocorria com a interpretação temporal em contextos per...

provided by 1 UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LINGUÍSTICA CENTRO DE COMUNICAÇÃO E EXPRESSÃO TEORIA E ANÁLISE LINGÜÍSTICA – AS INTERFACES DA GRAMÁTICA MESTRADO EM LINGÜÍSTICA ‘AINDA’ TEM SOLUÇÃO: UMA PROPOSTA SEMÂNTICA Letícia Lemos Gritti Orientadora: Profª. Drª. Roberta Pires de Oliveira Florianópolis, agosto de 2008. 2 UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LINGUÍSTICA CENTRO DE COMUNICAÇÃO E EXPRESSÃO TEORIA E ANÁLISE LINGUÍSTICA – AS INTERFACES DA GRAMÁTICA ‘AINDA’ TEM SOLUÇÃO: UMA PROPOSTA SEMÂNTICA Letícia Lemos Gritti Dissertação submetida ao Programa de PósGraduação em Lingüística do Departamento de Lingüística do Instituto de Letras da Universidade Federal de Santa Catarina como parte dos requisitos para a obtenção do Grau de MESTRE em Lingüística. Área de Concentração: Teoria e Análise Lingüística – as interfaces da gramática. Orientadora: Profª. Drª. Roberta Pires de Oliveira Florianópolis, agosto de 2008. 3 4 AGRADECIMENTOS Agradeço, primeiramente, a Deus pela vida e pela oportunidade de estudar. Por me dar forças nos momentos difíceis e incentivo para ultrapassar os obstáculos, com muito trabalho e persistência. E, sobretudo, por ter me presenteado com uma maravilhosa família, ótimos amigos e uma excelente orientadora. Aos meus pais, queridos, Sérgio e Maria José que, constantemente, incentivavam-me e incentivam a prosseguir nos estudos, a lutar por meus objetivos e a crescer profissionalmente. Pelo amor com que me criaram e educaram e pelo exemplo de coragem e de força de vontade. Ao meu, querido, irmão Gregório, pelas palavras de ânimo, pelo carinho e pelos momentos de desabafo no tempo em que morou aqui em Florianópolis e também por ser um exemplo de força de vontade e equilíbrio. À minha orientadora, querida Roberta, pelo exemplo pessoal, também profissional e ético com que encara sua profissão, por seu amor à pesquisa e pela consideração que tem por mim e por todos os seus alunos. Além disso, agradeço por suas várias leituras, inúmeras correções, por me iniciar no mundo da pesquisa, ensinar-me a pesquisar e escrever só o que posso mostrar e também pelos vários emails respondidos rapidamente. A todos os meus parentes paternos e maternos, àqueles que acreditam e incentivam-me nessa caminhada. Às minhas queridas amigas da RDDA (República Democrática da Dona Anita), as que continuam por aqui e as que por aqui passaram: Nagely, Morgana, Salete e Ani, as lingüistas da casa; também à Patty (primeira pessoa que me acolheu em Florianópolis), Doro, Nana Tati, Raquel, Júlia e por extensão a Andréa, pela amizade, por todas as conversas, todas as palavras de incentivo, por toda a ajuda nas decisões e, principalmente, por sonharmos com um futuro profissional promissor. Em especial a Nagely por me incentivar a fazer o mestrado e a Morgana, pela grande amizade e força nos momentos de fraqueza, pela visão ampla na resolução dos problemas lingüístico-gramaticais e da vida, sobretudo, pelo exemplo de determinação. Aos meus queridos tantos (difícil nominar) amigos do GOU (Grupo de Oração Universitário) – do Projeto Universidades Renovadas – por serem uma segunda família de aconchego, amor e compreensão. Pelas reflexões entre fé e razão, por me mostrarem que o objetivo do mundo 5 acadêmico não é só ser competitivo, mas se tornar um profissional à disposição das pessoas, para contribuir na construção de um mundo mais justo. Aos amigos de todas as horas; de infância, de Floripa, de Curitibanos, de faculdade, de pósgraduação, de trabalho: Vânia, Suéllen, Bruna, Taty, Nair, Fran’s, Eric, Rodrigo, Patrícia, Mariana, Ana Kelly, Gisele, Atílio, Luisandro, Gugo, Juliana, Duda, Mauro, João, Karen, Christiany, Alice, Thiza e tantos outros. Ao Juarez, que esteve comigo em boa parte do mestrado, por valorizar o meu trabalho, escutar as minhas inquietações, por seu carinho e atenção. Às professoras Edair Gorski e Lígia Negri por terem aceitado o convite para a banca de qualificação e de defesa, e também à professora Ina Emmel, cujas valiosas contribuições ajudaram a construir este trabalho e a todos os professores da pós que muito acrescentaram em minha formação. E, por fim, ao povo brasileiro que, através da Capes, proporcionou-me, durante 18 meses, a oportunidade de “só” estudar. 6 “O diálogo fora difícil, com alçapões e portas falsas surgindo a cada passo, o mais pequeno deslize poderia tê-lo arrastado a uma confissão completa se não fosse estar o seu espírito atento aos múltiplos sentidos das palavras que cautelosamente ia pronunciando, sobretudo, aquelas que parecem ter um sentido só, com elas que é preciso ter mais cuidado. Ao contrário do que em geral se crê, sentido e significado nunca foram a mesma coisa [ ...]” José Saramago. 7 RESUMO Esta dissertação se insere no estudo da semântica das línguas naturais, sob a vertente formalista de condições de verdade, e objetiva, com isso, uma semântica para o item lexical ainda. De início, as suspeitas, baseadas nos estudos de Ilari (1987) e Mendes de Souza et al (2007), eram de que o ainda temporal seria um item de polaridade negativa, o que vem a corroborar com os estudos para a língua inglesa de Israel (1996) and Ladusaw (2002, [1980]), os quais consideram o yet um item de polaridade negativa. Inicialmente, porém, distinguimos os usos do ainda em temporal, discursivo e conjuntivo, com enfoque no uso temporal, e, assim, descobrimos que a contra-expectativa é comum a todos eles. Por meio de testes com acionalidades variadas e nos diversos tempos verbais, concluímos que o ainda só não ocorria com a interpretação temporal em contextos perfectivos, por isso a hipótese de ele ser um item de polaridade negativa foi descartada. A restrição, portanto, parecia ser contextos imperfectivos. Porém, percebemos que a leitura temporal em contextos perfectivos reaparece com o acréscimo de adjuntos de tempo, conforme a fundamentação teórica baseada em momento de evento, momento de referência e momento de fala de Reichenbach (1947 apud ILARI, 1997). Para a análise semântica, utilizamos os textos que tratam dos termos em alemão noch (still) e schon (already), de Löbner (1989; 1999) e Auwera (1993), ambos discutem a hipótese da dualidade. Transpostos aos dados do PB, assumimos com Löbner que o ainda dispara uma pressuposição de um estado positivo anterior a te (momento de evento) e contribui para as condições de verdade porque acrescenta a necessidade de uma mudança. Por fim, mostramos que as diferentes expectativas, que denominamos contra-expectativas, são uma implicatura. Palavras-chave: Ainda; Pressuposição; Tempo; Semântica; Advérbios. 8 ABSTRACT The area of research of this dissertation is the semantic of natural languages, on a formalist approach of truth conditions, and it aims a semantic aspect to lexical item ainda. At first, the hypothesis, based on Ilari (1987) and Mendes de Souza et al (2007) was that the temporal ainda would be a negative polarity item; idea which corroborates to the English language’s studies of Israel (1996) and Ladusaw (2002, [1980]), whom have considered the yet a negative polarity item. At first, however, we distinguished and classified the uses ainda, in temporal, discursive and conjunctive, focusing on the temporal one. Then, we have concluded that the contra-expectation appears in all of them. Tests with varied aktionsart, in different verbal tenses, showed that ‘ainda’ does not occur only through temporal interpretation in perfective contexts; because of this, the initial hypotheses was dismissed, and the restriction would seem to be the imperfective contexts. But, we perceive that the temporal reading in perfective contexts reappears with the addition of time adjuncts, following the theoretical discussion based on the moment of event, moment of reference and moment of speech from Reichenbach (1947 apud Ilari, 1997). For the semantic analysis we use the texts of Löbner (1989; 1999) and Auwera (1993) which investigate the Germanic terms ‘noch’ (still) e ‘schon’ (already); both authors discuss the hypothesis of duality. When we moved the data to the PB, we assumed the Löbner’s idea, which says that ainda triggers a presupposition of a positive previous state to te (moment of event), and contributes for the truth conditions, because it adds the necessity of change. Finally, we showed that the different expectations, which we named contra-expectations, are implication. Key-words: Ainda; Presupposition; Time; Semantic, Adverbs. 9 LISTA DE QUADROS Quadro 1 - Testes do pretérito perfeito............................................................................50 Quadro 2 – Testes no pretérito imperfeito.......................................................................53 Quadro 3 – Esquema da dualidade..................................................................................58 Quadro 4 – Testes com o já na negativa e afirmativa no pretérito perfeito....................58 Quadro 5 – As sentenças e suas expectativas..................................................................61 Quadro 6 – Esquema da dualidade..................................................................................65 Quadro 7 – Esquema da dualidade transposta ao PB......................................................65 Quadro 8 – Características do já.....................................................................................73 Quadro 9 - Características do ainda, não ainda e já não................................................74 LISTA DE FIGURAS Figura 1 – Escala ............................................................................................................25 Figura 2 – Representação no eixo temporal da sentença (123) ......................................52 Figura 3 – Oposição do mundo real com o contrafactual................................................61 Figura 4 – Diagrama de van der Auwera (1993, p. 619) ................................................74 Figura 5 – Os dois cenários que as partículas acionam – aplicada ao ainda...................75 Figura 6 – Pressuposição de P, presente em (183a) em oposição à parte nãohachurada78 Figura 7 – Pressuposição de schon em oposição à parte hachurada................................79 Figura 8 – Ilustração do significado de noch (te, P) e nicht mehr (te, P) ..........................79 Figura 9 – Representação da pressuposição de (188a) ...................................................81 Figura 10 – Representação da sentença (193) ................................................................82 Figura 11 – Representação da sentença (194) ................................................................83 Figura 12 - Representação da sentença acarretada de (197a) na parte hachurada...........84 Figura13- Representação da sentença (198) sem o ainda e, portanto, acarretamento...................................................................................................................84 Figura 14 – Intervalos admissíveis em termos de P e te de schon e noch nicht..............87 Figura 15 – Intervalos admissíveis em termos de not-P e te de noch e nicht mehr..........87 sem 10 SUMÁRIO: INTRODUÇÃO...............................................................................................................12 CAPÍTULO I: DELIMITANDO A POLARIDADE NEGATIVA...........................15 1 INTRODUÇÃO...................................................................................................15 2 ENTENDENDO POLARIDADE NEGATIVA..................................................15 3 CONTEXTOS LICENCIADORES.....................................................................20 4 PROPOSTAS DE EXPLICAÇÃO PARA O LICENCIAMENTO....................21 4.1 LADUSAW E A PROPOSTA DO ACARRETAMENTO PARA BAIXO.....24 4.2 A VERIDICIDADE..........................................................................................31 4.3 O AINDA...........................................................................................................33 CAPÍTULO II AINDA: UM NOVO PONTO DE VISTA.........................................35 1 INTRODUÇÃO...................................................................................................35 2 FUNCIONALISMO – RETOMADA HISTÓRICA...........................................35 3 QUANTOS USOS?...................................................... ......................................40 3.1 CONTRA-EXPECTATIVA.............................................................................44 3.2 AINDA TEMPORAL........................................................................................46 3.1.1 A restrição......................................................................................................50 4 JÁ E AINDA – OPOSIÇÃO? ..............................................................................56 5 EXPECTATIVAS...............................................................................................60 6 POR ISSO............................................................................................................62 CAPÍTULO III: UMA PROPOSTA SEMÂNTICA PARA O AINDA....................64 1 INTRODUÇÃO..................................................................................................64 2 DUALIDADE.....................................................................................................64 2.1 ESCALAR........................................................................................................69 2.1.1 Escalas por Löbner........................................................................................71 2.2 Diferenças e semelhanças entre já e ainda......................................................73 3 PRESSUPOSIÇÃO.............................................................................................77 3.1 ADJUNTOS TEMPORAIS.............................................................................82 4 CONDIÇÕES DE VERDADE...........................................................................83 5 IMPLICATURA.................................................................................................90 6 PORTANTO.......................................................................................................92 Ainda: NOVOS CAMINHOS.......................................................................................94 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS........................................................................97 11 ANEXOS.........................................................................................................................100 12 INTRODUÇÃO O interesse no objeto de estudo desta dissertação surgiu através da investigação da polaridade negativa nas línguas naturais, fenômeno amplamente discutido em outras línguas, mas que no português brasileiro (doravante PB) pouco é comentado. E como o tema é vasto e em torno dele há muitas áreas a serem exploradas, principalmente no que se refere à descoberta de quais são os itens e expressões, além de detectar quais são os licenciadores, resolvemos nos reportarmos ao português, mais especificamente ao PB. Resolvemos, também, restringir nosso estudo a um único item, o ainda, porque, naquele momento, ele se mostrava um forte candidato a pertencer a essa classe. Visto que em inglês o yet é considerado um item de polaridade negativa (mais adiante denominado IPN1) e que, no PB, Ilari (1984) deu algumas pistas, afirmando ser o ainda um representante da classe e, também, fez alusão de que esse item e o já formariam um par de oposição, em que aquele atuaria no negativo e este no positivo. Vale ressaltar que este trabalho insere-se no escopo da semântica das línguas naturais na vertente formalista de condições de verdade. A partir desse problema inicial, o Capítulo 1 direcionou-se ao entendimento de quais são e o que caracteriza os itens e as expressões de polaridade negativa; à discussão das teorias mais importantes que os acercam, tais como o acarretamento decrescente, proposto por Ladusaw (2002), a não-veridicidade, levantada por Giannakidou (2001), a proposta sintáticopragmática, por Linebarger (1987), a escala aventada por Fauconnier (1975 apud ILARI, 1984); também direcionou-se ao questionamento se o ainda efetivamente se encaixa na definição de itens de polaridade negativa dado pelas teorias, uma vez que, naquele momento, a interpretação negativa parecia estar presente em todas as ocorrências de ainda. Cada uma das teorias foi desenvolvida através de exemplos testados. E foi na busca desses exemplos que nos deparamos com a variedade tipológica do item ainda. O contato com esse item gerou a suspeita de que a expressão não tem o mesmo sentido sempre, assumindo diferentes usos. Por isso, o segundo capítulo visa fazer a separação dos diferentes tipos de ainda e a verificação do comportamento de cada um, tentando, dessa forma, classificá-los em grupos. Também é objetivo deste capítulo focalizar a análise no uso temporal, identificar suas restrições e sua distribuição nos diversos tipos, tempos e aspectos verbais, fundamentados nas teorias de Vendler (1967 apud PIRES DE OLIVEIRA & BASSO, 2007) para acionalidade e Reichenbach (1947 apud ILARI, 1997) para o tempo, porque é 1 A abreviatura IPN significa Item de polaridade negativa. 13 apenas para o seu uso temporal que foi aventada a hipótese de ele ser um item de polaridade negativa. A pergunta inicial da dissertação é se o ainda temporal fazia parte da classe dos itens de polaridade negativa. Embora um dos objetivos deste estudo seja apresentar uma resposta para essa questão da polaridade negativa, ela só é possível se tivermos clareza sobre qual dos ainda estamos analisando e, para isso, centramos o estudo no uso temporal, também porque foi o mais recorrente na fala dos entrevistados do NURC2, e fora este uso que Ilari (1984) citou como exemplo de uma possível polaridade negativa. Além da polaridade, que, no início, supostamente se pensava estar relacionada ao item em seu uso temporal, o objetivo desta dissertação também é apresentar a semântica para esse item, ou seja, detectar o que o ainda representa na sentença, se ele dispara implicaturas, adiciona pressuposições, altera as condições de verdade das sentenças, ou se ele instaura tudo isso. Conforme o avanço dos estudos na semântica, cada vez mais se conclui que há itens lexicais nas sentenças que são mais livres no sentido distribucional, por exemplo, alguns advérbios como só, porém, outros, não ocorrem em qualquer lugar nas sentenças, tão menos em qualquer tempo e/ou junto de quaisquer sintagmas. Esse parece ser o caso do ainda, porque ele não ocorre com a interpretação temporal em todos os aspectos, antes, impõe uma restrição para ocorrer com essa interpretação no aspecto perfectivo. Faz parte da capacidade semântica dos falantes saber exatamente quando e onde podem utilizar os elementos lingüísticos, mesmo sem conhecer explicitamente as regras que por trás deste conhecimento permitem ou não determinados usos. Ou seja, há certos mecanismos que regulam a utilização ou não de determinados itens, sobre a qual os falantes possuem intuições. E é isso que procuraremos desvendar, as normas de utilização do ainda temporal e o licenciamento da ocorrência que serão resolvidos no Capítulo 2, assim como a questão das expectativas, as quais todos os falantes percebem intuitivamente, haver nas sentenças com o ainda. A questão da polaridade negativa também será resolvida, pois, diante dos testes nas variadas formas verbais e definida a questão da expectativa, concluímos que o ainda não é um item de polaridade negativa. O Capítulo 3 discute todas essas questões e também conta com os estudos de Löbner (1989; 1999) e van der Auwera (1993), enquanto o primeiro trata especificamente dos termos noch, seu “dual” schon do alemão, seus correspondentes no inglês still, yet e already do inglês 2 Projeto de Estudo da Norma Lingüística Urbana Oral Culta com o objetivo de documentar e descrever o uso urbano do português falado no Brasil contempla dados em gravações de falantes de Recife, Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre. Os informantes desse projeto são de ambos os sexos, nascidos na cidade, com escolaridade universitária, distribuídos por três faixas etárias; de 25 a 35 anos, 36 a 55 anos e 56 anos. 14 e também leva em consideração a associação dessas partículas3 com suas contrapartes negativas, o segundo contra-argumenta esse esquema e postula que não há essa relação entre eles, o que é discutido no capítulo. Fundamentado nesses estudos, transpusemos o que se assemelha aos dados do PB, apresentando uma semântica e uma pragmática para o ainda. 3 A palavra partículas é utilizada para referir-se a itens nesta dissertação, porém essa nomenclatura é utilizada de forma diferenciada para os dados do alemão. 15 CAPÍTULO I DELIMITANDO A POLARIDADE NEGATIVA 1 INTRODUÇÃO O objeto de estudo desta dissertação é a semântica do item lexical ainda. Nessa perspectiva, uma das questões levantadas é se o ainda é de fato um item de polaridade negativa, pois Ilari (1984) sugeriu que o seria, e, posteriormente, Mendes de Souza et al (2007) também concluíram a análise da expressão na mesma direção. Por isso, é objetivo deste capítulo, na seção 2, explicitar o que é esse fenômeno, fornecer exemplos e demonstrar que os itens e as expressões idiomáticas pertencentes à classe da polaridade negativa preferem os contextos negativos, e que, além disso, não ocorrem, indiscriminadamente, em outros os contextos. Dessa forma, a seção 3 destina-se a relatar os contextos licenciadores e a seção 4 introduz algumas propostas que a literatura tem apresentado para a distribuição e para o licenciamento dos itens e das expressões de polaridade negativa. Já as propostas mais aprofundadas estão na seção 4.1, com a proposta de acarretamento para baixo de Ladusaw (2002 [1980]), e na 4.2, com a da veridicidade de Giannakidou (2001). Por fim, a seção 4.3 mostra que há indícios de que o ainda pertence à classe dos itens de polaridade negativa, como sugerido por Ilari (1984) e afirmado por Mendes de Souza et al (2007) por apresentar características de uma das propostas. 2 ENTENDENDO A POLARIDADE NEGATIVA A polaridade negativa é um dos fenômenos pertencentes ao conhecimento intuitivo do falante, que sabe, naturalmente, quando, onde e com que expressões se combinam os itens e as locuções idiomáticas dessa classe que ocorre, preferencialmente, em contextos negativos. O fenômeno da polaridade negativa é muito estudado em outras línguas, principalmente no inglês por Klima (1964 apud LADUSAW, (2002 [1980]4)), Fauconnier (1975 apud ILARI, 1984), Linebarger (1987), Krifka (1991), Ladusaw (2002 [1980])), Giannakidou (2001), entre outros. Porém, essa diversidade de pesquisas não é encontrada no português, para o qual temos apenas os trabalhos de Ilari (1984), Rocha (1992) e Negri (2006), os quais focalizam as 4 Utilizei o texto de 2002. O original de Ladusaw é de 1980. 16 locuções negativas ou expressões idiomáticas e pouco atentam aos itens5. O primeiro autor centra sua análise nos contextos em que elas ocorrem, o segundo seleciona uma lista de, na maioria, expressões de polaridade negativa e alguns itens, que em outros estudos já foram considerados palavras negativas, por apresentarem a negação embutida, focalizando o estudo nos testes de licenciamento. E por fim, a terceira autora não analisa dados do português, mas faz uma relação teórica a partir do fenômeno, ressaltando as fronteiras entre a semântica e a pragmática. Ou seja, cada um dá um enfoque diferenciado ao tema. Já Mendes e Souza et al (2007) buscam elucidar se há itens de polaridade negativa no PB e quais seriam eles. Os autores concluem que o ainda é um item de polaridade negativa. É essa a hipótese que iremos apresentar neste capítulo. Considere alguns exemplos de expressões de polaridade negativa: (1) a. A irmã dela não levantou um dedo para ajudá-la na organização da festa. b. # A irmã dela levantou um dedo para ajudá-la na organização da festa6. Perceba que a expressão não levantou um dedo, em contextos afirmativos (1b), perde a leitura idiomática, passando a receber o significado composicional, como já apontado por Ilari. Da mesma forma acontece em: (2) a. Ele não deu um pio sobre o assassinato. b. # Ele deu um pio sobre o assassinato. Observe que em (2b) a expressão não dar um pio, em contexto não-negativo, torna-se composicional, perdendo seu caráter idiomático, acionando somente a interpretação composicional de piar, soltar pios sobre o assassinato. Muitas outras expressões têm essa mesma característica, que pode ser verificada nos exemplos abaixo: (3) Essa moça não é flor que se cheire. (4) Ele não sofreu um arranhão. (5) Ela não vale um tostão furado. 5 Entende-se por itens, neste trabalho, sintagmas únicos, com exceção do N-algum ao qual se somam nomes diversos ao item algum. Porém, mesmo assim, diferenciam-se das expressões por estas sempre abarcarem vários sintagmas, que, quando unidos, são interpretados não-composicionalmente. 6 Vamos utilizar o símbolo # para indicar que a sentença não é aceitável, embora ela possa ser gramatical. 17 Ilari (1984) diz que todas essas expressões são interpretadas idiomaticamente, não de maneira literal-composicional. A expressão não é flor que se cheire significa que ela não é confiável, da mesma forma em (4) ele saiu ileso e não literalmente sem um arranhão no corpo. Já (5) significa que ela não vale nada e não que simplesmente não valha um tostão furado. Se essas expressões forem colocadas na afirmativa, deixam de ter o caráter idiomático e passam a ter significado composicional. Veja o contraste dos exemplos anteriores: (6) # Essa moça é flor que se cheire. (7) Ele sofreu um arranhão. (8) # Ela vale um tostão furado. Observe que (6) fica um tanto estranha, a menos que signifique uma metáfora na qual a moça é uma flor, mas a interpretação idiomática se perdeu; em (7), o significado da sentença é literal: afirma que ele teve um arranhão físico no corpo e, da mesma forma, em (8), a semântica dessa sentença nos diz que ela vale um tostão com furo no meio, o que em nosso mundo seria interpretado metaforicamente como não valer nada, pois uma moeda com um furo no meio é nula para nós. Porém, suponhamos uma sociedade na qual o tostão furado é a coisa mais valiosa que há, nesse caso, ela valeria bastante. Essas expressões só aparecem na afirmativa em contextos bem específicos, abordados posteriormente; ou, para que sejam aceitáveis, é preciso aliarem-se ao não, forma mais prototípica da negação, ou a palavras negativas como nem, exemplificadas em nem sonhando e nem com reza brava, ou nada, nenhum, ninguém. As expressões de polaridade negativa são distintas dessas expressões negativas, chamadas palavras-n, que por si só têm a capacidade de originar sentenças negativas, porque são dotadas de uma negação intrínseca. Porém, a literatura se divide quanto a essa questão. Autores como Zwarts (1995 apud GIANNAKIDOU, 2001) consideram esses sintagmas itens de polaridade negativa (como já foi visto, denominados IPN’s) fortes, e não simples expressões negativas. Em certos contextos, as palavras nada, nenhum, ninguém dispensam o uso do não, que é a forma mais comum de compor uma sentença negativa (ILARI, 1984, p. 88) e mesmo assim, a sentença permanece na negativa, confira nos exemplos abaixo: (9) a. Ela nada falou. b. Ela não falou nada. (10) a. Ninguém maltratou o homem. b. O homem não maltratou ninguém. (interno) 18 Note que nos exemplos em (a), o uso do não é dispensável e, mesmo assim, a sentença permanece negativa. Em (9a), o nada sai da posição canônica (depois do verbo) e em (10a) o ninguém passa a ser argumento externo do verbo maltratar, ou seja, em posição de sujeito, dispensa o uso do não. Porém, ao contrário, nas sentenças em (b) a presença do não é obrigatória, pois não é possível dizer: (11) * Ela falou nada. (12) * O homem maltratou ninguém. Há, contudo, palavras que exigem a presença do não, Ilari (1984, p. 88) cita bulhufas, patavina, qualquer, o menor, porém, diferentemente do que o autor afirma, algumas delas podem ocorrer sem negação, mantendo a interpretação negativa como expresso em (13)7: (13) Ele entende patavina/bulhufas do assunto. (14) Há qualquer problema com aquele carro. Enquanto (13), mesmo sem uma negação explícita na sentença, tem interpretação negativa, já que quer dizer que alguém não entende nada do assunto; (14) não tem interpretação negativa. Nesse caso, qualquer seria um item de livre escolha, como afirmam Mendes de Souza et al (2007), e não um item de polaridade negativa como sugere Ilari. Pois para ser um item de polaridade negativa deve haver uma preferência por contextos negativos, e se se encontrar em uma sentença afirmativa, deve, ao menos, apresentar uma interpretação negativa, o que não é o caso de qualquer. Assim como as palavras citadas acima dispensam, em alguns contextos, a presença explícita do não, os itens e as locuções de polaridade negativa (denominadas LPN’s) também ocorrem em certos contextos afirmativos. Pelo o que nos consta, parece não haver ainda uma lista exata dos itens de polaridade negativa para o português brasileiro, Ilari (1984) sugere o ainda, mais tarde reafirmado por Mendes de Souza et al (2007) que acrescentaram o sequer e o n-algum. O n-algum já fora citado por Rocha (1992) em seus testes, que também incluiu em sua lista de IPN’s nenhum, nada, ninguém, nunca e n-nenhum no que diz respeito a itens, mas nada diz o autor sobre o ainda; as locuções são inúmeras. É nesse contexto que se insere este 7 Essa é uma interpretação minha, e que, posteriormente, testada com os falantes, dividem-se quanto à aceitabilidade de patavina e bulhufas no afirmativo. A maior parte daqueles que aceitam os termos patavina e bulhufas no afirmativo o fazem dada uma entonação centrada no termo, indicando ênfase. A literatura já apontou a relação da polaridade negativa com a ênfase (ver Krifka, entre outros), mas esse é, ainda, um trabalho a ser feito. 19 trabalho: nosso interesse é determinar se ainda deve ou não continuar pertencendo à lista de IPNs no PB. Os itens de polaridade negativa se comportam da mesma forma que as locuções e por isso são facilmente identificáveis quando feito o teste padrão: ao comparar a sentença negativa com a afirmação simples, constata-se que há um claro contraste de aceitabilidade entre elas. Vejamos os exemplos com o sequer: (15) Não encontramos (nem) sequer um aluno na rua. (16) ?? Encontramos sequer um aluno na rua8. Há uma clara preferência pelo contexto negativo expresso em (15), em que o item se combina com a forma mais prototípica de negação – o não –, ou com palavras que contenham embutida a negação, isto é, nem, nada, ninguém, entre outros. Perceba que a sentença (16) causa, no mínimo, estranhamento, em particular se lida com uma curva entoacional normal. Uma maneira de explicar essa assimetria é imaginar que o bloqueio é sintático, pois o item não está no escopo de uma negação direta e essa é a proposta de Linebarger (1987), posteriormente, apresentada neste trabalho. Há casos, porém, nos quais esses mesmos itens, que preferem um contexto negativo, ocorrem em contextos positivos sem afetar a aceitabilidade, mas não em todos eles, indiscriminadamente. E essa é a grande questão do texto de Ilari (1984) e que se faz até hoje: quais as condições de licenciamento para tais ocorrências? Isto é, quais são os contextos em que certas locuções e itens, que ocorrem preferencialmente na negação, podem também ocorrer? O que há em comum entre esses contextos? Como veremos, é complexa a distribuição desses itens. Várias são as teorias que tentam explicar a sua distribuição para o inglês. Algumas delas são: acarretamento decrescente, proposto por Ladusaw (2002 [1980])) e modificado por Heim (1987 apud LADUSAW, 2002), com a noção de acarretamento decrescente restrito, a nãoveridicidade, levantada por Giannakidou (2001), a escala, por Fauconnier (1975 apud ILARI, 1984) e uma proposta sintático-pragmática, por Linebarger (1987), em que os pertencentes à classe da polaridade negativa ocorrem na Forma Lógica sob o escopo de uma negação. Algumas dessas teorias estão descritas no artigo de Ilari (1984) que também selecionou alguns contextos que, apesar de não serem negativos, licenciam a ocorrência dessas locuções. Na próxima seção, apresentamos esses contextos. 8 Essa sentença está desconsiderando a leitura com ênfase no item, pois, como dissemos, a ênfase pode interferir na aceitabilidade da sentença. 20 3 CONTEXTOS LICENCIADORES Apresentamos, abaixo, os contextos licenciadores, seguindo a classificação e nomenclatura apresentadas em Ilari (1984), embora os exemplos sejam de nossa autoria para melhor visualização de uma mesma expressão de polaridade negativa nos variados contextos: 1. Períodos hipotéticos ou condicionais: - Reais. (17) Se ela deu um pio, coloco-a no olho da rua. - Para realçar causalidade. (18) Se ela deu um pio, foi porque estava muito louca. - Irreais/condicionais contra-factuais. (19) Se ela tivesse dado um pio, seria uma mulher morta. - Que remetem ao futuro. (20) Se ela der um pio, vou pegá-la e dar uma tamina de pau. 2. Subordinadas: - Concessivas irreais. (21) Mesmo que ela tivesse dado um pio contra o réu, não faria diferença. - Temporais, remetendo ao passado; ao futuro ou centradas no presente. (22) No dia em que ela deu um pio todos abriram os olhos. 3. Orações causais com só porque, bastou P para Q: (23) Só porque ela ficou com raiva, bastou passar numa delegacia para dar um pio. 4. Integrantes com verbos de dúvida (é pouco provável que), factivos ou de dizer: (24) Duvido que ela tenha dado um pio sobre o assunto. 5. Interrogativas, diretas e indiretas, retóricas ou não: (25) Ela deu um pio sobre o assassinato? (26) Às vezes ainda faço a pergunta se ela deu um pio sobre a traição da amiga. 6. Condicionais hiperbólicos: (27) Se ela tiver um tostão furado, eu sou a mulher mais rica do Brasil. 21 7. Orações comparativas: (28) Da mesma forma que ela tem um tostão furado, eu sou a mulher mais rica do Brasil. Ainda com relação aos contextos, Ilari demonstrou que uma locução de polaridade negativa, além de ocorrer nas negativas, também ocorre em certos contextos afirmativos. Mas, uma mesma locução de polaridade negativa não tem comportamento homogêneo diante de todos os contextos sintático-semânticos afirmativos, considerados licenciadores. Para comprovar esse comportamento múltiplo, Ilari desenvolve duas séries de um mesmo exemplo de LPN que ocorre naturalmente num dado contexto afirmativo licenciador (29a), mas que, em um outro contexto, também licenciador, perde a idiomaticidade (29b). A seguir está uma pequena amostra retirada dos oito exemplos mencionados em Ilari. Os contextos licenciadores são os períodos hipotéticos que remetem ao futuro (29a) e as subordinadas temporais remetendo ao passado (29b): (29) a. Se ela der um pio, sua vida estará ameaçada. b. # Todos assinaram suas sentenças de morte quando deram um pio. Repare que em (29b) o sentido mudou, passou a ser uma sentença afirmativa, e, além disso, a expressão também perdeu a interpretação idiomática. Por outro lado, em (29a) permaneceu a interpretação negativa e a idiomaticidade da locução idiomática. Esse é um caso de uma mesma LPN não poder ocorrer em dois contextos licenciadores, sem que uma perca sua interpretação e idiomaticidade. 4 PROPOSTAS DE EXPLICAÇÃO PARA O LICENCIAMENTO Uma hipótese apresentada por Ilari para explicar a distribuição das LPNs, também aventada posteriormente por outros autores como Linebarger (1987), é a de haver uma negação na representação semântica das sentenças, ou seja, um operador de negação na estrutura profunda das sentenças sob cujo escopo estariam as LPNs. Porém, de acordo com Ilari, essa hipótese não se sustenta em exemplos como: 22 (30) Ignoro que ele tenha tirado um tostão do bolso. É difícil encontrar uma paráfrase para esse exemplo. A semântica corrente para ignorar é não sei, não ter conhecimento de algo, desconhecer. No entanto, há duas interpretações para (30), [não sei se ele tirou um tostão do bolso] ou [sei que ele não tirou um tostão do bolso], nesse último caso, a negação está atuando sobre a sentença com a LPN, ou seja, a LPN está diretamente sob o escopo da negação, porém, a semântica do ignorar passou a ser sei que não, o que é estranho. Essa semântica não capta nossa intuição para (30) que é [não sei se ele tirou um tostão do bolso], o que contrariaria a hipótese inicial de que as LPNs deveriam estar sob o escopo direto da negação, pois nessa interpretação a negação atua na sentença principal. Assim, Ilari descarta a solução da negação encoberta. Outra possível explicação, aventada por Fauconnier (1975 apud ILARI, 1984) para o inglês, é a presença de uma escala. Nessa abordagem, os itens de polaridade negativa são os chamados minimizadores, que vem para estabelecer uma ordem, uma graduação, indicando o ponto mais baixo da escala. Os exemplos abaixo retratam claramente isso: (31) João não abriu a boca na reunião. (32) Maria não sofreu um arranhão durante a briga. (33) João não mexeu um dedo para ajudar na mudança. Há nos exemplos uma escala que vai do menor para o maior, ou do ponto mínimo ao máximo, isto é, se João não abriu a boca, que é o mínimo que poderia ser feito, ele não se manifestou, não argumentou, e tanto menos assumiu um ponto de vista. Assim também acontece com não sofreu um arranhão; que indicaria o mínimo machucado que se pode sofrer, quanto mais um ferimento mais grave, um hematoma; e, da mesma forma, em não mexeu um dedo para ajudar, se não fez nem isso, não mexeu os braços, não carregou algo pesado, entre outros. Itens de polaridade negativa indicariam, então, o grau mínimo de uma escala. Contudo, Ilari afirma que essa teoria da escala não se aplica de maneira geral porque Fauconnier (1975 apud ILARI, 1984) considera os IPNs como quantificadores não padrão, mas nem todas as LPNs podem ser tratadas como quantificadores, pois nem todas apresentam 23 o mesmo comportamento. Por exemplo, nem cheira e nem fede, tirar um tostão do bolso e flor que se cheire não podem ser considerados quantificadores9. E, por fim, Ilari (1984, p. 97) dá algumas pistas finais de mais algumas LPNs e também do item que é o objeto de estudo desta dissertação, o ainda : Há inúmeras locuções não listadas até aqui neste trabalho, que são provavelmente LPNs, e que precisariam ser analisadas uma a uma [..] não poupar, medir sacrifícios (compare “ele poupou sacrifícios”, diferente de poupar energias), [...] ainda (compare o carteiro ainda / * já não veio) [...]. Ilari não se detém nos sintagmas isolados, nas partículas únicas de polaridade negativa. Esse tema aparece em Mendes de Souza et al (2007) com a problemática se há itens de polaridade negativa no português brasileiro. Pela carência de trabalhos acerca do tema para o português, os autores buscaram investigar prováveis candidatos como qualquer, sequer, ainda, o que quer que seja e N-algum. Descartaram alguns, discutiram sobre sua distribuição, suas restrições e chegaram à conclusão de que o sequer e o ainda, e talvez o N-algum são itens de polaridade negativa. Observe nos exemplos abaixo a clara preferência por contexto negativo e o respectivo contraste no positivo: (34) a. Eu não encontrei sequer uma pessoa na rua. b. * Eu encontrei sequer uma pessoa na rua. (35) a. João não tem dinheiro algum para comprar comida. b. * João tem dinheiro algum para comprar comida. (36) a. João ainda não comprou o presente de sua esposa. b. # João ainda comprou o presente de sua esposa. Pelo que foi visto, através desses últimos exemplos, a clara preferência pelos contextos negativos não é exclusividade das expressões, ela se estende aos itens também. Embora fosse demonstrado que esses contextos não sejam os únicos, pois esses itens e expressões também ocorrem em contextos positivos, mas não em todos, indiscriminadamente, até esse momento nenhuma proposta abarcou todas as ocorrências. Por isso, adiante serão 9 No entanto, talvez seja possível encontrar uma escala em cada um deles, sempre do menor para o maior, com isso, a idéia de que os IPNs indicam o ponto mínimo de uma escala não é de toda descartável e a demonstração de como isso acontece ficará para um trabalho futuro. 24 vistas outras propostas que tentem explicar a distribuição destes itens de polaridade negativa para o inglês e verificar se se aplicam ao PB. 4.1 LADUSAW E A PROPOSTA DO ACARRETAMENTO PARA BAIXO Sobre os itens10 de polaridade negativa, a não ser esta alusão ao ainda, Ilari (1984) nada mais mencionou, mas são eles o foco dos trabalhos em outras línguas. Ladusaw (2002 [1980]), um dos precursores no assunto, tenta explicar a distribuição dos itens lexicais como any, ever, yet e anymore, em inglês, primeiramente através da classe dos affective11, contextos licenciadores dos itens de polaridade negativa. Klima (1964 apud LADUSAW, 2002, p. 459) outrora já fizera uma generalização incluindo esses contextos: “As sentenças que contém itens de polaridade negativa poderão ser aceitáveis somente se elas forem c-comandadas por uma expressão affective” 12. Fazem parte dessa classe: • Determinantes: no one (ninguém, que por si só já é uma palavra negativa), at most three people (no máximo três pessoas), few students (poucos estudantes); • advérbios quantificacionais: never (nunca), rarely (raramente), seldom • preposições: against (contra); • conjunções adverbiais: before (antes de), if (se); • adjetivos: hard (difícil), difficult (difícil, duro); • verbos: doubted (duvidar), denied (negar), refused (recusar), forgot (raro); (esquecer); • 10 palavras com grau: much expert (muito esperto). Quando se menciona itens, é relevante lembrar que se trata de partículas, sintagmas únicos, não se incluem aqui as expressões e locuções. 11 Termo que pode ser traduzido por afetadores, aqueles que afetam em português ou deflagradores, mas manteremos a nomenclatura do inglês. 12 Do original de Ladusaw (2002 [1980])): “A sentence which contains negative-polarity items can be acceptable only if they are c-commanded by an affective expression”. 25 Os contextos acima licenciam os itens de polaridade negativa, contudo, não abarcam todas as ocorrências. Além disso, essa lista não está completa, o que se confirma com Fauconnier (1975 apud LADUSAW, 2002) quando observou que os contextos affectives poderiam ser frases nominais, bem como superlativos quantificacionais, conforme se observa nos exemplos13 abaixo: (37) John can solve the hardest problem. (João pode resolver o problema mais difícil) (38) John can solve any problem. (João pode resolver qualquer problema). Nesses casos, há um acarretamento, se João pode resolver o problema mais difícil, ele pode resolver o médio e o mais simples, logo, ele pode resolver qualquer problema. Por exemplo, (37) reporta ao topo da escala (o problema mais difícil): problema mais difícil problema médio __________problema fácil_____ Figura 1 – Escala É nesses contextos que os itens de polaridade negativa são licenciados: “An expression is affective iff it licenses inferences in its scope from supersets to subsets” (KLIMA, 1964 apud LADUSAW, 2002, p. 463), ou seja, o acarretamento deve acontecer de superconjuntos para subconjuntos (acarretamento decrescente ou para baixo). Affectives criam contextos de acarretamentos decrescentes e é por meio disso que Ladusaw tenta explicar a distribuição dos IPNs, no inglês, através da propriedade da monotonicidade decrescente, conforme as generalizações abaixo: “A negative-polarity item is acceptable only if it is interpreted in the scope of a downward-entailing expression”. (p. 467) “An expression x is downward-entailing (affective) iff its denotation x’ is a monotone decreasing function”. (p. 467) Isso se verifica no caso dos affectives not (não) e no (nenhum) nos exemplos abaixo: 13 Os exemplos foram retirados de seus textos originais em inglês. 26 (39) a. John isn’t a man. João não é um homem. b. John isn’t a father. João não é um pai. (40) a. No man walks. Nenhum homem caminha. b. No father walks. Nenhum pai caminha. Em (39), se João faz parte do conjunto dos que não são homens, ele também pertence ao subconjunto dos que não são pais, por isso, (39a) acarreta (39b). Estamos inferindo do conjunto para o subconjunto, por isso é decrescente. O exemplo (40) caracteriza um caso de quantificador generalizado (BARWISE; COOPER, 1981), em que o nenhum é um predicado de dois argumentos que estabelece uma relação entre conjuntos. Esse quantificador estabelece uma relação monotônica decrescente tanto para o primeiro quanto para o segundo argumento. Como pode ser verificado pelo fato de que (40a) acarreta (40b), a extensão do sintagma nominal pai (primeiro argumento) está dentro de um conjunto maior denotado por homem em (40a), caracterizando, assim, um acarretamento para baixo. Desse modo, se não há nenhum homem fazendo parte do superconjunto dos homens que caminham, logo, não há nenhum pai fazendo parte do subconjunto dos pais que caminham, (nenhum homem caminha acarreta nenhum pai caminha). Caso semelhante é o que verificamos com o segundo argumento, o sintagma verbal walks (caminha) denota um superconjunto que inclui diferentes tipos de eventos de caminhar, demonstrado na sentença abaixo: (41) a. No man walks Nenhum homem caminha. b. No man walks slowly. Nenhum homem caminha devagar. Note que também nesse caso há acarretamento para baixo de (a) para (b), caminhar devagar é um subconjunto de caminhar. Assim, se (41a) é verdadeira, (41b) é um acarretamento. Da mesma forma, se o conjunto dos homens que caminham é vazio, assim 27 também o é o subconjunto dos homens que caminham devagar, logo (41a) acarreta (41b). Porém, se retirarmos os affectives, os acarretamentos de (a) para (b) não acontecem mais: (42) a. João é um homem. b. João é um pai. (43) a. Um homem caminha devagar. b. Um pai caminha devagar Diante disso, se confirma a generalização de Klima (1964 apud LADUSAW, 2002, p. 463): "Uma expressão é um affective se e somente se licenciar inferências no escopo de superconjuntos em subconjuntos"14. Porém, Ladusaw (2002) mostra que acarretamentos não acontecem somente se tiverem a presença explícita de afetivos, os IPNs podem ocorrer em antecedentes de sentenças condicionais sem os afetivos, como nos exemplos em (44) retirados do próprio autor: (44) a. If anyone ever discovers the money is missing, then John will return it. Se alguém alguma+vez descobrir o dinheiro está faltando, então John FUT-restituir item catafórico. b. * If John doesn’t return it, then anyone will ever discover that the money is missing. Se John PRES-não descobrir expletivo, então alguém FUT-descobrir alguma+vez que está faltando. A agramaticalidade de (44b) justifica-se pelo fato de que o item de polaridade ever ocorre no segundo argumento do condicional, em que não há acarretamento decrescente e sim crescente. A sentença (44a) é boa, porque o antecedente de um condicional é, para Ladusaw (2002), um contexto de acarretamento decrescente. Dessa maneira, o autor salva a sua generalização: ampliando o conceito de acarretamento decrescente para o antecedente e conseqüente de condicionais. Porém, como veremos adiante, antecedentes de condicional não constituem contexto de acarretamento decrescente. Como foi visto, as locuções negativas, exploradas no texto de Ilari, ocorrem em alguns contextos positivos, mas não em todos. A hipótese do acarretamento decrescente consegue apreender os contextos que licenciam as LPNs? Essa é uma questão discutida em Mendes de 14 Consta no original em Ladusaw: “An expression is affective iff it licenses inferences in its scope from supersets to subsets”. 28 Souza et al (2007), mas não concluída, pela dificuldade de se esclarecer se o contexto é ou não de acarretamento para baixo (prova de que isso ocorre é o fato de não haver consenso na literatura acerca desse tema). O antecedente de condicionais, contexto considerado por Ladusaw monotônico decrescente (MD), comporta-se dessa maneira somente quando se adota a hipótese de que a semântica do se nas línguas naturais é uma implicação material (→), representada abaixo: (45) Se João corre maratonas, então ele anda. João corre maratonas → ele anda. Mas sabemos que o se nas línguas naturais não é uma implicação lógica. Segundo Pires de Oliveira (2001), a implicação material ou lógica da expressão se...então não corresponde a nossa intuição corriqueira, principalmente nos casos em que o antecedente é falso, pois, nesses casos, não importa o valor de verdade do conseqüente, a sentença resultante sempre será verdadeira. Por exemplo, a sentença em (45) é verdadeira se é o caso de que João não corre maratonas, independentemente de ele andar ou não; basta que ele não corra maratonas. Entretanto, não é essa a nossa intuição, a nossa intuição é a de que se João corre maratonas é porque ele anda, se ele não corre maratonas, a sentença é verdadeira independentemente de ele andar ou não. Logo, o se nas línguas naturais não é uma implicação material, mais argumentos a respeito disso estão nos capítulos 10 e 11 de Pires de Oliveira & Mortari (2007). Se o antecedente de um condicional fosse um contexto de MD, esperaríamos que não houvesse alteração quando adicionamos alguma informação ao antecedente. No entanto, há inúmeros casos em que a inferência a partir do reforço do antecedente não funciona. Comprove nos exemplos abaixo: (46) a. Se João ganhar um carro, João vai ficar feliz. b. Se João ganhar um carro roubado, João vai ficar feliz. Embora (46a) possa ser verdadeira, não é o caso de que dela podemos inferir (46b). Nesse caso, se João ganhar um carro roubado, não acarreta que ele vai ficar feliz, mas deveria acarretar se o se fosse uma implicação material e um contexto de acarretamento decrescente, por isso essa não pode ser a semântica do se. Pode-se, ainda, encontrar alguns casos em que a inferência a partir do reforço parece funcionar, conforme o exemplo abaixo: 29 (47) Se João acertar pelo menos, 90% da prova do vestibular, ele passa em medicina. O caso (47) parece ser um monotônico decrescente, pois se João acertar pelo menos 90% da prova acarreta que ele passa em medicina, porém, se ele, verdadeiramente, o fosse, no caso de reforçarmos o seu antecedente (pelo menos 90% da prova), deveria continuar sendo, mas não é isso que acontece: (48) Se João acertar, pelo menos, 90% da prova do vestibular, mas zerar na redação, ele passa em medicina. O antecedente com o reforço (mas zerar na redação em (48)) não acarreta que João passe em medicina. Por isso a literatura tem apontado que antecedentes condicionais são dependentes do contexto e podem ser enriquecidos por ele. O problema dos contextos de MD não se centra somente nos condicionais, mas também nas sentenças genéricas, nos comparativos e nas perguntas diretas. As sentenças genéricas expressam padrões, regularidades. Segundo Müller (2001, p. 154) as sentenças genéricas se subdividem em dois grupos: As línguas naturais fazem uso de dois mecanismos distintos para expressar genericidade: expressões de referência a espécie – expressões que denotam diretamente uma espécie, e quantificação genérica sobre sentenças – sentenças sob o escopo de um operador de genericidade. Nas sentenças genéricas incluídas no mecanismo referente à espécie, os predicados, como estar extinto, são preenchidos por expressões relacionadas à espécie como A baleia. As “sentenças genericamente quantificadas contém um operador relacional genérico (GEN) que toma duas sentenças, uma restrição e uma matriz” (MÜLLER, 2001, p. 159), de maneira que o operador liga os dois predicados. As sentenças genéricas são estativas e não episódicas, a menos que o predicado episódico faça referência à espécie. Observe o exemplo (51), em que temos uma sentença genérica com quantificação encoberta15: (49) Cachorro tem 4 patas. (50) Cachorro que sofreu uma amputação tem 4 patas. 15 Exemplo retirado do texto de Mendes de Souza et al (2007). 30 As sentenças genéricas que são consideradas contextos de MD nem sempre se mantém. Por exemplo, em uma primeira interpretação, (49) acarretaria que cachorro com rabo tem 4 patas ou cachorro com manchas tem 4 patas. Na maioria desses exemplos, o acarretamento decrescente acontece, pois, simplificadamente, em geral qualquer outra propriedade que caracterize o cachorro faz parte do conjunto cachorro de 4 patas, por exemplo, cachorros com manchas. Porém, o acarretamento não se mantém em (50), que certamente é falsa; logo, sentenças genéricas não são contextos MD, mas elas licenciam as LPNs. Dessa forma, a proposta de licenciamento de Ladusaw não dá conta de abarcar todas as situações. Por isso, Heim (1987 apud LADUSAW, 2002) propõe que o acarretamento para baixo tenha um papel no licenciamento dos IPNs, mas que ele seja limitado (acarretamento decrescente limitado), que haja um reforço dentro dos limites de uma escala, disparada pelo item e com a ajuda do fundo conversacional compartilhado, isto é, estabelecemos acarretamentos dentro de parâmetros bem delimitados contextualmente, considerando apenas os casos que sabemos pragmaticamente serem relevantes. (51) Se você der um pio, ele te mata. (52) Se você der um pio, mas não falar sobre o seqüestro, ele te mata. (53) Se você der um pio e falar sobre o seqüestro, João te mata. A escala é, supostamente, disparada pela expressão de polaridade negativa dar um pio, que seria o mínimo da escala, percorrendo-a, nos degraus acima estão mencionar, falar, gritar sobre o seqüestro. Então, se você der um pio, que é o ponto mais baixo da escala e subir mais um grau na escala, falar do seqüestro acarretará João te mata. No entanto, (52) não é acarretada por (51), pois o acréscimo que houve não estava dentro dos limites da escala, ou seja, não falar do seqüestro não estava dentro do fundo conversacional compartilhado que acarretaria o assassinato. Convém ressaltar a importância do fundo conversacional compartilhado, pois, sem ele, a escala não poderia ser depreendida. Contudo, Mendes de Souza et al (2007) apontam que mesmo que o MD seja apoiado pelo contexto ele não explica todos os casos, como por exemplo, as perguntas diretas (54) e as comparativas (55), exemplificadas abaixo: (54) Por que que a Maria foi abrir a boca sobre o assunto, você sabe? (55) Pelo menos a Maria é mais flor que se cheire que a Ana. 31 Como se pode verificar nas sentenças (54) e (55), não há acarretamento crescente nem decrescente e, mesmo assim, as LPNs e os IPN’s ocorrem sem ser em um contexto negativo. Contudo, o MD serve como teste para averiguar se um item é ou não de polaridade negativa. Basta testar se um dado item ocorre em monotônicos crescentes, verificada a ocorrência, comprova-se que não é um IPN. 4.2 A VERIDICIDADE Assim como o acarretamento, a veridicidade também foi outra proposta de tratamento levantada por Zwarts (1995 apud GIANNAKIDOU, 2001), mais tarde utilizada por Giannakidou (2001) para os itens de polaridade do grego. A autora sustenta a possibilidade dos IPNs não serem licenciados no escopo de um operador verídico; logo, IPNs ocorrem somente sob o escopo de um operador não verídico (o que inclui os averídicos). Observe a definição de veridicidade16. Um operador: também; • É verídico sse Op acarreta p, isto é, sempre que Op é V, então p É V • É não-verídico sse Op não acarreta p, isto é, sempre que Op é V, p pode ou não ser V; • um operador não-verídico Op é averídico se Op → ~p é logicamente válido. Um exemplo de operador verídico é ontem, de um não verídico, talvez e de um averídico, não. Repare o contraste entre os exemplos (56) e (57): (56) Talvez Maria tenha dormido. (57) Maria jamais casou. Em (56), parece haver uma dúvida se Maria dormiu ou não, logo, a verdade de (56) não acarreta que Maria dormiu; ela pode ou não ter dormido, logo, talvez é um operador nãoverídico. Contudo, em (57) há certeza de que Maria não casou; logo, jamais é um operador 16 Giannakidou (2001, p. 671) apresenta: Let Op be a propositional operator. The following statements hold: (i) Op is veridical just in case Op p → p is logically valid. Otherwise, Op is nonveridical. (ii) A nonveridical operator Op is antiveridical just in case Op p → ¬ p is logically valid. A tradução foi retirada de Mendes de Souza et al (2007). 32 averídico. Os IPNs, a princípio, nas amostragens estudadas por Giannakidou (2001) do grego, ocorreriam nos contextos semelhantes a (56) e (57), mas não em contextos verídicos como exemplificados abaixo, em que se (58a) é verdadeira, (58b) é necessariamente verdadeira. (58) a. Maria dormiu ontem. b. Maria dormiu. Ao confrontar os contextos licenciadores, citados em Ilari (1984), à noção de veridicidade, Mendes de Souza et al (2007) concluíram que muitos deles são não verídicos como os períodos hipotéticos, verbos de dúvida, interrogativas indiretas, condicionais, entre outros. No entanto, as comparativas são verídicas e licenciam IPN’s, conforme exemplo abaixo, apresentado por Giannakidou (2001), nas comparativas não equativas, aquelas em que a primeira parte da sentença não é igual à segunda, exemplo: (59) John run faster than anyone had expected. João PASS-correr rápido MORF-mais do que qualquer+um PASS-ter esperava. No PB, Marques (2003 apud MENDES DE SOUZA, 2006) refere-se ao licenciamento de sintagmas-n em comparativas com o seguinte exemplo: (60) A Maria trabalha mais do que ninguém. Como vimos anteriormente, os sintagmas-n como ninguém também são considerados IPN’s fortes por alguns autores, exemplo Zwarts (1995 apud GIANNAKIDOU, 2001) e Rocha (1992), por isso (60) é um exemplo de comparativa em que o IPN ocorre. O problema é que as comparativas são contextos verídicos. A proposta elaborada inicialmente por Zwarts (1995 apud GIANNAKIDOU, 2001), mas explicitada por Giannakidou (2001), explica que os IPN’s são licenciados nas comparativas não equativas porque possuem uma implicatura negativa, mas não explica nem por que nem como ela ocorre. Nesse caso, teríamos que explicar (60) como veiculando: Maria trabalha mais do que todo mundo não trabalha. Isso sem falar que há outros contextos verídicos em português e também em outras línguas em que os IPNs se distribuem, como os abaixo: (61) Foi só ele dar um pio que tirou o pai da cadeia. 33 (62) O silêncio dele é mais importante para mim do que ele dizer uma palavra. (63) Por que será que João abriu a boca na aula de ontem? Esses são contextos verídicos e, mesmo assim, os itens de polaridade negativa são licenciados. Portanto, a veridicidade, como foi atestada em Mendes de Souza et al (2007) também não abarca todas as ocorrências de locuções e itens de polaridade negativa. 4.3 O AINDA Mesmo não havendo uma proposta única para o licenciamento dos IPNs, foi possível distinguir, conforme Mendes de Souza et al (2007), no português o sequer, o ainda e talvez o N-algum, como IPN, desconsiderando, assim, o qualquer e o que quer que seja. Ilari (1984) apresentou indícios de que o ainda fosse integrante da classe referida. Como já dissemos, a partir disso, surgiu o interesse de melhor entendermos esse item lexical que se mostra um forte candidato a pertencer à classe dos itens de polaridade negativa, conforme os exemplos: (64) João ainda não comprou seu presente. (65) # João ainda comprou seu presente. Na comparação entre a sentença afirmativa e a negativa, parece que a primeira é preferida, há um contraste de aceitabilidade entre as duas sentenças e (65) só será aceita, aparentemente, se se assumir uma interpretação não temporal (que consideramos ser a interpretação “default”), distinta de (64): além de ter feito outras coisas, João comprou seu presente. O que importa notar é que (65) não é a afirmação de (64), mas, dessa forma, parece que o ainda é um item de polaridade negativa, como concluíram Mendes de Souza et al (2007) e isso, em discussão, será aprofundado no próximo capítulo. Contudo, em uma análise mais específica do item, sua aceitabilidade quando combinado com verbos nas mais variadas formas verbais e de diferentes acionalidades foi testada, com e sem a negação explícita, e obtivemos evidências de que o ainda pode ocorrer em sentenças afirmativas com sentido temporal, sem comprometer a gramaticalidade das sentenças, conforme estudo desenvolvido em Lemos Gritti & Pires de Oliveira (2007). Por exemplo: 34 (66) João ainda ama Maria. (flexão de tempo presente e predicado de estado) (67) Maria ainda costura o vestido. (flexão de tempo presente e predicado accomplishment) (68) João ainda está brincando. (presente semântico e predicado de atividade) (69) João ainda alcançava o pico do Everest. (pretérito imperfeito e predicado achievement) (70) João ainda vai brincar. (tempo futuro e predicado de atividade) (71) João ainda vai amar Maria. (tempo futuro e predicado de estado) (72) João ainda será um médico um dia. (tempo futuro e predicado de estado) Perceba que não há negação explícita. Logo, à primeira vista, surge a questão: então ele não é um item de polaridade negativa? Analisando as interpretações de cada sentença, na maioria dos casos, parece haver uma negação implícita, que pode se apresentar na forma de uma expectativa negativa. Isso pode ser visto na série acima. Por exemplo, em (66) parece haver uma expectativa de que João não estivesse mais amando Maria. Haveria, então, uma negação implícita licenciando esse item? Por conta desses indícios de interpretação negativa, o ainda temporal continua com características dos itens de polaridade negativa, pois Linebarger (1987), em casos semelhantes a esses da série acima, entende que há uma restrição pragmática: trata-se de uma implicatura negativa. Antes disso, contudo, é necessário também fazer uma distinção dos diferentes usos do ainda conforme a necessidade já verificada em (65), caso em que há uma leitura não temporal, e centralizar a análise no temporal. Este é o objetivo do próximo capítulo. 35 CAPÍTULO II AINDA: UM NOVO PONTO DE VISTA 1 INTRODUÇÃO O principal objetivo deste capítulo é responder se o ainda é um item de polaridade negativa. Antes disso, na seção 2, há alusão a estudos sobre o ainda no português, não necessariamente em semântica, que já apontam para vários usos de ainda; e a seção 3, de grande relevância, demonstra que o item lexical ainda não apresenta a mesma interpretação em todas as sentenças, como verificado em (65) retomado aqui: (73) #17 João ainda comprou seu presente. A leitura não temporal, encontrada em (73), assim como a temporal, que identificamos nos demais exemplos do capítulo anterior, não são as únicas. Por isso, este capítulo também visa à identificação dos usos de ainda e à distinção em três tipos. Em seguida, na seção 3.1, a caminho da unificação dos usos, demonstramos que a contra-expectativa é característica comum a todos os usos. O objetivo da seção 3.2 é centralizar na análise do ainda temporal, verificar sua distribuição e suas restrições, por isso a seção 3.1.1 discute onde o ainda não ocorre com a leitura temporal e quais as razões para essa não-ocorrência. Quem também apresenta leitura temporal é o já que, supostamente, é considerado um par do ainda por vários estudos no PB e também em outras línguas, por isso a seção 4 questiona se, verdadeiramente, esses itens formam uma dupla de oposição. O capítulo finaliza com a questão das expectativas que o ainda aciona, revelando se elas são mesmo negativas e, se de fato influenciam na questão da polaridade negativa. A conclusão do capítulo é que o ainda não é um item de polaridade negativa, contrastando com a sugestão de Ilari (1984) e afirmação de Mendes de Souza et al (2007). 2 FUNCIONALISMO – RETOMADA HISTÓRICA 17 Lembrando que o sinal # continuará sendo colocado para representar uma leitura não-temporal. 36 Até onde pudemos verificar, não há análises mais propriamente semânticas do ainda no PB. Há, no entanto, estudos de cunho funcionalista, para o qual apresentamos Martelotta (1996) e Longhin-Thomazi (2005) e análises semânticas de correspondentes do ainda em outras línguas, tais como Löbner (1989, 1999) e van der Auwera (1993), que serão apresentadas no próximo capítulo, dentre outros que não serão discutidos. Por haver nas línguas itens que, embora pareçam ser pequenos, são de natureza complexa e apresentam um uso bastante diversificado, há necessidade de estudos minuciosos e esse parece ser o caso do ainda, termo que assume usos diversificados com características de classes distintas. A maior parte dos dicionários considera o ainda com sentido de até agora, até o momento, algum dia (futuro). O dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (2001) dispõe uma lista de sentidos que o ainda pode assumir: 1. Até agora, até este momento (presente). 2. Até então, até aquele momento (passado). 3. ainda agora, agora mesmo; em tempo recentíssimo (passado). 4. Até lá, até esse tempo (futuro). 5. Um dia, algum dia (futuro). 6. Usado para dar continuidade à ação. 7. Além disso, também, mais. 8. Ao menos, pelo menos. 9. mesmo até inclusive. Ainda assim, não obstante, apesar disso, ainda bem (interjeitivo), ainda quando, ainda que, mesmo que, mas também. Essa definição segue uma seqüência: primeiramente, há a explicação do uso temporal do termo, do uso argumentativo e, por fim, uma explicação do uso semelhante ao das conjunções. Esse dicionário tenta abarcar os usos distintos do item. Isso quer dizer que é necessário identificar esses usos nas sentenças e investigar se o tratamento dado a um deles pode se estender aos demais ou se cada um possui a sua própria identidade. Neste trabalho, privilegiaremos o uso temporal por razões que ficarão mais claras adiante. Algumas Gramáticas Tradicionais como a de Cunha (1971) e Terra (2002) em vez de apresentarem todos esses usos, consideram somente o caráter temporal do item, encaixando-o na classe dos advérbios ou adjuntos adverbiais de tempo, conforme o exemplo abaixo: (74) Caubi saiu para ir à sua cabana, que ainda não tinha visto depois da volta. Nesse exemplo, de José de Alencar, retirado de Cunha (1971), o ainda é considerado um adjunto adverbial de tempo e também colocado na lista dos advérbios de tempo. Quando muito as gramáticas citam a locução ainda que como pertencente à classe das conjunções. Sem nenhuma alusão ao caráter discursivo ou argumentativo que o item pode carregar e também sem uma análise detalhada da semântica do uso temporal. Porém, vale ressaltar que gramáticas mais atuais como Bechara (2005) mencionam que o ainda mesmo, entre outros 37 advérbios, apresentam relações textuais, certas aproximações e identidades semânticas com as conjunções, conforme o exemplo dele: (75) Nunca perdemos de vista o nosso interesse, ainda mesmo quando nos inculcamos desinteressados. Mas, novamente, nada dizem sobre a sua semântica. Os trabalhos funcionalistas sobre o ainda consideram essa contraparte argumentativa, em que o ainda se assemelha ao papel das conjunções. Martelotta (1996) afirma que há um contraste entre as frases marcadas por já e ainda e o que foi dito imediatamente antes e que, além disso, há um contraste também com relação à expectativa do ouvinte, uma tensão entre o ponto de vista do falante e a expectativa do ouvinte. O autor analisou entrevistas e nelas foram encontrados três casos de ainda: - ainda marcador de contra-expectativa: (76) Agora, moda de um modo geral... agora, essa coisa... adoro essa moda. Se eu fosse moça, eu adoraria usar, eu acho descontraído, eu acho fabuloso, porque eu ainda tenho ainda aquela coisa de querer combinar sapatinho com bolsa..Ainda guardo essas coisas, mas para a juventude eu acho fabulosa essa moda. A contra-expectativa pode ser de fundo cultural, como é o caso da moda nesse exemplo, do falante ou do ouvinte. Nesse grupo, Martelotta (1996) encaixa o uso temporal que está estritamente relacionado às expectativas. - ainda inclusivo: (77) Agora, no Paraná predomina o pinho. O pinheiro, não é? [...], mas eu acho que a vegetação é constituída de uma mata rala, não é? [...] temos ainda uma vegetação que é muito conhecida dos brasileiros lá do Nordeste, que também é uma mata rala.. Esse uso é semelhante ao termo também, com função argumentativa de incluir novas informações, nesse grupo, o autor também encaixa o uso do termo que pode ser substituído por ainda por cima. - ainda intensificando advérbio: (78) [...] Não também, graças a Deus. Ainda bem, não é? 38 Esse terceiro grupo determinado por Martelotta (1996) abarca o uso do ainda incidindo sobre outro advérbio e intensificando-o, nele se encaixam usos que são substituídos por ainda agora, ainda hoje, ainda ontem, ainda mais, entre outros. Contudo, quando se trata do ainda mais, fica evidente a semelhança com as características do segundo grupo – o inclusivo –, por também haver a inclusão, demonstrada em (77). Essa união do ainda + o advérbio (mais) só é utilizada em casos em que se acrescenta algo e muitas vezes pode ser substituído por principalmente, mas não em todas, como se verifica no exemplo (77) em que não há essa substituição pelo principalmente. Já no caso do ainda bem, essa inclusão é mais difícil de ser encontrada, como, por exemplo, ainda bem que nos encontramos, o que se torna mais saliente é o encontro não esperado. Também em ainda ontem falamos de vocês, há a idéia de uma conversa não esperada, assim como a referência ao tempo, o que os incluiria também no primeiro grupo do Martelotta – marcador de contra-expectativa. (80) é possível estar inserida em um contexto em que a sentença marque uma contra-expectativa (ainda bem que não foi, não comeu, não desapareceu, entre outros, o que era esperado). Esse parece ser o caso de resposta a uma pergunta do tipo: (79) João foi à festa? (80) [...] Não também, graças a Deus. Ainda bem, não é? Com isso, o ainda bem também estaria no primeiro grupo. Dessa forma, por mais que os advérbios sejam o ponto em comum que une esse grupo, eles também são de naturezas diferentes. A classificação desse terceiro grupo ancora-se em questões mais formais, caso dos advérbios, o que não acontece nos demais, fundamentados nas idéias de contra-expectativa e inclusão, de caráter mais semântico-discursivo. Embora ainda agora, ainda hoje e ainda ontem estejam relacionados ao tempo e, por isso, possuam semelhanças, não é o caso de agrupá-los em uma mesma classe, unindo-os aos demais advérbios. Martelotta (1996, p. 215) defende que o ainda de origem espacial no latim passa a expressar a noção temporal e, em seguida, torna-se operador argumentativo por gramaticalização via pressão da informatividade temporal, fazendo uma retomada histórica: Este advérbio dêitico latino inde, de valor espacial e temporal gera, no português arcaico, as formas de ende e ainda (ou inda). A forma ende (proveniente do uso espacial de inde), que se manifesta basicamente como anafórico de base espacial, gera o ende equivalente a sobre e isso e o ende conclusivo (por ende), que por sua vez gramaticaliza em porém com valor adversativo. (MARTELOTTA, 1996, p. 219) 39 Assim como Martelotta (1996), Longhin-Thomazi (2005, p. 1363) também faz referência à categoria temporal a que o ainda está ligado e escreve sobre a reconstituição histórica do ainda, utilizando dados do português arcaico, também se reportando à etimologia do termo: O ainda é o produto da combinação de vocábulos latinos: ad + inde > ainde > ainda, em que inde sinalizava tanto espaço (‘de lá’, ‘daquele lugar’) como também tempo (‘a partir de’). A autora classifica o ainda em dois grandes usos: os temporais e os argumentativos. Dentro dos temporais Longhin-Thomazi cita os seguintes exemplos: (81) – Porquê? disse el; fez-vos alguu mal? - Mui grande; derribou-me tam bravamente que aynda me dol. (13DSG, p. 45)18 (82) Ai donzela, alevosa e traedor, em maau-ponto foi esta promessa outorgada, ca eu seerei mais escarnecido que nunca foi cavaleiro; e tu nom gaanharás i rem; ca, se Deus quiser, aynda porém morrerás de maa morte. (13DSG, p. 27) A autora assinala que, em (81), ainda representa o tempo continuativo e em (82) ele marca tempo futuro, porém, o que está marcando futuro aqui é o verbo, o ainda dispara a interpretação de além disso em (82). Dentro do grupo dos argumentativos, a autora separa três usos: inclusivo, intensificador e concessivo, respectivamente exemplificados abaixo: (83) E mãdo que, quen quer que tênia meu tesouro os meus tesouros a dia de mia morte, que os de a departir aquestes dous arcebispos e aquestes cinque bispos, assi como suso é nomeado. E mãdo ainda que, se s´asunar todos nõ poderem ou nõ quisere ou descordia for outr´aquestes, a que eu mãdo departir aquestas dezimas suso nomeadas... Mãdo ainda que a raina e meu filio ou mia filia que no meu logar ouuer a reinar se a mia morte ouuer...(13TDA, p. 398) – uso inclusivo. (84) ...falla das primiçias e das offerendas de que sse auidã muyto os clerigos, conue de dizer em este dos dezemos, que é uma cousa apartada, de que sse aiuda aynda mays toda a igreia, ta be os prellados mayores como os outros clerigos...(13LA, p. 7) – uso intensificador. (85) - Senhor cavaleiro, vós estades a pee e eu a cavalo, e aynda com tal andança queredes a batalha? (13DSG, p. 39) – uso concessivo. 18 Os trechos foram coletados por Longhin-Thomazi (2005) e retirados de textos arcaicos. Os exemplos (81), (82) e (85) são do Século XIII do texto A demanda do Santo Graal, (83) e (84) datam do mesmo século, mas são de Testamento de D. Afonso II e de Excertos de Legislação Antiga, respectivamente. 40 Se formos utilizar a teoria da gramaticalização, podemos observar o percurso que se inicia na extensão, primeiramente, temporal de um uso espacial, que parece já não estar presente no português atual; salvo algumas exceções do tipo ainda mais para cima, ainda mais para o lado, ainda mais à frente; e que, posteriormente, via gramaticalização, deram entrada a outros usos como o argumentativo, já apresentado, e outros que serão verificados daqui em diante. 3 QUANTOS USOS? Na semântica, pelas suspeitas de Ilari (1984) e Mendes de Souza et al (2007), o item lexical ainda, com leitura temporal, pertence à classe dos itens de polaridade negativa. Sobre os demais usos, nada foi citado no trabalho de Ilari e nada aprofundado no de Mendes de Souza et al, que apenas indicam haver outros usos. No inglês, Israel (1996) e Ladusaw (2002, [1980]) afirmam que o yet é um item de polaridade negativa e, talvez, esta análise possa ser transposta para o português, conforme aventado no primeiro capítulo. Inicialmente, porém, nos deparamos com a complexidade de facetas que o item lexical ainda aparenta possuir, como mostrou a rápida excursão pelas análises funcionalistas. Logo, foi preciso tentar classificá-lo e centralizar a análise em um deles, o que fora citado por Ilari (1984) e que é o correspondente do inglês yet. O primeiro vestígio de diferenças de sentido foi detectado, justamente, na comparação do ainda temporal + negação e sua suposta correspondência positiva: (86) João ainda não terminou o trabalho. (87) # João ainda terminou o trabalho. Esses são exemplos semelhantes a (64) e (65) analisados superficialmente no capítulo anterior. Vale ressaltar que (87) não é agramatical, mas tem significado diferente de (86) e parece incompleta – ela melhora consideravelmente se acrescentarmos uma “coda”: antes de sair. É possível encontrar marcas de temporalidade nas duas sentenças? A interpretação de (86) é de que João começou o trabalho em um dado momento no passado e até o momento da fala não terminou. Nesse caso, o ainda representa a continuidade da ação que se estende para além de um limite esperado. É como se imaginássemos uma linha do tempo em que o estado 41 de realizar o trabalho começa no passado, continua e ultrapassa o momento em que a sentença foi proferida; indicando que o evento de trabalhar deveria ter terminado, mas se estendeu no tempo. Trata-se, portanto, de uma leitura temporal. Essa noção de tempo será demonstrada na seção 3.2. A sentença (87) carrega um verbo com marca morfológica de pretérito perfeito, assim como (86), porém, sem a negação. No entanto, da forma como (87) se apresenta e sem um contexto específico, o ainda não recebe a leitura temporal, presente em (86), mas apenas uma leitura discursiva, assim denominada em Mendes de Souza et al (2007), semelhante à leitura inclusiva de Martellota. Essa leitura discursiva tem um sentido próximo de ainda por cima/além disso, representando, assim, o acréscimo de algo, há uma lista de coisas que parece estar pressuposta; João fez outras coisas e, além disso, terminou o trabalho. Dessa forma, ela se interpreta diante de um contexto em que João tomou café, conversou, divertiu-se e ainda terminou o trabalho. Porém, como vimos, há uma outra possível leitura19 em que (87) é uma resposta à pergunta: (88) a. João saiu cedo? b. Não. João ainda terminou o trabalho [antes de sair.] Dessa maneira, nesse contexto, existe vestígio de temporalidade também em (88b): Antes de sair João terminou o trabalho. Mas essa leitura só é possível se aliada a uma pergunta, e também ao adjunto temporal localizado ao fim da sentença antes de sair, pois mesmo que esse adjunto não esteja explícito e não pronunciado, permanece implícito e subentendido na resposta. Essa questão dos adjuntos será discutida adiante. Vale ressaltar que a resposta da pergunta é negativa, e mesmo que o não esteja oculto, continua subentendido e, com a presença da negação, a leitura temporal sobressai. Alguém poderia dizer que existe ambigüidade na sentença (88b), pois seria possível a leitura temporal e a discursiva ou inclusiva. Contudo, nesse contexto de resposta à pergunta e mais o acréscimo do adjunto temporal ao final da sentença, a leitura discursiva/inclusiva desaparece, não sendo mais possível visualizar aquela lista pressuposta de coisas que ele fez e ainda por cima terminou o trabalho. Com isso, as suspeitas no que diz respeito às diferenças de sentido, não só em (86) e (87), mas como em outras ocorrências também, aumentaram. Inicialmente, os usos descritos de (89) a (99) abaixo, foram encontrados em exemplos criados e que pensávamos existir no PB; posteriormente, isso foi verificado no banco de dados 19 Esse exemplo foi sugerido por Edair Gorski (c.p.). 42 do NURC e confirmado com a fala dos informantes do projeto. A classificação apresentada abaixo é intuitiva e precisa ser mais bem compreendida e estudada. (89) João ainda brinca de carrinho. – Temporal. (90) João ainda comprou a bola. – Discursivo. (91) João ainda não comprou a bola. – Temporal. (92) João ainda aguarda o dinheiro para comprar a bola. – Temporal. (93) Ainda que João se esforce, ele não conseguirá o perdão de Maria. – Conjuntivo. (94) Vale ressaltar, ainda, a importância do leite materno. – Discursivo. (95) João está com dor de garganta e ainda quer chupar picolé. – Discursivo. (96) João perdeu a moral perante seu patrão e ainda o insultou. – Discursivo. (97) Ontem ainda falamos de vocês. – Temporal. (98) Ainda bem que nos encontramos. – Intensificador. (99) Ainda que ele brinque bastante de carrinho, não afetará seus estudos, pois faz todas as tarefas. – Conjuntivo. Essas sentenças apresentam a riqueza tipológica do ainda. As sentenças (89), (91) (92) e (97) são casos que tratam do ainda temporal – (89), indica, na leitura genérica, mais saliente, que João começou a ter o hábito de brincar em um momento anterior ao momento de fala e continuou ainda brincando até o momento de fala, prolongando-se além do esperado; da mesma forma se comporta o evento de brincar: o evento deveria ter terminado, mas esse não foi o caso. Semelhantemente, (91), na negativa, também está relacionada ao eixo temporal em que chegou o momento e não foi comprada a bola. (92) também se liga ao tempo e mesmo não tendo uma negação explícita, a sentença carrega uma implicatura (ou pressuposição, isso será discutido no Capítulo 3) de que há ainda possibilidade de aparecer um dinheiro, mas João o aguarda: o dinheiro não veio, mas existe a expectativa de que venha. Já a sentença (97) é um caso peculiar; há quem diga que ela é ambígua, que pode apresentar a interpretação 1. ontem mesmo e 2. Discursiva/inclusiva20: entre outras coisas que fizeram, falaram de vocês. Essas duas interpretações foram encontradas em testes com falantes, dependendo do escopo dado à sentença no caso de ser apresentada oralmente. A interpretação em 1 nos diz que não era esperado que um tempo tão curto tivesse decorrido entre falar do ouvinte e encontrá-lo; essa é a interpretação default e está intimamente relacionada a tempo, e devido a isso, o grupo no qual ele se encaixa é o temporal. 20 Essa interpretação 2 foi proposta por Edair Gorski e Ligia Negri em (c.p.). 43 As sentenças (90), (95) e (96) pertencem à classe do ainda discursivo/inclusivo e expressam ainda por cima ou além disso. Isso quer dizer, em (90), João além de ter vários brinquedos, por exemplo, ainda por cima comprou mais uma bola; representando, assim, o acréscimo de algo. Há uma lista de coisas que ele comprou e essa lista, como dito anteriormente, parece estar pressuposta. Lembrando que (90) também pode ser resposta a uma pergunta, semelhante ao que acontece em (88). Em (95) João está com dor de garganta e ainda por cima, além disso, quer chupar picolé, o que indica contraste, contra-expectativa, consoante Martelotta (1996) em seu uso argumentativo. Da mesma forma, em (96), João, além de ter perdido a moral com o patrão, ainda por cima o insultou. O exemplo (94) também se encaixa no uso discursivo, que, embora de mesma natureza, é mais típico de texto escrito, de caráter coesivo e que dá seqüência textual, parafraseado por também ou além disso. Em (93) e (99) há um uso conjuntivo, análogo às conjunções concessivas, embora, apesar de ou mesmo que; assim, em (93) mesmo que João se esforce, ele não conseguirá o perdão de Maria. Esse uso também foi salientado por Martelotta (1996) e Longhin-Thomazi (2005) que os consideravam operadores concessivos e/ou adversativos. E (99), mesmo que ele brinque bastante de carrinho, isso não afetará seus estudos, pois faz todas as tarefas. Assim como (97), (98) também é um caso peculiar. Parece ser uma expressão (ainda + bem), exprimindo contentamento, que bom, por exemplo; trata-se de uma expressão idiomática, pois não é possível desmembrá-la. O sentido só é completo com a união dos termos, pois o ainda sozinho não forma que bom e vice e versa. Poderíamos colocar este uso em um grupo como fez Martelotta (1996), ver exemplo (80), como intensificador de advérbio, porém, como dito anteriormente, se compararmos ainda bem e ainda ontem percebemos que não se trata de um mesmo uso, porque não veiculam o mesmo significado. Conforme dito anteriormente, os exemplos da última série convergem às informações do banco de dados NURC, onde encontramos 104 ocorrências, distribuídas em 12 entrevistas retiradas das cinco cidades envolvidas no Projeto e divididas em inquéritos contendo diálogo entre dois informantes, entre o documentador e o informante e elocuções formais. O índice de maior uso foi o do ainda com interpretação temporal, totalizando 73% das ocorrências, o que legitima a escolha pelo foco desta dissertação. Os demais usos da série anterior também apareceram nos dados. O uso discursivo totalizou 13,4% e o conjuntivo 1,9%. A relevância de um uso, em especial, merece atenção, devido ao número elevado de ocorrências (10,5%). É o uso inclusivo, conforme exemplo abaixo: (100) João gosta de sair com Maria, ainda mais que ela paga a conta. 44 Esse uso é o inclusivo porque além de Maria apresentar outros fatores para que João goste de estar com ela, o ainda mais acrescenta mais um – o de ela pagar a conta -. Ele também pode ser substituído por principalmente. O ainda + advérbio é bem comum, até mesmo no inglês, mas geralmente esses advérbios são de tempo, e esse não é o caso, por isso não é possível incluí-lo na classe do temporal, como ainda + ontem. Também no banco de dados surgiram usos que foram mais dificilmente encaixados em nossa classificação e são representados pelos exemplos semelhantes abaixo: (101) João mora um pouco mais lá em cima ainda. (102) Qualquer dia desses Maria ainda acaba denunciando aquela diretora. (103) Essa obra não teve sucesso, até os autores ainda a acharam estranha. (104) E ainda aqui, em toda essa região, há seca. (105) Todas as comidas são boas, mas tem uma ainda que eu acho melhor. (106) A cidade tem um bonito cenário gastronômico, melhor ainda, o comer. Inicialmente, (101) e (104) apresentam um ponto a ser ressaltado, ambos recuperam o uso espacial, presente no latim e citado por Martelotta (1996, p. 215) e também por LonghinThomazi (2005), anteriormente recuperado nesse capítulo. Os dois exemplos tratam da questão do espaço, resquício do latim, que hoje, como foi visto na amostra dos dados, é uma ocorrência ínfima. Embora pareçam mais difíceis de encaixe na classificação proposta, os exemplos (101) a (105) são usos discursivos e o (106) também é, mas, por também ser intensificador é facilmente confundido. Portanto, com base nos dados há três grupos, inicialmente pensados, e que se confirmaram ao longo do estudo – conjuntivo, discursivo/inclusivo e temporal. Embora possuam a mesma forma, foi possível separá-los por apresentarem significados diferentes, mas é possível encontrar uma característica comum em todos eles? 3.1 CONTRA-EXPECTATIVA Não é objetivo desta dissertação estudar todos os usos, de modo a descobrir se pode haver uma unificação entre eles, devido às características comuns. Entretanto, há a contraexpectativa, apontada por Martelotta (1996) para o primeiro de seus grupos, que não é 45 privilégio somente das sentenças encaixadas no primeiro grupo apontado pelo autor, mas característica encontrada em todas as sentenças de (89) a (106) com o ainda. No uso temporal, o ainda em (89) ativa a expectativa de que João já não estivesse mais brincando de carrinho. (91) quer dizer que João ainda não comprou a bola, mas a presença do ainda, de encontro à cena atual, permite haver uma contra-expectativa de que ela já deveria ter sido comprada. Mais à frente, essa expectativa será preenchida, a bola será comprada. Em (92), João continua aguardando o dinheiro, que já deveria ter chegado, a expectativa da chegada é contrariada também. E, da mesma forma, em (97), há um encontro que vai contra a expectativa de se encontrarem recentemente. A mesma característica está presente na classe dos conjuntivos – a contra-expectativa –, mas um pouco mais difícil de se verificar, pois nessas sentenças parece haver sempre uma oposição de idéias e ela pode ser confundida com a contra-expectativa. Por exemplo, em (93), por mais esforço que o João faça, ele não vai alcançar o perdão da Maria, nesse caso, o esforço e o perdão estão em lados opostos, o que não é a expectativa comum ou esperada, pois se há esforço, há grandes chances de que haja perdão. Em (99), o padrão seria existir a expectativa de que se João brinca bastante de carrinho, isso afeta os seus estudos, porém, esse não é o caso, há uma contra-expectativa de que os estudos não serão afetados, mesmo brincando de carrinho. Também no uso discursivo/inclusivo, a contra-expectativa se mantém. Em (90), há uma expectativa contrária à compra da bola, pois João comprou mais um brinquedo que não era esperado. Em (94), a contra-expectativa não é tão clara, mas em um contexto em que o discurso foi demorado, houve muitas colocações, o esperado seria terminar logo, porém, o que ocorre é o contrário da expectativa, há também mais um destaque. Já em (95), é senso comum que o cenário da dor de garganta não é compatível com o de chupar picolé, a expectativa é de que se há um cenário, o outro não está presente, contudo, nessa sentença, assim como nas demais, a contra-expectativa comanda a cena. Em (96), João perdeu a moral perante seu patrão e, com isso, o esperado é que ele não faça mais nada contra o patrão, mas ele também o insulta, assim como em (98), por exemplo, ainda bem, quase considerado uma locução ou uma expressão idiomática, veicula surpresa, vai em direção contrária à expectativa de encontrar-se recentemente. Nos usos separados da série acima também é possível encontrar a contra-expectativa. Em (100), que também pode ser considerado um uso intensificador, há uma contraexpectativa, não tão saliente, no que diz respeito a ela pagar a conta, algo que não é esperado. Já em (101), a contra-expectativa se evidencia mais, pois parece ser um contexto em que a pessoa subiu um grande morro e esperava já ter subido o suficiente, mas alguém afirma que é 46 mais lá para cima do que ela esperava, novamente, vai de encontro à expectativa. No caso de (102) a contra-expectativa é a denúncia, que não era esperada. Em (103), parece que o normal (ou o padrão) seria que os autores gostassem da obra que fizeram, mas isso não acontece, inclusive eles acharam a obra estranha: vai contra a expectativa habitual. (104) fala de uma região, que parece ser boa, mas mesmo nessa região, há seca, a expectativa comum seria de que em terra boa não há seca, contudo, isso não se mantém. Em (105), a sentença principal fala de um contexto em que as comidas são boas, o mas já inverte a situação, como o de costume, e o ainda intensifica essa oposição, trazendo a contra-expectativa de uma comida melhor que as demais e, da mesma forma acontece em (106), pois há uma constância na descrição favorável e o ainda faz superar essa constância, ele indica uma contra-expectativa, melhor do que a esperada. Assim, essa tentativa de unificação serviu de início para um trabalho futuro. Porque já é um árduo trabalho classificar os usos distintos do termo, quanto mais saber se estamos diante de ambigüidade ou polissemia, e se há condições para unificar a natureza de todos esses usos, encontrando traços em comum entre eles, por isso, esse não será o foco deste trabalho. Também há uma dificuldade em agrupar os tipos de ainda por características semelhantes, mas a conclusão a que chegamos é que há pelo menos três grupos; o do temporal, o do discursivo/inclusivo e o do conjuntivo. Nosso foco será dado ao temporal porque ele é considerado o candidato a ser IPN e por ser o uso numericamente mais expressivo. Retomando as origens do termo que inicia no âmbito tempo-espacial (MARTELOTTA, 1996; LONGHIN-THOMAZI, 2005), depois surge no campo discursivo e, posteriormente, no conjuntivo, é relevante destacar21 que, além da mudança de significado, há também a mudança de escopo de atuação do item que ora é intra-sentencial, no caso de (90), e ora é inter-sentencial, por exemplo, em (99). Assim como o estatuto categorial também modificou, o que antes era somente um advérbio, conforme (91), passou a ser um operador argumentativo em (94) e conectivo em (93). 3.2 AINDA TEMPORAL A série de exemplos descrita na seção 3 demonstra a diversificada tipologia do item lexical em questão, porém, não se aprofunda na semântica do ainda ligado à questão 21 Gorski fez essa consideração em c.p. 47 temporal. Além disso, até onde pudemos verificar, não há no PB nenhum estudo que centralize sua análise nesse tipo de ainda com interpretação temporal. Por isso, e também devido à maioria das ocorrências no banco de dados apresentar a leitura temporal (71,7%), o foco deste trabalho será nesse tipo de ainda. Como ponto de partida, avaliamos a compatibilidade do ainda temporal com diferentes tempos verbais e diferentes acionalidades em sentenças positivas e negativas para verificar se ele tem comportamento uniforme22. Se ele é um IPN, a expectativa é que em todas as variações tempo-aspectuais haja uma discrepância entre o contexto negativo e o positivo. Em relação ao tempo, Ilari (1992, p. 208), em seu trabalho sobre os “Advérbios focalizadores”, afirma que os advérbios apenas, simplesmente, já e nem mesmo são utilizados para representar determinados assuntos ora como etapa presente, ora como ponto de chegada, ora como ponto de partida. Segundo ele, o locutor, nesses casos, lança mão da sabedoria dêitica, o que lhe permite situar-se em um ponto distinto do local de fala. Embora Ilari nada diga sobre o ainda, veremos mais tarde que é possível também encaixá-lo nesse jogo de localizações no tempo. Por isso, o tempo é relevante nesta dissertação e, por serem bastante desenvolvidas as pesquisas nessa área, vamos nos basear na proposta do filósofo e lógico Hans Reichenbach (1947), que está no livro Elements of Symbolic Logic, tal como apresentada em Ilari (1997), em que o tempo gramatical marca a localização do evento na linha de tempo, tendo como âncora o momento de fala. Segundo essa proposta, há três momentos estruturais na descrição dos tempos: o momento de fala (MF), o momento de realização do evento expresso pelo verbo (ME) e o momento de referência (MR). A idéia é próxima à intuição dos falantes, principalmente quando se menciona o momento de fala e o de evento, como pode se verificar nos exemplos: (107) Hoje é a posse do novo reitor. (108) Ontem foi a posse do novo reitor. Em (107), o momento de fala e o momento de evento coincidem, já em (108), isso não acontece, pois o evento antecede temporalmente o momento de fala. O momento de referência precisa de uma explicação mais detalhada, pois é ele quem faz a relação entre o momento de fala e o momento de evento. O MR “[...] pode corresponder ao tempo expresso pelos adjuntos 22 Esse trabalho foi apresentado em pôster no Seminário nos Domínios do Verbo, ver Lemos Gritti & Pires de Oliveira (2007). 48 de tempo[...]” (ILARI 1997, p. 15). São eles que situam o MR. Sua presença é claramente necessária quando temos combinações temporais como abaixo: (109) João tinha saído quando Maria chegou. A chegada de Maria é a momento de referência que permite situar o evento de saída do João como anterior a esse ponto. Ambos são anteriores ao momento de fala. No que diz respeito à acionalidade, utilizamos a divisão clássica de Vendler (1967 apud PIRES DE OLIVEIRA & BASSO, 2007) em: estado, atividade, accomplishment e achievement. Os estados se diferenciam por serem não dinâmicos, atélicos, isto é não têm um final pré-determinado, e durativos. As atividades são atélicas, durativas e dinâmicas. Accomplishments e achievements são télicos, porque têm um ponto final dado a priori, mas diferem porque os primeiros são durativos enquanto os segundos são instantâneos. Como é possível verificar nas tabelas anexas, testamos todas as combinações de acionalidade, tempo e aspecto. Verificamos que, na forma do presente simples do indicativo, o ainda ocorre tanto em contextos positivos quanto nos negativos. Não havendo, portanto, a discrepância esperada. Na verdade, combinar accomplishment com o presente simples é problemático, porque o presente simples gera leitura genérica, por isso o estranhamento com o objeto direto definido o vestido, exemplo (111b); a sentença se torna ótima quando temos o sintagma no singular nu porque também indica imperfectividade, conforme exemplo (111a). A forma do presente no PB, muitas vezes, não veicula tempo semântico presente; em geral, ela expressa hábito ou genericidade, que são aspectuais. No que tange à acionalidade no presente, o ainda ocorre em todas elas, perfeitamente, conforme os exemplos abaixo: (110) a. Maria ainda ama Pedro. b. Maria ainda não ama Pedro. (111) a. Maria ainda costura o vestido. b. Maria ainda não costura o vestido. (112) a. Maria ainda não alcança o berço. b. Maria ainda alcança o berço. (113) a. Maria ainda não anda. b. Maria ainda anda. Observe que o ainda está aliado a diversas acionalidades e em todas elas ele ocorre na negação e na afirmação. Na sentença (110b), com verbo de estado, a sentença ocorre tanto na 49 afirmativa quanto na negativa; da mesma forma, em (111b), sentença genérica, com leitura habitual; e, nas últimas, o ainda também ocorre em ambas: em (112a) e (112b) com verbo achievement e em (113a) e (113b) com verbo de atividade Maria ainda anda. Não há nenhuma restrição quanto à acionalidade e à forma verbal. Note, ainda, que em todos os casos a interpretação é temporal. Porém, observe a interpretação das sentenças na afirmativa, parece que há uma expectativa de mudança implícita do estado de amar para não amar em (110a) e é o ainda que aciona essa expectativa, pois, sem ele, a idéia de mudança não acontece e isso é verificado comparando-a à sentença abaixo: (114) Maria ama Pedro. A única diferença entre (110a) e (114) é a presença do ainda naquela e a sua ausência nesta. Observe que em (114) a expectativa de mudança não existe. Da mesma forma acontece em (111a), na qual há a expectativa de que Maria já tivesse acabado de costurar. Ou seja, a expectativa se mantém em ambas as sentenças, mesmo com verbos de acionalidade distintas. Voltando à série de (110) a (113), as sentenças em b. demonstram que ainda ocorre sem restrições nas diversas acionalidades, porém, no que diz respeito ao pretérito perfeito, a combinação com o ainda gera sentenças cuja interpretação temporal está, se não bloqueada, dependente de outros fatores: (115) João ainda correu. (116) Maria ainda descansou. Tanto em (115) quanto em (116) a interpretação mais saliente é que João brincou, nadou e, além disso, ainda correu, assim como Maria, além de ter ido ao mercado, limpado a casa e trabalhado fora, ainda descansou, leituras discursivas. Diante disso, perguntamo-nos: essa restrição (de não poder ocorrer na afirmativa somente no pretérito perfeito) se deve ao tempo, ao aspecto ou à acionalidade? Com o avanço do estudo, pudemos descobrir que a restrição está no aspecto perfeito e não na marcação de tempo passado, observe o exemplo abaixo: (117) João ainda corria. (118) Maria ainda descansava. (119) Maria ainda amava João. 50 Embora (115), (116), (117), (118) e (119) expressem passado, (117) e as duas seguintes obtém a interpretação temporal ao contrário de (115) e (116). A única diferença entre elas é que (115) e (116) têm aspecto perfectivo e as demais aspecto imperfectivo. Logo, à primeira vista, a restrição de ocorrência de ainda não é ser um contexto negativo, mas sim um imperfectivo, dessa forma, ele não parece ser um item de polaridade negativa. A questão, até o momento, parece ser de aspecto, por isso, adotaremos a definição de imperfectivo de Klein (1994), embora a literatura sobre o assunto seja vasta. As expressões são imperfectivas, segundo o autor, se elas denotarem um evento que se estende para além do intervalo de tempo determinado pelo tempo de referência. Já na interpretação perfectiva, o evento está incluído no momento de referência. O aspecto imperfectivo se combina muito bem com o ainda, exatamente, porque ambos dão um sentido de continuidade e são abertos à mudança, já que, no imperfectivo o evento está em curso. O perfectivo não dá condições para que isso aconteça, porque tem um ponto final já estabelecido, o que impede a mudança para outro estado, mas isso precisa ser mais bem verificado, o que faremos a seguir. Por enquanto, basta notar que se o ainda é um IPN, ele o é apenas no pretérito perfeito. 3.1.1 A restrição Primeiramente, pensávamos que a restrição para o ainda ocorrer seriam contextos negativos, pois o confronto entre eles e os afirmativos, parecia gerar uma preferência pelos negativos, observe o quadro abaixo: ESTADO ATIVIDADE João ainda amou # João ainda brincou. Maria. ACCOMPLISHMENT ACHIEVEMENT Maria ainda costurou o # 23 João ainda vestido mesmo sabendo alcançou o pico do que está fora de moda. Everest. João ainda não João ainda não Maria ainda não João ainda não amou Maria. brincou. costurou o vestido. alcançou o pico do Everest. Quadro 1 - Testes do pretérito perfeito 23 Lembrando que o # foi colocado para identificar uma leitura não temporal. 51 Observe, no Quadro 1, que com os predicados de atividade e de accomplishment as sentenças com o uso do ainda são boas, porém, trata-se da leitura discursiva. No exemplo da segunda coluna, com predicado de atividade, há a idéia de que João fez as tarefas, tomou banho e além disso, ainda por cima brincou. O ainda aponta para uma série de eventos, que se unem ao principal da sentença; e, no exemplo da terceira coluna, Maria, apesar de saber que está fora de moda, mesmo assim costurou o vestido. Também no caso do achievement, a única leitura para o uso positivo de ainda é, mais uma vez, a discursiva: além de ter feito outras coisas, João alcançou o pico do Everest. A mesma leitura discursiva é encontrada no ainda em sentenças estativas. No entanto, as mesmas sentenças, colocadas na negativa (na segunda linha do quadro), ficam bem melhores, porque parecem com sentido completo, ao passo que as sentenças na afirmativa, sem outras informações, parecem não estar completas, e ativamos, de imediato, somente a leitura discursiva do ainda. Portanto, pensávamos que seria o contexto negativo o preferido do ainda. Porém, com o decorrer do trabalho, pudemos perceber que essa restrição da leitura temporal em contextos afirmativos acontecia somente no pretérito perfeito, e não nos demais tempos verbais. Dessa forma, conforme os testes apresentados nas tabelas em anexo e também na seção anterior, o ainda ocorre somente em contextos perfectivos com a leitura discursiva/inclusiva, conforme o exemplo abaixo: (120) João ainda chegou. Como a leitura temporal não está presente em (120), assim como não está em (115) e (116), pensávamos que a restrição para o ainda ocorrer não seria mais contextos negativos, mas sim perfectivos. Contudo, encontramos sentenças como (121) e (122), que também apresentam morfologia de pretérito perfeito e que, no entanto, possuem a leitura temporal: (121) Maria chegou tarde, passado do meio dia, mas ainda lavou a louça. (122) João ainda chegou a tempo de evitar um escândalo. 24 Esse caso seria uma exceção? Não. Essa sentença apresenta uma questão importante relacionada ao ainda no pretérito perfeito, a questão dos adjuntos. O ainda se alia ao pretérito perfeito, conforme (115), (116) e (120), o problema é que a leitura se torna 24 O exemplo (121) foi inspirado no exemplo Fui dormir cedo, mas ainda costurei o vestido, fornecido por Ligia Negri, mas que a interpretação discursiva não é a única e o (122) por Edair Gorski em (c.p.) na ocasião da banca de qualificação. 52 discursiva/inclusiva. Também a interpretação “default” da sentença (121) é que além de chegar tarde, ainda por cima, além disso, lavou a louça o que nos faz incluí-lo na classificação do ainda discursivo. Mas, como veremos, uma leitura temporal também é possível. Para licenciar a leitura temporal é necessário haver algum suporte temporal. A locução adverbial a tempo de (em 123) possibilita haver a leitura temporal da sentença, porque estabelece uma referência que permite a localização do evento na linha do tempo. Por isso, a sentença (121) obtém uma interpretação temporal, (também aceitável entre os falantes) e ela seria licenciada pelo adjunto temporal tarde. Sem a presença (explítica ou dada pelo discurso) de adjuntos relacionados ao tempo, no pretérito perfeito, o ainda com interpretação temporal não ocorre. Portanto, para o ainda ocorrer com a leitura temporal no perfectivo e sem a presença da negação é necessária a ajuda dos adjuntos, porque os adjuntos introduzem uma referência que localiza os eventos, ancorando-os no eixo temporal e licenciando a ocorrência do ainda. Os adjuntos temporais se encaixam nessa definição, pois adicionam um momento de referência às sentenças e, com base nesse momento, é possível localizar o ponto de uma mudança. Por exemplo, em (122), retomado abaixo, a expressão a tempo de acrescenta um ponto de referência virtual, que indica o escândalo que teria ocorrido se João não tivesse chegado. Note que, para descrevermos esse significado, precisamos levar em conta uma situação contrafactual, em que houve um escândalo, que se inicia no MR, verificado na Figura abaixo: (123) João ainda chegou a tempo de evitar um escândalo. __________________escândalo___________________ Contrafactual _________________________________________ ME MR MF Chegou evitar um escândalo Figura 2 – Representação no eixo temporal da sentença (123) O MR é o momento do escândalo virtual e o ME é quando João chegou. O MR permite haver a possibilidade de marcarmos a transição entre estados. Sendo assim, é fácil notar que, se assumirmos o momento de referência, a leitura temporal se torna possível. 53 Uma das razões pela aparente preferência por contextos negativos no perfectivo, apresentada no início dessa seção, é devido à negação impedir a leitura perfectiva, ou seja, deixar o ponto final do intervalo de tempo denotado pelo perfectivo em aberto para uma mudança e, também, com a negação, há um momento de referência. Todas as sentenças do Quadro 1 enquadram-se nesse esquema, pois João ainda não amou Maria até o momento de referência que coincide com o momento de fala, Maria ainda não costurou o vestido até o momento de referência e assim sucessivamente. Embora as sentenças do quadro abaixo já estejam com a morfologia de aspecto imperfectivo, só isso não basta, os adjuntos também se fazem necessários, pois, mesmo sem o ainda, no imperfeito, é preciso haver uma ancoragem em outras sentenças para ter um momento de referência, a exemplo disso, tem-se João brincava, em que o sentido não está completo, uma vez que falta à sentença complemento que a ancore e lhe dê o momento de referência. ESTADO ATIVIDADE ACCOMPLISHMENT ACHIEVEMENT João ainda não João ainda não Maria ainda não costurava o João ainda não amava Maria. brincava. vestido. alcançava o pico do Everest. João ainda João ainda brincava. Maria ainda costurava o João ainda alcançava vestido. o pico do Everest. amava Maria. Quadro 2 – Testes no pretérito imperfeito Observe que, nas sentenças acima, a ação ou o estado, assim como os eventos representados por verbos accomplishment e achievement na afirmativa, não alcançam o ponto final, o que é característico da interpretação imperfectiva. Porém, pelo fato de essas sentenças apresentarem leitura de hábito25 no pretérito imperfeito, nada se pode dizer sobre o momento de referência, ainda mais se considerado dessa maneira, sem contexto. A situação fica mais aparente um pouco nos verbos accomplishment, devido ao objeto direto definido. Mesmo assim, precisam de reforço para demarcar o momento de referência. Dessa forma, são necessários contextos específicos para que as sentenças se ancorem temporalmente, como, por exemplo, João ainda brincava quando bateu o sinal para o recreio, o adjunto quando bateu o sinal para o recreio determina o momento de referência e o 25 Essa leitura de hábito é encontrada por Roberta Pires de Oliveira e também a assumo. 54 tempo do evento de João brincar inclui esse tempo de referência. Vale notar, no entanto, que sentenças imperfectivas, independentemente da presença de ainda, são incompletas: João brincava pede uma ancoragem temporal quando bateu o sinal. Quando se trata do futuro, a situação não é tão clara, pois, em exemplos semelhantes à (124) o evento não se desenvolveu e tão menos está se desenvolvendo: (124) João ainda vai se arrepender. O momento de referência, nesse caso, é posterior ao momento de fala e é simultâneo ao momento de evento. A expectativa é que em algum momento do futuro, vai haver a mudança de não arrependido para arrependido. Na negativa, o ainda ocorre sem problemas: (125) João ainda não vai se arrepender. (126) João ainda não vai viajar. É claro que se acrescentarmos mais contextos às sentenças, principalmente adjuntos temporais, semelhantes à (127) o momento de referência fica mais explícito: (127) João ainda vai se arrepender quando encontrar Maria com outro. Novamente, em (127), o momento de referência encontrar com outro inclui o momento de evento se arrepender e ambos são posteriores ao momento de fala. A sentença (127), se comparada a (124), é mais completa, pois situa melhor o momento de referência no eixo do tempo. A restrição sobressai-se se testarmos as mesmas sentenças com o aspecto perfectivo no tempo futuro do presente composto: (128) a. João vai ter se arrependido quando Maria chegar. b. ? João ainda vai ter se arrependido quando Maria chegar. O teste nesse tempo foi difícil, pois o futuro do presente composto, em (128a), indica perfectividade, o estado de se arrepender está terminado quando o momento de referência ocorrer e isso parece impedir a ocorrência de ainda, por estar fechado para a mudança. O que não acontece no aspecto imperfectivo no qual o ponto passível de mudança está em aberto: 55 (129) a. João vai estar se arrependendo quando Maria chegar. b. João ainda vai estar se arrependendo quando Maria chegar. No entanto, depois de muitos testes, foi possível encontrar, no mesmo tempo futuro do presente composto, casos como o seguinte: (130) a. João vai ter aprendido a lição quando a velhice chegar. b. João ainda vai ter aprendido a lição quando a velhice chegar. É evidente que as sentenças parecem bem melhores no imperfectivo, mas parecer melhor, como se pensava, não é uma regra, pois se comprovou através do exemplo (130), assim como no (122), que o ainda ocorre em contextos perfectivos, logo, a restrição de ocorrência não é contexto perfectivo. À primeira vista, quando comparávamos o pretérito perfeito aos demais tempos, antes da descoberta dos adjuntos e sem pensar em aspecto, a hipótese era de que a restrição seria a negação, pois havia, pelo menos, um tempo no qual o ainda não ocorria com interpretação temporal na afirmação. Logo após, percebemos que isso ocorria somente no pretérito perfeito e a comparação entre os dois pretéritos parecia intrigante, pois o tempo verbal era o mesmo, contudo, o aspecto diferente. Com isso, pensávamos que a questão estava mesmo no aspecto perfectivo, visto que o ainda ocorria em todas as formas verbais de maneira uniforme, tanto em contextos positivos quanto em negativos. A conclusão, até o momento, parecia ser a de que o ainda não é um IPN, mas estava sujeito a uma restrição aspectual: ele não se combina com o aspecto perfectivo. Porém, mostramos que a presença de adjuntos permite o uso de ainda com o perfectivo. Logo, o ainda parece requerer um MR. Essa questão, que inclui o problema dos adjuntos, não pára por aqui, no próximo capítulo, será mais explorada junto às relações semânticas do item. Portanto, a idéia da polaridade negativa não se sustenta mais. Ilari (1984) aventou a hipótese de que o ainda seria um item de polaridade negativa e o já um item de polaridade positiva, formando um par de oposição, o primeiro argumento foi mostrado que não se sustenta, porém, resta-nos o já. Neves (1992, p. 281) aponta o já como contrário do ainda, enquanto o primeiro significa neste/nesse naquele momento ou período, considerado precedente de outros, o último significa em até esse/aquele momento ou período, considerado subseqüente a outros. Porém, sabemos que ainda não quer dizer até esse ou aquele momento, pois, como se explicariam os casos no futuro e todos os outros nos quais há adjuntos? Pois nesses casos o 56 momento de referência é antes ou depois do MF. Talvez eles pudessem se encaixar na explicação de aquele momento, mas não na de até esse momento que cabe só aos casos do presente como é o caso de (133): (131) A estrada não estava, por sinal, pronta, ainda. (D2 – SSA – 98:7. 32) (132) Ainda fiz um sorteio, ainda botei... fiz umas brincadeiras. (DID – POA – 45:9. 142 – 143). (133) Ainda existem bairros sem água (D2 – RE – 05: 26. 1137). (134) Eu já morei em Recife. (D2 – RE – 05: 26. 1137). Porém, em nossa classificação, (132) não é da mesma tipologia dos demais, pertence ao nosso grupo dos discursivos que significa além disso, ainda por cima, também, mas Neves não faz distinção de grupos, fala em geral e, assim como Martelotta (1996, p. 215), inclui o ainda e o já no grande grupo dos dêiticos. É claro que o ainda diz mais do que aponta a autora, como é fácil perceber substituindo-se qualquer das ocorrências desse item nas sentenças acima por nesse momento. Ilari (1990, p. 77) coaduna com a idéia de dêitico, mas somente para o já e aponta outra característica, a de estar associado ao tópico e significar muito pelo contrário como em: (135) A menina mais velha é boa desenhista, já a mais nova tem mais facilidade para música. [n. a] Novamente, esse parece não ser o já temporal que será tratado na seção seguinte. Entendemos que esses itens podem ser dêiticos no que se refere à questão temporal, se imaginarmos o eixo do tempo no qual o já e o ainda estão, indiretamente, apontando ou se reportando a ele em suas ocorrências, mas não basta para atribuir uma semântica para esses itens indicar sua instanciação no tempo. Isso será melhor desenvolvido no próximo capítulo em que a análise do eixo temporal em relação aos itens será mais detalhada. 4 JÁ E AINDA – OPOSIÇÃO? Ligado ao ainda temporal está o já, também temporal. No português, Ilari (1984) foi, do que sabemos, o primeiro a citar esse par de opositores, confrontando dois exemplos: 57 (136) # O carteiro ainda veio. (137) * O carteiro já não veio. Certamente, (136) com a leitura discursiva não é o oposto de (137), agramatical. Como vimos, para que (136) tenha leitura temporal precisamos de uma ancoragem no tempo, como por exemplo, depois de ter entregue a carta. Mas, mesmo mantendo a interpretação temporal, ainda não se opõe a já. No quesito oposição, a dualidade é: (138) O carteiro ainda não veio. (139) O carteiro já veio. Em vista da clareza demonstrada acima, o par opositivo é: ainda não e já. Os estudos como os de Löbner (1989, 1999) e de van der Auwera (1993), entre outros, mostram que os correlatos no inglês são not yet e already e still e no longer. Diante desses exemplos, no PB, ainda não e já formam um par relacionado ao tempo: ainda não indica que o evento se prolongou além do esperado e já, que o evento ocorreu antes do esperado – isso será explicado em detalhes na questão da pressuposição e da implicatura no capítulo seguinte. Como foi visto, há a não aceitabilidade do ainda na afirmativa, considerando o uso temporal, no aspecto perfeito, sem o auxílio de adjuntos, bem como a não aceitabilidade, também com interpretação temporal, do já em (137). Mas isso não ocorre em todos ou na maior parte dos contextos, conforme estudo desenvolvido em Lemos Gritti & Pires de Oliveira (2007) e apresentado na seção anterior – como pode ser verificado nas tabelas anexas. Através dele, mostramos que ambos os itens, ainda e já, ocorrem nos dois tipos de contexto (positivo ou negativo), como é apresentado nessa pequena amostra: (140) a. João já não ama (mais) Maria. b. João ainda ama Maria. (141) a. João já não está brincando mais. b. João ainda está brincando. (142) a. João já não alcançava (mais) o pico do Everest. b. João ainda alcançava o pico do Everest quando sentiu câimbra. (143) a. Maria já não vai costurar o vestido. b. Maria ainda vai costurar o vestido. 58 Nos exemplos acima, pode-se perceber que o já ocorre em muitos contextos negativos, nas mais diversas formas verbais, com tipos distintos de verbos em relação à acionalidade e em vários tempos, o que contraria a hipótese de que já seria um item de polaridade positiva e isso não era o esperado, conforme o que fora dito pela literatura. Perceba que ele se combina com o mais na negativa. A série de exemplos de (140) a (143) também demonstra que a oposição positivo/ negativo entre os termos não está entre já e ainda, mas entre já não mais e ainda e entre ainda não e já. Repare que as séries em b. são oposições positivas das séries em a. que estão no negativo. Dessa forma, o já não mais é o oposto negativo do ainda e, conforme o exemplo abaixo, o ainda não é o oposto negativo do já: (144) a. Maria ainda não vai fazer plástica. b. Maria já vai fazer plástica. Positivo negativo Já ainda não Ainda já não mais Quadro 3 – Esquema da dualidade Quadro semelhante já fora desenvolvido por Löbner (1989) para os termos relacionados do alemão, schon e noch, e isso será mais bem estudado no capítulo seguinte. As semelhanças entre já e ainda também estão em relação com a natureza semântica e uma delas é a restrição em contextos perfectivos com o ainda, discutida na seção anterior, outra, com o já, pode ser verificada no Quadro 4 abaixo: ESTADO ATIVIDADE João já amou Maria. João já brincou. # João já não amou # João já não # Maria já não Maria. brincou. costurou o vestido. João ainda não amou João ainda não João ainda não Maria. brincou. costurou o vestido. ACCOMPLISHMENT ACHIEVEMENT Maria já costurou o João já alcançou o vestido. pico do Everest. *João já não alcançou o pico do Everest. João ainda não alcançou o pico do Everest. Quadro 4 – Testes com o já na negativa e afirmativa no pretérito perfeito. 59 Com a leitura temporal, o já não, assim como o ainda, apresentou restrição no perfectivo, embora o já restringiu-se em contextos negativos e o ainda em contextos afirmativos. As sentenças tornam-se aceitáveis se adicionadas a um contexto em que os nomes sejam comparados como, por exemplo: Pedro amou Maria, João já não amou; ou Henrique brincou na rua, João já não brincou. Porém, esta é uma outra leitura, uma interpretação adversativa, e não uma leitura temporal do já. Contudo, o já não no pretérito perfeito com os adjuntos, consoante (145) e (146), ocorre perfeitamente. Mas, o uso desses adjuntos não é para imperfectivizar as sentenças, pois elas já estão na negativa e o não já tem esse papel. Estudar o papel que desempenham na sentença para licenciar o uso do já não é o objetivo deste trabalho, embora saibamos que adjuntos também sirvam para colocar um ponto de referência nas sentenças. Como vimos, para se obter uma leitura temporal do já não em sentenças cujo verbo apresente aspecto perfectivo, pode-se adotar a mesma solução encontrada para o ainda na seção anterior; o uso dos adjuntos temporais, conforme os exemplos abaixo: (145) João já não amou Maria naquele ano porque viu que ela era bem diferente dele. (146) João já não brincou de escorregador ontem, justamente, porque estava com a coluna machucada. Talvez a questão dos adjuntos não seja a única hipótese para solucionar essa questão, pois há sentenças como: (147) João já não efetuou a inscrição, justamente, para não dar problemas. Mas isso são somente observações que devem ser mais bem investigadas, posteriormente, em trabalhos futuros. Aparentemente, a aceitabilidade do já em contextos perfectivos, aliada à negação, é muito pior com os achievements. Contudo, nas demais sentenças negativas, o já se distribui perfeitamente. Desse modo, já poderia se comportar como um item de polaridade positiva somente em contextos perfectivos. Contudo, para esses casos, os adjuntos também são a solução da questão. Por isso, a polaridade não se mantém, mas já e ainda apresentam semelhanças por serem temporais, possuírem restrição e positivo/negativo + negação, assim como por acionarem expectativas. expressarem oposição 60 5 EXPECTATIVAS São relevantes as considerações sobre a paridade entre já e ainda não, e entre ainda e já não mais, principalmente por seus pontos em comum, dentre os quais está a questão das expectativas. Considere o exemplo (148a) na afirmativa e repare na sua interpretação: (148) a. O João ainda está em Curitiba. b. O João está em Curitiba. Nos dois casos, João situa-se na cidade de Curitiba, a diferença entre elas é que em (148a) há uma expectativa de João não estar mais em Curitiba, e isso pode ser uma implicatura ou pressuposição negativa disparada pelo item ainda; e em (148b) não há essa expectativa. Observe o que acontece com a expectativa quando aliada à negação: (149) a. João ainda não está em Curitiba. b. João não está em Curitiba. Tanto em (149a) quanto em (149b) João não está em Curitiba, porém, em (149a) a presença do ainda não dispara uma expectativa, que é invertida em relação à (148a). A expectativa, nesse caso (149a), é de que João já estivesse em Curitiba, portanto, uma expectativa positiva, enquanto em (148a) a expectativa é de que João já não deveria estar mais em Curitiba – uma expectativa negativa. Neste ponto, entra o jogo de oposição com o já que é ativado para construir a expectativa de (149a) e do já não mais, para construir a expectativa de (148a). Diante desses exemplos, a pergunta que se faz é se o ainda dispara uma implicatura ou pressupõe algo? E o que ele implica ou pressupõe? Para melhor visualizar o jogo de expectativas, observe a sistematização abaixo: SENTENÇAS (150) João ainda está em Curitiba. EXPECTATIVAS expectativa negativa (deveria já não estar mais lá) (151) João ainda não está em Curitiba. expectativa positiva (já deveria estar lá) (152) João já está em Curitiba. expectativa negativa (ainda não deveria 61 estar lá) (153) João já não está mais em Curitiba. expectativa positiva (deveria estar lá ainda) Quadro 5 – As sentenças e suas expectativas O que há nas sentenças com o ainda e o já, diferentemente das que não possuem esses termos, é a expectativa. Por isso, há uma constante relação entre o mundo real, que é o veiculado pelas sentenças, e o mundo esperado, das expectativas, conforme o esquema abaixo: (150) ______________________Está em Curitiba______________________mundo real _______________________não está________________________mundo esperado (151) _______________________Não está___________________________mundo real ____________________está em Curitiba____________________mundo esperado (152) ___________________Está em Curitiba_________________________mundo real _____________________não está _________________________mundo esperado (153) ____________________Não está______________________________mundo real ________________ está em Curitba_______________________mundo esperado Figura 3 – Oposição do mundo real com o contrafactual As duas linhas representam os dois cenários contidos nas sentenças que possuem o ainda e o já e suas contrapartes negativas; a linha de cima representa o mundo real, veiculado pelas sentenças e, a de baixo, o mundo esperado. Está em Curitiba na linha do mundo real representa João estar em Curitiba e na linha do mundo esperado representa a EXPECTATIVA de João estar em Curitiba, já não está indica João não estar (na linha do mundo real) ou a expectativa de João não estar (na linha do mundo esperado). Todas as sentenças acima têm uma expectativa alternada entre positiva e negativa, conforme a negação ou a falta dela. Por isso, começamos a investigar um ponto comum que unifique a semântica dessas partículas, independente da negação. Denominamos, dessa forma, que a expectativa, nada mais é do que uma contra-expectativa. 62 Vale ressaltar que, na expectativa, a contraparte oposta do item é acionada, basta verificar o item e a expectativa entre parênteses na série acima. Veja o que acontece nas sentenças explicitamente afirmativas em diferentes tempos verbais: (154) João ainda ama Maria. (155) João ainda está brincando. (156) João ainda costurava o vestido. (157) João ainda estava alcançando o pico do Everest. Inicialmente, pensávamos que em todas estas sentenças havia uma negação embutida de que João não deveria mais amar Maria, não estar mais brincando, não estar mais costurando o vestido e também que João não deveria mais alcançar o pico do Everest. E, portanto, todas essas interpretações pareciam carregar expectativas negativas, o que confirmaria a idéia, apresentada grosseiramente no primeiro Capítulo, de Linebarger (1987), de haver uma negação na representação semântica das sentenças, em que um operador de negação estaria na estrutura profunda das sentenças sobre cujo escopo estariam as LPNs ou, no caso, o ainda, e também uma restrição pragmática, considerada uma implicatura negativa. Contudo, o que, atualmente, mostra-se mais proeminente é a contra-expectativa, independente da sentença estar na negativa ou na afirmativa, conforme o exemplo abaixo: (158) Maria ainda vai para a Europa. Nesse caso, a expectativa não é negativa, mas uma contra-expectativa de não estar na Europa no momento do proferimento da sentença, e isso parece ser algo improvável, e, posteriormente, viajar. Esse é mais um dos motivos que contribuiu para unificarmos a idéia da contra-expectativa nas sentenças que possuem o ainda e o já e não nas expectativas negativas e esse será um tópico do próximo capítulo: a semântica de ainda. 6 POR ISSO... Em suma, neste capítulo, foi possível perceber que o ainda tem diferentes usos. Exemplos semelhantes a: 63 (159) # João ainda comprou seu presente. foram relevantes para a descoberta dessa variedade tipológica que subdividimos em três grupos: discursivo, temporal e conjuntivo. A subdivisão se fundamentou em estudos funcionalistas que separaram o ainda em marcador de contra-expectativa, inclusivo e intensificador de advérbio. Depois de centrar a análise no ainda temporal, a questão sobre a polaridade negativa foi descartada, pois a restrição, como demonstrada, não estava relacionada aos contextos negativos, e sim, de início, ao aspecto perfectivo; como pode ser percebido por seu uso em exemplos no futuro do pretérito composto, igualmente no aspecto perfectivo: (160) a. João vai ter se arrependido quando Maria chegar. Diante disso, a conclusão, até o momento, poderia ser de que o comportamento padrão para o ainda seria encontrado no aspecto perfectivo, no entanto, a restrição para o termo ocorrer nesse aspecto não é a negação, e sim a perfectização, logo, ele não é um item de polaridade negativa. Porém, vimos que nem mesmo o aspecto perfectivo é uma restrição; sentenças perfectivas com o ainda são boas desde que seja possível identificar um ponto de referência que, na maior parte dos casos, pode ser veiculado por um advérbio explícito. Outra conclusão tirada na seção 4 é que o já não é um item de polaridade positiva, assim como o ainda não é de polaridade negativa e, da mesma forma, já não é o oposto positivo de ainda e vice e versa, em conformidade com o estudo de Löbner (1989) para o alemão. Também, conforme demonstração, foi possível perceber que em todas as sentenças o ainda, assim como o já, dispara expectativas que envolvem os seus opostos. Essas questões serão retomadas no próximo capítulo. 64 CAPÍTULO III UMA PROPOSTA SEMÂNTICA PARA O AINDA 1 INTRODUÇÃO O objetivo deste capítulo é entender como funciona e qual o papel do ainda temporal na estrutura semântica das sentenças. Fundamentados na literatura, através dos textos de Löbner (1989, 1999) e van der Auwera (1993), que tratam dos correspondentes do ainda no alemão, noch, e no inglês, still, e do já no alemão, schon, e no inglês, already, demonstramos um esquema de dualidade que cerca esses itens. Para isso, apresentamos pontos favoráveis e desfavoráveis em relação à dualidade e comparamos as duas propostas de análise do noch e do still com as devidas aplicações ao PB. De acordo com Löbner, argumentamos que há uma pressuposição presente em todas as sentenças com o ainda e isso o faz um disparador de pressuposição. Quando não há esse tipo de pressuposição, certamente, não estamos diante da interpretação temporal, a qual muitas vezes é obtida através dos adjuntos temporais e o porquê disso acontecer será explicado. O que, especificamente, faz parte das condições de verdade das sentenças com o ainda é uma das questões também analisadas. E, por fim, o capítulo, também visa responder o que são as expectativas acionadas pelo ainda. 2 DUALIDADE Como mencionado nos capítulos anteriores, há estudos para os correspondentes do ainda e do já em outras línguas, principalmente no alemão, noch e schon, e no inglês, still/yet e already, respectivamente, para os quais há os trabalhos de van der Auwera (1993) e Löbner (1989; 1999), entre outros. Neste capítulo, iremos desenvolver a análise desses dois autores que estão de acordo, ao menos no seu cerne, quanto à semântica atribuída a esses itens, mas discordam com relação à hipótese da dualidade26 para os termos em alemão e em inglês, assim como suas contrapartes negativas. O esquema da dualidade proposto por Löbner (1989) 26 Do inglês ‘duality hypotheses’ (VAN DER AUWERA, 1993, p. 613). 65 está pautado na dualidade entre schon e noch, e seus correlatos negativos, porém, van der Auwera (1993) escreveu seu texto especialmente para argumentar contra essa dualidade. Segundo a proposta da dualidade, a negação de noch (ainda) é nicht mehr (já não mais), ao passo que a negação de schon (já) é noch nicht (ainda não), como mostra o quadro abaixo: Partículas Contrapartes negativas Noch (still) nicht mehr (no longer) Schon noch nicht (already) (not sitll not) Quadro 6 – Esquema da dualidade Esse quadro pode ser facilmente transposto para o PB: Partículas no Contrapartes PB negativas do PB ainda já não mais já ainda não Quadro 7 – Esquema da dualidade transposta ao PB Löbner (1999) afirma que o schon e o noch são pares e estão relacionados pelas condições de verdade da sentença e pelas pressuposições semânticas que esses itens disparam, e a partir desse quadro, escreve em defesa do seu esquema. O primeiro argumento do autor a favor da dualidade é que noch, cujo correspondente em inglês é still, ou usado com a negação yet, pressupõe um estado prévio de P27 e, da mesma forma, a sua contraparte negativa nicht mehr, no inglês no longer. Além disso, schon, correspondente do already em inglês, pressupõe um estado prévio de não-P e sua contraparte negativa noch nicht, cuja correspondência em inglês é not yet também pressupõe esse estado, isso será melhor explicado na seção 3, que trata da pressuposição. O jogo das partículas, independente da classificação proposta pelos diversos autores, basicamente, é o verificado no Quadro 6. 27 Onde lê-se P (grifo do autor) pode considerar-se proposição. 66 Outro argumento relevante em favor da dualidade são as interrogativas. Nesses contextos, em resposta à sentença declarativa que contém um termo do Quadro 6, utiliza-se o termo yes – no e mais a contraparte negativa do termo que está na pergunta pertencente também ao Quadro 6 e há um contraste entre a sentença correspondente declarativa e sua negação descritiva, conforme exemplo abaixo: (161) a. Ist das Licht schon an? – Nein, das Licht ist noch nicht an. b. Is the light already on? – No, the light is not yet on. O mesmo acontece no PB, como mostra (162): (162) A luz já está acesa? – Não, a luz ainda não está acessa . A resposta à interrogação com já é a sua negação e, para isso, utiliza-se o ainda não. Se as duas partículas não tivessem ligação, por que uma delas seria acionada para a resposta da outra? Outro argumento, conforme Löbner (1999), a favor da dualidade é o fato das duas partículas schon e noch e suas contrapartes negativas apresentarem uma alternativa de contraste contrafactual, ou seja, a expectativa veiculada nas sentenças com esses termos seria da ordem contrafactual, conforme o exemplo abaixo no PB: (163) João ainda corre na beira mar. (164) João já está correndo na beira mar. Em (163) o esperado seria que João já não estivesse mais correndo na beira mar e em (164) seria que ele ainda não estivesse correndo, ambas as expectativas fazem parte, segundo o autor, da alternativa contrafactual. A análise de van der Auwera (1993), contudo, é contra essa dualidade e se fundamenta principalmente na noção de acarretamento. Afirma que schon e noch e suas contrapartes negativas deveriam todas acarretar sentenças com finally, pois postula que todos possuem um componente de mudança de um estado que não continua, conforme os exemplos abaixo, que tratam da mudança relacionada a Peter não estar em Madrid28: 28 A série (165) – (167) foi retirada de van der Auwera (1989, p. 618): (11) Peter is already in Madrid. It is not the case that it is still the case that Peter is not in Madrid. (14) Peter is finally in Madrid. It is not the case that it is still the case that Peter is not in Madrid. 67 (165) a. Peter já está em Madrid. b. Não é o caso que é ainda o caso que Peter não está em Madrid. (165a) afirma que Peter não estar em Madrid não continua, pois Peter já está em Madrid, logo, acarreta (165b). O mesmo acontece em (165b), em que o estado de Peter não estar em Madrid não se prolonga, assim, acarreta Peter já está em Madrid (165a), e, portanto, o acarretamento é bidirecional; nesses termos, constata-se que ambas as sentenças são sinônimas: já acarreta não..ainda..não e vice e versa. Segundo van der Auwera (1993), isso também ocorre com finally e not..still..not (166), pois o prolongamento de não estar em Madrid e depois estar, acarreta que existia um caso em que ele ainda não estava em Madrid e esse caso não existe mais, então, finalmente, Peter está em Madrid. Porém, isso não acontece em (167), porque, segundo ele, (167a) significa que a ausência de Peter em Madrid se estendeu e ocasionou uma mudança tardia, já (167b) significa que a mudança de estado aconteceu cedo, o que para Vandeweghe (1983) e Muller (1975), autores apud (VAN DER AUWERA, 1993), cedo e tarde são considerados componentes pragmáticos, e isso seria um ponto a ser melhor discutido, pois, se verdadeiramente forem pragmáticos, o acarretamento ocorre e o argumento de van der Auwera não se sustenta. (166) a. Peter finalmente está em Madrid. b. Não é o caso que é ainda o caso que Peter não está em Madrid. (167) a. Peter finalmente está em Madrid. b. Peter já está em Madrid. O suposto não acarretamento entre finally e already, mas entre finally e not...still...not, prova, para van der Auwera, que não há a dualidade. Para o already ser um par de still, segundo van der Auwera (1993, p. 623), deveria apenas significar not....still...not, ou seja, apenas uma descontinuação de um estado negativo, mas este não é o caso, pois already obtém um resultado positivo. Se ele significasse só a descontinuação do negativo, ele se combinaria com o finally, seria par de still e se igualaria, segundo ele, às línguas como o búlgaro veĉe, o macedônico veǩ e, o húngaro mar, o armênio ardȇ n, o lituano jau, o espanhol ya, e o ídiche (15) Peter is finally in Madrid. Peter is already in Madrid. 68 shoyn, em que, ao contrário do que ocorre para o alemão e para o inglês, essa combinação se realiza. Segundo o critério de avaliação de van der Auwera (1993), não há acarretamento bidirecional entre finally, already, still e suas contrapartes negativas, por isso, segundo seus critérios, não há dualidade. No PB, pelo o que foi visto através dos exemplos (166) e (167) pode haver acarretamento se avaliarmos que o evento ter acontecido após o esperado for considerado uma implicatura, mas isso foi uma pequena amostra, precisa ser melhor verificada, assim como tudo o que envolve o finally e o acarretamento bidirecional. Ao contrário de Löbner (1989; 1999) cujos argumentos se fundamentam nas perguntas e nas alternativas de contrastes contrafactuais, no PB, mediante os exemplos (162), (163) e (164), respectivamente, comprova-se que há a dualidade. E, por esses argumentos serem mais visíveis, assumimos a proposta de Löbner. Isso porque ao enunciarmos uma pergunta com já, naturalmente acionamos o ainda não quando a resposta for contrária e, da mesma forma ocorre com o ainda, que aciona o já não. Analogamente, é muito fácil captar um cenário contrafactual em atuação simultânea à sentença, exatamente devido às expectativas que esses itens carregam, o que é altamente notável nas sentenças, conforme testes29 com falantes. É importante salientar que os dois autores analisam os termos nos seus usos temporais. Van der Auwera (1993), primeiramente, faz uma classificação baseando-se na ausência da escala em uso, já Löbner (1989; 1999), assume que todos os usos de noch possuem uma escala, e essa é mais uma das diferenças entre Löbner e van der Auwera – o uso não-escalar –, por isso a importância da escala, assim como o entendimento da diferença que ela faz ou não. Uso não-escalar Van der Auwera (1993) considera que existe pelo menos um uso de already e still e suas contrapartes negativas que não dispara uma escala, exemplificado por (168): (168) John still is Mary's boyfriend. João ainda é namorado de Maria. O autor afirma que há um grupo semelhante aos casos de (168) que não dispara qualquer escala, mas não explica por que não há a escala. Outros casos como (168) também entram nesse grupo e a argumentação de van der Auwera se baseia na noção de acarretamento, 29 Testes informais com falantes expostos às sentenças com o já e o ainda. 69 afirmando que already, still e suas contrapartes negativas estabelecem acarretamento entre si como, por exemplo, acontece entre already e not still not, conforme o que segue: (169) a. Peter is already in Madrid. b. It is not the case that it is still the case that Peter is not in Madrid. Nesses exemplos (168) e (169), há acarretamento nas duas direções e se distingue o uso nãoescalar dos demais a partir disso. Mas vale notar que, aparentemente, no exemplo em (168), também há duplo acarretamento entre ainda e não não mais: Não é o caso que João não é mais o namorado de Maria. Por isso, assumimos com Löbner, que ainda e já e suas contrapartes negativas são sempre escalares. 2.1 ESCALAR O uso denominado escalar por van der Auwera (1993) contempla somente exemplos com escala numérica, como o seguinte: (170) Peter has already got five books. Trata-se de uma escala diferente da pensada por Löbner (1989; 1999), para quem escalar refere-se a uma escala temporal, envolvendo contrastes de momentos: o contínuo temporal tendo dois pontos como anteparo. O uso escalar de Löbner (1989) é mais bem elaborado, uma vez que considera os termos como advérbios temporais e se baseia em duas hipóteses: na primeira, assume que as partículas têm escopo na sentença inteira e, na segunda, que os termos focalizam um constituinte da sentença, pegando um valor em alguma escala, conforme, respectivamente, os exemplos: (171) Gestern war er noch da. Yesterday, he was still there. (172) Kommt sie schon morgen an? – Nein, sie kommt erst spater an. Is she arriving as early as tomorrow? – No, she is arriving only later. 70 Enquanto (171) representa os usos mais básicos dos componentes da dualidade, com foco sentencial e não em um componente específico, (172) focaliza o tempo adverbial que pode ser representado por later. Uso t-escalar No uso denominado t-escalar, a notação t representa tempo, visto que os integrantes deste grupo vêm sempre acompanhados de um advérbio de tempo. O termo escalar se justifica porque também disparam uma escala. No início, Capítulo 2, a dúvida era se esse uso faria parte do uso temporal; trata-se do caso que, geralmente, vem acompanhado de um advérbio temporal, focalizando-o: (173) Eu ainda ontem falei de você. Mas, há vezes em que o still e o already e suas contrapartes negativas são t-escalares, porém, não são acompanhados por advérbios implícitos e ainda assim a interpretação dos itens é de advérbios temporais, conforme exemplo abaixo: (174) It is as late as two o’clock. (175) He comes as early as two o’clock. Van der Auwera (1993) faz uma comparação entre o uso t-escalar, representado pelo (174), e o uso escalar ordinário, ilustrado por (175). Segundo o autor, as early as pode ser substituído por already em (175), sem perder o sentido default, já em (174), pode ser substituído por as late as, porém, não se conservará o mesmo sentido inicial. Fenômeno semelhante acontece no exemplo abaixo: (176) Caesar already has stated that… O already pode ser substituído por someone as early as, também esta expressão embute um adjunto temporal. O mesmo ocorre no português: Já César dizia... Esses são usos distintos dados ao mesmo still temporal, por exemplo. No PB, não fazemos essa diferenciação, o uso temporal é único e a classificação só é feita para diferenciálo do uso conjuntivo e do discursivo. 71 2.1.1 Escalas por Löbner A escala é um ponto discutido na questão da dualidade, pois Löbner (1999) considera que ela exista em todos os usos temporais que ele estudou do noch, ao contrário de van der Auwera (1993), o qual afirma que há usos em que ela não existe. Há uma polêmica entre os dois autores com relação à dualidade, tudo começou com o texto de Löbner (1989) em que afirma haver uma dualidade entre schon e noch da qual van der Auwera discorda. Outro ponto relevante de discrepância entre esses dois autores é a questão da escala. Como foi visto, van der Auwera considera que há um uso que não dispara escala, já Löbner considera que todos os usos disparam-na. Contudo, inicialmente, é necessário saber que as considerações sobre escala entre van der Auwera e Löbner são diferentes. Löbner (1999, p. 58) postula que o contraste de polaridade entre P e sua negação nãoP ou entre os casos de P ser V ou P ser F é projetado em uma escala de tempo. Em texto anterior, Löbner (1989) afirma que os usos temporais têm uma característica principal que os diferencia dos demais, a escala. Ele argumenta que os termos possuem uma escala base e ela é lexicalmente fixada por parâmetros não acessíveis na sintaxe, isto é, a escala não é visualizada na estrutura sintática, por conseguinte, é sustentada apenas pela semântica. O autor explica que esse contraste entre P e não-P está no contraste local, no tempo da escala entre dois intervalos adjacentes ou fases de diferentes polaridades. Isso tudo se traduz na linguagem de P e não-P que o autor identifica como polaridade positiva e negativa. Vale ressaltar que a terminologia polaridade utilizada pelo autor não é a mesma referida nos itens de polaridade negativa, que trata de outro fenômeno, pois a polaridade nesse caso dos textos de Löbner é a polaridade entre P e não-P e não que o ainda ocorra, preferencialmente, em contextos negativos ou tenha uma interpretação negativa. Por isso, o exemplo (168), que para van der Auwera (1993) é não escalar, na análise de Löbner é escalar, pois still dispararia uma escala de contraste entre P e não-P, ou seja, a escala se estabeleceria entre o estado de ser namorado e o de não ser. O tempo, segundo Löbner (1999, p. 97-98), sempre é o alvo da escala disparada pelos termos em questão e o autor tenta provar essa posição com exemplos do alemão e do inglês que estão abaixo apresentados em português30: 28 No texto original consta: (56) a. Sie ist noch eine Assistentin. She still is an assistant professor. Sie ist keine Assistentin mehr. She isn’t an assistant professor any more. b. Ich wohne noch Lange hier. I’ll keep living here for a long time. 72 (177) a. Ela ainda é uma assistente de professora. Ela não é mais uma assistente de professora. b. Eu ainda ficarei vivendo aqui por longo tempo. Eu não ficarei vivendo aqui por longo tempo. c. Eu ficarei vivendo aqui até maio ainda. Eu não ficarei vivendo aqui até maio. Todos os exemplos estão relacionados ao tempo, uns mais explicitamente como são os casos de (177b) e de (177c), pelo uso das expressões longo tempo e maio, e outros mais implicitamente como (177a). Nas expressões acima, longo tempo seria o topo da escala e antes estariam pouco tempo, médio tempo, assim como maio seria o cume e os meses antecedentes como janeiro, março, abril, seriam pontos anteriores. Já em (177a), Löbner (1999) afirma que há uma escala de tempo P (ser professora) e não-P (não ser professora), porém, nesse exemplo, entendemos que ela também pode ser confundida com uma escala disparada por assistente de professora, que seria um ponto baixo da escala e que seguiria com a sucessão por monitora, até chegar em professora, coordenadora, diretora. Essas escalas, segundo Löbner (1999), estão presentes em todos os itens da dualidade e seus correlatos negativos, mais um argumento a favor da dualidade. No entanto, van der Auwera afirma que a escala não está presente em todos os usos. É visível o contraste de estados entre os membros da dualidade, por isso, assumimos com Löbner que a questão da dualidade se mantém por mais esse motivo, somado à questão das perguntas que obtêm respostas com termos da dualidade, às pressuposições de estados que cada item da dualidade ativa, assim como às alternativas de contrastes contrafactual que todos eles possuem. Mas esse tema da dualidade é antigo, principalmente em estudos para a língua alemã com Dherthy (1973), König (1977), König & Traugott (1982), Löbner (1986), entre outros, todos textos (apud LÖBNER, 1999). Mesmo que neles não haja alusão explícita à dualidade, os estudos contêm análises correlacionando os termos por apresentarem características comuns. c. Ich wohne nicht mehr Lange hier. I wont’t keep living here for a long time. Ich wohne hier noch bis Mai. I’ll keep living here till May yet. Ich wohne hier nicht mehr bis Mai. I won’t keep living here till May. 73 Para os dados de ainda no PB, assim como para os dados do já, assumimos que há a escala proposta por Löbner – a de estados entre P e não-P –, e isso é mais uma evidência para os dois termos fazerem parte do esquema da dualidade. 2.2 Diferenças e semelhanças entre já e ainda Dentro da interpretação temporal, van der Auwera (1993) estabelece as noções de tarde para o still e cedo para o already e, semelhante ao que pensávamos no início deste trabalho, o ainda não, segundo o autor, carrega uma idéia ou expectativa positiva, conforme o exemplo abaixo: (178) João ainda não está em Curitiba. Löbner (1999) mostra que essa expectativa de que João deveria estar em Curitiba é uma implicatura de mudança de estado, em contraste com van der Auwera (1993). Assim, as noções de cedo e tarde associadas a já e ainda, respectivamente, são implicaturas; o que reforça a tese de que há acarretamento entre as sentenças em (167), contrariamente ao que postula van der Auwera. Sobre a semântica das partículas no inglês, van der Auwera não chega a formalizá-las, porém, ao longo do artigo, há sempre considerações esparsas, as quais procuramos juntar no quadro abaixo e aplicá-las ao PB: JÁ - Não expressa continuação, mas o começo de um estado; - designa um tempo imediatamente depois da mudança de estado, a continuidade é irrelevante. Quadro 8 – Características do já 74 AINDA NÃO AINDA JÁ NÃO Continuação positiva Continuação de uma Ausência da continuação ausência Há uma mudança de estado que é somente antecipada e não é claro quando e se ocorre. Quadro 9 - Características do ainda, não ainda e já não Observe que separamos o já das demais partículas, pois van der Auwera (1993) separou o already31 das demais. Isso porque ele entende que already não expressa continuação, ao contrário das outras, e sim o começo de um estado. Deixamos essa divisão para que o leitor visualize a posição de van der Auwera, contra a dualidade, porém, assumiremos, neste trabalho, a existência de fortes argumentos que sustentam a dualidade, como dito anteriormente. Para o significado dos termos, van der Auwera (1993), em consonância com Vandeweghe (1983 apud LÖBNER, 1999), também utiliza uma representação através de diagramas (como a Figura 4); já Löbner acrescenta uma generalização sobre as condições de verdade (vista na seção 4) para os termos. O diagrama abaixo foi desenvolvido por van der Auwera, que afirma que este é semelhante aos diagramas de Löbner (como a Figura 6), porém, mais complexo: ... 1 2 3 4 5 6 7 8 9 ... – + _______________________________________ Figura 4 – Diagrama de van der Auwera (1993, p. 619) Nesse diagrama, os números representam o tempo, o estado; a linha horizontal, a mudança de estado; a linha vertical tocando a horizontal, e os sinais de negativo e positivo identificam os estados negativo e positivo, respectivamente. Na parte hachurada, no estado positivo, está localizado o already. Observe um exemplo transposto ao PB a partir dessa representação: (179) João já está na casa nova. 31 O already foi traduzido por já, assim como as demais partículas por suas correspondentes no português, para facilitar a visualização. 75 A parte hachurada é o estado atual de João estar na casa nova e aconteceu uma mudança do estado de não estar para estar na casa nova, que é representada pela parte anterior à linha vertical, que indica o momento de transição, que se deu ao longo do eixo temporal, representado pelos números. O diagrama para representar still é um pouco diferente do anterior, pois nele há dois cenários, já presentes nas análises de Doerthy (1973), König (1977), Muller (1975) e Martim (1980) (apud VAN DER AUWERA, 1993). Um cenário anterior e um outro, que na terminologia dos dois primeiros autores, é um cenário de leitura contrafactual e evolutiva. ... 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 ... + – ______________________ – + ___________________________________ Figura 5 – Os dois cenários que as partículas acionam – aplicada ao ainda Com base nos diagramas de van der Auwera (1993) para as partículas nas outras línguas, estabelecemos a representação do ainda em que a fase factual positiva é contrastada com a fase potencial negativa posterior. Esse cenário contrafactual é demonstrado pelo primeiro desenho da Figura 5, localizado na parte superior, e representa a expectativa, conforme o exemplo: (180) João ainda está em Florianópolis. O cenário factual dessa sentença é o segundo desenho da Figura 5 e, por isso, está localizado na parte hachurada, a parte positiva no momento de referência. Já o cenário contrafactual representa a expectativa de que João não deveria estar mais em Florianópolis no momento de referência, por isso, a seta indica que a sentença, que está no positivo, deveria estar no 76 negativo, ou seja, diferentemente, ele trata essa expectativa como semântica. O que Löbner diz a respeito dessa mudança será mostrado na seção 4. Van der Auwera (1993) assume que esses dois cenários de contrastes fazem parte da semântica tanto do still quanto do already, pois ambos estão sempre presentes juntos. Já Löbner (1999) diz que essas expectativas não adicionam qualquer informação semântica e essas figuras não são convincentes ao ponto de chegar à conclusão de que as expectativas com relação à mudança são semânticas. Segundo van der Auwera (1993), o contraste com o caso contrafactual não indica um componente extra de significado, mas pode ser naturalmente derivado de um formato semântico subordinado em que esse cenário contrafactual é somente uma das duas opções que há para definir o contraste da sentença, ou seja, ele está presente e serve para fazer um contraste. Se, por um lado, Löbner assume que os dois contrastes são alternativas de caminhos para construir uma situação em que uma alternativa é falsa, por outro, van der Auwera afirma que os dois caminhos estão sempre juntos e que o contraste factual que as partículas evocam, assim como o contraste contrafactual, é um significado adicional semântico. No PB, há também esses contrastes mencionados pelos autores para o alemão e para o inglês. (181b) e (181c) são os dois caminhos ou os dois cenários que o ainda da sentença (181a) invoca. A diferença entre van der Auwera e Löbner é que (181b) e (181c), para o primeiro autor, são significados adicionais semânticos e, para o segundo, são significados que podem ser derivados pragmaticamente32. (181) a. João ainda anda de bicicleta com rodinhas. b. Cenário factual: ele anda de bicicleta com rodinhas. c.Cenário contrafactual: ele não deveria mais andar de bicicleta com rodinhas. Van der Auwera (1993) afirma que o cenário contrafactual é um estado oposto ao cenário factual, porém, Löbner (1999) afirma que isso é trivial, a questão está nos casos não triviais em que parece ser o contexto que providenciaria esse cenário contrafactual. Para provar essa declaração, o autor fornece um exemplo em que todos estavam esperando Peter chegar a Madrid às 16:15h, ele chegaria de avião e todos sabiam que o vôo não estava atrasado. Ele chegou as 16:20h, nessas condições, deveria ser perfeitamente aceitável que todos falassem: 32 “[…] The contrast with a counterfactual case does not indicate an extra meaning component but can be naturally derived from the underlying semantic format as one of two options to define a contrast […]” (LÖBNER, 1999, p. 68). 77 (182) It’s four twenty now. Peter has already arrived. São 16:20h agora. Peter já chegou. Dado o contexto da hora esperada em que ele ia chegar e a hora em que ele chegou, é visível que a asserção (182) foi feliz e conversacionalmente relevante, porém, se ele tivesse chegado às 19h, por exemplo, ela não seria. Desse modo, a contrafactualidade não parece ser semântica. Por isso, Löbner (1999) postula que os dois contrastes são alternativas dadas pragmaticamente ao invés de combinações amarradas. Portanto, a expectativa de mudança para um estado oposto, conforme van der Auwera, é semântica. Já para Löbner (1989; 1999), pode haver uma mudança feliz recente, contrária ao que a asserção veicula, e isso é uma implicatura. A mudança para Löbner é semântica, mas ela não é uma expectativa de mudança antes do esperado ou após o esperado, ou ao contrário do esperado, mas apenas uma transição que deve ocorrer, e isso é semântico. Essa questão será mais bem explicitada na seção 5, que trata das condições de verdade. Esse é um dos pontos mais divergentes quanto ao estudo do already e still e suas contrapartes negativas e também se aplica ao estudo dos correspondentes desses itens no PB. Com relação à polaridade, van der Auwera (1993) afirma que not yet é um item de polaridade negativa, isso parece ser evidente, visto que o yet só ocorre com a negação, o still só na afirmação e ambos são variantes para representar o mesmo item lexical, que no PB é o ainda e não possui variantes. Como foi visto nessa subseção, o já e o ainda possuem semelhanças como as expectativas presentes em um cenário contrafactual e ambos estão relacionados ao tempo. Mas as semelhanças não permanecem nisso, as duas expressões também ativam pressuposições. 3 PRESSUPOSIÇÃO Os estados prévios de P e não-P foram citados no início do capítulo e são argumentos a favor da dualidade. Löbner (1999) sistematiza que em todas as partículas, independente dos usos temporais, há uma pressuposição relacionada ao eixo do tempo. Analisemos a sentença abaixo no PB: 78 (183) a. das Licht ist noch an. The light is still on. A luz ainda está acesa. b. das Licht ist an. The light is on. A luz está acesa. O que (183a) expressa a mais do que uma sentença sem a presença do ainda, como (183b)? Löbner (1999, p. 54-55) estabelece para o alemão que as sentenças expressam o mesmo, a diferença está na base da pressuposição a qual diz que P, a luz estar acessa, é verdadeiro para o tempo antes de te33, que, no capítulo anterior, denominamos momento de referência. Ou seja, na sentença (183a), há a pressuposição de estados ou momentos prévios em que a luz está acessa (P) antes do te. Já da sentença (183b), nada podemos afirmar sobre se a luz está acesa ou não antes do te. É possível utilizá-la em uma situação em que a luz não estava acessa antes. Apresentamos abaixo um esquema para a interpretação de (183a): te ________________________________________ tempo P (pressuposição) não–P Figura 6 – Pressuposição de P, presente em (183a) em oposição à parte não hachurada O noch (ainda) recobre um tempo anterior ao momento de referência ou te e também o próprio te, mas note que ele indica uma mudança para um estado de não-P. Essa pressuposição está ausente na sentença sem o advérbio, (183b). Para Löbner (1989; 1999), noch e schon pressupõem estados prévios de P e não-P, respectivamente. Observe o que acontece nos exemplos abaixo do PB: (184) João ainda faz compras naquele supermercado. (185) João já acabou a tarefa. Em (184) a pressuposição do estado prévio é que João fazia compras antes de te naquele supermercado (pressuposição P). A sentença (185) tem a pressuposição de que, em um estado prévio antes do proferimento da sentença (te), João não tinha acabado a tarefa (pressuposição 33 te significa tempo de avaliação, (grifo do autor). 79 não-P). Dessa forma, as pressuposições selecionam intervalos de tempo, antes de te. Observe a figura que representa a pressuposição do schon, que é transposta ao já: te __________________________________________ tempo ________ não–P P (pressuposição) Figura 7 – Pressuposição de schon em oposição à parte hachurada Contrariamente ao noch, o schon tem a fase de não-P anterior ao momento de referência e isso pode ser observado na sentença: (186) A luz já está acesa. Em (186) também há a evolução implícita do tempo, a luz não esteve sempre acesa e representa o resultado do desenvolvimento do estado prévio anterior ao te, em que a luz não estava acesa. Pressupõe que o estado da luz estar acesa era falso em algum tempo antes do te, isto é, que o fato de a luz estar acesa em te não significa que ela não estava acesa antes, mas pressupõe que ela não estava. As partículas noch e nicht mehr disparam a mesma pressuposição de que há uma fase de P começando antes de te. Para apresentar, exatamente, a posição de noch e schon e seus significados, Löbner (1999) desenvolveu as seguintes figuras: te noch (te P) nicht - mehr (te P) ________________________________________ tempo P não – P Figura 8 – Ilustração do significado de noch (te, P) e nicht mehr (te, P) Se analisarmos (183) perceberemos que a zona recoberta por noch é a fase hachurada, que representa o ainda (e seu correspondente no inglês still) na figura, o mesmo pode ser dito 80 sobre o nicht mehr, só mudaria o lugar de apomento. Essa existência de estados anteriores, segundo Löbner (1989; 1999), é dada pela pressuposição. A adição de schon, nicht mehr, noch e noch nicht a uma sentença qualquer dispara a pressuposição de um estado anterior, conforme (183a), o que não ocorre em (183b). Nesta dissertação, utilizaremos o conceito de pressuposição dada por Chierchia (2003, p. 541) em que “[...] pressuposição é aquilo que se dever dar como certo [...]”, é um nexo de significado presente nas intuições sistemáticas do falante nativo de uma língua. A pressuposição vem de informações tomadas como conhecidas pelos interlocutores. É corrente na literatura as várias noções de pressuposição, mas a adotada aqui é a pressuposição semântica e para verificar se ela, verdadeiramente, existe, adotaremos o teste da P-família (família pressuposicional). O teste da P-família consiste em utilizar a negação, a interrogação e os períodos hipotéticos para descobrir se alguma informação se mantém constante. Caso haja a mesma inferência em todas as realizações da P-família, então, essa inferência é pressuposta. Vale ressaltar que as pressuposições também podem ser canceladas; nesse caso, acredita-se que deixa de ser possível atribuir um valor de verdade à sentença. A frase mais clássica e que retrata bem a definição de pressuposição é a seguinte: (187) Posto: Pressuposto: a. João parou de fumar. b. João fumava. Se existir dúvida quanto à existência de pressuposição, acionamos o teste da Pfamília que deve incidir apenas sobre o conteúdo posto. Assim, quando operamos com a sentença, negando-a, interrogando-a, ou estabelecendo uma estrutura hipotética, apenas o conteúdo posto sofre interferência, enquanto a informação pressuposta se mantém constante, conforme os exemplos: (187) c. João não parou de fumar. d. João parou de fumar? e. Se João parou de fumar, ele caiu na realidade. Repare que em todas as modificações do posto, a pressuposição de que João fumava se mantém. Isso é prova de que há pressuposição. Mas continua a ser o caso de que a pressuposição pode ser cancelada, como exemplificado no seguinte contexto: João não parou de fumar, porque ele nunca fumou. 81 Assim, precisamos verificar se a pressuposição de que ainda e já ativam estados prévios P e não-P se mantém diante do teste da P-família, testemos com o ainda: (188) a. Posto: João ainda estava estudando. b. Pressuposto: João estava estudando antes de te te ________________________________________ tempo P estudando não – P não - estudando Figura 9 – Representação da pressuposição de (188a) Vamos, então, testar. Antes, porém, é preciso lembrar que a negação de ainda é já não mais: (188) c. João já não estava mais estudando. d. João ainda estava estudando? e. Se João ainda estava estudando, é porque ele viu a necessidade. (188c) pressupõe que João estava estudando antes. O mesmo pode ser dito das demais. Dessa forma, a pressuposição se mantém. Por isso, com o teste, é possível perceber que a pressuposição de que João estava estudando antes do te (demonstrada na parte hachurada da figura) se mantém. O mesmo teste pode ser aplicado ao já e à sua contraparte ainda não: (189) João já está estudando. Pressupõe que ele não estava estudando antes. (190) João ainda não está estudando. (191) João já está estudando? (192) Se o João já está estudando, então ele vai se sair bem na prova. Através do teste da P-família para o já podemos perceber que a pressuposição se mantém, o que prova que o já também aciona a pressuposição de um estado prévio, assim como o ainda. 82 A pressuposição é fundamental, particularmente, se referindo aos dados do PB, nas sentenças com o ainda. Se ela não existir, não há interpretação temporal. E essa é a questão central dos casos do ainda na afirmação no perfectivo. 3.1 ADJUNTOS TEMPORAIS Como foi visto no capítulo anterior, sentenças semelhantes a (193) não possuem leitura temporal, logo, não há pressuposição de um estado anterior no tempo, mas isso se reverte se houver a união de adjuntos adverbiais temporais, que servem para marcar o momento de referência, ou te e eliminar a hipótese de haver uma restrição aspectual: (193) João ainda chegou [a tempo de evitar um escândalo]. _________________________________________ ME Não-Escândalo te (=MR) MF Escândalo Chegou evitar um escândalo Figura 10 – Representação da sentença (193) Esse momento de referência fixado pelo adjunto temporal34 faz com que o ainda com a leitura temporal ative a pressuposição do conhecimento de um estado anterior ao te, por exemplo. Em (193), o te é o momento de referência em que a sentença é proferida e a pressuposição é o conhecimento do estado prévio em que não há escândalo (P). Portanto, os adjuntos acionam a leitura temporal, acrescentando um momento de referência, e, a partir dele, o ainda aciona a pressuposição. Porém, vale ressaltar que os autores nada se referem à restrição de aspecto com a leitura temporal no perfectivo e tampouco mencionam essa questão dos adjuntos que também acontece em: (194) João ainda trabalhou [depois do escritório fechar]. 34 Conforme mostrado no Capítulo 2, os adjuntos temporais, além de outras funções, localizam a sentença no eixo temporal, fixando um momento de referência. 83 _________________________________________ trabalhar ~~ ~~~~~~ MF ME te (=MR) P- trabalhou escritório fechar Figura 11 – Representação da sentença (194) Com a leitura temporal, adquirida através do adjunto depois, a pressuposição é de que antes do escritório fechar ele estava trabalhando, ou seja, há o conhecimento do estado prévio, que é P. Assim como Löbner (1989; 1999), para o alemão, assumiremos que no PB todas as sentenças com o ainda temporal ativam a pressuposição de um intervalo de tempo anterior ao te, caracterizado por ser um intervalo P. As sentenças que não têm uma leitura temporal podem adquiri-la através dos adjuntos temporais e, através deles, o ainda ativa a pressuposição. Compare as sentenças a seguir com e sem os adjuntos temporais: (195) # João ainda terminou o trabalho. João ainda terminou o trabalho antes de sair. (196) # João ainda correu. João ainda correu antes de ir para o concurso. Nesses casos sem os adjuntos, não há leitura temporal, apenas a discursiva/inclusiva, e quanto menos a pressuposição do estado de P ou não-P antes de te que é acionada pelo ainda com a leitura temporal. Portanto, a questão dos adjuntos está intimamente relacionada ao ainda, resta-nos saber, dessa forma, o que mais faz parte da semântica do ainda temporal. 4 CONDIÇÕES DE VERDADE As condições de verdade das sentenças com os itens em análise também estão fundamentadas na questão da pressuposição para Löbner (1999). Por isso, foi preciso demonstrar, na seção anterior, qual é a pressuposição presente nas sentenças com esses itens. Como já dissemos, para o autor, a diferença entre (183a) e (183b) está na pressuposição. (183a) pressupõe que a luz estava acesa antes do momento de referência em que a sentença 84 foi proferida, já em (183b) não há como afirmar se a luz estava ou não acesa antes do momento de referência. Assim como a pressuposição está intimamente ligada às condições de verdade das sentenças e já foi demonstrado que o ainda é um ativador de pressuposição, outra relação importante para detectarmos a semântica do ainda é o acarretamento; considere os exemplos abaixo: (197) a. João ainda não estava correndo no momento em que Maria chegou. b. João não correu até o momento em que Maria chegou. (198) a. João não estava correndo no momento em que Maria chegou. b. João não correu até o momento em que Maria chegou. A verdade de (197a) acarreta que antes de te, ou antes do momento da chegada de Maria – MR –, João não correu, como em (197b), o que não ocorre em (198), pois (198a) não acarreta (198b). Da verdade de (198a) não podemos concluir que João não correu antes de te, porque (198a) é compatível tanto com João ter corrido antes de te quanto com ele não ter corrido antes de te. Isso pode ser ilustrado nas figuras: ____________________________________ tempo não-P te João não correu ainda não estava correndo P Maria chegou (MR) Figura 12- Representação da sentença acarretada de (197a) na parte hachurada ______________________________________ tempo ????????? te João não estava correndo Maria chegou Figura 13 – Representação da sentença (198) sem o ainda e, portanto, sem acarretamento 85 (197) é compatível com João não estar correndo antes de Maria chegar, mas (198) não é. Em (198), há a dúvida se João estava ou não correndo antes do momento da chegada de Maria, por isso, os pontos de interrogação. Já em (197) o ainda mostra a continuação de uma atividade de não correr que atinge o te ou o momento de chegada de Maria. A parte hachurada na figura 12 representa que João não correu antes de te. A mesma análise pode ser feita para as sentenças com o ainda em todos os tempos verbais, abaixo estão exemplos no futuro progressivo e no presente contínuo. Com base em Parsons (1990 apud CHIERCHIA, 2003), no progressivo todo evento está associado a um estado em que o evento se encontra quando está em andamento. (199) a. João ainda vai estar estudando, quando Maria chegar. b. João estudou antes de Maria chegar. (200) a. João vai estar estudando, quando Maria chegar. b. João estudou antes e Maria chegar (201) a. João ainda corria quando Maria chegou. b. João correu antes do momento em que Maria chegou. (202) a. João corria quando Maria chegou. b. João correu antes do momento em que Maria chegou. Os exemplos mostram que nas sentenças (197), (199) e (201), em que o ainda está presente, há uma relação de acarretamento, ao contrário das (198), (200) e (202). Significa que as condições de verdade de uma sentença com ainda não são as mesmas que sentença possuiria sem o ainda. Alguém poderia questionar se o evento de João correr, na sentença (201), é verdadeiramente um acarretamento ou se é uma pressuposição. Essa pergunta se estende a todas as sentenças em (b) de (197), (199) e (201). Se analisarmos, separadamente, cada uma delas, verificaremos, através do teste da P-família, que a pressuposição (sentenças em b) se mantiveram diante da negação, interrogação e hipotetização. A exemplo disso, mostraremos o que acontece em (201). Se negarmos (201a), obtemos: (203) João já não corria mais quando Maria chegou. 86 A pressuposição de que João correu antes do momento da chegada de Maria se mantém perante o teste da negação, pois, quando negamos o posto (201a), a pressuposição de que ele correu antes continua existindo. É possível perceber a diferença entre (201) e (202), pois, enquanto (201) dispara a pressuposição, (202) não a dispara, logo, o ainda e o já não mais alteram as condições de verdade das sentenças. Löbner (1999), no que diz respeito às condições de verdade das sentenças com noch e nicht mehr, faz, inicialmente, a seguinte proposta35: (204) a) Ambos ainda(te P) e já não(te P) disparam a pressuposição que há uma fase de P anterior a te e que depois do te pelo menos uma mudança entre não-P e P ocorreu. b) ainda(te P) é V e já não é F, sse a pressuposição em (a) é preenchida e P(te) é V. c) já não(te P) é F e ainda(te P) é V sse a pressuposição em (a) é preenchida e P(te) é F. Conforme (204), a mudança faz parte das condições de verdade do noch e isso é transposto ao ainda, mas note que não há qualificações à mudança (não está dado semanticamente que essa mudança ocorreu antes ou depois do esperado). Outra questão fundamental na explicação semântica dos itens é a pressuposição que está fundamentada no tempo, logo, as condições de verdade também estão. Elas dependem do momento de te no eixo temporal. Conforme os diagramas anteriores mostraram, já tivemos uma prévia noção do que acontece nas sentenças com o acréscimo das partículas ainda, já e suas contrapartes negativas. Löbner (1999) postula que partículas no alemão estão relacionadas a intervalos adjacentes de tempo ou fases de diferentes polaridades que formam um contraste entre P e não-P. Essas fases de diferentes polaridades não são escolhidas aleatoriamente. Cada partícula requer uma determinada fase de polaridade. “[...] Schon e noch nicht requerem um intervalo de tempo que comece com a fase de polaridade negativa, isto é de não-P, enquanto noch e nicht mehr requerem um intervalo de tempo que comece com uma fase positiva de P” (LÖBNER, 1999, p. 58)36. O mesmo pode ser dito dos pares já / ainda não e ainda / já não 35 Truth conditions for noch (te P) and nicht mehr ((te P): a. Both noch (te P) and nicht mehr (te P) trigger the presupposition that there is a phase of P starting before te and that up to te at most one change between not-P e P has occurred. b. noch (te P) is true, and nicht mehr (te P) is false, iff the presupposition in (a) is fulfilled and P (te) is true. c. noch (te P) is false, and nicht mehr (te P) is true, iff presupposition in (a) is fulfilled and P (te) is false. 36 No inglês, consta: “The use of de schon and noch nicht requires a time interval which begins with a phase of negative polarity, i.e. of not-P, while noch e nicht mehr require the time interval to begin with a positive phase of P”. 87 mais, respectivamente. E isso se dá através dos intervalos de tempo admissíveis em termos de P e não-P e te: te ________________________________________ tempo não – P P Figura 14 – Intervalos admissíveis em termos de P e te de schon e noch nicht te ________________________________________ tempo P não- P Figura 15 – Intervalos admissíveis em termos de not-P e te de noch e nicht mehr Essas restrições a respeito das fases de intervalos de tempo são capturadas pela noção de intervalos admissíveis em termos de ≤, P e t, para isso, Löbner (1999, p. 59) elabora a seguinte definição 37: (205) DEFINIÇÃO: Intervalos admissíveis (IA) em termos de ordem entre P e t Para qualquer predicado P com um domínio D(P) que foi ordenado por uma ordenação parcial ≤, e qualquer P no domínio D(P), o conjunto de intervalos admissíveis em termos de ≤, P e t - IA(≤, P, t) – é o conjunto de todos os intervalos em que: (i) contém t, mas não bem no seu começo, (ii) começa com a fase de não-P, (iii) contém no máximo uma polaridade que alterna entre não-P e P. 37 DEFINITION: Admissible intervals in terms of ≤, P and t For any predicate P with a domain D(P) that is ordered by a partial ordering ≤, and any t in D(P), the set of admissible intervals in terms of ≤, P and t – AI(≤,P, t) – is the set of all intervals which (i) contain t, but not as their very beginning, (ii) start with a phase of not-P, (iii) contain at most one polarity switch between not-P 88 Segundo essa definição, o intervalo de tempo selecionado pelas pressuposições de schon(te, P) e noch nicht(te, P) partem de P, o que resulta, dada a definição de intervalos admissíveis, no esquema representado pela Figura 14. Já noch e nicht mehr, partem na definição de IA, de não-P, o que gera o esquema da Figura 15. Van der Auwera (1993), antes dessa definição elaborada por Löbner (1999), já afirmava que, na semântica desses itens, há contrastes entre dois estados, mas não chegou a sistematizar de tal forma e, como vimos, acrescenta qualificações a essa mudança. Esses intervalos admissíveis formam a base, segundo Löbner (1999), que permite uma definição mais exata da semântica desses itens: (206) schon(te P) noch(te P) noch nicht(te P) nicht mehr(te P) ∃∀I(I ∈ IA(≤t, P, te): ∃∀I(I ∈ IA(≤t, not-P, te): ∃∀I(I ∈ IA(≤t, P, te): ∃∀I(I ∈ IA(≤t, not-P, (te)): P(te)) P(te)) not-P(te)) not-P(te)) AI(≤t, P, te) é o conjunto dos intervalos admissíveis de ordem temporal ≤t, P e te, AI (≤t, not-P, te) é o mesmo com P substituído por não-P. O operador ∃∀ – para algum e todo –, é um operador de livre escolha que permite optar por qualquer elemento que satisfaça a condição no lado esquerdo dos dois pontos e afirme o que é dito no lado direito dos dois pontos. Isso pressupõe a existência de tais intervalos. Se existe um intervalo no eixo do tempo o qual reúne a condição dada pela pressuposição, então qualquer intervalo poderá ser escolhido. Pela formalização, a pressuposição de noch e nicht mehr é um intervalo de not-P e a schon e noch nicht, um intervalo de P. Schon e noch afirmam P e suas contrapartes negativas, como o enunciado já diz, afirmam não-P. Isso, para Löbner (1999, p. 61), quer dizer que a sentença toda logicamente acarreta a asserção, o que já foi demonstrado no início desta sessão, com exemplos transpostos ao PB, nas análises dos acarretamentos e pressuposições. Talvez, depois dessa explicação dos intervalos de tempo, seja possível entender melhor a noção de dêitico dada por Neves (1992, p. 281) e Ilari (1990, p. 77) ao já e ao ainda, principalmente se pensarmos que os dois itens, para serem interpretados, reportam-se ao eixo temporal e se posicionam quanto a ele. Mas Neves nada afirma nesse sentido, embora Ilari tenha mencionado que o locutor, ao utilizar o já, posiciona-se afastando-se do momento de fala, o que é coerente, visto que a visão se amplia para todo o eixo temporal. Vale ressaltar que as explicações para noch (ainda) basearam-se em te que pode ser o momento de fala, mas não necessariamente. Em suma, o ainda pode ser considerado um dêitico no sentido de se afastar da sentença e se reportar ao eixo temporal. 89 No PB, o mesmo tratamento que foi dado ao ainda pode ser dado ao já, ambos interferem nas condições de verdade das sentenças, conforme o que foi verificado através da relação de acarretamento presente em (207) e (208), também visto no exemplo abaixo: (207) a. João já não estava correndo. b. João correu. (208) a. João não estava correndo. b. João correu. Perceba que, ao dizer (208a), não significa que João correu antes, porém, em (207a), com o acréscimo do já não, a interpretação que temos é de que João necessariamente correu em um intervalo anterior, embora já não estivesse mais correndo. Ou seja, (207a) acarreta (207b), mas (208a) não acarreta (208b). Logo, há uma diferença nas condições de verdade entre as sentenças (207a) e (208a), e essa diferença é dada pelo item lexical já não. Há, ainda, um caso38 em que o ainda altera as condições de verdade da sentença. Considere a seguinte situação. Um médico passeia com um fisioterapeuta por um dormitório apresentando os pacientes que podem ou não recuperar, com ajuda fisioterapêutica, a capacidade de andar. Ao apontar para um paciente, ele afirma: (209) Este paciente não anda. Nesse caso, a fala do médico é um veredicto de que a capacidade de andar do paciente está irremediavelmente comprometida, logo, a fisioterapia não adianta. A sentença em (209) tem, fora de contexto, mais de uma interpretação. Estamos focalizando apenas uma para mostrar que essa interpretação está ausente na sentença com ainda. Uma interpretação possível para (209), mas que não é adequada na situação do médico (afinal estamos em um dormitório em que nenhum dos pacientes anda), é de que o paciente tem a capacidade de andar, embora ele esteja provisoriamente incapacitado. Se compararmos com (210), notaremos que essa é a sua única interpretação possível. Somente (209) permite a interpretação de que ele perdeu permanentemente a capacidade de andar. Essa interpretação é incompatível com o uso de ainda: 38 Este foi encontrado por Roberta Pires de Oliveira. 90 (210) Este paciente ainda não anda. A interpretação de incapacidade permanente não está disponível para (210), porque, para que essa sentença seja verdadeira (ou falsa), é preciso que a capacidade de andar do paciente esteja intacta, embora, no momento, o paciente não esteja andando, pois ainda indica exatamente uma transição de estados de coisas. Se a possibilidade de transição está bloqueada, não há como usar ainda. Assim, as condições de verdade de (209) e (210) não são exatamente as mesmas: em (209) é possível que o paciente não tenha (mais) a capacidade de andar, porque a sentença não veicula transição de estado, enquanto que em (210) é preciso que ele tenha a capacidade de andar, embora, no momento, ele não possa andar, precisamente porque a sentença veicula transição. A sentença (210) só pode ser usada se há a capacidade de andar, porque só assim pode haver transição para outro estado de coisas. A sentença em (209) é compatível com a não existência de mundos em que João anda (em todos os mundos que são prosseguimentos do mundo real a partir do momento de fala do médico é o caso que o paciente não anda); para (210), necessariamente, há mundos (ou ramificações do mundo real) em que ele anda. Esta é mais uma razão para afirmar que o ainda altera as condições de verdade da sentença. Com isso, até o momento, não parecem existir mais problemas, mas e como fica a nossa intuição de que a mudança já deveria ter ocorrido ou ainda não deveria ter acontecido? E a existência de uma expectativa nas sentenças com as partículas já e ainda e seus correlatos negativos? Por exemplo, em (207a), parece haver uma expectativa de que João ainda estivesse correndo, não tivesse mudado do estado de P para não-P. Löbner (1999) resolve isso da seguinte maneira: afirma que essas intuições são implicaturas conversacionais. 5 IMPLICATURA Com o avanço da pesquisa, as sugestões da banca de qualificação e os estudos de Löbner (1989; 1999), o que ora era expectativa negativa ora positiva envolvida com o já e o ainda, passou a possuir um ponto em comum maior que unifica a natureza dessas partículas: a contra-expectativa, que é sempre o não esperado. Ou seja, cada asserção assume um intervalo admissível P ou não-P e a expectativa é sempre contrária a esse intervalo. A mudança a partir do te pode ocorrer e é semântica, porém, a expectativa é de que o estado atual não estivesse acontecendo e essa contra-expectativa é de ordem pragmática. Sobre a contra-expectativa, van 91 der Auwera (1993) e Löbner (1989; 1999) nada declaram, já Martelotta (1996) reconhece que um grupo de ainda é portador dessa característica. Nesse campo, insere-se a implicatura conversacional, que, segundo Chierchia (2003, p. 252) é um “[...] aspecto do que é dito que não faz parte do significado convencional, uma de suas características peculiares é a de serem canceláveis [...]”. Ela se baseia no significado convencional, nas máximas conversacionais e nas informações presentes no contexto. Por isso a necessidade de testar se as expectativas que parecem estar associadas a essas partículas são ou não implicaturas; se forem, devem ser passíveis de cancelamento. Para o caso de nicht mehr, (correspondente do já não, não mais no português), por exemplo, Löbner (1999, p. 75) diz que a expressão dispara a implicatura da mudança feliz recente. O operador é utilizado para, justamente, veicular a mudança, a transição entre P e não-P. Além disso, há a idéia de que a mudança ocorreu há pouco tempo, como uma característica do ser recente, que é de natureza pragmática. Vejamos o que ocorre com o ainda, nosso objeto de estudo: (211) a. Posto: João ainda estava estudando. b. Implicatura: João não deveria estar mais estudando. c. Implicatura cancelada: João ainda estava estudando, e nem poderia ser diferente dado o tanto de matéria que ele tinha. (211c) cancela a expectativa de que João não estivesse mais estudando no momento de referência. Isso mostra que a expectativa de que ele não estivesse mais estudando naquele momento, no momento de referência, pode ser cancelada. Logo, ela é uma implicatura. O mesmo acontece em (212a), citada na seção 3 para análise da pressuposição e retomada no estudo da implicatura: (212) a. das Licht ist noch an. The light is still on. A luz ainda está acesa. b. das Licht ist an.. The light is on. A luz está acesa. A presença do noch acrescenta a idéia de que a luz já não deveria estar mais acesa, e essa idéia, segundo Löbner (1999) e o que assumimos neste trabalho, é uma implicatura, logo, 92 poderá ser cancelada. Obviamente, a idéia de que a luz já não deveria estar acesa nem se coloca para (212b), precisamente porque este caso não veicula mudança. E é isso que é feito quando afirmamos: a luz ainda está acesa e nem poderia ter sido apagada porque ela é automática à presença de movimento e há gatos no ambiente a todo momento. Também a expectativa, no caso de (212a), pode ser cancelada. Em consonância a essa linha de raciocínio, Muller (1975) e Baar (1992) afirmam que o já contém um componente de mudança cedo e isso já estava presente em König (1977) e Valikangas (1982). Também Vandeweghe (1983) assume essa posição e diz que esse componente é pragmático, todos autores citados por van der Auwera (1993, p. 619). Diante de tudo disso, para o caso do noch, a pressuposição é sempre disparada pelo item lexical, mas ela pode ou não ser preenchida, já a implicatura pode ou não estar presente, a depender do contexto, podendo inclusive ser cancelada. Isso leva em consideração as características apresentadas nas noções-padrão de implicatura e pressuposição, utilizadas neste estudo. Além disso, a expectativa vem sempre de encontro ao estado ou intervalo veiculado pela asserção. 6 PORTANTO... Através dos textos e das análises para o alemão, pudemos perceber que o ainda temporal está ligado ao já e suas contrapartes negativas por diversos fatores argumentados por Löbner (1999), contra van der Auwera (1993). O principal argumento que valida a hipótese do primeiro autor é a questão das perguntas, pois a resposta sim não a uma pergunta declarativa com o ainda, por exemplo, aciona a sua contraparte negativa que é o já não mais e isso se verifica com todos os componentes da dualidade. Outro forte argumento é o das expectativas veiculadas pelas sentenças, nas quais são acionadas as contrapartes negativas, pertencentes à dualidade e à pressuposição de estados prévios, presente em todos os termos. Se parássemos por aqui, já haveria provas suficientes ao convencimento do esquema, no entanto, van der Auwera (1993) dispensa bastante tempo tentando provar que nem todos os membros da dualidade são acarretados por finally e vice-versa. Buscamos mostrar que essas diferenças de sentido levantadas pelo autor podem ser explicadas pragmaticamente. Logo, concluímos que ainda e já são duais. A escala é outro ponto divergente entre os autores, pois Löbner (1989; 1999) afirma que ela está presente em todos os usos de noch, ao contrário de van der Auwera (1993) o qual 93 afirma que há pelo menos um uso que não utiliza essa relação. Mas, todos esses usos, pelos estudos e pelos dados do PB com já e ainda, recebem um tratamento uniforme, pelo menos em relação ao que eles veiculam semanticamente, e assumimos que as escalas entre P e nãoP, propostas por Löbner (1999), estão presentes nesses dados, o que legitima ainda mais a questão da dualidade. Nessa mesma perspectiva, podemos citar também a pressuposição, fundamentada no que a literatura já diz a respeito disso para o alemão e para o inglês e que mostramos ser também o caso para os dados do PB e a contra-expectativa, já mencionada por Martelotta (1996). Portanto, todo ainda temporal aciona uma pressuposição do conhecimento de um estado prévio, anterior ao te ou imediatamente anterior, caso do futuro. Se não houver essa pressuposição, não há leitura temporal e, para havê-la, às vezes39, há necessidade de adjuntos temporais, que ajudam a localizar as sentenças no eixo temporal, acrescentando um momento de referência e, dessa forma, colaboram para o ainda ativar a pressuposição. Também está presente, em todas as sentenças com o ainda, uma expectativa contrária ao que a asserção informa, ou seja, o estado veiculado pela sentença não deveria estar habilitado, nos casos das sentenças afirmativas; exatamente o oposto ocorre nas sentenças negativas, e isso é uma implicatura. A pressuposição do conhecimento do estado anterior ao te não depende em nada do contexto, exceto no perfectivo, pois, nesse aspecto, esporadicamente, são necessários os adjuntos para a sentença ganhar conteúdo. Nos demais casos, o contexto não influencia a pressuposição, que é dada, exclusivamente, pela semântica do ainda, ao contrário da implicatura da expectativa. Além das sentenças com o ainda dispararem pressuposições, também estabelecem relações de acarretamento que são distintas das relações de acarretamento das sentenças sem esse item, mostrando, então, que ele interfere nas condições de verdade das sentenças. O mesmo acontece com o já em relação ao acarretamento, o que é só uma das características em comum entre eles. A pressuposição, no caso do já, não foi testada nesta dissertação, mas, ao que tudo indica, também se mantém. Ainda com relação às condições de verdade, vale ressaltar, que, conforme Löbner (1999), as sentenças pertencentes à dualidade sempre possuem estados de P e não-P e a transição entre eles já faz parte da semântica dos itens. As relações de expectativa, acarretamento e pressuposição estão ligadas aos estados de P e nãoP, formando, assim, um contraste entre polaridade negativa e afirmativa, o que, na visão de Löbner (1999), são contrastes projetados em uma escala de tempo. 39 Às vezes porque há o tipo conjuntivo de ainda que mesmo com adjuntos temporais, não obtém a interpretação temporal. Essa questão dos adjuntos se aplica ao uso do ainda discursivo. 94 Ainda: NOVOS CAMINHOS As trajetórias percorridas para chegarmos a conclusões no estudo semântico do item lexical ainda foram diversas. De início, com poucos textos no PB sobre o assunto, as hipóteses eram “tímidas”, contudo certeiras, pois, posteriormente, apoiadas nos estudos de Löbner (1989; 1999) e van der Auwera (1993), confirmaram-se e ampliaram-se. Foi possível transpor grande parte das análises feitas para o alemão e para o inglês para os dados do PB e o resultado foi satisfatório, pois foi possível compreender qual a contribuição do ainda dentro das sentenças e formular uma semântica para o termo. A hipótese inicial que norteou a decisão pelo objeto de estudo desta dissertação estava intimamente ligada à questão dos itens de polaridade negativa. De início, pensávamos que o ainda era um deles, com base nas conclusões de Ilari (1987) e Mendes de Souza et al (2007). Por isso, a pesquisa iniciou na busca por estudos que tratavam da polaridade negativa e no, primeiro capítulo, apresentamos o fenômeno com base no que a literatura oferece para outras línguas, assim como para o PB. Apresentamos as expressões de polaridade negativa e, posteriormente, os poucos itens já listados no PB, demonstrando que eles ocorrem, preferencialmente, mas não só, em contextos negativos e, além disso, expusemos a polêmica em torno das teorias sobre o que licencia esses itens nos raros contextos não negativos em que eles ocorrem. Várias são as tentativas de explicação, mas contemplamos as mais aceitas, como o acarretamento decrescente, proposto por Ladusaw (2002), a não-veridicidade, levantada por Giannakidou (2001), a escala, ver Fauconnier (1975 apud ILARI, 1984), a proposta sintáticopragmática, de Linebarger (1987) em que os itens pertencentes à classe da polaridade negativa ocorrem na Forma Lógica sob o escopo de uma negação. Diante de todas essas explicações, evidenciamos que não há consenso sobre uma teoria a qual abarque todos os casos, pois exemplificamos cada uma delas e identificamos um contra exemplo. Mas servem, a exemplo do acarretamento decrescente, como testes para descobrir se são ou não itens de polaridade negativa. No PB, Ilari (1987) e Mendes de Souza (2007) afirmaram que ainda é um item de polaridade negativa por haver exemplos em que o termo não ocorre com interpretação temporal na afirmativa. No inglês, Israel (1996) e Ladusaw (2002, [1980]) afirmam que o yet é um item de polaridade negativa. Nessa perspectiva, fizemos testes a partir das propostas de licenciamento e o ainda parecia encaixar-se em uma proposta – a de Linebarger (1987) – pois, para a autora, em todos os itens de polaridade negativa há uma restrição pragmática: trata-se 95 de uma implicatura negativa, por isso pensávamos que o ainda na afirmativa sempre tinha uma expectativa negativa, no entanto, com o avanço do estudo, descobrimos que a expectativa não era negativa, e sim uma contra-expectativa. Portanto, ele não é um item de polaridade negativa. Antes disso, porém, fizemos a separação dos tipos de ainda, pois, inicialmente, já pensávamos que não havia somente um uso do ainda e isso se comprovou através das entrevistas, retiradas do banco de dados NURC, assim como a recuperação de pesquisas de cunho funcionalistas que também dividiram o ainda em grupos. A partir delas, pudemos identificar que todas as ocorrências possuem uma contra-expectativa. A contra-expectativa é uma característica encontrada por Martelotta (1996) em somente um dos seus grupos, mas que, no entanto, mostramos haver em todos os usos de nossa classificação. A partir da divisão em temporais, discursivos e conjuntivos, centralizamos a análise no temporal, porque, além de este ser o uso mais recorrente, é o objeto de Ilari e Mendes de Souza et al (2007). Löbner e Auwera nada dizem sobre esses usos não-temporais, a classificação que estes o fazem é dentro do próprio uso temporal. Com esse uso, a primeira hipótese era de que o ainda tinha restrições para ocorrer em contextos afirmativos, porém, com os testes nos variados tempos e aspectos verbais, assim como nas diferentes acionalidades, foi possível perceber que, primeiramente, o ainda com interpretação temporal, não ocorria na afirmativa somente no pretérito perfeito, por isso a hipótese do ainda ser um item de polaridade negativa foi descartada. Visto que ele ocorria no pretérito imperfeito, passamos a pensar que seria uma questão de aspecto, pois o imperfeito está aberto a mudanças, ao contrário do perfeito. Porém, com o acréscimo de adjuntos de tempo, as sentenças perfectivas se tornaram aceitáveis com a interpretação temporal. A pesquisa buscou, então, descobrir o que acontecia com as sentenças perfectivas acompanhadas por adjuntos temporais. Nesse momento, a fundamentação teórica, baseada nos conceitos de momento de evento, momento de referência e momento de fala de Reichenbach (1947 apud ILARI, 1997) foi de suma importância para nortear a explicação semântica do uso temporal. Dessa forma, pesquisamos a função dos adjuntos nesse tipo de construção e concluímos que ele localiza um ponto de referência no eixo temporal, permitindo que o ainda ocorra. E a partir disso, como apresentado no Capítulo 3, a pressuposição que é acionada pelo ainda pode ser disparada. Também foi possível descobrir, primeiramente com nossos testes e depois confirmado nos textos de Löbner (1989; 1999), que a contraparte negativa do ainda temporal é o já não e que a do já é ainda não, o desconhecimento dessa dualidade é que levou autores como Ilari e Mendes e Souza et al a afirmar que o ainda era um item de polaridade negativa. A questão da 96 dualidade no tipo temporal foi discutida no Capítulo 3, quando mostramos que van der Auwera (1993) a critica austeramente. Mas os argumentos contrários são menos convincentes do que os favoráveis apresentados por Löbner (1999), pois só o fato do ainda (já transposto ao PB) ser acionado na resposta a uma pergunta com o já, e vice-versa, demonstra o quanto eles estão ligados. Isso sem mencionar que todos os pertencentes à dualidade pressupõem um estado prévio anterior ao momento de referência e também o cenário contrafactual, acionado pelos itens em forma de expectativa. Esse estado prévio remete a uma outra característica desses itens e que pôde ser transposta aos dados do PB – a pressuposição. Assumimos a posição de Löbner (para o alemão) de que cada sentença com o ainda ativa uma pressuposição do estado P anterior a te. Concluímos que, com a leitura temporal, é necessário haver a pressuposição. Nos casos do pretérito perfeito, as sentenças com o ainda só são aceitáveis com a leitura discursiva, porém, como já dissemos, com o acréscimo dos adjuntos temporais, passavam a ter uma interpretação temporal e, com isso, o ainda ativava a pressuposição. Para testar se, verdadeiramente, essa pressuposição se mantinha, foram utilizados os testes da P-família, nos quais a pressuposição ativada pelo ainda permaneceu, para isso, novamente foram fundamentais as noções de tempo, fundamentadas em Reichenbach (1947), que ancoraram as explicações apontadas para o objeto de estudo desta dissertação. Ainda com relação aos estados, assumimos com Löbner (1989; 1999) que há escala nas ocorrências de já e ainda – a dos estados entre P e não-P –, e isso é mais uma evidência para os dois termos fazerem parte do esquema da dualidade. Mostramos, também, que o ainda interfere nas condições de verdade da sentença em que ocorre através das relações de acarretamento. Além disso, com base na formalização de Löbner (1999) para o noch, assumimos que no PB a semântica de ainda depende do conceito de intervalos de tempo admissíveis; ele dispara uma pressuposição P pela qual pelo menos uma mudança ocorre entre P e não-P. A questão da expectativa foi resolvida, também de acordo com Löbner, que a considera de ordem pragmática. O que, primeiramente, parecia ser uma expectativa negativa, e com a negação uma expectativa positiva, unificou-se no decorrer da dissertação, em uma contra-expectativa, ou seja, o não esperado, o contrário ao que a asserção veicula e essa expectativa ao contrário do que é veiculado pela sentença é uma implicatura. Com relação às três classes de ainda – a dos conjuntivos, a dos discursivos e a dos temporais –, observamos que o esquema da dualidade não se aplica ao ainda discursivo, pois o oposto negativo desse uso não é o já não mais e o caminho à unificação dos três usos parece estar nessa contra-expectativa, comum a todos eles, pois há uma oposição entre o que a asserção diz e o que é contextualmente esperado. Mas esse já é um tópico para outro trabalho. 97 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARWISE, Jon. & COOPER, Robin. Generalized Quantifiers and Natural Language. Linguistics and Philosophy, v. 9, 1981. BECHARA, Evanildo Cavalcante. Moderna Gramática Portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Lucerna, 2005. CHIERCHIA, G. Semântica. Tradução: Luis A. Pagani, Lígia Negri e Rodolfo Ilari. Campinas: Editora da Unicamp; Londrina, EDUEL, 2003. CUNHA, Celso. Gramática Moderna. Belo Horizonte: Editora Bernardo Álvares S.A, 1971. GIANNAKIDOU, Anastásia. The Meaning of Free Choice. 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Linguistics and Philosophy, v. 16, p. 613-653, 1993. 100 Anexos Presente AINDA ESTADO ATIVIDADE João ainda não ama João Maria. ainda brinca. ACCOMPLISHMENT ACHIEVEMENT não Maria ainda não Com costura o vestido. o que ele treinou, João ainda não alcança o pico do Everest. João ainda ama João ainda brinca. Maria. Maria ainda costura o João ainda alcança o vestido. pico do Everest. JÁ João já ama Maria. João já brinca. Maria já costura o João já alcança o vestido. João já não pico do Everest. ama João já não brinca. Maria já não costura João já não alcança o (mais) Maria. (mais) (mais) o vestido.. pico do Everest. ATIVIDADE ACCOMPLISHMENT ACHIEVEMENT Presente semântico AINDA ESTADO João ainda não está João ainda não está Maria ainda não está João ainda não está amando Maria. brincando. costurando o vestido. alcançando o pico do Everest. João ainda amando Maria. está João ainda brincando. está Maria ainda está João costurando o vestido. ainda está alcançando o pico do Everest. JÁ João já está amando João Maria. já está Maria já está João já está costurando o vestido. alcançando o pico do brincando. Everest. João já amando Maria. não está João já não (mais) brincando. (mais) está Maria já não está João já não está costurando (mais) o alcançando o pico do vestido. Everest. 101 Pretérito Perfeito AINDA ESTADO ATIVIDADE João ainda não amou João Maria. ainda ACCOMPLISHMENT ACHIEVEMENT não Maria brincou. ainda não João costurou o vestido. ainda não alcançou o pico do Everest. João ainda amou João ainda brincou Maria ainda costurou o ?? Maria por mais três antes de ir para a vestido anos após sua morte. escola. João ainda mesmo alcançou o pico do sabendo que está fora Everest. de moda. JÁ ESTADO ACCOMPLISHMENT ACHIEVEMENT ATIVIDADE João já amou Maria. João já brincou. Maria já costurou o João já alcançou o vestido. (?) João já não amou (?) Maria. João já não (?) brincou. pico do Everest. Maria já não *João costurou o vestido. já não alcançou o pico do Everest. Pretérito Imperfeito AINDA ESTADO ATIVIDADE João ainda amava Maria. não João ainda ACCOMPLISHMENT ACHIEVEMENT não Maria brincava. ainda não João costurava o vestido. ainda não alcançava o pico do Everest.. João ainda amava João ainda brincava. Maria ainda costurava João ainda alcançava Maria. o vestido. JÁ João já amava Maria. João já brincava. Maria já costurava o João já alcançava o o pico do Everest. vestido. João já não amava João já não brincava. Maria Maria. (mais) pico do Everest. já não João já não alcançava costurava o vestido. o pico do Everest. 102 estar + ndo AINDA ESTADO ATIVIDADE ACCOMPLISHMENT ACHIEVEMENT João ainda não estava João ainda não estava Maria ainda não estava João ainda não estava amando Maria. brincando. costurando o vestido. alcançando o pico do Everest. João ainda amando Maria. estava João ainda estava Maria brincando. ainda estava João costurando o vestido. ainda estava alcançando o pico do Everest. JÁ João já amando Maria. estava João já estava Maria brincando. já estava João já estava costurando o vestido. alcançando o pico do Everest. João já não estava João já não estava Maria já não estava João já não estava amando Maria. brincando. (mais) costurando o vestido. alcançando o pico do Everest. Futuro AINDA ESTADO ATIVIDADE ACCOMPLISHMENT ACHIEVEMENT João ainda não vai João ainda não vai Maria ainda não vai João ainda não vai amar Maria. brincar. costurar o vestido. alcançar o pico do Everest. João ainda vai amar João Maria. ainda vai Maria ainda vai João ainda vai brincar (por muito costurar o vestido. alcançar o pico do tempo Everest. após o primário). JÁ ESTADO ATIVIDADE ACCOMPLISHMENT ACHIEVEMENT João já vai amar João já vai brincar. Maria já vai costurar o João já vai alcançar Maria. vestido. João já não vai amar João Maria. já brincar. não vai Maria o pico do Everest. já não costurar o vestido. vai João já vai alcançar o pico do Everest. Futuro do presente composto não 103 AINDA ESTADO ATIVIDADE ACCOMPLISHMENT ACHIEVEMENT João ainda não vai ter João ainda não vai ter Maria ainda não vai ter João ainda não vai ter sentido nada por brincado o suficiente costurado o vestido a alcançado o pico do Maria mesmo quando para ficar feliz. tempo da festa. Everest ela se arrepender. chegar quando o tempo estimado da prova. João ainda vai ter João ainda vai ter Maria amado Maria ainda por brincado por muito costurado o muito tempo depois tempo de sua morte. após terá João ainda vai ter vestido alcançado o pico do o antes de sair. Everest primário. antes da chuva. JÁ ESTADO ATIVIDADE João já vai ter amado João já Maria antes de ela se brincado declarar. vai antes recreio chegar. ACCOMPLISHMENT ACHIEVEMENT ter Maria já vai do costurado o ter João já vai alcançar o vestido pico do Everest. quando o João chegar. João já não vai ter João já não vai ter Maria já não vai ter João já não vai mais mais amado Maria mais quando ela brincado de mais o ter alcançado o pico costurado quiser carrinho quando tiver vestido quando a visita do Everest quando voltar. condições estiver de chegar. com mais idade. comprá-lo. Futuro do pretérito composto AINDA ESTADO ATIVIDADE ACCOMPLISHMENT ACHIEVEMENT João ainda não teria João ainda não teria Maria ainda não teria João ainda não teria amado Maria soubesse de se brincado se não fosse costurado o vestido se alcançado o pico do suas hora do almoço. falcatruas. João ainda amando Maria. não fosse o aviso para Everest apressar. estava João ainda teria Maria ainda brincado com ela se costurado o soubesse doença. de teria João ainda teria vestido alcançado o pico do sua antes de sair se não Everest antes de ter estivesse com pressa. um enfarto. 104 JÁ João já teria amado João já teria brincado Maria Maria se ela declarasse. se se soubesse brinquedo novo. já teria João já teria do costurado o vestido alcançado o pico do se tivesse linha boa. Everest se não tivesse chovido. João já não teria João já amado Maria desde o brincado início se não teria Maria já não teria João já não teria se fosse costurado o vestido alcançado o pico do soubesse educado para na hora mais se soubesse que Everest se soubesse como ela era. da aula estudar. ela não paga. de sua doença. 105 106 107