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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LINGUÍSTICA
CENTRO DE COMUNICAÇÃO E EXPRESSÃO
TEORIA E ANÁLISE LINGÜÍSTICA – AS INTERFACES DA GRAMÁTICA
MESTRADO EM LINGÜÍSTICA
‘AINDA’ TEM SOLUÇÃO: UMA PROPOSTA SEMÂNTICA
Letícia Lemos Gritti
Orientadora: Profª. Drª. Roberta Pires de Oliveira
Florianópolis, agosto de 2008.
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LINGUÍSTICA
CENTRO DE COMUNICAÇÃO E EXPRESSÃO
TEORIA E ANÁLISE LINGUÍSTICA – AS INTERFACES DA GRAMÁTICA
‘AINDA’ TEM SOLUÇÃO: UMA PROPOSTA SEMÂNTICA
Letícia Lemos Gritti
Dissertação submetida ao Programa de PósGraduação em Lingüística do Departamento de
Lingüística do Instituto de Letras da
Universidade Federal de Santa Catarina como
parte dos requisitos para a obtenção do Grau de
MESTRE
em
Lingüística.
Área
de
Concentração: Teoria e Análise Lingüística – as
interfaces da gramática.
Orientadora: Profª. Drª. Roberta Pires
de Oliveira
Florianópolis, agosto de 2008.
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4
AGRADECIMENTOS
Agradeço, primeiramente, a Deus pela vida e pela oportunidade de estudar. Por me dar forças
nos momentos difíceis e incentivo para ultrapassar os obstáculos, com muito trabalho e
persistência. E, sobretudo, por ter me presenteado com uma maravilhosa família, ótimos
amigos e uma excelente orientadora.
Aos meus pais, queridos, Sérgio e Maria José que, constantemente, incentivavam-me e
incentivam a prosseguir nos estudos, a lutar por meus objetivos e a crescer profissionalmente.
Pelo amor com que me criaram e educaram e pelo exemplo de coragem e de força de vontade.
Ao meu, querido, irmão Gregório, pelas palavras de ânimo, pelo carinho e pelos momentos de
desabafo no tempo em que morou aqui em Florianópolis e também por ser um exemplo de
força de vontade e equilíbrio.
À minha orientadora, querida Roberta, pelo exemplo pessoal, também profissional e ético
com que encara sua profissão, por seu amor à pesquisa e pela consideração que tem por mim e
por todos os seus alunos. Além disso, agradeço por suas várias leituras, inúmeras correções,
por me iniciar no mundo da pesquisa, ensinar-me a pesquisar e escrever só o que posso
mostrar e também pelos vários emails respondidos rapidamente.
A todos os meus parentes paternos e maternos, àqueles que acreditam e incentivam-me nessa
caminhada.
Às minhas queridas amigas da RDDA (República Democrática da Dona Anita), as que
continuam por aqui e as que por aqui passaram: Nagely, Morgana, Salete e Ani, as lingüistas
da casa; também à Patty (primeira pessoa que me acolheu em Florianópolis), Doro, Nana Tati,
Raquel, Júlia e por extensão a Andréa, pela amizade, por todas as conversas, todas as palavras
de incentivo, por toda a ajuda nas decisões e, principalmente, por sonharmos com um futuro
profissional promissor. Em especial a Nagely por me incentivar a fazer o mestrado e a
Morgana, pela grande amizade e força nos momentos de fraqueza, pela visão ampla na
resolução dos problemas lingüístico-gramaticais e da vida, sobretudo, pelo exemplo de
determinação.
Aos meus queridos tantos (difícil nominar) amigos do GOU (Grupo de Oração Universitário)
– do Projeto Universidades Renovadas – por serem uma segunda família de aconchego, amor
e compreensão. Pelas reflexões entre fé e razão, por me mostrarem que o objetivo do mundo
5
acadêmico não é só ser competitivo, mas se tornar um profissional à disposição das pessoas,
para contribuir na construção de um mundo mais justo.
Aos amigos de todas as horas; de infância, de Floripa, de Curitibanos, de faculdade, de pósgraduação, de trabalho: Vânia, Suéllen, Bruna, Taty, Nair, Fran’s, Eric, Rodrigo, Patrícia,
Mariana, Ana Kelly, Gisele, Atílio, Luisandro, Gugo, Juliana, Duda, Mauro, João, Karen,
Christiany, Alice, Thiza e tantos outros.
Ao Juarez, que esteve comigo em boa parte do mestrado, por valorizar o meu trabalho, escutar
as minhas inquietações, por seu carinho e atenção.
Às professoras Edair Gorski e Lígia Negri por terem aceitado o convite para a banca de
qualificação e de defesa, e também à professora Ina Emmel, cujas valiosas contribuições
ajudaram a construir este trabalho e a todos os professores da pós que muito acrescentaram
em minha formação.
E, por fim, ao povo brasileiro que, através da Capes, proporcionou-me, durante 18 meses, a
oportunidade de “só” estudar.
6
“O diálogo fora difícil, com alçapões e portas
falsas surgindo a cada passo, o mais pequeno
deslize poderia tê-lo arrastado a uma confissão
completa se não fosse estar o seu espírito atento
aos múltiplos sentidos das palavras que
cautelosamente ia pronunciando, sobretudo,
aquelas que parecem ter um sentido só, com elas
que é preciso ter mais cuidado. Ao contrário do
que em geral se crê, sentido e significado nunca
foram a mesma coisa [ ...]”
José Saramago.
7
RESUMO
Esta dissertação se insere no estudo da semântica das línguas naturais, sob a vertente
formalista de condições de verdade, e objetiva, com isso, uma semântica para o item lexical
ainda. De início, as suspeitas, baseadas nos estudos de Ilari (1987) e Mendes de Souza et al
(2007), eram de que o ainda temporal seria um item de polaridade negativa, o que vem a
corroborar com os estudos para a língua inglesa de Israel (1996) and Ladusaw (2002, [1980]),
os quais consideram o yet um item de polaridade negativa. Inicialmente, porém, distinguimos
os usos do ainda em temporal, discursivo e conjuntivo, com enfoque no uso temporal, e,
assim, descobrimos que a contra-expectativa é comum a todos eles. Por meio de testes com
acionalidades variadas e nos diversos tempos verbais, concluímos que o ainda só não ocorria
com a interpretação temporal em contextos perfectivos, por isso a hipótese de ele ser um item
de polaridade negativa foi descartada. A restrição, portanto, parecia ser contextos
imperfectivos. Porém, percebemos que a leitura temporal em contextos perfectivos reaparece
com o acréscimo de adjuntos de tempo, conforme a fundamentação teórica baseada em
momento de evento, momento de referência e momento de fala de Reichenbach (1947 apud
ILARI, 1997). Para a análise semântica, utilizamos os textos que tratam dos termos em
alemão noch (still) e schon (already), de Löbner (1989; 1999) e Auwera (1993), ambos
discutem a hipótese da dualidade. Transpostos aos dados do PB, assumimos com Löbner que
o ainda dispara uma pressuposição de um estado positivo anterior a te (momento de evento) e
contribui para as condições de verdade porque acrescenta a necessidade de uma mudança. Por
fim, mostramos que as diferentes expectativas, que denominamos contra-expectativas, são
uma implicatura.
Palavras-chave: Ainda; Pressuposição; Tempo; Semântica; Advérbios.
8
ABSTRACT
The area of research of this dissertation is the semantic of natural languages, on a formalist
approach of truth conditions, and it aims a semantic aspect to lexical item ainda. At first, the
hypothesis, based on Ilari (1987) and Mendes de Souza et al (2007) was that the temporal
ainda would be a negative polarity item; idea which corroborates to the English language’s
studies of Israel (1996) and Ladusaw (2002, [1980]), whom have considered the yet a
negative polarity item. At first, however, we distinguished and classified the uses ainda, in
temporal, discursive and conjunctive, focusing on the temporal one. Then, we have concluded
that the contra-expectation appears in all of them. Tests with varied aktionsart, in different
verbal tenses, showed that ‘ainda’ does not occur only through temporal interpretation in
perfective contexts; because of this, the initial hypotheses was dismissed, and the restriction
would seem to be the imperfective contexts. But, we perceive that the temporal reading in
perfective contexts reappears with the addition of time adjuncts, following the theoretical
discussion based on the moment of event, moment of reference and moment of speech from
Reichenbach (1947 apud Ilari, 1997). For the semantic analysis we use the texts of Löbner
(1989; 1999) and Auwera (1993) which investigate the Germanic terms ‘noch’ (still) e
‘schon’ (already); both authors discuss the hypothesis of duality. When we moved the data to
the PB, we assumed the Löbner’s idea, which says that ainda triggers a presupposition of a
positive previous state to te
(moment of event), and contributes for the truth conditions,
because it adds the necessity of change. Finally, we showed that the different expectations,
which we named contra-expectations, are implication.
Key-words: Ainda; Presupposition; Time; Semantic, Adverbs.
9
LISTA DE QUADROS
Quadro 1 - Testes do pretérito perfeito............................................................................50
Quadro 2 – Testes no pretérito imperfeito.......................................................................53
Quadro 3 – Esquema da dualidade..................................................................................58
Quadro 4 – Testes com o já na negativa e afirmativa no pretérito perfeito....................58
Quadro 5 – As sentenças e suas expectativas..................................................................61
Quadro 6 – Esquema da dualidade..................................................................................65
Quadro 7 – Esquema da dualidade transposta ao PB......................................................65
Quadro 8 – Características do já.....................................................................................73
Quadro 9 - Características do ainda, não ainda e já não................................................74
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 – Escala ............................................................................................................25
Figura 2 – Representação no eixo temporal da sentença (123) ......................................52
Figura 3 – Oposição do mundo real com o contrafactual................................................61
Figura 4 – Diagrama de van der Auwera (1993, p. 619) ................................................74
Figura 5 – Os dois cenários que as partículas acionam – aplicada ao ainda...................75
Figura 6 – Pressuposição de P, presente em (183a) em oposição à parte nãohachurada78
Figura 7 – Pressuposição de schon em oposição à parte hachurada................................79
Figura 8 – Ilustração do significado de noch (te, P) e nicht mehr (te, P) ..........................79
Figura 9 – Representação da pressuposição de (188a) ...................................................81
Figura 10 – Representação da sentença (193) ................................................................82
Figura 11 – Representação da sentença (194) ................................................................83
Figura 12 - Representação da sentença acarretada de (197a) na parte hachurada...........84
Figura13-
Representação
da
sentença
(198)
sem
o
ainda
e,
portanto,
acarretamento...................................................................................................................84
Figura 14 – Intervalos admissíveis em termos de P e te de schon e noch nicht..............87
Figura 15 – Intervalos admissíveis em termos de not-P e te de noch e nicht mehr..........87
sem
10
SUMÁRIO:
INTRODUÇÃO...............................................................................................................12
CAPÍTULO I: DELIMITANDO A POLARIDADE NEGATIVA...........................15
1 INTRODUÇÃO...................................................................................................15
2 ENTENDENDO POLARIDADE NEGATIVA..................................................15
3 CONTEXTOS LICENCIADORES.....................................................................20
4 PROPOSTAS DE EXPLICAÇÃO PARA O LICENCIAMENTO....................21
4.1 LADUSAW E A PROPOSTA DO ACARRETAMENTO PARA BAIXO.....24
4.2 A VERIDICIDADE..........................................................................................31
4.3 O AINDA...........................................................................................................33
CAPÍTULO II AINDA: UM NOVO PONTO DE VISTA.........................................35
1 INTRODUÇÃO...................................................................................................35
2 FUNCIONALISMO – RETOMADA HISTÓRICA...........................................35
3 QUANTOS USOS?...................................................... ......................................40
3.1 CONTRA-EXPECTATIVA.............................................................................44
3.2 AINDA TEMPORAL........................................................................................46
3.1.1 A restrição......................................................................................................50
4 JÁ E AINDA – OPOSIÇÃO? ..............................................................................56
5 EXPECTATIVAS...............................................................................................60
6 POR ISSO............................................................................................................62
CAPÍTULO III: UMA PROPOSTA SEMÂNTICA PARA O AINDA....................64
1 INTRODUÇÃO..................................................................................................64
2 DUALIDADE.....................................................................................................64
2.1 ESCALAR........................................................................................................69
2.1.1 Escalas por Löbner........................................................................................71
2.2 Diferenças e semelhanças entre já e ainda......................................................73
3 PRESSUPOSIÇÃO.............................................................................................77
3.1 ADJUNTOS TEMPORAIS.............................................................................82
4 CONDIÇÕES DE VERDADE...........................................................................83
5 IMPLICATURA.................................................................................................90
6 PORTANTO.......................................................................................................92
Ainda: NOVOS CAMINHOS.......................................................................................94
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS........................................................................97
11
ANEXOS.........................................................................................................................100
12
INTRODUÇÃO
O interesse no objeto de estudo desta dissertação surgiu através da investigação da
polaridade negativa nas línguas naturais, fenômeno amplamente discutido em outras línguas,
mas que no português brasileiro (doravante PB) pouco é comentado. E como o tema é vasto e
em torno dele há muitas áreas a serem exploradas, principalmente no que se refere à
descoberta de quais são os itens e expressões, além de detectar quais são os licenciadores,
resolvemos nos reportarmos ao português, mais especificamente ao PB. Resolvemos, também,
restringir nosso estudo a um único item, o ainda, porque, naquele momento, ele se mostrava
um forte candidato a pertencer a essa classe. Visto que em inglês o yet é considerado um item
de polaridade negativa (mais adiante denominado IPN1) e que, no PB, Ilari (1984) deu
algumas pistas, afirmando ser o ainda um representante da classe e, também, fez alusão de
que esse item e o já formariam um par de oposição, em que aquele atuaria no negativo e este
no positivo. Vale ressaltar que este trabalho insere-se no escopo da semântica das línguas
naturais na vertente formalista de condições de verdade.
A partir desse problema inicial, o Capítulo 1 direcionou-se ao entendimento de quais
são e o que caracteriza os itens e as expressões de polaridade negativa; à discussão das teorias
mais importantes que os acercam, tais como o acarretamento decrescente, proposto por
Ladusaw (2002), a não-veridicidade, levantada por Giannakidou (2001), a proposta sintáticopragmática, por Linebarger (1987), a escala aventada por Fauconnier (1975 apud ILARI,
1984); também direcionou-se ao questionamento se o ainda efetivamente se encaixa na
definição de itens de polaridade negativa dado pelas teorias, uma vez que, naquele momento,
a interpretação negativa parecia estar presente em todas as ocorrências de ainda. Cada uma
das teorias foi desenvolvida através de exemplos testados. E foi na busca desses exemplos que
nos deparamos com a variedade tipológica do item ainda.
O contato com esse item gerou a suspeita de que a expressão não tem o mesmo
sentido sempre, assumindo diferentes usos. Por isso, o segundo capítulo visa fazer a separação
dos diferentes tipos de ainda e a verificação do comportamento de cada um, tentando, dessa
forma, classificá-los em grupos. Também é objetivo deste capítulo focalizar a análise no uso
temporal, identificar suas restrições e sua distribuição nos diversos tipos, tempos e aspectos
verbais, fundamentados nas teorias de Vendler (1967 apud PIRES DE OLIVEIRA & BASSO,
2007) para acionalidade e Reichenbach (1947 apud ILARI, 1997) para o tempo, porque é
1
A abreviatura IPN significa Item de polaridade negativa.
13
apenas para o seu uso temporal que foi aventada a hipótese de ele ser um item de polaridade
negativa.
A pergunta inicial da dissertação é se o ainda temporal fazia parte da classe dos itens
de polaridade negativa. Embora um dos objetivos deste estudo seja apresentar uma resposta
para essa questão da polaridade negativa, ela só é possível se tivermos clareza sobre qual dos
ainda estamos analisando e, para isso, centramos o estudo no uso temporal, também porque
foi o mais recorrente na fala dos entrevistados do NURC2, e fora este uso que Ilari (1984)
citou como exemplo de uma possível polaridade negativa.
Além da polaridade, que, no início, supostamente se pensava estar relacionada ao
item em seu uso temporal, o objetivo desta dissertação também é apresentar a semântica para
esse item, ou seja, detectar o que o ainda representa na sentença, se ele dispara implicaturas,
adiciona pressuposições, altera as condições de verdade das sentenças, ou se ele instaura tudo
isso. Conforme o avanço dos estudos na semântica, cada vez mais se conclui que há itens
lexicais nas sentenças que são mais livres no sentido distribucional, por exemplo, alguns
advérbios como só, porém, outros, não ocorrem em qualquer lugar nas sentenças, tão menos
em qualquer tempo e/ou junto de quaisquer sintagmas. Esse parece ser o caso do ainda,
porque ele não ocorre com a interpretação temporal em todos os aspectos, antes, impõe uma
restrição para ocorrer com essa interpretação no aspecto perfectivo.
Faz parte da capacidade semântica dos falantes saber exatamente quando e onde
podem utilizar os elementos lingüísticos, mesmo sem conhecer explicitamente as regras que
por trás deste conhecimento permitem ou não determinados usos. Ou seja, há certos
mecanismos que regulam a utilização ou não de determinados itens, sobre a qual os falantes
possuem intuições. E é isso que procuraremos desvendar, as normas de utilização do ainda
temporal e o licenciamento da ocorrência que serão resolvidos no Capítulo 2, assim como a
questão das expectativas, as quais todos os falantes percebem intuitivamente, haver nas
sentenças com o ainda. A questão da polaridade negativa também será resolvida, pois, diante
dos testes nas variadas formas verbais e definida a questão da expectativa, concluímos que o
ainda não é um item de polaridade negativa.
O Capítulo 3 discute todas essas questões e também conta com os estudos de Löbner
(1989; 1999) e van der Auwera (1993), enquanto o primeiro trata especificamente dos termos
noch, seu “dual” schon do alemão, seus correspondentes no inglês still, yet e already do inglês
2
Projeto de Estudo da Norma Lingüística Urbana Oral Culta com o objetivo de documentar e descrever o uso
urbano do português falado no Brasil contempla dados em gravações de falantes de Recife, Salvador, Rio de
Janeiro, São Paulo e Porto Alegre. Os informantes desse projeto são de ambos os sexos, nascidos na cidade, com
escolaridade universitária, distribuídos por três faixas etárias; de 25 a 35 anos, 36 a 55 anos e 56 anos.
14
e também leva em consideração a associação dessas partículas3 com suas contrapartes
negativas, o segundo contra-argumenta esse esquema e postula que não há essa relação entre
eles, o que é discutido no capítulo. Fundamentado nesses estudos, transpusemos o que se
assemelha aos dados do PB, apresentando uma semântica e uma pragmática para o ainda.
3
A palavra partículas é utilizada para referir-se a itens nesta dissertação, porém essa nomenclatura é utilizada de
forma diferenciada para os dados do alemão.
15
CAPÍTULO I
DELIMITANDO A POLARIDADE NEGATIVA
1 INTRODUÇÃO
O objeto de estudo desta dissertação é a semântica do item lexical ainda. Nessa
perspectiva, uma das questões levantadas é se o ainda é de fato um item de polaridade
negativa, pois Ilari (1984) sugeriu que o seria, e, posteriormente, Mendes de Souza et al
(2007) também concluíram a análise da expressão na mesma direção. Por isso, é objetivo
deste capítulo, na seção 2, explicitar o que é esse fenômeno, fornecer exemplos e demonstrar
que os itens e as expressões idiomáticas pertencentes à classe da polaridade negativa preferem
os contextos negativos, e que, além disso, não ocorrem, indiscriminadamente, em outros os
contextos. Dessa forma, a seção 3 destina-se a relatar os contextos licenciadores e a seção 4
introduz algumas propostas que a literatura tem apresentado para a distribuição e para o
licenciamento dos itens e das expressões de polaridade negativa. Já as propostas mais
aprofundadas estão na seção 4.1, com a proposta de acarretamento para baixo de Ladusaw
(2002 [1980]), e na 4.2, com a da veridicidade de Giannakidou (2001). Por fim, a seção 4.3
mostra que há indícios de que o ainda pertence à classe dos itens de polaridade negativa,
como sugerido por Ilari (1984) e afirmado por Mendes de Souza et al (2007) por apresentar
características de uma das propostas.
2 ENTENDENDO A POLARIDADE NEGATIVA
A polaridade negativa é um dos fenômenos pertencentes ao conhecimento intuitivo do
falante, que sabe, naturalmente, quando, onde e com que expressões se combinam os itens e
as locuções idiomáticas dessa classe que ocorre, preferencialmente, em contextos negativos.
O fenômeno da polaridade negativa é muito estudado em outras línguas, principalmente no
inglês por Klima (1964 apud LADUSAW, (2002 [1980]4)), Fauconnier (1975 apud ILARI,
1984), Linebarger (1987), Krifka (1991), Ladusaw (2002 [1980])), Giannakidou (2001), entre
outros. Porém, essa diversidade de pesquisas não é encontrada no português, para o qual
temos apenas os trabalhos de Ilari (1984), Rocha (1992) e Negri (2006), os quais focalizam as
4
Utilizei o texto de 2002. O original de Ladusaw é de 1980.
16
locuções negativas ou expressões idiomáticas e pouco atentam aos itens5. O primeiro autor
centra sua análise nos contextos em que elas ocorrem, o segundo seleciona uma lista de, na
maioria, expressões de polaridade negativa e alguns itens, que em outros estudos já foram
considerados palavras negativas, por apresentarem a negação embutida, focalizando o estudo
nos testes de licenciamento. E por fim, a terceira autora não analisa dados do português, mas
faz uma relação teórica a partir do fenômeno, ressaltando as fronteiras entre a semântica e a
pragmática. Ou seja, cada um dá um enfoque diferenciado ao tema. Já Mendes e Souza et al
(2007) buscam elucidar se há itens de polaridade negativa no PB e quais seriam eles. Os
autores concluem que o ainda é um item de polaridade negativa. É essa a hipótese que iremos
apresentar neste capítulo.
Considere alguns exemplos de expressões de polaridade negativa:
(1) a. A irmã dela não levantou um dedo para ajudá-la na organização da festa.
b. # A irmã dela levantou um dedo para ajudá-la na organização da festa6.
Perceba que a expressão não levantou um dedo, em contextos afirmativos (1b), perde a
leitura idiomática, passando a receber o significado composicional, como já apontado por
Ilari. Da mesma forma acontece em:
(2) a. Ele não deu um pio sobre o assassinato.
b. # Ele deu um pio sobre o assassinato.
Observe que em (2b) a expressão não dar um pio, em contexto não-negativo, torna-se
composicional, perdendo seu caráter idiomático, acionando somente a interpretação
composicional de piar, soltar pios sobre o assassinato. Muitas outras expressões têm essa
mesma característica, que pode ser verificada nos exemplos abaixo:
(3) Essa moça não é flor que se cheire.
(4) Ele não sofreu um arranhão.
(5) Ela não vale um tostão furado.
5
Entende-se por itens, neste trabalho, sintagmas únicos, com exceção do N-algum ao qual se somam nomes
diversos ao item algum. Porém, mesmo assim, diferenciam-se das expressões por estas sempre abarcarem vários
sintagmas, que, quando unidos, são interpretados não-composicionalmente.
6
Vamos utilizar o símbolo # para indicar que a sentença não é aceitável, embora ela possa ser gramatical.
17
Ilari (1984) diz que todas essas expressões são interpretadas idiomaticamente, não de
maneira literal-composicional. A expressão não é flor que se cheire significa que ela não é
confiável, da mesma forma em (4) ele saiu ileso e não literalmente sem um arranhão no
corpo. Já (5) significa que ela não vale nada e não que simplesmente não valha um tostão
furado. Se essas expressões forem colocadas na afirmativa, deixam de ter o caráter idiomático
e passam a ter significado composicional. Veja o contraste dos exemplos anteriores:
(6) # Essa moça é flor que se cheire.
(7) Ele sofreu um arranhão.
(8) # Ela vale um tostão furado.
Observe que (6) fica um tanto estranha, a menos que signifique uma metáfora na qual
a moça é uma flor, mas a interpretação idiomática se perdeu; em (7), o significado da
sentença é literal: afirma que ele teve um arranhão físico no corpo e, da mesma forma, em
(8), a semântica dessa sentença nos diz que ela vale um tostão com furo no meio, o que em
nosso mundo seria interpretado metaforicamente como não valer nada, pois uma moeda com
um furo no meio é nula para nós. Porém, suponhamos uma sociedade na qual o tostão furado
é a coisa mais valiosa que há, nesse caso, ela valeria bastante.
Essas expressões só aparecem na afirmativa em contextos bem específicos, abordados
posteriormente; ou, para que sejam aceitáveis, é preciso aliarem-se ao não, forma mais
prototípica da negação, ou a palavras negativas como nem, exemplificadas em nem sonhando
e nem com reza brava, ou nada, nenhum, ninguém. As expressões de polaridade negativa são
distintas dessas expressões negativas, chamadas palavras-n, que por si só têm a capacidade de
originar sentenças negativas, porque são dotadas de uma negação intrínseca. Porém, a
literatura se divide quanto a essa questão. Autores como Zwarts (1995 apud
GIANNAKIDOU, 2001) consideram esses sintagmas itens de polaridade negativa (como já
foi visto, denominados IPN’s) fortes, e não simples expressões negativas. Em certos
contextos, as palavras nada, nenhum, ninguém dispensam o uso do não, que é a forma mais
comum de compor uma sentença negativa (ILARI, 1984, p. 88) e mesmo assim, a sentença
permanece na negativa, confira nos exemplos abaixo:
(9) a. Ela nada falou.
b. Ela não falou nada.
(10) a. Ninguém maltratou o homem.
b. O homem não maltratou ninguém. (interno)
18
Note que nos exemplos em (a), o uso do não é dispensável e, mesmo assim, a sentença
permanece negativa. Em (9a), o nada sai da posição canônica (depois do verbo) e em (10a) o
ninguém passa a ser argumento externo do verbo maltratar, ou seja, em posição de sujeito,
dispensa o uso do não. Porém, ao contrário, nas sentenças em (b) a presença do não é
obrigatória, pois não é possível dizer:
(11) * Ela falou nada.
(12) * O homem maltratou ninguém.
Há, contudo, palavras que exigem a presença do não, Ilari (1984, p. 88) cita bulhufas,
patavina, qualquer, o menor, porém, diferentemente do que o autor afirma, algumas delas
podem ocorrer sem negação, mantendo a interpretação negativa como expresso em (13)7:
(13) Ele entende patavina/bulhufas do assunto.
(14) Há qualquer problema com aquele carro.
Enquanto (13), mesmo sem uma negação explícita na sentença, tem interpretação
negativa, já que quer dizer que alguém não entende nada do assunto; (14) não tem
interpretação negativa. Nesse caso, qualquer seria um item de livre escolha, como afirmam
Mendes de Souza et al (2007), e não um item de polaridade negativa como sugere Ilari. Pois
para ser um item de polaridade negativa deve haver uma preferência por contextos negativos,
e se se encontrar em uma sentença afirmativa, deve, ao menos, apresentar uma interpretação
negativa, o que não é o caso de qualquer.
Assim como as palavras citadas acima dispensam, em alguns contextos, a presença
explícita do não, os itens e as locuções de polaridade negativa (denominadas LPN’s) também
ocorrem em certos contextos afirmativos. Pelo o que nos consta, parece não haver ainda uma
lista exata dos itens de polaridade negativa para o português brasileiro, Ilari (1984) sugere o
ainda, mais tarde reafirmado por Mendes de Souza et al (2007) que acrescentaram o sequer e
o n-algum. O n-algum já fora citado por Rocha (1992) em seus testes, que também incluiu em
sua lista de IPN’s nenhum, nada, ninguém, nunca e n-nenhum no que diz respeito a itens, mas
nada diz o autor sobre o ainda; as locuções são inúmeras. É nesse contexto que se insere este
7
Essa é uma interpretação minha, e que, posteriormente, testada com os falantes, dividem-se quanto à
aceitabilidade de patavina e bulhufas no afirmativo. A maior parte daqueles que aceitam os termos patavina e
bulhufas no afirmativo o fazem dada uma entonação centrada no termo, indicando ênfase. A literatura já apontou
a relação da polaridade negativa com a ênfase (ver Krifka, entre outros), mas esse é, ainda, um trabalho a ser
feito.
19
trabalho: nosso interesse é determinar se ainda deve ou não continuar pertencendo à lista de
IPNs no PB.
Os itens de polaridade negativa se comportam da mesma forma que as locuções e por
isso são facilmente identificáveis quando feito o teste padrão: ao comparar a sentença
negativa com a afirmação simples, constata-se que há um claro contraste de aceitabilidade
entre elas. Vejamos os exemplos com o sequer:
(15) Não encontramos (nem) sequer um aluno na rua.
(16) ?? Encontramos sequer um aluno na rua8.
Há uma clara preferência pelo contexto negativo expresso em (15), em que o item se
combina com a forma mais prototípica de negação – o não –, ou com palavras que contenham
embutida a negação, isto é, nem, nada, ninguém, entre outros. Perceba que a sentença (16)
causa, no mínimo, estranhamento, em particular se lida com uma curva entoacional normal.
Uma maneira de explicar essa assimetria é imaginar que o bloqueio é sintático, pois o item
não está no escopo de uma negação direta e essa é a proposta de Linebarger (1987),
posteriormente, apresentada neste trabalho. Há casos, porém, nos quais esses mesmos itens,
que preferem um contexto negativo, ocorrem em contextos positivos sem afetar a
aceitabilidade, mas não em todos eles, indiscriminadamente.
E essa é a grande questão do texto de Ilari (1984) e que se faz até hoje: quais as
condições de licenciamento para tais ocorrências? Isto é, quais são os contextos em que certas
locuções e itens, que ocorrem preferencialmente na negação, podem também ocorrer? O que
há em comum entre esses contextos? Como veremos, é complexa a distribuição desses itens.
Várias são as teorias que tentam explicar a sua distribuição para o inglês. Algumas delas são:
acarretamento decrescente, proposto por Ladusaw (2002 [1980])) e modificado por Heim
(1987 apud LADUSAW, 2002), com a noção de acarretamento decrescente restrito, a nãoveridicidade, levantada por Giannakidou (2001), a escala, por Fauconnier (1975 apud ILARI,
1984) e uma proposta sintático-pragmática, por Linebarger (1987), em que os pertencentes à
classe da polaridade negativa ocorrem na Forma Lógica sob o escopo de uma negação.
Algumas dessas teorias estão descritas no artigo de Ilari (1984) que também selecionou alguns
contextos que, apesar de não serem negativos, licenciam a ocorrência dessas locuções. Na
próxima seção, apresentamos esses contextos.
8
Essa sentença está desconsiderando a leitura com ênfase no item, pois, como dissemos, a ênfase pode interferir
na aceitabilidade da sentença.
20
3 CONTEXTOS LICENCIADORES
Apresentamos, abaixo, os contextos licenciadores, seguindo a classificação e
nomenclatura apresentadas em Ilari (1984), embora os exemplos sejam de nossa autoria para
melhor visualização de uma mesma expressão de polaridade negativa nos variados contextos:
1. Períodos hipotéticos ou condicionais:
- Reais.
(17) Se ela deu um pio, coloco-a no olho da rua.
- Para realçar causalidade.
(18) Se ela deu um pio, foi porque estava muito louca.
- Irreais/condicionais contra-factuais.
(19) Se ela tivesse dado um pio, seria uma mulher morta.
- Que remetem ao futuro.
(20) Se ela der um pio, vou pegá-la e dar uma tamina de pau.
2. Subordinadas:
- Concessivas irreais.
(21) Mesmo que ela tivesse dado um pio contra o réu, não faria diferença.
- Temporais, remetendo ao passado; ao futuro ou centradas no presente.
(22) No dia em que ela deu um pio todos abriram os olhos.
3. Orações causais com só porque, bastou P para Q:
(23) Só porque ela ficou com raiva, bastou passar numa delegacia para dar um pio.
4. Integrantes com verbos de dúvida (é pouco provável que), factivos ou de dizer:
(24) Duvido que ela tenha dado um pio sobre o assunto.
5. Interrogativas, diretas e indiretas, retóricas ou não:
(25) Ela deu um pio sobre o assassinato?
(26) Às vezes ainda faço a pergunta se ela deu um pio sobre a traição da amiga.
6. Condicionais hiperbólicos:
(27) Se ela tiver um tostão furado, eu sou a mulher mais rica do Brasil.
21
7. Orações comparativas:
(28) Da mesma forma que ela tem um tostão furado, eu sou a mulher mais rica do
Brasil.
Ainda com relação aos contextos, Ilari demonstrou que uma locução de polaridade
negativa, além de ocorrer nas negativas, também ocorre em certos contextos afirmativos. Mas,
uma mesma locução de polaridade negativa não tem comportamento homogêneo diante de
todos os contextos sintático-semânticos afirmativos, considerados licenciadores. Para
comprovar esse comportamento múltiplo, Ilari desenvolve duas séries de um mesmo exemplo
de LPN que ocorre naturalmente num dado contexto afirmativo licenciador (29a), mas que,
em um outro contexto, também licenciador, perde a idiomaticidade (29b). A seguir está uma
pequena amostra retirada dos oito exemplos mencionados em Ilari. Os contextos licenciadores
são os períodos hipotéticos que remetem ao futuro (29a) e as subordinadas temporais
remetendo ao passado (29b):
(29) a. Se ela der um pio, sua vida estará ameaçada.
b. # Todos assinaram suas sentenças de morte quando deram um pio.
Repare que em (29b) o sentido mudou, passou a ser uma sentença afirmativa, e, além
disso, a expressão também perdeu a interpretação idiomática. Por outro lado, em (29a)
permaneceu a interpretação negativa e a idiomaticidade da locução idiomática. Esse é um
caso de uma mesma LPN não poder ocorrer em dois contextos licenciadores, sem que uma
perca sua interpretação e idiomaticidade.
4 PROPOSTAS DE EXPLICAÇÃO PARA O LICENCIAMENTO
Uma hipótese apresentada por Ilari para explicar a distribuição das LPNs, também
aventada posteriormente por outros autores como Linebarger (1987), é a de haver uma
negação na representação semântica das sentenças, ou seja, um operador de negação na
estrutura profunda das sentenças sob cujo escopo estariam as LPNs. Porém, de acordo com
Ilari, essa hipótese não se sustenta em exemplos como:
22
(30) Ignoro que ele tenha tirado um tostão do bolso.
É difícil encontrar uma paráfrase para esse exemplo. A semântica corrente para ignorar é não
sei, não ter conhecimento de algo, desconhecer. No entanto, há duas interpretações para (30),
[não sei se ele tirou um tostão do bolso] ou [sei que ele não tirou um tostão do bolso], nesse
último caso, a negação está atuando sobre a sentença com a LPN, ou seja, a LPN está
diretamente sob o escopo da negação, porém, a semântica do ignorar passou a ser sei que não,
o que é estranho. Essa semântica não capta nossa intuição para (30) que é [não sei se ele tirou
um tostão do bolso], o que contrariaria a hipótese inicial de que as LPNs deveriam estar sob o
escopo direto da negação, pois nessa interpretação a negação atua na sentença principal.
Assim, Ilari descarta a solução da negação encoberta. Outra possível explicação,
aventada por Fauconnier (1975 apud ILARI, 1984) para o inglês, é a presença de uma escala.
Nessa abordagem, os itens de polaridade negativa são os chamados minimizadores, que vem
para estabelecer uma ordem, uma graduação, indicando o ponto mais baixo da escala. Os
exemplos abaixo retratam claramente isso:
(31) João não abriu a boca na reunião.
(32) Maria não sofreu um arranhão durante a briga.
(33) João não mexeu um dedo para ajudar na mudança.
Há nos exemplos uma escala que vai do menor para o maior, ou do ponto mínimo ao
máximo, isto é, se João não abriu a boca, que é o mínimo que poderia ser feito, ele não se
manifestou, não argumentou, e tanto menos assumiu um ponto de vista. Assim também
acontece com não sofreu um arranhão; que indicaria o mínimo machucado que se pode
sofrer, quanto mais um ferimento mais grave, um hematoma; e, da mesma forma, em não
mexeu um dedo para ajudar, se não fez nem isso, não mexeu os braços, não carregou algo
pesado, entre outros. Itens de polaridade negativa indicariam, então, o grau mínimo de uma
escala.
Contudo, Ilari afirma que essa teoria da escala não se aplica de maneira geral porque
Fauconnier (1975 apud ILARI, 1984) considera os IPNs como quantificadores não padrão,
mas nem todas as LPNs podem ser tratadas como quantificadores, pois nem todas apresentam
23
o mesmo comportamento. Por exemplo, nem cheira e nem fede, tirar um tostão do bolso e flor
que se cheire não podem ser considerados quantificadores9.
E, por fim, Ilari (1984, p. 97) dá algumas pistas finais de mais algumas LPNs e
também do item que é o objeto de estudo desta dissertação, o ainda :
Há inúmeras locuções não listadas até aqui neste trabalho, que são provavelmente
LPNs, e que precisariam ser analisadas uma a uma [..] não poupar, medir sacrifícios
(compare “ele poupou sacrifícios”, diferente de poupar energias), [...] ainda
(compare o carteiro ainda / * já não veio) [...].
Ilari não se detém nos sintagmas isolados, nas partículas únicas de polaridade
negativa. Esse tema aparece em Mendes de Souza et al (2007) com a problemática se há itens
de polaridade negativa no português brasileiro. Pela carência de trabalhos acerca do tema para
o português, os autores buscaram investigar prováveis candidatos como qualquer, sequer,
ainda, o que quer que seja e N-algum. Descartaram alguns, discutiram sobre sua distribuição,
suas restrições e chegaram à conclusão de que o sequer e o ainda, e talvez o N-algum são
itens de polaridade negativa. Observe nos exemplos abaixo a clara preferência por contexto
negativo e o respectivo contraste no positivo:
(34) a. Eu não encontrei sequer uma pessoa na rua.
b. * Eu encontrei sequer uma pessoa na rua.
(35) a. João não tem dinheiro algum para comprar comida.
b. * João tem dinheiro algum para comprar comida.
(36) a. João ainda não comprou o presente de sua esposa.
b. # João ainda comprou o presente de sua esposa.
Pelo que foi visto, através desses últimos exemplos, a clara preferência pelos
contextos negativos não é exclusividade das expressões, ela se estende aos itens também.
Embora fosse demonstrado que esses contextos não sejam os únicos, pois esses itens e
expressões também ocorrem em contextos positivos, mas não em todos, indiscriminadamente,
até esse momento nenhuma proposta abarcou todas as ocorrências. Por isso, adiante serão
9
No entanto, talvez seja possível encontrar uma escala em cada um deles, sempre do menor para o maior, com
isso, a idéia de que os IPNs indicam o ponto mínimo de uma escala não é de toda descartável e a demonstração
de como isso acontece ficará para um trabalho futuro.
24
vistas outras propostas que tentem explicar a distribuição destes itens de polaridade negativa
para o inglês e verificar se se aplicam ao PB.
4.1 LADUSAW E A PROPOSTA DO ACARRETAMENTO PARA BAIXO
Sobre os itens10 de polaridade negativa, a não ser esta alusão ao ainda, Ilari (1984)
nada mais mencionou, mas são eles o foco dos trabalhos em outras línguas. Ladusaw (2002
[1980]), um dos precursores no assunto, tenta explicar a distribuição dos itens lexicais como
any, ever, yet e anymore, em inglês, primeiramente através da classe dos affective11, contextos
licenciadores dos itens de polaridade negativa. Klima (1964 apud LADUSAW, 2002, p. 459)
outrora já fizera uma generalização incluindo esses contextos: “As sentenças que contém itens
de polaridade negativa poderão ser aceitáveis somente se elas forem c-comandadas por uma
expressão affective” 12.
Fazem parte dessa classe:
•
Determinantes: no one (ninguém, que por si só já é uma palavra
negativa), at most three people (no máximo três pessoas), few students (poucos
estudantes);
•
advérbios quantificacionais: never (nunca), rarely (raramente), seldom
•
preposições: against (contra);
•
conjunções adverbiais: before (antes de), if (se);
•
adjetivos: hard (difícil), difficult (difícil, duro);
•
verbos: doubted (duvidar), denied (negar), refused (recusar), forgot
(raro);
(esquecer);
•
10
palavras com grau: much expert (muito esperto).
Quando se menciona itens, é relevante lembrar que se trata de partículas, sintagmas únicos, não se incluem
aqui as expressões e locuções.
11
Termo que pode ser traduzido por afetadores, aqueles que afetam em português ou deflagradores, mas
manteremos a nomenclatura do inglês.
12
Do original de Ladusaw (2002 [1980])): “A sentence which contains negative-polarity items can be acceptable
only if they are c-commanded by an affective expression”.
25
Os contextos acima licenciam os itens de polaridade negativa, contudo, não abarcam
todas as ocorrências. Além disso, essa lista não está completa, o que se confirma com
Fauconnier (1975 apud LADUSAW, 2002) quando observou que os contextos affectives
poderiam ser frases nominais, bem como superlativos quantificacionais, conforme se observa
nos exemplos13 abaixo:
(37) John can solve the hardest problem.
(João pode resolver o problema mais difícil)
(38) John can solve any problem.
(João pode resolver qualquer problema).
Nesses casos, há um acarretamento, se João pode resolver o problema mais difícil, ele
pode resolver o médio e o mais simples, logo, ele pode resolver qualquer problema. Por
exemplo, (37) reporta ao topo da escala (o problema mais difícil):
problema mais difícil
problema médio
__________problema fácil_____
Figura 1 – Escala
É nesses contextos que os itens de polaridade negativa são licenciados: “An expression is
affective iff it licenses inferences in its scope from supersets to subsets” (KLIMA, 1964 apud
LADUSAW, 2002, p. 463), ou seja, o acarretamento deve acontecer de superconjuntos para
subconjuntos (acarretamento decrescente ou para baixo). Affectives criam contextos de
acarretamentos decrescentes e é por meio disso que Ladusaw tenta explicar a distribuição dos
IPNs, no inglês, através da propriedade da monotonicidade decrescente, conforme as
generalizações abaixo:
“A negative-polarity item is acceptable only if it is interpreted in the scope of a
downward-entailing expression”. (p. 467)
“An expression x is downward-entailing (affective) iff its denotation x’ is a monotone
decreasing function”. (p. 467)
Isso se verifica no caso dos affectives not (não) e no (nenhum) nos exemplos abaixo:
13
Os exemplos foram retirados de seus textos originais em inglês.
26
(39) a. John isn’t a man.
João não é um homem.
b. John isn’t a father.
João não é um pai.
(40) a. No man walks.
Nenhum homem caminha.
b. No father walks.
Nenhum pai caminha.
Em (39), se João faz parte do conjunto dos que não são homens, ele também pertence
ao subconjunto dos que não são pais, por isso, (39a) acarreta (39b). Estamos inferindo do
conjunto para o subconjunto, por isso é decrescente. O exemplo (40) caracteriza um caso de
quantificador generalizado (BARWISE; COOPER, 1981), em que o nenhum é um predicado
de dois argumentos que estabelece uma relação entre conjuntos. Esse quantificador estabelece
uma relação monotônica decrescente tanto para o primeiro quanto para o segundo argumento.
Como pode ser verificado pelo fato de que (40a) acarreta (40b), a extensão do sintagma
nominal pai (primeiro argumento) está dentro de um conjunto maior denotado por homem em
(40a), caracterizando, assim, um acarretamento para baixo. Desse modo, se não há nenhum
homem fazendo parte do superconjunto dos homens que caminham, logo, não há nenhum pai
fazendo parte do subconjunto dos pais que caminham, (nenhum homem caminha acarreta
nenhum pai caminha).
Caso semelhante é o que verificamos com o segundo argumento, o sintagma verbal
walks (caminha) denota um superconjunto que inclui diferentes tipos de eventos de caminhar,
demonstrado na sentença abaixo:
(41) a. No man walks
Nenhum homem caminha.
b. No man walks slowly.
Nenhum homem caminha devagar.
Note que também nesse caso há acarretamento para baixo de (a) para (b), caminhar
devagar é um subconjunto de caminhar. Assim, se (41a) é verdadeira, (41b) é um
acarretamento. Da mesma forma, se o conjunto dos homens que caminham é vazio, assim
27
também o é o subconjunto dos homens que caminham devagar, logo (41a) acarreta (41b).
Porém, se retirarmos os affectives, os acarretamentos de (a) para (b) não acontecem mais:
(42) a. João é um homem.
b. João é um pai.
(43) a. Um homem caminha devagar.
b. Um pai caminha devagar
Diante disso, se confirma a generalização de Klima (1964 apud LADUSAW, 2002, p.
463): "Uma expressão é um affective se e somente se licenciar inferências no escopo de
superconjuntos em subconjuntos"14. Porém, Ladusaw (2002) mostra que acarretamentos não
acontecem somente se tiverem a presença explícita de afetivos, os IPNs podem ocorrer em
antecedentes de sentenças condicionais sem os afetivos, como nos exemplos em (44) retirados
do próprio autor:
(44) a. If anyone ever discovers the money is missing, then John will return it.
Se alguém alguma+vez descobrir o dinheiro está faltando, então John FUT-restituir item
catafórico.
b. * If John doesn’t return it, then anyone will ever discover that the money is
missing.
Se John PRES-não descobrir expletivo, então alguém FUT-descobrir alguma+vez que está
faltando.
A agramaticalidade de (44b) justifica-se pelo fato de que o item de polaridade ever
ocorre no segundo argumento do condicional, em que não há acarretamento decrescente e sim
crescente. A sentença (44a) é boa, porque o antecedente de um condicional é, para Ladusaw
(2002), um contexto de acarretamento decrescente. Dessa maneira, o autor salva a sua
generalização: ampliando o conceito de acarretamento decrescente para o antecedente e
conseqüente de condicionais. Porém, como veremos adiante, antecedentes de condicional não
constituem contexto de acarretamento decrescente.
Como foi visto, as locuções negativas, exploradas no texto de Ilari, ocorrem em alguns
contextos positivos, mas não em todos. A hipótese do acarretamento decrescente consegue
apreender os contextos que licenciam as LPNs? Essa é uma questão discutida em Mendes de
14
Consta no original em Ladusaw: “An expression is affective iff it licenses inferences in its scope from supersets to
subsets”.
28
Souza et al (2007), mas não concluída, pela dificuldade de se esclarecer se o contexto é ou
não de acarretamento para baixo (prova de que isso ocorre é o fato de não haver consenso na
literatura acerca desse tema). O antecedente de condicionais, contexto considerado por
Ladusaw monotônico decrescente (MD), comporta-se dessa maneira somente quando se adota
a hipótese de que a semântica do se nas línguas naturais é uma implicação material (→),
representada abaixo:
(45) Se João corre maratonas, então ele anda.
João corre maratonas → ele anda.
Mas sabemos que o se nas línguas naturais não é uma implicação lógica. Segundo
Pires de Oliveira (2001), a implicação material ou lógica da expressão se...então não
corresponde a nossa intuição corriqueira, principalmente nos casos em que o antecedente é
falso, pois, nesses casos, não importa o valor de verdade do conseqüente, a sentença resultante
sempre será verdadeira. Por exemplo, a sentença em (45) é verdadeira se é o caso de que João
não corre maratonas, independentemente de ele andar ou não; basta que ele não corra
maratonas. Entretanto, não é essa a nossa intuição, a nossa intuição é a de que se João corre
maratonas é porque ele anda, se ele não corre maratonas, a sentença é verdadeira
independentemente de ele andar ou não. Logo, o se nas línguas naturais não é uma implicação
material, mais argumentos a respeito disso estão nos capítulos 10 e 11 de Pires de Oliveira &
Mortari (2007).
Se o antecedente de um condicional fosse um contexto de MD, esperaríamos que não
houvesse alteração quando adicionamos alguma informação ao antecedente. No entanto, há
inúmeros casos em que a inferência a partir do reforço do antecedente não funciona.
Comprove nos exemplos abaixo:
(46) a. Se João ganhar um carro, João vai ficar feliz.
b. Se João ganhar um carro roubado, João vai ficar feliz.
Embora (46a) possa ser verdadeira, não é o caso de que dela podemos inferir (46b).
Nesse caso, se João ganhar um carro roubado, não acarreta que ele vai ficar feliz, mas
deveria acarretar se o se fosse uma implicação material e um contexto de acarretamento
decrescente, por isso essa não pode ser a semântica do se. Pode-se, ainda, encontrar alguns
casos em que a inferência a partir do reforço parece funcionar, conforme o exemplo abaixo:
29
(47) Se João acertar pelo menos, 90% da prova do vestibular, ele passa em medicina.
O caso (47) parece ser um monotônico decrescente, pois se João acertar pelo menos 90% da
prova acarreta que ele passa em medicina, porém, se ele, verdadeiramente, o fosse, no caso de
reforçarmos o seu antecedente (pelo menos 90% da prova), deveria continuar sendo, mas não
é isso que acontece:
(48) Se João acertar, pelo menos, 90% da prova do vestibular, mas zerar na redação,
ele passa em medicina.
O antecedente com o reforço (mas zerar na redação em (48)) não acarreta que João passe em
medicina. Por isso a literatura tem apontado que antecedentes condicionais são dependentes
do contexto e podem ser enriquecidos por ele.
O problema dos contextos de MD não se centra somente nos condicionais, mas
também nas sentenças genéricas, nos comparativos e nas perguntas diretas. As sentenças
genéricas expressam padrões, regularidades. Segundo Müller (2001, p. 154) as sentenças
genéricas se subdividem em dois grupos:
As línguas naturais fazem uso de dois mecanismos distintos para expressar
genericidade: expressões de referência a espécie – expressões que denotam
diretamente uma espécie, e quantificação genérica sobre sentenças – sentenças sob
o escopo de um operador de genericidade.
Nas sentenças genéricas incluídas no mecanismo referente à espécie, os predicados, como
estar extinto, são preenchidos por expressões relacionadas à espécie como A baleia. As
“sentenças genericamente quantificadas contém um operador relacional genérico (GEN) que
toma duas sentenças, uma restrição e uma matriz” (MÜLLER, 2001, p. 159), de maneira que
o operador liga os dois predicados. As sentenças genéricas são estativas e não episódicas, a
menos que o predicado episódico faça referência à espécie. Observe o exemplo (51), em que
temos uma sentença genérica com quantificação encoberta15:
(49) Cachorro tem 4 patas.
(50) Cachorro que sofreu uma amputação tem 4 patas.
15
Exemplo retirado do texto de Mendes de Souza et al (2007).
30
As sentenças genéricas que são consideradas contextos de MD nem sempre se
mantém. Por exemplo, em uma primeira interpretação, (49) acarretaria que cachorro com
rabo tem 4 patas ou cachorro com manchas tem 4 patas. Na maioria desses exemplos, o
acarretamento decrescente acontece, pois, simplificadamente, em geral qualquer outra
propriedade que caracterize o cachorro faz parte do conjunto cachorro de 4 patas, por
exemplo, cachorros com manchas. Porém, o acarretamento não se mantém em (50), que
certamente é falsa; logo, sentenças genéricas não são contextos MD, mas elas licenciam as
LPNs.
Dessa forma, a proposta de licenciamento de Ladusaw não dá conta de abarcar todas
as situações. Por isso, Heim (1987 apud LADUSAW, 2002) propõe que o acarretamento para
baixo tenha um papel no licenciamento dos IPNs, mas que ele seja limitado (acarretamento
decrescente limitado), que haja um reforço dentro dos limites de uma escala, disparada pelo
item e com a ajuda do fundo conversacional compartilhado, isto é, estabelecemos
acarretamentos dentro de parâmetros bem delimitados contextualmente, considerando apenas
os casos que sabemos pragmaticamente serem relevantes.
(51) Se você der um pio, ele te mata.
(52) Se você der um pio, mas não falar sobre o seqüestro, ele te mata.
(53) Se você der um pio e falar sobre o seqüestro, João te mata.
A escala é, supostamente, disparada pela expressão de polaridade negativa dar um pio,
que seria o mínimo da escala, percorrendo-a, nos degraus acima estão mencionar, falar, gritar
sobre o seqüestro. Então, se você der um pio, que é o ponto mais baixo da escala e subir mais
um grau na escala, falar do seqüestro acarretará João te mata. No entanto, (52) não é
acarretada por (51), pois o acréscimo que houve não estava dentro dos limites da escala, ou
seja, não falar do seqüestro não estava dentro do fundo conversacional compartilhado que
acarretaria o assassinato. Convém ressaltar a importância do fundo conversacional
compartilhado, pois, sem ele, a escala não poderia ser depreendida. Contudo, Mendes de
Souza et al (2007) apontam que mesmo que o MD seja apoiado pelo contexto ele não explica
todos os casos, como por exemplo, as perguntas diretas (54) e as comparativas (55),
exemplificadas abaixo:
(54) Por que que a Maria foi abrir a boca sobre o assunto, você sabe?
(55) Pelo menos a Maria é mais flor que se cheire que a Ana.
31
Como se pode verificar nas sentenças (54) e (55), não há acarretamento crescente nem
decrescente e, mesmo assim, as LPNs e os IPN’s ocorrem sem ser em um contexto negativo.
Contudo, o MD serve como teste para averiguar se um item é ou não de polaridade negativa.
Basta testar se um dado item ocorre em monotônicos crescentes, verificada a ocorrência,
comprova-se que não é um IPN.
4.2 A VERIDICIDADE
Assim como o acarretamento, a veridicidade também foi outra proposta de tratamento
levantada por Zwarts (1995 apud GIANNAKIDOU, 2001), mais tarde utilizada por
Giannakidou (2001) para os itens de polaridade do grego. A autora sustenta a possibilidade
dos IPNs não serem licenciados no escopo de um operador verídico; logo, IPNs ocorrem
somente sob o escopo de um operador não verídico (o que inclui os averídicos). Observe a
definição de veridicidade16. Um operador:
também;
•
É verídico sse Op acarreta p, isto é, sempre que Op é V, então p É V
•
É não-verídico sse Op não acarreta p, isto é, sempre que Op é V, p pode
ou não ser V;
•
um operador não-verídico Op é averídico se Op → ~p é logicamente
válido.
Um exemplo de operador verídico é ontem, de um não verídico, talvez e de um
averídico, não. Repare o contraste entre os exemplos (56) e (57):
(56) Talvez Maria tenha dormido.
(57) Maria jamais casou.
Em (56), parece haver uma dúvida se Maria dormiu ou não, logo, a verdade de (56)
não acarreta que Maria dormiu; ela pode ou não ter dormido, logo, talvez é um operador nãoverídico. Contudo, em (57) há certeza de que Maria não casou; logo, jamais é um operador
16
Giannakidou (2001, p. 671) apresenta: Let Op be a propositional operator. The following statements hold:
(i) Op is veridical just in case Op p → p is logically valid. Otherwise, Op is nonveridical.
(ii) A nonveridical operator Op is antiveridical just in case Op p → ¬ p is logically valid.
A tradução foi retirada de Mendes de Souza et al (2007).
32
averídico. Os IPNs, a princípio, nas amostragens estudadas por Giannakidou (2001) do grego,
ocorreriam nos contextos semelhantes a (56) e (57), mas não em contextos verídicos como
exemplificados abaixo, em que se (58a) é verdadeira, (58b) é necessariamente verdadeira.
(58) a. Maria dormiu ontem.
b. Maria dormiu.
Ao confrontar os contextos licenciadores, citados em Ilari (1984), à noção de
veridicidade, Mendes de Souza et al (2007) concluíram que muitos deles são não verídicos
como os períodos hipotéticos, verbos de dúvida, interrogativas indiretas, condicionais, entre
outros. No entanto, as comparativas são verídicas e licenciam IPN’s, conforme exemplo
abaixo, apresentado por Giannakidou (2001), nas comparativas não equativas, aquelas em que
a primeira parte da sentença não é igual à segunda, exemplo:
(59) John run faster than anyone had expected.
João PASS-correr rápido MORF-mais do que qualquer+um PASS-ter esperava.
No PB, Marques (2003 apud MENDES DE SOUZA, 2006) refere-se ao licenciamento de
sintagmas-n em comparativas com o seguinte exemplo:
(60) A Maria trabalha mais do que ninguém.
Como vimos anteriormente, os sintagmas-n como ninguém também são considerados IPN’s
fortes por alguns autores, exemplo Zwarts (1995 apud GIANNAKIDOU, 2001) e Rocha
(1992), por isso (60) é um exemplo de comparativa em que o IPN ocorre. O problema é que
as comparativas são contextos verídicos.
A proposta elaborada inicialmente por Zwarts (1995 apud GIANNAKIDOU, 2001),
mas explicitada por Giannakidou (2001), explica que os IPN’s são licenciados nas
comparativas não equativas porque possuem uma implicatura negativa, mas não explica nem
por que nem como ela ocorre. Nesse caso, teríamos que explicar (60) como veiculando: Maria
trabalha mais do que todo mundo não trabalha. Isso sem falar que há outros contextos
verídicos em português e também em outras línguas em que os IPNs se distribuem, como os
abaixo:
(61) Foi só ele dar um pio que tirou o pai da cadeia.
33
(62) O silêncio dele é mais importante para mim do que ele dizer uma palavra.
(63) Por que será que João abriu a boca na aula de ontem?
Esses são contextos verídicos e, mesmo assim, os itens de polaridade negativa são
licenciados. Portanto, a veridicidade, como foi atestada em Mendes de Souza et al (2007)
também não abarca todas as ocorrências de locuções e itens de polaridade negativa.
4.3 O AINDA
Mesmo não havendo uma proposta única para o licenciamento dos IPNs, foi possível
distinguir, conforme Mendes de Souza et al (2007), no português o sequer, o ainda e talvez o
N-algum, como IPN, desconsiderando, assim, o qualquer e o que quer que seja. Ilari (1984)
apresentou indícios de que o ainda fosse integrante da classe referida. Como já dissemos, a
partir disso, surgiu o interesse de melhor entendermos esse item lexical que se mostra um
forte candidato a pertencer à classe dos itens de polaridade negativa, conforme os exemplos:
(64) João ainda não comprou seu presente.
(65) # João ainda comprou seu presente.
Na comparação entre a sentença afirmativa e a negativa, parece que a primeira é
preferida, há um contraste de aceitabilidade entre as duas sentenças e (65) só será aceita,
aparentemente, se se assumir uma interpretação não temporal (que consideramos ser a
interpretação “default”), distinta de (64): além de ter feito outras coisas, João comprou seu
presente. O que importa notar é que (65) não é a afirmação de (64), mas, dessa forma, parece
que o ainda é um item de polaridade negativa, como concluíram Mendes de Souza et al
(2007) e isso, em discussão, será aprofundado no próximo capítulo.
Contudo, em uma análise mais específica do item, sua aceitabilidade quando
combinado com verbos nas mais variadas formas verbais e de diferentes acionalidades foi
testada, com e sem a negação explícita, e obtivemos evidências de que o ainda pode ocorrer
em sentenças afirmativas com sentido temporal, sem comprometer a gramaticalidade das
sentenças, conforme estudo desenvolvido em Lemos Gritti & Pires de Oliveira (2007). Por
exemplo:
34
(66) João ainda ama Maria. (flexão de tempo presente e predicado de estado)
(67) Maria ainda costura o vestido. (flexão de tempo presente e predicado
accomplishment)
(68) João ainda está brincando. (presente semântico e predicado de atividade)
(69) João ainda alcançava o pico do Everest. (pretérito imperfeito e predicado
achievement)
(70) João ainda vai brincar. (tempo futuro e predicado de atividade)
(71) João ainda vai amar Maria. (tempo futuro e predicado de estado)
(72) João ainda será um médico um dia. (tempo futuro e predicado de estado)
Perceba que não há negação explícita. Logo, à primeira vista, surge a questão: então
ele não é um item de polaridade negativa? Analisando as interpretações de cada sentença, na
maioria dos casos, parece haver uma negação implícita, que pode se apresentar na forma de
uma expectativa negativa. Isso pode ser visto na série acima. Por exemplo, em (66) parece
haver uma expectativa de que João não estivesse mais amando Maria. Haveria, então, uma
negação implícita licenciando esse item?
Por conta desses indícios de interpretação negativa, o ainda temporal continua com
características dos itens de polaridade negativa, pois Linebarger (1987), em casos semelhantes
a esses da série acima, entende que há uma restrição pragmática: trata-se de uma implicatura
negativa. Antes disso, contudo, é necessário também fazer uma distinção dos diferentes usos
do ainda conforme a necessidade já verificada em (65), caso em que há uma leitura não
temporal, e centralizar a análise no temporal. Este é o objetivo do próximo capítulo.
35
CAPÍTULO II
AINDA: UM NOVO PONTO DE VISTA
1 INTRODUÇÃO
O principal objetivo deste capítulo é responder se o ainda é um item de polaridade
negativa. Antes disso, na seção 2, há alusão a estudos sobre o ainda no português, não
necessariamente em semântica, que já apontam para vários usos de ainda; e a seção 3, de
grande relevância, demonstra que o item lexical ainda não apresenta a mesma interpretação
em todas as sentenças, como verificado em (65) retomado aqui:
(73) #17 João ainda comprou seu presente.
A leitura não temporal, encontrada em (73), assim como a temporal, que identificamos nos
demais exemplos do capítulo anterior, não são as únicas. Por isso, este capítulo também visa à
identificação dos usos de ainda e à distinção em três tipos. Em seguida, na seção 3.1, a
caminho da unificação dos usos, demonstramos que a contra-expectativa é característica
comum a todos os usos.
O objetivo da seção 3.2 é centralizar na análise do ainda temporal, verificar sua
distribuição e suas restrições, por isso a seção 3.1.1 discute onde o ainda não ocorre com a
leitura temporal e quais as razões para essa não-ocorrência. Quem também apresenta leitura
temporal é o já que, supostamente, é considerado um par do ainda por vários estudos no PB e
também em outras línguas, por isso a seção 4 questiona se, verdadeiramente, esses itens
formam uma dupla de oposição. O capítulo finaliza com a questão das expectativas que o
ainda aciona, revelando se elas são mesmo negativas e, se de fato influenciam na questão da
polaridade negativa. A conclusão do capítulo é que o ainda não é um item de polaridade
negativa, contrastando com a sugestão de Ilari (1984) e afirmação de Mendes de Souza et al
(2007).
2 FUNCIONALISMO – RETOMADA HISTÓRICA
17
Lembrando que o sinal # continuará sendo colocado para representar uma leitura não-temporal.
36
Até onde pudemos verificar, não há análises mais propriamente semânticas do ainda
no PB. Há, no entanto, estudos de cunho funcionalista, para o qual apresentamos Martelotta
(1996) e Longhin-Thomazi (2005) e análises semânticas de correspondentes do ainda em
outras línguas, tais como Löbner (1989, 1999) e van der Auwera (1993), que serão
apresentadas no próximo capítulo, dentre outros que não serão discutidos.
Por haver nas línguas itens que, embora pareçam ser pequenos, são de natureza
complexa e apresentam um uso bastante diversificado, há necessidade de estudos minuciosos
e esse parece ser o caso do ainda, termo que assume usos diversificados com características
de classes distintas. A maior parte dos dicionários considera o ainda com sentido de até
agora, até o momento, algum dia (futuro). O dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (2001)
dispõe uma lista de sentidos que o ainda pode assumir:
1. Até agora, até este momento (presente). 2. Até então, até aquele momento
(passado). 3. ainda agora, agora mesmo; em tempo recentíssimo (passado). 4. Até
lá, até esse tempo (futuro). 5. Um dia, algum dia (futuro). 6. Usado para dar
continuidade à ação. 7. Além disso, também, mais. 8. Ao menos, pelo menos. 9.
mesmo até inclusive. Ainda assim, não obstante, apesar disso, ainda bem
(interjeitivo), ainda quando, ainda que, mesmo que, mas também.
Essa definição segue uma seqüência: primeiramente, há a explicação do uso temporal
do termo, do uso argumentativo e, por fim, uma explicação do uso semelhante ao das
conjunções. Esse dicionário tenta abarcar os usos distintos do item. Isso quer dizer que é
necessário identificar esses usos nas sentenças e investigar se o tratamento dado a um deles
pode se estender aos demais ou se cada um possui a sua própria identidade. Neste trabalho,
privilegiaremos o uso temporal por razões que ficarão mais claras adiante.
Algumas Gramáticas Tradicionais como a de Cunha (1971) e Terra (2002) em vez de
apresentarem todos esses usos, consideram somente o caráter temporal do item, encaixando-o
na classe dos advérbios ou adjuntos adverbiais de tempo, conforme o exemplo abaixo:
(74) Caubi saiu para ir à sua cabana, que ainda não tinha visto depois da volta.
Nesse exemplo, de José de Alencar, retirado de Cunha (1971), o ainda é considerado
um adjunto adverbial de tempo e também colocado na lista dos advérbios de tempo. Quando
muito as gramáticas citam a locução ainda que como pertencente à classe das conjunções.
Sem nenhuma alusão ao caráter discursivo ou argumentativo que o item pode carregar e
também sem uma análise detalhada da semântica do uso temporal. Porém, vale ressaltar que
gramáticas mais atuais como Bechara (2005) mencionam que o ainda mesmo, entre outros
37
advérbios, apresentam relações textuais, certas aproximações e identidades semânticas com as
conjunções, conforme o exemplo dele:
(75) Nunca perdemos de vista o nosso interesse, ainda mesmo quando nos inculcamos
desinteressados.
Mas, novamente, nada dizem sobre a sua semântica.
Os trabalhos funcionalistas sobre o ainda consideram essa contraparte argumentativa,
em que o ainda se assemelha ao papel das conjunções. Martelotta (1996) afirma que há um
contraste entre as frases marcadas por já e ainda e o que foi dito imediatamente antes e que,
além disso, há um contraste também com relação à expectativa do ouvinte, uma tensão entre o
ponto de vista do falante e a expectativa do ouvinte. O autor analisou entrevistas e nelas foram
encontrados três casos de ainda:
- ainda marcador de contra-expectativa:
(76) Agora, moda de um modo geral... agora, essa coisa... adoro essa moda. Se eu
fosse moça, eu adoraria usar, eu acho descontraído, eu acho fabuloso, porque eu ainda
tenho ainda aquela coisa de querer combinar sapatinho com bolsa..Ainda guardo essas
coisas, mas para a juventude eu acho fabulosa essa moda.
A contra-expectativa pode ser de fundo cultural, como é o caso da moda nesse
exemplo, do falante ou do ouvinte. Nesse grupo, Martelotta (1996) encaixa o uso temporal
que está estritamente relacionado às expectativas.
- ainda inclusivo:
(77) Agora, no Paraná predomina o pinho. O pinheiro, não é? [...], mas eu acho que a
vegetação é constituída de uma mata rala, não é? [...] temos ainda uma vegetação que
é muito conhecida dos brasileiros lá do Nordeste, que também é uma mata rala..
Esse uso é semelhante ao termo também, com função argumentativa de incluir novas
informações, nesse grupo, o autor também encaixa o uso do termo que pode ser substituído
por ainda por cima.
- ainda intensificando advérbio:
(78) [...] Não também, graças a Deus. Ainda bem, não é?
38
Esse terceiro grupo determinado por Martelotta (1996) abarca o uso do ainda
incidindo sobre outro advérbio e intensificando-o, nele se encaixam usos que são substituídos
por ainda agora, ainda hoje, ainda ontem, ainda mais, entre outros. Contudo, quando se trata
do ainda mais, fica evidente a semelhança com as características do segundo grupo – o
inclusivo –, por também haver a inclusão, demonstrada em (77). Essa união do ainda + o
advérbio (mais) só é utilizada em casos em que se acrescenta algo e muitas vezes pode ser
substituído por principalmente, mas não em todas, como se verifica no exemplo (77) em que
não há essa substituição pelo principalmente. Já no caso do ainda bem, essa inclusão é mais
difícil de ser encontrada, como, por exemplo, ainda bem que nos encontramos, o que se torna
mais saliente é o encontro não esperado. Também em ainda ontem falamos de vocês, há a
idéia de uma conversa não esperada, assim como a referência ao tempo, o que os incluiria
também no primeiro grupo do Martelotta – marcador de contra-expectativa. (80) é possível
estar inserida em um contexto em que a sentença marque uma contra-expectativa (ainda bem
que não foi, não comeu, não desapareceu, entre outros, o que era esperado). Esse parece ser o
caso de resposta a uma pergunta do tipo:
(79) João foi à festa?
(80) [...] Não também, graças a Deus. Ainda bem, não é?
Com isso, o ainda bem também estaria no primeiro grupo.
Dessa forma, por mais que os advérbios sejam o ponto em comum que une esse grupo,
eles também são de naturezas diferentes. A classificação desse terceiro grupo ancora-se em
questões mais formais, caso dos advérbios, o que não acontece nos demais, fundamentados
nas idéias de contra-expectativa e inclusão, de caráter mais semântico-discursivo. Embora
ainda agora, ainda hoje e ainda ontem estejam relacionados ao tempo e, por isso, possuam
semelhanças, não é o caso de agrupá-los em uma mesma classe, unindo-os aos demais
advérbios.
Martelotta (1996, p. 215) defende que o ainda de origem espacial no latim passa a
expressar a noção temporal e, em seguida, torna-se operador argumentativo por
gramaticalização via pressão da informatividade temporal, fazendo uma retomada histórica:
Este advérbio dêitico latino inde, de valor espacial e temporal gera, no português
arcaico, as formas de ende e ainda (ou inda). A forma ende (proveniente do uso
espacial de inde), que se manifesta basicamente como anafórico de base espacial,
gera o ende equivalente a sobre e isso e o ende conclusivo (por ende), que por sua
vez gramaticaliza em porém com valor adversativo. (MARTELOTTA, 1996, p.
219)
39
Assim como Martelotta (1996), Longhin-Thomazi (2005, p. 1363) também faz
referência à categoria temporal a que o ainda está ligado e escreve sobre a reconstituição
histórica do ainda, utilizando dados do português arcaico, também se reportando à etimologia
do termo:
O ainda é o produto da combinação de vocábulos latinos: ad + inde > ainde >
ainda, em que inde sinalizava tanto espaço (‘de lá’, ‘daquele lugar’) como também
tempo (‘a partir de’).
A autora classifica o ainda em dois grandes usos: os temporais e os argumentativos.
Dentro dos temporais Longhin-Thomazi cita os seguintes exemplos:
(81) – Porquê? disse el; fez-vos alguu mal? - Mui grande; derribou-me tam
bravamente que aynda me dol. (13DSG, p. 45)18
(82) Ai donzela, alevosa e traedor, em maau-ponto foi esta promessa outorgada, ca eu
seerei mais escarnecido que nunca foi cavaleiro; e tu nom gaanharás i rem; ca, se Deus
quiser, aynda porém morrerás de maa morte. (13DSG, p. 27)
A autora assinala que, em (81), ainda representa o tempo continuativo e em (82) ele
marca tempo futuro, porém, o que está marcando futuro aqui é o verbo, o ainda dispara a
interpretação de além disso em (82).
Dentro do grupo dos argumentativos, a autora separa três usos: inclusivo,
intensificador e concessivo, respectivamente exemplificados abaixo:
(83) E mãdo que, quen quer que tênia meu tesouro os meus tesouros a dia de mia
morte, que os de a departir aquestes dous arcebispos e aquestes cinque bispos, assi
como suso é nomeado. E mãdo ainda que, se s´asunar todos nõ poderem ou nõ quisere
ou descordia for outr´aquestes, a que eu mãdo departir aquestas dezimas suso
nomeadas... Mãdo ainda que a raina e meu filio ou mia filia que no meu logar ouuer a
reinar se a mia morte ouuer...(13TDA, p. 398) – uso inclusivo.
(84) ...falla das primiçias e das offerendas de que sse auidã muyto os clerigos, conue
de dizer em este dos dezemos, que é uma cousa apartada, de que sse aiuda aynda
mays toda a igreia, ta be os prellados mayores como os outros clerigos...(13LA, p. 7)
– uso intensificador.
(85) - Senhor cavaleiro, vós estades a pee e eu a cavalo, e aynda com tal andança
queredes a batalha? (13DSG, p. 39) – uso concessivo.
18
Os trechos foram coletados por Longhin-Thomazi (2005) e retirados de textos arcaicos. Os exemplos (81),
(82) e (85) são do Século XIII do texto A demanda do Santo Graal, (83) e (84) datam do mesmo século, mas são
de Testamento de D. Afonso II e de Excertos de Legislação Antiga, respectivamente.
40
Se formos utilizar a teoria da gramaticalização, podemos observar o percurso que se
inicia na extensão, primeiramente, temporal de um uso espacial, que parece já não estar
presente no português atual; salvo algumas exceções do tipo ainda mais para cima, ainda
mais para o lado, ainda mais à frente; e que, posteriormente, via gramaticalização, deram
entrada a outros usos como o argumentativo, já apresentado, e outros que serão verificados
daqui em diante.
3 QUANTOS USOS?
Na semântica, pelas suspeitas de Ilari (1984) e Mendes de Souza et al (2007), o item
lexical ainda, com leitura temporal, pertence à classe dos itens de polaridade negativa. Sobre
os demais usos, nada foi citado no trabalho de Ilari e nada aprofundado no de Mendes de
Souza et al, que apenas indicam haver outros usos. No inglês, Israel (1996) e Ladusaw (2002,
[1980]) afirmam que o yet é um item de polaridade negativa e, talvez, esta análise possa ser
transposta para o português, conforme aventado no primeiro capítulo.
Inicialmente, porém, nos deparamos com a complexidade de facetas que o item lexical
ainda aparenta possuir, como mostrou a rápida excursão pelas análises funcionalistas. Logo,
foi preciso tentar classificá-lo e centralizar a análise em um deles, o que fora citado por Ilari
(1984) e que é o correspondente do inglês yet. O primeiro vestígio de diferenças de sentido foi
detectado, justamente, na comparação do ainda temporal + negação e sua suposta
correspondência positiva:
(86) João ainda não terminou o trabalho.
(87) # João ainda terminou o trabalho.
Esses são exemplos semelhantes a (64) e (65) analisados superficialmente no capítulo
anterior. Vale ressaltar que (87) não é agramatical, mas tem significado diferente de (86) e
parece incompleta – ela melhora consideravelmente se acrescentarmos uma “coda”: antes de
sair. É possível encontrar marcas de temporalidade nas duas sentenças? A interpretação de
(86) é de que João começou o trabalho em um dado momento no passado e até o momento da
fala não terminou. Nesse caso, o ainda representa a continuidade da ação que se estende para
além de um limite esperado. É como se imaginássemos uma linha do tempo em que o estado
41
de realizar o trabalho começa no passado, continua e ultrapassa o momento em que a sentença
foi proferida; indicando que o evento de trabalhar deveria ter terminado, mas se estendeu no
tempo. Trata-se, portanto, de uma leitura temporal. Essa noção de tempo será demonstrada na
seção 3.2.
A sentença (87) carrega um verbo com marca morfológica de pretérito perfeito, assim
como (86), porém, sem a negação. No entanto, da forma como (87) se apresenta e sem um
contexto específico, o ainda não recebe a leitura temporal, presente em (86), mas apenas uma
leitura discursiva, assim denominada em Mendes de Souza et al (2007), semelhante à leitura
inclusiva de Martellota. Essa leitura discursiva tem um sentido próximo de ainda por
cima/além disso, representando, assim, o acréscimo de algo, há uma lista de coisas que parece
estar pressuposta; João fez outras coisas e, além disso, terminou o trabalho. Dessa forma, ela
se interpreta diante de um contexto em que João tomou café, conversou, divertiu-se e ainda
terminou o trabalho. Porém, como vimos, há uma outra possível leitura19 em que (87) é uma
resposta à pergunta:
(88) a. João saiu cedo?
b. Não. João ainda terminou o trabalho [antes de sair.]
Dessa maneira, nesse contexto, existe vestígio de temporalidade também em (88b):
Antes de sair João terminou o trabalho. Mas essa leitura só é possível se aliada a uma
pergunta, e também ao adjunto temporal localizado ao fim da sentença antes de sair, pois
mesmo que esse adjunto não esteja explícito e não pronunciado, permanece implícito e
subentendido na resposta. Essa questão dos adjuntos será discutida adiante. Vale ressaltar que
a resposta da pergunta é negativa, e mesmo que o não esteja oculto, continua subentendido e,
com a presença da negação, a leitura temporal sobressai. Alguém poderia dizer que existe
ambigüidade na sentença (88b), pois seria possível a leitura temporal e a discursiva ou
inclusiva. Contudo, nesse contexto de resposta à pergunta e mais o acréscimo do adjunto
temporal ao final da sentença, a leitura discursiva/inclusiva desaparece, não sendo mais
possível visualizar aquela lista pressuposta de coisas que ele fez e ainda por cima terminou o
trabalho. Com isso, as suspeitas no que diz respeito às diferenças de sentido, não só em (86) e
(87), mas como em outras ocorrências também, aumentaram.
Inicialmente, os usos descritos de (89) a (99) abaixo, foram encontrados em exemplos
criados e que pensávamos existir no PB; posteriormente, isso foi verificado no banco de dados
19
Esse exemplo foi sugerido por Edair Gorski (c.p.).
42
do NURC e confirmado com a fala dos informantes do projeto. A classificação apresentada
abaixo é intuitiva e precisa ser mais bem compreendida e estudada.
(89) João ainda brinca de carrinho. – Temporal.
(90) João ainda comprou a bola. – Discursivo.
(91) João ainda não comprou a bola. – Temporal.
(92) João ainda aguarda o dinheiro para comprar a bola. – Temporal.
(93) Ainda que João se esforce, ele não conseguirá o perdão de Maria. – Conjuntivo.
(94) Vale ressaltar, ainda, a importância do leite materno. – Discursivo.
(95) João está com dor de garganta e ainda quer chupar picolé. – Discursivo.
(96) João perdeu a moral perante seu patrão e ainda o insultou. – Discursivo.
(97) Ontem ainda falamos de vocês. – Temporal.
(98) Ainda bem que nos encontramos. – Intensificador.
(99) Ainda que ele brinque bastante de carrinho, não afetará seus estudos, pois faz
todas as tarefas. – Conjuntivo.
Essas sentenças apresentam a riqueza tipológica do ainda. As sentenças (89), (91) (92)
e (97) são casos que tratam do ainda temporal – (89), indica, na leitura genérica, mais
saliente, que João começou a ter o hábito de brincar em um momento anterior ao momento de
fala e continuou ainda brincando até o momento de fala, prolongando-se além do esperado;
da mesma forma se comporta o evento de brincar: o evento deveria ter terminado, mas esse
não foi o caso. Semelhantemente, (91), na negativa, também está relacionada ao eixo temporal
em que chegou o momento e não foi comprada a bola. (92) também se liga ao tempo e
mesmo não tendo uma negação explícita, a sentença carrega uma implicatura (ou
pressuposição, isso será discutido no Capítulo 3) de que há ainda possibilidade de aparecer
um dinheiro, mas João o aguarda: o dinheiro não veio, mas existe a expectativa de que
venha. Já a sentença (97) é um caso peculiar; há quem diga que ela é ambígua, que pode
apresentar a interpretação 1. ontem mesmo e 2. Discursiva/inclusiva20: entre outras coisas que
fizeram, falaram de vocês. Essas duas interpretações foram encontradas em testes com
falantes, dependendo do escopo dado à sentença no caso de ser apresentada oralmente. A
interpretação em 1 nos diz que não era esperado que um tempo tão curto tivesse decorrido
entre falar do ouvinte e encontrá-lo; essa é a interpretação default e está intimamente
relacionada a tempo, e devido a isso, o grupo no qual ele se encaixa é o temporal.
20
Essa interpretação 2 foi proposta por Edair Gorski e Ligia Negri em (c.p.).
43
As sentenças (90), (95) e (96) pertencem à classe do ainda discursivo/inclusivo e
expressam ainda por cima ou além disso. Isso quer dizer, em (90), João além de ter vários
brinquedos, por exemplo, ainda por cima comprou mais uma bola; representando, assim, o
acréscimo de algo. Há uma lista de coisas que ele comprou e essa lista, como dito
anteriormente, parece estar pressuposta. Lembrando que (90) também pode ser resposta a uma
pergunta, semelhante ao que acontece em (88). Em (95) João está com dor de garganta e
ainda por cima, além disso, quer chupar picolé, o que indica contraste, contra-expectativa,
consoante Martelotta (1996) em seu uso argumentativo. Da mesma forma, em (96), João,
além de ter perdido a moral com o patrão, ainda por cima o insultou. O exemplo (94)
também se encaixa no uso discursivo, que, embora de mesma natureza, é mais típico de texto
escrito, de caráter coesivo e que dá seqüência textual, parafraseado por também ou além disso.
Em (93) e (99) há um uso conjuntivo, análogo às conjunções concessivas, embora,
apesar de ou mesmo que; assim, em (93) mesmo que João se esforce, ele não conseguirá o
perdão de Maria. Esse uso também foi salientado por Martelotta (1996) e Longhin-Thomazi
(2005) que os consideravam operadores concessivos e/ou adversativos. E (99), mesmo que ele
brinque bastante de carrinho, isso não afetará seus estudos, pois faz todas as tarefas.
Assim como (97), (98) também é um caso peculiar. Parece ser uma expressão (ainda +
bem), exprimindo contentamento, que bom, por exemplo; trata-se de uma expressão
idiomática, pois não é possível desmembrá-la. O sentido só é completo com a união dos
termos, pois o ainda sozinho não forma que bom e vice e versa. Poderíamos colocar este uso
em um grupo como fez Martelotta (1996), ver exemplo (80), como intensificador de advérbio,
porém, como dito anteriormente, se compararmos ainda bem e ainda ontem percebemos que
não se trata de um mesmo uso, porque não veiculam o mesmo significado.
Conforme dito anteriormente, os exemplos da última série convergem às informações
do banco de dados NURC, onde encontramos 104 ocorrências, distribuídas em 12 entrevistas
retiradas das cinco cidades envolvidas no Projeto e divididas em inquéritos contendo diálogo
entre dois informantes, entre o documentador e o informante e elocuções formais. O índice de
maior uso foi o do ainda com interpretação temporal, totalizando 73% das ocorrências, o que
legitima a escolha pelo foco desta dissertação. Os demais usos da série anterior também
apareceram nos dados. O uso discursivo totalizou 13,4% e o conjuntivo 1,9%. A relevância de
um uso, em especial, merece atenção, devido ao número elevado de ocorrências (10,5%). É o
uso inclusivo, conforme exemplo abaixo:
(100) João gosta de sair com Maria, ainda mais que ela paga a conta.
44
Esse uso é o inclusivo porque além de Maria apresentar outros fatores para que João goste
de estar com ela, o ainda mais acrescenta mais um – o de ela pagar a conta -. Ele também
pode ser substituído por principalmente. O ainda + advérbio é bem comum, até mesmo no
inglês, mas geralmente esses advérbios são de tempo, e esse não é o caso, por isso não é
possível incluí-lo na classe do temporal, como ainda + ontem.
Também no banco de dados surgiram usos que foram mais dificilmente encaixados em
nossa classificação e são representados pelos exemplos semelhantes abaixo:
(101) João mora um pouco mais lá em cima ainda.
(102) Qualquer dia desses Maria ainda acaba denunciando aquela diretora.
(103) Essa obra não teve sucesso, até os autores ainda a acharam estranha.
(104) E ainda aqui, em toda essa região, há seca.
(105) Todas as comidas são boas, mas tem uma ainda que eu acho melhor.
(106) A cidade tem um bonito cenário gastronômico, melhor ainda, o comer.
Inicialmente, (101) e (104) apresentam um ponto a ser ressaltado, ambos recuperam o
uso espacial, presente no latim e citado por Martelotta (1996, p. 215) e também por LonghinThomazi (2005), anteriormente recuperado nesse capítulo. Os dois exemplos tratam da
questão do espaço, resquício do latim, que hoje, como foi visto na amostra dos dados, é uma
ocorrência ínfima. Embora pareçam mais difíceis de encaixe na classificação proposta, os
exemplos (101) a (105) são usos discursivos e o (106) também é, mas, por também ser
intensificador é facilmente confundido.
Portanto, com base nos dados há três grupos,
inicialmente pensados, e que se confirmaram ao longo do estudo – conjuntivo,
discursivo/inclusivo e temporal. Embora possuam a mesma forma, foi possível separá-los por
apresentarem significados diferentes, mas é possível encontrar uma característica comum em
todos eles?
3.1 CONTRA-EXPECTATIVA
Não é objetivo desta dissertação estudar todos os usos, de modo a descobrir se pode
haver uma unificação entre eles, devido às características comuns. Entretanto, há a contraexpectativa, apontada por Martelotta (1996) para o primeiro de seus grupos, que não é
45
privilégio somente das sentenças encaixadas no primeiro grupo apontado pelo autor, mas
característica encontrada em todas as sentenças de (89) a (106) com o ainda.
No uso temporal, o ainda em (89) ativa a expectativa de que João já não estivesse
mais brincando de carrinho. (91) quer dizer que João ainda não comprou a bola, mas a
presença do ainda, de encontro à cena atual, permite haver uma contra-expectativa de que ela
já deveria ter sido comprada. Mais à frente, essa expectativa será preenchida, a bola será
comprada. Em (92), João continua aguardando o dinheiro, que já deveria ter chegado, a
expectativa da chegada é contrariada também. E, da mesma forma, em (97), há um encontro
que vai contra a expectativa de se encontrarem recentemente.
A mesma característica está presente na classe dos conjuntivos – a contra-expectativa
–, mas um pouco mais difícil de se verificar, pois nessas sentenças parece haver sempre uma
oposição de idéias e ela pode ser confundida com a contra-expectativa. Por exemplo, em (93),
por mais esforço que o João faça, ele não vai alcançar o perdão da Maria, nesse caso, o
esforço e o perdão estão em lados opostos, o que não é a expectativa comum ou esperada,
pois se há esforço, há grandes chances de que haja perdão. Em (99), o padrão seria existir a
expectativa de que se João brinca bastante de carrinho, isso afeta os seus estudos, porém,
esse não é o caso, há uma contra-expectativa de que os estudos não serão afetados, mesmo
brincando de carrinho.
Também no uso discursivo/inclusivo, a contra-expectativa se mantém. Em (90), há
uma expectativa contrária à compra da bola, pois João comprou mais um brinquedo que não
era esperado. Em (94), a contra-expectativa não é tão clara, mas em um contexto em que o
discurso foi demorado, houve muitas colocações, o esperado seria terminar logo, porém, o que
ocorre é o contrário da expectativa, há também mais um destaque. Já em (95), é senso comum
que o cenário da dor de garganta não é compatível com o de chupar picolé, a expectativa é de
que se há um cenário, o outro não está presente, contudo, nessa sentença, assim como nas
demais, a contra-expectativa comanda a cena. Em (96), João perdeu a moral perante seu
patrão e, com isso, o esperado é que ele não faça mais nada contra o patrão, mas ele também
o insulta, assim como em (98), por exemplo, ainda bem, quase considerado uma locução ou
uma expressão idiomática, veicula surpresa, vai em direção contrária à expectativa de
encontrar-se recentemente.
Nos usos separados da série acima também é possível encontrar a contra-expectativa.
Em (100), que também pode ser considerado um uso intensificador, há uma contraexpectativa, não tão saliente, no que diz respeito a ela pagar a conta, algo que não é esperado.
Já em (101), a contra-expectativa se evidencia mais, pois parece ser um contexto em que a
pessoa subiu um grande morro e esperava já ter subido o suficiente, mas alguém afirma que é
46
mais lá para cima do que ela esperava, novamente, vai de encontro à expectativa. No caso de
(102) a contra-expectativa é a denúncia, que não era esperada.
Em (103), parece que o normal (ou o padrão) seria que os autores gostassem da obra
que fizeram, mas isso não acontece, inclusive eles acharam a obra estranha: vai contra a
expectativa habitual. (104) fala de uma região, que parece ser boa, mas mesmo nessa região,
há seca, a expectativa comum seria de que em terra boa não há seca, contudo, isso não se
mantém. Em (105), a sentença principal fala de um contexto em que as comidas são boas, o
mas já inverte a situação, como o de costume, e o ainda intensifica essa oposição, trazendo a
contra-expectativa de uma comida melhor que as demais e, da mesma forma acontece em
(106), pois há uma constância na descrição favorável e o ainda faz superar essa constância,
ele indica uma contra-expectativa, melhor do que a esperada.
Assim, essa tentativa de unificação serviu de início para um trabalho futuro. Porque já
é um árduo trabalho classificar os usos distintos do termo, quanto mais saber se estamos
diante de ambigüidade ou polissemia, e se há condições para unificar a natureza de todos
esses usos, encontrando traços em comum entre eles, por isso, esse não será o foco deste
trabalho. Também há uma dificuldade em agrupar os tipos de ainda por características
semelhantes, mas a conclusão a que chegamos é que há pelo menos três grupos; o do
temporal, o do discursivo/inclusivo e o do conjuntivo. Nosso foco será dado ao temporal
porque ele é considerado o candidato a ser IPN e por ser o uso numericamente mais
expressivo.
Retomando
as
origens
do
termo
que
inicia
no
âmbito
tempo-espacial
(MARTELOTTA, 1996; LONGHIN-THOMAZI, 2005), depois surge no campo discursivo e,
posteriormente, no conjuntivo, é relevante destacar21 que, além da mudança de significado, há
também a mudança de escopo de atuação do item que ora é intra-sentencial, no caso de (90), e
ora é inter-sentencial, por exemplo, em (99). Assim como o estatuto categorial também
modificou, o que antes era somente um advérbio, conforme (91), passou a ser um operador
argumentativo em (94) e conectivo em (93).
3.2 AINDA TEMPORAL
A série de exemplos descrita na seção 3 demonstra a diversificada tipologia do item
lexical em questão, porém, não se aprofunda na semântica do ainda ligado à questão
21
Gorski fez essa consideração em c.p.
47
temporal. Além disso, até onde pudemos verificar, não há no PB nenhum estudo que
centralize sua análise nesse tipo de ainda com interpretação temporal. Por isso, e também
devido à maioria das ocorrências no banco de dados apresentar a leitura temporal (71,7%), o
foco deste trabalho será nesse tipo de ainda. Como ponto de partida, avaliamos a
compatibilidade do ainda temporal com diferentes tempos verbais e diferentes acionalidades
em sentenças positivas e negativas para verificar se ele tem comportamento uniforme22. Se ele
é um IPN, a expectativa é que em todas as variações tempo-aspectuais haja uma discrepância
entre o contexto negativo e o positivo.
Em relação ao tempo, Ilari (1992, p. 208), em seu trabalho sobre os “Advérbios
focalizadores”, afirma que os advérbios apenas, simplesmente, já e nem mesmo são utilizados
para representar determinados assuntos ora como etapa presente, ora como ponto de chegada,
ora como ponto de partida. Segundo ele, o locutor, nesses casos, lança mão da sabedoria
dêitica, o que lhe permite situar-se em um ponto distinto do local de fala. Embora Ilari nada
diga sobre o ainda, veremos mais tarde que é possível também encaixá-lo nesse jogo de
localizações no tempo.
Por isso, o tempo é relevante nesta dissertação e, por serem bastante desenvolvidas as
pesquisas nessa área, vamos nos basear na proposta do filósofo e lógico Hans Reichenbach
(1947), que está no livro Elements of Symbolic Logic, tal como apresentada em Ilari (1997),
em que o tempo gramatical marca a localização do evento na linha de tempo, tendo como
âncora o momento de fala. Segundo essa proposta, há três momentos estruturais na descrição
dos tempos: o momento de fala (MF), o momento de realização do evento expresso pelo
verbo (ME) e o momento de referência (MR). A idéia é próxima à intuição dos falantes,
principalmente quando se menciona o momento de fala e o de evento, como pode se verificar
nos exemplos:
(107) Hoje é a posse do novo reitor.
(108) Ontem foi a posse do novo reitor.
Em (107), o momento de fala e o momento de evento coincidem, já em (108), isso não
acontece, pois o evento antecede temporalmente o momento de fala. O momento de referência
precisa de uma explicação mais detalhada, pois é ele quem faz a relação entre o momento de
fala e o momento de evento. O MR “[...] pode corresponder ao tempo expresso pelos adjuntos
22
Esse trabalho foi apresentado em pôster no Seminário nos Domínios do Verbo, ver Lemos Gritti & Pires de
Oliveira (2007).
48
de tempo[...]” (ILARI 1997, p. 15). São eles que situam o MR. Sua presença é claramente
necessária quando temos combinações temporais como abaixo:
(109) João tinha saído quando Maria chegou.
A chegada de Maria é a momento de referência que permite situar o evento de saída do João
como anterior a esse ponto. Ambos são anteriores ao momento de fala.
No que diz respeito à acionalidade, utilizamos a divisão clássica de Vendler (1967
apud PIRES DE OLIVEIRA & BASSO, 2007) em: estado, atividade, accomplishment e
achievement. Os estados se diferenciam por serem não dinâmicos, atélicos, isto é não têm um
final pré-determinado, e durativos. As atividades são atélicas, durativas e dinâmicas.
Accomplishments e achievements são télicos, porque têm um ponto final dado a priori, mas
diferem porque os primeiros são durativos enquanto os segundos são instantâneos.
Como é possível verificar nas tabelas anexas, testamos todas as combinações de
acionalidade, tempo e aspecto. Verificamos que, na forma do presente simples do indicativo,
o ainda ocorre tanto em contextos positivos quanto nos negativos. Não havendo, portanto, a
discrepância esperada. Na verdade, combinar accomplishment com o presente simples é
problemático, porque o presente simples gera leitura genérica, por isso o estranhamento com o
objeto direto definido o vestido, exemplo (111b); a sentença se torna ótima quando temos o
sintagma no singular nu porque também indica imperfectividade, conforme exemplo (111a).
A forma do presente no PB, muitas vezes, não veicula tempo semântico presente; em geral,
ela expressa hábito ou genericidade, que são aspectuais. No que tange à acionalidade no
presente, o ainda ocorre em todas elas, perfeitamente, conforme os exemplos abaixo:
(110) a. Maria ainda ama Pedro.
b. Maria ainda não ama Pedro.
(111) a. Maria ainda costura o vestido.
b. Maria ainda não costura o vestido.
(112) a. Maria ainda não alcança o berço.
b. Maria ainda alcança o berço.
(113) a. Maria ainda não anda.
b. Maria ainda anda.
Observe que o ainda está aliado a diversas acionalidades e em todas elas ele ocorre na
negação e na afirmação. Na sentença (110b), com verbo de estado, a sentença ocorre tanto na
49
afirmativa quanto na negativa; da mesma forma, em (111b), sentença genérica, com leitura
habitual; e, nas últimas, o ainda também ocorre em ambas: em (112a) e (112b) com verbo
achievement e em (113a) e (113b) com verbo de atividade Maria ainda anda. Não há
nenhuma restrição quanto à acionalidade e à forma verbal. Note, ainda, que em todos os casos
a interpretação é temporal.
Porém, observe a interpretação das sentenças na afirmativa, parece que há uma
expectativa de mudança implícita do estado de amar para não amar em (110a) e é o ainda que
aciona essa expectativa, pois, sem ele, a idéia de mudança não acontece e isso é verificado
comparando-a à sentença abaixo:
(114) Maria ama Pedro.
A única diferença entre (110a) e (114) é a presença do ainda naquela e a sua ausência nesta.
Observe que em (114) a expectativa de mudança não existe. Da mesma forma acontece em
(111a), na qual há a expectativa de que Maria já tivesse acabado de costurar. Ou seja, a
expectativa se mantém em ambas as sentenças, mesmo com verbos de acionalidade distintas.
Voltando à série de (110) a (113), as sentenças em b. demonstram que ainda ocorre
sem restrições nas diversas acionalidades, porém, no que diz respeito ao pretérito perfeito, a
combinação com o ainda gera sentenças cuja interpretação temporal está, se não bloqueada,
dependente de outros fatores:
(115) João ainda correu.
(116) Maria ainda descansou.
Tanto em (115) quanto em (116) a interpretação mais saliente é que João brincou, nadou e,
além disso, ainda correu, assim como Maria, além de ter ido ao mercado, limpado a casa e
trabalhado fora, ainda descansou, leituras discursivas. Diante disso, perguntamo-nos: essa
restrição (de não poder ocorrer na afirmativa somente no pretérito perfeito) se deve ao tempo,
ao aspecto ou à acionalidade? Com o avanço do estudo, pudemos descobrir que a restrição
está no aspecto perfeito e não na marcação de tempo passado, observe o exemplo abaixo:
(117) João ainda corria.
(118) Maria ainda descansava.
(119) Maria ainda amava João.
50
Embora (115), (116), (117), (118) e (119) expressem passado, (117) e as duas
seguintes obtém a interpretação temporal ao contrário de (115) e (116). A única diferença
entre elas é que (115) e (116) têm aspecto perfectivo e as demais aspecto imperfectivo. Logo,
à primeira vista, a restrição de ocorrência de ainda não é ser um contexto negativo, mas sim
um imperfectivo, dessa forma, ele não parece ser um item de polaridade negativa. A questão,
até o momento, parece ser de aspecto, por isso, adotaremos a definição de imperfectivo de
Klein (1994), embora a literatura sobre o assunto seja vasta. As expressões são imperfectivas,
segundo o autor, se elas denotarem um evento que se estende para além do intervalo de tempo
determinado pelo tempo de referência. Já na interpretação perfectiva, o evento está incluído
no momento de referência.
O aspecto imperfectivo se combina muito bem com o ainda, exatamente, porque
ambos dão um sentido de continuidade e são abertos à mudança, já que, no imperfectivo o
evento está em curso. O perfectivo não dá condições para que isso aconteça, porque tem um
ponto final já estabelecido, o que impede a mudança para outro estado, mas isso precisa ser
mais bem verificado, o que faremos a seguir. Por enquanto, basta notar que se o ainda é um
IPN, ele o é apenas no pretérito perfeito.
3.1.1 A restrição
Primeiramente, pensávamos que a restrição para o ainda ocorrer seriam contextos
negativos, pois o confronto entre eles e os afirmativos, parecia gerar uma preferência pelos
negativos, observe o quadro abaixo:
ESTADO
ATIVIDADE
João ainda amou # João ainda brincou.
Maria.
ACCOMPLISHMENT
ACHIEVEMENT
Maria ainda costurou o
# 23 João ainda
vestido mesmo sabendo
alcançou o pico do
que está fora de moda.
Everest.
João ainda não
João ainda não
Maria ainda não
João ainda não
amou Maria.
brincou.
costurou o vestido.
alcançou o pico do
Everest.
Quadro 1 - Testes do pretérito perfeito
23
Lembrando que o # foi colocado para identificar uma leitura não temporal.
51
Observe, no Quadro 1, que com os predicados de atividade e de accomplishment as
sentenças com o uso do ainda são boas, porém, trata-se da leitura discursiva. No exemplo da
segunda coluna, com predicado de atividade, há a idéia de que João fez as tarefas, tomou
banho e além disso, ainda por cima brincou. O ainda aponta para uma série de eventos, que
se unem ao principal da sentença; e, no exemplo da terceira coluna, Maria, apesar de saber
que está fora de moda, mesmo assim costurou o vestido. Também no caso do achievement, a
única leitura para o uso positivo de ainda é, mais uma vez, a discursiva: além de ter feito
outras coisas, João alcançou o pico do Everest. A mesma leitura discursiva é encontrada no
ainda em sentenças estativas.
No entanto, as mesmas sentenças, colocadas na negativa (na segunda linha do quadro),
ficam bem melhores, porque parecem com sentido completo, ao passo que as sentenças na
afirmativa, sem outras informações, parecem não estar completas, e ativamos, de imediato,
somente a leitura discursiva do ainda. Portanto, pensávamos que seria o contexto negativo o
preferido do ainda. Porém, com o decorrer do trabalho, pudemos perceber que essa restrição
da leitura temporal em contextos afirmativos acontecia somente no pretérito perfeito, e não
nos demais tempos verbais.
Dessa forma, conforme os testes apresentados nas tabelas em anexo e também na
seção anterior, o ainda ocorre somente em contextos perfectivos com a leitura
discursiva/inclusiva, conforme o exemplo abaixo:
(120) João ainda chegou.
Como a leitura temporal não está presente em (120), assim como não está em (115) e (116),
pensávamos que a restrição para o ainda ocorrer não seria mais contextos negativos, mas sim
perfectivos. Contudo, encontramos sentenças como (121) e (122), que também apresentam
morfologia de pretérito perfeito e que, no entanto, possuem a leitura temporal:
(121) Maria chegou tarde, passado do meio dia, mas ainda lavou a louça.
(122) João ainda chegou a tempo de evitar um escândalo. 24
Esse caso seria uma exceção? Não. Essa sentença apresenta uma questão importante
relacionada ao ainda no pretérito perfeito, a questão dos adjuntos. O ainda se alia ao pretérito
perfeito, conforme (115), (116) e (120), o problema é que a leitura se torna
24
O exemplo (121) foi inspirado no exemplo Fui dormir cedo, mas ainda costurei o vestido, fornecido por Ligia
Negri, mas que a interpretação discursiva não é a única e o (122) por Edair Gorski em (c.p.) na ocasião da banca
de qualificação.
52
discursiva/inclusiva. Também a interpretação “default” da sentença (121) é que além de
chegar tarde, ainda por cima, além disso, lavou a louça o que nos faz incluí-lo na
classificação do ainda discursivo. Mas, como veremos, uma leitura temporal também é
possível.
Para licenciar a leitura temporal é necessário haver algum suporte temporal. A locução
adverbial a tempo de (em 123) possibilita haver a leitura temporal da sentença, porque
estabelece uma referência que permite a localização do evento na linha do tempo. Por isso, a
sentença (121) obtém uma interpretação temporal, (também aceitável entre os falantes) e ela
seria licenciada pelo adjunto temporal tarde.
Sem a presença (explítica ou dada pelo discurso) de adjuntos relacionados ao tempo,
no pretérito perfeito, o ainda com interpretação temporal não ocorre. Portanto, para o ainda
ocorrer com a leitura temporal no perfectivo e sem a presença da negação é necessária a ajuda
dos adjuntos, porque os adjuntos introduzem uma referência que localiza os eventos,
ancorando-os no eixo temporal e licenciando a ocorrência do ainda.
Os adjuntos temporais se encaixam nessa definição, pois adicionam um momento de
referência às sentenças e, com base nesse momento, é possível localizar o ponto de uma
mudança. Por exemplo, em (122), retomado abaixo, a expressão a tempo de acrescenta um
ponto de referência virtual, que indica o escândalo que teria ocorrido se João não tivesse
chegado. Note que, para descrevermos esse significado, precisamos levar em conta uma
situação contrafactual, em que houve um escândalo, que se inicia no MR, verificado na
Figura abaixo:
(123) João ainda chegou a tempo de evitar um escândalo.
__________________escândalo___________________
Contrafactual
_________________________________________
ME
MR
MF
Chegou evitar um escândalo
Figura 2 – Representação no eixo temporal da sentença (123)
O MR é o momento do escândalo virtual e o ME é quando João chegou. O MR permite haver
a possibilidade de marcarmos a transição entre estados. Sendo assim, é fácil notar que, se
assumirmos o momento de referência, a leitura temporal se torna possível.
53
Uma das razões pela aparente preferência por contextos negativos no perfectivo,
apresentada no início dessa seção, é devido à negação impedir a leitura perfectiva, ou seja,
deixar o ponto final do intervalo de tempo denotado pelo perfectivo em aberto para uma
mudança e, também, com a negação, há um momento de referência. Todas as sentenças do
Quadro 1 enquadram-se nesse esquema, pois João ainda não amou Maria até o momento de
referência que coincide com o momento de fala, Maria ainda não costurou o vestido até o
momento de referência e assim sucessivamente.
Embora as sentenças do quadro abaixo já estejam com a morfologia de aspecto
imperfectivo, só isso não basta, os adjuntos também se fazem necessários, pois, mesmo sem o
ainda, no imperfeito, é preciso haver uma ancoragem em outras sentenças para ter um
momento de referência, a exemplo disso, tem-se João brincava, em que o sentido não está
completo, uma vez que falta à sentença complemento que a ancore e lhe dê o momento de
referência.
ESTADO
ATIVIDADE
ACCOMPLISHMENT
ACHIEVEMENT
João ainda não
João ainda não
Maria ainda não costurava o
João ainda não
amava Maria.
brincava.
vestido.
alcançava o pico do
Everest.
João ainda
João ainda brincava.
Maria ainda costurava o
João ainda alcançava
vestido.
o pico do Everest.
amava Maria.
Quadro 2 – Testes no pretérito imperfeito
Observe que, nas sentenças acima, a ação ou o estado, assim como os eventos representados
por verbos accomplishment e achievement na afirmativa, não alcançam o ponto final, o que é
característico da interpretação imperfectiva. Porém, pelo fato de essas sentenças apresentarem
leitura de hábito25 no pretérito imperfeito, nada se pode dizer sobre o momento de referência,
ainda mais se considerado dessa maneira, sem contexto. A situação fica mais aparente um
pouco nos verbos accomplishment, devido ao objeto direto definido. Mesmo assim, precisam
de reforço para demarcar o momento de referência.
Dessa forma, são necessários contextos específicos para que as sentenças se ancorem
temporalmente, como, por exemplo, João ainda brincava quando bateu o sinal para o
recreio, o adjunto quando bateu o sinal para o recreio determina o momento de referência e o
25
Essa leitura de hábito é encontrada por Roberta Pires de Oliveira e também a assumo.
54
tempo do evento de João brincar inclui esse tempo de referência. Vale notar, no entanto, que
sentenças imperfectivas, independentemente da presença de ainda, são incompletas: João
brincava pede uma ancoragem temporal quando bateu o sinal.
Quando se trata do futuro, a situação não é tão clara, pois, em exemplos semelhantes à
(124) o evento não se desenvolveu e tão menos está se desenvolvendo:
(124) João ainda vai se arrepender.
O momento de referência, nesse caso, é posterior ao momento de fala e é simultâneo ao
momento de evento. A expectativa é que em algum momento do futuro, vai haver a mudança
de não arrependido para arrependido. Na negativa, o ainda ocorre sem problemas:
(125) João ainda não vai se arrepender.
(126) João ainda não vai viajar.
É claro que se acrescentarmos mais contextos às sentenças, principalmente adjuntos
temporais, semelhantes à (127) o momento de referência fica mais explícito:
(127) João ainda vai se arrepender quando encontrar Maria com outro.
Novamente, em (127), o momento de referência encontrar com outro inclui o momento de
evento se arrepender e ambos são posteriores ao momento de fala. A sentença (127), se
comparada a (124), é mais completa, pois situa melhor o momento de referência no eixo do
tempo.
A restrição sobressai-se se testarmos as mesmas sentenças com o aspecto perfectivo
no tempo futuro do presente composto:
(128) a. João vai ter se arrependido quando Maria chegar.
b. ? João ainda vai ter se arrependido quando Maria chegar.
O teste nesse tempo foi difícil, pois o futuro do presente composto, em (128a), indica
perfectividade, o estado de se arrepender está terminado quando o momento de referência
ocorrer e isso parece impedir a ocorrência de ainda, por estar fechado para a mudança. O que
não acontece no aspecto imperfectivo no qual o ponto passível de mudança está em aberto:
55
(129) a. João vai estar se arrependendo quando Maria chegar.
b. João ainda vai estar se arrependendo quando Maria chegar.
No entanto, depois de muitos testes, foi possível encontrar, no mesmo tempo futuro do
presente composto, casos como o seguinte:
(130) a. João vai ter aprendido a lição quando a velhice chegar.
b. João ainda vai ter aprendido a lição quando a velhice chegar.
É evidente que as sentenças parecem bem melhores no imperfectivo, mas parecer melhor,
como se pensava, não é uma regra, pois se comprovou através do exemplo (130), assim como
no (122), que o ainda ocorre em contextos perfectivos, logo, a restrição de ocorrência não é
contexto perfectivo.
À primeira vista, quando comparávamos o pretérito perfeito aos demais tempos, antes
da descoberta dos adjuntos e sem pensar em aspecto, a hipótese era de que a restrição seria a
negação, pois havia, pelo menos, um tempo no qual o ainda não ocorria com interpretação
temporal na afirmação. Logo após, percebemos que isso ocorria somente no pretérito perfeito
e a comparação entre os dois pretéritos parecia intrigante, pois o tempo verbal era o mesmo,
contudo, o aspecto diferente. Com isso, pensávamos que a questão estava mesmo no aspecto
perfectivo, visto que o ainda ocorria em todas as formas verbais de maneira uniforme, tanto
em contextos positivos quanto em negativos. A conclusão, até o momento, parecia ser a de
que o ainda não é um IPN, mas estava sujeito a uma restrição aspectual: ele não se combina
com o aspecto perfectivo. Porém, mostramos que a presença de adjuntos permite o uso de
ainda com o perfectivo. Logo, o ainda parece requerer um MR. Essa questão, que inclui o
problema dos adjuntos, não pára por aqui, no próximo capítulo, será mais explorada junto às
relações semânticas do item.
Portanto, a idéia da polaridade negativa não se sustenta mais. Ilari (1984) aventou a
hipótese de que o ainda seria um item de polaridade negativa e o já um item de polaridade
positiva, formando um par de oposição, o primeiro argumento foi mostrado que não se
sustenta, porém, resta-nos o já.
Neves (1992, p. 281) aponta o já como contrário do ainda, enquanto o primeiro
significa neste/nesse naquele momento ou período, considerado precedente de outros, o
último significa em até esse/aquele momento ou período, considerado subseqüente a outros.
Porém, sabemos que ainda não quer dizer até esse ou aquele momento, pois, como se
explicariam os casos no futuro e todos os outros nos quais há adjuntos? Pois nesses casos o
56
momento de referência é antes ou depois do MF. Talvez eles pudessem se encaixar na
explicação de aquele momento, mas não na de até esse momento que cabe só aos casos do
presente como é o caso de (133):
(131) A estrada não estava, por sinal, pronta, ainda. (D2 – SSA – 98:7. 32)
(132) Ainda fiz um sorteio, ainda botei... fiz umas brincadeiras. (DID – POA – 45:9.
142 – 143).
(133) Ainda existem bairros sem água (D2 – RE – 05: 26. 1137).
(134) Eu já morei em Recife. (D2 – RE – 05: 26. 1137).
Porém, em nossa classificação, (132) não é da mesma tipologia dos demais, pertence ao nosso
grupo dos discursivos que significa além disso, ainda por cima, também, mas Neves não faz
distinção de grupos, fala em geral e, assim como Martelotta (1996, p. 215), inclui o ainda e o
já no grande grupo dos dêiticos. É claro que o ainda diz mais do que aponta a autora, como é
fácil perceber substituindo-se qualquer das ocorrências desse item nas sentenças acima por
nesse momento. Ilari (1990, p. 77) coaduna com a idéia de dêitico, mas somente para o já e
aponta outra característica, a de estar associado ao tópico e significar muito pelo contrário
como em:
(135) A menina mais velha é boa desenhista, já a mais nova tem mais facilidade para
música. [n. a]
Novamente, esse parece não ser o já temporal que será tratado na seção seguinte.
Entendemos que esses itens podem ser dêiticos no que se refere à questão temporal, se
imaginarmos o eixo do tempo no qual o já e o ainda estão, indiretamente, apontando ou se
reportando a ele em suas ocorrências, mas não basta para atribuir uma semântica para esses
itens indicar sua instanciação no tempo. Isso será melhor desenvolvido no próximo capítulo
em que a análise do eixo temporal em relação aos itens será mais detalhada.
4 JÁ E AINDA – OPOSIÇÃO?
Ligado ao ainda temporal está o já, também temporal. No português, Ilari (1984) foi,
do que sabemos, o primeiro a citar esse par de opositores, confrontando dois exemplos:
57
(136) # O carteiro ainda veio.
(137) * O carteiro já não veio.
Certamente, (136) com a leitura discursiva não é o oposto de (137), agramatical. Como vimos,
para que (136) tenha leitura temporal precisamos de uma ancoragem no tempo, como por
exemplo, depois de ter entregue a carta. Mas, mesmo mantendo a interpretação temporal,
ainda não se opõe a já. No quesito oposição, a dualidade é:
(138) O carteiro ainda não veio.
(139) O carteiro já veio.
Em vista da clareza demonstrada acima, o par opositivo é: ainda não e já. Os estudos como os
de Löbner (1989, 1999) e de van der Auwera (1993), entre outros, mostram que os correlatos
no inglês são not yet e already e still e no longer.
Diante desses exemplos, no PB, ainda não e já formam um par relacionado ao tempo:
ainda não indica que o evento se prolongou além do esperado e já, que o evento ocorreu antes
do esperado – isso será explicado em detalhes na questão da pressuposição e da implicatura
no capítulo seguinte.
Como foi visto, há a não aceitabilidade do ainda na afirmativa, considerando o uso
temporal, no aspecto perfeito, sem o auxílio de adjuntos, bem como a não aceitabilidade,
também com interpretação temporal, do já em (137). Mas isso não ocorre em todos ou na
maior parte dos contextos, conforme estudo desenvolvido em Lemos Gritti & Pires de
Oliveira (2007) e apresentado na seção anterior – como pode ser verificado nas tabelas
anexas. Através dele, mostramos que ambos os itens, ainda e já, ocorrem nos dois tipos de
contexto (positivo ou negativo), como é apresentado nessa pequena amostra:
(140) a. João já não ama (mais) Maria.
b. João ainda ama Maria.
(141) a. João já não está brincando mais.
b. João ainda está brincando.
(142) a. João já não alcançava (mais) o pico do Everest.
b. João ainda alcançava o pico do Everest quando sentiu câimbra.
(143) a. Maria já não vai costurar o vestido.
b. Maria ainda vai costurar o vestido.
58
Nos exemplos acima, pode-se perceber que o já ocorre em muitos contextos negativos,
nas mais diversas formas verbais, com tipos distintos de verbos em relação à acionalidade e
em vários tempos, o que contraria a hipótese de que já seria um item de polaridade positiva e
isso não era o esperado, conforme o que fora dito pela literatura. Perceba que ele se combina
com o mais na negativa.
A série de exemplos de (140) a (143) também demonstra que a oposição positivo/
negativo entre os termos não está entre já e ainda, mas entre já não mais e ainda e entre ainda
não e já. Repare que as séries em b. são oposições positivas das séries em a. que estão no
negativo. Dessa forma, o já não mais é o oposto negativo do ainda e, conforme o exemplo
abaixo, o ainda não é o oposto negativo do já:
(144) a. Maria ainda não vai fazer plástica.
b. Maria já vai fazer plástica.
Positivo
negativo
Já
ainda não
Ainda
já não mais
Quadro 3 – Esquema da dualidade
Quadro semelhante já fora desenvolvido por Löbner (1989) para os termos relacionados do
alemão, schon e noch, e isso será mais bem estudado no capítulo seguinte.
As semelhanças entre já e ainda também estão em relação com a natureza semântica e
uma delas é a restrição em contextos perfectivos com o ainda, discutida na seção anterior,
outra, com o já, pode ser verificada no Quadro 4 abaixo:
ESTADO
ATIVIDADE
João já amou Maria.
João já brincou.
# João já não amou
# João já não
# Maria já não
Maria.
brincou.
costurou o vestido.
João ainda não amou
João ainda não
João ainda não
Maria.
brincou.
costurou o vestido.
ACCOMPLISHMENT
ACHIEVEMENT
Maria já costurou o
João já alcançou o
vestido.
pico do Everest.
*João já não
alcançou o pico do
Everest.
João ainda não
alcançou o pico do
Everest.
Quadro 4 – Testes com o já na negativa e afirmativa no pretérito perfeito.
59
Com a leitura temporal, o já não, assim como o ainda, apresentou restrição no perfectivo,
embora o já restringiu-se em contextos negativos e o ainda em contextos afirmativos. As
sentenças tornam-se aceitáveis se adicionadas a um contexto em que os nomes sejam
comparados como, por exemplo: Pedro amou Maria, João já não amou; ou Henrique brincou
na rua, João já não brincou. Porém, esta é uma outra leitura, uma interpretação adversativa, e
não uma leitura temporal do já.
Contudo, o já não no pretérito perfeito com os adjuntos, consoante (145) e (146),
ocorre perfeitamente. Mas, o uso desses adjuntos não é para imperfectivizar as sentenças, pois
elas já estão na negativa e o não já tem esse papel. Estudar o papel que desempenham na
sentença para licenciar o uso do já não é o objetivo deste trabalho, embora saibamos que
adjuntos também sirvam para colocar um ponto de referência nas sentenças.
Como vimos, para se obter uma leitura temporal do já não em sentenças cujo verbo
apresente aspecto perfectivo, pode-se adotar a mesma solução encontrada para o ainda na
seção anterior; o uso dos adjuntos temporais, conforme os exemplos abaixo:
(145) João já não amou Maria naquele ano porque viu que ela era bem diferente dele.
(146) João já não brincou de escorregador ontem, justamente, porque estava com a
coluna machucada.
Talvez a questão dos adjuntos não seja a única hipótese para solucionar essa questão,
pois há sentenças como:
(147) João já não efetuou a inscrição, justamente, para não dar problemas.
Mas isso são somente observações que devem ser mais bem investigadas, posteriormente, em
trabalhos futuros.
Aparentemente, a aceitabilidade do já em contextos perfectivos, aliada à negação, é
muito pior com os achievements. Contudo, nas demais sentenças negativas, o já se distribui
perfeitamente. Desse modo, já poderia se comportar como um item de polaridade positiva
somente em contextos perfectivos. Contudo, para esses casos, os adjuntos também são a
solução da questão. Por isso, a polaridade não se mantém, mas já e ainda apresentam
semelhanças
por
serem
temporais,
possuírem
restrição
e
positivo/negativo + negação, assim como por acionarem expectativas.
expressarem
oposição
60
5 EXPECTATIVAS
São relevantes as considerações sobre a paridade entre já e ainda não, e entre ainda e
já não mais, principalmente por seus pontos em comum, dentre os quais está a questão das
expectativas. Considere o exemplo (148a) na afirmativa e repare na sua interpretação:
(148) a. O João ainda está em Curitiba.
b. O João está em Curitiba.
Nos dois casos, João situa-se na cidade de Curitiba, a diferença entre elas é que em
(148a) há uma expectativa de João não estar mais em Curitiba, e isso pode ser uma
implicatura ou pressuposição negativa disparada pelo item ainda; e em (148b) não há essa
expectativa. Observe o que acontece com a expectativa quando aliada à negação:
(149) a. João ainda não está em Curitiba.
b. João não está em Curitiba.
Tanto em (149a) quanto em (149b) João não está em Curitiba, porém, em (149a) a
presença do ainda não dispara uma expectativa, que é invertida em relação à (148a). A
expectativa, nesse caso (149a), é de que João já estivesse em Curitiba, portanto, uma
expectativa positiva, enquanto em (148a) a expectativa é de que João já não deveria estar
mais em Curitiba – uma expectativa negativa. Neste ponto, entra o jogo de oposição com o já
que é ativado para construir a expectativa de (149a) e do já não mais, para construir a
expectativa de (148a).
Diante desses exemplos, a pergunta que se faz é se o ainda dispara uma implicatura ou
pressupõe algo? E o que ele implica ou pressupõe? Para melhor visualizar o jogo de
expectativas, observe a sistematização abaixo:
SENTENÇAS
(150) João ainda está em Curitiba.
EXPECTATIVAS
expectativa negativa (deveria já não
estar mais lá)
(151) João ainda não está em Curitiba.
expectativa positiva (já deveria estar lá)
(152) João já está em Curitiba.
expectativa negativa (ainda não deveria
61
estar lá)
(153) João já não está mais em Curitiba.
expectativa positiva (deveria estar lá
ainda)
Quadro 5 – As sentenças e suas expectativas
O que há nas sentenças com o ainda e o já, diferentemente das que não possuem esses
termos, é a expectativa. Por isso, há uma constante relação entre o mundo real, que é o
veiculado pelas sentenças, e o mundo esperado, das expectativas, conforme o esquema
abaixo:
(150)
______________________Está em Curitiba______________________mundo real
_______________________não está________________________mundo esperado
(151)
_______________________Não está___________________________mundo real
____________________está em Curitiba____________________mundo esperado
(152)
___________________Está em Curitiba_________________________mundo real
_____________________não está _________________________mundo esperado
(153)
____________________Não está______________________________mundo real
________________ está em Curitba_______________________mundo esperado
Figura 3 – Oposição do mundo real com o contrafactual
As duas linhas representam os dois cenários contidos nas sentenças que possuem o ainda e o
já e suas contrapartes negativas; a linha de cima representa o mundo real, veiculado pelas
sentenças e, a de baixo, o mundo esperado. Está em Curitiba na linha do mundo real
representa João estar em Curitiba e na linha do mundo esperado representa a
EXPECTATIVA de João estar em Curitiba, já não está indica João não estar (na linha do
mundo real) ou a expectativa de João não estar (na linha do mundo esperado).
Todas as sentenças acima têm uma expectativa alternada entre positiva e negativa,
conforme a negação ou a falta dela. Por isso, começamos a investigar um ponto comum que
unifique a semântica dessas partículas, independente da negação. Denominamos, dessa forma,
que a expectativa, nada mais é do que uma contra-expectativa.
62
Vale ressaltar que, na expectativa, a contraparte oposta do item é acionada, basta
verificar o item e a expectativa entre parênteses na série acima. Veja o que acontece nas
sentenças explicitamente afirmativas em diferentes tempos verbais:
(154) João ainda ama Maria.
(155) João ainda está brincando.
(156) João ainda costurava o vestido.
(157) João ainda estava alcançando o pico do Everest.
Inicialmente, pensávamos que em todas estas sentenças havia uma negação embutida
de que João não deveria mais amar Maria, não estar mais brincando, não estar mais
costurando o vestido e também que João não deveria mais alcançar o pico do Everest. E,
portanto, todas essas interpretações pareciam carregar expectativas negativas, o que
confirmaria a idéia, apresentada grosseiramente no primeiro Capítulo, de Linebarger (1987),
de haver uma negação na representação semântica das sentenças, em que um operador de
negação estaria na estrutura profunda das sentenças sobre cujo escopo estariam as LPNs ou,
no caso, o ainda, e também uma restrição pragmática, considerada uma implicatura negativa.
Contudo, o que, atualmente, mostra-se mais proeminente é a contra-expectativa, independente
da sentença estar na negativa ou na afirmativa, conforme o exemplo abaixo:
(158) Maria ainda vai para a Europa.
Nesse caso, a expectativa não é negativa, mas uma contra-expectativa de não estar na
Europa no momento do proferimento da sentença, e isso parece ser algo improvável, e,
posteriormente, viajar. Esse é mais um dos motivos que contribuiu para unificarmos a idéia da
contra-expectativa nas sentenças que possuem o ainda e o já e não nas expectativas negativas
e esse será um tópico do próximo capítulo: a semântica de ainda.
6 POR ISSO...
Em suma, neste capítulo, foi possível perceber que o ainda tem diferentes usos.
Exemplos semelhantes a:
63
(159) # João ainda comprou seu presente.
foram relevantes para a descoberta dessa variedade tipológica que subdividimos em três
grupos: discursivo, temporal e conjuntivo. A subdivisão se fundamentou em estudos
funcionalistas que separaram o ainda em marcador de contra-expectativa, inclusivo e
intensificador de advérbio.
Depois de centrar a análise no ainda temporal, a questão sobre a polaridade negativa
foi descartada, pois a restrição, como demonstrada, não estava relacionada aos contextos
negativos, e sim, de início, ao aspecto perfectivo; como pode ser percebido por seu uso em
exemplos no futuro do pretérito composto, igualmente no aspecto perfectivo:
(160) a. João vai ter se arrependido quando Maria chegar.
Diante disso, a conclusão, até o momento, poderia ser de que o comportamento padrão
para o ainda seria encontrado no aspecto perfectivo, no entanto, a restrição para o termo
ocorrer nesse aspecto não é a negação, e sim a perfectização, logo, ele não é um item de
polaridade negativa. Porém, vimos que nem mesmo o aspecto perfectivo é uma restrição;
sentenças perfectivas com o ainda são boas desde que seja possível identificar um ponto de
referência que, na maior parte dos casos, pode ser veiculado por um advérbio explícito.
Outra conclusão tirada na seção 4 é que o já não é um item de polaridade positiva,
assim como o ainda não é de polaridade negativa e, da mesma forma, já não é o oposto
positivo de ainda e vice e versa, em conformidade com o estudo de Löbner (1989) para o
alemão. Também, conforme demonstração, foi possível perceber que em todas as sentenças o
ainda, assim como o já, dispara expectativas que envolvem os seus opostos. Essas questões
serão retomadas no próximo capítulo.
64
CAPÍTULO III
UMA PROPOSTA SEMÂNTICA PARA O AINDA
1 INTRODUÇÃO
O objetivo deste capítulo é entender como funciona e qual o papel do ainda temporal
na estrutura semântica das sentenças. Fundamentados na literatura, através dos textos de
Löbner (1989, 1999) e van der Auwera (1993), que tratam dos correspondentes do ainda no
alemão, noch, e no inglês, still, e do já no alemão, schon, e no inglês, already, demonstramos
um esquema de dualidade que cerca esses itens. Para isso, apresentamos pontos favoráveis e
desfavoráveis em relação à dualidade e comparamos as duas propostas de análise do noch e
do still com as devidas aplicações ao PB.
De acordo com Löbner, argumentamos que há uma pressuposição presente em todas
as sentenças com o ainda e isso o faz um disparador de pressuposição. Quando não há esse
tipo de pressuposição, certamente, não estamos diante da interpretação temporal, a qual
muitas vezes é obtida através dos adjuntos temporais e o porquê disso acontecer será
explicado. O que, especificamente, faz parte das condições de verdade das sentenças com o
ainda é uma das questões também analisadas. E, por fim, o capítulo, também visa responder o
que são as expectativas acionadas pelo ainda.
2 DUALIDADE
Como mencionado nos capítulos anteriores, há estudos para os correspondentes do
ainda e do já em outras línguas, principalmente no alemão, noch e schon, e no inglês, still/yet
e already, respectivamente, para os quais há os trabalhos de van der Auwera (1993) e Löbner
(1989; 1999), entre outros. Neste capítulo, iremos desenvolver a análise desses dois autores
que estão de acordo, ao menos no seu cerne, quanto à semântica atribuída a esses itens, mas
discordam com relação à hipótese da dualidade26 para os termos em alemão e em inglês,
assim como suas contrapartes negativas. O esquema da dualidade proposto por Löbner (1989)
26
Do inglês ‘duality hypotheses’ (VAN DER AUWERA, 1993, p. 613).
65
está pautado na dualidade entre schon e noch, e seus correlatos negativos, porém, van der
Auwera (1993) escreveu seu texto especialmente para argumentar contra essa dualidade.
Segundo a proposta da dualidade, a negação de noch (ainda) é nicht mehr (já não mais), ao
passo que a negação de schon (já) é noch nicht (ainda não), como mostra o quadro abaixo:
Partículas
Contrapartes
negativas
Noch (still)
nicht mehr (no
longer)
Schon
noch nicht
(already)
(not sitll not)
Quadro 6 – Esquema da dualidade
Esse quadro pode ser facilmente transposto para o PB:
Partículas no
Contrapartes
PB
negativas do
PB
ainda
já não mais
já
ainda não
Quadro 7 – Esquema da dualidade transposta ao PB
Löbner (1999) afirma que o schon e o noch são pares e estão relacionados pelas
condições de verdade da sentença e pelas pressuposições semânticas que esses itens disparam,
e a partir desse quadro, escreve em defesa do seu esquema. O primeiro argumento do autor a
favor da dualidade é que noch, cujo correspondente em inglês é still, ou usado com a negação
yet, pressupõe um estado prévio de P27 e, da mesma forma, a sua contraparte negativa nicht
mehr, no inglês no longer. Além disso, schon, correspondente do already em inglês,
pressupõe um estado prévio de não-P e sua contraparte negativa noch nicht, cuja
correspondência em inglês é not yet também pressupõe esse estado, isso será melhor
explicado na seção 3, que trata da pressuposição. O jogo das partículas, independente da
classificação proposta pelos diversos autores, basicamente, é o verificado no Quadro 6.
27
Onde lê-se P (grifo do autor) pode considerar-se proposição.
66
Outro argumento relevante em favor da dualidade são as interrogativas. Nesses
contextos, em resposta à sentença declarativa que contém um termo do Quadro 6, utiliza-se o
termo yes – no e mais a contraparte negativa do termo que está na pergunta pertencente
também ao Quadro 6 e há um contraste entre a sentença correspondente declarativa e sua
negação descritiva, conforme exemplo abaixo:
(161) a. Ist das Licht schon an? – Nein, das Licht ist noch nicht an.
b. Is the light already on? – No, the light is not yet on.
O mesmo acontece no PB, como mostra (162):
(162) A luz já está acesa? – Não, a luz ainda não está acessa .
A resposta à interrogação com já é a sua negação e, para isso, utiliza-se o ainda não. Se as
duas partículas não tivessem ligação, por que uma delas seria acionada para a resposta da
outra?
Outro argumento, conforme Löbner (1999), a favor da dualidade é o fato das duas
partículas schon e noch e suas contrapartes negativas apresentarem uma alternativa de
contraste contrafactual, ou seja, a expectativa veiculada nas sentenças com esses termos seria
da ordem contrafactual, conforme o exemplo abaixo no PB:
(163) João ainda corre na beira mar.
(164) João já está correndo na beira mar.
Em (163) o esperado seria que João já não estivesse mais correndo na beira mar e em (164)
seria que ele ainda não estivesse correndo, ambas as expectativas fazem parte, segundo o
autor, da alternativa contrafactual.
A análise de van der Auwera (1993), contudo, é contra essa dualidade e se fundamenta
principalmente na noção de acarretamento. Afirma que schon e noch e suas contrapartes
negativas deveriam todas acarretar sentenças com finally, pois postula que todos possuem um
componente de mudança de um estado que não continua, conforme os exemplos abaixo, que
tratam da mudança relacionada a Peter não estar em Madrid28:
28
A série (165) – (167) foi retirada de van der Auwera (1989, p. 618):
(11) Peter is already in Madrid.
It is not the case that it is still the case that Peter is not in Madrid.
(14) Peter is finally in Madrid.
It is not the case that it is still the case that Peter is not in Madrid.
67
(165) a. Peter já está em Madrid.
b. Não é o caso que é ainda o caso que Peter não está em Madrid.
(165a) afirma que Peter não estar em Madrid não continua, pois Peter já está em Madrid,
logo, acarreta (165b). O mesmo acontece em (165b), em que o estado de Peter não estar em
Madrid não se prolonga, assim, acarreta Peter já está em Madrid (165a), e, portanto, o
acarretamento é bidirecional; nesses termos, constata-se que ambas as sentenças são
sinônimas: já acarreta não..ainda..não e vice e versa. Segundo van der Auwera (1993), isso
também ocorre com finally e not..still..not (166), pois o prolongamento de não estar em
Madrid e depois estar, acarreta que existia um caso em que ele ainda não estava em Madrid e
esse caso não existe mais, então, finalmente, Peter está em Madrid. Porém, isso não acontece
em (167), porque, segundo ele, (167a) significa que a ausência de Peter em Madrid se
estendeu e ocasionou uma mudança tardia, já (167b) significa que a mudança de estado
aconteceu cedo, o que para Vandeweghe (1983) e Muller (1975), autores apud (VAN DER
AUWERA, 1993), cedo e tarde são considerados componentes pragmáticos, e isso seria um
ponto a ser melhor discutido, pois, se verdadeiramente forem pragmáticos, o acarretamento
ocorre e o argumento de van der Auwera não se sustenta.
(166) a. Peter finalmente está em Madrid.
b. Não é o caso que é ainda o caso que Peter não está em Madrid.
(167) a. Peter finalmente está em Madrid.
b. Peter já está em Madrid.
O suposto não acarretamento entre finally e already, mas entre finally e not...still...not,
prova, para van der Auwera, que não há a dualidade. Para o already ser um par de still,
segundo van der Auwera (1993, p. 623), deveria apenas significar not....still...not, ou seja,
apenas uma descontinuação de um estado negativo, mas este não é o caso, pois already obtém
um resultado positivo. Se ele significasse só a descontinuação do negativo, ele se combinaria
com o finally, seria par de still e se igualaria, segundo ele, às línguas como o búlgaro veĉe, o
macedônico veǩ e, o húngaro mar, o armênio ardȇ n, o lituano jau, o espanhol ya, e o ídiche
(15) Peter is finally in Madrid.
Peter is already in Madrid.
68
shoyn, em que, ao contrário do que ocorre para o alemão e para o inglês, essa combinação se
realiza.
Segundo o critério de avaliação de van der Auwera (1993), não há acarretamento
bidirecional entre finally, already, still e suas contrapartes negativas, por isso, segundo seus
critérios, não há dualidade. No PB, pelo o que foi visto através dos exemplos (166) e (167)
pode haver acarretamento se avaliarmos que o evento ter acontecido após o esperado for
considerado uma implicatura, mas isso foi uma pequena amostra, precisa ser melhor
verificada, assim como tudo o que envolve o finally e o acarretamento bidirecional. Ao
contrário de Löbner (1989; 1999) cujos argumentos se fundamentam nas perguntas e nas
alternativas de contrastes contrafactuais, no PB, mediante os exemplos (162), (163) e (164),
respectivamente, comprova-se que há a dualidade. E, por esses argumentos serem mais
visíveis, assumimos a proposta de Löbner. Isso porque ao enunciarmos uma pergunta com já,
naturalmente acionamos o ainda não quando a resposta for contrária e, da mesma forma
ocorre com o ainda, que aciona o já não. Analogamente, é muito fácil captar um cenário
contrafactual em atuação simultânea à sentença, exatamente devido às expectativas que esses
itens carregam, o que é altamente notável nas sentenças, conforme testes29 com falantes.
É importante salientar que os dois autores analisam os termos nos seus usos temporais.
Van der Auwera (1993), primeiramente, faz uma classificação baseando-se na ausência da
escala em uso, já Löbner (1989; 1999), assume que todos os usos de noch possuem uma
escala, e essa é mais uma das diferenças entre Löbner e van der Auwera – o uso não-escalar –,
por isso a importância da escala, assim como o entendimento da diferença que ela faz ou não.
Uso não-escalar
Van der Auwera (1993) considera que existe pelo menos um uso de already e still e
suas contrapartes negativas que não dispara uma escala, exemplificado por (168):
(168) John still is Mary's boyfriend.
João ainda é namorado de Maria.
O autor afirma que há um grupo semelhante aos casos de (168) que não dispara qualquer
escala, mas não explica por que não há a escala. Outros casos como (168) também entram
nesse grupo e a argumentação de van der Auwera se baseia na noção de acarretamento,
29
Testes informais com falantes expostos às sentenças com o já e o ainda.
69
afirmando que already, still e suas contrapartes negativas estabelecem acarretamento entre si
como, por exemplo, acontece entre already e not still not, conforme o que segue:
(169) a. Peter is already in Madrid.
b. It is not the case that it is still the case that Peter is not in Madrid.
Nesses exemplos (168) e (169), há acarretamento nas duas direções e se distingue o uso nãoescalar dos demais a partir disso. Mas vale notar que, aparentemente, no exemplo em (168),
também há duplo acarretamento entre ainda e não não mais: Não é o caso que João não é
mais o namorado de Maria. Por isso, assumimos com Löbner, que ainda e já e suas
contrapartes negativas são sempre escalares.
2.1 ESCALAR
O uso denominado escalar por van der Auwera (1993) contempla somente exemplos
com escala numérica, como o seguinte:
(170) Peter has already got five books.
Trata-se de uma escala diferente da pensada por Löbner (1989; 1999), para quem escalar
refere-se a uma escala temporal, envolvendo contrastes de momentos: o contínuo temporal
tendo dois pontos como anteparo. O uso escalar de Löbner (1989) é mais bem elaborado, uma
vez que considera os termos como advérbios temporais e se baseia em duas hipóteses: na
primeira, assume que as partículas têm escopo na sentença inteira e, na segunda, que os
termos focalizam um constituinte da sentença, pegando um valor em alguma escala,
conforme, respectivamente, os exemplos:
(171) Gestern war er noch da.
Yesterday, he was still there.
(172) Kommt sie schon morgen an? – Nein, sie kommt erst spater an.
Is she arriving as early as tomorrow? – No, she is arriving only later.
70
Enquanto (171) representa os usos mais básicos dos componentes da dualidade, com
foco sentencial e não em um componente específico, (172) focaliza o tempo adverbial que
pode ser representado por later.
Uso t-escalar
No uso denominado t-escalar, a notação t representa tempo, visto que os integrantes
deste grupo vêm sempre acompanhados de um advérbio de tempo. O termo escalar se
justifica porque também disparam uma escala. No início, Capítulo 2, a dúvida era se esse uso
faria parte do uso temporal; trata-se do caso que, geralmente, vem acompanhado de um
advérbio temporal, focalizando-o:
(173) Eu ainda ontem falei de você.
Mas, há vezes em que o still e o already e suas contrapartes negativas são t-escalares, porém,
não são acompanhados por advérbios implícitos e ainda assim a interpretação dos itens é de
advérbios temporais, conforme exemplo abaixo:
(174) It is as late as two o’clock.
(175) He comes as early as two o’clock.
Van der Auwera (1993) faz uma comparação entre o uso t-escalar, representado pelo (174), e
o uso escalar ordinário, ilustrado por (175). Segundo o autor, as early as pode ser substituído
por already em (175), sem perder o sentido default, já em (174), pode ser substituído por as
late as, porém, não se conservará o mesmo sentido inicial. Fenômeno semelhante acontece no
exemplo abaixo:
(176) Caesar already has stated that…
O already pode ser substituído por someone as early as, também esta expressão embute um
adjunto temporal. O mesmo ocorre no português: Já César dizia...
Esses são usos distintos dados ao mesmo still temporal, por exemplo. No PB, não
fazemos essa diferenciação, o uso temporal é único e a classificação só é feita para diferenciálo do uso conjuntivo e do discursivo.
71
2.1.1 Escalas por Löbner
A escala é um ponto discutido na questão da dualidade, pois Löbner (1999) considera
que ela exista em todos os usos temporais que ele estudou do noch, ao contrário de van der
Auwera (1993), o qual afirma que há usos em que ela não existe. Há uma polêmica entre os
dois autores com relação à dualidade, tudo começou com o texto de Löbner (1989) em que
afirma haver uma dualidade entre schon e noch da qual van der Auwera discorda. Outro ponto
relevante de discrepância entre esses dois autores é a questão da escala. Como foi visto, van
der Auwera considera que há um uso que não dispara escala, já Löbner considera que todos os
usos disparam-na. Contudo, inicialmente, é necessário saber que as considerações sobre
escala entre van der Auwera e Löbner são diferentes.
Löbner (1999, p. 58) postula que o contraste de polaridade entre P e sua negação nãoP ou entre os casos de P ser V ou P ser F é projetado em uma escala de tempo. Em texto
anterior, Löbner (1989) afirma que os usos temporais têm uma característica principal que os
diferencia dos demais, a escala. Ele argumenta que os termos possuem uma escala base e ela é
lexicalmente fixada por parâmetros não acessíveis na sintaxe, isto é, a escala não é visualizada
na estrutura sintática, por conseguinte, é sustentada apenas pela semântica. O autor explica
que esse contraste entre P e não-P está no contraste local, no tempo da escala entre dois
intervalos adjacentes ou fases de diferentes polaridades. Isso tudo se traduz na linguagem de P
e não-P que o autor identifica como polaridade positiva e negativa. Vale ressaltar que a
terminologia polaridade utilizada pelo autor não é a mesma referida nos itens de polaridade
negativa, que trata de outro fenômeno, pois a polaridade nesse caso dos textos de Löbner é a
polaridade entre P e não-P e não que o ainda ocorra, preferencialmente, em contextos
negativos ou tenha uma interpretação negativa.
Por isso, o exemplo (168), que para van der Auwera (1993) é não escalar, na análise
de Löbner é escalar, pois still dispararia uma escala de contraste entre P e não-P, ou seja, a
escala se estabeleceria entre o estado de ser namorado e o de não ser.
O tempo, segundo Löbner (1999, p. 97-98), sempre é o alvo da escala disparada pelos
termos em questão e o autor tenta provar essa posição com exemplos do alemão e do inglês
que estão abaixo apresentados em português30:
28
No texto original consta: (56) a. Sie ist noch eine Assistentin.
She still is an assistant professor.
Sie ist keine Assistentin mehr.
She isn’t an assistant professor any more.
b. Ich wohne noch Lange hier.
I’ll keep living here for a long time.
72
(177) a. Ela ainda é uma assistente de professora.
Ela não é mais uma assistente de professora.
b. Eu ainda ficarei vivendo aqui por longo tempo.
Eu não ficarei vivendo aqui por longo tempo.
c. Eu ficarei vivendo aqui até maio ainda.
Eu não ficarei vivendo aqui até maio.
Todos os exemplos estão relacionados ao tempo, uns mais explicitamente como são os
casos de (177b) e de (177c), pelo uso das expressões longo tempo e maio, e outros mais
implicitamente como (177a). Nas expressões acima, longo tempo seria o topo da escala e
antes estariam pouco tempo, médio tempo, assim como maio seria o cume e os meses
antecedentes como janeiro, março, abril, seriam pontos anteriores. Já em (177a), Löbner
(1999) afirma que há uma escala de tempo P (ser professora) e não-P (não ser professora),
porém, nesse exemplo, entendemos que ela também pode ser confundida com uma escala
disparada por assistente de professora, que seria um ponto baixo da escala e que seguiria com
a sucessão por monitora, até chegar em professora, coordenadora, diretora.
Essas escalas, segundo Löbner (1999), estão presentes em todos os itens da dualidade
e seus correlatos negativos, mais um argumento a favor da dualidade. No entanto, van der
Auwera afirma que a escala não está presente em todos os usos. É visível o contraste de
estados entre os membros da dualidade, por isso, assumimos com Löbner que a questão da
dualidade se mantém por mais esse motivo, somado à questão das perguntas que obtêm
respostas com termos da dualidade, às pressuposições de estados que cada item da dualidade
ativa, assim como às alternativas de contrastes contrafactual que todos eles possuem. Mas
esse tema da dualidade é antigo, principalmente em estudos para a língua alemã com Dherthy
(1973), König (1977), König & Traugott (1982), Löbner (1986), entre outros, todos textos
(apud LÖBNER, 1999). Mesmo que neles não haja alusão explícita à dualidade, os estudos
contêm análises correlacionando os termos por apresentarem características comuns.
c.
Ich wohne nicht mehr Lange hier.
I wont’t keep living here for a long time.
Ich wohne hier noch bis Mai.
I’ll keep living here till May yet.
Ich wohne hier nicht mehr bis Mai.
I won’t keep living here till May.
73
Para os dados de ainda no PB, assim como para os dados do já, assumimos que há a
escala proposta por Löbner – a de estados entre P e não-P –, e isso é mais uma evidência para
os dois termos fazerem parte do esquema da dualidade.
2.2 Diferenças e semelhanças entre já e ainda
Dentro da interpretação temporal, van der Auwera (1993) estabelece as noções de
tarde para o still e cedo para o already e, semelhante ao que pensávamos no início deste
trabalho, o ainda não, segundo o autor, carrega uma idéia ou expectativa positiva, conforme o
exemplo abaixo:
(178) João ainda não está em Curitiba.
Löbner (1999) mostra que essa expectativa de que João deveria estar em Curitiba é uma
implicatura de mudança de estado, em contraste com van der Auwera (1993). Assim, as
noções de cedo e tarde associadas a já e ainda, respectivamente, são implicaturas; o que
reforça a tese de que há acarretamento entre as sentenças em (167), contrariamente ao que
postula van der Auwera.
Sobre a semântica das partículas no inglês, van der Auwera não chega a formalizá-las,
porém, ao longo do artigo, há sempre considerações esparsas, as quais procuramos juntar no
quadro abaixo e aplicá-las ao PB:
JÁ
- Não expressa continuação, mas o começo de um
estado;
- designa um tempo imediatamente depois da
mudança de estado, a continuidade é irrelevante.
Quadro 8 – Características do já
74
AINDA
NÃO AINDA
JÁ NÃO
Continuação positiva
Continuação de uma
Ausência da continuação
ausência
Há uma mudança de estado que é somente
antecipada e não é claro quando e se ocorre.
Quadro 9 - Características do ainda, não ainda e já não
Observe que separamos o já das demais partículas, pois van der Auwera (1993) separou o
already31 das demais. Isso porque ele entende que already não expressa continuação, ao
contrário das outras, e sim o começo de um estado. Deixamos essa divisão para que o leitor
visualize a posição de van der Auwera, contra a dualidade, porém, assumiremos, neste
trabalho, a existência de fortes argumentos que sustentam a dualidade, como dito
anteriormente.
Para o significado dos termos, van der Auwera (1993), em consonância com
Vandeweghe (1983 apud LÖBNER, 1999), também utiliza uma representação através de
diagramas (como a Figura 4); já Löbner acrescenta uma generalização sobre as condições de
verdade (vista na seção 4) para os termos. O diagrama abaixo foi desenvolvido por van der
Auwera, que afirma que este é semelhante aos diagramas de Löbner (como a Figura 6),
porém, mais complexo:
... 1 2 3 4 5 6 7 8 9 ...
–
+
_______________________________________
Figura 4 – Diagrama de van der Auwera (1993, p. 619)
Nesse diagrama, os números representam o tempo, o estado; a linha horizontal, a mudança de
estado; a linha vertical tocando a horizontal, e os sinais de negativo e positivo identificam os
estados negativo e positivo, respectivamente. Na parte hachurada, no estado positivo, está
localizado o already. Observe um exemplo transposto ao PB a partir dessa representação:
(179) João já está na casa nova.
31
O already foi traduzido por já, assim como as demais partículas por suas correspondentes no português, para
facilitar a visualização.
75
A parte hachurada é o estado atual de João estar na casa nova e aconteceu uma mudança do
estado de não estar para estar na casa nova, que é representada pela parte anterior à linha
vertical, que indica o momento de transição, que se deu ao longo do eixo temporal,
representado pelos números.
O diagrama para representar still é um pouco diferente do anterior, pois nele há dois
cenários, já presentes nas análises de Doerthy (1973), König (1977), Muller (1975) e Martim
(1980) (apud VAN DER AUWERA, 1993). Um cenário anterior e um outro, que na
terminologia dos dois primeiros autores, é um cenário de leitura contrafactual e evolutiva.
... 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 ...
+
–
______________________
–
+
___________________________________
Figura 5 – Os dois cenários que as partículas acionam – aplicada ao ainda
Com base nos diagramas de van der Auwera (1993) para as partículas nas outras
línguas, estabelecemos a representação do ainda em que a fase factual positiva é contrastada
com a fase potencial negativa posterior. Esse cenário contrafactual é demonstrado pelo
primeiro desenho da Figura 5, localizado na parte superior, e representa a expectativa,
conforme o exemplo:
(180) João ainda está em Florianópolis.
O cenário factual dessa sentença é o segundo desenho da Figura 5 e, por isso, está localizado
na parte hachurada, a parte positiva no momento de referência. Já o cenário contrafactual
representa a expectativa de que João não deveria estar mais em Florianópolis no momento de
referência, por isso, a seta indica que a sentença, que está no positivo, deveria estar no
76
negativo, ou seja, diferentemente, ele trata essa expectativa como semântica. O que Löbner
diz a respeito dessa mudança será mostrado na seção 4.
Van der Auwera (1993) assume que esses dois cenários de contrastes fazem parte da
semântica tanto do still quanto do already, pois ambos estão sempre presentes juntos. Já
Löbner (1999) diz que essas expectativas não adicionam qualquer informação semântica e
essas figuras não são convincentes ao ponto de chegar à conclusão de que as expectativas com
relação à mudança são semânticas. Segundo van der Auwera (1993), o contraste com o caso
contrafactual não indica um componente extra de significado, mas pode ser naturalmente
derivado de um formato semântico subordinado em que esse cenário contrafactual é somente
uma das duas opções que há para definir o contraste da sentença, ou seja, ele está presente e
serve para fazer um contraste.
Se, por um lado, Löbner assume que os dois contrastes são alternativas de caminhos
para construir uma situação em que uma alternativa é falsa, por outro, van der Auwera afirma
que os dois caminhos estão sempre juntos e que o contraste factual que as partículas evocam,
assim como o contraste contrafactual, é um significado adicional semântico. No PB, há
também esses contrastes mencionados pelos autores para o alemão e para o inglês. (181b) e
(181c) são os dois caminhos ou os dois cenários que o ainda da sentença (181a) invoca. A
diferença entre van der Auwera e Löbner é que (181b) e (181c), para o primeiro autor, são
significados adicionais semânticos e, para o segundo, são significados que podem ser
derivados pragmaticamente32.
(181) a. João ainda anda de bicicleta com rodinhas.
b. Cenário factual: ele anda de bicicleta com rodinhas.
c.Cenário contrafactual: ele não deveria mais andar de bicicleta com
rodinhas.
Van der Auwera (1993) afirma que o cenário contrafactual é um estado oposto ao
cenário factual, porém, Löbner (1999) afirma que isso é trivial, a questão está nos casos não
triviais em que parece ser o contexto que providenciaria esse cenário contrafactual. Para
provar essa declaração, o autor fornece um exemplo em que todos estavam esperando Peter
chegar a Madrid às 16:15h, ele chegaria de avião e todos sabiam que o vôo não estava
atrasado. Ele chegou as 16:20h, nessas condições, deveria ser perfeitamente aceitável que
todos falassem:
32
“[…] The contrast with a counterfactual case does not indicate an extra meaning component but can be
naturally derived from the underlying semantic format as one of two options to define a contrast […]”
(LÖBNER, 1999, p. 68).
77
(182) It’s four twenty now. Peter has already arrived.
São 16:20h agora. Peter já chegou.
Dado o contexto da hora esperada em que ele ia chegar e a hora em que ele chegou, é visível
que a asserção (182) foi feliz e conversacionalmente relevante, porém, se ele tivesse chegado
às 19h, por exemplo, ela não seria. Desse modo, a contrafactualidade não parece ser
semântica. Por isso, Löbner (1999) postula que os dois contrastes são alternativas dadas
pragmaticamente ao invés de combinações amarradas.
Portanto, a expectativa de mudança para um estado oposto, conforme van der
Auwera, é semântica. Já para Löbner (1989; 1999), pode haver uma mudança feliz recente,
contrária ao que a asserção veicula, e isso é uma implicatura. A mudança para Löbner é
semântica, mas ela não é uma expectativa de mudança antes do esperado ou após o esperado,
ou ao contrário do esperado, mas apenas uma transição que deve ocorrer, e isso é semântico.
Essa questão será mais bem explicitada na seção 5, que trata das condições de verdade. Esse é
um dos pontos mais divergentes quanto ao estudo do already e still e suas contrapartes
negativas e também se aplica ao estudo dos correspondentes desses itens no PB.
Com relação à polaridade, van der Auwera (1993) afirma que not yet é um item de
polaridade negativa, isso parece ser evidente, visto que o yet só ocorre com a negação, o still
só na afirmação e ambos são variantes para representar o mesmo item lexical, que no PB é o
ainda e não possui variantes.
Como foi visto nessa subseção, o já e o ainda possuem semelhanças como as
expectativas presentes em um cenário contrafactual e ambos estão relacionados ao tempo.
Mas as semelhanças não permanecem nisso, as duas expressões também ativam
pressuposições.
3 PRESSUPOSIÇÃO
Os estados prévios de P e não-P foram citados no início do capítulo e são argumentos
a favor da dualidade. Löbner (1999) sistematiza que em todas as partículas, independente dos
usos temporais, há uma pressuposição relacionada ao eixo do tempo. Analisemos a sentença
abaixo no PB:
78
(183) a. das Licht ist noch an.
The light is still on.
A luz ainda está acesa.
b. das Licht ist an.
The light is on.
A luz está acesa.
O que (183a) expressa a mais do que uma sentença sem a presença do ainda, como (183b)?
Löbner (1999, p. 54-55) estabelece para o alemão que as sentenças expressam o mesmo, a
diferença está na base da pressuposição a qual diz que P, a luz estar acessa, é verdadeiro para
o tempo antes de te33, que, no capítulo anterior, denominamos momento de referência. Ou
seja, na sentença (183a), há a pressuposição de estados ou momentos prévios em que a luz
está acessa (P) antes do te. Já da sentença (183b), nada podemos afirmar sobre se a luz está
acesa ou não antes do te. É possível utilizá-la em uma situação em que a luz não estava acessa
antes. Apresentamos abaixo um esquema para a interpretação de (183a):
te
________________________________________ tempo
P (pressuposição)
não–P
Figura 6 – Pressuposição de P, presente em (183a) em oposição à parte não hachurada
O noch (ainda) recobre um tempo anterior ao momento de referência ou te e também o
próprio te, mas note que ele indica uma mudança para um estado de não-P. Essa
pressuposição está ausente na sentença sem o advérbio, (183b).
Para Löbner (1989; 1999), noch e schon pressupõem estados prévios de P e não-P,
respectivamente. Observe o que acontece nos exemplos abaixo do PB:
(184) João ainda faz compras naquele supermercado.
(185) João já acabou a tarefa.
Em (184) a pressuposição do estado prévio é que João fazia compras antes de te naquele
supermercado (pressuposição P). A sentença (185) tem a pressuposição de que, em um estado
prévio antes do proferimento da sentença (te), João não tinha acabado a tarefa (pressuposição
33
te significa tempo de avaliação, (grifo do autor).
79
não-P). Dessa forma, as pressuposições selecionam intervalos de tempo, antes de te. Observe
a figura que representa a pressuposição do schon, que é transposta ao já:
te
__________________________________________ tempo
________
não–P
P
(pressuposição)
Figura 7 – Pressuposição de schon em oposição à parte hachurada
Contrariamente ao noch, o schon tem a fase de não-P anterior ao momento de
referência e isso pode ser observado na sentença:
(186) A luz já está acesa.
Em (186) também há a evolução implícita do tempo, a luz não esteve sempre acesa e
representa o resultado do desenvolvimento do estado prévio anterior ao te, em que a luz não
estava acesa. Pressupõe que o estado da luz estar acesa era falso em algum tempo antes do te,
isto é, que o fato de a luz estar acesa em te não significa que ela não estava acesa antes, mas
pressupõe que ela não estava.
As partículas noch e nicht mehr disparam a mesma pressuposição de que há uma fase
de P começando antes de te. Para apresentar, exatamente, a posição de noch e schon e seus
significados, Löbner (1999) desenvolveu as seguintes figuras:
te
noch (te P)
nicht - mehr (te P)
________________________________________ tempo
P
não – P
Figura 8 – Ilustração do significado de noch (te, P) e nicht mehr (te, P)
Se analisarmos (183) perceberemos que a zona recoberta por noch é a fase hachurada,
que representa o ainda (e seu correspondente no inglês still) na figura, o mesmo pode ser dito
80
sobre o nicht mehr, só mudaria o lugar de apomento. Essa existência de estados anteriores,
segundo Löbner (1989; 1999), é dada pela pressuposição. A adição de schon, nicht mehr,
noch e noch nicht a uma sentença qualquer dispara a pressuposição de um estado anterior,
conforme (183a), o que não ocorre em (183b).
Nesta dissertação, utilizaremos o conceito de pressuposição dada por Chierchia (2003,
p. 541) em que “[...] pressuposição é aquilo que se dever dar como certo [...]”, é um nexo de
significado presente nas intuições sistemáticas do falante nativo de uma língua. A
pressuposição vem de informações tomadas como conhecidas pelos interlocutores. É corrente
na literatura as várias noções de pressuposição, mas a adotada aqui é a pressuposição
semântica e para verificar se ela, verdadeiramente, existe, adotaremos o teste da P-família
(família pressuposicional).
O teste da P-família consiste em utilizar a negação, a interrogação e os períodos
hipotéticos para descobrir se alguma informação se mantém constante. Caso haja a mesma
inferência em todas as realizações da P-família, então, essa inferência é pressuposta. Vale
ressaltar que as pressuposições também podem ser canceladas; nesse caso, acredita-se que
deixa de ser possível atribuir um valor de verdade à sentença. A frase mais clássica e que
retrata bem a definição de pressuposição é a seguinte:
(187) Posto:
Pressuposto:
a. João parou de fumar.
b. João fumava.
Se existir dúvida quanto à existência de pressuposição, acionamos o teste da Pfamília que deve incidir apenas sobre o conteúdo posto. Assim, quando operamos com a
sentença, negando-a, interrogando-a, ou estabelecendo uma estrutura hipotética, apenas o
conteúdo posto sofre interferência, enquanto a informação pressuposta se mantém constante,
conforme os exemplos:
(187) c. João não parou de fumar.
d. João parou de fumar?
e. Se João parou de fumar, ele caiu na realidade.
Repare que em todas as modificações do posto, a pressuposição de que João fumava se
mantém. Isso é prova de que há pressuposição.
Mas continua a ser o caso de que a
pressuposição pode ser cancelada, como exemplificado no seguinte contexto: João não parou
de fumar, porque ele nunca fumou.
81
Assim, precisamos verificar se a pressuposição de que ainda e já ativam estados
prévios P e não-P se mantém diante do teste da P-família, testemos com o ainda:
(188) a. Posto: João ainda estava estudando.
b. Pressuposto: João estava estudando antes de te
te
________________________________________ tempo
P
estudando
não – P
não - estudando
Figura 9 – Representação da pressuposição de (188a)
Vamos, então, testar. Antes, porém, é preciso lembrar que a negação de ainda é já não mais:
(188) c. João já não estava mais estudando.
d. João ainda estava estudando?
e. Se João ainda estava estudando, é porque ele viu a necessidade.
(188c) pressupõe que João estava estudando antes. O mesmo pode ser dito das demais. Dessa
forma, a pressuposição se mantém. Por isso, com o teste, é possível perceber que a
pressuposição de que João estava estudando antes do te (demonstrada na parte hachurada da
figura) se mantém.
O mesmo teste pode ser aplicado ao já e à sua contraparte ainda não:
(189) João já está estudando.
Pressupõe que ele não estava estudando antes.
(190) João ainda não está estudando.
(191) João já está estudando?
(192) Se o João já está estudando, então ele vai se sair bem na prova.
Através do teste da P-família para o já podemos perceber que a pressuposição se mantém, o
que prova que o já também aciona a pressuposição de um estado prévio, assim como o ainda.
82
A pressuposição é fundamental, particularmente, se referindo aos dados do PB, nas
sentenças com o ainda. Se ela não existir, não há interpretação temporal. E essa é a questão
central dos casos do ainda na afirmação no perfectivo.
3.1 ADJUNTOS TEMPORAIS
Como foi visto no capítulo anterior, sentenças semelhantes a (193) não possuem
leitura temporal, logo, não há pressuposição de um estado anterior no tempo, mas isso se
reverte se houver a união de adjuntos adverbiais temporais, que servem para marcar o
momento de referência, ou te e eliminar a hipótese de haver uma restrição aspectual:
(193) João ainda chegou [a tempo de evitar um escândalo].
_________________________________________
ME
Não-Escândalo
te (=MR)
MF
Escândalo
Chegou evitar um escândalo
Figura 10 – Representação da sentença (193)
Esse momento de referência fixado pelo adjunto temporal34 faz com que o ainda com a leitura
temporal ative a pressuposição do conhecimento de um estado anterior ao te, por exemplo. Em
(193), o te é o momento de referência em que a sentença é proferida e a pressuposição é o
conhecimento do estado prévio em que não há escândalo (P). Portanto, os adjuntos acionam a
leitura temporal, acrescentando um momento de referência, e, a partir dele, o ainda aciona a
pressuposição. Porém, vale ressaltar que os autores nada se referem à restrição de aspecto
com a leitura temporal no perfectivo e tampouco mencionam essa questão dos adjuntos que
também acontece em:
(194) João ainda trabalhou [depois do escritório fechar].
34
Conforme mostrado no Capítulo 2, os adjuntos temporais, além de outras funções, localizam a sentença no
eixo temporal, fixando um momento de referência.
83
_________________________________________
trabalhar ~~ ~~~~~~
MF
ME
te (=MR)
P- trabalhou escritório fechar
Figura 11 – Representação da sentença (194)
Com a leitura temporal, adquirida através do adjunto depois, a pressuposição é de que antes
do escritório fechar ele estava trabalhando, ou seja, há o conhecimento do estado prévio, que
é P.
Assim como Löbner (1989; 1999), para o alemão, assumiremos que no PB todas as
sentenças com o ainda temporal ativam a pressuposição de um intervalo de tempo anterior ao
te, caracterizado por ser um intervalo P. As sentenças que não têm uma leitura temporal
podem adquiri-la através dos adjuntos temporais e, através deles, o ainda ativa a
pressuposição. Compare as sentenças a seguir com e sem os adjuntos temporais:
(195) # João ainda terminou o trabalho.
João ainda terminou o trabalho antes de sair.
(196) # João ainda correu.
João ainda correu antes de ir para o concurso.
Nesses casos sem os adjuntos, não há leitura temporal, apenas a discursiva/inclusiva, e quanto
menos a pressuposição do estado de P ou não-P antes de te que é acionada pelo ainda com a
leitura temporal. Portanto, a questão dos adjuntos está intimamente relacionada ao ainda,
resta-nos saber, dessa forma, o que mais faz parte da semântica do ainda temporal.
4 CONDIÇÕES DE VERDADE
As condições de verdade das sentenças com os itens em análise também estão
fundamentadas na questão da pressuposição para Löbner (1999). Por isso, foi preciso
demonstrar, na seção anterior, qual é a pressuposição presente nas sentenças com esses itens.
Como já dissemos, para o autor, a diferença entre (183a) e (183b) está na pressuposição.
(183a) pressupõe que a luz estava acesa antes do momento de referência em que a sentença
84
foi proferida, já em (183b) não há como afirmar se a luz estava ou não acesa antes do
momento de referência.
Assim como a pressuposição está intimamente ligada às condições de verdade das
sentenças e já foi demonstrado que o ainda é um ativador de pressuposição, outra relação
importante para detectarmos a semântica do ainda é o acarretamento; considere os exemplos
abaixo:
(197) a. João ainda não estava correndo no momento em que Maria chegou.
b. João não correu até o momento em que Maria chegou.
(198) a. João não estava correndo no momento em que Maria chegou.
b. João não correu até o momento em que Maria chegou.
A verdade de (197a) acarreta que antes de te, ou antes do momento da chegada de Maria –
MR –, João não correu, como em (197b), o que não ocorre em (198), pois (198a) não acarreta
(198b). Da verdade de (198a) não podemos concluir que João não correu antes de te, porque
(198a) é compatível tanto com João ter corrido antes de te quanto com ele não ter corrido
antes de te. Isso pode ser ilustrado nas figuras:
____________________________________ tempo
não-P
te
João não correu ainda não estava correndo
P
Maria chegou (MR)
Figura 12- Representação da sentença acarretada de (197a) na parte hachurada
______________________________________ tempo
?????????
te
João não estava correndo
Maria chegou
Figura 13 – Representação da sentença (198) sem o ainda e, portanto, sem acarretamento
85
(197) é compatível com João não estar correndo antes de Maria chegar, mas (198) não é. Em
(198), há a dúvida se João estava ou não correndo antes do momento da chegada de Maria,
por isso, os pontos de interrogação. Já em (197) o ainda mostra a continuação de uma
atividade de não correr que atinge o te ou o momento de chegada de Maria. A parte
hachurada na figura 12 representa que João não correu antes de te.
A mesma análise pode ser feita para as sentenças com o ainda em todos os tempos
verbais, abaixo estão exemplos no futuro progressivo e no presente contínuo. Com base em
Parsons (1990 apud CHIERCHIA, 2003), no progressivo todo evento está associado a um
estado em que o evento se encontra quando está em andamento.
(199) a. João ainda vai estar estudando, quando Maria chegar.
b. João estudou antes de Maria chegar.
(200) a. João vai estar estudando, quando Maria chegar.
b. João estudou antes e Maria chegar
(201) a. João ainda corria quando Maria chegou.
b. João correu antes do momento em que Maria chegou.
(202) a. João corria quando Maria chegou.
b. João correu antes do momento em que Maria chegou.
Os exemplos mostram que nas sentenças (197), (199) e (201), em que o ainda está presente,
há uma relação de acarretamento, ao contrário das (198), (200) e (202). Significa que as
condições de verdade de uma sentença com ainda não são as mesmas que sentença possuiria
sem o ainda.
Alguém poderia questionar se o evento de João correr, na sentença (201), é
verdadeiramente um acarretamento ou se é uma pressuposição. Essa pergunta se estende a
todas as sentenças em (b) de (197), (199) e (201). Se analisarmos, separadamente, cada uma
delas, verificaremos, através do teste da P-família, que a pressuposição (sentenças em b) se
mantiveram diante da negação, interrogação e hipotetização. A exemplo disso, mostraremos o
que acontece em (201). Se negarmos (201a), obtemos:
(203) João já não corria mais quando Maria chegou.
86
A pressuposição de que João correu antes do momento da chegada de Maria se mantém
perante o teste da negação, pois, quando negamos o posto (201a), a pressuposição de que ele
correu antes continua existindo. É possível perceber a diferença entre (201) e (202), pois,
enquanto (201) dispara a pressuposição, (202) não a dispara, logo, o ainda e o já não mais
alteram as condições de verdade das sentenças.
Löbner (1999), no que diz respeito às condições de verdade das sentenças com noch e
nicht mehr, faz, inicialmente, a seguinte proposta35:
(204) a) Ambos ainda(te P) e já não(te P) disparam a pressuposição que há uma
fase de P anterior a te e que depois do te pelo menos uma mudança entre não-P
e P ocorreu.
b) ainda(te P) é V e já não é F, sse a pressuposição em (a) é preenchida e P(te) é V.
c) já não(te P) é F e ainda(te P) é V sse a pressuposição em (a) é preenchida e P(te) é
F.
Conforme (204), a mudança faz parte das condições de verdade do noch e isso é transposto ao
ainda, mas note que não há qualificações à mudança (não está dado semanticamente que essa
mudança ocorreu antes ou depois do esperado). Outra questão fundamental na explicação
semântica dos itens é a pressuposição que está fundamentada no tempo, logo, as condições de
verdade também estão. Elas dependem do momento de te no eixo temporal. Conforme os
diagramas anteriores mostraram, já tivemos uma prévia noção do que acontece nas sentenças
com o acréscimo das partículas ainda, já e suas contrapartes negativas. Löbner (1999) postula
que partículas no alemão estão relacionadas a intervalos adjacentes de tempo ou fases de
diferentes polaridades que formam um contraste entre P e não-P.
Essas fases de diferentes polaridades não são escolhidas aleatoriamente. Cada partícula
requer uma determinada fase de polaridade. “[...] Schon e noch nicht requerem um intervalo
de tempo que comece com a fase de polaridade negativa, isto é de não-P, enquanto noch e
nicht mehr requerem um intervalo de tempo que comece com uma fase positiva de P”
(LÖBNER, 1999, p. 58)36. O mesmo pode ser dito dos pares já / ainda não e ainda / já não
35
Truth conditions for noch (te P) and nicht mehr ((te P):
a. Both noch (te P) and nicht mehr (te P) trigger the presupposition that there is a phase of P starting before te
and that up to te at most one change between not-P e P has occurred.
b. noch (te P) is true, and nicht mehr (te P) is false, iff the presupposition in (a) is fulfilled and P (te) is true.
c. noch (te P) is false, and nicht mehr (te P) is true, iff presupposition in (a) is fulfilled and P (te) is false.
36
No inglês, consta: “The use of de schon and noch nicht requires a time interval which begins with a phase of
negative polarity, i.e. of not-P, while noch e nicht mehr require the time interval to begin with a positive phase of
P”.
87
mais, respectivamente. E isso se dá através dos intervalos de tempo admissíveis em termos de
P e não-P e te:
te
________________________________________ tempo
não – P
P
Figura 14 – Intervalos admissíveis em termos de P e te de schon e noch nicht
te
________________________________________ tempo
P
não- P
Figura 15 – Intervalos admissíveis em termos de not-P e te de noch e nicht mehr
Essas restrições a respeito das fases de intervalos de tempo são capturadas pela noção de
intervalos admissíveis em termos de ≤, P e t, para isso, Löbner (1999, p. 59) elabora a
seguinte definição 37:
(205) DEFINIÇÃO: Intervalos admissíveis (IA) em termos de ordem entre P e t
Para qualquer predicado P com um domínio D(P) que foi ordenado por uma
ordenação parcial ≤, e qualquer P no domínio D(P), o conjunto de intervalos
admissíveis em termos de ≤, P e t - IA(≤, P, t) – é o conjunto de todos os
intervalos em que:
(i) contém t, mas não bem no seu começo,
(ii) começa com a fase de não-P,
(iii) contém no máximo uma polaridade que alterna entre não-P e P.
37
DEFINITION: Admissible intervals in terms of ≤, P and t
For any predicate P with a domain D(P) that is ordered by a partial ordering ≤, and any t in D(P), the set of
admissible intervals in terms of ≤, P and t – AI(≤,P, t) – is the set of all intervals which
(i) contain t, but not as their very beginning,
(ii) start with a phase of not-P,
(iii) contain at most one polarity switch between not-P
88
Segundo essa definição, o intervalo de tempo selecionado pelas pressuposições de
schon(te, P) e noch nicht(te, P) partem de P, o que resulta, dada a definição de intervalos
admissíveis, no esquema representado pela Figura 14. Já noch e nicht mehr, partem na
definição de IA, de não-P, o que gera o esquema da Figura 15. Van der Auwera (1993), antes
dessa definição elaborada por Löbner (1999), já afirmava que, na semântica desses itens, há
contrastes entre dois estados, mas não chegou a sistematizar de tal forma e, como vimos,
acrescenta qualificações a essa mudança.
Esses intervalos admissíveis formam a base, segundo Löbner (1999), que permite uma
definição mais exata da semântica desses itens:
(206)
schon(te P)
noch(te P)
noch nicht(te P)
nicht mehr(te P)
∃∀I(I ∈ IA(≤t, P, te):
∃∀I(I ∈ IA(≤t, not-P, te):
∃∀I(I ∈ IA(≤t, P, te):
∃∀I(I ∈ IA(≤t, not-P, (te)):
P(te))
P(te))
not-P(te))
not-P(te))
AI(≤t, P, te) é o conjunto dos intervalos admissíveis de ordem temporal ≤t, P e te, AI (≤t, not-P,
te) é o mesmo com P substituído por não-P. O operador ∃∀ – para algum e todo –, é um
operador de livre escolha que permite optar por qualquer elemento que satisfaça a condição
no lado esquerdo dos dois pontos e afirme o que é dito no lado direito dos dois pontos. Isso
pressupõe a existência de tais intervalos. Se existe um intervalo no eixo do tempo o qual reúne
a condição dada pela pressuposição, então qualquer intervalo poderá ser escolhido.
Pela formalização, a pressuposição de noch e nicht mehr é um intervalo de not-P e a
schon e noch nicht, um intervalo de P. Schon e noch afirmam P e suas contrapartes negativas,
como o enunciado já diz, afirmam não-P. Isso, para Löbner (1999, p. 61), quer dizer que a
sentença toda logicamente acarreta a asserção, o que já foi demonstrado no início desta
sessão, com exemplos transpostos ao PB, nas análises dos acarretamentos e pressuposições.
Talvez, depois dessa explicação dos intervalos de tempo, seja possível entender
melhor a noção de dêitico dada por Neves (1992, p. 281) e Ilari (1990, p. 77) ao já e ao ainda,
principalmente se pensarmos que os dois itens, para serem interpretados, reportam-se ao eixo
temporal e se posicionam quanto a ele. Mas Neves nada afirma nesse sentido, embora Ilari
tenha mencionado que o locutor, ao utilizar o já, posiciona-se afastando-se do momento de
fala, o que é coerente, visto que a visão se amplia para todo o eixo temporal. Vale ressaltar
que as explicações para noch (ainda) basearam-se em te que pode ser o momento de fala, mas
não necessariamente. Em suma, o ainda pode ser considerado um dêitico no sentido de se
afastar da sentença e se reportar ao eixo temporal.
89
No PB, o mesmo tratamento que foi dado ao ainda pode ser dado ao já, ambos
interferem nas condições de verdade das sentenças, conforme o que foi verificado através da
relação de acarretamento presente em (207) e (208), também visto no exemplo abaixo:
(207) a. João já não estava correndo.
b. João correu.
(208) a. João não estava correndo.
b. João correu.
Perceba que, ao dizer (208a), não significa que João correu antes, porém, em (207a),
com o acréscimo do já não, a interpretação que temos é de que João necessariamente correu
em um intervalo anterior, embora já não estivesse mais correndo. Ou seja, (207a) acarreta
(207b), mas (208a) não acarreta (208b). Logo, há uma diferença nas condições de verdade
entre as sentenças (207a) e (208a), e essa diferença é dada pelo item lexical já não.
Há, ainda, um caso38 em que o ainda altera as condições de verdade da sentença.
Considere a seguinte situação. Um médico passeia com um fisioterapeuta por um dormitório
apresentando os pacientes que podem ou não recuperar, com ajuda fisioterapêutica, a
capacidade de andar. Ao apontar para um paciente, ele afirma:
(209) Este paciente não anda.
Nesse caso, a fala do médico é um veredicto de que a capacidade de andar do paciente
está irremediavelmente comprometida, logo, a fisioterapia não adianta. A sentença em (209)
tem, fora de contexto, mais de uma interpretação. Estamos focalizando apenas uma para
mostrar que essa interpretação está ausente na sentença com ainda. Uma interpretação
possível para (209), mas que não é adequada na situação do médico (afinal estamos em um
dormitório em que nenhum dos pacientes anda), é de que o paciente tem a capacidade de
andar, embora ele esteja provisoriamente incapacitado. Se compararmos com (210),
notaremos que essa é a sua única interpretação possível. Somente (209) permite a
interpretação de que ele perdeu permanentemente a capacidade de andar. Essa interpretação é
incompatível com o uso de ainda:
38
Este foi encontrado por Roberta Pires de Oliveira.
90
(210) Este paciente ainda não anda.
A interpretação de incapacidade permanente não está disponível para (210), porque,
para que essa sentença seja verdadeira (ou falsa), é preciso que a capacidade de andar do
paciente esteja intacta, embora, no momento, o paciente não esteja andando, pois ainda indica
exatamente uma transição de estados de coisas. Se a possibilidade de transição está
bloqueada, não há como usar ainda. Assim, as condições de verdade de (209) e (210) não são
exatamente as mesmas: em (209) é possível que o paciente não tenha (mais) a capacidade de
andar, porque a sentença não veicula transição de estado, enquanto que em (210) é preciso
que ele tenha a capacidade de andar, embora, no momento, ele não possa andar, precisamente
porque a sentença veicula transição.
A sentença (210) só pode ser usada se há a capacidade de andar, porque só assim pode
haver transição para outro estado de coisas. A sentença em (209) é compatível com a não
existência de mundos em que João anda (em todos os mundos que são prosseguimentos do
mundo real a partir do momento de fala do médico é o caso que o paciente não anda); para
(210), necessariamente, há mundos (ou ramificações do mundo real) em que ele anda. Esta é
mais uma razão para afirmar que o ainda altera as condições de verdade da sentença.
Com isso, até o momento, não parecem existir mais problemas, mas e como fica a
nossa intuição de que a mudança já deveria ter ocorrido ou ainda não deveria ter acontecido?
E a existência de uma expectativa nas sentenças com as partículas já e ainda e seus correlatos
negativos?
Por exemplo, em (207a), parece haver uma expectativa de que João ainda
estivesse correndo, não tivesse mudado do estado de P para não-P. Löbner (1999) resolve
isso da seguinte maneira: afirma que essas intuições são implicaturas conversacionais.
5 IMPLICATURA
Com o avanço da pesquisa, as sugestões da banca de qualificação e os estudos de
Löbner (1989; 1999), o que ora era expectativa negativa ora positiva envolvida com o já e o
ainda, passou a possuir um ponto em comum maior que unifica a natureza dessas partículas: a
contra-expectativa, que é sempre o não esperado. Ou seja, cada asserção assume um intervalo
admissível P ou não-P e a expectativa é sempre contrária a esse intervalo. A mudança a partir
do te pode ocorrer e é semântica, porém, a expectativa é de que o estado atual não estivesse
acontecendo e essa contra-expectativa é de ordem pragmática. Sobre a contra-expectativa, van
91
der Auwera (1993) e Löbner (1989; 1999) nada declaram, já Martelotta (1996) reconhece que
um grupo de ainda é portador dessa característica.
Nesse campo, insere-se a implicatura conversacional, que, segundo Chierchia (2003, p.
252) é um “[...] aspecto do que é dito que não faz parte do significado convencional, uma de
suas características peculiares é a de serem canceláveis [...]”. Ela se baseia no significado
convencional, nas máximas conversacionais e nas informações presentes no contexto. Por isso
a necessidade de testar se as expectativas que parecem estar associadas a essas partículas são
ou não implicaturas; se forem, devem ser passíveis de cancelamento.
Para o caso de nicht mehr, (correspondente do já não, não mais no português), por
exemplo, Löbner (1999, p. 75) diz que a expressão dispara a implicatura da mudança feliz
recente. O operador é utilizado para, justamente, veicular a mudança, a transição entre P e
não-P. Além disso, há a idéia de que a mudança ocorreu há pouco tempo, como uma
característica do ser recente, que é de natureza pragmática. Vejamos o que ocorre com o
ainda, nosso objeto de estudo:
(211) a. Posto: João ainda estava estudando.
b. Implicatura: João não deveria estar mais estudando.
c. Implicatura cancelada: João ainda estava estudando, e nem poderia ser
diferente dado o tanto de matéria que ele tinha.
(211c) cancela a expectativa de que João não estivesse mais estudando no momento de
referência. Isso mostra que a expectativa de que ele não estivesse mais estudando naquele
momento, no momento de referência, pode ser cancelada. Logo, ela é uma implicatura. O
mesmo acontece em (212a), citada na seção 3 para análise da pressuposição e retomada no
estudo da implicatura:
(212) a. das Licht ist noch an.
The light is still on.
A luz ainda está acesa.
b. das Licht ist an..
The light is on.
A luz está acesa.
A presença do noch acrescenta a idéia de que a luz já não deveria estar mais acesa, e essa
idéia, segundo Löbner (1999) e o que assumimos neste trabalho, é uma implicatura, logo,
92
poderá ser cancelada. Obviamente, a idéia de que a luz já não deveria estar acesa nem se
coloca para (212b), precisamente porque este caso não veicula mudança. E é isso que é feito
quando afirmamos: a luz ainda está acesa e nem poderia ter sido apagada porque ela é
automática à presença de movimento e há gatos no ambiente a todo momento. Também a
expectativa, no caso de (212a), pode ser cancelada.
Em consonância a essa linha de raciocínio, Muller (1975) e Baar (1992) afirmam que o
já contém um componente de mudança cedo e isso já estava presente em König (1977) e
Valikangas (1982). Também Vandeweghe (1983) assume essa posição e diz que esse
componente é pragmático, todos autores citados por van der Auwera (1993, p. 619).
Diante de tudo disso, para o caso do noch, a pressuposição é sempre disparada pelo
item lexical, mas ela pode ou não ser preenchida, já a implicatura pode ou não estar presente,
a depender do contexto, podendo inclusive ser cancelada. Isso leva em consideração as
características apresentadas nas noções-padrão de implicatura e pressuposição, utilizadas
neste estudo. Além disso, a expectativa vem sempre de encontro ao estado ou intervalo
veiculado pela asserção.
6 PORTANTO...
Através dos textos e das análises para o alemão, pudemos perceber que o ainda
temporal está ligado ao já e suas contrapartes negativas por diversos fatores argumentados por
Löbner (1999), contra van der Auwera (1993). O principal argumento que valida a hipótese
do primeiro autor é a questão das perguntas, pois a resposta sim não a uma pergunta
declarativa com o ainda, por exemplo, aciona a sua contraparte negativa que é o já não mais e
isso se verifica com todos os componentes da dualidade. Outro forte argumento é o das
expectativas veiculadas pelas sentenças, nas quais são acionadas as contrapartes negativas,
pertencentes à dualidade e à pressuposição de estados prévios, presente em todos os termos.
Se parássemos por aqui, já haveria provas suficientes ao convencimento do esquema, no
entanto, van der Auwera (1993) dispensa bastante tempo tentando provar que nem todos os
membros da dualidade são acarretados por finally e vice-versa. Buscamos mostrar que essas
diferenças de sentido levantadas pelo autor podem ser explicadas pragmaticamente. Logo,
concluímos que ainda e já são duais.
A escala é outro ponto divergente entre os autores, pois Löbner (1989; 1999) afirma
que ela está presente em todos os usos de noch, ao contrário de van der Auwera (1993) o qual
93
afirma que há pelo menos um uso que não utiliza essa relação. Mas, todos esses usos, pelos
estudos e pelos dados do PB com já e ainda, recebem um tratamento uniforme, pelo menos
em relação ao que eles veiculam semanticamente, e assumimos que as escalas entre P e nãoP, propostas por Löbner (1999), estão presentes nesses dados, o que legitima ainda mais a
questão da dualidade. Nessa mesma perspectiva, podemos citar também a pressuposição,
fundamentada no que a literatura já diz a respeito disso para o alemão e para o inglês e que
mostramos ser também o caso para os dados do PB e a contra-expectativa, já mencionada por
Martelotta (1996).
Portanto, todo ainda temporal aciona uma pressuposição do conhecimento de um
estado prévio, anterior ao te ou imediatamente anterior, caso do futuro. Se não houver essa
pressuposição, não há leitura temporal e, para havê-la, às vezes39, há necessidade de adjuntos
temporais, que ajudam a localizar as sentenças no eixo temporal, acrescentando um momento
de referência e, dessa forma, colaboram para o ainda ativar a pressuposição.
Também está presente, em todas as sentenças com o ainda, uma expectativa contrária
ao que a asserção informa, ou seja, o estado veiculado pela sentença não deveria estar
habilitado, nos casos das sentenças afirmativas; exatamente o oposto ocorre nas sentenças
negativas, e isso é uma implicatura. A pressuposição do conhecimento do estado anterior ao te
não depende em nada do contexto, exceto no perfectivo, pois, nesse aspecto, esporadicamente,
são necessários os adjuntos para a sentença ganhar conteúdo. Nos demais casos, o contexto
não influencia a pressuposição, que é dada, exclusivamente, pela semântica do ainda, ao
contrário da implicatura da expectativa.
Além das sentenças com o ainda dispararem pressuposições, também estabelecem
relações de acarretamento que são distintas das relações de acarretamento das sentenças sem
esse item, mostrando, então, que ele interfere nas condições de verdade das sentenças. O
mesmo acontece com o já em relação ao acarretamento, o que é só uma das características em
comum entre eles. A pressuposição, no caso do já, não foi testada nesta dissertação, mas, ao
que tudo indica, também se mantém. Ainda com relação às condições de verdade, vale
ressaltar, que, conforme Löbner (1999), as sentenças pertencentes à dualidade sempre
possuem estados de P e não-P e a transição entre eles já faz parte da semântica dos itens. As
relações de expectativa, acarretamento e pressuposição estão ligadas aos estados de P e nãoP, formando, assim, um contraste entre polaridade negativa e afirmativa, o que, na visão de
Löbner (1999), são contrastes projetados em uma escala de tempo.
39
Às vezes porque há o tipo conjuntivo de ainda que mesmo com adjuntos temporais, não obtém a interpretação
temporal. Essa questão dos adjuntos se aplica ao uso do ainda discursivo.
94
Ainda: NOVOS CAMINHOS
As trajetórias percorridas para chegarmos a conclusões no estudo semântico do item
lexical ainda foram diversas. De início, com poucos textos no PB sobre o assunto, as
hipóteses eram “tímidas”, contudo certeiras, pois, posteriormente, apoiadas nos estudos de
Löbner (1989; 1999) e van der Auwera (1993), confirmaram-se e ampliaram-se. Foi possível
transpor grande parte das análises feitas para o alemão e para o inglês para os dados do PB e o
resultado foi satisfatório, pois foi possível compreender qual a contribuição do ainda dentro
das sentenças e formular uma semântica para o termo.
A hipótese inicial que norteou a decisão pelo objeto de estudo desta dissertação estava
intimamente ligada à questão dos itens de polaridade negativa. De início, pensávamos que o
ainda era um deles, com base nas conclusões de Ilari (1987) e Mendes de Souza et al (2007).
Por isso, a pesquisa iniciou na busca por estudos que tratavam da polaridade negativa e no,
primeiro capítulo, apresentamos o fenômeno com base no que a literatura oferece para outras
línguas, assim como para o PB. Apresentamos as expressões de polaridade negativa e,
posteriormente, os poucos itens já listados no PB, demonstrando que eles ocorrem,
preferencialmente, mas não só, em contextos negativos e, além disso, expusemos a polêmica
em torno das teorias sobre o que licencia esses itens nos raros contextos não negativos em que
eles ocorrem.
Várias são as tentativas de explicação, mas contemplamos as mais aceitas, como o
acarretamento decrescente, proposto por Ladusaw (2002), a não-veridicidade, levantada por
Giannakidou (2001), a escala, ver Fauconnier (1975 apud ILARI, 1984), a proposta sintáticopragmática, de Linebarger (1987) em que os itens pertencentes à classe da polaridade negativa
ocorrem na Forma Lógica sob o escopo de uma negação. Diante de todas essas explicações,
evidenciamos que não há consenso sobre uma teoria a qual abarque todos os casos, pois
exemplificamos cada uma delas e identificamos um contra exemplo. Mas servem, a exemplo
do acarretamento decrescente, como testes para descobrir se são ou não itens de polaridade
negativa.
No PB, Ilari (1987) e Mendes de Souza (2007) afirmaram que ainda é um item de
polaridade negativa por haver exemplos em que o termo não ocorre com interpretação
temporal na afirmativa. No inglês, Israel (1996) e Ladusaw (2002, [1980]) afirmam que o yet
é um item de polaridade negativa. Nessa perspectiva, fizemos testes a partir das propostas de
licenciamento e o ainda parecia encaixar-se em uma proposta – a de Linebarger (1987) – pois,
para a autora, em todos os itens de polaridade negativa há uma restrição pragmática: trata-se
95
de uma implicatura negativa, por isso pensávamos que o ainda na afirmativa sempre tinha
uma expectativa negativa, no entanto, com o avanço do estudo, descobrimos que a expectativa
não era negativa, e sim uma contra-expectativa. Portanto, ele não é um item de polaridade
negativa.
Antes disso, porém, fizemos a separação dos tipos de ainda, pois, inicialmente, já
pensávamos que não havia somente um uso do ainda e isso se comprovou através das
entrevistas, retiradas do banco de dados NURC, assim como a recuperação de pesquisas de
cunho funcionalistas que também dividiram o ainda em grupos. A partir delas, pudemos
identificar que todas as ocorrências possuem uma contra-expectativa. A contra-expectativa é
uma característica encontrada por Martelotta (1996) em somente um dos seus grupos, mas
que, no entanto, mostramos haver em todos os usos de nossa classificação.
A partir da divisão em temporais, discursivos e conjuntivos, centralizamos a análise no
temporal, porque, além de este ser o uso mais recorrente, é o objeto de Ilari e Mendes de
Souza et al (2007). Löbner e Auwera nada dizem sobre esses usos não-temporais, a
classificação que estes o fazem é dentro do próprio uso temporal. Com esse uso, a primeira
hipótese era de que o ainda tinha restrições para ocorrer em contextos afirmativos, porém,
com os testes nos variados tempos e aspectos verbais, assim como nas diferentes
acionalidades, foi possível perceber que, primeiramente, o ainda com interpretação temporal,
não ocorria na afirmativa somente no pretérito perfeito, por isso a hipótese do ainda ser um
item de polaridade negativa foi descartada.
Visto que ele ocorria no pretérito imperfeito, passamos a pensar que seria uma questão
de aspecto, pois o imperfeito está aberto a mudanças, ao contrário do perfeito. Porém, com o
acréscimo de adjuntos de tempo, as sentenças perfectivas se tornaram aceitáveis com a
interpretação temporal. A pesquisa buscou, então, descobrir o que acontecia com as sentenças
perfectivas acompanhadas por adjuntos temporais. Nesse momento, a fundamentação teórica,
baseada nos conceitos de momento de evento, momento de referência e momento de fala de
Reichenbach (1947 apud ILARI, 1997) foi de suma importância para nortear a explicação
semântica do uso temporal. Dessa forma, pesquisamos a função dos adjuntos nesse tipo de
construção e concluímos que ele localiza um ponto de referência no eixo temporal, permitindo
que o ainda ocorra. E a partir disso, como apresentado no Capítulo 3, a pressuposição que é
acionada pelo ainda pode ser disparada.
Também foi possível descobrir, primeiramente com nossos testes e depois confirmado
nos textos de Löbner (1989; 1999), que a contraparte negativa do ainda temporal é o já não e
que a do já é ainda não, o desconhecimento dessa dualidade é que levou autores como Ilari e
Mendes e Souza et al a afirmar que o ainda era um item de polaridade negativa. A questão da
96
dualidade no tipo temporal foi discutida no Capítulo 3, quando mostramos que van der
Auwera (1993) a critica austeramente. Mas os argumentos contrários são menos convincentes
do que os favoráveis apresentados por Löbner (1999), pois só o fato do ainda (já transposto ao
PB) ser acionado na resposta a uma pergunta com o já, e vice-versa, demonstra o quanto eles
estão ligados. Isso sem mencionar que todos os pertencentes à dualidade pressupõem um
estado prévio anterior ao momento de referência e também o cenário contrafactual, acionado
pelos itens em forma de expectativa.
Esse estado prévio remete a uma outra característica desses itens e que pôde ser
transposta aos dados do PB – a pressuposição. Assumimos a posição de Löbner (para o
alemão) de que cada sentença com o ainda ativa uma pressuposição do estado P anterior a te.
Concluímos que, com a leitura temporal, é necessário haver a pressuposição. Nos casos do
pretérito perfeito, as sentenças com o ainda só são aceitáveis com a leitura discursiva, porém,
como já dissemos, com o acréscimo dos adjuntos temporais, passavam a ter uma interpretação
temporal e, com isso, o ainda ativava a pressuposição. Para testar se, verdadeiramente, essa
pressuposição se mantinha, foram utilizados os testes da P-família, nos quais a pressuposição
ativada pelo ainda permaneceu, para isso, novamente foram fundamentais as noções de
tempo, fundamentadas em Reichenbach (1947), que ancoraram as explicações apontadas para
o objeto de estudo desta dissertação. Ainda com relação aos estados, assumimos com Löbner
(1989; 1999) que há escala nas ocorrências de já e ainda – a dos estados entre P e não-P –, e
isso é mais uma evidência para os dois termos fazerem parte do esquema da dualidade.
Mostramos, também, que o ainda interfere nas condições de verdade da sentença em
que ocorre através das relações de acarretamento. Além disso, com base na formalização de
Löbner (1999) para o noch, assumimos que no PB a semântica de ainda depende do conceito
de intervalos de tempo admissíveis; ele dispara uma pressuposição P pela qual pelo menos
uma mudança ocorre entre P e não-P. A questão da expectativa foi resolvida, também de
acordo com Löbner, que a considera de ordem pragmática. O que, primeiramente, parecia ser
uma expectativa negativa, e com a negação uma expectativa positiva, unificou-se no decorrer
da dissertação, em uma contra-expectativa, ou seja, o não esperado, o contrário ao que a
asserção veicula e essa expectativa ao contrário do que é veiculado pela sentença é uma
implicatura.
Com relação às três classes de ainda – a dos conjuntivos, a dos discursivos e a dos
temporais –, observamos que o esquema da dualidade não se aplica ao ainda discursivo, pois
o oposto negativo desse uso não é o já não mais e o caminho à unificação dos três usos parece
estar nessa contra-expectativa, comum a todos eles, pois há uma oposição entre o que a
asserção diz e o que é contextualmente esperado. Mas esse já é um tópico para outro trabalho.
97
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100
Anexos
Presente
AINDA
ESTADO
ATIVIDADE
João ainda não ama João
Maria.
ainda
brinca.
ACCOMPLISHMENT ACHIEVEMENT
não Maria
ainda
não Com
costura o vestido.
o
que
ele
treinou, João ainda
não alcança o pico do
Everest.
João
ainda
ama João ainda brinca.
Maria.
Maria ainda costura o João ainda alcança o
vestido.
pico do Everest.
JÁ
João já ama Maria.
João já brinca.
Maria já costura o João já alcança o
vestido.
João
já
não
pico do Everest.
ama João já não brinca. Maria já não costura João já não alcança o
(mais) Maria.
(mais)
(mais) o vestido..
pico do Everest.
ATIVIDADE
ACCOMPLISHMENT ACHIEVEMENT
Presente semântico
AINDA
ESTADO
João ainda não está João ainda não está Maria ainda não está João ainda não está
amando Maria.
brincando.
costurando o vestido.
alcançando o pico do
Everest.
João
ainda
amando Maria.
está João
ainda
brincando.
está Maria
ainda
está João
costurando o vestido.
ainda
está
alcançando o pico do
Everest.
JÁ
João já está amando João
Maria.
já
está Maria
já
está João
já
está
costurando o vestido. alcançando o pico do
brincando.
Everest.
João
já
amando
Maria.
não
está João
já
não
(mais) brincando. (mais)
está Maria já não está João
já
não
está
costurando (mais) o alcançando o pico do
vestido.
Everest.
101
Pretérito Perfeito
AINDA
ESTADO
ATIVIDADE
João ainda não amou João
Maria.
ainda
ACCOMPLISHMENT ACHIEVEMENT
não Maria
brincou.
ainda
não João
costurou o vestido.
ainda
não
alcançou o pico do
Everest.
João
ainda
amou João ainda brincou Maria ainda costurou o ??
Maria por mais três antes de ir para a vestido
anos após sua morte. escola.
João
ainda
mesmo alcançou o pico do
sabendo que está fora Everest.
de moda.
JÁ
ESTADO
ACCOMPLISHMENT ACHIEVEMENT
ATIVIDADE
João já amou Maria. João já brincou.
Maria já costurou o João já alcançou o
vestido.
(?) João já não amou (?)
Maria.
João
já
não (?)
brincou.
pico do Everest.
Maria
já
não *João
costurou o vestido.
já
não
alcançou o pico do
Everest.
Pretérito Imperfeito
AINDA
ESTADO
ATIVIDADE
João
ainda
amava Maria.
não João
ainda
ACCOMPLISHMENT ACHIEVEMENT
não Maria
brincava.
ainda
não João
costurava o vestido.
ainda
não
alcançava o pico do
Everest..
João ainda amava João ainda brincava.
Maria ainda costurava João ainda alcançava
Maria.
o vestido.
JÁ
João já amava Maria. João já brincava.
Maria já costurava o João já alcançava o
o pico do Everest.
vestido.
João já não amava João já não brincava. Maria
Maria.
(mais)
pico do Everest.
já
não João já não alcançava
costurava o vestido.
o pico do Everest.
102
estar + ndo
AINDA
ESTADO
ATIVIDADE
ACCOMPLISHMENT ACHIEVEMENT
João ainda não estava João ainda não estava Maria ainda não estava João ainda não estava
amando Maria.
brincando.
costurando o vestido.
alcançando o pico do
Everest.
João
ainda
amando Maria.
estava João
ainda
estava Maria
brincando.
ainda
estava João
costurando o vestido.
ainda
estava
alcançando o pico do
Everest.
JÁ
João
já
amando Maria.
estava João
já
estava Maria
brincando.
já
estava João
já
estava
costurando o vestido. alcançando o pico do
Everest.
João já não estava João já não estava Maria já não estava João já não estava
amando Maria.
brincando. (mais)
costurando o vestido. alcançando o pico do
Everest.
Futuro
AINDA
ESTADO
ATIVIDADE
ACCOMPLISHMENT ACHIEVEMENT
João ainda não vai João ainda não vai Maria ainda não vai João ainda não vai
amar Maria.
brincar.
costurar o vestido.
alcançar o pico do
Everest.
João ainda vai amar João
Maria.
ainda
vai Maria
ainda
vai João
ainda
vai
brincar (por muito costurar o vestido.
alcançar o pico do
tempo
Everest.
após
o
primário).
JÁ
ESTADO
ATIVIDADE
ACCOMPLISHMENT ACHIEVEMENT
João já vai amar João já vai brincar.
Maria já vai costurar o João já vai alcançar
Maria.
vestido.
João já não vai amar João
Maria.
já
brincar.
não
vai Maria
o pico do Everest.
já
não
costurar o vestido.
vai João
já
vai
alcançar o pico do
Everest.
Futuro do presente composto
não
103
AINDA
ESTADO
ATIVIDADE
ACCOMPLISHMENT ACHIEVEMENT
João ainda não vai ter João ainda não vai ter Maria ainda não vai ter João ainda não vai ter
sentido nada por
brincado o suficiente costurado o vestido a alcançado o pico do
Maria mesmo quando
para ficar feliz.
tempo da festa.
Everest
ela se arrepender.
chegar
quando
o
tempo
estimado da prova.
João ainda vai ter João ainda vai ter Maria
amado
Maria
ainda
por brincado por muito costurado o
muito tempo depois tempo
de sua morte.
após
terá João ainda vai ter
vestido alcançado o pico do
o antes de sair.
Everest
primário.
antes
da
chuva.
JÁ
ESTADO
ATIVIDADE
João já vai ter amado João
já
Maria antes de ela se brincado
declarar.
vai
antes
recreio chegar.
ACCOMPLISHMENT ACHIEVEMENT
ter Maria
já
vai
do costurado o
ter João já vai alcançar o
vestido pico do Everest.
quando o João chegar.
João já não vai ter João já não vai ter Maria já não vai ter João já não vai mais
mais amado Maria mais
quando
ela
brincado
de mais
o ter alcançado o pico
costurado
quiser carrinho quando tiver vestido quando a visita do Everest quando
voltar.
condições
estiver
de chegar.
com
mais
idade.
comprá-lo.
Futuro do pretérito composto
AINDA
ESTADO
ATIVIDADE
ACCOMPLISHMENT ACHIEVEMENT
João ainda não teria João ainda não teria Maria ainda não teria João ainda não teria
amado
Maria
soubesse
de
se brincado se não fosse costurado o vestido se alcançado o pico do
suas hora do almoço.
falcatruas.
João
ainda
amando Maria.
não fosse o aviso para Everest
apressar.
estava João
ainda
teria Maria
ainda
brincado com ela se costurado o
soubesse
doença.
de
teria João
ainda
teria
vestido alcançado o pico do
sua antes de sair se não Everest antes de ter
estivesse com pressa.
um enfarto.
104
JÁ
João já teria amado João já teria brincado Maria
Maria
se
ela
declarasse.
se se
soubesse
brinquedo novo.
já
teria João
já
teria
do costurado o vestido alcançado o pico do
se tivesse linha boa.
Everest se não tivesse
chovido.
João já
não
teria João já
amado Maria desde o brincado
início
se
não
teria Maria já não teria João
já
não
teria
se
fosse costurado o vestido alcançado o pico do
soubesse educado para na hora mais se soubesse que Everest se soubesse
como ela era.
da aula estudar.
ela não paga.
de sua doença.
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