ANPOF - Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosoia
Diretoria 2015-2016
Marcelo Carvalho (UNIFESP)
Adriano N. Brito (UNISINOS)
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André da Silva Porto (UFG)
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Lia Levy (UFRGS)
Diretoria 2013-2014
Marcelo Carvalho (UNIFESP)
Adriano N. Brito (UNISINOS)
Ethel Rocha (UFRJ)
Gabriel Pancera (UFMG)
Hélder Carvalho (UFPI)
Lia Levy (UFRGS)
Érico Andrade (UFPE)
Delamar V. Dutra (UFSC)
Equipe de Produção
Daniela Gonçalves
Fernando Lopes de Aquino
Diagramação e produção gráica
Maria Zélia Firmino de Sá
Capa
Cristiano Freitas
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Filosoia da linguagem e da lógica / Organizadores Marcelo Carvalho,
Celso Braida, João Carlos Salles, Marcelo Estevan Coniglio
São Paulo : ANPOF, 2015.
554 p.
Bibliograia
ISBN 978-85-88072-41-1
1. Lógica 2. Linguagem 3. Witgenstein. I. Carvalho, Marcelo
II. Braida, Celso III. Salles, João Carlos IV. Coniglio, Marcelo
Estevan V. Série
CDD 100
COLEÇÃO ANPOF XVI ENCONTRO
Comitê Cientíico da Coleção: Coordenadores de GT da ANPOF
Alexandre de Oliveira Torres Carrasco (UNIFESP)
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Antônio Carlos dos Santos (UFS)
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Roberto Hofmeister Pich (PUC-RS)
Sandro Kobol Fornazari (UNIFESP)
Thadeu Weber (PUCRS)
Wilson Antonio Frezzati Jr. (UNIOESTE)
Apresentação da Coleção
XVI Encontro Nacional ANPOF
A publicação dos 24 volumes da Coleção XVI Encontro Nacional ANPOF tem por inalidade oferecer o acesso a parte dos trabalhos
apresentados em nosso XVI Encontro Nacional, realizado em Campos
do Jordão entre 27 e 31 de outubro de 2014. Historicamente, os encontros da ANPOF costumam reunir parte expressiva da comunidade de
pesquisadores em ilosoia do país; somente em sua última edição, foi
registrada a participação de mais de 2300 pesquisadores, dentre eles
cerca de 70% dos docentes credenciados em Programas de Pós-Graduação. Em decorrência deste peril plural e vigoroso, tem-se possibilitado um acompanhamento contínuo do peril da pesquisa e da produção
em ilosoia no Brasil.
As publicações da ANPOF, que tiveram início em 2013, por
ocasião do XV Encontro Nacional, garantem o registro de parte dos
trabalhos apresentados por meio de conferências e grupos de trabalho, e promovem a ampliação do diálogo entre pesquisadores do país,
processo este que tem sido repetidamente apontado como condição ao
aprimoramento da produção acadêmica brasileira.
É importante ressaltar que o processo de avaliação das
produções publicadas nesses volumes se estruturou em duas etapas.
Em primeiro lugar, foi realizada a avaliação dos trabalhos submetidos
ao XVI Encontro Nacional da ANPOF, por meio de seu Comitê
Científico, composto pelos Coordenadores de GTs e de Programas de
Pós-Graduação filiados, e pela diretoria da ANPOF. Após o término
do evento, procedeu-se uma nova chamada de trabalhos, restrita aos
pesquisadores que efetivamente se apresentaram no encontro. Nesta
etapa, os textos foram avaliados pelo Comitê Científico da Coleção
ANPOF XVI Encontro Nacional. Os trabalhos aqui publicados foram
aprovados nessas duas etapas. A revisão inal dos textos foi de responsabilidade dos autores.
Título: O Paradoxo do Mentiroso e Lacunas de Valores de Verdade
Trabalho apresentado na Seção temática de Lógica.
Autor: Ederson Safra Melo (edersonsafra@yahoo.com.br)
O presente trabalho foi realizado com apoio da Capes
Endereço institucional:
Núcleo de Epistemologia e Lógica, NEL
Departamento de Filosofia
Centro de Filosofia e Ciência Humanas, CFH
Bloco D, Sala 209
Universidade Federal de Santa Catarina
Campus Universitário Trindade
88010-970 Florianópolis – SC
O Paradoxo do Mentiroso e Lacunas de Valores de Verdade
Uma simples sentença que afirma sua própria falsidade e já estamos diante do
Mentiroso: uma sentença que é verdadeira se e somente se for falsa. O intrigante em
tal paradoxo, além da facilidade em estabelecê-lo, consiste no fato de que, a partir de
princípios intuitivamente aceitáveis, chegamos a uma conclusão aparentemente
inaceitável. Diante disso, somos levados a questionar se tais princípios (tanto os da
lógica quanto aqueles que supostamente governam o uso do termo ‘verdadeiro’) são,
de todo, aceitáveis ou se nossas intuições de uso de ‘verdadeiro’ são, de fato,
inconsistentes. Além de suscitar tais questões, neste texto pretendemos defender que
parece razoável manter lacunas de valores de verdade (truth-value gaps) diante do
problema do Mentiroso.
1. O Paradoxo do Mentiroso
A origem do paradoxo do Mentiroso é atribuída ao filósofo Eubúlides, que viveu
na Grécia por volta do século IV a.C. Tal paradoxo foi discutido intensamente no período
medieval
por
lógicos,
como
John
Buridan,
como
um
dos
insolubilium.
Contemporaneamente, o Mentiroso desempenhou um papel crucial no desenvolvimento
da lógica contemporânea e hoje é objeto de intensas pesquisas em lógica e filosofia. O
Mentiroso recebe esse nome da formulação em que um falante afirma, direta ou
indiretamente, que sua própria afirmação é uma mentira. Uma simples formulação
poderia ser a seguinte: “eu estou mentindo agora” ou, simplesmente, “eu estou
mentindo”. Todavia, a mentira introduz várias questões estranhas, tal como a intenção
do falante em enganar, que não são essenciais ao paradoxo1. O crucial no Mentiroso
pode ser mantido pela seguinte sentença (P) que afirma sua própria falsidade.
(P): (P) é falsa.
Pois bem, (P) é verdadeira ou falsa? Vamos supor, inicialmente, que (P) seja
verdadeira; então ela é como ela diz que é, portanto (P) é falsa. Agora, vamos supor
que (P) seja falsa; como ela diz exatamente isso, a saber, que ela é falsa, temos que
(P) é verdadeira. Assim, temos que (P) é verdadeira se e somente se (P) é falsa. Como
toda sentença é verdadeira ou falsa, temos que (P) é verdadeira ou falsa e, em qualquer
um dos casos, como vimos acima, (P) é verdadeira e falsa. O intrigante é que podemos
chegar nesse resultado, supostamente inaceitável, através da lógica com base em
1
Cf. BARWISE & ETCHEMENDY, 1987, p. 3.
princípios intuitivos tanto da lógica quanto naqueles que supostamente governam o
comportamento do termo ‘verdadeiro’.
Vamos ver mais detalhadamente como isso pode se dá. Começamos com o
princípio que tem sido amplamente tomado como aquele que supostamente governa o
comportamento do termo ‘verdadeiro’. Para tanto, recorremos aos trabalhos de Tarski.
Em sua teoria da verdade, Tarski queria capturar as intuições clássicas do conceito de
verdade, isto é, aquelas intuições que são expressas pela máxima aristotélica:
Dizer do que é que não é, ou do que não é que é, é falso, enquanto que dizer
do que é que é, ou do que não é que não é, é verdadeiro. (ARISTÓTELES,
Metaphysica, livro Γ 1011b).
Tarski toma uma sentença qualquer, como ‘a neve é branca’, e pergunta sob
quais condições essa sentença é verdadeira. Se tomarmos por base a concepção
clássica, diríamos que a sentença destacada acima é verdadeira se a neve é branca e
falsa caso a neve não seja branca. Desse modo, temos que a sentença ‘a neve é branca’
é verdadeira se e somente se a neve é branca. A frase “a neve é branca” (entre aspas),
que ocorre do lado esquerdo da equivalência, é um nome da sentença ‘a neve é branca’,
que ocorre do lado direito da equivalência. Diante disso, Tarski expõe seu famoso
esquema:
(T)
Onde
é verdadeira se e somente se
substitui alguma sentença na linguagem e X substitui o nome de A
Nem o esquema (T), nem alguma instância particular dele, é considerado uma
definição de verdade. Tarski toma esse esquema para determinar o critério de
adequação material que, junto com os critérios de correção formal, são usados para
construir sua definição de verdade2. Uma definição de verdade é adequada
materialmente se ela implica logicamente todas as instâncias do esquema (T).
Parece razoável aceitar que uma teoria que pretenda capturar as intuições
ordinárias do predicado verdade teria que, para qualquer sentença
implica que
verdade
da linguagem,
é verdadeira e vice e versa. Desse modo, se temos um predicado
e nomes para as sentenças da linguagem (para uma determinada sentença
, ‘ ’ é o nome de ), temos que o predicado verdade se comporta do seguinte modo:
de
2
‘ ’ temos
e de
temos
‘ ’ 3.
Na teoria da verdade de Tarski, enquanto a condição de adequação material é colocada para salvaguardar
a intuição expressa pela máxima aristotélica, as condições de correção formal são postas para garantir
precisão e evitar paradoxos semânticos como o do Mentiroso. Na próxima seção, vamos evidenciar as
condições de correção formal colocadas por Tarski para evitar o Mentiroso.
3 Na literatura sobre o tema encontramos os termos Capture e Release para descrever o comportamento
do predicado verdade.
Capture:
⊢ (‘ ’).
Release: (‘ ’) ⊢ .
Como sabemos, a autorreferência é um traço característico das línguas naturais.
Podemos, por exemplo, usar o português e dizer coisas tais como ‘este texto está escrito
em português’, ‘esta sentença tem cinco palavras’, ‘esta sentença não é verdadeira’ e
por aí vai. Nas linguagens formais também temos meios para produzir autorreferência,
por exemplo, via diagonalização4. Com isso, podemos tomar uma sentença
de si mesma que ela não é verdadeira
= ¬
que diz
‘ ’ . Com isso e com mais algumas
regras bem assentadas nos princípios da lógica clássica, podemos construir o Mentiroso
em uma linguagem formal. Vamos colocar, então, os ingredientes que vão possibilitar
chegar a contradição a partir da sentença do Mentiroso.
‘ ’ ⊣⊢ .
(T)
Terceiro excluído (TE):
∨¬
Introdução da conjunção (∧
∧+): Se
⊢
e
Princípio da disjunção (∨
∨-): Se
e
⊢ , então
⊢
⊢ , então
∨
∧C
⊢
Com base nisso, conseguimos o argumento de que a sentença
= ¬
‘ ’ leva a
contradição5:
1)
‘ ’ ∨ ¬
2)
TE
‘ ’
Hipótese
‘ ’
3)
4)
2; (T)
¬
5)
6)
3; Def.
‘ ’
‘ ’ ∧ ¬
¬
‘ ’
2,4; ∧+
Hipótese
‘ ’
7)
6; Def.
8)
‘ ’
7; (T)
9)
‘ ’ ∧ ¬
‘ ’
6,8; ∧+
10)
‘ ’ ∧ ¬
‘ ’
1- 9; ∨-
Existem várias versões do Mentiroso, usando princípios diferentes6. Neste ponto,
queremos apenas destacar que de princípios intuitivamente aceitáveis, seguindo leis da
lógica clássica, chegamos a uma situação supostamente inaceitável. Essa situação fica
bastante clara considerando o seguinte entedimento de paradoxos de Sainsbury: “uma
conclusão aparentemente inaceitável derivada através de um raciocínio aparentemente
Informalmente: tendo uma sentença , capture permite o predicado verdade capturar ou prender ; e tendo
que uma sentença é verdadeira, release permite o predicado verdade liberar ou soltar . Para mais
detalhes ver BEALL, 2009, p. 25.
4 Cf. HECK, 2012.
5 A seguinte prova é uma adaptação da prova de Beall e Glanzberg presente no verbete ‘Liar Paradox’ da
Stanford Encyclopedia of Philosophy (Cf. BEALL & GLANZBERG, 2014, p. 11, versão PDF).
6 Para outras versões ver, por exemplo, BURGESS & BURGESS, 2011, p.127 e HECK, 2012, p. 36.
aceitável a partir de premissas aparentemente aceitáveis” (SAINSBURY, 2009, p.1).
Tomando essa noção de paradoxo, temos que os princípios usados na derivação do
Mentiroso não são de todo aceitáveis ou a conclusão não é de fato inaceitável. Um
teórico de posição dialeteísta, como Priest (1984), ficaria com essa última possibilidade.
Priest usa o Mentiroso como uma testemunha para defender sua posição metafísica
dialeteísta de que há contradições reais. Para Priest não há problemas em afirmar uma
contradição (passo 10 da derivação acima). O problemático, segundo o autor, é acatar
que de uma contradição tudo se segue (famoso princípio clássico da explosão:
¬
∧
⊢ )7. Consideramos que um teórico de posição dialeteísta terá o problema de
oferecer respostas filosoficamente razoáveis para aceitar que existem contradições
reais e não somente acatar o Mentiroso para defender sua posição metafísica. Há várias
discussões sobre o dialeteísmo, não iremos tratar de tais discussões aqui, na medida
que isso sairia do escopo do presente trabalho8. Voltamos, então, a nossa discussão
considerando, na próxima seção, o diagnóstico clássico do Mentiroso apresentado por
Tarski.
2. A abordagem tarskiana: Mentiroso e fechamento semântico
Nesta seção iremos apenas evidenciar a análise de Tarski diante do Mentiroso
que serviu de base para a construção de teoria semântica da verdade apresentada no
seu célebre artigo O conceito de verdade nas linguagens formalizadas. Diferentemente
da posição mencionada no final na última seção, Tarski não acata o Mentiroso. Ao
considerar as atitudes diante do problema, Tarski deixa claro que que não irá se
reconciliar com as antinomias semânticas como a do Mentiroso.
Pessoalmente, como um lógico, não posso reconciliar-me com as antinomias
como um elemento permanente de nosso sistema de conhecimento;
entretanto, não estou disposto a tratá-las de forma superficial. O aparecimento
de uma antinomia é, para mim, sintoma de uma doença. Começando com
premissas que parecem intuitivamente óbvias, recorrendo a formas de
raciocínio que parecem intuitivamente certas uma antinomia nos leva ao semsentido, a uma contradição. Sempre que isso acontece, temos que submeter
nossos modos de pensar a uma completa revisão: rejeitar algumas premissas
nas quais acreditávamos ou melhorar algumas das formas de argumentação
que vínhamos usando (TARSKI, 2007, [1969], p.214).
7
Priest (1984) desenvolve uma lógica paraconsistente chamada LP (Lógica do Paradoxo) em que o
princípio da explosão não vale. Assim, a presença de uma contradição não trivializa o sistema. Todavia, o
uso de LP para os problemas que Priest tinha em mente não está isento de problemas. Uma crítica bastante
interessante foi desenvolvida por Slater no artigo ‘Paraconsistent logics?’. Em tal artigo, Slater mostra que
aquilo que Priest considera uma contradição não é, a rigor, uma contradição (cf. Slater, B. H. Paraconsistent
logics? Journal of Philosophical Logic, 24, 1995. pp. 451–454)
8 Para uma discussão ampla sobre o dialeteiísmo, ver Graham PRIEST, JC BEALL, and Bradley ArmourGARB (eds.), The Law of Non-Contradiction: New Philosophical Essays, Oxford University Press, 2004.
Essa coletânea reúne tanto artigos a favor da tese dialeteísta quanto artigos que criticam tal posição.
Dito isso, Tarski diz que devemos analisar as características da linguagem
comum que constitui a “real fonte” do paradoxo do Mentiroso9. Ao analisar tal fenômeno
nas linguagens naturais, Tarski conclui que a contradição surge de: aceitarmos as leis
da lógica e do fato da linguagem ordinária ser semanticamente fechada, isto é, a
linguagem, além de conter predicados semânticos, como ‘verdadeiro’ e ‘falso’, contém
meios para se referir a suas próprias expressões10. Sendo assim, na perspectiva de
Tarski, se quisermos evitar o paradoxo, ou temos que negar as leis da lógica, coisa que
Tarski não pretende fazer, ou rejeitamos as linguagens semanticamente fechadas como
objeto das definições de verdade, o que, na perspectiva do autor, deve ser o
procedimento adequado11.
Frente a isso, Tarski elabora as seguintes condições de adequação formal: (I) A
linguagem-objeto L (linguagem para qual se define o predicado verdade) deve ser
semanticamente aberta, isto é, L não deve conter predicados semânticos, tais como
‘verdadeiro’ e ‘falso’, que se referem às suas próprias expressões. Devido a essa
condição de adequação, foi preciso estipular a seguinte condição de adequação formal:
(II) A definição de verdade em L terá de ser dada em uma metalinguagem M (linguagem
na qual a definição de verdade é construída). Visto que pela condição (I), a linguagem
não pode ser autorreferente, foi necessário que Tarski estipulasse essa separação entre
linguagem-objeto e metalinguagem.
Respeitando tais condições de adequação formal, os paradoxos semânticos se
dissolvem. Por exemplo, a sentença do Mentiroso ‘(P) é falsa’ não pode ser construída,
segundo os critérios tarskianos. A rigor, o que temos é apenas uma espécie de
abreviação para ‘(P) é falsa-em-L’ que, por sua vez, deve ser uma sentença de uma
metalinguagem M da definição, pois ela contém um predicado expressando uma
propriedade semântica de uma expressão de L, e a linguagem-objeto, pela cláusula (I),
não possui tais predicados. Sendo uma expressão da metalinguagem M, ela não pode
ser falsa na linguagem objeto L, porque ela não está nessa linguagem. Desse modo,
na abordagem tarskiana, qualquer sentença
equivalente a ¬
‘ ’
não é
sintaticamente bem formada. Portanto, como não temos meios legítimos para formar a
sentença do Mentiroso, na abordagem tarskiana, não há paradoxo do Mentiroso12.
9
Cf. TARSKI, 2007, [1969], p.217.
“A análise das antinomias mencionadas mostra que os conceitos semânticos simplesmente não têm
lugar na linguagem à qual eles se relacionam, que a linguagem que contém sua própria semântica, e na
qual valem as leis usuais da lógica, inevitavelmente deve ser inconsistente” (TARSKI, 2007 [1936], p.150).
11 Cf. TARSKI, 2007, [1944], p.168-169.
12 Para uma apresentação acessível da teoria da verdade de Tarski, ver BURGESS and BURGESS, 2011,
cap. 2; SOAMES, 1999, cap. 3.
10
3. Críticas ao tratamento tarskiano: O Mentiroso e a noção de verdade.
Embora a teoria de Tarski tenha sido muito bem recebida e se tornado prática
habitual em lógica, várias críticas foram feitas a ela desde o seu surgimento. Aqui, não
temos por objetivo fazer uma discussão detalhada a respeito de tais críticas. Nesta
seção, vamos nos concentrar nas críticas que dizem respeito à intuição do termo
verdade – sobretudo aquelas oferecidas por Kripke – para abrirmos o caminho para as
discussões que serão traçadas na próxima seção.
O procedimento de Tarski para evitar o Mentiroso, através do artifício da
exclusão do fecho semântico, tem recebido críticas por sua ‘artificialidade’13. Tarski não
tem uma justificativa independente para postular a abertura semântica, exceto para
resolver o problema com os paradoxos semânticos. Diante disso, temos que a
abordagem tarskiana oferece uma solução formal, mas não filosófica ao problema do
Mentiroso14.
Além disso, os filósofos têm suspeitado da abordagem tarskiana como uma
análise de nossas intuições de uso do termo verdade15. Através do artifício tarskiano
para lidar com o Mentiroso é formada uma hierarquia de linguagens L0, L1, L2, L3, ..., em
que o predicado verdade de cada Ln só estará disponível na linguagem seguinte Ln+1.
Nessa hierarquia, haveria diferentes predicados ‘verdade’ subscritos com o nível da
sentença sendo determinado gramaticalmente pelos diferentes tipos de índices
subscritos. Todavia, Kripke destaca que nossa língua contém apenas uma palavra
‘verdade’ e não uma sequência de expressões distintas, ‘verdaden’.
Kripke reconhece que Tarski não responderia essa objeção justamente por ter
dispensado as línguas naturais como um todo. Porém, Kripke ([1975], p. 695) considera
uma resposta contra a sua objeção de um suposto defensor de posição tarskiana que
poderia replicar dizendo que “a noção de verdade é sistematicamente ambígua: seu
nível em uma ocorrência particular é determinado pelo contexto de proferimento e pelas
intenções do falante”. Se imaginarmos que a palavra ‘verdadeiro’ em uma determinada
língua é ambígua, com predicados subscritos representando seus diferentes possíveis
significados, então podemos tomar o significado de um predicado como um caso de
homonímia. Nessa visão, efetivamente o português, ou qualquer outra língua natural,
conteria infinitamente muitos predicados ‘verdade1’, ‘verdade2’,... com diferentes
significados. Aqui, à maneira de Tarski, o nível de qualquer sentença seria determinado
gramaticalmente pelo predicado que ela contém. Um proferimento pode então ser
13
Cf. BARWISE e ETCHEMENDY, 1987, p. 6; HAACK, 2002, p.196.
HAACK, 2002, p.196.
15 Cf. KRIPKE [1975], p. 694-695.
14
atribuído a uma sentença com base no predicado subscrito que o falante pretende estar
usando.
Na perspectiva de Kripke, essa proposta de inspiração ortodoxa não seria viável,
já que não é possível que um falante implicitamente correlacione o predicado-verdade
usado a um nível apropriado. Isso é assim devido ao fato de que, em diversas
circunstâncias, o nível que se deve atribuir ao predicado verdade usado no proferimento
de uma determinada sentença depende de fatos que o falante pode não conhecer.
Tomemos o mesmo exemplo usado por Kripke para defender essa ideia:
(1)
Todas as declarações de Nixon sobre Watergate são falsas.
Segundo Kripke, ordinariamente, o falante não tem nenhuma maneira de conhecer os
níveis dos proferimentos relevantes de Nixon. Desse modo, por exemplo, Nixon poderia
ter dito: “Dean é um mentiroso” ou “Haldeman disse a verdade quando disse que Dean
mentiu”. O nível desses proferimentos pode ainda depender dos enunciados de Dean,
e assim por diante. Com esse exemplo, Kripke evidencia que se o falante é obrigado a
atribuir de antemão um nível a (1), ele pode não estar seguro acerca de quão alto deve
ser o nível de sua atribuição. Assim, se o falante, ignorando o nível dos proferimentos
de Nixon, escolhe um nível muito baixo, o seu proferimento de (1) falha em seu
propósito. Com base nisso, Kripke argumenta que o nível de (1) não depende apenas
de sua forma e, também, não poderia ser atribuído antecipadamente pelo falante, e sim
que o seu nível depende de fatos empíricos relativos aos proferimentos de Nixon. Nas
palavras de Kripke, “isso significa que, em algum sentido, deve se permitir que um
enunciado encontre seu próprio nível, alto o suficiente para dizer o que se propõe a
dizer. Não deve ter um nível intrínseco fixado antecipadamente, como na hierarquia de
Tarski” (KRIPKE, [1975], p. 696).
Kripke destaca que há outra situação que é ainda mais difícil de acomodar dentro
dos limites da abordagem tarskiana. Em determinadas circunstâncias, é logicamente
impossível atribuir consistentemente níveis às sentenças relevantes. Novamente com
os exemplos de Kripke, suponhamos a circunstância na qual Dean afirma (1) enquanto
que Nixon, por sua vez, afirma (2):
(1)
Todas as declarações de Nixon sobre Watergate são falsas.
(2)
Tudo que Dean disse sobre Watergate é falso.
Na circunstância suposta, Dean ao afirmar a sentença abrangente (1) inclui em
seu escopo a afirmação (2), por ela ser uma das declarações de Nixon sobre Watergate.
Nixon, por seu turno, ao afirmar a sentença (2), inclui (1) como uma declaração de Dean
sobre Watergate. Desse modo, na circunstância suposta, as sentenças (1) e (2)
estariam em um nível metalinguístico uma em relação à outra, o que destrói a
possibilidade da distinção entre linguagem-objeto e metalinguagem como uma solução
do Mentiroso. Diante disso, Kripke destaca que em uma abordagem, como a de Tarski,
que pretende atribuir níveis intrínsecos aos enunciados, de modo que um enunciado de
determinado nível possa apenas falar da verdade ou falsidade dos níveis inferiores, é
obviamente impossível que as afirmações (1) e (2) tenham êxito. Entretanto, Kripke
atenta ao fato que intuitivamente podemos com frequência atribuir a tais afirmações
valores de verdade não ambíguos e conclui que “parece difícil acomodar estas intuições
dentro dos limites da abordagem ortodoxa” (KRIPKE, [1975], p. 697)16.
Consideramos que as críticas mais incisivas à abordagem tarskiana são aquelas
que advêm do tratamento oferecido por Kripke ao Mentiroso em linguagens
semanticamente fechadas. Barwise e Etchemendy dizem que Kripke, ao fornecer uma
teoria para as linguagens semanticamente fechadas, convenceu as pessoas que o
problema
apresentado
pelo
Mentiroso
nas
linguagens
ordinárias
não
era
intrinsecamente intratável17. Segundo esses teóricos, o tratamento tarskiano não
oferece um diagnóstico preciso ao paradoxo do Mentiroso. Nos termos de Barwise e
Etchemendy: “o tratamento de Tarski do paradoxo não chega ao coração do problema,
ele não fornece um diagnóstico genuíno ao paradoxo” (BARWISE e ETCHEMENDY,
1987, p. 7).
4. Abordagem kripkeana: Mentiroso e lacunas de valores de verdade
Em seu influente artigo Outline of a theory of truth, Saul Kripke oferece um
tratamento alternativo ao de Tarski possibilitando uma teoria da verdade para as
linguagens semanticamente fechadas. Para tanto, Kripke faz uso de lacunas de valores
de verdade (truth-value gaps). Com isso, o autor consegue separar finamente dois tipos
de patologias distintas (sentenças paradoxais e sentenças infundadas) salvaguardando
interessantes intuições de uso do termo ‘verdadeiro’ em linguagem natural18. Vejamos
as intuições que Kripke pretende capturar com o conceito de sentença fundada para,
com base nisso, considerarmos o Mentiroso em tal abordagem.
4.1 O aprendiz da verdade e a noção de sentença fundada
Suponhamos uma situação na qual temos a tarefa de explicar a palavra
‘verdadeiro’ para um determinado indivíduo que não a entende. A fim de cumprir nossa
tarefa, estabelecemos como princípio explicativo que só estamos autorizados a afirmar
que uma dada sentença é verdadeira precisamente enquanto estamos em posição de
16
Kripke usa a expressão “abordagem ortodoxa” para se remeter ao tratamento tarskiano.
Na próxima seção vamos fazer um esboço da abordagem kripkeana.
18 Cf. MELO, 2014, para as intuições subjacentes a teoria de Kripke.
17
afirmá-la. Do mesmo modo, só estamos autorizados a afirmar que uma sentença não é
verdadeira se estamos em posição de negá-la19.
Como base nessa explicação, nosso suposto aprendiz terá condições de
entender o que significa atribuir verdade a uma determinada sentença. Desse modo, se
tal indivíduo está em posição de afirmar uma sentença como, por exemplo, (3) “A neve
é branca” ele pode, então, como base no princípio explicativo exposto acima, atribuir
verdade a (3). Caso um suposto indivíduo não conheça a palavra ‘verdade’, pode ainda
ficar confuso em atribuir um valor de verdade a sentenças que contenham a palavra
‘verdade’. Diante disso, seguindo as convenções acima, o sujeito pode ir gradualmente
tornando clara a noção de verdade. Tomemos como exemplo uma sentença envolvendo
a noção de verdade, que ainda não está clara ao suposto aprendiz:
(4)
“Alguma sentença impressa no artigo ‘A concepção semântica da
verdade’ é verdadeira”.
Assim, se (4) não está clara, tampouco estará:
(5)
“(4) é verdadeira”.
Agora, se o nosso aprendiz está disposto a afirmar (3), como supomos acima;
ele poderá afirmar que (3) é verdadeira. Supondo que (3) seja uma das sentenças
impressa no artigo ‘A concepção semântica da verdade’, ele já estará em condições de
afirmar (4) e, por conseguinte, poderá também afirmar (5). Tendo isso em vista, o
aprendiz eventualmente será capaz de atribuir ‘verdade’ a mais e mais enunciados. Com
base nisso, Kripke delineia a noção intuitiva sentença fundada nos seguintes termos:
“nossa sugestão é que sentenças fundadas podem ser caracterizadas como aquelas
que eventualmente tomam um valor de verdade nesse processo” (KRIPKE [1975], p.
701).
As sentenças que não possuem um caminho reconstruível até suas bases são
infundadas e, de acordo com a convenção linguística exposta acima, não podemos
atribuir verdade nem falsidade a elas. Como um exemplo de sentença infundada,
tomemos a sentença do narrador de verdade (Truth-teller).
(N): (N) é verdadeira.
Com base nas intuições expostas acima, (N) nunca será chamada de
“verdadeira”. Mas, nosso suposto aprendiz não pode expressar isto dizendo “(N) não é
verdadeira”. Essa afirmação entraria diretamente em conflito com a estipulação de que
se deve negar que uma sentença é verdadeira precisamente sob a circunstância em
que se negaria a própria sentença (KRIPKE [1975], p. 701). Como se percebe, a noção
de sentença fundada exprime a relação de dependência semântica: o status da
19
Cf. KRIPKE, [1975], p. 701.
afirmação de que uma sentença
é verdadeira depende do status prévio (SP) de .
Para tentar deixar mais claro, considere o narrador de verdade como sendo:
Temos que para afirmar que (N) é verdadeira – isto é,
ou seja, “
SP “
‘ ’ ”. O mesmo ocorre com o Mentiroso
‘ ’ .
‘ ’ – precisamos do SP “N”,
= ¬
‘ ’ ” que, por seu turno, tem como SP “ ”, isto é, “¬
=
‘ ’ : “¬
‘ ’ ” tem como
‘ ’ ”. Temos, portanto, que
a sentença do narrador de verdade e a sentença do Mentiroso são infundadas. Mas,
então, qual é a diferença entre esses dois tipos de sentenças? A resposta para essa
pergunta não é tão direta. Para respondermos isso, vamos precisar da noção de ponto
fixo na abordagem de Kripke.
4.2 Pontos fixos e patologias semânticas
Nesta seção, vamos dar uma breve noção informal de como Kripke lida com as
sentenças infundadas e com as sentenças paradoxais em sua abordagem. Em sua
construção dos pontos fixos, Kripke usa vários recursos formais que não vamos
reproduzir aqui, visto que consideramos que uma ideia geral (sem muitos detalhamentos
técnicos) do procedimento de Kripke já é suficiente para os propósitos deste texto20.
De acordo com as intuições do conceito de sentença fundada, algumas
sentenças serão destituídas de valores de verdade, ou porque ainda não estão em uma
condição de recebê-los ou porque não receberão um valor de verdade e serão
classificadas como infundadas. Tendo em vista que nem todas as sentenças serão
verdadeiras ou falsas, Kripke faz uso de linguagens que possibilitam lacunas (gaps) de
valores de verdade.
Para lidar com isso, Kripke oferece uma interpretação parcial predicado-verdade.
Tomando uma linguagem L, sem predicado-verdade e um domínio
um predicado
é parcialmente definido se e somente se sua interpretação é dada por
um par (S1, S2) de subconjuntos disjuntos de
de .
de uma estrutura,
. S1 é a extensão e S2 é a antiextensão
será verdadeira para os objetos em S1, falsa para os de S2, e indefinida para
aqueles que estão no complemento da união de S1 com S2. Feito isso, Kripke estende a
linguagem L para uma linguagem ℒ, por meio da adição do predicado-verdade cuja
interpretação é parcialmente definida em (S1, S2). Assim, a partir de alguns recursos
formais que não serão expostos aqui, Kripke constrói uma hierarquia de interpretações
na qual, no primeiro nível, todas as expressões de ℒ são totalmente definidas em
,
exceto o predicado-verdade que é indefinido (isso corresponde ao estágio inicial no qual
20
Para uma apresentação formal da teoria de Kripke, ver o artigo de CARDOSO: ‘O Paradoxo do Mentiroso:
uma comparação de hierarquias semânticas’ presente neste volume.
o aprendiz ainda não tem uma noção do termo ‘verdade’). No nível seguinte, avaliando
as sentenças que não envolvem o predicado-verdade – considerando a interpretação
dada pelos outros predicados mais as regras de atribuição de K3 –21 algumas sentenças
podem ser definidas como verdadeiras ou falsas, outras continuam indefinidas (ou seja,
algumas sentenças caem na extensão ou na antiextensão e outras permanecem no
complemento da união da extensão com a antiextensão do predicado-verdade). Assim,
a interpretação do predicado-verdade em um determinado nível é dada no nível
subsequente. Dessa forma, a cada nível, as sentenças às quais foram atribuídos os
predicados ‘verdadeiro’ e ‘falso’ no nível precedente mantêm esses valores e novas
sentenças que eram indefinidas no nível anterior vão recebendo valor no processo até
chegar no ponto fixo. No ponto fixo todas as sentenças da linguagem ℒ que poderiam
entrar na extensão ou na antiextensão do predicado-verdade já terão entrado. Assim, o
valor de verdade, ou a falta dele, de qualquer sentença no ponto fixo permanecerá fixo
para os níveis subsequentes. Assim sendo, a interpretação do predicado-verdade no
ponto fixo coincide com a interpretação do nível subsequente. Portanto, a interpretação
da linguagem ℒ no ponto fixo resulta semanticamente fechada (KRIPKE, [1975], pp. 699705).
Começando com a interpretação do predicado-verdade vazia (isto é, S1 = ∅ e S2
= ∅), tem-se o ponto fixo minimal. Podemos construir outros pontos fixos começando
com uma interpretação do predicado-verdade diferente do vazio.22 Para exemplificar
isso, podemos tomar a sentença do (N) do narrador de verdade. Intuitivamente temos
que (N) não é paradoxal, porém ela resulta infundada na abordagem kripkeana. Caso
começarmos com a interpretação do predicado-verdade vazia, (N) não assumirá um
valor de verdade no ponto fixo. Entretanto, se começarmos a hierarquia colocando (N)
na extensão do predicado-verdade, ela resultará verdadeira no ponto fixo, tendo em
vista que na ascensão dos níveis as sentenças que foram definidas como verdadeiras
ou falsas mantêm seus valores nos níveis subsequentes. Contudo, não é possível
começar com a sentença do mentiroso (P) na interpretação do predicado-verdade sem
cairmos em contradição.
Com isso, Kripke fornece definições formalmente precisas de sentença fundada
e de sentença paradoxal. Uma sentença s será fundada se e somente se possui um
21
Com a lógica trivalente forte de Kleene (conhecido como K3), pode-se atribuir valor às sentenças
compostas a partir da atribuição, ou falta de atribuição, de seus componentes.
22 Kripke define outros pontos fixos, diferentes do minimal, como o ponto fixo maximal e o ponto fixo
intrínseco. Não faremos considerações desses outros pontos fixos, na medida em que isso sairia do escopo
deste texto.
Para uma apresentação das provas da existência dos pontos fixos, ver HECK, R. Kripke’s Theory of Truth,
disponível em: http://www.frege.org/phil1890d/pdf/KripkesTheoryOfTruth.pdf
valor de verdade no ponto fixo minimal, de outra maneira s é infundada ([1975], p. 706).
Uma sentença s será paradoxal se e somente se não possuir um valor de verdade em
nenhum ponto fixo, ou seja, s será paradoxal se não for possível atribuir a s um valor de
verdade consistentemente ([1975], p. 708). Portanto, repetindo uma metáfora comum,
o Mentiroso cai nas brechas entre o verdadeiro e o falso, por se expressar através de
sentenças infundadas; uma vez nas brechas não poderá sair, justamente por se
expressar através de sentenças paradoxais no sentido definido por Kripke.
5. Lacunas de valores de verdade
Diante do que foi exposto, o Mentiroso, na abordagem de Kripke, não é nem
verdadeiro nem falso. Todavia, tal abordagem não pode estabelecer este fato, como
nela não pode resultar verdadeiro que ¬
‘ ’ . Entretanto, parece que é desejável
termos uma teoria em que possamos expresser que a sentença do Mentiroso é um Gap
(nem verdadeira, nem falsa), mas ao introduzirmos um predicado Gap na linguagem
abrimos caminho para uma construção mais forte do Mentiroso (Vingança do
Mentiroso)23. Alguns autores defendem que o fato da linguagem não expressar ¬
‘ ’
24
é um fato que vai além do que o predicado verdade precisa expressar . Soames, por
exemplo, defende que nossas convenções linguísticas não autoriza afirmação, nem a
negação, do Mentiroso. A razão seria justamente a noção de dependência semântica
que, como tentamos mostrar, parece muito razoável do ponto de vista intuitivo.
Como vimos, quando a dependência semântica pode ser rastreada a partir de
uma sentença contendo o predicado verdade por todo caminho de volta para as
sentenças que não contém tal predicado (sentenças de base), a sentença original será
determinada a ser verdadeira ou será determinada a não ser verdadeira. Quando a
dependência não pode ser traçada de volta nessa maneira, as regras para caracterizar
sentenças como verdadeiras, ou como não verdadeiras, irão simplesmente ser
inaplicáveis (SOAMES, 1999, p 176). A proposta de silenciarmos a respeito da sentença
do Mentiroso parece plausível já que na linguagem natural (e linguagens formais
também) é razoável a introdução de termos na linguagem sob convenções25.
Nessa perspectiva, o Mentiroso motiva a existência de lacunas de valores de
verdade. Consideramos que lacunas de valores de verdade não são artifícios inventados
23
Para uma ampla discussão sobre o problema da vingança, ver JC BEALL. Revenge of the Liar: New
Essays on the Paradox. Oxford University, Press. 2007.
24 Cf. BEALL e GLANZBERG, 2014, p. 21.
25 Somes (1999, p164) oferece um exemplo bem elucidativo. O autor estabelece as convenções linguísticas
do termo ‘smidget’ explorando a ideia de predicados parciais.
apenas para evitar os paradoxos, eles existem independente na linguagem. Além disso,
lacunas resultam de um conjunto plausível de instruções para introduzir o predicado
verdade, o caráter ‘gap’ das sentenças infundadas é uma consequência automática, e
não premeditada, dessas instruções. Assim, lacunas fornecem uma explicação de como
podemos rejeitar a afirmação que o Mentiroso é verdadeiro e também rejeitar a
afirmação que ele não é verdadeiro. Além disso, há outros pontos que motivam a
pressuposição que as línguas naturais possuem lacunas de valores de verdade, como,
por exemplo, falhas de denotação, pressuposição, futuros contingentes e erros
categoriais26.
6. Considerações finais
Como apontamos, ao excluir as linguagens semanticamente fechadas, Tarski
formula uma hierarquia de linguagens estratificada em que o predicado-verdade de cada
linguagem estará disponível apenas em outra linguagem mais rica. Todavia, como vimos
através dos argumentos de Kripke, essa estratégia produz alguns resultados que não
se adequam a algumas intuições de uso do termo ‘verdadeiro’ em línguas naturais.
Diferentemente da abordagem de Tarski, a proposta de Kripke usa apenas um
predicado-verdade que cresce até alcançar o ponto fixo, e não vários predicados desse
tipo dispostos em uma hierarquia de linguagens. Outra característica bastante atraente
na abordagem de Kripke é fato dela garante importantes intuições, na medida em que
se aproxima das línguas naturais que, como sabemos, são semanticamente fechadas.
Como vimos, Kripke salvaguarda importantes intuições de uso do predicado ‘verdadeiro’
ao admitir lacunas de valores de verdade. Além disso, outros fenômenos, diferentes do
Mentiroso, motivam o caráter gap das línguas naturais.
Diante disso, podemos nos perguntar se a semântica para linguagens formais
deve levar em conta intuições de uso do predicado ‘verdadeiro’. Talvez alguém poderia
responder que não, alegando que podemos ter objetivos puramente formais. O
problema agora está em entender a expressão “puramente formal”. Vamos conceder,
por um momento, como muitos autores defendem, que Tarski tinha objetivos puramente
formais com sua teoria semântica da verdade27. Diante disso, se levarmos em conta,
por exemplo, as críticas dirigidas ao tratamento tarskiano que dizem que o autor propõe
uma solução puramente formal (não filosófica) ao problema do Mentiroso, parece que
26
Para motivações de lacunas de valores de verdade, ver Blamey, S. Partial Logic. Handbook of
Philosophical Logic — Volume III. Reidel 1986, pp. 275- 285.
27 Esse ponto não é pacífico. Embora alguns autores defendam que Tarski tinha objetivos puramente
formais, consideramos que Tarski pretendia salvaguardar intuições de uso do predicado ‘verdadeiro’ (Cf.
MELO, 2012).
uma solução razoável ao problema deva levar em conta uma teoria da verdade que
salvaguarde as intuições ordinárias do predicado ‘verdadeiro’.
Como Beall e Glanzberg sugerem, podemos colocar duas vias diante dessa
discussão: a via destinada a lidar com contradições (caminho lógico) e a via destinada
a lidar com questões relativas a natureza da verdade (caminho da natureza). Embora
esses dois caminhos possam tomados como independentes, parece que um tratamento
sensato do Mentiroso deve ser feito na intersecção desses dois caminhos. Como os
autores colocam:
Sustentamos que o caminho da natureza não apenas motiva as visões sobre
o caminho lógico; mais do que isso, em alguns aspectos, ele dita as respostas
disponíveis ao paradoxo e as visões disponíveis da lógica da verdade (BEALL
& GLANZBERG, 2008, p. 180).
Diante disso, se considerarmos que a lógica deva capturar as intuições do
predicado ‘verdadeiro’ e se tivermos razões filosóficas suficientes (consideramos que
não há outra via) para supormos que as línguas naturais nos motiva a admitirmos
lacunas de valores de verdade, devemos – para salvaguardar essas intuições – adotar
uma lógica paracompleta? Claro, por outro lado, poderíamos ter razões filosóficas
diferentes. Por exemplo, poderíamos ter razões filosóficas dialeteístas diante do
problema Mentiroso e, se assim for, teríamos que adotar uma lógica paraconsiste (como
foi feito por Priest)? Ao contrário de Priest, consideramos – como tentamos mostrar
neste texto – que uma abordagem que aceita lacunas de valores de verdade diante do
problema do Mentiroso é filosoficamente atraente, mas consideramos plausível, como
faz Priest, adotarmos uma lógica motivada por nossas concepções filosóficas. Além
disso, se levarmos em conta as críticas dirigidas aos tratamentos “não filosóficos”,
consideramos que uma resposta razoável ao Mentiroso deve levar em conta a
interseção entre lógica e natureza da verdade.
Referências
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2007.
O Paradoxo do Mentiroso e Lacunas
de Valores de Verdade
Ederson Safra Melo
Uma simples sentença que airma sua própria falsidade e já estamos diante do Mentiroso: uma sentença que é verdadeira se e somente
se for falsa. O intrigante em tal paradoxo, além da facilidade em estabelecê-lo, consiste no fato de que, a partir de princípios intuitivamente
aceitáveis, chegamos a uma conclusão aparentemente inaceitável. Diante disso, somos levados a questionar se tais princípios (tanto os da lógica
quanto aqueles que supostamente governam o uso do termo ‘verdadeiro’) são, de todo, aceitáveis ou se nossas intuições de uso de ‘verdadeiro’
são, de fato, inconsistentes. Além de suscitar tais questões, neste texto
pretendemos defender que parece razoável manter lacunas de valores
de verdade (truth-value gaps) diante do problema do Mentiroso.
1. O Paradoxo do Mentiroso
A origem do paradoxo do Mentiroso é atribuída ao ilósofo Eubúlides, que viveu na Grécia por volta do século IV a.C. Tal paradoxo foi discutido intensamente no período medieval por lógicos, como
John Buridan, como um dos insolubilium. Contemporaneamente, o
Mentiroso desempenhou um papel crucial no desenvolvimento da lógica contemporânea e hoje é objeto de intensas pesquisas em lógica e
ilosoia. O Mentiroso recebe esse nome da formulação em que um fa-
Carvalho, M.; Braida, C.; Salles, J. C.; Coniglio, M. E. Filosoia da Linguagem e da Lógica.
Coleção XVI Encontro ANPOF: ANPOF, p. 384-402, 2015.
O Paradoxo do Mentiroso e Lacunas de Valores de Verdade
lante airma, direta ou indiretamente, que sua própria airmação é uma
mentira. Uma simples formulação poderia ser a seguinte: “eu estou
mentindo agora” ou, simplesmente, “eu estou mentindo”. Todavia, a
mentira introduz várias questões estranhas, tal como a intenção do falante em enganar, que não são essenciais ao paradoxo1. O crucial no
Mentiroso pode ser mantido pela seguinte sentença (P) que airma sua
própria falsidade.
(P): (P) é falsa.
Pois bem, (P) é verdadeira ou falsa? Vamos supor, inicialmente,
que (P) seja verdadeira; então ela é como ela diz que é, portanto (P) é
falsa. Agora, vamos supor que (P) seja falsa; como ela diz exatamente
isso, a saber, que ela é falsa, temos que (P) é verdadeira. Assim, temos
que (P) é verdadeira se e somente se (P) é falsa. Como toda sentença é
verdadeira ou falsa, temos que (P) é verdadeira ou falsa e, em qualquer
um dos casos, como vimos acima, (P) é verdadeira e falsa. O intrigante
é que podemos chegar nesse resultado, supostamente inaceitável, através da lógica com base em princípios intuitivos tanto da lógica quanto naqueles que supostamente governam o comportamento do termo
‘verdadeiro’.
Vamos ver mais detalhadamente como isso pode se dá. Começamos com o princípio que tem sido amplamente tomado como aquele
que supostamente governa o comportamento do termo ‘verdadeiro’.
Para tanto, recorremos aos trabalhos de Tarski. Em sua teoria da verdade, Tarski queria capturar as intuições clássicas do conceito de verdade, isto é, aquelas intuições que são expressas pela máxima aristotélica:
Dizer do que é que não é, ou do que não é que é, é falso, enquanto
que dizer do que é que é, ou do que não é que não é, é verdadeiro. (ARISTÓTELES, Metaphysica, livro G 1011b).
Tarski toma uma sentença qualquer, como ‘a neve é branca’, e
pergunta sob quais condições essa sentença é verdadeira. Se tomarmos
por base a concepção clássica, diríamos que a sentença destacada acima é verdadeira se a neve é branca e falsa caso a neve não seja branca.
Desse modo, temos que a sentença ‘a neve é branca’ é verdadeira se
e somente se a neve é branca. A frase “a neve é branca” (entre aspas),
1
Cf. BARWISE & ETCHEMENDY, 1987, p. 3.
385
Ederson Safra Melo
que ocorre do lado esquerdo da equivalência, é um nome da sentença
‘a neve é branca’, que ocorre do lado direito da equivalência. Diante
disso, Tarski expõe seu famoso esquema:
é verdadeira se e somente se
(T)
Onde
substitui alguma sentença na linguagem e X substitui
o nome de A
Nem o esquema (T), nem alguma instância particular dele, é considerado uma deinição de verdade. Tarski toma esse esquema para
determinar o critério de adequação material que, junto com os critérios de correção formal, são usados para construir sua deinição de
verdade2. Uma deinição de verdade é adequada materialmente se ela
implica logicamente todas as instâncias do esquema (T).
Parece razoável aceitar que uma teoria que pretenda capturar
as intuições ordinárias do predicado verdade teria que, para qualquer
da linguagem,
implica que
é verdadeira e vice e
sentença
e nomes para
versa. Desse modo, se temos um predicado verdade
,
as sentenças da linguagem (para uma determinada sentença
é o nome de
), temos que o predicado verdade se comporta do
temos
e de
temos
.
seguinte modo: de
Como sabemos, a autorreferência é um traço característico das
línguas naturais. Podemos, por exemplo, usar o português e dizer coisas tais como ‘este texto está escrito em português’, ‘esta sentença tem
cinco palavras’, ‘esta sentença não é verdadeira’ e por aí vai. Nas linguagens formais também temos meios para produzir autorreferência,
por exemplo, via diagonalização3. Com isso, podemos tomar uma senque diz de si mesma que ela não é verdadeira
tença
. Com isso e com mais algumas regras bem assentadas
nos princípios da lógica clássica, podemos construir o Mentiroso em
uma linguagem formal. Vamos colocar, então, os ingredientes que vão
possibilitar chegar a contradição a partir da sentença do Mentiroso.
2
3
Na teoria da verdade de Tarski, enquanto a condição de adequação material é colocada para
salvaguardar a intuição expressa pela máxima aristotélica, as condições de correção formal
são postas para garantir precisão e evitar paradoxos semânticos como o do Mentiroso. Na
próxima seção, vamos evidenciar as condições de correção formal colocadas por Tarski para
evitar o Mentiroso.
Cf. HECK, 2012.
386
O Paradoxo do Mentiroso e Lacunas de Valores de Verdade
tão
(T)
.
Terceiro excluído (TE):
Introdução da conjunção (∧+): Se
, en-
e
Princípio da disjunção (∨-): Se
, então
e
Com base nisso, conseguimos o argumento de que a sentença
leva a contradição4:
Hipótese
2; (T)
3; Def.
TE
2,4; ∧+
Hipótese
6; Def.
7; (T)
6,8; ∧+
1- 9; ∨-
Existem várias versões do Mentiroso, usando princípios diferentes5. Neste ponto, queremos apenas destacar que de princípios intuitivamente aceitáveis, seguindo leis da lógica clássica, chegamos a
uma situação supostamente inaceitável. Essa situação ica bastante clara considerando o seguinte entedimento de paradoxos de Sainsbury:
“uma conclusão aparentemente inaceitável derivada através de um raciocínio aparentemente aceitável a partir de premissas aparentemente
aceitáveis” (SAINSBURY, 2009, p.1). Tomando essa noção de paradoxo, temos que os princípios usados na derivação do Mentiroso não são
de todo aceitáveis ou a conclusão não é de fato inaceitável. Um teórico de posição dialeteísta, como Priest (1984), icaria com essa última
possibilidade. Priest usa o Mentiroso como uma testemunha para defender sua posição metafísica dialeteísta de que há contradições reais.
4
5
A seguinte prova é uma adaptação da prova de Beall e Glanzberg presente no verbete ‘Liar
Paradox’ da Stanford Encyclopedia of Philosophy (Cf. BEALL & GLANZBERG, 2014, p. 11, versão PDF).
Para outras versões ver, por exemplo, BURGESS & BURGESS, 2011, p.127 e HECK, 2012, p. 36.
387
Ederson Safra Melo
Para Priest não há problemas em airmar uma contradição (passo 10
da derivação acima). O problemático, segundo o autor, é acatar que de
uma contradição tudo se segue (famoso princípio clássico da explosão:
)6. Consideramos que um teórico de posição
dialeteísta terá o problema de oferecer respostas ilosoicamente razoáveis para aceitar que existem contradições reais e não somente acatar o
Mentiroso para defender sua posição metafísica. Há várias discussões
sobre o dialeteísmo, não iremos tratar de tais discussões aqui, na medida que isso sairia do escopo do presente trabalho7. Voltamos, então,
a nossa discussão considerando, na próxima seção, o diagnóstico clássico do Mentiroso apresentado por Tarski.
2. A abordagem tarskiana:
Mentiroso e fechamento semântico
Nesta seção iremos apenas evidenciar a análise de Tarski diante
do Mentiroso que serviu de base para a construção de teoria semântica da verdade apresentada no seu célebre artigo O conceito de verdade
nas linguagens formalizadas. Diferentemente da posição mencionada no
inal na última seção, Tarski não acata o Mentiroso. Ao considerar as
atitudes diante do problema, Tarski deixa claro que que não irá se reconciliar com as antinomias semânticas como a do Mentiroso.
Pessoalmente, como um lógico, não posso reconciliar-me com
as antinomias como um elemento permanente de nosso sistema de conhecimento; entretanto, não estou disposto a tratá-las
de forma supericial. O aparecimento de uma antinomia é, para
mim, sintoma de uma doença. Começando com premissas que
parecem intuitivamente óbvias, recorrendo a formas de raciocí6
7
Priest (1984) desenvolve uma lógica paraconsistente chamada LP (Lógica do Paradoxo) em
que o princípio da explosão não vale. Assim, a presença de uma contradição não trivializa
o sistema. Todavia, o uso de LP para os problemas que Priest tinha em mente não está isento de problemas. Uma crítica bastante interessante foi desenvolvida por Slater no artigo
‘Paraconsistent logics?’. Em tal artigo, Slater mostra que aquilo que Priest considera uma
contradição não é, a rigor, uma contradição (cf. Slater, B. H. Paraconsistent logics? Journal of
Philosophical Logic, 24, 1995. pp. 451–454)
Para uma discussão ampla sobre o dialeteiísmo, ver Graham PRIEST, JC BEALL, and Bradley Armour-GARB (eds.), The Law of Non-Contradiction: New Philosophical Essays, Oxford
University Press, 2004. Essa coletânea reúne tanto artigos a favor da tese dialeteísta quanto
artigos que criticam tal posição.
388
O Paradoxo do Mentiroso e Lacunas de Valores de Verdade
nio que parecem intuitivamente certas uma antinomia nos leva
ao sem-sentido, a uma contradição. Sempre que isso acontece,
temos que submeter nossos modos de pensar a uma completa
revisão: rejeitar algumas premissas nas quais acreditávamos ou
melhorar algumas das formas de argumentação que vínhamos
usando (TARSKI, 2007, [1969], p.214).
Dito isso, Tarski diz que devemos analisar as características da
linguagem comum que constitui a “real fonte” do paradoxo do Mentiroso8. Ao analisar tal fenômeno nas linguagens naturais, Tarski conclui que a contradição surge de: aceitarmos as leis da lógica e do fato
da linguagem ordinária ser semanticamente fechada, isto é, a linguagem,
além de conter predicados semânticos, como ‘verdadeiro’ e ‘falso’,
contém meios para se referir a suas próprias expressões9. Sendo assim,
na perspectiva de Tarski, se quisermos evitar o paradoxo, ou temos
que negar as leis da lógica, coisa que Tarski não pretende fazer, ou
rejeitamos as linguagens semanticamente fechadas como objeto das
deinições de verdade, o que, na perspectiva do autor, deve ser o procedimento adequado10.
Frente a isso, Tarski elabora as seguintes condições de adequação formal: (I) A linguagem-objeto L (linguagem para qual se deine
o predicado verdade) deve ser semanticamente aberta, isto é, L não
deve conter predicados semânticos, tais como ‘verdadeiro’ e ‘falso’,
que se referem às suas próprias expressões. Devido a essa condição
de adequação, foi preciso estipular a seguinte condição de adequação formal: (II) A deinição de verdade em L terá de ser dada em
uma metalinguagem M (linguagem na qual a deinição de verdade
é construída). Visto que pela condição (I), a linguagem não pode ser
autorreferente, foi necessário que Tarski estipulasse essa separação
entre linguagem-objeto e metalinguagem.
Respeitando tais condições de adequação formal, os paradoxos
semânticos se dissolvem. Por exemplo, a sentença do Mentiroso ‘(P) é
8
9
10
Cf. TARSKI, 2007, [1969], p.217.
“A análise das antinomias mencionadas mostra que os conceitos semânticos simplesmente
não têm lugar na linguagem à qual eles se relacionam, que a linguagem que contém sua
própria semântica, e na qual valem as leis usuais da lógica, inevitavelmente deve ser inconsistente” (TARSKI, 2007 [1936], p.150).
Cf. TARSKI, 2007, [1944], p.168-169.
389
Ederson Safra Melo
falsa’ não pode ser construída, segundo os critérios tarskianos. A rigor,
o que temos é apenas uma espécie de abreviação para ‘(P) é falsa-em-L’ que, por sua vez, deve ser uma sentença de uma metalinguagem
M da deinição, pois ela contém um predicado expressando uma propriedade semântica de uma expressão de L, e a linguagem-objeto, pela
cláusula (I), não possui tais predicados. Sendo uma expressão da metalinguagem M, ela não pode ser falsa na linguagem objeto L, porque
ela não está nessa linguagem. Desse modo, na abordagem tarskiana,
equivalente a
não é sintaticaqualquer sentença
mente bem formada. Portanto, como não temos meios legítimos para
formar a sentença do Mentiroso, na abordagem tarskiana, não há paradoxo do Mentiroso11.
3. Críticas ao tratamento tarskiano:
O Mentiroso e a noção de verdade.
Embora a teoria de Tarski tenha sido muito bem recebida e se
tornado prática habitual em lógica, várias críticas foram feitas a ela
desde o seu surgimento. Aqui, não temos por objetivo fazer uma discussão detalhada a respeito de tais críticas. Nesta seção, vamos nos
concentrar nas críticas que dizem respeito à intuição do termo verdade
– sobretudo aquelas oferecidas por Kripke – para abrirmos o caminho
para as discussões que serão traçadas na próxima seção.
O procedimento de Tarski para evitar o Mentiroso, através do artifício da exclusão do fecho semântico, tem recebido críticas por sua ‘artiicialidade’12. Tarski não tem uma justiicativa independente para postular
a abertura semântica, exceto para resolver o problema com os paradoxos
semânticos. Diante disso, temos que a abordagem tarskiana oferece uma
solução formal, mas não ilosóica ao problema do Mentiroso13.
Além disso, os ilósofos têm suspeitado da abordagem tarskiana
como uma análise de nossas intuições de uso do termo verdade14. Através do artifício tarskiano para lidar com o Mentiroso é formada uma
11
12
13
14
Para uma apresentação acessível da teoria da verdade de Tarski, ver BURGESS and BURGESS, 2011, cap. 2; SOAMES, 1999, cap. 3.
Cf. BARWISE e ETCHEMENDY, 1987, p. 6; HAACK, 2002, p.196.
HAACK, 2002, p.196.
Cf. KRIPKE [1975], p. 694-695.
390
O Paradoxo do Mentiroso e Lacunas de Valores de Verdade
hierarquia de linguagens L0, L1, L2, L3, ..., em que o predicado verdade
de cada Ln só estará disponível na linguagem seguinte Ln+1. Nessa hierarquia, haveria diferentes predicados ‘verdade’ subscritos com o nível da sentença sendo determinado gramaticalmente pelos diferentes
tipos de índices subscritos. Todavia, Kripke destaca que nossa língua
contém apenas uma palavra ‘verdade’ e não uma sequência de expressões distintas, ‘verdaden’.
Kripke reconhece que Tarski não responderia essa objeção justamente por ter dispensado as línguas naturais como um todo. Porém,
Kripke ([1975], p. 695) considera uma resposta contra a sua objeção de
um suposto defensor de posição tarskiana que poderia replicar dizendo que “a noção de verdade é sistematicamente ambígua: seu nível
em uma ocorrência particular é determinado pelo contexto de proferimento e pelas intenções do falante”. Se imaginarmos que a palavra
‘verdadeiro’ em uma determinada língua é ambígua, com predicados
subscritos representando seus diferentes possíveis signiicados, então
podemos tomar o signiicado de um predicado como um caso de homonímia. Nessa visão, efetivamente o português, ou qualquer outra
língua natural, conteria ininitamente muitos predicados ‘verdade1’,
‘verdade2’,... com diferentes signiicados. Aqui, à maneira de Tarski,
o nível de qualquer sentença seria determinado gramaticalmente pelo
predicado que ela contém. Um proferimento pode então ser atribuído
a uma sentença com base no predicado subscrito que o falante pretende estar usando.
Na perspectiva de Kripke, essa proposta de inspiração ortodoxa
não seria viável, já que não é possível que um falante implicitamente
correlacione o predicado-verdade usado a um nível apropriado. Isso é
assim devido ao fato de que, em diversas circunstâncias, o nível que se
deve atribuir ao predicado verdade usado no proferimento de uma determinada sentença depende de fatos que o falante pode não conhecer.
Tomemos o mesmo exemplo usado por Kripke para defender essa ideia:
(1) Todas as declarações de Nixon sobre Watergate são falsas.
Segundo Kripke, ordinariamente, o falante não tem nenhuma
maneira de conhecer os níveis dos proferimentos relevantes de Nixon.
391
Ederson Safra Melo
Desse modo, por exemplo, Nixon poderia ter dito: “Dean é um mentiroso” ou “Haldeman disse a verdade quando disse que Dean mentiu”.
O nível desses proferimentos pode ainda depender dos enunciados de
Dean, e assim por diante. Com esse exemplo, Kripke evidencia que
se o falante é obrigado a atribuir de antemão um nível a (1), ele pode
não estar seguro acerca de quão alto deve ser o nível de sua atribuição.
Assim, se o falante, ignorando o nível dos proferimentos de Nixon,
escolhe um nível muito baixo, o seu proferimento de (1) falha em seu
propósito. Com base nisso, Kripke argumenta que o nível de (1) não
depende apenas de sua forma e, também, não poderia ser atribuído
antecipadamente pelo falante, e sim que o seu nível depende de fatos
empíricos relativos aos proferimentos de Nixon. Nas palavras de Kripke, “isso signiica que, em algum sentido, deve se permitir que um
enunciado encontre seu próprio nível, alto o suiciente para dizer o que
se propõe a dizer. Não deve ter um nível intrínseco ixado antecipadamente, como na hierarquia de Tarski” (KRIPKE, [1975], p. 696).
Kripke destaca que há outra situação que é ainda mais difícil de
acomodar dentro dos limites da abordagem tarskiana. Em determinadas circunstâncias, é logicamente impossível atribuir consistentemente
níveis às sentenças relevantes. Novamente com os exemplos de Kripke, suponhamos a circunstância na qual Dean airma (1) enquanto
que Nixon, por sua vez, airma (2):
(1) Todas as declarações de Nixon sobre Watergate são falsas.
(2) Tudo que Dean disse sobre Watergate é falso.
Na circunstância suposta, Dean ao airmar a sentença abrangente (1) inclui em seu escopo a airmação (2), por ela ser uma das declarações de Nixon sobre Watergate. Nixon, por seu turno, ao airmar a
sentença (2), inclui (1) como uma declaração de Dean sobre Watergate.
Desse modo, na circunstância suposta, as sentenças (1) e (2) estariam
em um nível metalinguístico uma em relação à outra, o que destrói
a possibilidade da distinção entre linguagem-objeto e metalinguagem
como uma solução do Mentiroso. Diante disso, Kripke destaca que em
uma abordagem, como a de Tarski, que pretende atribuir níveis intrínsecos aos enunciados, de modo que um enunciado de determinado
392
O Paradoxo do Mentiroso e Lacunas de Valores de Verdade
nível possa apenas falar da verdade ou falsidade dos níveis inferiores,
é obviamente impossível que as airmações (1) e (2) tenham êxito. Entretanto, Kripke atenta ao fato que intuitivamente podemos com frequência atribuir a tais airmações valores de verdade não ambíguos e
conclui que “parece difícil acomodar estas intuições dentro dos limites
da abordagem ortodoxa” (KRIPKE, [1975], p. 697)15.
Consideramos que as críticas mais incisivas à abordagem tarskiana são aquelas que advêm do tratamento oferecido por Kripke ao
Mentiroso em linguagens semanticamente fechadas. Barwise e Etchemendy dizem que Kripke, ao fornecer uma teoria para as linguagens
semanticamente fechadas, convenceu as pessoas que o problema apresentado pelo Mentiroso nas linguagens ordinárias não era intrinsecamente intratável16. Segundo esses teóricos, o tratamento tarskiano não
oferece um diagnóstico preciso ao paradoxo do Mentiroso. Nos termos
de Barwise e Etchemendy: “o tratamento de Tarski do paradoxo não
chega ao coração do problema, ele não fornece um diagnóstico genuíno ao paradoxo” (BARWISE e ETCHEMENDY, 1987, p. 7).
4. Abordagem kripkeana: Mentiroso
e lacunas de valores de verdade
Em seu inluente artigo Outline of a theory of truth, Saul Kripke
oferece um tratamento alternativo ao de Tarski possibilitando uma teoria da verdade para as linguagens semanticamente fechadas. Para tanto, Kripke faz uso de lacunas de valores de verdade (truth-value gaps).
Com isso, o autor consegue separar inamente dois tipos de patologias
distintas (sentenças paradoxais e sentenças infundadas) salvaguardando interessantes intuições de uso do termo ‘verdadeiro’ em linguagem
natural17. Vejamos as intuições que Kripke pretende capturar com o
conceito de sentença fundada para, com base nisso, considerarmos o
Mentiroso em tal abordagem.
15
16
17
Kripke usa a expressão “abordagem ortodoxa” para se remeter ao tratamento tarskiano.
Na próxima seção vamos fazer um esboço da abordagem kripkeana.
Cf. MELO, 2014, para as intuições subjacentes a teoria de Kripke.
393
Ederson Safra Melo
4.1 O aprendiz da verdade e a noção de sentença fundada
Suponhamos uma situação na qual temos a tarefa de explicar a
palavra ‘verdadeiro’ para um determinado indivíduo que não a entende. A im de cumprir nossa tarefa, estabelecemos como princípio explicativo que só estamos autorizados a airmar que uma dada sentença
é verdadeira precisamente enquanto estamos em posição de airmá-la.
Do mesmo modo, só estamos autorizados a airmar que uma sentença
não é verdadeira se estamos em posição de negá-la18.
Como base nessa explicação, nosso suposto aprendiz terá condições de entender o que signiica atribuir verdade a uma determinada
sentença. Desse modo, se tal indivíduo está em posição de airmar uma
sentença como, por exemplo, (3) “A neve é branca” ele pode, então,
como base no princípio explicativo exposto acima, atribuir verdade a
(3). Caso um suposto indivíduo não conheça a palavra ‘verdade’, pode
ainda icar confuso em atribuir um valor de verdade a sentenças que
contenham a palavra ‘verdade’. Diante disso, seguindo as convenções
acima, o sujeito pode ir gradualmente tornando clara a noção de verdade. Tomemos como exemplo uma sentença envolvendo a noção de
verdade, que ainda não está clara ao suposto aprendiz:
(4) “Alguma sentença impressa no artigo ‘A concepção semântica da verdade’ é verdadeira”.
Assim, se (4) não está clara, tampouco estará:
(5) “(4) é verdadeira”.
Agora, se o nosso aprendiz está disposto a airmar (3), como supomos acima; ele poderá airmar que (3) é verdadeira. Supondo que (3)
seja uma das sentenças impressa no artigo ‘A concepção semântica da
verdade’, ele já estará em condições de airmar (4) e, por conseguinte,
poderá também airmar (5). Tendo isso em vista, o aprendiz eventualmente será capaz de atribuir ‘verdade’ a mais e mais enunciados. Com
base nisso, Kripke delineia a noção intuitiva sentença fundada nos seguintes termos: “nossa sugestão é que sentenças fundadas podem ser
caracterizadas como aquelas que eventualmente tomam um valor de
verdade nesse processo” (KRIPKE [1975], p. 701).
18
394
Cf. KRIPKE, [1975], p. 701.
O Paradoxo do Mentiroso e Lacunas de Valores de Verdade
As sentenças que não possuem um caminho reconstruível até
suas bases são infundadas e, de acordo com a convenção linguística
exposta acima, não podemos atribuir verdade nem falsidade a elas.
Como um exemplo de sentença infundada, tomemos a sentença do
narrador de verdade (Truth-teller).
(N): (N) é verdadeira.
Com base nas intuições expostas acima, (N) nunca será chamada
de “verdadeira”. Mas, nosso suposto aprendiz não pode expressar isto
dizendo “(N) não é verdadeira”. Essa airmação entraria diretamente
em conlito com a estipulação de que se deve negar que uma sentença é verdadeira precisamente sob a circunstância em que se negaria a
própria sentença (KRIPKE [1975], p. 701). Como se percebe, a noção
de sentença fundada exprime a relação de dependência semântica: o
é verdadeira depende
status da airmação de que uma sentença
Para tentar deixar mais claro, considere
do status prévio (SP) de
. Temos que
o narrador de verdade como sendo:
– precisamos
para airmar que (N) é verdadeira – isto é,
”. O mesmo ocorre com o Mentirodo SP “N”, ou seja, “
:“
” tem como SP “
so
” que, por seu turno, tem como SP “ ”, isto é, “
”. Temos, portanto, que a sentença do narrador de verdade e a sentença do Mentiroso são infundadas. Mas, então, qual é a diferença entre
esses dois tipos de sentenças? A resposta para essa pergunta não é tão
direta. Para respondermos isso, vamos precisar da noção de ponto ixo
na abordagem de Kripke.
4.2 Pontos ixos e patologias semânticas
Nesta seção, vamos dar uma breve noção informal de como Kripke
lida com as sentenças infundadas e com as sentenças paradoxais em sua
abordagem. Em sua construção dos pontos ixos, Kripke usa vários
recursos formais que não vamos reproduzir aqui, visto que consideramos que uma ideia geral (sem muitos detalhamentos técnicos) do
procedimento de Kripke já é suiciente para os propósitos deste texto19.
19
Para uma apresentação formal da teoria de Kripke, ver o artigo de CARDOSO: ‘O Paradoxo
do Mentiroso: uma comparação de hierarquias semânticas’ presente neste volume.
395
Ederson Safra Melo
De acordo com as intuições do conceito de sentença fundada, algumas sentenças serão destituídas de valores de verdade, ou porque ainda
não estão em uma condição de recebê-los ou porque não receberão um
valor de verdade e serão classiicadas como infundadas. Tendo em vista
que nem todas as sentenças serão verdadeiras ou falsas, Kripke faz uso
de linguagens que possibilitam lacunas (gaps) de valores de verdade.
Para lidar com isso, Kripke oferece uma interpretação parcial
predicado-verdade. Tomando uma linguagem L, sem predicado-verde uma estrutura, um predicado
é parcialdade e um domínio
mente deinido se e somente se sua interpretação é dada por um par (S1,
. S1 é a extensão e S2 é a antiextensão
S2) de subconjuntos disjuntos de
será verdadeira para os objetos em S1, falsa para os de S2, e
de .
indeinida para aqueles que estão no complemento da união de S1 com
,
S2. Feito isso, Kripke estende a linguagem L para uma linguagem
por meio da adição do predicado-verdade cuja interpretação é parcialmente deinida em (S1, S2). Assim, a partir de alguns recursos formais
que não serão expostos aqui, Kripke constrói uma hierarquia de insão
terpretações na qual, no primeiro nível, todas as expressões de
, exceto o predicado-verdade que é indeitotalmente deinidas em
nido (isso corresponde ao estágio inicial no qual o aprendiz ainda não
tem uma noção do termo ‘verdade’). No nível seguinte, avaliando as
sentenças que não envolvem o predicado-verdade – considerando a interpretação dada pelos outros predicados mais as regras de atribuição
de K3 –20 algumas sentenças podem ser deinidas como verdadeiras ou
falsas, outras continuam indeinidas (ou seja, algumas sentenças caem
na extensão ou na antiextensão e outras permanecem no complemento
da união da extensão com a antiextensão do predicado-verdade). Assim, a interpretação do predicado-verdade em um determinado nível
é dada no nível subsequente. Dessa forma, a cada nível, as sentenças às
quais foram atribuídos os predicados ‘verdadeiro’ e ‘falso’ no nível precedente mantêm esses valores e novas sentenças que eram indeinidas
no nível anterior vão recebendo valor no processo até chegar no ponto
que poderiam
ixo. No ponto ixo todas as sentenças da linguagem
entrar na extensão ou na antiextensão do predicado-verdade já terão
entrado. Assim, o valor de verdade, ou a falta dele, de qualquer senten20
Com a lógica trivalente forte de Kleene (conhecido como K3), pode-se atribuir valor às sentenças compostas a partir da atribuição, ou falta de atribuição, de seus componentes.
396
O Paradoxo do Mentiroso e Lacunas de Valores de Verdade
ça no ponto ixo permanecerá ixo para os níveis subsequentes. Assim
sendo, a interpretação do predicado-verdade no ponto ixo coincide
com a interpretação do nível subsequente. Portanto, a interpretação da
no ponto ixo resulta semanticamente fechada (KRIPKE,
linguagem
[1975], pp. 699-705).
Começando com a interpretação do predicado-verdade vazia
e S2 = ), tem-se o ponto ixo minimal. Podemos construir
(isto é, S1 =
outros pontos ixos começando com uma interpretação do predicado-verdade diferente do vazio.21 Para exempliicar isso, podemos tomar a
sentença do (N) do narrador de verdade. Intuitivamente temos que (N)
não é paradoxal, porém ela resulta infundada na abordagem kripkeana. Caso começarmos com a interpretação do predicado-verdade vazia, (N) não assumirá um valor de verdade no ponto ixo. Entretanto,
se começarmos a hierarquia colocando (N) na extensão do predicado-verdade, ela resultará verdadeira no ponto ixo, tendo em vista que na
ascensão dos níveis as sentenças que foram deinidas como verdadeiras ou falsas mantêm seus valores nos níveis subsequentes. Contudo,
não é possível começar com a sentença do mentiroso (P) na interpretação do predicado-verdade sem cairmos em contradição.
Com isso, Kripke fornece deinições formalmente precisas de
sentença fundada e de sentença paradoxal. Uma sentença s será fundada se e somente se possui um valor de verdade no ponto ixo minimal,
de outra maneira s é infundada ([1975], p. 706). Uma sentença s será
paradoxal se e somente se não possuir um valor de verdade em nenhum
ponto ixo, ou seja, s será paradoxal se não for possível atribuir a s um
valor de verdade consistentemente ([1975], p. 708). Portanto, repetindo
uma metáfora comum, o Mentiroso cai nas brechas entre o verdadeiro
e o falso, por se expressar através de sentenças infundadas; uma vez
nas brechas não poderá sair, justamente por se expressar através de
sentenças paradoxais no sentido deinido por Kripke.
21
Kripke deine outros pontos ixos, diferentes do minimal, como o ponto ixo maximal e o
ponto ixo intrínseco. Não faremos considerações desses outros pontos ixos, na medida em
que isso sairia do escopo deste texto.
Para uma apresentação das provas da existência dos pontos ixos, ver HECK, R. Kripke’s Theory
of Truth, disponível em: htp://www.frege.org/phil1890d/pdf/KripkesTheoryOfTruth.pdf
397
Ederson Safra Melo
5. Lacunas de valores de verdade
Diante do que foi exposto, o Mentiroso, na abordagem de Kripke, não é nem verdadeiro nem falso. Todavia, tal abordagem não
pode estabelecer este fato, como nela não pode resultar verdadeiro
. Entretanto, parece que é desejável termos uma
que
teoria em que possamos expresser que a sentença do Mentiroso é um
Gap (nem verdadeira, nem falsa), mas ao introduzirmos um predicado
Gap na linguagem abrimos caminho para uma construção mais forte do Mentiroso (Vingança do Mentiroso)22. Alguns autores defendem
é um fato que
que o fato da linguagem não expressar
23
vai além do que o predicado verdade precisa expressar . Soames, por
exemplo, defende que nossas convenções linguísticas não autoriza
airmação, nem a negação, do Mentiroso. A razão seria justamente a
noção de dependência semântica que, como tentamos mostrar, parece
muito razoável do ponto de vista intuitivo.
Como vimos, quando a dependência semântica pode ser rastreada a partir de uma sentença contendo o predicado verdade por todo
caminho de volta para as sentenças que não contém tal predicado (sentenças de base), a sentença original será determinada a ser verdadeira
ou será determinada a não ser verdadeira. Quando a dependência não
pode ser traçada de volta nessa maneira, as regras para caracterizar
sentenças como verdadeiras, ou como não verdadeiras, irão simplesmente ser inaplicáveis (SOAMES, 1999, p 176). A proposta de silenciarmos a respeito da sentença do Mentiroso parece plausível já que na
linguagem natural (e linguagens formais também) é razoável a introdução de termos na linguagem sob convenções24.
Nessa perspectiva, o Mentiroso motiva a existência de lacunas
de valores de verdade. Consideramos que lacunas de valores de verdade não são artifícios inventados apenas para evitar os paradoxos, eles
existem independente na linguagem. Além disso, lacunas resultam
de um conjunto plausível de instruções para introduzir o predicado
22
23
24
Para uma ampla discussão sobre o problema da vingança, ver JC BEALL. Revenge of the Liar:
New Essays on the Paradox. Oxford University, Press. 2007.
Cf. BEALL e GLANZBERG, 2014, p. 21.
Somes (1999, p164) oferece um exemplo bem elucidativo. O autor estabelece as convenções
linguísticas do termo ‘smidget’ explorando a ideia de predicados parciais.
398
O Paradoxo do Mentiroso e Lacunas de Valores de Verdade
verdade, o caráter ‘gap’ das sentenças infundadas é uma consequência automática, e não premeditada, dessas instruções. Assim, lacunas
fornecem uma explicação de como podemos rejeitar a airmação que
o Mentiroso é verdadeiro e também rejeitar a airmação que ele não é
verdadeiro. Além disso, há outros pontos que motivam a pressuposição que as línguas naturais possuem lacunas de valores de verdade,
como, por exemplo, falhas de denotação, pressuposição, futuros contingentes e erros categoriais25.
6. Considerações finais
Como apontamos, ao excluir as linguagens semanticamente fechadas, Tarski formula uma hierarquia de linguagens estratiicada em
que o predicado-verdade de cada linguagem estará disponível apenas
em outra linguagem mais rica. Todavia, como vimos através dos argumentos de Kripke, essa estratégia produz alguns resultados que não se
adequam a algumas intuições de uso do termo ‘verdadeiro’ em línguas
naturais. Diferentemente da abordagem de Tarski, a proposta de Kripke usa apenas um predicado-verdade que cresce até alcançar o ponto
ixo, e não vários predicados desse tipo dispostos em uma hierarquia
de linguagens. Outra característica bastante atraente na abordagem de
Kripke é fato dela garante importantes intuições, na medida em que
se aproxima das línguas naturais que, como sabemos, são semanticamente fechadas. Como vimos, Kripke salvaguarda importantes intuições de uso do predicado ‘verdadeiro’ ao admitir lacunas de valores
de verdade. Além disso, outros fenômenos, diferentes do Mentiroso,
motivam o caráter gap das línguas naturais.
Diante disso, podemos nos perguntar se a semântica para linguagens formais deve levar em conta intuições de uso do predicado
‘verdadeiro’. Talvez alguém poderia responder que não, alegando que
podemos ter objetivos puramente formais. O problema agora está em
entender a expressão “puramente formal”. Vamos conceder, por um
momento, como muitos autores defendem, que Tarski tinha objetivos
25
Para motivações de lacunas de valores de verdade, ver Blamey, S. Partial Logic. Handbook
of Philosophical Logic — Volume III. Reidel 1986, pp. 275- 285.
399
Ederson Safra Melo
puramente formais com sua teoria semântica da verdade26. Diante disso,
se levarmos em conta, por exemplo, as críticas dirigidas ao tratamento
tarskiano que dizem que o autor propõe uma solução puramente formal (não ilosóica) ao problema do Mentiroso, parece que uma solução
razoável ao problema deva levar em conta uma teoria da verdade que
salvaguarde as intuições ordinárias do predicado ‘verdadeiro’.
Como Beall e Glanzberg sugerem, podemos colocar duas vias
diante dessa discussão: a via destinada a lidar com contradições (caminho lógico) e a via destinada a lidar com questões relativas a natureza
da verdade (caminho da natureza). Embora esses dois caminhos possam tomados como independentes, parece que um tratamento sensato
do Mentiroso deve ser feito na intersecção desses dois caminhos. Como
os autores colocam:
Sustentamos que o caminho da natureza não apenas motiva as visões sobre o caminho lógico; mais do que isso, em alguns aspectos,
ele dita as respostas disponíveis ao paradoxo e as visões disponíveis da lógica da verdade (BEALL & GLANZBERG, 2008, p. 180).
Diante disso, se considerarmos que a lógica deva capturar as intuições do predicado ‘verdadeiro’ e se tivermos razões ilosóicas suicientes (consideramos que não há outra via) para supormos que as línguas
naturais nos motiva a admitirmos lacunas de valores de verdade, devemos – para salvaguardar essas intuições – adotar uma lógica paracompleta? Claro, por outro lado, poderíamos ter razões ilosóicas diferentes. Por exemplo, poderíamos ter razões ilosóicas dialeteístas diante
do problema Mentiroso e, se assim for, teríamos que adotar uma lógica
paraconsiste (como foi feito por Priest)? Ao contrário de Priest, consideramos – como tentamos mostrar neste texto – que uma abordagem que
aceita lacunas de valores de verdade diante do problema do Mentiroso
é ilosoicamente atraente, mas consideramos plausível, como faz Priest,
adotarmos uma lógica motivada por nossas concepções ilosóicas. Além
disso, se levarmos em conta as críticas dirigidas aos tratamentos “não ilosóicos”, consideramos que uma resposta razoável ao Mentiroso deve
levar em conta a interseção entre lógica e natureza da verdade.
26
Esse ponto não é pacíico. Embora alguns autores defendam que Tarski tinha objetivos puramente formais, consideramos que Tarski pretendia salvaguardar intuições de uso do predicado ‘verdadeiro’ (Cf. MELO, 2012).
400
O Paradoxo do Mentiroso e Lacunas de Valores de Verdade
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Ederson Safra Melo
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