Campinas-SP, (34.1): pp. 235-248, Jan./Jun. 2014
O nOvO realismO italianO: de
PasOlini a savianO
Giuliana Benvenuti
(Universidade de Bolonha)
Per Pasolini l’arte era un mezzo di comunicazione
morale e politica, lo stile era un strumento, a
volte provvisorio e semilavorato, per trasmettere
un messaggio e dialogare con i contemporanei.
Alfonso Berardinelli
Já há algum tempo vem se desenvolvendo na Itália um debate sobre o
“retorno ao real” por alguns escritores, porta-vozes da “fome de realidade”
que caracterizaria a literatura não somente italiana nos últimos quinze ou
vinte anos.
No contexto italiano, o debate seria devido de modo particular à reação
de jovens escritores às diversas formas de pós-modernismo – sob a luz da
última produção de Italo Calvino (Se um viajante numa noite de inverno
e Palomar) e dos romances de Umberto Eco (a partir de O nome da rosa)
–, formas estas identiicadas pela atitude irônica, descompromissada,
metanarrativa, autorreferencial, contra a qual uma nova geração de
autores, ou parte dela, se pronuncia.
O recente debate crítico sobre o “novo realismo” diz respeito à geração
dos escritores entre 30 e 40 anos que recusa o pós-modernismo. O quadro,
entretanto, é bem mais dinâmico. É preciso lembrar que: nem mesmo
236 – Remate de Males 34.1
na Itália é possível nomear tudo o que foi escrito a partir da segunda
metade dos anos 60 como pós-moderno; a tradição realista e a modernista
mantiveram vitalidade; os últimos 15 anos foram marcados por um pósmoderno persistente (DONNARUMMA, 2008, p. 30).
Contudo, o dado novo é que hoje um realismo normatizado, híbrido e
sem escândalos, pronto a seguir um rumo romanesco, intimista ou até mesmo
fantástico, obtém grande sucesso comercial. Um realismo feito de romances
que narram histórias criminais em formas tradicionais, recorrendo aos
gêneros literários codiicados, o policial e o romance de mistério (Giancarlo
De Cataldo, Girolamo De Michele, Gianrico Caroiglio etc.).
Portanto, ao lado de autores que partindo de Calvino, como Antonio
Tabucchi e Daniele Del Giudice, se endereçaram para uma narrativa de
consumo que recuperou os esquemas da literatura de gênero, escritores
que reinterpretam em modos originais os ditames do pós-modernismo –
como Sergio Siti e Nicola Lagioia – convivem escritores que abandonam
os esquemas dos gêneros e se reportam a autores de difícil classiicação,
como Pasolini, praticando novas formas de escrita.
Entre os escritores de maior interesse está Roberto Saviano, em
particular seu livro de estreia, Gomorra. Viagem no império econômico e
no sonho de domínio da camorra (2006). Gomorra nasce de uma obsessão
cívica: denunciar o funcionamento do “Sistema”. Sistema é o nome com o
qual se deine a camorra (a máia napolitana).
Saviano leva os leitores a reletir sobre o núcleo criminal do capital,
interroga as dinâmicas do poder, do mercado e do consumo a partir da
análise do sistema de poder camorrista. Aquilo que ocorre em um território
circunscrito, a cidade de Nápoles e seus arredores, é posto em relação com
a economia e com as trocas globais.
Saviano descreve, na primeira página, o porto de Nápoles:
“Tudo o que existe passa por aqui. Aqui, o porto de Nápoles. Não existe
manufatura, tecido, peça de plástico, brinquedo, martelo, sapato, chave de fenda,
porca, videogame, casaco, calça, furadeira, relógio que não passe pelo porto. O
porto de Nápoles é uma ferida. Grande. Ponto inal das viagens intermináveis
das mercadorias. [...]. O porto de Nápoles é um buraco no mapa-múndi de onde
sai o que se produz na China, no Extremo Oriente, como os jornalistas ainda
se divertem em deini-lo [...]. Tudo o que se produz na China é despejado aqui.
Como um baldinho cheio d’água que, quando derramado dentro de um buraco
de areia, o alarga ainda mais e o faz crescer também em profundidade. Só o porto
de Nápoles movimenta 20% do valor das importações têxteis da China, mas
mais de 70% da quantidade de produtos também passa por aqui. É uma coisa
complicada de entender, mas as mercadorias possuem magias raras: conseguem
ser não sendo; chegar não chegando; ser caras mesmo sendo ordinárias; ser de
pouco valor para o isco mesmo sendo preciosas [...].” (SAVIANO, 2006, p. 12)
Benvenuti – 237
“O porto ica afastado da cidade. Um apêndice infectado que nunca
degenerou em peritonite, sempre conservado no abdomen da costa.”
(SAVIANO, 2006, p. 16)
A viagem no império econômico da camorra revela as interconexões
entre a economia legal e a ilegal e relete sobre a natureza das relações entre
lugares de produção e de troca, de mercadorias e de corpos. O elemento
da corporeidade, exibida também em seus aspectos crus e cruéis, é central
em Gomorra. Saviano não hesita diante da descrição da brutalidade e da
violência e nem poderia fazê-lo já que o objeto da sua análise é o crime
organizado, mas veremos como nisso reproduz, criticando-os, os modos e
motivos da cinematograia sobre a máia e da literatura e do cinema pulp,
de violência.
Gomorra é também um livro que conta ao mundo as transformações
locais da cultura camorrista, mostrando as contradições que a globalização
introduz nesse universo cultural. Age sobre a percepção da Itália em nível
internacional, reelaborando e, em certa medida, desmentindo uma série
de estereótipos ligados à internacionalização da máia e da camorra,
celebrizados por uma ampla cinematograia (de Coppola a Tarantino). A
escritura de Saviano é sempre militante do testemunho, do repórter, do
analista político-cultural (TRICOMI, 2010, p. 193). A literatura se volta para
um projeto de modiicação do real que tem como componente essencial a
instância cognitiva, de denúncia, de escândalo. Sob esse aspecto, Saviano
se reporta a Pasolini e o faz nas páginas dedicadas ao cimento armado,
ao “petróleo do sul”, à construção civil, principal motor da economia
camorrista, da economia do Mezzogiorno inteiro e, no inal das contas, da
Itália (país no qual a especulação na construção civil teve, em diferentes
fases, um papel essencial no desenvolvimento econômico).
Leiamos esta página de Saviano:
“Eu sei e tenho provas. Eu sei de onde se originam as riquezas e de onde tiram
seu fedor. Fedor de airmação e vitória. Eu sei como transpira o lucro. Eu sei.
E a verdade da palavra não condena ninguém porque tudo devora e de tudo
faz prova. E não deve arrastar contraprovas nem instruir processos. Observa,
avalia, olha, ouve. Sabe. Não condena ninguém à cadeia e as testemunhas
não voltam atrás. Ninguém se arrepende. Eu sei e tenho provas. Eu sei onde
os manuais de economia dissipam, transformando seus fractais em matéria,
coisas, ferro, tempo e contratos. Eu sei. E as minhas provas também sabem.
As provas não estão escondidas em nenhum pen-drive enterrado num buraco
debaixo da terra. Não tenho vídeos comprometedores em garagens escondidas
em locais inacessíveis na montanha. Não possuo documentos xerocados dos
serviços secretos. As provas não são confrontáveis porque soa parciais, ilmadas
pelo olhar, contadas com palavras e temperadas com emoções forjadas a ferro
e fogo. Eu vejo, deduzo, olho, falo e, assim, testemunho: palavra feia que ainda
238 – Remate de Males 34.1
pode valer quando revela ‘é mentira’ no ouvido de quem ouve as cantilenas das
rimas paralelas dos mecanismos de poder. A verdade é parcial e, no fundo, se
fosse reduzível a uma fórmula objetiva seria química. Eu sei e tenho provas. E,
então, conto essas verdades” (SAVIANO, 2006, p. 234)
Antes de comentar o artigo de Pasolini do qual partiu Saviano, notemos
brevemente que Saviano reivindica uma componente essencial da própria
escritura: o testemunho. O que é airmado e denunciado em Gomorra recebe
a conirmação pelo amplo uso de documentos: atos de instrução, verbais
de discussões, papéis da polícia, entrevistas e documentos públicos. Não
papéis secretos ou verdades ocultas (que são abundantes nos romances
pós-modernos inspirados nas teorias da conspiração). A conirmação é
também dada pelas “íris”, ou seja, pela visão direta, pelas palavras, pelas
narrativas e pelas emoções. Nessa posição de testemunha que imerge, ou
melhor, que nasceu no ambiente que narra, encontramos um elemento
de aproximação a Pasolini “etnógrafo”1 (a deinição é de FORTINI, 1993, p.
35) que imergiu na realidade da periferia para depois contá-la em Ragazzi
di vita, Accatone etc. Mais do que “observador participante”, como talvez
pudéssemos considerar Pasolini, Saviano é parte do território e da cultura
que narra: é a “intimidade com o território” o que o torna testemunha digno
de fé (BENEDETTI, 2008). Porém, mais do que este aspecto etnográico, é
a vontade de colocar a literatura a serviço da verdade, tornando-a híbrida
e espúria, o que aproxima Saviano de Pasolini. É, portanto, ao Pasolini
dos Escritos corsários que o autor de Gomorra se reporta, o Pasolini que
escreve o artigo publicado no jornal Corriere della Sera em 14 de novembro
de 1974, com o título “O que é este golpe?” (depois em Escritos corsários
com o título “O romance dos massacres”):
“Eu sei.
Eu sei os nomes daquilo que é chamado “golpe’ (e que na realidade é uma série
de ‘golpes’ instituída como sistema de proteção ao poder).
Eu sei os nomes dos responsáveis pelo massacre de Milão de 12 de dezembro
de 1969.
Eu sei os nomes dos responsáveis pelos massacres de Brescia e de Bolonha dos
primeiros meses de 1974.
Eu sei o nome da “cúpula” que manobrou, então, tanto os velhos fascistas
idealizadores do “golpe” como os neofascistas autores materiais dos primeiros
Il Pasolini che «si immerge» nella vita delle borgate è sato deinito da Franco
Fortini un «etnografo» che si aggira con il note book tra i giovani borgatari, evidenziando
una delle contraddizioni che la pratica etnograica novecentesca ha posto in rilievo entro
la dialettica di partecipazione e distanza di ogni lavoro sul campo, è il Pasolini che si
pone seriamente e drammaticamente il problema di come «restituire» nella scrittura
quell’esperienza.
1
Benvenuti – 239
massacres e enim, os “desconhecidos” autores materiais dos massacres mais
recentes.
Eu sei os nomes que administraram as duas diferentes, ou melhor, opostas,
fases da tensão: uma primeira fase anticomunista (Milão, 1969) e uma segunda
fase antifascista (Brescia e Bolonha, 1974).
Eu sei os nomes do grupo de poderosos que, com a ajuda da CIA (e em segunda
ordem, dos coronéis gregos da máia), criaram primeiramente (aliás, em uma
miserável falência) uma cruzada anticomunista para abafar 68 e, em seguida,
sempre com a ajuda da CIA, reconstruíram uma virgindade antifascista para
abafar o desastre do ‘referendum’.
Eu sei os nomes daqueles que, entre uma missa e outra, deram as ordens e
asseguraram a proteção política para os velhos generais (para se manter em
pé, como reserva, a organização de um golpe de estado potencial), a jovens
neofascistas, ou melhor, neonazistas (para criar concretamente a tensão
anticomunista) e inalmente criminais comuns, até este momento e talvez para
sempre, sem nomes (para criar a tensão seguinte antifascista). [...]
Eu sei todos esses nomes e sei todos os fatos (atentados às instituições e
massacres) dos quais são culpados.
Eu sei. Mas não tenho provas. Não tenho sequer indícios.
Sei por que sou um intelectual, um escritor, que procura acompanhar tudo o
que acontece, de conhecer tudo o que se escreve a respeito, de imaginar tudo o
que não se sabe ou que é calado; que relaciona fatos mesmo distantes, que junta
os pedaços desorganizados e fragmentários de um inteiro e coerente quadro
político, que restabelece a lógica onde parece reinar a arbitrariedade, a loucura
e o mistério.
Tudo isso faz parte da minha proissão e do instinto da minha proissão. [...]
Acredito ainda que muitos outros intelectuais e romancistas saibam o que eu
sei enquanto intelectuais e romancistas. Porque a reconstrução da Itália depois
de 68 não é tão difícil assim.” (PASOLINI, 1999).
Pasolini prossegue revindicando a necessidade de oposição ao poder
por parte do intelectual. Um intelectual, porém – e Pasolini é plenamente
consciente disso –, que já está, nos anos 60, às margens, levado a intervir
sobre questões morais e ideológicas, mas em formas convencionais que
neutralizam o poder crítico, na verdade, mantido à distância das provas
de verdades terríveis dos anos dos massacres na Itália. O terreno sobre o
qual Saviano se move não é muito diferente daquele da marginalidade do
intelectual e do escritor, no entanto, airma ter as provas, provas deduzidas
de atos públicos (ignorados, porém, pelo grande público que lê Gomorra)
e provas testemunhais, dada a sua intimidade com o território.
Aquilo que Saviano conta é, portanto, real mesmo quando recorre à
icção literária, é verdadeiro mesmo quando não o é literalmente. Não é
importante que o eu narrador seja sempre testemunha ocular dos fatos
narrados ou que recolha outros testemunhos. A contaminação entre
icção e não-icção é colocada a serviço da reconstrução das lógicas do
poder camorrista, a literatura persegue a busca pela realidade, como
240 – Remate de Males 34.1
frequentemente acontece nos assim chamados “non-iction novel”
que utilizam sempre os instrumentos literários e a invenção para
reconstruir cenários, preencher lacunas, imaginar pensamentos e explicar
comportamentos. A evocação de Pasolini nesta zona central, de todos
os pontos de vista, de Gomorra é um ato de acusação contra a literatura
e a intelligentsia italianas dos últimos trinta anos, que abandonaram
qualquer ideia de literatura e cultura como bens públicos, pertencentes a
uma comunidade.
O próprio Pasolini, sabemos, já observava dolorosamente como a
literatura nos anos 70 havia perdido sua relevância cívica. Também por essa
razão Pasolini se torna “corsário”, para denunciar o apocalipse cultural, o
im do humanismo e o advento da época do triunfo do consumo. Pasolini
nunca perdeu a coniança na palavra, uma espécie de fé incondicional na
palavra, profundamente convencido de dever proclamar verdades que
somente a literatura e quem a exerce podem proclamar e devem proclamála. Essa coniança na palavra foi a força herdada por Saviano e junto a ela,
em uníssono com ela, uma prática espúria da literatura, disposta a lançar
mão de qualquer meio para obter um auditório, um público de leitores não
mais garantido pela centralidade da formação humanista na educação das
elites.
Pasolini, aliás, como hoje Saviano, não hesitou em renunciar à
comunidade de literatos, cada vez mais hipotética e espectral, para se
tornar sempre mais um formador de opinião, procurando desfrutar o
capital simbólico residual doado ao poeta. Operação por ele mesmo
percebida como destinada ao fracasso e que, apesar disso, continua a
executá-la, como último gesto de dissidência política.
Assim, as últimas obras de Pasolini não são simplesmente apocalípticas, isto
é, obras de um intelectual que acredita reconhecer na degradação social ao
seu redor os indícios do im iminente da civilização. Cada uma delas parece
também constituir um testamento especíico. Testamento este que o autor,
antes de ser o primeiro a declarar sua própria tentativa falimentar, gostaria de
deixá-la a determinados interlocutores que se revelam porém inalcançáveis
ou desinteressados em receber suas palavras de despedida ou incapazes de
entendê-las. Trata-se portanto de uma desesperada e vã procura por um público,
conduzida nos anos 70 por Pasolini, visível e legitimamente convencido de não
ser ouvido. (TRICOMI, 2010, p. 176)
O problema é reproposto em novos termos para Saviano, que
procurou e encontrou um público próprio. E o encontrou também
porque soube intersectar originalmente sua escritura com o imaginário
sempre mais globalizado do nosso presente, em particular desfrutando o
sucesso do cinema e da literatura que contam histórias criminais. Saviano
Benvenuti – 241
introduziu um desvio em relação a esse cinema e literatura, colocando, no
centro da narração, seu testemunho pessoal, sem que tivesse renunciado à
icção, misturando os dois planos para dar vida a um organismo narrativo
original.
Como escreve Casadei, existe um “efeito de irrealidade presente
em qualquer âmbito interpretativo da história, parte da hipótese de
uma continuidade entre tempos diferentes”. “Efeito de irrealidade” que
também diz respeito à narração da crônica, determinado pela invasividade
da “cultura visual” (CASADEI, 2007, p. 22), pelo fato de que estamos
imersos em um luxo contínuo de informações e imagens, pela revolução
antropológica determinada pela interconexão global graças aos novos
meios de comunicação, pela espetacularização da existência, pelo fato de
que nenhuma experiência nossa possa se dar sem estabelecer relações com
o imaginário produzido pela mídia muito mais invasiva que a literatura.
Estamos, portanto, imersos numa rede na qual é sempre mais difícil
separar o real da icção e principalmente no que diz respeito à crônica:
o jornalismo televisivo, por exemplo, mistura informação documental e
reconstruções “iccionais”, assim como os reality show pedem a pessoas
“comuns” que interpretem, representem a si mesmas, em um estranho
curto-circuito entre vida e icção. Pensemos nas transmissões televisivas
que nos prometem em continuação revelar a verdade oculta sobre o passado
recente dos massacres italianos e constroem, tendo como base alguns
indícios e pouquíssimas provas, hipóteses explicativas muito parecidas
com as tramas de um romance policial sobre as teorias da conspiração,
ou seja, sobre o gênero de maior sucesso do pós-modernismo. Podemos
falar de uma espécie de forma degradada e espetacularizada da denúncia
do poder feita pelo intelectual. Forma esta hoje já transformada em um
formato convencional televisivo, previsível e bem pouco escandaloso.
A partir dele, tudo pode ser dito, mesmo verdades atrozes, mas usando
formas comunicativas que não são mais capazes de envolver o leitor em
autêntica indignação.
O fenômeno é semelhante àquele denunciado pelo jovem escritor,
estudioso da mídia, Antonio Scurati, que mostrou como a guerra,
experiência traumática por excelência, reduziu-se a uma parte do mundo
do espetáculo, consumido quotidianamente, “com uma cerveja na mão”
por espectadores comodamente instalados em seus sofás (SCURATI,
2006, p. 387). Como uma reação a esse estado de coisas, reapareceu nos
escritores mais jovens uma tensão ética que vai de par com a renascente
coniança na potencialidade cognitiva da literatura, principalmente do
romance, capaz de se ancorar na realidade em novas formas, mesmo que
sejam aquelas da busca por uma realidade permeada pela icção. Terreno
242 – Remate de Males 34.1
escorregadio, difícil de ser praticado, que Saviano consegue percorrer
graças à força da própria posição de testemunha.
A escritura de Saviano se coloca entre o mais genérico “retorno à
narração” e a manipulação das formas fechadas, mas de modo original,
rompendo o pacto do gênero, ao qual o leitor contemporâneo novamente
se habituou na Itália, depois que, a partir dos anos 80, os gêneros literários
foram restaurados. O rompimento com qualquer pacto de gênero libera
a escritura de Saviano de vínculos incômodos (a matéria – o crime
organizado – prestar-se-ia a ser narrada na forma do romance de mistério,
como ocorre frequentemente) e contribui dando força a uma enunciação
que possui caracteres testemunhais. Para fazê-lo, Saviano, seguindo
os rastros de Pasolini, retoma uma escritura híbrida, não codiicável.
Esse desvio em relação à nova norma, que retorna às formas literárias
codiicadas, é fundamental, é o que permite à literatura se livrar das formas
comunicativas às quais o leitor/espectador está habituado, retirando-o do
torpor e o interpelando. É o que a literatura modernista havia procurado
fazer quando, com diferentes recursos narrativos, impedia que o leitor
se identiicasse com enredos ediicantes, asseguradores, burgueses e
conformistas. Mas mesmo esses instrumentos se desgastaram.
Pasolini compartilhava com muitos escritores contemporâneos a
capacidade de alternar, mas também de hibridizar, em um único texto,
uma pluralidade de registros discursivos: o ensaísmo, não somente o
de relexão política, e a literatura trocavam de papéis em continuação,
justamente porque esses escritores eram, sobretudo, intelectuais
preocupados em encontrar o melhor caminho para intervir no debate
público (BERARDINELLI, 1990). Numa literatura como a italiana, órfã
de uma sólida tradição romanesca, o ato de se curvar diante dos gêneros,
iniciado nos anos 80 do século passado, não produziu, pelo menos na
prosa, resultados relevantes. Recuperar a lição de autores capazes de
construir formas textuais espúrias para melhor interpretar a história
e o presente (Luciano Bianciardi, Domenico Rea, Nanni Balestrini, por
exemplo) pode então querer dizer, para Saviano e talvez para outros
escritores da sua geração, tentar restituir, a nossa literatura, um lastro
social. Com esse objetivo, o leitor é envolvido em narrações que têm a
intenção de modiicar sua percepção do presente, ou do passado através
do presente, para levá-lo à recusa, à negação de um alinhamento ao poder,
à resistência, à ação, embora alguns dos autores que escolhem a história e a
crônica como objeto narrativo proponham uma modalidade que deinem
como “performativa.” (BENVENUTI, 2012).
A modalidade performativa aposta na dimensão afetiva e nela
predominam as observações de tipo autobiográico e autoetnográico
Benvenuti – 243
(como em Saviano), ou então de tonalidades épicas (Wu Ming, Genna,
De Michele). O tecido evocativo e afetivo desses romances pede ao leitor
cumplicidade e ainidade emotiva. A literatura deve se propor como
narrativa capaz de dar vida a uma coletividade, refundando, através das
práticas da narração, um discurso comum de pertencimento cultural,
cívico e político. A narração, em suma, tenta um caminho para se
inscrever novamente na práxis. A divergência que Calvino apontava entre
a realidade e a escritura, a escritura que deveria ser ágil, rápida, versátil,
elegante em oposição à realidade opaca, pesada, inamovível, o levara a
desviar o olhar da massa grave e inerte do mundo real para não se tornar
petriicado e o convencia a recorrer a triangulações e jogos de espelhos
para fugir da Medusa. Tal divergência, portanto, é agora sentida como
abordável em novas formas de intervenção literária: não mais pelo jogo das
possibilidades ininitas, mas na chamada à responsabilidade da palavra,
da sua capacidade de intervenção, na sua capacidade de modiicar, e não
só de desnudar, as relações de força da sociedade.
Isto signiica que esses autores, mais do que coniar na capacidade
relexiva e construtiva da “literatura”, coniam na sua capacidade empática
e afetiva, produzindo um discurso literário de característica claramente
performativa. Em alguns casos, há a conotação de uma vontade política
determinada e sustentada pela persuasão de que, se por um lado, da
sociedade dos simulacros, não se sai com as armas do imaginário, por outro,
o imaginário contribui para a criação da realidade. Trabalhando sobre si
mesma nessa direção, a literatura se subtrai à imagem do assim chamado
pós-modernismo ‘eufórico’, sem que negue algumas aquisições formais
do pós-modernismo: contaminação entre os gêneros, sobreposição dos
planos temporais, proliferação das vozes e dos pontos de vista e, sobretudo,
abolição da distinção entre literatura ‘alta’ e literatura ’popular’.
Se considerarmos que o pós-moderno fez da abolição da distinção
entre os gêneros e, mais ainda, da contaminação da literatura ‘alta’ e
‘popular’ uma prática corrente, podemos airmar que há uma continuidade
entre o pós-moderno e certa literatura do novo século. Isso não deve
levar, entretanto, à subestimação das descontinuidades explicitamente
reivindicadas por alguns autores: descontinuidades relevantes, entre
as quais, em primeiro lugar, a “participação emotiva” e a “tensão ética”
contrapostas à distância irônica. Se considerarmos a renovação formal:
“objetos narrativos não identiicados” (Wu Ming, 2009), portanto fora
dos esquemas de gênero ou desmontando-os internamente, mas, apesar
disso, na maioria dos casos, com coerência narrativa. Essa garantia não
advém, entretanto, de hipóteses combinatórias,mas sim de um retorno à
narração.
244 – Remate de Males 34.1
O abandono do paradigma moderno da novidade como valor estético
é dirimente, mas ao mesmo tempo bastante problemático. Difícil o ponto
de encontro entre renovação e vontade de alcançar um público amplo,
de interagir com um imaginário “colonizado” por ícones propostos
pela mídia, mais fortes e invasivos. Difícil, em suma, dar vida a uma
escritura que seja popular sem ser padronizada, a romances que sejam
potencialmente best-sellers sem perder a possibilidade de “divergência”
em relação aos modelos dominantes do consumo. A convicção de muitos
escritores “performativos” – e primeiro entre eles Saviano, desde a estreia
na rede (Saviano era blogger antes de se tornar romancista) (WEBER 2007),
consciente de que a mera exibição de documentos deixaria seus leitores
indiferentes – é de que a narração seja eicaz no terreno das novas formas
de comunicação. Não, porém, exibindo simplesmente provas das mentiras
das narrações dominantes, mas sim criando contranarrações capazes
de envolver um público o mais amplo possível. Dessa convicção nasce
Gomorra, no delicado ponto de intersecção entre prova documentária,
icção e autoicção romanescas.
Uma das coisas que mais impressiona em Gomorra é a interação entre
o imaginário fílmico e as práticas dos camorristas. Há um capítulo dedicado
ao cinema no qual se fala sobre como os boss se inspiram no cinema em
seus comportamentos, no modo de vestir, no modo de apresentar seus
seguranças, resumindo, como usam o cinema como valor simbólico, tendo
como certo a potência e a penetração no imaginário de alguns grandes
ilmes de máia. O poder do boss se manifesta desse modo, por exemplo,
na construção de uma mansão idêntica àquela do protagonista de Scarface.
Mas ainda tem mais: há o caso de dois jovens aspirantes a camorristas que
levam a sério o exemplo do ilme de Tarantino e pensam poder desconsiderar
a rígida organização do Sistema, poder se virar sozinhos, e por isso acabarão
assassinados. Saviano, portanto, encena a intersecção entre a realidade e
a icção que ele próprio utiliza no seu livro como elemento fundador não
só do imaginário, mas também das práticas: o imaginário cria realidade,
além de ser por ela criado. E hoje de modo crescente e sem dúvida alguma
incomparavelmente maior em relação ao passado. Gomorra, portanto, se
conigura como relexão crítica e divergente diante daquilo que só poderia
resumir com um slogan “a vida como realidade”, mas ao mesmo tempo não
se pode simplesmente “sair” da sociedade dos simulacros, do espetáculo.
Gomorra torna evidente essa contradição. O escritor que pretender criticar
a sociedade dos simulacros se dirige para o terreno da política dos afetos e
a literatura se torna performativa: procura aproximar prova documental,
tensão ética e envolvimento emotivo. Por essa razão, é possível dizer-se
que Saviano não passa de um “herói de papel” (DAL LAGO, 2010), mas se
Benvenuti – 245
pode e talvez se deva também reconhecer que é um escritor que procura
dar vida a uma literatura divergente, usando as armas do inimigo. Não
se sai da sociedade dos simulacros somente com as armas do imaginário,
embora o imaginário contribua a criar a realidade.
Se é verdade que a realidade tem muita diiculdade em competir com a
icção, que o extratexto agoniza entre suas representações, parece possível
então concluir que a oposição ao poder deva usar os mesmos instrumentos,
deva fazer com que surjam textos de forte impacto afetivo, que envolvam
emotivamente e entrem em concorrência nesse plano no mercado das
mídias. A capacidade de envolver emocionalmente o público parece ser a
maior preocupação dos políticos que tomam lições com os realiity shows
e com os jornalistas os quais, frequentemente, para falar em complôs,
acabam por construir tramas de thriller, criam icções que envolvem
os leitores e os espectadores através do impacto emotivo despertado
pelas narrativas de sofrimentos individuais. Nessa mesma direção, não
contrária, mas sim conluente àquela que estamos analisando, realidade e
icção se confundem: a crônica e a reconstrução histórica, para alcançarem
audiência, necessitam de uma hábil armação dramática e, portanto, não
se hesita em fazer uso de técnicas narrativas romanescas. É nesse plano
de mobilização das emoções que hoje se desenrola a luta política quando
estão esgotadas as fortes paixões políticas que a caracterizavam até pouco
tempo atrás, polarizando-a e radicalizando-a.
Airmar que hoje assistimos à completa despolitização das emoções, já
que diicilmente as ideias políticas catalisam nossas paixões, não signiica
airmar que não representem um instrumento de mobilização. Gomorra
procura mobilizar o leitor, envolvê-lo, transtorná-lo e levá-lo à recusa.
Movendo-se sobre um terreno difícil, por alguns considerado
ambíguo, não é de se surpreender que Saviano tenha sido acolhido
entusiasticamente e, ao mesmo tempo, com duras críticas. Saviano
oferece uma representação não heroica do crime organizado, procura
‘deseroicizar’ as iguras dos boss que o cinema representou como herói
do mal. Explora o interesse do público, incluindo o público internacional,
pela máia, oferecendo uma visão divergente, não conformista. Gomorra
oferece a representação do mal como um mundo degradado no qual
triunfa o interesse econômico por si só, no qual a exploração do trabalho,
no limite da escravidão, não desperta nenhum entusiasmo ou fascínio.
Não existe nada de fascinante nos heróis do mal, não existem as regras,
no fundo compreensíveis e admissíveis, de um código de honra. O que
existe é a realidade crua e impiedosa da exploração. O único herói, como
mostra Dal Lago, na sua crítica feroz a Saviano, é o autor, aquele que teve
a coragem de dizer a verdade e por isso arrisca a vida.
246 – Remate de Males 34.1
Desmistiicar uma representação ambígua do mundo do mal (o mal
absoluto possui seu fascínio, explorado pelo cinema e pela literatura de
gênero) tem como contrapartida heroicizar quem a ele se opõe, neste caso,
o herói e mártir Saviano. Oferecer-se como modelo de comportamento,
como intelectual do escândalo e da denúncia é inevitável para quem desaia
o poder, como Pasolini e Saviano. A compreensão dessa exemplaridade
encarnada pelo escritor é frequentemente outra. A acusação de criar uma
auto-mitobiograia, de se arvorar em juiz absoluto, foi atribuída a Pasolini
e hoje é atribuída a Saviano. Mas o risco maior para esses autores, o que
no mundo da globalização é ainda mais agudo, é o de, ao denunciar, fazer
uso da mesma linguagem daqueles que são acusados. Na obra de Saviano,
a hipérbole, a violência, o sangue são postos a serviço de objetivos opostos
àqueles de quem leva o público a desfrutar da “literatura dos extremos”:
uma escritura que, respondendo ao vazio da realidade da sociedade do
espetáculo, procura construir emoções ictícias sempre mais violentas e
intensas, mas falsas. De quem oferece o espetáculo do mal e da violência
a um público que, comodamente sentado no sofá em casa, não se expõe
ao risco real, mas sim à emoção alimentada pelo consumo virtual de uma
violência espetacularizada.
Saviano também responde à “fome de realidade” que é, entretanto,
perpassada pela mediação literária. Portanto, é possível ter leituras
opostas da sua obra: a primeira frisa o fato de que na Itália se renova a
tradição de certa literatura cívica que volta a almejar o impacto social; a
segunda insiste sobre a pouca qualidade literária da escritura de Saviano
ao nivelar sua própria narração, rebaixando-a, recorrendo a hipérboles
fáceis e aos clichês dos ilmes de violência.
Do nosso ponto de vista – mesmo sendo inegável que Saviano escolheu
(uma escolha consciente e vencedora no plano do sucesso de público)
uma escrita fortemente comunicativa e emocionalmente envolvente, não
desprezando efeitos retóricos “fáceis” –, é preciso ressaltar como positivo
não somente o empenho cívico renovado, mas também a relativa novidade
das soluções narrativas de Saviano que, seguindo as pegadas de Pasolini,
contamina a literatura. Desta vez, ele a contamina com algo que Pasolini
provavelmente teria desprezado: o imaginário mediático. Mas o ponto de
maior novidade e valor, e de maior proximidade com Pasolini, é aquele que
diz respeito ao plano da enunciação. De onde e quem fala em Gomorra?
Quem é o eu narrador que, em poucas páginas, passa de um gênero a
outro com absoluta desenvoltura? Quem é que diz “eu” em Gomorra?
É sempre o autor e somente ele? Esse eu narrador recolhe também
experiências de outros e se faz porta-voz. Isso é facilmente compreensível
lendo as relexões desse eu nas cenas dos delitos. Diante de cadáveres com
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as vísceras expostas, encharcados de sangue etc. Convido vocês a relerem
aquelas páginas. Quem é esse eu que é sempre o primeiro a chegar aos
locais dos homicídios e está sempre entre os primeiríssimos a ver o corpo?
A icção entrelaçada à realidade é constitutiva da própria voz narrativa.
Introduzir a icção na reportagem não signiica inventar eventos, ou pelo
menos não somente. Signiica operar com técnicas literárias de modo
que esses eventos possam ser relacionados um ao outro, dispostos no
mesmo contexto, comunicados ao leitor. O elemento funcional se presta a
derrubar as fronteiras entre icção e não-icção o que serve, por sua vez, a
descrever a realidade de modo mais potente.
Tradução: Maria Betânia Amoroso
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