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HISTORIA. METODO E MENSAGEM

HISTORIA. M E T O D O E M EN SA G EM RALPH L. SMITH VIDA NOVA c a ta lo g a ç ã o na fo n t e do DEPARTAMENTO NACIONAL DO LIVRO S657t Smith, Ralph L. (Ralph Lee), 1918Teologia do Antigo Testamento: história, método e mensagem / Ralph L. Smith ; tradução: Hans Udo Fuchs, Lucy Yamakami. - São Paulo : Vida Nova, 2001. 448 p. ; 16x23 cm. ISBN 8 5 -2 75-0279-8 Tradução de: Old Testament theology. 1. Bíblia. A.T. - Teologia. 1. Título. CDD: 230 mr "1 TEOLOGIA DO j^ A N T I G O TESTAMENTO j RALPH L.SMITH TRADUÇÃO HANS U D O FUC HS LUCY YAMAKAMI Copyright © 1993 Broadman & Holman Publishers Título do original: Old Testament Theology Traduzido da edição publicada pela Broadman & Holman Publishers, Nashville, Tennessee, 1.* edição: 2001 Reimpressões: 2002, 2005 Publicado no Brasil com a devida autorização e com todos os direitos reservados por S o c i e d a d e R e u g io s a E d iç O e s V id a N o v a , Caixa Postal 21266, São Paulo-SP 04602-970 www.vidanova.com.br Proibida a reprodução por quaisquer meios (mecânicos, eletrônicos, xerográfícos, fotográficos, gravação, estocagem em banco de dados, etc.), a não ser em citações breves, com indicação de fonte. Printed in Brazil / Impresso no Brasil ISBN 85-275-0279-8 C o o r d e n a ç ã o e d it o r i a l Robinson Malkomes C o o r d en a ç ã o d e pro d u çã o Roger Luiz Malkomes C apa Julio Carvalho EUA Para Dorothy Conteúdo Abreviaturas .......................................................................................................... 11 Prefácio ................................................................................................................... 13 Introdução ............................................................................................................... 15 1. A história da teologia do Antigo Testamento ............................................... 21 1. Teologia do Antigo Testamento: Uma disciplina moderna com raízes antigas .................................... 2. Lançando a semente da teologia do Antigo Testamento .......................................................... 3. A germinação e o crescimento da teologia do Antigo Testamento ................................................... 4. A morte da teologia do Antigo Testamento e o triunfo da Religiongeschichteschule ........................................... 5. O reavivamento da teologia do Antigo Testamento .......................... 6. O movimento da teologia bíblica ....................................................... 7. A situação atual da teologia do Antigo Testamento ......................................................... 21 22 28 33 36 46 49 8 T e o i . o c ia do A n t ig o T e s t a m e n t o Excurso: o relacionamento judeu-cristão e a teologia do Antigo Testamento .................................................... 59 2. A natureza e o método da teologia do Antigo Testamento ......................... 67 8. A natureza da teologia do Antigo Testamento ................................... 67 9. O método da teologia do Antigo Testamento ..................................... 72 3. O conhecimento de Deus .................................................................................. 89 10. A teologia do Antigo Testamento começa com a revelação ..................................................................... 89 11. A existência de Deus é pressuposta no Antigo Testamento ......................................................................... 92 12. Conhecer a Deus é mais do que conhecimento intelectual ..................................................................... 93 13. O Deus abscôndito ................................................................................ 98 14. Meios de revelação .......................................................................... 102 1 5 .0 nome de Deus rrriN ittíK nvw ....................................................... 111 4. Eu serei o vosso Deus, e vós sereis o meu p o v o ........................................... 117 16. E vós sereis o meu povo (eleição) ................................................... 117 17. Eu serei o vosso Deus (aliança) ....................................................... 132 5. Quem é Deus como Javé? ............................................................................... 155 18. Um Deus que salva .......................................................................... 19. Um Deus que abençoa ...................................................................... 20. O Deus criador ................................................................................... Excurso: Os grandes animais marinhos ................................................. 21. Um Deus santo ................................................................................... 22. Um Deus de amor ............................................................................ 23. Um Deus de ira ................................................................................. 158 162 167 174 180 184 196 C onteúdo 24. Um Deus que j u l g a ............................................................................ 25. Um Deus que perdoa ........................................................................ 26. Um Deus ú n ic o ................................................................................... Excurso: Aserá —consorte de J a v é ? ....................................................... 9 206 214 217 219 6. Que é o homem? .............................................................................................. 225 27. O 28. O 29. O 30. O ser humano é um ser criado ......................................................... ser humano é semelhante a Deus (a imago Dei) ........................ ser humano: um ser social ............................................................ ser humano é um ser unitário ....................................................... 227 228 237 251 7. Pecado e redenção ............................................................................................ 263 31. 32. 33. 34. A natureza do pecado ........................................................................ A origem do pecado .......................................................................... Os efeitos do pecado ........................................................................ A remoção do p e c a d o ........................................................................ 266 273 276 286 8. Adoração .......................................................................................................... 299 35. Os termos da adoração ...................................................................... 36. Horas e locais de ad o ração ................................................................ 37. Formas de adoração .......................................................................... Excurso: A circuncisão e o b a tism o ....................................................... 300 304 316 317 9. A vida reta ........................................................................................................ 323 38. A vida reta e a religião no Antigo Testamento ...................................................................... 323 39. Panorama da literatura sobre a ética do Antigo Testamento ...................................................................... 326 40. Como estudar a ética do Antigo Testamento ...................................................................... 340 T e o l o g ia 10 do A n t ig o T e s t a m e n t o 10. A morte e o além ........................................................................................... 357 41. 42. 43. 44. Que é a morte? ................................................................................... O túmulo e o Sheol .......................................................................... O túmulo e o além ............................................................................ A ressurreição ................................................................................... 11. Naquele dia 359 362 368 375 .................................................................................................... 379 45. O fim ou culminação da história ..................................................... 46. Criação e escatologia ........................................................................ 47. A restauração da nação e o reinado universal de Deus ......................................................... 48. O Messias ........................................................................................... 49. O servo so fred o r................................................................................. 50. O Filho do homem ............................................................................ 5 1 .0 Antigo Testamento e o Novo: cristãos e judeus .............................................................................. 381 384 386 390 395 402 404 Epílogo ................................................................................................................... 413 Bibliografia .......................................................................................................... 419 Abreviaturas AJSL BA American Journal o f Semitic Languages Biblical Archaeologist BAR Biblical Archaeologist Reader BASOR Bulletin o f American Schools o f Oriental Research BBC Broadman Bible Commentary BDB Brown, Driver, and Briggs, Hebrew and English Lexicon o f the Old Testament BJRL Bulletin o f the John Rylands UniversityLibrary o f Manchester BTB Biblical Theology Bulletin BWANT Beitrage zur Wissenschaft vom Alten und Neuen Testament BZAW Beihefte zur ZA W CBQ Catholic Biblical Quarterly EJ Encyclopedia Judaica ET Expository Times HBT Horizons in Biblical Theology HTR Harvard Theological Review HUCA Hebrew Union College Annual 12 IB ICC IDB JAOS JBL JBR JR JSOT JTS NICOT OTMS RSPhTH SBL SBT SJT SVT SWJT TB TDOT THAT ThLZ TOTC TWAT TTZ VT WMANT WBC ZAW ZTK T f. o i . o c ia do A n t ig o T e st a m e n t o Interpreter ’s Bible International Critical Commentary Interpreter ’s Dictionary o f the Bible Journal o f American Oriental Society Journal o f Biblical Literature Journal o f Bible and Religion Journal o f Religion Journal fo r the Study o f the Old Testament Journal o f Theological Studies New International Commentary on the Old Testament Old Testament and Modern Study Revue des sciences philosophiques et theologiques Society o f Biblical Literature Studies in Biblical Theology Scottish Journal o f Theology Supplements to Vetus Testamentum Southwestern Journal o f Theology Tyndale Bulletin Theological Dictionary o f the Old Testament Theologisches Handwörterbuch zum Alten Testament Theologische Literaturzeitung Tyndale Old Testament Commentary Theologisches Wörterbuch zum Alten Testament Trierer Theologische Zeitschrift Vetus Testamentum Wissenschaftliche Monographien zum Alten und Neuen Testament Word Bible Commentary Zeitschrift fü r die altestamentliche Wissenschaft Zeitschrift fu r Theologie und Kirche Prefácio A teologia do Antigo Testamento tem tido uma vida privilegiada. Encontra-se em crise desde o nascimento. Alguns estudiosos têm falado em sua morte e renascimento. Entretanto, continua a sobreviver. James Barr, J. J. Collins e outros são céticos quanto ao seu futuro.1 Os estudiosos divergem a respeito de sua definição, metodologia, valor e conteúdo; até agora, a discussão continua. Este volume não foi escrito com a finalidade de participar desse debate, embora dialogue com a maioria das questões em discussão. E antes uma introdução elementar ao estudo da teologia do Antigo Testamento. Começou como um "manual" de teologia do Antigo Testamento e foi transformado no meio do caminho com o propósito expresso no presente título: Teologia do Antigo Testamento: História, Método e Mensagem. Dirige-se a estudantes, pastores e leigos interessados. O grande número de citações de "autoridades" faz parte de um projeto para familiarizar o leitor com a bibliografia básica no campo e permitir às autoridades que expressem seus pensamentos com suas próprias palavras. A maioria das citações bíblicas foi extraída da tradução de Almeida, Revista e Atualizada, 2* edição. 1Veja Gerhard Hasel, Old Testament Theology: Basic Issues in the Current Debate (Grand Rapids: Eerdmans, 1991), 37, 94-95. 14 T e o l o g ia do A n t ig o T e s t a m e n t o Tenho dívida de gratidão para com inúmeras pessoas (professores, alunos, pais, família e amigos) e instituições (escolas, faculdades e seminários) que me ajudaram na preparação. Quero agradecer em especial ao Dr. Trent C. Butler, da Broadman & Holman Publishers, sua inestimável colaboração neste projeto, e à Sra. Denise Hess a demonstração de suprema paciência, compromisso, dons e capacidade fora do comum na preparação do manuscrito. Sem eles, eu não teria conseguido escrever e publicar este livro. Agradeço também aos meus colegas é à administração o apoio e estímulo. Acima de tudo, agradeço à Dorothy, minha esposa, por ser a mais preciosa companheira que algum ser humano já teve. Ela aprendeu muitas de suas virtudes pela leitura do Antigo Testamento. Ralph L. Smith Southwestem Baptist Theological Seminary Agosto de 1992 Introdução Que é teologia do Antigo Testamento? Como devemos fazer teologia do Antigo Testamento? Qual a relação do Antigo Testamento com o Novo e com a fé cristã? Por que o Antigo Testamento faz parte da Bíblia cristã? Os cristãos devem continuar a chamar de "Antigo Testamento" a primeira divisão da Bíblia, como têm feito através da maior parte da história, ou devem se unir ao crescente número de estudiosos que o chamam "a Bíblia hebraica"? Quais são os maiores escritores nesse campo? Como eles fizeram teologia do Antigo Testamento? Qual a situação atual dessa disciplina e qual o seu futuro? O Antigo Testamento tem realmente uma mensagem para nós hoje? Essas são algumas perguntas de que tratarei em Teologia do Antigo Testamento: História, Método e Mensagem. O propósito deste livro é pesquisar, não discutir ou debater. Não apresenta nenhum método radicalmente novo de fazer teologia do Antigo Testamento ou de interpretá-lo. Seu alvo é fornecer a alunos de universidades e seminários um livro de texto que proporcione um relato parcial do que os outros têm dito e feito no campo da teologia do Antigo Testamento e, depois, sugira modos pelos quais os dados teológicos no Antigo Testamento possam ser organizados, interpretados e apropriados. 16 T f.o i . o g u do A n t ig o T fü t a m e n t o O capítulo 1 acompanha a história da teologia do Antigo Testamento desde os tempos veterotestamentários até o presente. O capítulo 2 trata, com um pouco mais de detalhes, da natureza e do método da teologia do Antigo Testamento. Não escolhi nenhum tema central, tal como a aliança, para servir de mastro ao redor do qual se deve organizar todo o material. Tampouco selecionei algum tópico mais amplo, como "a promessa" ou "história da salvação", que possa ser seguido cronologicamente através do Antigo Testamento. Antes, escolhi uma abordagem temático-sistemática. Portanto, os capítulos 3 a 11 são exemplos de como se pode fazer teologia do Antigo Testamento usando os seguintes temas teológicos maiores: o conhecimento de Deus; eleição e aliança; quem é Deus como Javé?; que é o homem?; pecado e redenção; adoração; a vida reta; a morte e o além; e naquele dia. Os perigos dessa abordagem estão bem documentados. Talvez o maior perigo seja que, ao selecionar temas a serem incluídos ou omitidos e ao sistematizar os dados na discussão de cada tema, eu posso dar meu "toque" pessoal na organização e interpretação de cada assunto. Nesse caso, o resultado corre o risco de corresponder ao que coloco em discussão e não ao que o Antigo Testamento realmente diz. Esse perigo, porém, é inerente a qualquer apresentação de teologia do Antigo Testamento. A disciplina em sua forma moderna teve início no final da década de 1700 como tentativa de libertar o estudo teológico da Bíblia dos grilhões da teologia dogmática e de seu uso incorreto da Bíblia para sustentar suas crenças.1 Toda apresentação da teologia do Antigo Testamento recebe cor própria que depende do ponto de vista, contexto e preparação do autor. Devemos estar conscientes dos perigos da subjetividade e lutar para permitir que os dados do Antigo Testamento falem por si. Uma fonte de subjetividade nesse campo pode ser a filiação religiosa e/ou o compromisso do autor. Ao longo da história, as teologias do Antigo Testamento têm sido escritas por cristãos principalmente para cristãos. O termo "Antigo Testamento" é um termo cristão. Os judeus não usam esse termo; usam "Bíblia hebraica", "a Bíblia", "a Escritura" ou "Tanakh", acrônimo derivado do nome das três partes da Bíblia hebraica: Torah, NebVim e Keíhubim (Lei, Profetas e Escritos). O termo teologia tem sido amplamente usado pelos cristãos. A igreja primitiva adotou a palavra grega theologia quando os cristãos penetraram no mundo ocidental. Os gregos usavam theologia para designar histórias e ensinos acerca de seus deuses. "A igreja a aplicou ao Deus de Israel, revelado de modo '"Veja a terceira divisão principal do capítulo 1, "A germinação e o desenvolvimento da teologia do Antigo Testamento). In t r o d u ç ã o 17 definitivo em Jesus Cristo. Para cristãos, ‘teologia’ significa ensino acerca de Deus. A teologia do Antigo Testamento é, portanto, o ensino acerca de Deus na escritura de Israel."2 Os escritores judeus nunca produziram uma teologia abrangente do Antigo Testamento ou do judaísmo. O Antigo Testamento em si é não-sistemático quanto à forma, assim como a Mishná e o Talmude. A literatura rabínica é notoriamente não-hoiística em sua abordagem. Samuel Sandmel, conhecido estudioso judeu do Novo Testamento, disse que embora os judeus tenham originado eminentes filósofos, eruditos religiosos e brilhantes especialistas em homilética, geraram poucos teólogos de grande valor. "Temos originado homens que têm feito um bom trabalho sobre temas teológicos, mas nenhum teólogo sistemático de primeira linha."3 M. H. Goshen-Gottstein dedicou atenção à falta de "teologias judaicas do Antigo Testamento" num trabalho lido no Oitavo Congresso da International Organization for the Study of the Old Testament, que se realizou em Edimburgo em agosto de 1974. Goshen-Gottstein apresentou sua crença em que o fato de os judeus não produzirem uma teologia do Antigo Testamento é resultado direto da falta de participação nos estudos bíblicos acadêmicos da Europa até o século X X . "Do ponto de vista da instituição acadêmica, os estudos bíblicos foram realizados dentro da estrutura das ‘faculdades teológicas’ ou equivalentes. [...] Nenhum judeu do século X IX poderia pensar em se tomar um ‘estudioso da Bíblia’ no sentido europeu, que quase necessariamente acarretava movimento de um lado para outro entre os testamentos."4 Os estudiosos judeus que poderiam ser chamados teólogos de alguma maneira (Heschel, Gordis, Sandmel e Jon D. Levenson) têm atuado quase exclusivamente no contexto dos seminários teológicos americanos. Se acrescentarmos os nomes de alguns filósofos judeus não-americanos (como Buber e Neher), a lista fica quase completa. Goshen-Gottstein pode ser o primeiro professor de Bíblia numa universidade israelense que insiste em ministrar um curso de pós-graduação em teologia bíblica. Goshen-Gottstein concluiu que se admitirmos que "a teologia é necessariamente" um ramo de estudo restrito ao cristianismo, perceberemos melhor que só a entrada tardia dos judeus na erudição bíblica do século X X tem impedido até agora o desenvolvimento de uma teologia judaica do Antigo Testamento. Estudiosos judeus estão entrando agora no campo da teologia bíblica em grande estilo. Jacob Neusner e Jon D. Levenson são dois "brilhantes luminares" 2 Christoph Barth, God With Us, 2. 3 "Reflection on the Problem o f Theology for Jews", i l l . 4 "Christianity, Judaism and Modem Bible Study", 77. 18 T e o i .o c ia do A n t ig o T e s t a m e n t o entre os estudiosos judeus contemporâneos neste campo.5 Jon D. Levenson da Harvard Divinity School escreveu um artigo, "Why Jews Are Not Interested in Biblical Theology",6 no qual declarou que a teologia bíblica era uma preocupação protestante e não estava isenta dos pressupostos protestantes acerca da Torá. A teologia do Antigo Testamento é uma disciplina essencialmente cristã, não por causa do uso do termo "Antigo Testamento" nem porque os cristãos são mais aptos para sistematizar dados bíblicos ou para teologizar sobre eles, mas porque Jesus via a si mesmo e a igreja primitiva também o via como o cumprimento das esperanças e promessas veterotestamentárias. Uma vez que Jesus fez uso teológico do Antigo Testamento para se referir a si mesmo, os cristãos que o seguem têm usado o livro teologicamente. Por outro lado, os judeus, que têm mostrado pouco interesse por teologia ao longo da história, não têm escrito teologias da Bíblia hebraica. A maioria das teologias do Antigo Testamento tem sido cristológica em certo sentido. Edmund Jacob disse que uma teologia do Antigo Testamento que não esteja fundamentada em versículos isolados mas no Antigo Testamento como um todo "só pode ser uma cristologia, pois tudo o que foi revelado sob a antiga aliança, através de uma longa e variegada história, em eventos, pessoas e instituições, se reúne e se aperfeiçoa em Cristo".7 No final de seu segundo volume sobre a teologia do Antigo Testamento, von Rad disse: "... todos esses escritos do antigo Israel eram encarados por Jesus Cristo, e com certeza pelos apóstolos e pela igreja primitiva, como uma coleção de predições que apontavam para ele como o Salvador do mundo".8 Gerhard von Rad usou o método tradicionário-histórico de interpretação ao tentar entender as implicações teológicas do Antigo Testamento. Usando esse método, concluiu que o Antigo Testamento deve ser lido como um livro em que a "expectativa vai se avolumando até atingir grandes proporções". O Antigo Testamento é absorvido no Novo como "fim lógico de um processo iniciado pelo próprio Antigo Testamento".9 Walter Eichrodt acreditava que "aliança" era o tema central do Antigo Testamento. A aliança constituía "a mais profunda camada no fundamento da fé de Israel". Ele tinha por pressuposto que a idéia de aliança estava presente, independentemente de a palavra ser usada ou não. "Aliança" não era um conceito dogmático, mas a "descrição típica de um processo vivo que começou em época e 5 Veja Brooks e Collins, 1-29,109-146. 4 Veja Neusner, Judaic Perspectives o f Biblical Studies, 2 8 1-307. 1 Theology o f the Old Testament, 12. * Old Testament Theology II, 319. ’ Ibid., 321. In t r o d u ç ã o 19 lugar específicos e que se destinava a tomar manifesta uma realidade divina incomparável na história da religião".10 Eichrodt declarou também que qualquer pessoa que estude o desenvolvimento histórico do Antigo Testamento encontrará através dos dados um movimento poderoso e com propósito que exige sua atenção. Às vezes a religião pode parecer estática, prestes a enrijecer-se num sistema inflexível, mas sempre que isso acontece o impulso para a frente rompe o impasse e dá continuidade ao movimento. "Esse movimento não cessa até a manifestação de Cristo, em quem se concretizam os mais nobres poderes do Antigo Testamento. O judaísmo com aparência de torso e separado do cristianismo apóia essa declaração de forma negativa."11 Declarações como essas de Eichrodt —de que os "mais nobres" poderes do Antigo Testamento se concretizam em Cristo e que o judaísmo separado do cristianismo tem aparência de torso— têm provocado reações acaloradas. Alguns estudiosos recentes do Antigo Testamento sustentam que não se deve pensar que a teologia do Antigo Testamento só aponta para Jesus Cristo ou termina nele, uma vez que isso denigre o judaísmo moderno. John H. Hayes fez críticas severas a Eichrodt e von Rad por causa do preconceito "anti-judaísmo" deles. Hayes disse: "Esse preconceito anti-judaísmo tem suas raízes no Novo Testamento e tem sido uma chaga cancerosa na igreja em toda parte".12 Hayes alega que "o judaísmo deve ser visto como uma continuação tão legítima das escrituras hebraicas quanto o cristianismo. São ambas filhas legítimas da mesma velha genitora".13 Nesse particular, há atritos. O Novo Testamento e o cristianismo histórico alegam que o cumprimento do Antigo Testamento se dá em Cristo. A maioria dos judeus e muitos estudiosos cristãos do Antigo Testamento alegam que os judeus têm tanto direito de acreditar que o Antigo Testamento se cumpre no judaísmo moderno quanto os cristãos de crer que ele se cumpre somente em Cristo. Conseguiremos resolver essa questão? Existe um "centro", "coração" ou "núcleo" no Antigo Testamento que aponta inevitavelmente para Cristo? Seria a teologia do Antigo Testamento uma disciplina unicamente cristã? Sim, se Eichrodt, von Rad, o Novo Testamento e talvez o próprio Antigo Testamento estiverem corretos em declarar que existe um processo ou movimento que se desenvolve em todo o Antigo Testamento e tem seu alvo ou cumprimento em Jesus Cristo. Isso significa que a teologia do Antigo Testamento deve focalizar apenas esse processo ou movimento e não levar em consideração todos os dados ,<>Theology o f the Old Testament I, 18. " Ibid., 26. u Hayes e Prussner, Old Testament Theology: Its History and Development, 276. 11 Ibid.. 279. 20 TEOI.OCIA do A n t ig o T e s t a m e n t o veterotestamentários como história, lei, culto e sabedoria em seu próprio contexto dentro do Antigo Testamento? A resposta a essa questão terá algum peso quando se tentar decidir se a teologia do Antigo Testamento é uma disciplina normativa ou descritiva. Essas e outras questões serão tratadas no capítulo 2 sobre "a natureza e o método da teologia do Antigo Testamento". Antes, devemos analisar a história da teologia do Antigo Testamento. Como ela começou? Como tem caminhado na condição de disciplina independente? Qual a situação atual dos estudos? 1 A história da teologia do Antigo Testamento 1. A teologia do Antigo Testamento: uma disciplina moderna com raízes antigas A história da teologia do Antigo Testamento é longa, fascinante e sinuosa. Embora essa disciplina em sua forma moderna mal tenha 200 anos, suas raízes remontam ao próprio Antigo Testamento. Muitos estudiosos do Antigo Testamento datam o início do estudo moderno da teologia do Antigo Testamento com a palestra inaugural de Johann Philipp Gabler na Universidade de Altdorf em 1787.' Até a época de Gabler a igreja não fazia distinção entre teologia dogmática e teologia 1 Veja Hayes e Prussner, 2; Hasel, Basic Issues, IS (publicado no Brasil pela JUERP como Teologia do Amigo Testamento)\Ollenburger, Martens e Hasel, The Flowering o f Old Testament Theology, 489,507,527; Martin H. Woudstra, "The Old Testament in Biblical Theology and Dogmatics", 47-51. 22 T e o l o g ia do A n t ig o T e s t a m e n t o bíblica ou entre teologia do Novo Testamento e teologia do Antigo Testamento. Gabler pensava que se deviam fazer essas distinções. Embora ele não tenha escrito uma teologia do Antigo Testamento, estabeleceu os princípios básicos e o método pelos quais seria possível escrever uma teologia bíblica e uma teologia do Antigo Testamento. Gabler era racionalista e provavelmente estava irritado com o que considerava uma força repressora que a igreja exercia sobre a exegese e sobre a interpretação das Escrituras. Naquela época talvez só um racionalista poderia pedir ou teria pedido de fato uma separação entre teologia dogmática e bíblica. A separação que se seguiu teve um efeito distorcido. Em vez de estabelecer as doutrinas do Antigo Testamento de modo mais claro, as primeiras teologias do Antigo Testamento filtraram o material teológico do Antigo Testamento com as lentes do racionalismo. É provável que o primeiro livro a usar o título Teologia do Antigo Testamento tenha sido Theologie des Alten Testaments de G. L. Bauer, publicado em Leipzig em 1796. Bauer também era racionalista; Hayes e Prussner disseram que Bauer avaliava continuamente o material do Antigo Testamento segundo os padrões de sua interpretação racionalista da religião. Desviou-se do seu caminho “para destacar os elementos mitológicos, lendários ou miraculosos nas escrituras hebraicas e para rejeitá-los como superstições de uma raça primitiva”.2 Joseph Blenkinsopp disse que Bauer obteve a distinção de escrever a primeira teologia do Antigo Testamento e, ao mesmo tempo, de rejeitar como indignos de maior atenção cerca de quatro quintos do Antigo Testamento.3 2. Lançando a semente da teologia do Antigo Testamento Para que se possa entender os problemas da teologia do Antigo Testamento e os debates sobre ela, precisa-se começar não com Gabler, mas com o próprio Antigo Testamento. E depois deve-se rastrear a história do uso teológico que vários grupos têm feito do Antigo Testamento através dos séculos. Os últimos autores do Antigo Testamento fizeram uso teológico de alguns dos escritos mais antigos. Zacarias se referiu várias vezes aos ensinos dos “primeiros profetas” (veja Zc 1.4; 7.7, 12). Ageu devia conhecer a profecia de Jeremias de que Deus retiraria seu “anel do selo” da mão de Jeconias (Jr 22.24-25), quando disse que o Senhor faria de Zorobabel, neto de Jeconias, como um anel de 2 Hayes e Prussner, 69. 3 Blenkinsopp, "Old Testament Theology and the Jewish-Christian Connection", 3. A HISTÓRIA DA TEOLOGIA DO ANTIGO TESTAMENTO 23 selar (Ag 2.23). Jeremias falou de uma nova aliança (Jr 31.31-34). Outros profetas falaram de um novo êxodo (Is 43.14-21; 48.20; 52.12) e de um novo Davi (Jr 23.56; Ez 34.23-24; 37.24-27). O precursor do Messias seria uma “vinda” de Elias (Ml 4.5-6). A comunidade de Qumran interpretava teologicamente o material do Antigo Testamento. Escreveram comentários sobre alguns livros do Antigo Testamento e cantavam hinos baseados em temas do Antigo Testamento. Viam a si mesmos como pessoas que estavam vivendo nos últimos dias e acreditavam que o Antigo Testamento estava sendo cumprido em algumas de suas experiências. Existem semelhanças e contrastes entre o método de interpretação de Qumran e o usado no Novo Testamento. Ambos reinterpretavam o Antigo Testamento de acordo com sua própria situação. Ambos acreditavam que as profecias do Antigo Testamento continham algo misterioso, cujo significado era revelado a seus líderes (o mestre da justiça no caso da comunidade de Qumran e Jesus para os cristãos do primeiro século). Nenhuma comunidade criou eventos para se adaptar às Escrituras, mas ambas interpretaram as Escrituras de modo que elas se encaixassem nos seus eventos da época. A principal diferença entre a interpretação do Antigo Testamento em Qumran e a dos autores do Novo Testamento está em o povo de Qumran ainda esperar pelo Messias. No Novo Testamento as pessoas afirmavam que ele já tinha vindo. Além disso, os escritores do Novo Testamento entendiam que os gentios estavam incluídos na promessa abraâmica (Rm 9.24-26; IPe 2.10). Tal aplicação das Escrituras do Antigo Testamento —estendendo aos gentios privilégios iguais dentro da aliança abraâmica— teria sido inaceitável para a seita de Qumran.4 O Novo Testamento fez uso teológico do Antigo Testamento. Dos 27 livros do Novo Testamento, apenas Filemom não mostra nenhuma relação direta com o Antigo Testamento. Henry Shires disse que se todas as influências do Antigo Testamento fossem retiradas do Novo Testamento, este iria “consistir de trechos pequenos e sem sentido”.5 Os escritores do Novo Testamento nunca questionam a natureza escriturística do Antigo Testamento; tampouco elaboram um sistema teológico a partir dele.6 Jesus falou com autoridade, originalidade, novidade e liberdade ao lidar com as Escrituras do Antigo Testamento. Ele se colocou acima delas; não considerava o Antigo Testamento completo ou a última palavra de Deus, mas aceitava-o como as primeiras palavras de Deus. Jesus disse: “Não penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas; não vim para revogar, vim para cumprir” (Mt 5.17). 4 Veja discussão sobre como a comunidade de Qumran usava o Antigo Testamento em Ralph L. Smith, MicahMalachi, WBC 32, 179-180; e F. F. Bruce, Biblical Exegesis in lhe Qumran Texts. 5 Finding the Old Testament in the New, 15. 6 Veja C. H. Dodd, According to the Scriptures, 12. 24 T e o l o g ia do A n t ic o T e s t a m e n t o Em cinco exemplos no Sermão do Monte, Jesus colocou sua autoridade acima da Lei, não para anular ou ab-rogar a Lei, mas para preenchê-la com um significado mais elevado e pleno (Mt 5.21-22, 27-28, 33-35, 38-39, 43-45). Paulo fez uso teológico do Antigo Testamento. Sustentou sua doutrina de justificação pela fé fazendo referência a Habacuque 2.4 (veja Rm 4.3; G1 3.6). Fez citações a partir de vários salmos como evidência de que “todos pecaram” (Rm 3.10-18). Outros escritores do Novo Testamento fizeram uso teológico do Antigo Testamento (IPe 1.10-12; Hb 1.1; 10.1), mas em nenhum lugar apresentam uma teologia do Antigo Testamento. Mateus, por exemplo, referiu-se a muitas passagens do Antigo Testamento para tentar convencer os judeus de que Jesus era o Messias. A igreja primitiva derrotou o marcionismo e reteve todo o Antigo Testamento como suas Escrituras, mas não concentrou toda a sua atenção nele. A igreja continuou a pesquisar as Escrituras, mas não escreveu comentários sobre ele como fez a comunidade de Qumran. Jesus, não o Antigo Testamento, era o centro da fé da igreja primitiva. Quando Paulo se tomou o apóstolo dos gentios, surgiu uma contenda sobre a necessidade de exigir dos convertidos gentios a observância das leis judaicas no Antigo Testamento. O concílio de Jerusalém decidiu que as leis da aliança de Moisés não deveriam ser aplicadas aos cristãos gentios. “Pois pareceu bem ao Espírito Santo e a nós não vos impor maior encargo além destas coisas essenciais: que vos abstenhais das coisas sacrificadas a ídolos, bem como do sangue, da carne de animais sufocados e das relações sexuais ilícitas; destas coisas fareis bem se vos guardardes. Saúde” (At 15.28-29). Muitos antigos pais da igreja não mantiveram a perspectiva neotestamentária do Antigo Testamento. Envolveram-se em amargas controvérsias com alguns judeus e com grupos heréticos antigos. Usavam o Antigo Testamento para defender sua fé e como uma fonte para seu ensino, mas ao fazê-lo recorriam muitas vezes ao uso excessivo de alegoria e tipologia. O autor da Epístola de Bamabé (cerca de 130 d.C.) considerava o Antigo Testamento um livro de parábolas e um depósito de mistérios que não podiam ser entendidos pelos judeus nos tempos do Antigo Testamento. Bamabé encarava o bode emissário (Lv 16.10) como um tipo de Cristo. A lã escarlate com que ele era coroado apontava para o manto escarlate de Cristo em seu julgamento. Bamabé encarava a novilha vermelha de Números 19.2-3 como um tipo de Cristo. Para ele, os 318 homens no exército de Abraão apontavam para a crucificação, pois o número “trezentos” em grego é representado pela letra tau, que tem a forma de uma cruz. Os números “dez” e “oito”, totalizando dezoito, são representados pelas letras iota e eta, as duas primeiras letras no nome de Jesus. Tais extremos na interpretação do Antigo Testamento eram uma característica dos primeiros séculos da igreja cristã. Só uns poucos lugares, como a escola de Antioquia (e mesmo ali apenas por curto tempo), viram algum esforço A HISTÓRIA DA TEOLOGIA DO ANTIGO TESTAMENTO 25 real por interpretar o Antigo Testamento à luz de seu contexto histórico. A teologia do Antigo Testamento em seu sentido moderno não poderia existir em tal ambiente religioso. O Antigo Testamento não teve melhor sorte na Idade Média do que teve nos tempos mais antigos. Na realidade, ele foi quase completamente ignorado ou esquecido. Os textos gregos e hebraicos não constituíam mais a base do estudo bíblico. Mesmo os estudiosos liam apenas a antiga versão latina (a Vulgata). A Idade Média enfatizava a autoridade da igreja, não da Bíblia. Os estudiosos simplesmente sistematizavam o que os pais da igreja haviam dito, dando pouca atenção às Escrituras. A igreja nada fazia para encorajar a pesquisa ou a busca de novas verdades na Palavra. O mundo medieval era estático. O menor desvio de qualquer ensino da igreja naqueles dias traria sobre a cabeça do inovador a condenação da igreja, condenação que os cristãos medievais temiam mais do que qualquer outra coisa. Na Idade Média os estudiosos ensinavam que toda passagem das Escrituras tinha quatro significados: literal ou histórico; alegórico ou teológico — aquilo em que devemos crer; moral ou tropológico — o que devemos fazer; e espiritual ou anagógico — para onde estamos nos dirigindo. Pode-se ver um exemplo dos quatro significados nos vários sentidos atribuídos à palavra “maná”. Literalmente, maná era o alimento que Deus fornecia de modo miraculoso para os israelitas no deserto. Alegoricamente, era o sacramento bendito na eucaristia. Tropologicamente, era a substância espiritual diária da alma mediante o Espírito de Deus que nela habita. E anagogicamente, ele se tomou o alimento das almas benditas no céu — a “visão beatífica” e a união perfeita com Cristo. Essa era a situação na igreja romana desde cerca de 800 até 1500. Esse tipo de hermenêutica não podia produzir uma teologia do Antigo Testamento. A longa e escura noite do período medieval terminou com o início da Renascença. A Renascença começou provavelmente na Itália pouco depois de 1300 como um avivamento do aprendizado acerca de artes, ciências e literatura clássica do mundo antigo grego e latino. Espalhou-se para outros países durante os séculos subseqüentes (1400 a 1600) e marcou a transição do mundo medieval para o moderno. Uma característica distintiva da Renascença foi a redescoberta do valor e da individualidade das pessoas. Na Idade Média o indivíduo era um dente de engrenagem na maquinaria da humanidade. Reventlow conta que, para alguns, a Renascença foi o clímax na história do espírito humano. Trazido à vida pela redescoberta da antiguidade, a Renascença encontrou as forças do novo individualismo em toda parte — na política, na arte e na educação. Fluiu o entusiasmo por estética, liberdade de pensamento, seriedade moral, paixão desenfreada, desejo de vingança sangrenta e ascetismo —tudo junto, numa 26 T e o l o g ia do A n t ig o T e s t a m e n t o justaposição inimitável. Podemos também encontrar nessas atitudes o germe de uma alienação firmemente arraigada da religião tradicional.7 O que acontecia com o Antigo Testamento em meio a tudo isso? Foi redescoberto como um dos “clássicos”. Alguns estudiosos judeus haviam mantido certa familiaridade com a Bíblia Hebraica. Um judeu convertido, Nicolau de Lyra (cerca de 1340), defendia um novo método de interpretar as Escrituras. Lyra dizia que o significado literal ou histórico era o único significado verdadeiro das Escrituras. Lyra parece ter influenciado Martinho Lutero em seu rompimento com a visão quádrupla da interpretação da Bíblia. Lutero, porém, começou com um princípio bem diferente daquele que busca o sentido literal de cada passagem das Escrituras. É provável que John Wycliffe tenha influenciado a visão de Lutero acerca da Bíblia mais do que Lyra. Wycliffe (1328-1384), formado em Oxford e monge agostiniano, seguia o ensino de Agostinho segundo o qual a verdadeira igreja era composta por aqueles que Deus escolheu para a salvação e não necessariamente pelos que estão na Igreja Católica Romana. Baseado nesse ensino, a filiação numa igreja visível e a participação em seus sacramentos nada tinham que ver com a salvação. Isso tomava desnecessário todo o sistema católico. A denúncia amarga de Wycliffe contra o papa como o Anticristo e contra os pecados do clero preparou o caminho para a revolta. Mesmo efeito teve o seu apelo à Bíblia como autoridade última. Lutero, assim como Wycliffe, enfatizou não tanto o significado literal das Escrituras, mas a autoridade das Escrituras acima da autoridade do papa e da igreja. Continuou a usar a alegoria ao interpretar o Antigo Testamento e não fez nenhuma distinção entre a autoridade dos dois Testamentos. Para ele, o Antigo Testamento continha a plena revelação de Cristo. No prefácio à edição de 1523 de sua tradução, escreveu: Aqui (no Antigo Testamento) encontrarás as faixas e a manjedoura em que Cristo está deitado — pobres e de pequeno valor são as faixas, mas caro é o Cristo, o tesouro que nelas está deitado.8 De novo, na mesma obra, escreveu: Moisés é a fonte de toda a sabedoria e entendimento, da qual jorra tudo o que é conhecido e dito por todos os profetas. O Novo Testamento também 7 Veja H. G. Reventlow, The Authority o f the Bible, 10. * Citado por G. F. Oehler, Theology o f Old Testament, 24. A HISTÓRIA DA TEOLOGIA DO ANTIGO TESTAMENTO 27 flui dele, e nele está fundado. — Se desejas interpretar bem e com segurança, toma Cristo para ti; pois ele é o único homem ao qual tudo se refere. Assim, portanto, não vejas ninguém no sumo sacerdote Arão, senão somente Cristo.9 Isso parece alegoria ou tipologia, e é mesmo. Mas ao reivindicar que se deixasse a Bíblia falar por si, Lutero fez avanços em relação àqueles vieram antes dele. João Calvino foi mais longe que Lutero na aplicação do princípio de que toda passagem bíblica tem apenas um significado literal. Calvino lançou os alicerces para a exegese histórica insistindo que toda passagem bíblica deve ser interpretada de acordo com seu próprio contexto histórico. De fato, Calvino era um expositor tão histórico dos profetas, a ponto de seus adversários referirem-se a ele como “o judaizante Calvino”. No tratamento doutrinário do Antigo Testamento, porém, ele tomou uma posição tão rígida quanto a de Lutero. Para Calvino, a diferença entre os Testamentos não estava em suas doutrinas, mas em suas forma. Calvino cristianizou o Antigo Testamento de tal maneira que quase perdeu a visão da novidade do evangelho. Para ele, a diferença entre as duas revelações estava apenas no nível de clareza. Uma vez que nem a Reforma detectou a verdadeira relação entre os Testamentos, nenhum reformador tentou escrever uma teologia do Antigo Testamento. Um período de escolasticismo protestante veio imediatamente após a Reforma. Em seus vigorosos debates com os católicos romanos, os protestantes desenvolveram um autoritarismo tão rígido quanto o da igreja romana, com a única diferença de que os protestantes tinham na Bíblia a sua autoridade final. Contestavam com firmeza qualquer pessoa ou movimento que desafiasse sua visão das Escrituras, chegando até mesmo a alegar que toda palavra e toda letra do texto original era inspirada — incluindo os pontos vocálicos do hebraico. Em 1538 um estudioso judeu, Elias Levita, desafiou essa visão e sustentou que os pontos vocálicos não faziam parte dos textos hebraicos originais. Johann Buxtorf e seu filho, da Universidade de Basiléia, debateram duramente por muito tempo para defender a visão ortodoxa, mas no final perderam a causa. Sabemos agora a partir de descobertas como a dos manuscritos do Mar Morto que o texto hebraico original não tinham sinais vocálicos. Estes foram inventados pelos massoretas entre 500 e 800 d.C. Para os católicos, o “argumento a partir das Escrituras” começou pouco tempo depois de 1500, na época do Concílio de Trento. Começou principalmente como uma resposta à controvérsia com os protestantes ou nas controvérsias entre jesuítas e dominicanos. Joseph Blenkinsopp deu a entender que uma das razões 9 Citado por Oehler, 2. 28 T e o i .o c ia do A n t ig o T e st a m e n t o pelas quais a Bíblia foi dividida em versículos nesse período foi “o propósito de fornecer munição rápida para fins de controvérsia”.10 Além de Lutero e Calvino, outros grupos desafiaram a visão tradicional das Escrituras, incluindo os anabatistas e socinianos. Os anabatistas em geral rejeitavam o Antigo Testamento como autoridade para os cristãos, alegando que ele era um livro destinado apenas para os judeus. Acreditavam também que o Antigo Testamento não contém nenhuma crença em imortalidade do indivíduo." Os socinianos admitiam o caráter divino do Antigo Testamento, mas sustentavam que agora ele era apenas de interesse histórico e não essencial para a doutrina cristã.12 Os anabatistas e socinianos foram os primeiros de muitos a tentar romper com a tradição em direção a uma abordagem mais objetiva do Antigo Testamento — um tratamento que conduz por fim à verdadeira teologia do Antigo Testamento. Pouco depois de 1600 George Calixtus negou que o Antigo Testamento contém a doutrina da trindade. Outros tentaram voltar à Bíblia como fonte principal de sua teologia. Desses, os mais proeminentes foram Cocceius (1603-1669), líder dos pietistas, e G. C. Storr, fundador da “Antiga Escola de Tübingen”.13 Juntamente com esses homens e movimentos, as universidades se tornaram centros para publicação de textos-prova — (dieta probantia) extraídos de todas as partes da Bíblia para sustentar a doutrina ortodoxa. Dentan disse que embora a maioria das obras escritas a partir desse ponto de vista fosse inexpressiva e artificial no tratamento da Bíblia, esses livros “continham a semente do interesse a partir do qual se devia desenvolver o estudo da teologia bíblica, e o último deles, um tratado por Cari Haymann (1768), era de fato intitulado Biblische Theologie”.1* 3. A germinação e o crescimento da teologia do Antigo Testamento Se a semente do interesse na teologia bíblica pode ser vista nas obras dos que usaram textos-prova para sustentar a doutrina ortodoxa, ela foi nutrida pelos que usaram textos-prova para criticar a ortodoxia. O método de textos-prova nunca poderia produzir uma verdadeira teologia do Antigo Testamento. A teologia do Antigo Testamento é basicamente uma disciplina histórica e descritiva. Só depois 10 A Sketchbook o f Biblical Theology, 6. 11 Veja Emil G. Kraeling, The Old Testament Since the Reformation, 22. 12 Ibid., 40. 13 Dentan, Preface to Old Testament Theology, 16-17. 14 Ibid., 418. A HISTÓRIA DA TEOLOGIA DO ANTIGO TESTAMENTO 29 da descoberta dos princípios histórico-gramaticais de interpretação é que poderia ser escrita uma verdadeira teologia do Antigo Testamento. Isso não ocorreu até a Era da Razão. A Era da Razão foi uma conseqüência da Renascença e da Reforma. Os cruzados tinham redescoberto os clássicos gregos na ciência e na filosofia. Os pioneiros da ciência moderna, orientando-se a partir dos antigos clássicos gregos, começaram a desafiar as teorias tradicionais acerca do universo. Copémico (14731543) insistiu que o sol, não a terra, era o centro do universo; e Sir Isaac Newton (1642-1727) via o mundo como uma máquina movida por leis naturais. Os deístas ingleses, tais como Lord Herbert de Cherbury e Thomas Hobbes (1588-1679), não negavam a existência de Deus, mas excluíram da história e da natureza a revelação, os milagres e o sobrenatural. O deísmo inglês não sobreviveu, mas o racionalismo alemão, sim. J. D. Michaelis (1717-1791) e J. D. Semler (1725-1792) foram figuras fundamentais na aplicação dos princípios do racionalismo à Bíblia. A Era da Razão descobriu o princípio histórico-gramatical de interpretação das Escrituras, desenvolveu habilidades e instrumentos apropriados para a pesquisa e libertou da autoridade da igreja e do estado os estudiosos da Bíblia e os teólogos. Johann Philipp Gabler foi o primeiro racionalista a clamar por uma disciplina de teologia bíblica em separado das outras. Acreditava que muita confusão no mundo cristão era provocada em grande parte pelo uso impróprio da Bíblia e pelo fato de os ministros da igreja não fazerem distinção entre a teologia dogmática e a religião histórica simples da Bíblia. Em sua palestra inaugural na Universidade de Altdorf, em 30 de março de 1787, intitulada “De iuso discrimine theologiae biblicae et dogmaticae regundisque recte utriusque fm ibus” (“Da distinção correta entre as teologias bíblica e dogmática e da determinação adequada dos alvos de cada uma delas”), Gabler pediu a separação das duas disciplinas. Por essa razão, ele é muitas vezes chamado o pai da teologia bíblica. Para Gabler, a teologia dogmática é didática e normativa em caráter e ensina o que um teólogo em particular decide acerca de uma matéria de acordo com seu caráter, tempo, idade, lugar, seita ou escola. A teologia bíblica é histórica e descritiva em caráter, transmitindo o que os escritores sagrados pensavam acerca de assuntos sagrados. Gabler estabeleceu os princípios para fazer a teologia bíblica. Disse que o teólogo bíblico deve primeiro estudar cada passagem das Escrituras separadamente de acordo com os princípios histórico-gramaticais de interpretação. Segundo, deve comparar as passagens específicas das Escrituras umas com as outras, observando diferenças e semelhanças. Terceiro, deve sistematizar ou formular idéias gerais sem distorcer o material nem obliterar distinções. 30 T e o l o g ia do A n t ig o T e s t a m e n t o Gabler inspirou muitos estudiosos a escrever teologias bíblicas. G. L. Bauer (1755-1806) foi o primeiro a publicar uma teologia do Antigo Testamento.15 A organização desse livro em três seções —teologia, antropologia e cristologia— mostrou que Bauer continuava a depender das rubricas da teologia dogmática. Sua interpretação dos dados bíblicos, porém, era ingenuamente racionalista. “Qualquer idéia de revelações sobrenaturais de Deus por meio de teofanias, milagres ou profecias deve ser rejeitada, uma vez que essas coisas são contrárias à razão sadia e podem-se encontrar facilmente seus paralelos entre os povos.16 O campo da teologia bíblica foi ocupado quase exclusivamente por racionalistas durante cinqüenta anos depois da palestra de Gabler. Os racionalistas libertaram a teologia bíblica da influência desordenada da teologia dogmática, mas colocaram-na imediatamente debaixo da tirania do racionalismo. A influência da filosofia sobre a teologia do Antigo Testamento pode ser sentida no afastamento de W. M. L. de Wette do racionalismo extremo. Com a publicação de Biblische Dogmatick em 1813, tentou colocar-se acima tanto do racionalismo como da ortodoxia para alcançar uma unidade mais elevada da fé e do sentimento religioso. De Wette recebeu forte influência de Jacob Fries, seu professor e colega na Universidade de Jena. Fries, tal como Schleiermacher, foi educado pelos irmãos morávios e tinha fortes sentimentos religiosos. O pensamento de Fries, porém, era mais kantiano. Pode-se ver a influência de Kant também na obra de de Wette. Para de Wette, revelação significava “qualquer idéia religiosa verdadeira expressa em linguagem ou símbolo”.17 Tais idéias verdadeiras, segundo de Wette, não podem aparecer sem o Espírito de Deus atuando mediante a razão. O pensador, portanto, deve sempre estar consciente da dependência desse poder mais elevado. Três filósofos extraordinários que trabalharam na Europa durante a primeira parte do século XIX exerceram um efeito tremendo sobre a teologia do Antigo Testamento. Foram eles Friedrich Schleiermacher (1768-1834), pai da teologia moderna, George Wilhelm Hegel (1770-1831) e Soren Kierkegaard (18131855). Schleiermacher foi um influente pastor em Berlim, que fez do sentimento de dependência a base da fé cristã. Schleiermacher tinha um baixo conceito do Antigo Testamento. “Para ele, foi por mero acidente histórico que o cristianismo se desenvolveu do solo do judaísmo.” 1* Hegel foi colega de Schleiermacher e de de Wette na Universidade de Berlim. A característica mais importante da filosofia de Hegel é a sua natureza dialética. Para Hegel, todas as coisas no mundo têm o seu oposto, toda tese, a sua 15 Theologie des Allen Testaments, Leipzig, 1796. 16 Dentan, Preface to Old Testament Theology, 27. 17 Biblische Dogmatick, 25. '* Dentan, Preface to Old Testament Theology, 35. A HISTÓRIA DA TEOLOGIA DO ANTIGO TESTAMENTO 31 antítese. Cada tese e antítese se juntam para formar uma síntese, que se torna uma nova tese para um estágio mais elevado de pensamento ou ser. Assim, segundo Hegel, a idéia do desenvolvimento de um estágio mais baixo para um mais alto era a chave para a compreensão do segredo do universo. O efeito de tal filosofia revolucionou nosso entendimento de quase todas as áreas da vida, incluindo o estudo da teologia do Antigo Testamento. A teoria de desenvolvimento de Hegel foi quase imediatamente aplicada ao Antigo Testamento por seu aluno e colega, Wilhelm Vatke, que publicou Biblische Theologie em 1835. Por causa de seu estilo e terminologia filosóficos e de sua visão extremamente nova e crítica do Antigo Testamento a obra não teve aceitação geral. Embora sua influência não tenha sido notada por quase 25 anos, essa aplicação da filosofia de Hegel ao estudo do Antigo Testamento levou ao estabelecimento, por Wellhausen, da moderna hipótese documentária do Pentateuco e, por fim, à morte da teologia do Antigo Testamento. Seren Kierkegaard, o “Dinamarquês Melancólico”, rejeitou a dialética de Hegel com sua ênfase no racionalismo em favor de uma ênfase existencial na experiência. A questão central para Kierkegaard era: “Que significa ser cristão — na cristandade?” Ele via no Cristianismo a verdade que os homens não conseguem descobrir por si mesmos. Kenneth Scott Latourette disse sobre Kierkegaard: Ele rejeitou de modo veemente o hegelianismo com suas tentativas de alcançar a verdade mediante a razão humana. Para ele, falar da racionalidade do cristianismo era traição, porque isy> sujeitava a autorevelação do Deus infinito a padrões humanos. Cristianismo, sustentava, não pode ser verificado pela mente humana; é um escândalo, uma pedra de tropeço, para nossas faculdades intelectuais. Dava ênfase ao caráter paradoxal do cristianismo. A nota central da fé cristã é Deus no tempo; isso, contudo — declarou— é pura contradição, pois Deus é etem o por definição. Diante de Deus o homem é sempre um pecador e tanto o seu melhor como o seu pior se colocam debaixo do julgam ento de Deus e precisam do perdão divino. Entre o Deus sem pecado e o homem pecaminoso abre-se um profundo abismo. Contudo, o paradoxo é resolvido em Deus e por Deus. O que é impossível para a razão humana foi feito por Deus. O Etem o entra no tempo: o Filho de Deus se tom a encarnado, unindo os dois elementos irreconciliáveis, Deus e homem. Fez isso incógnito e em fraqueza. A cruz é uma ofensa tanto para a razão do homem como para o seu senso moral. Pelo salto da fé sacrificamos nosso intelecto e aceitamos o que Deus fez por nós. Kierkegaard foi atingido 32 T e o ix >g ia do A n t ig o T e s t a m e n t o pelo contraste entre “cristandade” e as exigências de Cristo. Para ele a cristandade é uma ilusão prodigiosa: ela matou o cristianismo.19 Os conservadores entraram no campo da teologia bíblica cerca de 50 anos após a palestra de Gabler. O primeiro conservador no campo da teologia bíblica foi E. W. Hengstenberg. Ele foi educado na tradição reformada e exposto a fortes influências racionalistas como estudante da Universidade de Bonn. Reagindo ao racionalismo extremo da universidade, experimentou mudança marcante em sua visão em 1823 quando entrou na escola Missionária de Basiléia. Em 1824 foi da escola Missionária para a Universidade de Berlim. Já era profundamente piedoso, “cheio de zelo pela ortodoxia e pronto para combater com forte mão toda forma de erro”.20 O pietismo contava com o favor da corte real de Frederick William III (1770-1840), de modo que a promoção de Hengstenberg foi rápida e fácil. Em 1825 tomou-se membro do corpo docente de Berlim, opondo-se aos colegas Vatke, Schleiermacher, Bleek, Hegel e Neander. Em 1827 começou a publicação de “Evangelical Church Review”. Era dedicado defensor do rei e de outras causas conservadoras. Seu ódio à democracia e ao governo constitucional levou-o a apoiar os estados do sul dos EUA em defesa da escravidão e a condenar amargamente o presidente Lincoln.21 Hengstenberg não escreveu nenhuma teologia do Antigo Testamento, mas publicou Christology o f the Old Testament, em 4 volumes, um comentário sobre as profecias messiânicas do Antigo Testamento. A publicação dessa obra marcou um vigoroso e novo despertar da visão estritamente ortodoxa da Bíblia. Hengstenberg rejeitava qualquer idéia de progresso real na revelação, quase não fazendo distinção entre os Testamentos e apresentando uma interpretação “espiritual” das profecias do Antigo Testamento que quase ignora qualquer consideração de sua referência original.22 H. A. C. Havemick, aluno de Hengstenberg e jovem professor em Königsberg, escreveu Vorlesungen über die Theologie des Alten Testaments (1848), obra bem conservadora com algumas percepções novas e estimulantes. Ele exigia o uso dos métodos históricos objetivos no estudo do material, mas reconhecia que estes por si não dariam resultados adequados. O estudante deve ter uma “atitude teológica” que vem por meio da f é e da experiência. Havemick disse que Deus revela a si mesmo não em idéias abstratas, mas numa série de atos que formam um todo orgânico em desenvolvimento. 19 Nineteenth Century in Europe, 143-144. 20 A. H. Newman, A Manual o f Church History 11, 556. 21 Ibid., 558. 22 Dentan, Preface to Old Testament Theology, 41. A HISTÓRIA DA TEOLOGIA DO ANTIGO TESTAMENTO 33 Neste último ponto Havernick estava muito perto de outro extraordinário estudioso conservador desse período, J. C. K. von Hofmann (1810-1877), de Erlangen. Von Hofmann foi um dos pilares na formação da história da salvação, ou Heilsgeschichte, escola do século X IX . Segundo Hofmann, a Bíblia é um registro linear da história da salvação em que o Senhor ativo da história é o Deus triúno, cujo propósito e meta é redimir a humanidade. Em seu livro Promise and Fulfillment, von Hofmann argumentou que o Antigo e o Novo Testamentos mantêm entre si a relação de profecia e cumprimento, mas destacou que Cristo foi o cumprimento de toda a história de Israel. A abordagem da fé bíblica segundo o ponto de vista da história da salvação tem exercido tremenda influência através dos anos e pode ser vista em obras de estudiosos mais recentes como G. E. Wright e Gerhard von Rad. Gustav Friedrich Oehler (1812-1872), de Tübingen, dominou o estudo do Antigo Testamento até 1875. Aluno de Steudel, um racionalista, recebeu forte influência de Hegel. Criticou seu professor por não ver que a religião hebraica tinha apresentado crescimento orgânico. Publicou seu Prolegomena to Old Testament Theology em 1845, mas seu livro mais longo sobre a teologia do Antigo Testamento foi publicado postumamente por seu filho, Theodor Oehler, em 1873. Apresentou o material em três partes: Mosaísmo, Profetismo e Sabedoria. O livro Old Testament Theology de Oehler foi a primeira obra do gênero a ser traduzida para o inglês (1874-1875). O ano de 1878 marca o início do período de fracasso da teologia do Antigo Testamento. Naquele ano Julius Wellhausen publicou seu Prolegomena zur Geschichte Israels, culminação lógica da abordagem genética e desenvolvimentista da história da literatura e religião de Israel. Baseando sua obra na de Graf e Keunen, que o precederam, Wellhausen afirmou que os profetas do Antigo Testamento viveram antes da outorga da Lei. Ele chegou a essa conclusão em parte por meio de seu estudo do Antigo Testamento, ao julgar que os livros de Josué, Juizes, Samuel e Reis mostram pouco conhecimento das leis do Pentateuco, e em parte por causa de sua pressuposição de que todas as coisas se movem do simples para o complexo e da liberdade para o autoritarismo. Wellhausen acreditava que a religião do Antigo Testamento desenvolveu-se a partir da religião natural. Por trás dos sacrifícios e rituais de Israel estavam as 34 T f.o i .o c ia do A n t ig o T e s t a m e n t o festas agrícolas de seus vizinhos pagãos. Ele pensava que o antigo estágio agrícola da religião de Israel ainda podia ser visto nas fontes mais antigas da literatura de Israel.23 Segundo Wellhausen, Deuteronômio fez com que essas festividades agrícolas parecessem históricas e as amarrou à história da redenção. Ele não encontrou apenas uma teologia no Antigo Testamento, mas muitas teologias diferentes, todas seguindo a linha de desenvolvimento. A teologia que se encontra agora no Pentateuco é uma retroprojeção da fé posterior de Israel sobre o período mais antigo. Embora algumas teologias do Antigo Testamento continuassem a ser publicadas depois da obra de Wellhausen, eram em grande parte resultantes do período anterior. Nos países de língua inglesa bem pouco havia sido feito no campo da teologia bíblica antes de Wellhausen. A primeira obra extensa em inglês sobre teologia do Antigo Testamento foi The Theology o f the Old Testamení de A. B. Davidson, publicada em 1904. Embora tenha alguns aspectos indesejáveis, em grande parte por ter sido editada postumamente por um ex-aluno, continua uma obra útil. Se Davidson tivesse editado seu próprio livro, poderia ter-lhe dado outra forma. Ele dá a entender isso muito bem quando diz no capítulo inicial: [...] embora falemos em teologia do Antigo Testamento, tudo o que podemos tentar é apresentar a religião ou as idéias religiosas do Antigo Testamento. Da forma como se viam na mente do povo hebreu e expostas em suas Escrituras, essas idéias não constituem por enquanto nenhuma teologia. Não existe nelas nenhum sistema de nenhuma espécie. [...] Não encontramos uma teologia no Antigo Testamento; encontramos uma religião. [...] Somos nós mesmos que criamos a teologia quando damos a essas idéias e convicções religiosas uma forma sistemática ou ordenada. Portanto, nosso assunto é na realidade a História da Religião de Israel representada no Antigo Testamento.24 Ainda assim, Davidson apresentava suas aulas em forma de teologia sistemática e organizou seu livro do mesmo modo. Duas outras obras importantes sobre a teologia do Antigo Testamento foram publicadas nesse período de “hibernação”. The Religious Ideas o f the Old Testament, de H. Wheeler Robinson, e The Religious Teachings o f the Old Testament, de A. C. Knudson, foram publicadas em 1913 e 1918 respectivamente. Nenhum desses livros é abrangente nem tinha sobre si o título “teologia do Antigo Testamento”. Ambos seguem os padrões da teologia sistemática na apresentação do material. 11 Prolegomena to the History o f Israel, 83-120. M The Theology o f the Old Testament, 11. A HISTÓRIA DA TEOLOGIA DO ANTIGO TESTAMENTO 35 Vários volumes sobre a religião de Israel foram publicados durante esse período, tais como os escritos por R. L. Ottley, The Religion o f Israel;25 KarI Marti, The Religion o f the Old Testament;26 W. O. E. Oesterley e Theodore E. Robinson, Hebrew Religion: Its Origin and Development;27 e Harry Emerson Fosdick, A Guide to Understanding the Bible.2* Todos esses volumes seguiram a abordagem desenvolvimentista de Wellhausen até o movimento chegar à sua conclusão lógica. Walter Eichrodt disse que o livro de Fosdick representava o fim de uma era. O autor escreveu, para dizer francamente, o obituário de toda uma corrente de abordagem erudita e método de investigação. [...] Embora nenhum estudioso treinado de hoje vá negar a grande importância do princípio evolucionário na história, muito menos o seu valor em elucidar muitos fenômenos aparentemente enigmáticos da literatura bíblica, temos hoje viva consciência do perigo de pressupor a evolução unilinear das instituições ou idéias.29 James Smart disse que a teologia do Antigo Testamento “adoeceu, morreu e foi sepultada silenciosamente quando começava o século XX” .30 As causas da morte ou do fracasso da teologia do Antigo Testamento são várias. A obra de Wellhausen, uma das principais causas, dava ênfase à variedade de teologias no Antigo Testamento e negava destaque à sua unidade. Outra causa foi a reação contra os estudiosos mais antigos que enxergavam no texto suas pressuposições teológicas em quantidade excessiva. Nesta nova era, os estudiosos tentavam ser totalmente objetivos em sua abordagem das Escrituras. O terceiro fator que causou a morte da teologia do Antigo Testamento foi a falta generalizada de interesse na teologia per se no início do século XX. Os estudiosos do Antigo Testamento voltaram sua atenção antes para o estudo da arqueologia, das línguas semíticas e das religiões comparadas. Por quase vinte e cinco anos depois de Davidson publicar seu Old Testament Theology em 1904, fez-se muito pouco nesse campo. Mas no começo da década de 1930 uma nova corrente de dados começou a aparecer, corrente que se tomou um verdadeiro dilúvio por volta de 1950. 25 Cambridge: The University Press, 1905, 3* ed. 1926. 26 Trad. G. A. Bienmann (New York: G. P. Putnam’s Sons, 1907). 27 London: SPCK, 1930. 28 New York: Harper and Brothers, 1938. 29 Eichrodt, "Review: A Guide to Understanding the Bible, 205. 30 "The Death and the Rebirth o f Old Testament Theology", 1. T f. o i .o g ia 36 do A n t ig o T e s t a m e n t o 5. O reavivamento da teologia do Antigo Testamento O que causou essa súbita mudança na teologia do Antigo Testamento? O que a trouxe de volta à vida? A principal causa da mudança na teologia e nos estudos bíblicos foi a “precipitação radioativa” da Primeira Guerra Mundial. Antes de 1917, a atitude que prevalecia no mundo ocidental era de confiança no progresso inevitável. As pessoas podiam erguer-se por seus próprios esforços de qualquer crise e transformá-la em meio para alcançar um padrão mais elevado de vida. E então em apenas uma geração ocorreram duas guerras mundiais, com toda sua destruição, devastação, crueldade, ódio e alienação. A confiança no progresso inevitável e na bondade e capacidade inerentes à humanidade foi esmagada. As pessoas começaram a buscar uma fonte de força e uma palavra de orientação fora de si mesmas. Algumas encontraram essa força e orientação na Palavra de Deus. Karl Barth descreveu a mudança na teologia depois de 1918: O fim efetivo do século XIX como os “bons velhos tempos” chegou para a teologia e para tudo o mais com o ano fatídico de 1914. Acidentalmente ou não, naquele mesmo ano um evento significativo aconteceu. Emst Troeltsch, famoso professor de teologia sistemática e lfder da escola mais moderna de então, desistiu de sua cadeira de teologia por uma de filosofia. Um dia no começo do mês de agosto de 1914 sobressai em minha lembrança como um dia negro. Noventa e três intelectuais alemães impressionaram a opinião pública ao proclamar apoio à política de guerra de Guilherme II e seus conselheiros. Descobri horrorizado que entre esses intelectuais encontravam-se quase todos os meus professores de teologia pelos quais eu tinha grande veneração. Desesperado em saber o que isso indicava acerca dos sinais dos tempos, percebi de repente que eu não poderia mais seguir a ética ou a dogmática deles nem o entendimento que eles tinham da Bíblia e da história. Para mim pelo menos a teologia do século XIX não tinha mais nenhum futuro. Para muitos, se não para a maioria das pessoas, essa teologia não voltou a ser novamente o que era antes, uma vez que as águas da chuva que caiam sobre nós naquela época perderam um pouco de sua força.31 James Smart disse que o comentário de Karl Barth sobre Romanos, publicado em 1919, foi “como a explosão de uma bomba, ou melhor, como a introdução de uma substância química que provocou a separação dos elementos 31 The Humanity o f God, 14-15. A HISTÓRIA DA TEOLOGIA DO ANTICO TESTAMENTO 37 divergentes que se haviam misturado nos estudos eruditos do Novo Testamento”.32 Segundo Smart, a origem do comentário de Romanos foi a frustração sentida por dois pastores suíços, Barth e Thumeysen, ao tentar cumprir seus votos de ordenação para serem ministros da Palavra de Deus junto ao seu povo. Ambos tinham sido treinados em crítica histórica, mas não na compreensão da Palavra de Deus como revelação única de Deus ao povo. Contudo, era esse o ponto a partir do qual tinham de falar como ministros de Deus. Barth e Thumeysen voltaram-se para Lutero, Calvino, Kierkegaard e outros, à procura de ajuda. Desafiaram as conclusões de um século de estudos eruditos do Novo Testamento. Os leitores encontraram de imediato muitas falhas no comentário (ele foi talhado de modo tão rudimentar que Barth começou a reescrevê-lo assim que acabou), mas os estudiosos do Novo Testamento foram obrigados a reconhecer a legitimidade da abordagem teológica.33 Karl Barth abriu o caminho para a nova teologia dogmática que influenciou a teologia bíblica quase imediatamente. As sortes dessas duas disciplinas muitas vezes têm andado de mãos dadas. A teologia bíblica tem vivido e morrido à sombra da teologia dogmática. Um interesse renovado na teologia do Antigo Testamento começou em 1921 quando Rudolf Kittel falou em Leipzig para um grupo de estudiosos do Antigo Testamento sobre “o futuro da ciência do Antigo Testamento”. Kittel deu ênfase à incapacidade da investigação literária e histórica e pediu a “elucidação dos valores especificamente religiosos do Antigo Testamento”. Disse que os estudiosos devem fazer uma apresentação sistemática da essência da religião do Antigo Testamento e se aprofundar no segredo do poder divino em que ela se baseia.34 O. Eissfeldt e W. Eichrodt discutiram de modo acalorado de 1926 a 1929 se a teologia do Antigo Testamento era uma disciplina histórica. Eissfeldt argumentava que a história da religião de Israel e a teologia do Antigo Testamento eram duas disciplinas distintas e devem usar métodos e alvos diferentes. Eichrodt insistia que os teólogos do Antigo Testamento poderiam chegar à “essência” da religião do Antigo Testamento por intermédio dos mesmos métodos históricocríticos usados pelos pesquisadores da história da religião.35 Uma razão para o interesse renovado no Antigo Testamento depois da Primeira Guerra Mundial foi o fato de que muitos teólogos e políticos na Alemanha começaram a atacar o Antigo Testamento como parte de uma campanha de antisemitismo. Durante os últimos anos da década de 1920 e especialmente na década 32 Smart, The Interpretation o f Scripture, 276. 33 Ibid., 278. 34 "Die Zukunft der altestamentlichen Wissenschaft", 84-99. 35 Veja artigos de Eichrodt e Eissfeldt em Ollenburger, et. al., The Flowering o f Old Testament Theology, 3-39. 38 T e o l o g ia do A n t ig o T e s t a m e n t o seguinte, a luta na Alemanha concentrou-se no Antigo Testamento e começou a provocar pensamentos radicais sobre sua natureza e importância. Esses pensamentos radicais foram expressos em obras como: Adolph von Hamack, Marcion, das Evangelium vom Fremden Gott36-, Friedrich Delitzsch, Die grosse Täuschung I e II; Houston S. Chamberlain, Foundations o f the 19th Century37', Adolf Hitler, Mein Kampf (1925-1927); e Alfred Rosenberg, Myth o f the 20th Century (1930). Von Hamack disse que o Antigo Testamento devia ser retirado do cânon cristão e colocado no topo da lista dos apócrifos.” Friedrich Delitzsch, filho do famoso estudioso luterano conservador do Antigo Testamento Franz Delitzsch, era fortemente anti-semita. Ele considerava o Antigo Testamento um livro muito perigoso para os cristãos e também ensinava que Jesus era gentio. Houston Steward Chamberlain nasceu em 1855 em uma família de posição elevada no exército inglês. A saúde fraca impediu-o de prestar serviço militar e acabou com a possibilidade de ele lutar contra os alemães. Cedo em sua vida, Chamberlain tomou-se um apaixonado da arte alemã, levando-o a passar sua vida na Alemanha e na Áustria. Durante a primeira Guerra Mundial tomou-se cidadão alemão e amigo de Adolf Hitler no começo da década de 1920. Chamberlain viu a salvação da Alemanha vindo no movimento de Hitler, mas morreu em 1927, seis anos antes de Hitler tomar-se chanceler.39 Foundations, de Chamberlain, é uma obra em dois volumes em que ele argumenta que a história da Europa é um registro da luta entre indo-europeus e semitas. O ataque de Roma pelos cartigeneses e a invasão muçulmana da Europa foram dois exemplos dessa luta. Chamberlain via em Cristo uma pessoa de suma importância para a história do mundo e pensava que ele não era judeu. A obra de Chamberlain foi muito lida na Alemanha, desde a sua publicação (1889-1901) até 1918. O Kaiser doou pessoalmente dez mil marcos para a compra de exemplares para bibliotecas alemãs. Depois da guerra, sua popularidade retrocedeu; em 1938, porém, os nazistas a publicaram em forma de brochura barata, e ela passou por oito reimpressões com Hitler. Numa das edições populares, foi anunciado que mais de 200 mil exemplares tinham sido vendidos. O regime nazista (1933-1945) caracterizou-se por racismo (pureza e superioridade da raça alemã), nacionalismo (supremacia do estado alemão) e ênfase na terra (santidade da pátria alemã). Por essa razão, tudo o que não era alemão ou ariano tinha de ser isolado e submetido ao controle do estado alemão. Os judeus, com sua Bíblia hebraica (Antigo Testamento), tomaram-se alvo de extermínio. Até 36 Leipzig, 1924. 37 Muniquc, 1898. 31 Veja Bright, The Authority o f the Old Testament, 65. 39 Veja Tanner, The Nazi Christ, 2; Andrew J. Krzesinski, National Cultures, Nazism, and the Church (Bruce Humphries, 1945); D. L. Baker, Two Testaments one Bible (Downers Grove, InterVarsity Press, 1976), 79-85; H. G. Reventlow, Problems o f the Old Testament Theology, 28-43. A HISTÓRIA DA TEOLOGIA DO ANTIGO TESTAMENTO 39 alguns estudiosos cristãos emprestaram sua influência à eliminação dos judeus e do Antigo Testamento. W. F. Albright escreveu que Gerhard Kittel, filho mais novo do destacado estudioso de hebraico Rudolph Kittel e editor do Theological Wordbook o f the New Testament, “tomou-se porta-voz do mais feroz antisemitismo nazista, compartilhando com Emanuel Hirsch, de Gõttingen, o mérito sinistro de tomar o extermínio dos judeus teologicamente respeitável”.40 Segundo S. J. de Vries, o regime nazista na Alemanha tornou-se possível principalmente porque estudiosos bíblicos modernos antes de 1933 gostavam de considerar a fé do Antigo Testamento, e também a do Novo, uma expressão infantil do humanismo emergente — e nada mais. Agora o Antigo Testamento parecia distante; os judeus eram escarnecidos, junto com os cristãos tradicionalistas. [...] A modernidade moldara o Antigo Testam ento a seu gosto; sua antiga palavra soberana não podia mais ser ouvida por ela. Se isso não tivesse acontecido, talvez a igreja européia, especialmente a alemã, teria conservado suficiente zelo profético para opor-se às afirmações monstruosas do nacional-socialismo. Mas isso não aconteceu; já que o Antigo Testamento estava morto, os judeus tinham de morrer.41 O ataque aos judeus pelos nazistas também abrangia um ataque ao Antigo Testamento e ao cristianismo. Esse ataque levou a uma reação por parte de muitos estudiosos sensíveis à Bíblia e de muitos líderes cristãos, que defenderam o Antigo Testamento como parte integrante do cânon cristão e começaram novamente a concentrar-se na mensagem do Antigo Testamento para o Israel antigo e para as pessoas modernas. É irônico que as primeiras obras completas sobre a teologia do Antigo Testamento depois do seu reavivamento foram publicadas em 1933, no mesmo ano em que Hitler se tomou chanceler da Alemanha. Foram elas a obra em dois volumes de Emst Sellin, Alttestamentliche Theologie a u f religionsgeschichtiicher Grundlage, e o primeiro volume da obra de três de Walther Eichrodt, Theologie des Alten Testaments. Sellin (1867-1945) foi professor na Universidade de Berlim e editor da série de comentários KAT sobre o Antigo Testamento. A perspectiva de Sellin da teologia do Antigo Testamento era que ela devia apresentar de forma sistemática os ensinos religiosos e a fé da comunidade judaica, baseados nos escritos compilados e canonizados no período entre 500 e 100 a.C. Sellin disse que: 1) o cânon do Antigo Testamento é significativo para o teólogo do Antigo Testamento apenas à 40 Albright, History, Archaeology, and Christian Humanism, 229. 41 The achievements o f biblical religion, 12-13. 40 T f.o i .o c ia do A n t i c o T esta m fjv to medida que era aceito por Jesus e pelos apóstolos; 2) a teologia do Antigo Testamento está interessada somente nas passagens cumpridas nos evangelhos; 3) o cristianismo foi baseado no Antigo Testamento, mas acrescentou-lhe algo novo; e 4) a teologia cristã do Antigo Testamento deve ser seletiva, deixando de lado a influência cananéia e também todo o lado nacional-cúltico da religião de Israel. Uma das teologias mais importantes do Antigo Testamento é a obra em três volumes de Walther Eichrodt, Theologie des Altes Testaments.*2 Walther Eichrodt nasceu em Gernsback, na Alemanha, em agosto de 1890. Seus estudos incluíram o trabalho na escola teológica de Bethel-Bielefeld e nas universidades de Griefswald e Heidelberg. Em 1917, Otto Procksch nomeou-o Privatdozent em Erlangen. Em 1922 ele sucedeu Albrecht Alt numa cadeira remunerada de estudos bíblicos em Basiléia. Em 1934 foi nomeado catedrático pleno em Basiléia, e em 1953 foi eleito reitor da universidade. Norman Gottwald chamou a teologia do Antigo Testamento de Eichrodt “a obra isolada mais importante do seu gênero no século X X ” .43 Robert C. Dentan chamou a obra “incomparavelmente maior que qualquer outra já publicada no campo da teologia do Antigo Testamento, tanto em termos de simples magnitude como de profundidade de percepção”.44 John Baker, tradutor da Theology o f the Old Testament de Eichrodt para o inglês, escreveu que “esta é a maior obra já escrita em seu campo, sem comparação — uma obra em que fé ardente e precisão científica se combinam para dar ao leitor uma experiência viva dessa nova realidade de Deus de que ele tanto fala”.45 O próprio Eichrodt escreveu no prefácio da sua primeira edição (1933): A situação espiritual em geral e a teológica em particular está causando impressão cada vez mais peremptória em todos os que se ocupam da teologia do Antigo Testamento. Existem muitas descrições históricas da religião israelita e judaica; com isso, porém, contrasta que apenas tentativas muito rudimentares foram feitas para apresentar a religião da qual encontramos os registros no Antigo Testamento como uma entidade completa em si mesma, que exibe, apesar das condições históricas sempre em mudança, uma tendência e um caráter básico constantes.46 As preocupações de Eichrodt estão evidentes na declaração acima. Ele estava preocupado com seu ambiente espiritual e cultural. Estava preocupado em 42 1933-1939, editado e traduzido para o inglês em 1961-1967. 43 Norman Gottwald, "W. Eichrodt, Theology o f the Old Testament", em Contemporary Old Testament theologians, editado por Robert B. Laurin, 25. 44 Preface to O ld Testament theology, 66. 45 Eichrodt, Theology o f the Old Testament I, 21. 46 Theology o f the Old Testament I, 11. A HISTÓRIA DA TEOLOGIA DO ANTICO TESTAMENTO 41 passar da história da religião de Israel para a “entidade completa em si mesma” no Antigo Testamento, que tem uma tendência básica e constância em meio a mudanças históricas. Eichrodt sugeriu que a “entidade completa em si mesma” é a aliança entre Javé e Israel. Para ele, a aliança era o conceito central que ilumina a unidade estrutural e a tendência básica imutável da mensagem do Antigo Testamento. A idéia da aliança era mais abrangente que o uso do termo hebraico berií. Era um símbolo conveniente da descrição de um processo vivo que começou em determinado lugar e hora a fim de revelar a realidade divina única em toda a história da religião.47 Eichrodt disse que a teologia do Antigo Testamento se concentra em um quadro completo da esfera da fé do Antigo Testamento, a fim de compreender sua imensidade e singularidade. A singularidade da fé do Antigo Testamento pode ser vista com mais clareza em seu contraste com as religiões do antigo Oriente Próximo e no movimento poderoso e propositado na direção do Novo Testamento. O que une os dois Testamentos é “a vinda do reinado de Deus a este mundo e seu estabelecimento aqui”48. O mesmo Deus segue no mesmo propósito nos dois Testamentos. Eichrodt emprestou seu esboço geral, que presumivelmente segue a dialética do Antigo Testamento, do seu professor Otto Procksch. O volume 1 se concentra no “Deus do povo”; o volume 2, no “Deus da Palavra”; e o volume 3, em “Deus e o ser humano” (ou seja, o indivíduo). Hermann Schultz, no segundo volume da segunda edição inglesa (1895) da sua obra, usou um esboço semelhante ao de Procksch e Eichrodt: “Deus e o povo”, “Deus e a Palavra”, “Deus e o ser humano” e “a esperança de Israel”. Ludwig Köhler (1880-1956), professor em Zurique, era antes de tudo um estudioso de lingüística. Ele e W. Baumgartner publicaram um léxico hebraico abrangente (Brill, 1953). Sua Old Testament Theology é breve e sem documentação. Está organizada em tomo dos tópicos da teologia sistemática: teologia, antropologia e soteriologia.. Köhler tratou do culto no fim da parte sobre o ser humano. Disse que o culto não faz parte da área soteriológica (não faz parte do plano de salvação divino) nem da antropológica. Ele colocou seu estudo do culto no fim da seção sobre antropologia porque ele tem que ver com os esforços das pessoas para salvar a si mesmas.49 Um conceito totalmente novo do culto surgiu a partir da obra de Köhler, sendo ele visto agora como uma instituição que transmitiu boa parte da tradição do Antigo Testamento. A importância da obra de Köhler está em que ele, um lingüista e historiador, interrompeu seu trabalho para escrever um manual breve, mas útil, 47 Theology o f the Old Testament I, 13-14. 48 Theology o f the Old Testament 1, 26. 49 Old Testament Theology, 9. 42 T e o i .o c ia do A n t ic o T e s t a m e n t o sobre a teologia do Antigo Testamento. Um dos seus pontos fortes é seu estudo de pelo menos setenta palavras hebraicas. Apesar de Kõhler ter usado o esboço amplo da teologia sistemática, ele afirmou que um livro pode ser chamado de “teologia do Antigo Testamento se consegue reunir e relacionar as idéias, pensamentos e conceitos do Antigo Testamento que são ou podem ser importantes”. Kõhler acreditava que o tema central ou declaração fundamental na teologia do Antigo Testamento é: Deus é o senhor que governa. “Todas as outras coisas estão ligadas a isso. Todas as outras coisas podem ser entendidas como referentes a isso e apenas a isso. Todas as outras coisas se subordinam a isso”.50 Um dos estudiosos do Antigo Testamento mais influentes na Alemanha durante a primeira parte do século XX foi Artur Weiser. Ele não chegou a escrever uma teologia do Antigo Testamento, mas estudou o assunto com freqüência.51 Weiser encarava a exegese como uma tarefa teológica, além de histórica e crítica. Segundo ele, ninguém compreende adequadamente uma passagem do Antigo Testamento determinando o sentido gramatical, sintático e histórico. A vida real da passagem está em sua religião (ou fé) e em seu caráter distinto. Weiser argumentou que uma visão dinâmica da realidade perpassa o Antigo Testamento, com um modo teológico de ver as pessoas e os eventos no próprio texto. Ele acreditava que sistematizar a teologia do Antigo Testamento era contrário à compreensão dinâmica do próprio Antigo Testamento, apesar de concordar que há certo valor pedagógico em ordenar fatos dispersos. Weiser seguiu Barth no argumento de que a exegese deve realizar a tarefa teológica. Apesar de não escrever uma teologia do Antigo Testamento, Weiser iniciou e editou uma das mais importantes séries de comentários do Antigo Testamento, Das Alte Testament Deutsch (ATD). Um dos traços distintivos dessa série é sua ênfase na mensagem teológica de cada seção. Estudiosos como Gerhard von Rad, Martin Noth, Walther Eichrodt, Norman Porteous, Karl Elliger e o próprio Weiser foram colaboradores da série. Vários desses volumes foram traduzidos para o inglês, como parte da “Old Testament Library Series”. Sem sombra de dúvida, um dos homens mais destacados no campo da teologia do Antigo Testamento foi Gerhard von Rad (1901-1971). Depois de estudos abrangentes em Erlangen e Tübingen, Von Rad tomou-se pastor de uma igreja luterana na Baviera em 1925. Sua luta diária com um crescente antisemitismo levou-o a retomar aos estudos acadêmicos do Antigo Testamento em Leipzig. Otto Procksch e Albrecht Alt guiaram-no em seus estudos e em sua dissertação, Das Goííesvolk im Deuteronomium.52 * Ibid., 30. 51 Veja Artur Weiser, Glaube und Geschichte im Alten Testament (Göttingen, 1961); "Vom Verstehen des Alten Testaments", Z A W 6 \ (1945), 17-30. 52 BWANT, 47 (Stuttgart, W. Kohlhammer Verlag, 1929). A HISTÓRIA DA TEOLOGIA DO ANTIGO TESTAMENTO 43 Em 1930, von Rad juntou-se a Alt como professor em Leipzig. Em 1934 transferiu-se para Jena, onde florescia o nacional-socialismo. Ali von Rad foi um professor impopular, mas conseguiu envolver em debates ilegais na igreja muitos que não tinham se rendido ao anti-semitismo da época.53 Do verão de 1944 até junho de 1945, von Rad foi forçado a lutar pelo exército alemão, até ser preso pelos vitoriosos. Após a guerra ele ensinou brevemente em Bethel, Bonn e Erlangen, para depois mudar-se para Gottingen. Em 1949 transferiu-se para Heidelberg, onde ensinou até sua aposentadoria em 1967 e continuou a morar até sua morte em 1971. Von Rad estudou a teologia do Antigo Testamento de uma perspectiva totalmente diferente de todos os seus predecessores. Ele viu uma relação muito próxima entre a teologia do Antigo Testamento e a crítica do Antigo Testamento. Todo aquele que deseja compreender a obra Teologia do Antigo Testamento de von Rad deve estar familiarizado com suas opiniões quanto à origem e transmissão da literatura do Antigo Testamento. Uma das suas primeiras obras foi The FormCritical Problem o f the Hexateuch, publicada em 1938, em que lançou os alicerces da sua Teologia do Antigo Testamento. Von Rad argumentou que o Hexateuco (Gênesis-Josué) fora edificado sobre um antigo credo de culto, que agora se encontra em Deuteronômio 26.5b-9; 6.20-24; Josué 24.2-13; e ISamuel 12.7-8. O editor javista tomou diversas tradições diferentes, antes ligadas a vários santuários tribais em Israel, e organizou-as na ordem que constituiu a moldura do Pentateuco. Von Rad interpôs um longo período de tempo entre o “evento” original (da promessa patriarcal, do êxodo e da conquista) e a redação do documento em que o relato do evento está preservado. Durante esse período, as “histórias” foram transmitidas oralmente, freqüentemente no contexto de culto de um altar tribal. De acordo com von Rad, o javista foi um teólogo. Um dos problemas que os sucessores de von Rad têm tido com sua perspectiva é a vasta distância entre seu conceito de “história santa” (o relato da sua história pelo próprio Israel) e o relato científico da história de Israel reconstruído pelos atuais estudiosos do Antigo Testamento. Mesmo dizendo que a teologia do Antigo Testamento está baseada na história, von Rad pareceu muito cético quanto à autenticidade de alguns personagens e eventos no Antigo Testamento. Outros estudiosos criticaram a obra de von Rad por faltar-lhe organização sistemática. Alguns disseram que sua maior obra na verdade é uma história das tradições de Israel e não uma teologia do Antigo Testamento.54 Joseph W. Groves escreveu uma dissertação doutoral sobre o método de interpretação de von Rad (e outros), intitulado “Actualization and interpretation in 53 Cf. James L. Crenshaw, Gerhard von Rad, 21. 54 Dentan, Preface to Old Testament Theology, 79. 44 T e o i -OCia do A n t ig o T e st a m e n t © the Old Testament”,55 em que declarou que “o alvo de uma base dentro da Bíblia para a interpretação teológico-histórica (como a de von Rad) ainda está por ser atingido”.56 O holandês Th. C. Vriezen publicou seu Hoofdinjnen der Theologie von het Oude Testament em 1949. Essa obra foi quase totalmente revisada na terceira edição em holandês (1966) e publicada como segunda edição inglesa em 1970. As primeiras 150 páginas do livro de Vriezen são introdutórias. Lidam com o lugar do Antigo Testamento na igreja, como ele deve ser interpretado, e a tarefa e método da teologia do Antigo Testamento. A parte principal do livro é dividida em quatro capítulos bastante longos: 1) o conhecimento de Deus; 2) o relacionamento entre Deus e ser humano; 3) a comunidade de Deus; e 4) o futuro. Vriezen via a comunhão, ou o relacionamento entre Deus e o ser humano, como central no Antigo Testamento. Edmond Jacob, professor de Strasbourg, escreveu uma teologia do Antigo Testamento substancial mas popular em 1955. Sua obra Theologie de 1'Ancien Testament foi traduzida para o inglês em 1958. Ela serviu como livro de referência popular de institutos e seminários bíblicos nesse campo por vinte anos. É clara e concisa, mas trata de modo adequado de quase todas as facetas da teologia do Antigo Testamento. Tem uma excelente introdução. A principal parte do livro segue um esboço sistemático modificado. É surpreendente que nenhum estudioso britânico tenha escrito uma teologia completa do Antigo Testamento desde A. B. Davidson (1904). H. Wheeler Robinson e Norman Porteous escreveram diversos livros e estudos sobre a teologia do Antigo Testamento. H. H. Rowley escreveu um volume fmo, The Faith o f Israel, em 1956, e outro, The Biblical Doctrine o f Election, em 1948. Ronald E. Clements publicou sua Old Testament Theology, a Fresh Approach em 1978, mas a obra estava na verdade baseada em uma série de palestras no Spurgeon’s College em 1976 e admite representar apenas um estudo provisório. H. Wheeler Robinson (1872-1945), estudioso britânico batista, conseguiu combinar erudição crítica sólida e fé evangélica fervorosa. Ele afirmou que o Antigo Testamento não consistia em um sistema de doutrina, mas era principalmente um drama divino representado na arena da história, onde Deus revelou a si e sua vontade por intermédio dos seus atos. Robinson reconheceu que falar de uma “revelação histórica” é um paradoxo. A história implica algum tipo de movimento dinâmico, quer seja isso chamado progresso, quer não; revelação implica verdade estática e permanente”.57 A solução do paradoxo da relação entre a 55 Atlanta, SBL Dissertation Series 86, 1987. 56 Groves, 162-163; veja também Hasel, Basic Issues, 75-77 (no Brasil, Teologia do AT, pela JUERP). 57 Record and Revelation, 305. A HISTÓRIA DA TEOLOGIA DO ANTIGO TESTAMENTO 45 revelação que não se prende ao tempo e a história que muda encontra-se na “vida atual”, em que revelação e história formam uma unidade mesclada.58 De uma visão geral das obras de Robinson sobre a teologia do Antigo Testamento pode-se concluir que ele estava tentando seguir os pensamentos de Deus. Para ele, a chave da teologia do Antigo Testamento era a idéia de revelação, idéia que aparece nos títulos de muitos dos seus livros. Robinson quis deixar o Antigo Testamento falar por si mesmo. Ele sabia do perigo de impor algum sistema externo à sua mensagem, mas também sabia que algum princípio organizador era necessário para apresentar os dados do Antigo Testamento ao intérprete moderno. Ele acreditava que esses dados ligavam-se à vida e que todo o que esperava compreendê-los precisava ser pelo menos um “estrangeiro residente”.59 Ele dividiu a teologia do Antigo Testamento em três partes: Deus e natureza, Deus e ser humano, e Deus e história, e apresentou as doutrinas características em proposições. Escreveu ele: É inevitável formular isso numa série de proposições, para formar uma “teologia do Antigo Testamento”, mesmo que organizadas em ordem histórica. [...] Se elas são colocadas de modo tópico e não cronológico, como exige uma “teologia”, elas se tomam ainda mais abstratas e distantes da antes viva, vibrante e dinâmica religião de Israel.60 Eric Rust, um dos alunos de Wheeler Robinson, chegou aos Estados Unidos em 1952 como professor de teologia bíblica no Crozier Theological Seminary e tomou-se professor de apologética cristã no The Southern Baptist Theological Seminary em Louisville, no Kentucky, em 1953. Rust fez diversas contribuições para o campo da teologia do Antigo Testamento. Em 1953 publicou Nature and Man in Biblical Thought. No número de outubro de 1953 de The Review and Expositor, Rust tratou de “The Nature and Problems o f Biblical Theology” (63-64). Em 1964 publicou seu livro completo, Salvation History,61 dedicado a H. Wheeler Robinson e T. W. Manson. Em 1969 Rust escreveu seu artigo“The Theology o f the Old Testament” no Broadman Bible Commentary62. Outro estudioso britânico do Antigo Testamento que trabalho no campo da teologia do Antigo Testamento, mas nunca publicou um livro completo sobre o assunto, é Norman Porteous. Ele foi pastor e professor em St. Andrews e Edimburgo, e diretor do New College de 1964 até sua aposentadoria em 1968. 5* Cf. Max Polley, "H. Wheeler Robinson and the Problem o f Organizing an Old Testament Theology”, em The use o f the Old Testament in the New, ed. James M. Efird, 157. 59 Inspiration and Revelation in the Old Testament, 2 8 1-282. 60 Ibid., 281. 61 Atlanta, John Knox Press. 62 Vol. 1, 71-86 (série de comentários publicada no Brasil pela JUERP). 46 T e o l o g ia do A n t ig o T e st a m e n t o Porteous publicou vários estudos sobre a teologia do Antigo Testamento em diversas revistas teológicas. Alguns foram reimpressos em forma de livro: Living the Mystery. Seus estudos mais importantes são: “Towards a theology o f the Old Testament”;63 “Semantics and Old Testament Theology”;64 “Old Testament Theology”;65 “The Old Testament and some Theological Thought Forms”;66 “The State o f Old Testament Studies Today: Old Testament Theology”;67 “The Present State o f Old Testament Theology”;6’ “The Theology of the Old Testament”;69 “Magnolia Dei"'™ e com Ronald E. Clements, “Old Testament Theology”.71 Porteous via a teologia do Antigo Testamento como a ciência da religião israelita, baseada no uso das técnicas modernas da arqueologia, das religiões comparadas e da análise histórica e literária. Seu método pode ser tão sistemático como o objeto de estudo permite. Além disso, ela tem uma função normativa e pode, portanto, fazer uso do direito de ser considerada teologia.72 Depois de tratar de questões preliminares, Porteous esboçou assim sua abordagem no Peake’s Commentary. 1) Ia o conhecimento de Deus; 2) os atos salvíficos de Deus; 3) a aliança; 4) Javé, o Deus da aliança, 5) Israel e as nações; 6) teologia régia; 7) os profetas; 8) as instituições do judaísmo; 9) sabedoria e esperança. As obras de outros estudiosos britânicos que têm tratado recentemente da teologia do Antigo Testamento (G. A. F. Knight, F. F. Bruce, W. J. Harrelson e Ronald E. Clements) serão vistas na seção 7. 6. O movimento da teologia bíblica Robert Dentan chamou o período que começou em 1949 como "a era de ouro" da teologia do Antigo Testamento. Ele dizia que essa era de ouro começou com Otto Baab, The Theology o f the Old Testament (1949), Otto Procksch, Theologie des Alten Testaments (1949) e Th. C. Vriezen, An Outline o f Old 63 S J T l (1948). 64 Oudtestamentlische Studien 8 (19S0). 65 OTMS. e d H. H. Rowley (1951). 66 S JT 7 (1954). 67 The London Quarterly and Holborn Review (1959). 64 E T 75 (1963). ** Em Peake 's Commentary on the Bible (1962). 70 Festschrift de von Rad, ed. H. W. Wolff, Probleme biblischer Theologie (1971), 417-427. 71 Em The Westminster Dictionary o f Christian Theology, eds. A. Richardson e J. Bowden (Philadelphia, Westminster, 1983), 398-403,406-413. 71 Veja Porteous, T h e theology o f the Old Testament", em Peake's Commentary on the Bible, 151. A HISTÓRIA DA TEOLOGIA DO ANTIGO TESTAMENTO 47 Testament Theology (1949).73 Estudiosos católicos romanos contribuíram para o campo quando Theology o f the Old Testament, de Paul Heinisch, foi publicado (em inglês) em 1950, e Paul van Imschoot, estudioso católico francês, publicou uma obra abrangente, em dois volumes, sobre a teologia do Antigo Testamento em 1954 e 1956. Uma nova série de monografias, Studies in Biblical Theology, foi iniciada em 1950. Até 1963 tinham sido publicados trinta e sete títulos, doze dos quais sobre o Antigo Testamento. O que Dentan chamou de “era de ouro” da teologia do Antigo Testamento foi estudado como o “movimento de teologia bíblica” por Brevard Childs (Biblical Theology in Crisis). Childs entendeu que o movimento de teologia bíblica começou perto do fim da Segunda Guerra Mundial. H. H. Rowley, The Relevance o f the Bible ( 1942) e Rediscovery o f the Old Testament ( 1946), Alan Richardson, A Preface to Bible Study ( 1943) e Norman Snaith, The Distinctive Ideas o f the Old Testament ( 1944) abriram o caminho na Inglaterra. Nos Estados Unidos, G. Ernest Wright, The Challenge o f Israel’s Faith ( 1944), Paul Minear, Eyes o f Faith ( 1946), e B. W. Anderson, Rediscovering the Bible (1951) estiveram na vanguarda do novo movimento. Novas revistas foram lançadas para dar apoio ao movimento: Theology Today (1944), Interpretation (1947), The Scottish Journal o f Theology (1948), além de numerosos artigos sobre a teologia do Antigo Testamento publicados em outras revistas: James Smart, “The Death and Rebirth o f Old Testament Theology”;74 Clarence T. Craig, “Biblical Theology and the Rise o f Historicism”;75 Muriel S. Curtis, “The Relevance of Old Testament Today”;76 W. A. Irwin, “The Reviving Theology o f the Old Testament”;77 “The Nature and Function o f Old Testament Theology”;78 W. F. Albright, “Return to Biblical Theology”.79 Childs acreditava que o movimento de teologia bíblica tinha atingido um consenso em torno de cinco temas principais: 1) a redescoberta da dimensão teológica (o objetivo era penetrar no coração da Bíblia para recuperar sua mensagem e mistério, perdidos pela geração anterior); 2) a unidade de toda a Bíblia; 3) a idéia de que a revelação é histórica; 4) o caráter distinto do pensamento bíblico (hebraico); e 5) a singularidade da fé bíblica diante de outras religiões. Childs disse que as rachaduras começaram a aparecer no muro do consenso do movimento de teologia bíblica quando um grupo de estudiosos que incluía 73 Editado e traduzido do holandês em 1958. J R l i (1943), 1-11, 125-136. ™JBL 62(1943), 281-294. 16JBR 9 (1943), 81-87. 77 JR 25 (1945), 235-247. 78 JBR 14(1946), 16-21. 79 The Christian Century 75 ( 1958), 1328-1331. 48 T e o l o g ia do A n t ig o T e s t a m e n t o James Barr, Langdon Gilkey e Bertil Albrektson começou a questionar a revelação, a história e a singularidade da fé israelita. Gerhard von Rad usou um método totalmente novo ao escrever sua teologia do Antigo Testamento, que levantou questões sérias para o consenso anterior. O domínio das idéias de Barth e Brunner declinou mesmo antes da morte deles. Novos interesses e preocupações, questões sociais e políticas desviaram os holofotes da teologia. Childs datou o fim do movimento de teologia bíblica em maio de 1963, com a publicação de Honest to God, de J. A. T. Robinson. Este popularizou as opiniões céticas em relação a Deus e às religiões institucionais, expressas por filósofos e teólogos como Tillich, Bonhoeffer e Bultmann e por alguns cientistas e secularistas modernos. Childs afimou que o movimento de teologia bíblica acabou, mas a necessidade da teologia bíblica permanece. Ele propôs uma nova forma, começando com o estabelecimento de um contexto apropriado. Transformou todo o cânon da Bíblia no contexto, e pode-se ver imediatamente que, para Childs, os dois Testamentos estão juntos, com pouco espaço para disciplinas separadas de teologia do Antigo Testamento e do Novo.*0 James Smart, pastor presbiteriano, professor, escritor e organizador de currículos para igrejas, respondeu a Childs. Segundo Smart, Childs criou um quadro errado do desenvolvimento da interpretação bíblica.81 Smart fez objeção ao uso do termo “movimento” por Childs, dizendo que ele não é apropriado para o estudo da teologia bíblica. Movimentos vêm e vão. O movimento da “morte de Deus”, o movimento da “cidade secular” ou o movimento da “teologia da libertação” centram-se em tópicos e são “modas” passageiras da teologia. Smart disse que a teologia bíblica não é um movimento, a exemplo do desenvolvimento da crítica literária, histórica e/ou da forma.82 Smart argumentou que a teologia bíblica é internacional em sua preocupação. Ele concedeu que Childs estava correto ao falar de crise, mas errado ao localizá-la na teologia bíblica. Smart via a crise em todo o vasto empreendimento da erudição bíblica.83 Ele acreditava que o problema é hermenêutico. A solução para o problema é reconhecer a natureza dupla das Escrituras, que é histórica e teológica, e a impossibilidade de separar as duas.84 80 Biblical Theology in Crisis, 6. 81 Smart, The Past, Present and Future o f Biblical Theology, 7. 82 Ibid., 11. 83 Ibid., 22. 84 Ibid., 145. A HISTÓRIA DA TEOLOGIA DO ANTIGO TESTAMENTO 49 7. A situação atual da teologia do Antigo Testamento A. O interesse continuado na teologia do Antigo Testamento até 1985 e o fluxo de literatura sobre o tema A teologia bíblica pode estar em crise, mas isso não deteve o fluxo de teologias do Antigo Testamento, de artigos e estudos que tratam de aspectos importantes do tema. Várias teologias novas do Antigo Testamento surgiram desde 1970. Um estudioso católico, A. Deissler, escreveu Die Grundbotschaft des Alten Testaments em 1972. Deissler via o centro da fé veterotestamentária como o relacionamento de Deus com o mundo e com o ser humano. Walther Zimmerli publicou seu livro Old Testament Theology in Outline em 1972. Ele considerou o Antigo Testamento um “livro de pronunciamentos”, em contraste com o conceito de von Rad do Antigo Testamento como um “livro de história”. Zimmerli fez do primeiro mandamento seu ponto de partida e centro do seu estudo. Disse ele: “A obediência a Javé, o único Deus, que libertou Israel da escravidão e zela por ser o único, define a natureza fundamental da fé veterotestamentária”.85 Georg Fohrer, editor de 7AW, publicou seu livro Theologische Grundstrukturen des Alten Testaments em 1972. O primeiro capítulo trata do problema da interpretação do Antigo Testamento. O capítulo 2 trata de revelação e o Antigo Testamento. Fohrer, como existencialista, via a revelação nas decisões de vida e morte do ouvinte. O capítulo 3 fala da diversidade de atitudes diante da vida no Antigo Testamento. O capítulo 4 estuda a questão de um centro ou ponto eqüidistante no Antigo Testamento, que Fohrer cria ser a soberania de Deus e a comunidade de Deus. O capítulo trata do poder transformador e do potencial da fé veterotestamentária. O capítulo 6 descreve certos elementos básicos no Antigo Testamento, como o fato de Deus se manter oculto, e seus atos na história e na natureza. O capítulo 7 faz uma aplicação, ao lidar com tópicos como a crise do ser humano, o estado e a política, pobreza e projetos sociais, o ser humano e a tecnologia, e o futuro na profecia e na literatura apocalíptica.86 Em 1974, John L. McKenzie, um destacado estudioso católico do Antigo Testamento, publicou A Theology o f the Old Testament. Em seu prefácio, McKenzie disse que uma teologia do Antigo Testamento ou uma história de Israel oferece ao autor uma oportunidade de fazer um resumo de toda a sua obra. *5 O ld Testament Theology in Outline, 116. 86 Veja a resenha de G. E. Wright em Interpretation 28 ( 1974), 460-462; e G. F. Hasel, Old Testament Theology: Basic Issues, 63-66 ( n o Brasil, Teologia do AT, p e l a JUERP). 50 T e o l o c ia do A n t ig o T e s t a m e n t o Todavia, existe um obstáculo oculto: a teologia do Antigo Testamento não tem uma estrutura ou estilo aceito por todos. McKenzie disse que leu a maioria dos livros sobre o assunto, tendo colhido principalmente o fruto de aprender o que não fazer. Citou James Barr, dizendo que “a teologia bíblica atualmente está fora de moda”, e depois observou que estava decidido a mostrar que Barr é quem estava “fora de moda”.87 McKenzie criticou o método de von Rad como uma “teologia do desenvolvimento”.88 Ele definiu a teologia como “conversa de Deus” e disse que, se alguém reunir tudo o que Deus fala no Antigo Testamento, emergirá uma realidade pessoal bastante clara, que provavelmente não será totalmente coerente em si mesma, mas também não poderá ser identificada com nenhuma outra realidade pessoal. O livro de McKenzie é uma teologia do Antigo Testamento — e não uma exegese, uma história da religião de Israel, ou uma teologia da Bíblia. Seu interesse não está na “experiência religiosa”; está voltado para os documentos do Antigo Testamento. “Pode-se presumir que surja algo da totalidade, que não surge de um pronunciamento isolado.”89 Uma teologia do Antigo Testamento deve formular essa realidade na linguagem do debate acadêmico. Depois da introdução, o livro de McKenzie tem sete capítulos: 1) culto; 2) revelação; 3) história; 4) natureza; 5) sabedoria; 6) instituições políticas e sociais; 7) o futuro de Israel, terminando com um epílogo. Em 1978, Walter C. Kaiser, Jr., da Trinity Evangelical Divinity School, publicou seu livro Toward an Old Testament Theology (no Brasil, publicado pela Vida Nova como Teologia do Antigo Testamento). Kaiser defendia que a teologia do Antigo Testamento funciona melhor “como serva da teologia exegética do que em seu papel tradicional de fornecer dados para a teologia sistemática” (p. viii). O principal ponto de partida de Kaiser é a idéia de que os próprios escritores do Antigo Testamento “pronunciam suas mensagens contra o pano de fundo de uma teologia acumulada que eles, seus ouvintes e agora seus leitores têm de recordar se quiserem captar a profundidade exata da intenção original da mensagem” (p. viii). Kaiser parece afirmar que os escritores do Antigo Testamento escreveram com conhecimento de um conjunto de dados teológicos. Ele também parece pensar que podemos descobrir a “intenção” original desses escritores. “Intenção” sempre é difícil de descobrir e de provar. Depois de repassar a história da teologia do Antigo Testamento de 1933 até 1978, Kaiser asseverou que a disciplina está em estado de confusão — se não de crise— porque os estudiosos não têm conseguido “reafirmar e reaplicar” a autoridade da Bíblia. Para ele, a autoridade da Bíblia está intimamente relacionada 17 McKenzie, A Theology o f the Old Testament, 10. n Ibid., 20. K Ibid.,, 21. A HISTÓRIA DA TEOLOGIA DO ANTIGO TESTAMENTO 51 ao tipo normativo de teologia.90 Kaiser via a norma da teologia do Antigo Testamento no seu centro, que ele identificou com a promessa. A exemplo de Eichrodt, Kaiser acreditava que “a busca de um centro, um conceito unificador, estava no cerne da preocupação dos receptores da palavra divina”.91 O conceito de Kaiser de uma teologia do Antigo Testamento era que ela tem de ser “uma teologia em conformidade com toda a Bíblia, descrita e contida na Bíblia, e que conscientemente recebe acréscimos de época em época. O contexto imediatamente antecedente passa a ser a base para a teologia que seguia em cada época”.92 Não é surpreendente, dadas as pressuposições de Kaiser, que seu método era acompanhar a “promessa” por todo o Antigo Testamento. Ao concentrar-se em promessa e bênção, porém, Kaiser ignorou quase totalmente tópicos como criação, culto e sabedoria. Outro escritor conservador, William Dymess, deão da escola de teologia no Fuller Theological Seminary, disse que seu livro Themes in Old Testament Theology é resultado da sua experiência de ensino no Asian Theological Seminary em Manila. Ele sentiu a necessidade de um livro como esse em seus alunos asiáticos e não conseguiu encontrar uma pesquisa teológica recente do Antigo Testamento adequada para eles. Disse ele que seu livro é “mais um reconhecimento dessa lacuna do que uma tentativa de preenchê-la”. Elmer A. Martens, presidente e professor de Antigo Testamento no Mennonite Brethren Biblical Seminary, escreveu G od’s Design: a Focus on Old Testament Theology. Culto e conservador, Martens, estudioso do Antigo Testamento, foi co-editor de The Flowering o f Old Testament Theology (1992). Martens afirmou que o tema que percorre todo o Antigo Testamento é o plano de Deus encontrado em Êxodo 5.22-6.8. “Plano” pode significar “centro”. Este plano tem quatro componentes: libertação, comunidade, conhecimento de Deus e vida abundante. Martens tentou fazer uma abordagem sintética (os quatro temas) e diacrônica dos três períodos da história do Antigo Testamento, que são: prémonarquia, monarquia e período pós-exílico. Ele também tentou estudar a teologia do Antigo Testamento de modo descritivo e normativo. Ronald Clements é um dos estudiosos contemporâneos do Antigo Testamento mais criativos da Inglaterra. Seu interesse na teologia do Antigo Testamento está refletido em “The Problem of Old Testament Thelogy”.93 Clements, escrevendo contra o pano de fundo da profusão de outras teologias do Antigo Testamento, argumenta que uma nova estratégia toma-se necessária —que 90 Toward an Old Testament Theology, 6. 91 Ibid., 6-7. 92 Ibid., 9. 93 Veja The London Quarterly and Holborn Review 190(1965), 11-17; G od’s Chosen People; One Hundred Years o f Old Testament Interpretation, cap. 7; Old Testament Theology: a Fresh Approach; e "Old Testament Theology", de N. Porteous, cm The Westminster Dictionary o f Christian Theology ( 1983), 398-403, 406-413. 52 T f.o i .o c ia do A n t ig o T e s t a m e n t o na realidade é antiga. A nova estratégia de Clements é prestar mais atenção em como os cristãos e, em certa medida também os judeus, na verdade ouvem o Antigo Testamento lhes falar teologicamente.94 Clements crê que a idéia do cânon é importante na teologia do Antigo Testamento. Ele determina os limites, a autoridade e a forma de um estudo assim. Old Testament Theology é um livro pequeno, de 200 páginas, organizado em oito capítulos. O primeiro capítulo lida com os problemas da teologia do Antigo Testamento: que é e como fazê-la. O capítulo 2 estuda as dimensões da fé no Antigo Testamento: literária, histórica, de culto e intelectual. Os capítulos 3 e 4 formam o coração do estudo: o conceito que Israel tinha de Deus e de si mesmo como povo de Deus. Os capítulos 5 e 6 apresentam a idéia que Clements tem do cânon. O capítulo 5 trata do Antigo Testamento como Lei (Torá) e o 6 lida com profecia ou promessa. Ele não tem uma seção separada sobre salmos e sabedoria. Os últimos dois capítulos (7 e 8) tratam da relevância do Antigo Testamento e da teologia do Antigo Testamento para a religião e para a teologia contemporâneas. Samuel Terrien, franco-americano, formado na Universidade de Paris (1933) e no Union Seminary em Nova York (1941), lecionou no Wooster College (1936-1940) e no Union Seminary (1941-1976). Terrien foi instruído nos clássicos, em arqueologia, nos estudos semíticos e na história das religiões. Seu interesse pelos semitas e por religiões comparadas ajudou-o a concentrar sua atenção na literatura de sabedoria do Antigo Testamento e no livro de Jó. Seu interesse em Jó levou-o a procurar a presença divina na ausência, busca que culminou em seu livro The Elusive Presence: Toward a New Biblical Theology. Terrien acreditava que a realidade da presença de Deus está no centro da fé bíblica, mas que essa presença é sempre elusiva, de difícil percepção.95 Apenas uma meia dúzia de ancestrais, profetas e poetas tinha realmente percebido a presença imediata de Deus. O grosso do povo experimentava a proximidade de Deus sendo representado ou intermediado no culto.96 Contudo, o culto nem sempre trazia Deus para perto do povo. Freqüentemente ele produzia estagnação e corrupção. Terrien chamou seu livro de “prolegômenos”, preâmbulo de uma verdadeira teologia bíblica que pode trabalhar as semelhanças e diferenças entre a idéia da presença de Deus na fé israelita e a dos seus vizinhos.97 A idéia da presença de Deus pode proporcionar o elo que atravessa os séculos entre os patriarcas e Jesus e uma base para o diálogo entre judeus e cristãos. Ela pode 94 Old Testament Theology, 4. 95 The Elusive Presence, xxvii. 96 Ibid.. 1-2. 97 Ibid., 27. A HISTÓRIA DA TEOLOGIA DO ANTIGO TESTAMENTO 53 incorporar todos os tipos de literatura veterotestamentária (sabedoria e salmos) na teologia do Antigo Testamento. Depois de rejeitar a idéia da aliança de Eichrodt e o método da história da salvação de von Rad para organizar a teologia bíblica, Terrien perguntou: “Será que a teologia hebraica da presença proporciona uma abordagem legítima de uma teologia autêntica de toda a Bíblia?” Ele sugeriu que “esse pode muito bem ser o caso”.9* Esse livro deve ser considerado o prefácio de uma descrição das características específicas da fé bíblica. Ele frisa demais a dificuldade de percepção da presença de Deus em detrimento da realidade da sua presença. O método demora-se demais no estudo dos diferentes tipos de literatura e não é “sistemático” ou “teológico”. E dirigido demais à sociedade secular e não o suficiente à igreja, dando preferência a Deus como criador em vez de Deus como redentor. Um rápido exame no índice de assuntos do livro de Terrien mostra quão pouco se fala sobre pecado ou culpa.99 Um dos escritores mais prolíficos no campo dos estudos do Antigo Testamento foi Claus Westermann. Ele se aposentou como professor de Antigo Testamento em Heidelberg em 1978. Escreveu comentários sobre Gênesis e Isaías 40-66, estudos abrangentes sobre os salmos e os profetas, e dois livros sobre a teologia do Antigo Testamento: What does the Old Testament Say About God? e Elements o f Old Testament Theology. Este último é uma tradução de Theologie des Altes Testaments in Grundzügen (publicado no Brasil como Teologia do Antigo Testamento pela Paulinas).100 Esses dois livros são muito semelhantes e têm essencialmente o mesmo esboço. O livro de 1979 está baseado em uma série de palestras feitas no Union Theological Seminaiy em Richmond, na Virginia, em 1977. Westermann insistia que a tarefa da teologia do Antigo Testamento é resumir e ver em conjunto o que o Antigo Testamento como um todo diz sobre Deus.101 O Antigo Testamento não tem um centro teológico, como o Novo Testamento. Temos de apresentar a teologia do Antigo Testamento da maneira como o Antigo Testamento o faz: em forma de narrativa ou história, baseado em eventos em vez de conceitos. Westermann usou a divisão tríplice do cânon hebraico (Torá, Profetas e Escritos) como guia para a teologia das várias partes do Antigo Testamento. A Torá contém história ou os atos salvíficos de Deus; os Profetas representam a Palavra de Deus; e os Escritos (Sabedoria e Salmos) representam a resposta humana. Todos esses três elementos são necessários para uma teologia do Antigo Testamento. O 94 Ibid., 473. 99 Ibid., 510. 100 Gottingen. 1978. 101 Elements o f Old Testament Theology, 9. 54 T e o l o g ia do A n t ig o T e s t a m e n t o capítulo 1 trata principalmente de definição e metodologia. Os capítulos 2 e 3 falam de Deus como o Deus que salva e abençoa. O capítulo 4 (os Profetas) apresenta a palavra de Deus proferida em condenação e compaixão. O capítulo 5 é a resposta humana aos atos e à palavra salvadora de Deus. As pessoas respondem em louvor e lamento, bem como em ações, aos mandamentos e leis na vida diária e na adoração. Sem dúvida a idéia da tradição ou tradições ocupa hoje um lugar central nos estudos do Antigo Testamento, especialmente na área da teologia do Antigo Testamento. Em 1977, uma coletânea de artigos, Tradition and Theology in the Old Testament, foi publicada pela Fortress Press. O editor foi Douglas A. Knight, da Vanderbilt University. Na introdução, Knight falou dos efeitos positivos e negativos que as tradições têm sobre todos nós. O termo tradição pode ser aplicado tanto à literatura oral e escrita como a costumes, hábitos, crenças, padrões morais, atitudes culturais e normas. Knight definiu a tradição como qualquer coisa na herança do passado que é transferido ao presente e pode contribuir para a formação de um novo etos.102 Tradição pode referir-se ao processo de transmissão assim como ao conteúdo do material passado para frente. Walter Harrelson, no mesmo volume, referiu-se a uma definição estreita de tradição, que fala de passar adiante o que alguém (ou um grupo) recebeu, da maneira que o recebeu.103 As tradições podem mudar ou aumentar no curso das transmissões, mas o processo de transmissão tem de manter intacto o que foi recebido. Os elementos essenciais das tradições têm de estar ali, reconhecíveis. Algumas tradições passadas adiante não tinham muito peso, no sentido de que não eram decisivas para a autocompreensão do grupo. Outras tradições foram passadas adiante porque tinham peso genuíno. O grupo reconheceu nelas algo de importância decisiva para a manutenção da sua vida e fé.104 Harrelson discerniu uma tradição central composta de quatro partes que funcionavam oralmente e respondiam pelas origens de Israel: 1) Javé era o Deus de Israel (isso começa num mistério); 2) ele os acompanhou em seus movimentos; 3) ele estava particularmente preocupado com os oprimidos e maltratados entre eles; e 4) ele os estava levando para um futuro do qual os aspectos ainda não se haviam definido. Harrelson argumentou que essas tradições centrais pertencem aos primórdios da comunidade e têm o caráter de revelação fundamental ou descoberta.105 102 Tradition and Theology, 2. 103 Ibid., 15. 104 Veja um exemplo interessante de percurso da tradição em Trent C. Butler, Joshua, xxii-xxiii. “Havia Tradição e Tradições* (Knight, Tradition and Theology, 17). 105 Knight, Tradition and Theology, 22-28. A HISTÓRIA DA TEOLOGIA DO ANT1CO TESTAMENTO 55 O ultimo artigo em Tradition and Theology é “Tradition and Biblical Theology”, escrito por Hartmut Gese. Como professor de Antigo Testamento em Tübingen, Gese seguiu a maneira de von Rad estudar a história das tradições de Israel. Ele estava convicto de que o Antigo Testamento e o Novo não devem ser separados, como os cristãos já fizeram no passado. Ele diz que há apenas um cânon. O mesmo processo de formação do cânon do Antigo Testamento continuou no período do Novo Testamento e dos apóstolos.106 Gese argumentou que existe uma unidade entre o Antigo e o Novo Testamento. A morte e ressurreição de Jesus indicam o objetivo, o fim, o telos do percurso da tradição bíblica. Por isso, com a morte e ressurreição de Jesus, o cânon se encerra onde não se encerrara antes. Gese continuou seu trabalho na teologia bíblica fazendo uso do método da história da tradição. Em uma coletânea de Essays on Biblical Theology,'01 Gese explica seu método de fazer teologia bíblica e trata de seis temas bíblicos histórica e teologicamente. Os seis temas são: morte, a lei, expiação, ceia do Senhor, o Messias e o prólogo ao evangelho de João. Gese entendeu que todos esses temas começam no Antigo Testamento e continuam no Novo. A origem da Ceia do Senhor, por exemplo, encontra-se nos salmos de ações de graça do Antigo Testamento.10* John Goldingay avaliou o novo método da história das tradições em seu livro Approaches to Old Testament Interpretation. Ele reconheceu que o cânon bíblico é resultado de um processo longo.109 Sobre a história da tradição, Goldingay disse: “O método histórico-tradicionário é sugestivo, apesar de ser exclusivista demais. O Novo Testamento é uma atualização seletiva do Antigo, e não o objetivo inevitável para o qual todo o Antigo Testamento manifestamente se dirige”.110 A maioria dos teólogos do Antigo Testamento fez da “história da salvação” a ênfase principal da teologia do Antigo Testamento, mas ultimamente há um enfoque cada vez maior na sabedoria como um tema importante."1 Em 1962, von Rad disse que Israel não conhecia nem o nosso conceito da natureza nem o conceito grego do cosmos. “Para eles, o mundo não era um organismo estável e ordenado harmonicamente.”112 H. H. Schmid adotou uma perspectiva totalmente diversa em relação à categoria básica de pensamento no Antigo Testamento. Schmid argumentou que em Israel, como em todo o antigo Oriente Próximo, a ordem do mundo é a categoria de 106 Ibid., 322. 101 Editada e traduzida para o inglês em 1981. 108 Veja Hartmut Gese, Zur Biblischen Theologie: Allteslamentliche Vorträge (Chr. Kaiser Verlag, Munique), 1977, editado e traduzido para o inglês em 1981. 109 Approaches to Old Testament interpretation, 122. 110 Ibid., 131. 111 Cf. Walther Zimmerli, "The Place and Limit o f Wisdom in the Framework o f Old Testament Theology", 165-181. 112 Old Testament Theology 1,426 (no Brasil, Teologia do Antigo Testamento, 2 vols., pela ASTE). 56 T f o i .o c u do A n t ig o T e s t a m e n t o pensamento básica. Ele afirmou que a palavra hebraica sedeq equivale à palavra egípcia maat e ao sumério me. A ordem do mundo abrange lei, sabedoria, natureza, guerra, culto e história. Segundo Schmid, termos hebraicos como 'emet, shalom e chesed fazem parte do mesmo campo semântico. Essa terminologia está profundamente arraigada no pensamento de sabedoria; por isso, “a sabedoria não é algo secundário, mas um elemento central na Bíblia”.113 Em 1983, Simon J. de Vries publicou The Achievements o f Biblical Religion. Esse livro procura a compreensão bíblica de um ponto de vista rigorosamente histórico e exegético, destacando temas específicos que distinguem Israel dos seus vizinhos. De Vries afirmou que esses elementos distintivos respondem pelo fato de o Antigo Testamento ter sobrevivido e ser relevante até hoje.114 Os temas específicos que diferenciavam Israel são: 1) a transcendência de Deus; 2) a imagem divina espelhada na pessoalidade humana; 3) a vida de integridade realizada na comunidade da aliança; 4) a história como diálogo responsável com Deus; e 5) sentido e propósito na existência finita. Esses cinco temas dão título aos cinco capítulos do seu livro. De Vries concluiu que existe unidade na Bíblia e que “de Gênesis a Apocalipse dá-se testemunho do mesmo Deus, avançando de época em época, levando suas obras à perfeição cada vez maior”.115 De Vries cria que a razão por que judaísmo e cristianismo sobreviveram, cresceram e se espalharam pelo mundo em face de oposição e perseguição foi que “tinham algo precioso em que se apegar, algo que lhes tomava a vida diferente da vida dos vizinhos pagãos, algo pelo que valia a pena morrer, que transcendia a morte”.116 Em 1983, Martin H. Woudstra escreveu um artigo sobre “The Old Testament in Biblical Theology and Dogmatics”, em que tratou do interesse atual no Antigo Testamento e seu lugar na dogmática. Antes de analisar o lugar do Antigo Testamento na dogmática, ele traçou a história do movimento de teologia bíblica da obra de Gabler até o presente. Woudstra acreditava que a obra de Gabler foi muito mais influente do que um simples chamado para a separação entre dogmática e teologia bíblica. Gabler foi uma personagem fundamental no desenvolvimento do estudo da Bíblia na Alemanha. Woudstra cria que Gabler foi influenciado principalmente por quatro pessoas: Eichhom, Semler, Lessing e Herder. A influência desses quatro homens foi mais negativa que positiva no que tange à perspectiva cristã da Bíblia e da teologia. 113 "Creation, Righteousness, and Salvation", em Creation in the Old Testament, 102-117; cf. H. G raf Reventlow, "Basic Problems in Old Testament Theology", 10; Roland E. Murphy, "Wisdom —Theses and Hypotheses", em Israelite Wisdom, editado por John Gammie e outros, 37. 114 The achievements o f Biblical Religion, vii. 115 Ibid., 28. U6 Ibid., 29. A HISTÓRIA DA TEOLOGIA DO ANTIGO TESTAMENTO 57 Woudstra observou que Gabler foi o primeiro a considerar a idéia de “mito” um termo adequado para compreender a natureza da narrativa bíblica. Gabler minou a autoridade dos credos da igreja e disse que o estudo erudito da Bíblia é um “esforço esotérico” 117. Woudstra destacou Abraham Kuyper, Charles Hodge e B. B. Warfield como modelos de teólogos dogmáticos e pareceu aprovar a maneira como eles usavam o Antigo Testamento, em oposição ao trabalho de estudiosos modernos como K. H. Miskotte, A. A. van Ruler, K. Barth e H. Berkhof. Woudstra dizia que esses últimos estudiosos faziam muito caso do aspecto “judaico” do Antigo Testamento, o que põe em xeque a unidade e a continuidade dos Testamentos.118 Woudstra acreditava que o método bartiano toma difusa a linha divisória entre judaísmo e igreja. Ele objetou ao uso do termo cisma por Miskotte e William Temple para referir-se à divisão entre judeus e cristãos, porque o termo sugere uma separação entre pessoas da mesma fé. Woudstra disse: “Isso não faz justiça a toda a profundidade da perspectiva bíblica”.119 O denominador comum, para Woudstra, é o uso que o Novo Testamento faz do Antigo: Este escritor acredita que a identidade messiânica de Jesus e, em conseqüência, a natureza e missão do seu ministério terreno, do nascimento à ascensão, dependem totalm ente da aceitação em fé, também do ponto de vista exegético, das opiniões do Novo Testamento quanto ao significado do Antigo.120 O ideal de que precisamos, segundo Woudstra, é uma versão melhorada de Miskotte, van Ruler, Berkhof e Emst Block: Esta é uma grande tarefa, e as pessoas disponíveis para executá-la de uma perspectiva biblica coerente são raras e às vezes sobrecarregadas. [...] Enquanto isso, os próprios estudiosos do Antigo Testamento deveriam tentar “digerir” e expor o material bíblico de tal modo que o sistematizador possa usá-lo sem precisar fazer uma reorientação total.121 Um livro recente sobre a história da teologia do Antigo Testamento, Old Testament Theology: its History and Developmení, de Hayes e Prussner, assume essa posição “judaica” de que Woudstra falou. Trata-se da expansão, revisão e atualização por Hayes da tese de doutorado de Prussner na Universidade de Chicago em 1952. O livro se compõe de cinco capítulos: 1) os primeiros 117 "The Old Testament in Biblical Theology", 49. 118 Ibid., 53. 119 Ibid., 57, nota 39. 120 Ibid., 58. 121 Ibid., 60-61. 58 T e o l o g ia do a n t ig o t e s t a m e n t o desenvolvimentos da teologia do Antigo Testamento; 2) a teologia do Antigo Testamento no século XVIII; 3) a teologia do Antigo Testamento no século XIX; 4) o renascimento da teologia do Antigo Testamento; e 5) desenvolvimentos recentes da teologia do Antigo Testamento. Excelentes bibliografias atualizadas iniciam cada divisão principal. No livro há ao todo 21 bibliografias atuais amplas, e mais ou menos 50 obras importantes sobre teologia do Antigo Testamento são resenhadas e avaliadas. Todavia, um “propósito oculto” parece estar por trás de boa parte do livro de Hayes e Prussner. Podemos começar com a dedicatória: “A Sidney Isenberg, que sabe todas as razões por quê.” Diferente da maioria das obras sobre teologia do Antigo Testamento, que terminam com alguma referência à sua continuação ou “cumprimento” no Novo Testamento e na fé cristã, Hayes e Prussner terminam seu livro com uma apologia abrupta do judaísmo como continuação e interpretação legítima das Escrituras hebraicas. Depois o leitor é informado de que, “em todo esse volume”, os autores perceberam a baixa estima que os teólogos bíblicos têm pelo judaísmo pós-exílico e posterior.122 Hayes falou do menosprezo pelo judaísmo e disse que é lamentável que a atitude negativa em relação ao judaísmo tenha sido continuada por Eichrodt e von Rad. Na verdade, a obra de Hayes e Prussner reflete a tendência de alguns estudiosos contemporâneos do Antigo Testamento, que tentam corrigir a injustiça que sentem estar sendo feita aos judeus pelos estudiosos do Antigo Testamento cristãos. James Barr fez a sétima palestra de Montefiore sobre Judaism: iís Continuity with the Bible, na Universidade de Southampton em 1968. Barr disse que Claude Montefiore se ressentia, com o que Barr concordava, de que os cristãos, em especial os instruídos e eruditos, costumavam olhar de cima para baixo para o judaísmo, como uma religião à qual faltava espiritualidade e moralidade genuína. Eles dizem que é um conjunto de práticas que são seguidas sem convicção interna. Essas opiniões supostamente estavam de acordo com a crítica básica e original do judaísmo, exemplificada nos ensinos do próprio Jesus e apoiada e incentivada pela descrição do judaísmo feita nos evangelhos e nas cartas de Paulo.123 Para contrabalançar essa imagem negativa do judaísmo, Montefiore se dispôs a apresentar o material rabínico da época de Jesus de uma maneira que mostrasse sua espiritualidade, nobreza moral e valores fundamentais. Montefiore enfatizou os ensinos positivos do judaísmo e do cristianismo sem fazer juízo de valor da pessoa, da função e das ações miraculosas de Jesus.124 Todavia, depois da Segunda Guerra Mundial e do ataque nazista ao Antigo Testamento, a tentativa de exterminar os judeus provocou uma atmosfera pró- 122 O ld Testament Theology, 276. 123 Barr, Judaism: its Continuity with the Bible, 5. 124 Ibid., 6. A HISTÓRIA DA TEOLOGIA DO ANTIGO TESTAMENTO 59 semita na teologia acadêmica. O Antigo Testamento passou a ser altamente valorizado, e muitos estudiosos e teólogos faziam coro às palavras de Jesus: “A salvação vem dos judeus” (Jo 4.22). A ênfase não era expressa em termos de espiritualidade e moralidade, mas de continuidade e diferença. Os cristãos têm um grande apreço por sua herança judaica, mas sua ênfase nos atos redentores de Deus encontrados no Antigo Testamento levou de modo natural e bíblico, segundo o Novo Testamento, a Cristo. Como muitos judeus rejeitam as afirmações dos cristãos a respeito de Jesus, Barr pensou que na estrutura do cristianismo estava embutida uma tendência de desprezar o judaísmo.125 Parece que Hayes e Prussner tinham a forte impressão de que o judaísmo fora prejudicado pelos teólogos bíblicos, e se esforçaram para corrigir a situação. Excurso: o relacionamento judeu-cristão e a teologia do Antigo Testamento Martin Woudstra tocou uma área sensível quando disse que K. H. Miskotte, A. A. van Ruler e Karl Barth destacaram demais o caráter “judaico” do Antigo Testam ento.126 Até recentemente, nenhum judeu participara da autoria de uma teologia do Antigo Testamento, e os judeus via de regra não tomavam parte na disciplina. O regime nazista (1933-1945), porém, mudou tudo isso. A matança de seis milhões de judeus no Holocausto causou em muitos líderes cristãos um sentimento de vergonha e culpa, porque sentiam que podiam ter contribuído para a ascensão e para a conduta de A dolf Hitler. O relacionamento entre judeus e cristãos tem sido tem a de uma enorme quantidade de escritos e debates acalorados desde 1945. R. W. L. Moberly disse: “O crescimento do diálogo judeu-cristão tem sido um dos traços mais marcantes do debate teológico recente no mundo ocidental” .127 Muitos cristãos arriscaram a vida protegendo judeus e se opondo a Hitler. Bonhoefifer, K. Barth, Miskotte, G. von Rad e outros líderes cristãos estiveram envolvidos ativa e publicamente na resistência aos nazistas. Karl Barth viu uma relação estreita entre o papel de Israel e o de Jesus. Ele disse que a missão de Jesus era a missão de Israel: Neste Jesus Cristo estam os lidando com o homem em que a missão deste povo singular, o povo de Israel, o povo judeu, é mostrada e revelada. Cristo, o Servo de 125 Judaism: ils continuity with the Bible, 9. 126 Woudstra, "The Old Testament in Biblical Theology and Dogmatics", 53. 127 The Old Testament o f the Old Testament, 147. 60 T e o ix >g ia do A n t ig o T e s t a m e n t o Deus que veio desse povo, o futuro do Servo de Deus para todos os povos, assim como este povo de Israel, são duas realidades inseparáveis, não só naquele tempo mas para toda a história, na verdade para toda a eternidade. Israel não é nada sem Jesus Cristo; mas também temos de dizer que Jesus Cristo não seria Jesus Cristo sem Israel.128 Para Barth, houve pouco avanço redentivo do Antigo Testamento para o Novo. Ele tendia a considerá-los “dois círculos concêntricos que giram em tom o de um círculo idêntico”.129 A igreja e a sinagoga juntas constituem a congregação de Deus. Elas são uma só e também separadas. Ninguém pode pertencer à igreja e à sinagoga ao mesmo tem po.130 Israel no Antigo Testamento está presente de modo singular e distinto, em sua eleição e chamado. Em sua tolice, perversidade e fraqueza, ele é objeto do “am or e bondade sempre novos de Deus, mas também [...] da condenação de Deus — essa nação corporifica na história a graça gratuita de Deus para todos nós”.131 Barth afirmou que o quadro que o Antigo Testamento pinta dos israelitas é, “de maneira chocante, o de um homem que resiste à sua própria eleição e conseqüentemente à missão que lhe foi dada, que prova pessoalmente ser indigno e incapaz da missão e que, como conseqüência, por ser objeto da graça de Deus, é constantemente prostrado e quebrado pelo castigo que o aflige exatamente porque ele se afasta da graça” .132 A missão de Israel tem de ser entendida como uma missão cumprida, revelada e realizada em Jesus Cristo; mas, de acordo com Barth, Israel ainda tem a missão de demonstrar a indignidade humana e, ao mesmo tempo, tom ar-se uma demonstração da graça gratuita de Deus. Miskotte comprou “por atacado” a teologia de K. Barth e escreveu provavelmente a primeira obra teológica nos tempos pós-bíblicos que diz respeito tanto ao judaísm o quanto ao cristianism o.133 A Igreja Católica Romana foi severamente criticada por seu envolvimento ou falta de envolvimento no terror nazista contra os judeus. O papa João XXIII convocou um raro concílio ecumênico (Vaticano li) em 1964-1965. O papa queria que o concilio fizesse uma declaração sobre os judeus, e pediu ao cardeal Bea que a providenciasse. “Entre esse começo e o resultado temos talvez a história mais dramática do concílio.” 134 O documento do Vaticano ll sobre os não cristãos diz que a Igreja de Cristo reconhece que o início da sua fé e eleição pode já ser encontrado com os patriarcas, Moisés e os profetas. A igreja não pode esquecer que recebeu a revelação do Antigo Testamento do povo por meio 128 Dogmatics in Outline, 74. 129 K. H. Miskotte, When the Gods are Silent, x. m Ibid., 77-78,81. 131 Barth, Dogmatics in Outline, 74. m l b i d . ,n . 133 Miskotte, When the Gods are Silent, ix-x, 76-77. 134 Robert A. Graham, S. J., "Non-Christians", em The Documents o f Vatican II, ed. Walter M. Abbot, S. J. (Nova York, Guild Press, 1966), 656. A HISTÓRIA DA TEOLOGU DO ANTIGO TESTAMENTO 61 do qual Deus fez a aliança antiga. Do povo judeu procederam os apóstolos e a maioria dos primeiros discípulos; porém Jerusalém não reconheceu o tempo da sua visitação (veja Lc 19.44), e os judeus não aceitaram o evangelho em grande número. Mesmo assim, os judeus continuam sendo muito preciosos para Deus (Rm 11.28, 29). “A igreja espera o dia, que só Deus conhece, em que todos os povos se dirigirão ao Senhor em uníssono e ‘o servirão de comum acordo’” .135 Os documentos do Vaticano II absolvem os judeus de qualquer acusação de deicidio e lamentam o ódio, as perseguições e as manifestações de antisemitismo voltadas contra os judeus em qualquer época e lugar. As declarações do Vaticano II motivaram um grande número de diálogos entre cristãos e judeus. A princípio, os judeus foram acusados de rejeitar Jesus e de não crer no evangelho. Contudo, nos últimos anos parece que muitos líderes cristãos desculpam os judeus por não crer no evangelho e por rejeitar Cristo, com base em que os judeus ainda são povo da aliança de Deus e têm o direito de definir e interpretar quem são à luz da Bíblia hebraica. A antiga idéia teológica de que o cristianismo ultrapassou o judaísm o foi colocada de lado por muitos teólogos cristãos. N a introdução a um volume de palestras feitas na Universidade de Notre Dame em 1989, os editores disseram que a alegação tradicional dos que afirmam a superioridade do cristianismo, de que a religião bíblica encontra seu cumprimento verdadeiro no cristianismo, inegavelmente fez com que o judaísm o antigo, medieval e moderno fosse denegrido, e não pode ser inocentada do furor do anti-semitismo e do holocausto no século XX. “ É uma pressuposição do diálogo apresentado neste volume de que a idéia de substituição do Antigo Testamento não pode mais ser mantida.” 136 Muitos escritores cristãos estão fazendo outras concessões aos judeus, tentando, por exemplo, mudar o nome “Antigo Testamento” para “ Bíblia hebraica” ou “ Primeiro Testamento”, como sugeriu James Sanders.137 Sanders disse que o mundo pensante em geral parece estar se acostumando com “Bíblia hebraica”. A expressão pode ser encontrada em catálogos de seminários cristãos e nos nomes de livros e artigos. Uma publicação importante recente da Society for Biblical Literature foi intitulada The Hebrew Bible and its Modern Interpreters.l38 Alguns cristãos se sentem incomodados com o nome “Antigo Testamento” porque acham que os judeus se sentem incomodados com ele.139 Jacob Neusner, no entanto, convenceu muitos estudantes e especialistas de que o verdadeiro cânon do judaísm o não é o “ Antigo Testamento” ou a Bíblia hebraica, mas o corpo rabínico do judaísm o formativo, especialmente a M ishná e os Talmudes.140 135 Documents o f Vatican II, 664-665. 136 Roger Brooks e John J. Collins, eds., Hebrew Bible or Old Testament, 1. 137 'F irst Testament and Second", 47-49. 138 D. A. Knight and G. M. Tucker; veja também Norman K. Gottwald, The Hebrew Bible: a Socio-Literary Introduction. 139 Sanders, Hebrew Bible or Old Testament, 41. 140 Formative Judaism, 2 vols. 62 T e o l o g ia do A n t ig o T e s t a m e n t o O termo “Antigo Testamento” tem sido rotulado de “ impróprio”, “anti-semita” e “pejorativo” .141 M. Braybrooke disse que é melhor evitar o uso de “Antigo” e “Novo” Testamentos porque implica, em especial para ouvidos judaicos, “que a igreja substituiu o povo judaico e que Deus os abandonou porque mataram Jesus” .142 J. F. A. Sawyer, da Universidade N ewcastle, sempre disse que o uso cristão do termo “Antigo Testamento” é anti-semita, “demagógico, arrogante, opressor, simbolo da rejeição dos judeus, e teologicamente indefensável”.143 Nem todos os estudiosos concordam com a afirmação de que o termo “ Antigo Testamento” tem de ser abandonado. Roland Murphy continuou a usar “Antigo Testamento” porque é tradicional (veja 2Co 3.14) e porque “antigo” não significa necessariamente “ultrapassado” ou “obsoleto”.144 Uma das razões por que os cristãos não devem abandonar o termo “Antigo Testamento” é que não existe outro termo que expresse adequadamente o sentido bíblico da “antiga” e da “nova” aliança. R. W. L. Moberly sugeriu que os cristãos, antes de abandonar o uso dos termos “Antigo” e “Novo” Testamento, devem fazer duas perguntas. Primeira: esses termos expressam conteúdos tão essenciais que a integridade da fé cristã estaria ameaçada com seu abandono? Segunda: se os termos são essenciais à fé cristã, eles necessariamente implicam uma postura negativa diante dos judeus ou do judaísm o? Moberly concluiu que a terminologia “Antigo” e “Novo” Testamentos é essencial. “É tão necessário para o cristão que a fé centrada em Jesus sobrepuje de algumas maneiras a religião do Antigo Testamento, assim como para os adeptos do javism o mosaico era necessário que sua fé sobrepujasse de algumas maneiras a religião patriarca!” .,4S Há um senso de continuidade em relação ao que veio antes, para o javism o mosaico e para o cristianismo, mas também há o senso de um novo começo, que confere uma condição normativa aos adeptos do novo e relativiza a importância do antigo ou anterior. Não é mais possível que os adeptos da “nova era” continuem na antiga, do jeito que ela era. Qualquer que seja a atração aparente para abandonar a terminologia “Antigo Testamento”, “simplesmente não é possível para o cristão fazê-lo e continuar explicando a lógica da posição diferente do cristão em relação ao judeu” .146 A segunda pergunta levantada por Moberly é: será que os termos “Antigo” e “Novo” (Testamentos) necessariamente implicam uma conceituação negativa da fé judaica? A resposta de Moberly é “não” . Ele fundamentou sua resposta com sua analogia de como o 141 Veja Moberly, The Old Testament o f the Old Testament, 159. 142 Time to Meet, 171, nota 16; veja C. M. Williamson e R. J. Allen, Interpreting Difficult Texts: Anti-Judaism and Christian Preaching, 115. 143 "Combating Prejudices about the Bible and Judaism", 269-278; veja Moberly, The Old Testament o f the Old Testament, 160. 144 "Canon and Interpretation", em Hebrew Bible or Old Testament, 11, nota I . 145 The Old Testament o f the Old Testament, 161. 146 R. W. L. Moberly, 161. A HISTÓRIA DA TEOLOGIA DO ANTIGO TESTAMENTO 63 javism o mosaico tratou a religião patriarcal e de como a igreja tratou o javism o mosaico. A religião patriarcal adorava apenas um Deus, sem se opor a que os seguidores de outros deuses os adorassem. No javism o mosaico, o prim eiro mandamento exigia de todo Israel a adoração exclusiva de Javé. Gênesis não registra nenhum antagonismo ou oposição patriarcal às práticas religiosas “pagãs” dos habitantes de Canaâ. O javism o mosaico, por sua vez, proibiu a adoração de ídolos no segundo mandamento. Os patriarcas adoravam a Deus onde quer que ele lhes tivesse aparecido. No javism o mosaico, apenas um lugar acabou sendo legitimado como lugar para adorar e oferecer sacrifícios. Regras detalhadas e rígidas regulamentavam os privilégios e responsabilidades dos sacerdotes no javism o mosaico. A religião patriarcal tinha poucas dessas regras. Poderíamos relacionar outras diferenças entre a religião patriarcal e a mosaica; o que se vê é que o javism o mosaico não denegriu a religião patriarcal quando se sobrepôs a ela. Respeitou-a e preservou os aspectos característicos da religião patriarcal como fundamentos da sua própria fé, incluindo-os em seu “credo”, em que recitava os grandes atos de Deus (Dt 26.5-9). Da mesma maneira, os cristãos devem respeitar a religião dos patriarcas e o javism o mosaico como parte dos seus fundamentos religiosos e do seu “credo”. Em si, porém, o cristianismo é algo novo. Algumas coisas do antigo são deixadas para trás. Há diferenças fundamentais na maneira de cristãos e judeus usarem o Antigo Testamento. O Antigo Testamento faz parte da Bíblia cristã, mas os cristãos o interpretam à luz de Jesus Cristo. Seus ensinos rompem os odres velhos (Mt 9.17). Seu sangue era o sangue da nova aliança (Mt 26.28). Há uma diferença na m aneira de o javism o mosaico tratar a religião patriarcal e de os cristãos tratarem o javism o mosaico. O javism o absorveu os patriarcas e seus descendentes (com a possível exceção dos recabitas: 2Rs 10.15; Jr 35.2-11). A religião patriarcal não sobreviveu como instituição separada. O javism o mosaico não sobreviveu no judaísm o sem algumas mudanças básicas. No fundo, tanto judaísm o como cristianismo estão arraigados no Antigo Testamento. O apóstolo Paulo disse: “Se alguns dos ramos foram quebrados, e tu, sendo oliveira brava, foste enxertado em meio deles e te tom aste participante da raiz e da seiva da oliveira, não te glories contra os ramos. [...] Pela sua incredulidade, foram quebrados; tu, porém, mediante a fé, estás firme” (Rm 11.17-20). O javism o mosaico não acabou quando Jesus veio. Foi absorvido e transformado no judaísm o rabínico, que usou a Mishná e o Talmude para interpretar as formas antigas. Perdura até hoje o debate acalorado sobre o relacionamento apropriado entre judeus e cristãos. Joseph Blenkinsopp disse: “Nenhuma teologia do Antigo Testamento tem chance de ser bem sucedida se perpetuar um entendimento preconceituoso e falso dos desenvolvimentos durante o segundo acordo, um dos quais naturalmente foi o surgimento e 64 T f.o i .o c ia do A n t ig o T e s t a m e n t o consolidação do movimento cristão”.147 Também pode ser dito que provavelm ente não se pode escrever uma teologia do Antigo Testamento bem sucedida sem uma compreensão adequada da teologia do Novo Testamento. Bruce Corley, deão da escola de teologia do Southwestem Baptist Theological Seminary, iniciou um artigo no SW JT com uma referência à palavra que K. L. Schmidt dirigiu à Igreja Confessante no auge do terror nazista. Schmidt apelou a Romanos 9-11 como chave da fé em tempos perigosos. A esperança de Paulo para Israel foi proclamada como uma luz em trevas ameaçadoras e não como um pingo de revelação, mas como manifestação da presença de Deus. Corley disse: “0 clímax da palestra [de Schmidt] é: “A pergunta por Deus, a pergunta pelo futuro, a pergunta pelos judeus, é a mesma pergunta” .148 Corley considerou a afirmação de Schmidt um resumo bem equilibrado de Romanos 9-11. “ De fato, quando Paulo analisa a questão da incredulidade, seus olhos acabam se voltando para a esperança da salvação futura de Israel. Todo seu raciocínio, porém, origina-se de um a posição bem marcada na história: a situação presente do Israel endurecido engrandece genuinamente a fidelidade de Deus” .149 Deus foi fiel desde o princípio da sua obra de salvação. Ele não é injusto (Rm 9.14), e não rejeitou o seu povo (11.1). Apesar de Israel como povo não ter crido no evangelho, sua rejeição do evangelho é parcial (Rm 11.1-10) e temporária (v. 1127). Paulo acreditava que viria um tempo em que todo Israel seria salvo, quando e caso cresse no evangelho (Rm 11.23). Corley advertiu o leitor quanto a ver particularismo, dispensacionalismo ou universalismo nessa passagem. Nada se diz sobre “a restauração da teocracia na terra da Palestina ou sobre a salvação automática de todo judeu, vivo ou morto!”.150 A grande extensão desse excurso sublinha a importância das questões envolvidas no relacionamento entre judeus e cristãos. Até aqui, os debates e diálogos levantaram muito mais perguntas do que as responderam. A busca por respostas e soluções tem de continuar. B. O interesse na teologia do Antigo Testamento e no fluxo da respectiva literatura a partir de 1985 Em 1985, Thomas E. McComiskey do Trinity Evangelical Seminary escreveu The Covenants o f Promise: a Theology o f the Old Testament Covenants. Esse livro vê a aliança como centro das ações de Deus na história, da criação até o fim dos tempos. Apesar de o autor usar princípios modernos de exegese, o livro 147 "Old Testament Theology and the Jewish-Christian Connection”, 11. 148 Corley, “The Jews, the future, and God", 42. 149 Corley, 42. 15° «jjjg j ew s ,j,e future God", 55. A HISTÓRIA DA TEOLOGIA DO ANTIGO TESTAMENTO 65 essencialmente não é crítico. Recorre muito ao Novo Testamento e é bastante influenciado pela teologia da aliança. Contudo, ele reflete a continuação do interesse na teologia do Antigo Testamento. Bem diferente de The Covenants o f Promise, de McComiskey, é o último livro de Brevard Childs, Old Testament Theology in a Canonical Context. Trata-se de um volume pequeno, de 250 páginas. Por essa razão, é apenas um resumo ou esboço do entendimento de Childs do que deve constituir a forma e o conteúdo de uma teologia do Antigo Testamento. A análise dos diversos tópicos em seus vinte capítulos é bastante telegráfica. Ele foi coerente ao continuar a dar ênfase na abordagem canônica das Escrituras, postura que tem tido desde o fim da década de 1960 (suas primeiras duas obras, Myth and Reality in the Old Testament [1960] e Memory and Tradition in Israel [1962] não mencionam o cânon). Pode-se detectar na obra mais recente de Childs a influência de Eichrodt, von Rad e Zimmerli, mas ele foi além deles. Childs enfatiza muito o Antigo Testamento como revelação. O decálogo sempre ocupou um lugar de destaque na teologia do Antigo Testamento para Childs. Ele tratou de eleição e aliança, das instituições de Israel e seus oficiais, da ética do Antigo Testamento, condenação e promessa. Seguiu um esquema sistemático modificado, e o livro contém bibliografias importantes no fim de cada capítulo. Mais recentemente, Childs trouxe a público sua estrutura de uma teologia bíblica completa (Biblical Theology o f the Old and New Testaments). Ele mostra o “testemunho discreto”, primeiro do Antigo e depois do Novo Testamento; depois exemplifica a exegese no contexto da teologia bíblica, trabalhando com Gênesis 22.1-19 como akedah e Mateus 21.33-46. Por último, ele faz reflexão teológica sobre a Bíblia cristã, esboçando o testemunho do Antigo Testamento e a posição do judaísmo e do Novo Testamento sobre temas importantes. Em seguida traça a linha que vai da teologia bíblica para a dogmática e reflete sobre isso. Em 1988, Jesper Hogenhaven publicou uma pequena monografia sobre Problems and Prospects o f Old Testament Theology.m Essa obra resultou de um seminário no Queens College em Oxford em 1983, e originalmente foi publicada em dinamarquês. Hogenhaven propôs fazer das principais categorias literárias do Antigo Testamento (literatura de sabedoria, de salmos, narrativa, legal e profética) a estrutura da teologia do Antigo Testamento. Christoph Barth (1917-1986), o segundo filho de Karl Barth, passou boa parte da sua vida na Indonésia ministrando educação teológica, mas também atuou doze anos como professor de Antigo Testamento em Mainz, na Alemanha. No 151 JSOT Press. 66 T e o l o c ia do A n t ig o T e s t a m e n t o prefácio ao seu livro God With Us152 somos informados de que ele quis escrever um livro de referência “que apurasse os ouvidos dos alunos, de modo que, ouvindo o que Deus disse e fez no passado, estivessem abertos ao que o Espírito de Deus diz e faz hoje” (viii). Na verdade, o livro é produto do trabalho editorial de Geoffrey Bromiley, do Fuller Seminary. Com a permissão da esposa de Christoph Barth, Bromiley reuniu as anotações e palestras do Dr. Barth e as preparou para publicação. O mundo da pesquisa do Antigo Testamento está em dívida com Bromiley e William B. Eerdmans, Jr. por terem colocado esse material à disposição. O método é uma tentativa de expor a mensagem do Antigo Testamento de uma maneira que seja fiel ao Antigo Testamento em si — isto é, como um relato das ações poderosas de Deus, e não como doutrinas abstratas. Os títulos dos nove capítulos são: 1) Deus criou céu e terra; 2) Deus escolheu os pais de Israel; 3) Deus tirou Israel do Egito; 4) Deus conduziu seu povo pelo deserto; 5) Deus se revelou no Sinai; 6) Deus entregou a Israel a terra de Canaã; 8) Deus escolheu Jerusalém; 9) Deus enviou seus profetas. É um livro de leitura inspirativa e proveitosa. Outra obra importante sobre teologia do Antigo Testamento é uma compilação de 22 artigos publicados anteriormente. Ben C. Ollenburger, Elmer A. Martens e Gerhard F. Hasel selecionaram, prefaciaram e, em alguns casos, traduziram esses artigos de renomados estudiosos do Antigo Testamento. O livro é chamado The Flowering o f Old Testament Theology (1992). Talvez um livro que não é chamado “teologia do Antigo Testamento” mas trata de muitos temas da teologia do Antigo Testamento deva ser mencionado aqui. É The World o f Ancient Israel, editado por R. E. Clements. Ele estuda o contexto histórico e cultural de Israel, a monarquia, a lei, a profecia, a sabedoria, a literatura apocalíptica, a santidade, a aliança, a mulher e vida e morte. Síudies in Old Testament Theology (1992) é um Festschrift para David A. Hubbard, editada por seu sobrinho Robert L. Hubbard, Jr., Robert K. Johnston e Robert P. Meye. Essa compilação abrange 14 artigos relacionados com o estudo do Antigo Testamento. Começamos este capítulo dizendo que a história da teologia do Antigo Testamento “é longa, fascinante e sinuosa”. Até aqui foi longa. É fascinante no sentido de que intriga e cativa a mente do leitor sério. Levanta questões de vida e morte. Às vezes é sinuosa; ficamos atolados em minúcias e perdidos em muitas idas e vindas. Mas não podemos parar. Temos de avançar para a questão da natureza e do método da teologia do Antigo Testamento. 152 Eerdmans. 1991. 2 A natureza e o método da teologia do Antigo Testamento 8. A natureza da teologia do Antigo Testamento A. Nenhuma definição universalmente aceita Q u e é te o lo g ia d o A n tig o T e sta m e n to ? U m a in sp eç ão d o s liv ro s b ásico s so bre a te o lo g ia d o A n tig o T e sta m e n to esc rito s n os ú ltim o s 50 a n o s m o stra p o u ca co n co rd ân c ia q u a n to à n atu reza, ta re fa e m e to d o lo g ia d e ssa d isc ip lin a . John M cK en z ie disse: "A te o lo g ia b íb lic a é a ú n ica d isc ip lin a ou su b d isc ip lin a no ca m p o d a teo lo g ia q u e c a re c e d e p rin c íp io s, m é to d o s e e stru tu ra que receb am a ce ita çã o geral. N em m e sm o ex iste u m a d e fin iç ã o geral d e seu p ro p ó sito e e sc o p o " .1 G erh ard von R ad esc re v e u q u e "não ex iste até o m o m en to a c o rd o q u a n to ao q u e re a lm e n te é o a ssu n to [...] d a te o lo g ia d o A n tig o T e sta m e n to ".2 1 A Theology o f the Old Testament, 15. 2 Old Testament Theology /, v (publicado no Brasil pela a s te como Teologia do Antigo Testamento). 68 T f.o l o c ia do A n t ig o T e s t a m e n t o B. O Antigo Testamento contém "teologia"? Alguns estudiosos relutam em dar o nome "teologia" a qualquer estudo que se limite ao Antigo Testamento ou mesmo a toda a Bíblia. James Barr disse que teologia significa o estudo de Deus, mas o estudo de Deus não deve ser limitado ao Antigo Testamento ou à Bíblia. Para Barr, a teologia deve incluir o estudo de história, filosofia, psicologia e o mundo natural, junto com a Bíblia. Para alguns, teologia bíblica não é de fato teologia porque limita-se aos dados bíblicos e organiza-os de maneira descritiva. Para a maior parte dos teólogos sistemáticos, a teologia é um construto crítico moderno e "um refinamento de nossos conceitos de Deus em Cristo e na Igreja".3 Para a maior parte dos teólogos hoje, a teologia do Antigo Testamento "deriva da reflexão teológica sobre um corpo de textos bíblicos recebido".4 A teologia do Antigo Testamento é mais uma disciplina normativa que uma disciplina meramente descritiva. A palavra teologia pode ser em si fonte de confusão porque tem sido usada de muitos modos diferentes. A palavra não ocorre no Antigo ou no Novo Testamento. Platão e Aristóteles a empregaram no sentido de "ciência das coisas divinas", idéia que pode insinuar que as coisas divinas podem ser compreendidas só com o intelecto. Terrien opôs-se a essa definição de Platão e Aristóteles. Ele disse que, no Antigo Testamento, a expressão mais próxima de teologia é "o conhecimento de Deus". Essa expressão indica uma realidade que induz e transcende a investigação e a discussão intelectual. "Ela designa a presença de Javé."5 No sentido hebraico de "o conhecimento de Deus", a teologia não se refere a uma ciência objetiva de coisas divinas, mas usa as faculdades críticas da mente. Ela provém de um compromisso interno com a fé e também de uma participação no destino de um povo. C. É preciso que a teologia seja normativa? Pode o termo teologia ser usado para designar um estudo descritivo, fenomenológico da religião de Israel? Ou é preciso que a teologia seja normativa e correlata ao Novo Testamento e à teologia dogmática? James L. Mays perguntou: 3 Ban, "The Theology Case Against Biblical Theology" em Canon, Theology and Old Testament Interpretation", 9. 4 Childs, Old Testament Theology in a Canonical Context, 6. 5 The Elusive Presence, 41. A NATUREZA E O MÉTODO DA TEOLOGIA DO ANTIGO TESTAMENTO 69 "Uma descrição abrangente do Antigo Testamento ainda é teologia à parte de uma correlação com o Novo Testamento ou de uma coordenação com as categorias da dogmática? Ou o assunto da teologia pode ser esclarecido a partir do próprio Antigo Testamento?".6 Tanto Eichrodt como von Rad limitaram suas discussões da teologia do Antigo Testamento basicamente aos dados veterotestamentários. Alguns estudiosos ainda recusam-se a ligar o termo teologia a algum estudo descritivo e histórico. Eles insistem que teologia implica experiência, compromisso e fé. Norman Porteous limitaria a teologia a uma ciência normativa. Ele disse: "É possível, claro, e à sua maneira legítimo usar a palavra ‘teologia’ de maneira perfeitamente inócua como um nome para a exposição sistemática de crenças sustentadas pelos adeptos [...] de alguma religião particular. Qualquer estudioso com o conhecimento requerido poderia escrever tal teologia, e o resultado bem poderia ser valioso e esclarecedor para certos propósitos".7 Porteous alegou também que a teologia é uma disciplina "ligada ao conhecimento de Deus". Ele afirmou que, na concepção bíblica, o conhecimento de Deus não significa mera cognição, mas envolve as emoções e a vontade, não menos que o intelecto. Assim, se o teólogo bíblico não possui ele mesmo o conhecimento de Deus, "então, a rigor, o objeto de seu estudo desaparece de vista".* Porteous também perguntou: Seria tarefa do teólogo do Antigo Testamento determinar com a maior precisão possível e expor algum sistema que possa imaginar o que criam os hebreus, nos tempos do Antigo Testamento, acerca de Deus e acerca de si mesmos em relação a Deus, e de que maneiras concretas davam expressão ao que criam? Não há dúvida nenhuma acerca da importância de cum prir tal tarefa. Ela representa um passo indispensável rumo à apropriação correta do Antigo Testamento. Mas o que o cumprimento dessa tarefa nos forneceria é, a rigor, mais uma fenomenologia religiosa do Antigo Testamento que uma teologia.9 Para Porteous, então, qualquer estudo que leve o nome Teologia do Antigo Testamento deve ser considerado normativo em algum sentido para quem está realizando o estudo. Parece que isso limitaria os que poderiam escrever uma teologia do Antigo Testamento aos cristãos e judeus. H. Wheeler Robinson disse: "Vamos nos lembrar constantemente que essa religião, como qualquer outra, só 6 James L. Mays, "Historical and Canonical: Recent Discussion About the Old Testament and the Christian Faith", Magnolia Dei, ed. F. M. Cross, Lemke and Miller, 510-530. 7 Living the Mystery, 22-23. 8 Ibid., 23. 9 Ibid., 36-37. 70 T e o l o g ia do A n t ig o T e s t a m e n t o pode ser compreendida de dentro ou por meio de uma harmonia de sentimentos que nos tome ‘estrangeiros residentes’ (gerim) nela".10 De acordo com essa idéia, a teologia do Antigo Testamento é normativa, relevante e contemporânea. Recentemente John Goldingay defendeu essa idéia com vigor. Goldingay disse que a tarefa de escrever uma teologia do Antigo Testamento não é [...] uma tarefa meramente reconstrutora. Não estamos meramente reformulando a fé expressa explicitamente ou pressuposta de maneira implfcita por uma comunidade de fiéis da época do Antigo Testamento, para compreender a fé do Antigo Testamento por si, mas formulando as implicações teológicas daquela fé de maneira que fiquem esclarecidas para nós como membros de uma comunidade de fiéis em nossos dias” .11 Essa concepção não é unânime entre os estudiosos da Bíblia. Pode surpreender alguns leitores ouvir um estudioso conservador como F. F. Bruce dizer que "uma teologia sistemática do Antigo Testamento não precisa ser distintivamente cristã; pode ser igualmente judaica, e a norma, então, seria a tradição rabínica, em lugar do cumprimento neotestamentário".12 E tarefa da teologia do Antigo Testamento tomar contemporânea e normatizar a mensagem teológica do Antigo Testamento? Se for, isso representa um distanciamento importante do propósito percebido por Gabler e muitos que o seguiram. A. B. Davidson disse: "Teologia bíblica é o conhecimento da grande operação de Deus ao introduzir seu reino entre os homens, apresentada à nossa vista exatamente como na Bíblia".13 G. E. Wright disse que a teologia bíblica é o recital confessional dos atos redentores de Deus numa história em particular.14John Bright escreveu: A tarefa da teologia bíblica é essencialmente descritiva. Ela não possui, como teologia bíblica, a tarefa de defender a validade da fé bíblica ou de apresentar sua importância na época — embora o teólogo bíblico, como professor e ministro da igreja, bem possa estar e, aliás, precise estar, preocupado de maneira vital e incessante justam ente com essas coisas.15 Precisamos admitir que nosso interesse na mensagem do Antigo Testamento é mais que uma curiosidade passageira. Queremos saber o que as 10 Inspiration and Revelation in the Old Testament, 281-282. 11 Theological Diversity and the Authority o f the Old Testament, 111. 12 T h e Theology and Interpretation o f the Old Testament”, Tradition and Interpretation, 386. 13 Old Testament Theology, 1. 14 God Who Acts, 13 (no Brasil, O Deus que Age, pela a s t e ) 15 The Authority o f the Old Testament, 115. A NATUREZA E O MÍTODO DA TEOLOGIA DO ANTIGO TESTAMENTO 71 pessoas do Antigo Testamento criam a respeito de Deus, conhecer a relação entre Deus e as pessoas e o mundo, porque cremos que o Antigo Testamento é a revelação de Deus sobre assuntos como esse naquele período. Concordamos que a teologia trata da revelação e do conhecimento de Deus e que a revelação do Antigo Testamento é válida em toda sua extensão. Vriezen estava correto em concordar com a definição de teologia dada por Haitjema como "o pensamento da fé que brota da revelação".16 Roland de Vaux disse: A Bíblia é considerada Escritura sagrada não só por conter história sagrada, mas principalmente por ter sido escrita sob inspiração de Deus para expressar, preservar e transmitir a revelação de Deus para os homens. O objeto de uma teologia não pode, portanto, restringir-se, como entenderia von Rad, à definição das m aneiras pelas quais Israel concebia seu relacionamento com Deus e à consciência de Israel de que Deus intervinha na história. O teólogo, aceitando o Antigo Testamento como Palavra de Deus, busca ali o que o próprio Deus quis ensinar por meio da história e também a nós.'7 É difícil definir teologia do Antigo Testamento. Ela é descritiva no sentido de descrever o que Deus e o povo fizeram e disseram, segundo registrado no Antigo Testamento, e basear-se nisso. Ela deve incluir todos os dados do Antigo Testamento. Para os protestantes, esses dados limitam-se principalmente ao texto massorético. Para os católicos, podem incluir os apócrifos. A teologia do Antigo Testamento é teológica. Ela não se preocupa meramente em recitar a história de Israel ou em recontar o que Deus fez com Israel e para Israel. O Antigo Testamento é Escritura inspirada e possui uma mensagem de Deus para todos os tempos. A teologia do Antigo Testamento é uma "reflexão", uma "interpretação" e um "construto" dos dados teológicos no Antigo Testamento pertinentes para nós. 16 An Outline o f Old Testament Theology, 145, nota 6. 17 The Bible and the Ancient Near East, 58. 72 T e o l o g ia do A n t ig o T e s t a m e n t o 9. O método da teologia do Antigo Testamento A. Nenhum método único, natural ou óbvio Como devemos fazer uma teologia do Antigo Testamento? A maioria das disciplinas acadêmicas possui um modo "natural" ou "inerente" de apresentar sua matéria. As teologias dogmáticas costumam seguir algum tipo de tratamento sistemático lógico. As introduções ao Antigo Testamento seguem o mesmo esboço natural de tratar assuntos gerais, tais como cânon e texto, seguidos de discussões sobre cada livro do Antigo Testamento. A teologia do Antigo Testamento, porém, não parece possuir um método natural de apresentação de seu material. As mais antigas teologias bíblicas ou teologias do Antigo Testamento usavam o método sistemático ao seguir as categorias da teologia dogmática: teologia, antropologia e soteriologia. O método sistemático ainda era usado em 1935, quando Ludwig Köhler publicou sua Old Testament Theology, mas muitos métodos diferentes vêm sendo usados desde então. Em 1975 Gerhard Hasel disse que estavam em voga cinco métodos principais distinguíveis, mas não mutuamente exclusivos.18 De acordo com Hasel, os cinco principais métodos para fazer teologia do Antigo Testamento eram: (1) o Método Descritivo; (2) o Método Confessional; (3) o Método Transversal, (4) o Método Diacrônico e (5) o Novo Método da Teologia Bíblica. Os cinco principais métodos de Hasel sobrepõem-se uns aos outros e não se distinguem com nitidez. Em sua edição revisada de 1982, Hasel ampliou para nove o número de principais métodos em voga. Em 1991, Hasel publicou sua quarta edição de Old Testament Theology: Basic Issues in the Current Debate, expandindo seu tratamento 14 páginas desde a terceira edição. Ele acrescentou um novo método, "Recent Criticai Old Testament Theology Methods",19elevando o número de métodos a dez. Os dez métodos de Hasel, junto com representantes de cada um são: ( 1 ) 0 Método Dogmático-Didático é o método tradicional de organizar a teologia do Antigo Testamento com categorias sistemáticas: teologia, antropologia e soteriologia. Old Testament Theology de Ludwig Köhler é um bom exemplo do uso desse método. 18 Old Testament Theology: Basic Issues, 35 (no Brasil, Teologia do AT, pela JUERP). 19 P. 94. A NATUREZA E O MÉTODO DA TEOLOGIA DO ANTIGO TESTAMENTO 73 (2) O Método Genético-Progressivo apresenta o desenrolar da revelação de Deus conforme a Bíblia o apresenta. As obras de Geerhardus Vos’ e Chester K. Lehman empregam esse método. (3) O Método Transversal é uma tentativa de combinar as abordagens temática e diacrônica. Walther Eichrodt foi o principal exemplo dessa abordagem. Ele tomou a idéia da aliança e tratou suas ocorrências em todo o Antigo Testamento enquanto falava acerca do Deus da aliança, do povo da aliança e das instituições da aliança. (4) O Método Tópico emprega tópicos extraídos apenas do Antigo Testamento para organizar uma discussão de sua teologia. Old Testament Theology de John McKenzie é o melhor exemplo desse método. (5) O Método Diacrônico depende do método histórico-tradicionário de interpretação desenvolvido na década de 1930 por von Rad e seus companheiros. Trata-se de uma narração do querigma, "os atos salvíficos de Deus", conforme dispostos nas confissões de Israel. Ele penetra nas sucessivas camadas de tradições recitadas e reconstitui o crescimento da fé israelita de período em período. Von Rad foi o único autor de uma teologia diacrônica do Antigo Testamento totalmente desenvolvida. (6) O Método da Formação da Tradição é representado na obra de Hartmut Gese. Este insistia que só há uma teologia bíblica realizada por meio da formação da tradição do Antigo Testamento, a qual se encerra no Novo Testamento.20 (7) O Método Temático-Dialético é representado por três proeminentes estudiosos do Antigo Testamento: Samuel Terrien, Claus Westermann e Paul Hanson. Esses três estudiosos têm apresentado uma dialética predominante da " é tic a /e s té tic a " (T e rrie n ), "liv ra m en to /b ên ção " (W esterm an n ) e "teleológica/cósmica" (Hanson). Esse método tem sido útil ao permitir que o leitor veja como ênfases opostas podem relacionar-se para expandir o entendimento de um problema maior. (8) Métodos "Críticos" Recentes de Teologia do Antigo Testamento. Essa é a mais nova categoria de Hasel. Esse método é o de estudiosos como James Barr e John J. Collins, que não escreveram uma teologia do Antigo Testamento e têm sérias dúvidas quanto ao futuro da disciplina. (9) O Método da Nova Teologia Bíblica. Esse método lida com o problema da relação entre o Antigo e o Novo Testamento. Brevard Childs crê que é possível fazer uma teologia do Antigo Testamento e uma teologia do Novo Testamento separadamente, juntando-as depois. Ele fez uma teologia do Antigo Testamento e 20 "Tradition and Biblical Theology", em Knight, Tradition and Theology, 322. 74 T f.o i .o c ia do A n t ig o T e s t a m e n t o uma teologia bíblica separada. Childs insiste que só a forma final do texto bíblico no cânon que temos agora é Escritura e autorizada.21 (10) Teologia Canônica Múltipla do Antigo Testamento é um resumo concepção de teologia do Antigo Testamento adotada por Hasel. Primeiro, ele entende que a teologia do Antigo Testamento deve estar ligada à forma canônica final do Antigo Testamento. Isso exclui as abordagens da história da religião e da história das tradições. Segundo, uma teologia do Antigo Testamento deve ser temática, em vez de lidar com um conceito central ou chave. Terceiro, a estrutura deve ser múltipla, o que evita as armadilhas dos métodos transversal, genético e tópico. Quarto, o objetivo final de uma teologia do Antigo Testamento é penetrar nas várias teologias de cada livro e grupos de escritos chegando à unidade dinâmica que liga todas as teologias e temas. Por fim, de acordo com Hasel, a teologia cristã entende que a teologia do Antigo Testamento faz parte de um todo maior. A teologia do Antigo Testamento não é igual à teologia do Israel antigo e implica o todo maior da Bíblia inteira, formada pelos dois Testamentos. Essas propostas de uma teologia canônica do Antigo Testamento procuram considerar com seriedade a rica variedade teológica dos textos do Antigo Testamento em sua forma final, sem forçar os testemunhos multiformes numa única estrutura, um ponto de vista não linear ou mesmo uma abordagem composta de natureza limitada. Ela permite plena sensibilidade tanto para as semelhanças como para as mudanças, bem como para o antigo e o novo, sem a mínima distorção dos textos.22 Por que tantos teólogos do Antigo Testamento usaram tal variedade de métodos para apresentar a teologia do Antigo Testamento? Porque no próprio Antigo Testamento não se insinua nenhum método inerente ou "natural" e porque cada teólogo do Antigo Testamento aborda a tarefa de uma perspectiva diferente, além de poder ter alvos distintos. B. Chaves metodológicas no Antigo Testamento Será que o Antigo Testamento possui alguma explicação de como fazer teologia do Antigo Testamento? Claus Westarmann respondeu sim, dizendo: Se desejarmos descrever o que o Antigo Testamento como um todo diz acerca de Deus, precisamos começar examinando como se apresenta o 21 Veja um bom Fesumo da abordagem de Childs em Hasel (1991), 103-111. 22 Old Testament Theology: Basic Issues, 4. ed., 114. A NATUIfEZA E O MÉTODO DA TEOLOGIA DO ANTIGO TESTAMENTO 75 Antigo Testamento [...] “O Antigo Testamento conta uma história” (G. von Rad). Com essa declaração chegamos à nossa primeira decisão acerca da forma de uma teologia do Antigo Testamento: se o Antigo Testamento relata o que tem a dizer em forma de uma história (compreendida aqui no sentido mais amplo de evento), então a estrutura de uma teologia do Antigo Testamento deve ser baseada mais em eventos que em conceitos.21 Contar uma história é mesmo o único meio que o Antigo Testamento tem para apresentar sua mensagem? O Antigo Testamento é só um relato da história de Israel? Nada disso é verdade; ainda assim, a forma narrativa da maior parte do Antigo Testamento nos dá uma pista da natureza e da forma da teologia do Antigo Testamento. Os hebreus sabiam como era Deus por meio das coisas que ele havia feito. Walter Kaiser alegou ter encontrado o modo "bíblico" de fazer teologia do Antigo Testamento, embora tal modo deva excluir todos os "resultados garantidos" da crítica da fonte. Essa crítica apagou os vinculadores textuais de cada avanço em "palavra, evento e tempo" de um tema central unificador (a Promessa) que corre por boa parte do Antigo Testamento. Kaiser ainda asseverou que, ao ouvir o cânon como testemunha canônica de si mesmo, descobre-se que cada evento ou significado antecedente foi transmitido de uma figura-chave, geração, país ou crise para outro por vinculadores apagados ou atribuídos pela crítica a "redatores piedosos ou mal-orientados". Ele concluiu dizendo que "a teologia bíblica sempre permanecerá uma espécie em extinção até que os modos brutos da crítica das fontes imaginária, da história da tradição e de certos tipos de crítica da forma tenham sido detidos".24 A maior parte dos teólogos do Antigo Testamento não se convenceu pelas alegações de Kaiser. Eles não se dispõem a abandonar o uso da fonte, da forma, da história da tradição ou da crítica canônica ao fazer teologia do Antigo Testamento. Entretanto, as alegações de Kaiser ainda não foram refutadas. Existiriam no Antigo Testamento outras explicações de como fazer teologia do Antigo Testamento? Algumas chaves podem ser encontradas em certos "credos" ou "confissões de fé contidos no Antigo Testamento. Alguns desses credos são históricos e, outros, não históricos. A forma do cânon (Torá, Profetas e Escritos) também pode proporcionar uma chave do método da teologia do Antigo Testamento. Gerhard von Rad foi o primeiro estudioso do Antigo Testamento a chamar a atenção para os credos históricos no Antigo Testamento. Em The Problem o f the 23 Elements o f Old Testament Theology, 9 (no Brasil, Teologia do AT, pela Paulinas). 24 Toward an Old Testament Theology, 9 (no Brasil, Teologia do Antigo Testamento, pela Vida Nova). 76 T e o l o g ia do A n t ig o T e s t a m e n t o Hexateuch and Other Essays25e em Old Testament Theology, I,26 von Rad alegou que o Hexateuco tem como centro uma confissão primitiva de fé israelita, encontrada em Deuteronômio 26.5-9: Arameu prestes a perecer foi meu pai, e desceu para o Egito, e ali viveu como estrangeiro com pouca gente; e ali veio a ser naç3o grande, forte e numerosa. Mas os egípcios nos maltrataram, e afligiram, e nos impuseram dura servidão. Clamamos ao SENHOR, Deus de nossos pais; e o SENHOR ouviu a nossa voz e atentou para a nossa angústia, para o nosso trabalho e para a nossa opressão; e o S e n h o r nos tirou do Egito com poderosa mão, e com braço estendido, e com grande espanto, e com sinais, e com milagres; e nos trouxe a este lugar e nos deu esta terra, terra que m ana leite e mel. Essa confissão histórica tem como contexto a oferta do dízimo (Dt 26.1-4) e contém três elementos básicos: (1) o chamado dos patriarcas (26.56), (2) o êxodo do Egito (26.8) e (3) a dádiva da terra de Canaã (26.9). Von Rad alegou que esse credo histórico, que recita os grande atos redentores de Deus, foi mais tarde expandido para incluir a criação e a aliança de Deus com Davi. Diferentes formas desse credo histórico são encontradas em muitas partes do Antigo Testamento (Dt 6.20-24; Js 24.2-13; ISm 12.7-8; Ne 9.637; SI 77.12-20; 78; 105; 136). Esses credos que recitam os grandes atos redentores de Deus foram um dos principais meios que Israel tinha para confessar sua fé. Diferente do Novo Testamento e do movimento cristão primitivo, que expressavam a fé com substantivos que representavam idéias absolutas e abstratas tomados da língua grega, o Antigo Testamento expressava sua fé principalmente com verbos de ação como salvar, libertar, julgar e abençoar}1 G. Emest Wright disse: "Um evento é expresso por meio de um sujeito conjugando um verbo [...] Termos e conceitos universais não se declinam; não estão em movimento histórico; são definidos e relacionados uns aos outros como substantivos e adjetivos, principalmente pelos verbos de ligação ‘ser ou estar’".2* A linguagem do Antigo Testamento é centrada em verbos, não em substantivos: o Antigo Testamento não possui substantivos que designem revelação, eleição ou escatologia. Em muitas partes do Antigo Testamento, dá-se grande ênfase à transmissão da tradição dos grandes atos de salvação de Deus. Em cultos festivos, as crianças 25 1966. 24 1962. 27 Cf. Weslcrmann, Elements o f Old Testament Theology, 10. 2* The O ld Testament and Theology, 44-45. A NATUREZA E O MÉTODO DA TEOLOGIA DO ANTIGO TESTAMENTO 77 eram ensinadas a perguntar o significado dos rituais, e os pais respondiam recitando os grandes atos de Deus (Êx 13.14-16; Dt 6.20-24; Js 4.6-7, 21-24). Os salmos referem-se com frequência às narrativas, feitas durante a adoração, desses grandes atos redentores: A posteridade o servirá; falar-se-á do Senhor à geração vindoura. Hão de vir anunciar a justiça dele; ao povo que há de nascer, contarão que foi ele quem o fez. (SI 22.30-31) Percorrei a Siâo, rodeai-a toda, contai-lhe as torres; notai bem os seus baluartes, observai os seus palácios, para narrardes às gerações vindouras que este é Deus, o nosso Deus para todo o sempre; ele será nosso guia até à morte. (SI 48.12-14) não o encobriremos a seus filhos; contaremos à vindoura geração os louvores do S enhor , e o seu poder, e as maravilhas que fez. Ele estabeleceu um testemunho em Jacó, e instituiu uma lei em Israel, e ordenou a nossos pais que os transmitissem a seus filhos, a fim de que a nova geração os conhecesse, filhos que ainda hão de nascer se levantassem e por sua vez os referissem aos seus descendentes; para que pusessem em Deus a sua confiança e não se esquecessem dos feitos de Deus, mas lhe observassem os mandamentos; e que não fossem, como seus pais, geração obstinada e rebelde, 78 T e o l o g ia do A n t ig o T e s t a m e n t o geração de coração inconstante, e cujo espirito não foi fiel a Deus. (SI 78.4-8) Rendei graças ao SENHOR, invocai o seu nome, fazei conhecidos, entre os povos, os seus feitos. Cantai-lhe, cantai-lhe salmos; narrai todas as suas maravilhas. Gloriai-vos no seu santo nome; alegre-se o coração dos que buscam o SENHOR. Buscai o S enhor e o seu poder; buscai perpetuamente a sua presença. Lembrai-vos das maravilhas que fez, dos seus prodígios e dos juízos de seus lábios. (SI 105.1-5) Essa forma de recitar os atos de salvação de Deus tomou-se a base da pregação dos apóstolos. Eles acrescentaram à lista o último e apoteótico ato de salvação de Deus, a saber, a morte e ressurreição de Jesus (compare At 7.2-53; 13.16-41). Outra confissão ou credo notável, mas totalmente diferente, encontra-se em Êxodo 34.1-7 (tradução do autor): Javé, Javé, um Deus compassivo e bondoso, tardio em irar-se e grande em devoção e fidelidade, mantendo a devoção, perdoando a iniquidade e a transgressão e o pecado, mas de modo algum dispensando (o culpado), visitando a iniqüidade dos pais nos filhos e nos filhos dos filhos até a terceira e quarta (geração). Essa passagem, que chamamos não histórica, é citada ou refletida em muitas outras partes do Antigo Testamento (Nm 14.18; 2Cr 30.9; Ne 9.17, 31; SI 86.15; 103.8; 111.4; 112.4; Jr 30.1 lè; 32.18; Jl 2.13; Jn 4.2). G. Emest Wright disse: "O que mais se aproxima de uma apresentação abstrata da natureza de Deus por meio de seus ‘atributos’ na Bíblia é uma antiga confissão litúrgica encravada em Êxodo 34.6-7 [...] Essa confissão é uma das pouquíssimas na Bíblia que não é um recital de eventos".29 No Pentateuco, conforme se encontra agora, essa confissão faz parte de um relato de teofania em que o nome de Javé é proclamado ou revelado. Sem dúvida, a 29 God Who Acts, 85. A NATUREZA E O MÉTODO DA TEOLOGIA DO ANTIGO TESTAMENTO 79 referência à bondade de Deus (Êx 34.6) está relacionada com a promessa anterior: "... terei misericórdia de quem eu tiver misericórdia" (Êx 33.19). A referência a Deus visitando a iniqüidade dos pais em seus filhos (Êx 34.7) está com certeza ligada à ameaça de julgamento: "... no dia da minha visitação, vingarei, neles, o seu pecado" (Êx 32.42Í»). Essa passagem (Êx 34) destaca-se de seu contexto e da maioria das formulações teológicas do Antigo Testamento por sua natureza "proposicional". Ela não é querigmática, mas descritiva; não se ocupa dos atos de Deus, mas com seu caráter. Essa passagem mantém em tensão "o Deus que ama e o Deus que pune". Assim, temos alguma base bíblica para fazer teologia do Antigo Testamento pelo uso de declarações "proposicionais" modificadas acerca da natureza e do caráter de Deus. Esse credo não histórico conclui dizendo que "Deus visita a iniqüidade dos pais em seus descendentes por algumas gerações", declaração omitida em todas as citações dessa passagem ou referências posteriores a ela. Essa última parte da passagem destaca o fato inevitável de que é comum os filhos sofrerem pelas falhas dos pais, evidência de que o pecado não floresce sem retribuição. Qualquer que seja o significado dessa última parte da confissão, ela tem a intenção de prevenir que os que a recitavam supusessem que o amor de Deus significava que ele seria indiferente a erros. Entre outros "credos" ou partes de credos não históricos do Antigo Testamento estão o Shema (Dt 6.4), o primeiro mandamento e certas doxologias (Am 4.13; 5.8-9; 9.5-6; lCr 29.10; Zc 12.16). O judaísmo não conhece nenhuma tradição devocional mais importante que a leitura do Shema. O fiel recita a passagem ao acordar de manhã e antes de recolher-se à noite, reconhecendo assim a soberania de Deus sobre ele próprio e sobre o mundo. Não sabemos quando o Shema tomou-se parte da devoção diária individual dos judeus. A mishná Tamid (4.3—5.1) indica que quatro passagens do Antigo Testamento estavam incluídas na leitura: o Decálogo, o Shema, Deuteronômio 11.13-21 e Números 15.37-41. O papiro Nash, descoberto no Egito, data de c. 150 a.C. e contém o Decálogo e o Shema. É provável que esse papiro fizesse parte do conteúdo de um mezuzah de uma sinagoga ou lar judaico. O mezuzah era um recipiente de metal grudado à porta ou porão, contendo algumas passagens das Escrituras chamadas Shema. Pouco depois do início da era cristã, os judeus tiraram a leitura do Decálogo do credo, porque os "hereges" argumentavam que o Decálogo era a única parte da Torá que ainda encerrava autoridade. O Shema diz que Javé é um —ou seja, indiviso em sua natureza. Só ele é soberano sobre as pessoas e sobre o mundo. No contexto de Deuteronômio, Israel era um povo apóstata cuja atenção exclusiva a Javé fora turvada pela sedução de cultos estrangeiros e práticas idólatras. O Shema pode ser uma reformulação 80 T e o l o g ia do A n t ig o T e s t a m e n t o afirmativa do quinto mandamento, mas a fórmula possui "uma aura litúrgica, a impressão de ter sido moldada mediante longo emprego no culto".30 Reflexos do Shema encontram-se em 2Reis 23.25 e Zacarias 14.9. Ecos dele podem ser vistos em Deuteronômio 4.19; 10.12; 11.13; 13.3; 26.16; 30.2, 6, 10; Josué 22.5; 23.14; lRs 2.4; 8.48; 2Reis 23.3; 2Crônicas 15.12; Jeremias 32.41. As doxologias em Amós são muito parecidas em conteúdo e estrutura e podem servir como uma chave do método da teologia do Antigo Testamento. Porque é ele quem forma os montes, e cria o vento, e declara ao homem qual é o seu pensamento; e faz da manhã trevas e pisa os altos da terra; SENHOR, Deus dos Exércitos, é o seu nome. (Am 4.13) ... procurai o que faz o Sete-estrelo e o Órion, e tom a a densa treva em manhã, e muda o dia em noite; o que chama as águas do mar e as derrama sobre a terra; S enhor é o seu nome. É ele que faz vir súbita destruição sobre o forte e ruína contra a fortaleza. (Am 5.8-9) Porque o Senhor, o SENHOR dos Exércitos, é o que toca a terra, e ela se derrete, e todos os que habitam nela se enlutarão; ela subirá toda como o Nilo e abaixará como o rio do Egito. Deus é o que edifica as suas câmaras no céu e a sua abóbada fundou na terra; é o que chama as águas do mar e as derrama sobre a terra; 30 McBride, "The Yoke o f the Kingdom", 296-297. A NATUREZA E O MÉTODO DA TEOLOGIA DO ANTIGO TESTAMENTO 81 S enhor é o seu nome. (Am 9.5-6) Todas essas doxologias usam particípios predicativos e têm refrão como os de hinos: "Javé, Deus dos exércitos, em seu nome". Elas retratam a majestade e o poder de Javé. Ele é o Criador e o mantenedor da criação. Ele dá a chuva, controla 0 vento, a luz e as trevas; anda em lugares altos; comunica seu propósito ao povo e julga as obras humanas. Duas outras doxologias ou fragmentos de credo encontram-se em 1Crônicas 29.106-12 e Zacarias 12.16: Bendito és tu, SENHOR, Deus de Israel, nosso pai, de eternidade em eternidade. Teu, SENHOR, é o poder, a grandeza, a honra, a vitória e a majestade; porque teu é tudo quanto há nos céus e na terra; teu, SENHOR, é o reino, e tu te exaltaste por chefe sobre todos. Riquezas e glória vêm de ti, tu dominas sobre tudo, na tua mão há força e poder; contigo está o engrandecer e a tudo dar força (lC r 29.10-12). Essa passagem é a doxologia na oração de Davi perto do fim da vida, antes de se construir o templo. Cinco palavras hebraicas diferentes são usadas no versículo 11 para atribuir a Javé "glória" e "poder". Sua soberania e preeminência são reconhecidas por todos. A expressão "Fala o SENHOR, o que estendeu o céu, fundou a terra e formou o espírito do homem dentro dele" (Zc 12.1b) parece um fragmento de um hino ou "credo". Idéias semelhantes podem ser encontradas em Isaías 42.5; 44.24; 45.12; 51.13. Assim, vemos meio escondidas, com freqüência em lugares remotos, evidências de declarações teológicas de Israel. Elas fornecem muitas chaves teológicas, mas seriam muitas delas compreensíveis o suficiente para formar a estrutura para uma apresentação da teologia do Antigo Testamento? Muitos estudiosos têm tentado construir teologias do Antigo Testamento a partir dessas chaves. Walther Eichrodt escreveu uma teologia do Antigo Testamento usando a aliança como tema central. Von Rad encontrou sua chave nas repetições ou recitações dos grandes atos de Deus (Dt 26.5-9); Js 24; ISm 12.7-8). A chave de Zimmerli é o primeiro mandamento. A de Marten é "desígnio de Deus" em Êxodo 5.22—6.8. A de Terrien é a "presença de Deus" e a de Westermann, a forma do cânon (Torá, Profetas e Escritos; o Deus que salva, abençoa e cria; o julgamento e o amor de Deus; e a resposta do povo). A chave de H. H. Schmid é "fé criadora" e a de James Crenshaw, "sabedoria" ou "teodicéia". 82 T e o i -o c ia do A n t ig o T e s t a m e n t o John Goldingay afirmou que a busca da estrutura correta de uma teologia do Antigo Testamento "tem sido infrutífera (ou superfrutífera!)".31 Gondingay não pensava que a busca superfrutífera fosse ruim. Na realidade, apresentam-se muitos pontos de partida para ajudar-nos a compreender a teologia do Antigo Testamento. "Nenhuma solução única do problema de estruturação de uma teologia do Antigo Testamento iluminará o todo; uma multiplicidade de abordagens levará a uma multiplicidade de percepções".32 Qualquer pessoa que tente escrever uma teologia do Antigo Testamento deve com certeza estar familiarizada com todos os vários modelos produzidos em anos recentes.33 Em vez de usar um dos dez métodos de Hasel (veja a lista citada anteriormente), é provável que seja melhor considerar um ou mais dos seguintes seis modelos principais: o modelo sistemático; o modelo do tema central; o modelo recital, diacrônico ou da Heilsgeschichte\ o modelo da palavra-chave; o modelo da história da tradição e o modelo canônico. Talvez alguma combinação de todos esses modelos seja necessária para lidar com todo o material teológico no Antigo Testamento. 1. A teologia do Antigo Testamento começou pelo uso do model sistemático da teologia ortodoxa. Theologie des Alten Testaments de G. L. Bauer34 adotava a estrutura tríplice de teologia, antropologia e cristologia. A. B. Davidson e Otto Baab seguiram o modelo sistemático. Old Testament Theology de Edmond Jacob35 usava um método sistemático modificado. Dentan defendeu um modelo sistemático: O fato é que qualquer modelo de organização que possamos adotar será imposto de fora [...] Por conseguinte, somos forçados a buscar algum método que (1) seja simples e (2) apresente o material de forma significativa para nós. Por isso parece difícil pensar num esboço melhor que o usado na teologia sistemática, uma vez que surgiu de uma tentativa de responder às questões básicas da vida humana: Qual a natureza de Deus [...]? (teologia); Qual a natureza do homem [...]? (antropologia); Qual a natureza do processo dinâmico pelo qual a fraqueza do homem é reconciliada com a perfeição de Deus? (soteriologia).56 Dentan acrescentou que esse esboço simples e óbvio não distorce de modo algum o material ao qual é imposto e tem a óbvia vantagem de deixar clara a 31 Approaches to O ld Testament Interpretation, 27. 32 Ibid., 29. 33 Veja G. Hasel, Old Testament Theology: Basic Issues, 4. ed., 29-114. 34 1796. 35 1955. 36 Preface to Old Testament Theology, 119-120. A NATUREZA E O MÉTODO DA TEOLOGIA DO ANTIGO TESTAMENTO 83 importância da religião do Antigo Testamento para o pensamento contemporâneo. As perguntas que tenta responder nem sempre são feitas por um professor em sala de aula, mas por todas as pessoas em sua situação existencial. Precisamos modificar o argumento de Dentan, admitindo que a imposição de qualquer sistema sobre os dados do Antigo Testamento acarreta o risco de alterar o significado dos textos originais simplesmente pela alteração do contexto deles. Ao explicar, articular e definir conceitos veterotestamentários, o teólogo do Antigo Testamento pode não estar meramente descrevendo a fé do Antigo Testamento, mas criando novos conceitos de Deus e do mundo, pela interação do que diz o Antigo Testamento e o que o teólogo nele introduz. Um leigo corre o risco de "subestimar" temas distintos do Antigo Testamento como a lei, Israel, a terra e o culto. Entretanto, um modelo sistemático modificado ainda pode ser o melhor para fazer teologia do Antigo Testamento. 2. O método do tema central, tal como o uso que Eichrodt faz da aliança, tenta destacar o tema central do Antigo Testamento; mas não é suficientemente abrangente para cobrir todos os dados do Antigo Testamento. A literatura de sabedoria não faz uso da idéia da aliança. 3. O modelo recital, diacrônico ou da história da salvação possui mérito por sua chave vir diretamente dos "credos" do Antigo Testamento e por traçar a história da teologia de Israel de período a período. Suas fraquezas são que consiste principalmente no relato da história da salvação de Israel e que seu sistema não comporta a literatura de sabedoria. 4. O modelo da "palavra-chave" sustentado por livros teológicos que estudam palavras, sofre do problema de falta de ligação entre uma palavra chave e outra e com o contexto original. Muito se pode colher sobre um conceito teológico pelo estudo da etimologia e do uso de uma palavra hebraica ou grega, mas o método da "palavra-chave" é inadequado para apresentar a teologia do Antigo Testamento. James Barr observou que as expectativas de um dicionário teológico alcançaram o máximo de reputação no auge do Theological Word Book o f the New Testament de Kittel, mas as expectativas foram-se para sempre. Por quê? Porque o método não proporciona um alinhamento direto ou necessário entre os padrões do vocabulário bíblico e a estrutura da teologia bíblica.37 5. O modelo da história da tradição é um desdobramento do método da "história da salvação" de von Rad, mas dá muito mais ênfase ao período da transmissão oral dos textos e ao suposto Sitz im Leben em que circularam as tradições. Harmut Gese disse: 37 Veja uma crftica ao Theological Word Book o f the New Testament de Kittel em James Barr, The Semantics o f Biblical Language, 206-262. 84 T f.o i .o c ia do A n t ig o T e s t a m e n t o A história da tradição no sentido mais estreito descreve a tradição préliterária, oral do texto ou do seu conteúdo; num sentido mais amplo, a história da tradição descreve as pressuposições formais e substanciais extraídas da tradição. Assim verificada, essa formação do texto é de importância decisiva [...] O motivo dessa grande importância é que os textos bíblicos brotam de processos de vida e existem em contextos de vida.n A força básica da abordagem da história das tradições é que Israel reinterpretou e reaplicou sua tradição para atender às necessidades de cada geração sucessiva e sua situação. Não pode haver dúvidas de que se supunha que a aliança fosse renovada periodicamente (Dt 31.10-13). Há alguns indícios de que cada geração de israelitas pensava em si como se estivesse no Egito, junto ao mar Vermelho e junto ao Sinai (Êx 13.8; Dt 5.3; 26.5-9). Além disso, o método da história da tradição é muito subjetivo, uma vez que nem o Antigo Testamento explica quando e como reinterpreta suas tradições. As pressuposições dos estudiosos que utilizam esse método com freqüência determinam suas conclusões. Elas baseiam-se mais em reconstruções teóricas que no texto bíblico. A teologia do Antigo Testamento encontra a autoridade que a fundamente na literatura, não na tradição. 6. O método canônico apareceu em anos recentes, com o intere renovado no cânon como guia para a teologia do Antigo Testamento e/ou para a teologia bíblica. A idéia de um cânon dá sustento ao caráter autorizado dos dados bíblicos e pode ser um guia objetivo quanto à metodologia. B. S. Childs alegou que uma nova teologia bíblica devia ser escrita com o emprego de ambos, Antigo e Novo Testamentos. A chave para o uso dos dados do Antigo Testamento seria como e quando o Novo Testamento os usa.39 Por outro lado, John Bright disse que a autoridade do Antigo Testamento ou da Bíblia não reside numa lista mecanicamente determinada de livros chamada cânon, mas na estrutura de sua teologia. "Ao estabelecer o cânon, a igreja não criou uma nova autoridade; antes, reconheceu e ratificou uma que já existia".40 Claus Westermann toma a estrutura tríplice do cânon do Antigo Testamento (Lei, Profetas e Escritos) como chave para sua apresentação da teologia do Antigo Testamento. Westermann disse: "A estrutura do Antigo Testamento em suas três partes indica que a narrativa no Antigo Testamento é determinada pela palavra de Deus que nela ocorre e pela resposta daqueles para 31 T radition and Biblical Theology* em Knight, Tradition and Theology, 308. 39 Biblical Theology in Crisis, 97-122. 40 The Authority o f the Old Testament, 38, 156-160. A NATUREZA C O MÉTODO DA TEOLOCIA DO APíTIGO TtSTAM tNTO 85 quem e com quem se desenvolve essa história".41 Hartmut Gese também liga a forma da teologia bíblica à forma do cânon. Mas uma vez que não acredita que o cânon do Antigo Testamento tenha sido fechado em tempos pré-cristãos, não vê dois cânones (do Antigo e do Novo), mas um, que abrange toda a Bíblia.42 Para Gese não há teologia do Antigo Testamento ou teologia do Novo Testamento — só teologia bíblica. Tal argumento desconsidera as diferenças entre a fé do Antigo Testamento e a do Novo Testamento. O entendimento de Deus ou o entendimento da identidade do povo de Deus são essencialmente iguais nos dois Testamentos. Mas o Antigo Testamento é um livro pré-cristão e, em certo sentido, deve ser estudado "como se o Novo Testamento não existisse".43 O Antigo Testamento é também um livro cristão porque os cristãos o receberam de Jesus. Era a única Bíblia que a igreja primitiva possuía. Todo o Antigo Testamento hebraico é canônico e autorizado. A questão na era cristã primitiva não parece ter sido "O Antigo Testamento é cristão?", mas: "O Novo Testamento é bíblico?".44 Deve a teologia do Antigo Testamento ser uma disciplina distinta, à parte da teologia do Novo? Se o objetivo ou tarefa da teologia do Antigo é histórico e descritivo, a resposta é sim. Se a tarefa é considerada normativa, a resposta provável é não. Ainda que o Antigo Testamento seja parte importante da Bíblia cristã e prenuncie algo que está além dele, não deve ser lido como se contivesse o conhecimento completo de Deus. H. H. Rowley disse: Num sentido real, eles (o Antigo Testamento e o Novo) pertencem um ao outro e formam um todo único; o Antigo Testamento não deve ser lido como um livro cristão. Ele é parte essencial da Bíblia cristã, mas não uma parte em que se deva encontrar o significado do todo. Um médico pode tom ar uma amostra de nosso sangue e examiná-lo, extraindo conclusões sadias acerca do sangue que ficou em nossas veias; mas a Bíblia não deve ser tratada desse modo. Essa unidade é de ordem totalmente distinta. Há unidade na vida de um indivíduo; ainda assim, mesmo com o estudo mais cuidadoso a respeito de uma criança é impossível saber a trajetória futura de sua vida. A unidade da Bíblia é desse último tipo. É a unidade do crescimento, não uma unidade estática, e cada estágio do crescimento deve ser considerado em relação ao todo, bem como em sua singularidade.45 41 Elements o f Old Testament Theology, 10. 42 Essays on Biblical Theology, 10. 43 Goldingay, Approaches to Old Testament Interpretation, 19. 44 Ibid., 34. 45 The Faith o f Israel, 14. 86 T e o l o g ia do A n t ig o T e s t a m e n t o John Bright concorda com a idéia de Rowley. "Toda a perspectiva do Antigo Testamento é do tipo a.C. Cada palavra foi falada antes de Cristo, por homens e para homens que viviam antes de Cristo e foram apanhados numa história que se movia rumo a um destino cuja natureza não era clara na ocasião".46 Como, portanto, devemos apresentar a teologia do Antigo Testamento? Primeiro, devemos reconhecer nossas pressuposições. Usamos o termo teologia do Antigo Testamento deliberadamente. Com o termo Antigo Testamento confessamos que essa parte da Bíblia é parte importante do registro inspirado da revelação de Deus, que culmina na sua revelação plena e definitiva em Jesus Cristo. Pelo uso do termo teologia entendemos que o conteúdo do Antigo Testamento é tanto humano como divino. Segundo, devemos estar conscientes das dificuldades ao desenvolver uma teologia do Antigo Testamento. De fato, alguns estudiosos têm alegado que se trata de uma tarefa impossível. F. F. Bruce chamou a atenção para o artigo de P. Wemberg-Moller no Hibbert Journal, intitulado: "Is There an Old Testament Theology?", em que se levanta uma questão real quanto à legitimidade dessa tarefa.47 A tarefa de fazer teologia do Antigo Testamento é repleta de todos os tipos de dificuldades: textuais, históricas, literárias, hermenêuticas e teológicas. Mas ela é necessária e pode ser gratificante. Uma teologia do Antigo Testamento deve ser bíblica em conteúdo e em forma o quanto possível. Deve-se limitar basicamente aos dados do Antigo Testamento. Deve incluir todo o Antigo Testamento em seu escopo, mas concentrar-se nos aspectos repetitivos, penetrantes e normativos da fé israelita.48 Deve empregar todos os instrumentos hermenêuticos modernos disponíveis aos estudantes do Antigo Testamento: críticas textual, literária, da forma, da história da tradição e canônica. As descobertas da arqueologia podem com freqüência ser úteis na reconstrução da vida e da religião de Israel e de seus vizinhos. Deve-se fornecer algum tipo de "grade" ou estrutura para apresentar o material teológico do Antigo Testamento de maneira ordenada. Cabe o alerta contra uma sistematização racional desse material, mas isso não pode nos impedir de pensar em Deus de modo sistemático. Eichrodt e Barth foram grandes sistematizadores. Um tema central não é suficientemente amplo para incluir toda a variedade e diversidade teológica do Antigo Testamento. Para desenvolver uma teologia abrangente do Antigo Testamento, é preciso considerar o que os vários livros e fontes do Antigo têm em comum, mas também o 46 The Authority o f the Old Testament, 206. 47 Bruce, New Testament Development, 11. 48 Bright, Authority o f the Old Testament, 115. A NATUREZA E O MÉTODO DA TEOLOGIA DO ANTIGO TESTAMENTO 87 que significam em conjunto. John Goldingay disse: "Ao estudar a teologia do Antigo Testamento, estamos interessados não só nas crenças de fato expressas individualmente por escritores do Antigo Testamento [...] nem só nas pressuposições por trás dessas crenças, nem só na fé do Antigo Testamento como ‘uma entidade apresentada já pronta no início e que na história apenas se desenrola’, mas na perspectiva total".49 Para Goldingay, a tarefa de fazer teologia do Antigo Testamento é construtiva. O Antigo Testamento fornece os blocos de construção reunidos pelos judeus, que os organizaram num cânon. De acordo com Goldingay, o que deve ser desenvolvido não é necessariamente a visão que eles tinham da construção. O prédio deve ser adequado ao próprio material, embora este possa ter sido extraído de pedreiras diferentes e tenha formas diversas. Os blocos não devem ser reduzidos ao mesmo tamanho e forma, mas cada um deve ser usado para potencializar sua distinção. Por si, cada bloco pode não parecer utilizável. Mas, juntos, como um todo, podem apresentar uma teologia que não corresponde à idéia de nenhum escritor em particular, mas que faz jus ao que cada um deles conhecia. Essa tarefa é assoberbante e quase impossível, mas deve-se tentar cumprila, para que se compreenda toda a realidade expressa em seus vários aspectos de formas não sistemáticas no Antigo Testamento.50 Este livro não faz nenhuma tentativa de apresentar um tratamento abrangente de toda a teologia do Antigo Testamento. O que se segue é um modelo de como fazer teologia do Antigo e uma discussão de alguns temas importantes que devem ser incluídos. Tentar-se-á mostrar que um modelo sistemático modificado é ainda o melhor para fazer teologia do Antigo Testamento. Fornecerá aos alunos uma base de metodologia, reflexão e conteúdo que podem usar para construir sua própria teologia do Antigo Testamento. Antes de começar, o aluno precisa parar neste ponto para refletir sobre as seis opções metodológicas apresentadas neste capítulo. Deve-se adotar um pouco de cada uma delas ou só de algumas? Que deve ser rejeitado? Que forma cada uma daria para um teologia plenamente desenvolvida? As chaves fornecidas pela própria Bíblia dão informações suficientes para dar forma a uma teologia do Antigo Testamento? 49 Theological Diversity and the Authority o jth e Old Testament, 183. 50 Veja Goldingay, Theological Diversity and the Authority o f the Old Testament, 184. 3 O conhecimento de Deus 10. A teologia do Antigo Testamento começa com a revelação Por onde começamos o estudo da teologia do Antigo Testamento? Começaríamos por onde começa a Bíblia —com Deus como Criador— ou com o chamado de Abraão e o início da "história da salvação" (Dt 26.5-15)? Poderíamos começar com uma reflexão sistematizada sobre o material teológico veterotestamentário sobre Deus ou sobre a humanidade. Teólogos sistemáticos com freqüência iniciam pela "revelação". Talvez nem seja correto falar da "visão" israelita de revelação porque os israelitas nem possuem uma palavra que designe revelação, muito menos um tratamento sistemático do assunto. Ao selecionar a revelação como o ponto de partida necessário para a teologia, seguimos uma ênfase moderna. Como James Barr disse, uma afirmação da revelação é absolutamente necessária para a fé cristã; de outro modo, "teríamos uma série de idéias que elaboramos por nós mesmos".1 Karl Barth, Emil Brunner, 1 O U and New in Interpretation, 83. 90 T e o l o g ia do A n t ig o T e s t a m e n t o Paul Tillich, D. M. Baillie, Wheeler Robinson, Rudolph Bultmann e Wolfhart Pannenberg destacam, todos, a revelação.2 Por que hoje damos tanta ênfase à revelação, se nossa fonte de revelação não parece fazê-lo? James Barr disse que na teologia moderna a idéia de revelação atua contra dois problemas específicos que não existiam ou não eram importantes no mundo antigo. O primeiro problema é a negação de que Deus existe ou de que haja algum conhecimento verdadeiro a seu respeito. O segundo é fazer separação entre o conhecimento que Deus dá de si mesmo e os métodos e o conteúdo das ciências humanas independentes da revelação. "Na Bíblia, à parte de algumas concessões bem limitadas, não existe algum estágio em que Deus é desconhecido [...] Os problemas em relação às coisas sobre as quais a revelação atua parecem não existir na Bíblia ou não ser centrais nela. Em Israel Deus é conhecido."3 Nem todos os teólogos modernos começam na revelação. James Crenshaw não começaria um estudo da teologia do Antigo Testamento com a revelação. Ele crê que se deve começar com a humanidade. Crenshaw eleva a antropologia ou sociologia a uma posição no mínimo equivalente à da teologia na compreensão do Antigo Testamento.4 Ele sustenta que a questão do sentido é mais básica que a de Deus. O ponto de partida bíblico não foi Deus, mas a pessoa. A questão de Deus é secundária na autocompreensão, de acordo com Crenshaw. "Isso dá a entender que a teologia do Antigo Testamento deve começar com o homem, em lugar de Deus, como é comum nas obras que adotam o princípio sistemático."5 Pensa-se que talvez o estudo intenso da literatura de sabedoria tenha levado Crenshaw a essa conclusão. Dois outros autores contemporâneos que iniciam com o homem, em lugar de Deus, em seu estudo do Antigo Testamento são Norman Gottwald6 e Peter L. Berger.7 Gottwald começou com uma abordagem sociológica e explicou a ideologia religiosa do Antigo Testamento como um mutante cultural-materialista. Não há lugar para o tema da revelação na obra de Gottwald. O termo não ocorre no índice de seu livro. Brevard Childs disse que "a posição de Gottwald resulta num grande reducionismo teológico".8 A devoção de Gottwald à metodologia sociológica o conduz para longe da revelação. ! Observe que em outros aspectos a posição teológica deles é bem diferente. A ênfase na revelação nSo leva a uma unidade ou consenso teológico. 1 Op. cit., 89. 4 Studies irt Ancient Israelite Wisdom, 291. ! Ibid., 291. 6 The Tribes o f Yahweh (no Brasil, As Tribos deJaweh, pela Paulinas). 7 A Rumor o f Angels. * O ld Testament Theology, 25. O C o n h e c im e n t o de Deus 91 Peter Berger em A Rumor o f Angels procurou um modo de começar com o ser humano ao fazer teologia, sem glorificar a humanidade como faz a "teologia" secular. Berger viu "sinais de transcendência" em alguns comportamento humanos. Algumas atitudes das pessoas pressupõem uma ordem no universo. Uma maldição ou tragédia de dimensões sobrenaturais pode ser causada por comportamento excessivamente afrontoso. Mesmo os ateus podem às vezes sentir-se gratos pela vida e pelo mundo, embora possam dizer que não têm ninguém a quem agradecer tais bênçãos. A questão é que pressupõem uma crença na transcendência.9 G. Emest Wright assumiu uma postura firme a favor de um estudo da teologia do Antigo Testamento que comece com Deus, não com o homem. Ele disse: Uma vez que tanto judeus como cristãos entendem que pela fé se crê na Bíblia como revelação daquele que de outra maneira no mundo seria o Deus desconhecido, não me habilito a iniciar a discussão com a questão existencial: “Que significa para mim o Antigo Testamento? Qual a possibilidade básica que ele apresenta para uma nova existência agora?” Sou antes convocado a transcender a mim mesmo e a minha existência, o quanto puder, para lutar pela compreensão de uma nova realidade externa a mim mesmo. Não cabe a mim dar ordens; antes, é ele mesmo, separado de mim e de minha comunidade no que diz respeito a seu ambiente e época originais.10 Gerhard von Rad disse que não se tropeça na transcendência. O entendimento humano de Deus ou do homem não começa do eu para depois perguntar, desse ponto de partida, sobre o contato com Deus. Começa com Deus e afirma que uma pessoa só pode ser completamente compreendida se começar por Deus. Todos os outros meios de compreender o homem só podem levar a distorções ou reduções. A humanidade encontra sua origem no coração de Deus. Na criação Deus extraiu de um mundo divino superior o modelo para o homem, algo que não fez para as outras obras da criação. "O homem é, desse modo, uma criatura que só pode ser compreendida a partir de cima e que, tendo cortado seu relacionamento com Deus, só pode reconquistar e manter sua humanidade dando ouvidos à palavra divina"." Hans W. Wolff perguntou como no Antigo Testamento a pessoa é iniciada no conhecimento de si própria. Uma doutrina confiável do homem é um imperativo 9 Veja em John Goldingay, Theological Diversity, 211, uma critica à concepção de Berger. 10 Reflections, 380. 11 G odat Work in Israel, 91-92. 92 T e o l o g ia do A n t ig o T e s t a m e n t o na teologia do Antigo Testamento; entretanto, o autoconhecimento humano não começa com pessoas terrenas, mas com o Deus Criador. WolfT disse: "Assim como é impossível ao homem confrontar a si mesmo e ver-se por todos os lados [...] por certo o homem necessita fundamentalmente encontrar-se com outro que o investigue e o explique. Mas onde está o outro a quem o ser humano pode fazer a pergunta: "Quem sou eu?" A resposta de WolfT era que o Outro já se mostrou pelo seu laço com o homem em palavras e em atos registrados no Antigo Testamento.12 Deve-se começar o estudo de teologia do Antigo Testamento com Deus e não com o homem. Mas como fazer isso? B. S. Childs levantou essa questão no início de seu Old Testament Theology.n Para ele, o contexto canônico faz diferença. Falar do Antigo Testamento como cânon é dizer que é Escritura e autoridade. O Antigo Testamento testifica que Deus revelou-se a Abraão, e nós confessamos que Deus irrompeu em nossa vida. ''Não chego ao Antigo Testamento para ser informado sobre algum fenômeno religioso estranho, mas, em fé, empenho-me por obter conhecimento enquanto procuro compreender a nós mesmos pela luz do autodesvendamento de Deus. No contexto das Escrituras da igreja, procuro ser conduzido para nosso Deus que se fez conhecido, se faz conhecido e se fará conhecido.'"4 Childs também disse que o termo revelação é só "uma fórmula abreviada que indica todo o empreendimento da reflexão teológica acerca da realidade de Deus".15 Pode-se negar um ponto de partida absoluto para fazer teologia do Antigo Testamento. John Goldingay disse: "Muitos pontos de partidas, estruturas e pontos centrais podem iluminar o cenário do Antigo Testamento; uma multiplicidade de abordagens levará a uma multiplicidade de percepções".16 Ainda assim, vamos começar com a revelação porque não descobrimos a Deus; Deus nos encontra. De fato, Deus sabe tudo a nosso respeito (SI 139.1-18). 11. A existência de Deus é pressuposta no Antigo Testamento i O Israel antigo não defendia a existência de Deus nem tentava prová-la; o povo simplesmente aceitava que Deus existe e se revela aos homens. Deus é pressuposto no Antigo Testamento. A. B. Davidson afirmou que jamais ocorreu a 12 Anthropology o f the Old Testament, 1-2. 11 P. 28. 14 Childs, Old Testament Theology, 28. 15 Ibid., 25-26. 16 Theological Diversity and Authority, 115. O C o n h e c im e n t o de Deus 93 qualquer profeta ou escritor do Antigo Testamento provar a existência de Deus. “Fazer isso poderia perfeitamente ser considerado absurdo.”17 Edmond Jacob disse que a afirmação da soberania de Deus dá ao Antigo Testamento vigor e unidade. Deus é a base de todas as coisas, e tudo o que existe só existe por sua vontade. Além disso, a existência de Deus jamais é questionada. O conhecimento de Deus, no sentido de realidade divina, deve ser encontrado em todas as partes. O mundo inteiro conhece a Deus. A natureza foi criada para proclamar seu poder (SI 148.9-13). Mesmo o pecado proclama a existência de Deus por contraste. "O fato de Deus é tão normal que não temos no Antigo Testamento indícios de especulação sobre a origem ou evolução de Deus. Enquanto religiões circunvizinhas apresentam uma teogonia como o primeiro passo na organização do caos, o Deus do Antigo Testamento está presente desde o início".18 G. Emest Wright observou: "... a proposição que é a grande dádiva de Israel para a humanidade é simplesmente esta: Deus é. Sua existência para o escritor israelita é completamente manifesta, sempre pressuposta e jamais questionada".19A doutrina bíblica repousa na crença de que "o Deus oculto à nossa vista revela-se ao homem".20 O agnosticismo no sentido moderno não tem lugar no pensamento hebraico. R. E. Clements crê que a "idéia de Deus permanece como pressuposição indispensável" em todos os escritos do Antigo Testamento. As idéias de criação, ordem natural, ordem social, tempo e âmbito espacial estão todas estabelecidas na relação com uma crença em Deus. A noção de uma sociedade "secular" simplesmente não existia. A cosmologia do antigo Israel era fundamentalmente religiosa em caráter, de modo que as instituições fundamentais da sociedade — reino, lei, cultura e educação — estavam todas baseadas em pressuposições religiosas.21 12. Conhecer a Deus é mais do que conhecimento intelectual O Antigo Testamento não só pressupõe que Deus pode ser conhecido; também afirma claramente que ele se faz conhecido: 17 Old Testament Theology, 30. '* Jacob, Theology o f the Old Testament, 37-38. ” The Challenge o f Israel's Faith, 55. 20 Rowley, The Faith o f Israel, 23. 11 R. E. Clements, 'Israel in its Historical and Cultural Setting", em The World o f Ancient Israel, 9. 94 T c o ia g i a do A n t ig o T e s t a m e n t o Manifestou os seus caminhos a Moisés e os seus feitos, aos filhos de Israel. (SI 103.7) Apareci a Abraão, a Isaque e a Jacó como Deus Todo-Poderoso; mas pelo meu nome, O SENHOR, não lhes fui conhecido. (Êx 6.3) Então, disse: Ouvi, agora, as minhas palavras; se entre vós há profeta, eu, o S enhor , em visão a ele, me faço conhecer ou falo com ele em sonhos. Não é assim com o meu servo Moisés, que é fiel em toda a minha casa. Boca a boca falo com ele, claramente e não por enigmas; pois ele vê a forma do SENHOR. (Nm 12.6-8) No dia em que escolhi a Israel, levantando a mão, jurei à descendência da casa de Jacó e me dei a conhecer a eles na terra do Egito. (Ez 20.5) A. O vocabulário da revelação Essas passagens usam as formas passiva ou reflexiva do verbo yãda‘, “conhecer”, iã'â, “ver”, e a forma intensiva do verbo dãbar, “falar”. Todos esses verbos são palavras cognitivas. O hebraico não possui um substantivo que signifique “revelação”; possui o verbo gãlâ, “revelar”. A raiz ocorre cerca de 180 vezes no Antigo Testamento. Ela contém dois conceitos básicos: “desvendar”, “revelar", e “ir para o exílio”, a menos que o pensamento fosse: “indo o povo para o exílio, a terra ficou sem cobertura”.22 A palavra gãlâè empregada predominantemente no Antigo Testamento no sentido comum de "ir embora", "ser aberto" (Jr 32.11, 14). Em alguns casos referese à revelação do próprio Javé. E usada em Gênesis 35.7 em referência à ocasião 22 Cf. Hans-JUrgen Zobel, galah em TDOT, 478. O C o n h e c im e n t o de Deus 95 em que Deus apareceu a Jacó em Betei, quando este fugia de Esaú. "E edificou ali um altar e ao lugar chamou El-Betel; porque ali Deus se lhe revelou [perf. nifal] quando fugia da presença de seu irmão". A forma participial nifal de gãlâ é usada em Deuteronômio 29.29 (heb. v. 28) em referência à Torá como "as [coisas] reveladas": "As coisas encobertas pertencem ao S e n h o r , nosso Deus, porém as reveladas nos pertencem, a nós e a nossos filhos, para sempre, para que cumpramos todas as palavras desta lei". Esse versículo indica que algumas coisas são revelas e eles eram responsáveis por executá-las, enquanto algumas eram secretas (não reveladas). Eles não tinham conhecimento delas. Eles não tinham responsabilidade por coisas não reveladas. Os versículos 21-27 de Deuteronômio 29 referem-se a uma época em que Israel quebraria a aliança, cultuando outros deuses, e isso os levaria ao exílio. Eles tinham sido alertados que isso ocorreria se não obedecessem às palavras reveladas da lei. Peter Craigie disse que seria pretensão supor que essa revelação lhes dava conhecimento total de Deus. "Talvez jamais seja possível conhecer todas as coisas, as coisas encobertas, pois a mente humana é restrita pelos limites de sua finitude [...] e é possível conhecer a Deus de um modo profundo e vivo, por meio de sua graça, sem jamais ter captado ou compreendido as coisas encobertas".n A palavra gãlâé usada em referência a uma época em que Samuel não conhecia o Senhor. "Porém Samuel ainda não conhecia o SENHOR, e ainda não lhe tinha sido manifestada [imperf. nifal] a palavra do SENHOR" (ISm 3.7). Usa-se gãlâ em 2Samuel 7.27 quando Davi alegou que o Senhor dos Exércitos "descobriu seus ouvidos", revelando-lhe que Deus lhe construiria uma casa —ou seja, uma dinastia. Isaías afirmou que Deus "desvendou-se" ou "revelouse" aos ouvidos de Isaías, dizendo que o pecado que o profeta havia identificado não seria perdoado (Is 22.14). O termo gãlâé usado para falar da revelação da palavra de Javé (ISm 2.27), de sua glória (Is 40.5), de seu braço (Is 53.1), de sua salvação (Is 56.1), das coisas secretas (Dt 29.29; Am 3.7) e do mistério (Dn 2.19, 22, 28, 29, 30, 47). O povo no Antigo Testamento cria que Deus havia se revelado muitas vezes, mas em modos, lugares e momentos escolhidos por ele. B. O significado da revelação O Antigo Testamento fala com freqüência em "conhecer" (y d ) ou "não conhecer" Javé (compare Is 1.3; Jr 2.8; 4.22; 31.34; Os 2.20; 4.1, 6; 5.3-4; 6.6; 13.4). O conhecimento no Antigo Testamento é bem diferente de nosso “ The Book o f Deuteronomy, 361. 96 T e o l o g ia do A n t ig o T e s t a m e n t o entendimento do termo. Para nós, conhecimento implica compreender coisas pela razão, analisar e buscar relações de causa e efeito. No Antigo Testamento, conhecimento significa "comunhão", "familiaridade íntima com alguém ou algo". Falando em nome de Deus a Israel, Amós disse: De todas as famílias da terra a vós somente conheci; portanto, todas as vossas injustiças visitarei sobre vós. (Am 3.2, ARC) Vriezen disse que o Antigo Testamento faz do "conhecimento de Deus" a primeira exigência da vida, mas jamais explica o significado do termo. O propósito da revelação divina não é declarado especificamente no Antigo Testamento. A revelação não se baseia em alguma necessidade de Deus. Deus não criou o mundo nem revela a si mesmo para ter alguém que guarde o sábado, como diziam alguns rabinos antigos. O conhecimento de Deus é mais que um mero conhecimento intelectual; diz respeito à vida humana como um todo. É essencialmente uma comunhão com Deus e é também fé; é um conhecimento do coração que exige o amor do homem (Dt iv); sua exigência vital é que o homem aja de acordo com a vontade de Deus e ande humildemente nos caminhos do Senhor (Mq vi.8). É o reconhecimento de Deus como Deus, a rendição total a Deus como Senhor.24 Gerhard von Rad entende que "o conhecimento de Deus" significa "compromisso", "confiança", "obediência à vontade divina". O conhecimento efetivo de Deus é a única coisa que coloca uma pessoa num relacionamento correto com os objetos de sua percepção. "A fé —como é comum crer hoje— não obstrui o conhecimento; pelo contrário, ela o libera."“ Assim, "conhecer Javé" é ser obediente a ele, ter um compromisso com ele. "Não conhecer a Deus" significava "rebelar-se contra ele", "negar o compromisso com ele". Em Oséias, o significado do termo "conhecimento de Deus" é ampliado para incluir a moralidade do israelita como indivíduo. O conhecimento de Deus pode ser identificado como a prática da moralidade hebraica tradicional, integridade moral (Os 4.1-2). 2i Outline o f Old Testament Theology, 154. 25 Wisdom in Israel, 67-68. O C o n h e c im e n t o de Deus 97 A expressão hebraica "o conhecimento de Deus" traz assim pelo menos três conotações: (1) o sentido intelectual, (2) o sentido emocional e (3) o sentido volitivo. O verbo "conhecer" (yãda‘) refere-se basicamente ao que chamamos atividade intelectual, cognitiva; mas a psicologia hebraica não conhecia uma faculdade específica que compreendesse o intelecto ou a razão. O hebraico não possui uma palavra que signifique "cérebro". A palavra mais comum usada em lugar de "mente" em hebraico é "coração", 7éô(lSm 9.20; Is 46.8). O coração é considerado sede do intelecto, bem como da vontade e das emoções. O hebraico antigo não supunha que as pessoas pensavam com a mente, sentiam com as emoções e tomavam decisões com a vontade. Todas essas atividades eram desempenhadas pela pessoa como um todo.26 "Conhecer a Deus" significava ter um entendimento intelectual de quem ele era, ter um relacionamento pessoal e emocional com ele e ser obediente à sua aliança e mandamentos. Um verdadeiro conhecimento de Deus sempre resultava numa conduta ética. Jeremias disse ao perverso rei Jeoiaquim a respeito de seu pai justo: Acaso, teu pai não comeu, e bebeu, e não exercitou o juízo e a justiça? Por isso, tudo lhe sucedeu bem. Julgou a causa do aflito e do necessitado; por isso, tudo lhe ia bem.. Porventura, não é isso conhecer-me? —diz o S enhor . (Jr 22.15-16) "Não conhecer a Deus" no Antigo Testamento não significa necessariamente ignorância acerca de Deus; às vezes significa falta de disposição para obedecer a ele. C. A sobrevalorização da revelação Karl Barth e alguns outros teólogos modernos sobrevalorizaram o papel da revelação na teologia ao negar todo e qualquer conhecimento de Deus nas pessoas, exceto pela revelação especial. Cari Braaten questionou a concepção de Barth, que fazia da revelação a idéia dominante na teologia. Braaten disse: "Se a ignorância do MVeja no cap. 6, divisão 30-C, uma discussSo mais detalhada de "coração" T f.o i .o c ia 98 do A n t ig o T e s t a m e n t o homem posta-se no centro, o fato da revelação alivia essa sina; mas se a culpa do homem é o problema, então não é a revelação, mas a reconciliação, o que deve tomar-se o centro teológico".27 Barth negou todos os outros meios de revelação, exceto Jesus Cristo, por causa de sua convicção de que Cristo é singular e único. Braaten cria na singularidade de Cristo, mas disse: Distinguindo, porém, entre revelação e reconciliação, é possível sustentar tanto a dualidade da revelação como a singularidade de Cristo. Jesus é o único Salvador, não o único revelador. A idéia de revelação dá a entender que algo previamente oculto é desvendado. O evento de Cristo não é o desvendar de algo que sempre existiu, mas que até então permanecia oculto e encoberto em mistério. Essa é uma visão completamente platônica de revelação. A reconciliação não é apenas revelada, como se estivesse ali, meramente oculta; ela é realizada na história, um evento único, algo absolutamente inédito debaixo do sol [...] O ato de reconciliação provoca uma situação objetivamente nova, não só para o que crê, mas também para o cosmo. O mundo foi reconciliado com Deus em Cristo.28 "Conhecer o Senhor" significa ser "reconciliado" com ele. Ele faz isso por nós mediante a morte e a vida de seu Filho em nosso lugar (veja Rm 5.10-11; 2Co 5.15-21). 13. O Deus abscôndito i Embora o Antigo Testamento reconheça que, em certo sentido, todo o mundo está ciente do divino ou do "sagrado", ele se refere com freqüência ao Deus abscôndito. Jó cria em Deus, mas não conseguia encontrá-lo. 21 History and Hermeneutics, 14. n Ibid., 15. O C o n h e c im e n t o de Deus 99 Eis que ele passa por mim, e não o vejo; segue perante mim, e não o percebo. Eis que arrebata a presa! Quem o pode impedir? Quem lhe dirá: Que fazes? (Jó 9.11-12) O profeta do exílio disse: Verdadeiramente, tu és o Deus que te ocultas, o Deus de Israel, o Salvador. (Is 45.15, ARC) Na folha de guarda de seu The Elusive Presence, Samuel Terrien citou Blaise Pascal: "Uma religião que não afirma que Deus está oculto não é verdadeira".29 Pascal continua seu discurso sobre Deus ser abscôndito: "Uma religião que não ofereça uma razão (para o fato de ele ser abscôndito) não é iluminadora".30 Terrien entende que, porque Jesus estaria em agonia até o fim do mundo, Pascal podia apropriar-se com segurança das palavras do profeta: Vere tu es Deus Absconditus (Is 45.15). A verdade é que Deus jamais é totalmente visível ou completamente conhecido no Antigo Testamento. Se Deus fosse completamente conhecido, seria limitado pela capacidade humana de compreensão e não seria, de modo algum, Deus. Só um punhado de ancestrais, profetas e poetas de fato perceberam a proximidade de Deus; e, então, mediou-se o desvendar de Deus. B. W. Anderson disse: "A pressuposição da Revelação é que Deus es oculto à vista do homem. A revelação, portanto, é Deus desvendando ou descobrindo a si mesmo e a seus propósitos".31 O Antigo Testamento fala com freqüência de um Deus "oculto". Afirma-se 26 vezes que Deus esconde o rosto (Dt 31.17, 18; 32.20; Jó 13.24; 34.29; SI 10.11; 13.1; 22.24; 27.9; 30.7; 44.24; 51.19; 69.17; 88.14; 102.2; 104.29; 143.7; Is 8.17; 54.8; 59.2; 64.5; Jr 33.5; Ez 39.23, 24, 29; Mq 3.4). Deus esconde os olhos (Is 1.15) e os ouvidos (Lm 3.56). Deus se oculta (SI 10.1; 55.1; 89.46; Is 45.15).32 ” Cf. Blaise Pascal, Pensees, n. 584. 50 Terrien, The Elusive Presence, 474. Jl "The Old Testament View o f God", 419. 32 Veja uma discussão das palavras hebraicas que significam "ocultar" nas obras de Samuel E. Ballentine alistadas na Bibliografia. 100 T e o lo g ia do Afmco T e s t a m e n t o Que quer dizer o Antigo Testamento quando fala que Deus se oculta? Vriezen disse que é a substância de Deus que permanece oculta. "O conhecimento de Deus não implica uma teoria sobre sua natureza, não é ontológico, mas existencial [...] conhecimento de Deus e comunhão com ele são possíveis, mas o segredo da Substância de Deus jamais é atingido.”33 Isso pode ser verdade, mas quando o Antigo Testamento fala que Deus se oculta refere-se principalmente à sua inatividade em favor de seus adoradores e ao fato de Deus parecer não responder às orações deles. Muitas das expressões de que Deus esconde o rosto estão nos lamentos (em Salmos e Lamentações). O salmo 44 é um exemplo de lamento comunitário porque Deus se oculta. Israel tinha sido derrotado e Deus não o resgatou como fizera em outras ocasiões. Assim, o salmista pergunta: Por que escondes a face e te esqueces da nossa miséria e da nossa opressão? (SI 44.24) Por que Deus parecia agir em algumas ocasiões de modo diferente do que agira em outras? Esse era o mistério. Os que falam no salmo 44 reclamavam que Deus não lhes havia ajudado como ajudara seus pais, embora não tivessem pecado (SI 44.9-22). Eclesiastes diz que as pessoas não conseguem encontrar o motivo pelo qual Deus faz o que faz (Ec 8.17). Muitos dos salmos falam de "esperar em Deus" (25.3; 37.9; 40.17; 62.1; Is 8.17) e de Deus estar longe (10.1; 22.1, 11, 19). Eles alegam que Deus se esqueceu (13.1).Os salmistas criam que Deus era coerente em seu propósito e fiel à sua palavra. Nas complexidades e ambigüidades da existência histórica, porém, o propósito de Deus pode ser visto só de maneira vaga. Os salmos de lamento conduzem-nos à dimensão mais profunda do testemunho da Bíblia: o reconhecimento de fé de que o Deus que se revela na história muitas vezes permanece oculto. Ele não é prisioneiro de pensamentos humanos ou cativo de seus esquemas. Seu propósito também não é de fácil discernimento no desenrolar dos dramas da história humana. Deus permitiu que os filisteus capturassem a arca da aliança, provocando consternação por parte de Israel e dos filisteus (1 Sm 4.18-19; 6.9). ” An Outline o f Old Testament Theology, 155. O C o n h e c im e n t o de D eu s 101 Vriezen concordava que o propósito de Deus nem sempre pode ser visto, mesmo na história da salvação. Ele disse que se compararmos essa história a uma linha, só certos pontos dela estariam visíveis. Ninguém consegue copiar a linha em si porque é um segredo de Deus e porque ele mesmo se mantém um Deus miraculoso e essencialmente oculto.34 Os profetas jamais supuseram saber com precisão o que Deus estava para fazer. Deus é livre para fazer o que quer. Seus propósitos, planos e caminhos são com freqüência secretos. Os profetas evitavam dizer exatamente o que Deus faria ou deixaria de fazer. Porque os meus pensamentos não são os vossos pensamentos, nem os vossos caminhos, os meus caminhos, diz o S enhor , porque, assim como os céus são mais altos do que a terra, assim são os meus caminhos mais altos do que os vossos caminhos, e os meus pensamentos, mais altos do que os vossos pensamentos. (Is 55.8-9) Aborrecei o mal, e amai o bem, e estabelecei na porta o juízo; talvez o SENHOR, o Deus dos Exércitos, se compadeça do restante de José. (Am 5.15) Buscai o S enhor , vós todos os mansos da terra, que cumpris o seu juízo; buscai a justiça, buscai a mansidão; porventura, lograreis esconder-vos no dia da ira do S enhor . (S f 2.3) O rei de Nínive disse: "Que o homem e os animais clamem poderosamente a Deus; sim, cada um se converta de seu mau caminho e da violência que está em suas mãos. Quem sabe Deus possa ainda arrepender-se e afastar-se de sua ira feroz, de modo que não pereçamos" (Jn 3.8-9, tradução do autor). O arrependimento de Deus no Antigo Testamento ancora-se no conceito de sua liberdade. 34lbid., 152. 102 T e o l o g ia do A n t ig o T e s t a m e n t o Os deuses pagãos das nações vizinhas de Israel careciam dessa liberdade. Uma vez que falassem ou emitissem um decreto, eram impotentes para alterar de algum modo o feito. Era diferente com o Deus de Israel. Ele sempre se mantinha Senhor dos próprios propósitos. Ele mantinha aberta a opção de mudar seus decretos sempre que a situação garantisse tal mudança.35 Essa mudança no curso de ação determinado por Deus frustrou Jonas, mas revelou a graça de Deus. Os hebreus acreditavam que Deus podia "arrepender-se" de seu propósito estabelecido se as atitudes e ações humanas mudassem, mas ele também tinha a liberdade de não se arrepender. Kelley disse: "O arrependimento de Deus nos salva tanto do desespero como da arrogância".36 O arrependimento de Deus é coerente com o fato de ele estar oculto. Assim, não só a Substância de Deus é oculta no Antigo Testamento; seus propósitos e caminhos também são conhecidos só de maneira parcial. Eis que isto são apenas as orlas dos seus caminhos! Que leve sussurro temos ouvido dele! Mas o trovão do seu poder, quem o entenderá? (Jó 26.14) 14. Os meios de revelação Como Deus se revela no Antigo Testamento? De muitas e várias maneiras. John Goldingay observou a vasta gama de meios pelos quais Javé se revelou a Israel: Ele [Israel] experimentou sua presença e atividade e ouviu sua voz na história de seu passado como nação e esperava experimentá-la no futuro. Assim, ele tinha consciência de viver na história. Mas também a experimentava em seu presente, na natureza, na experiência pessoal, no culto, na teofania, no ouvir e no pronunciar a palavra profética, em sua consciência moral, na lei, em suas instituições e ordenanças.37 55 Kelley, "The repentance o f God", 13. “ Ibid. ” Approaches to Old Testament Interpretation, 69. O C o n h e c im e n t o de Deu s 103 A. Teofanias e epifanias Num modelo de teologia do Antigo Testamento só podemos dar algumas pinceladas sobre os meios pelos quais Deus se faz conhecido. Um dos meios pelos quais Deus se revela no Antigo Testamento é pelas suas aparições (teofanias/epifanias). Adão e Eva ouviram o som de Deus andando no jardim no frescor do dia (Gn 3.8). O Senhor apareceu aos patriarcas Abraão, Isaque e Jacó (Gn 15.1-21; 17.1-21; 18.33; 26.2-5, 24; 28.12-16; 32.24-32). Alguns estudiosos referem-se a todas as aparições de Deus no Antigo Testamento como teofanias. Outros fazem distinção entre teofanias e epifanias. Terrien referiu-se à aparições de Deus aos patriarcas como "visitações epifânicas" porque em geral não se acompanham de manifestações da natureza como terremoto, fogo, nuvem, vento, trovão e/ou fumaça como ocorre em outras teofanias notáveis. As teofanias mais notáveis no Antigo Testamento são a sarça ardente (Êx 3), o estremecimento do Sinai (Êx 19-24), os chamados de Isaías (Is 6) e Ezequiel (Ez 1), e o redemoinho (Jó 38).38 Claus Westermann isolou algumas passagens a que chamou epifanias (Dt 33; Jz 5.4-5; SI 18.7-15; 29; 50.1-3; 68.7-8, 33; 77.16-19; 97.2-5; 114; Is 30.27-33; 59.156-20; 63.1-6; Mq 1.3-4; Na 1.36-6; Hc 3.3-15; Zc 9.14). De acordo com Westermann, as epifanias referem-se só às aparições de Deus para ajudar, resgatar ou salvar seu povo. A teofania é uma aparição de Deus com o propósito de transmitir uma mensagem —chamar um profeta, fazer uma aliança ou promessa.39 Bem próximos das teofanias e/ou epifanias estão os relatos de aparições de Deus a pessoas em visões e sonhos, no anjo do Senhor, em sua face, seu nome ou sua glória. Kuntz disse que a aparição divina não possui form a consistente. A descrição teofãnica pode mencionar alguns dos instrumentos divinamente destacados pelos quais a divindade pode ser representada. Estudiosos de teologia bíblica em geral identificam quatro: o kãbôd (glória), m a l’ã k (mensageiro ou anjo), pãnim (face) e Sem (nome). Esses veículos, tecnicamente conhecidos por teologômenos, são as “representações” da divindade em sua natureza real, mas jamais plenamente revelada.40 M The Elusive Presence, 63-66. ” Elements o f Old Testament Theology, 25-26, 57-61 (no Brasil, Teologia do AT, pela Paulinas). 40 Kuntz, The Self-Revelation o f God, 37. T e o l o g ia do A n t ig o T e s t a m e n t o B. A história Durante séculos os teólogos cristãos falaram da revelação como "a palavra de Deus". A maior parte dos teólogos sistemáticos fala que a revelação é preposicional, mas em 1952 G. Emest Wright tentou recuperar a concepção bíblica de revelação a partir dos teólogos dogmáticos. Em God Who Acts ele disse: "O propósito desta monografia é descrever a natureza especial e característica da apresentação bíblica da fé e defender o uso da palavra ‘teologia’ para ela".41 Wright alegou que, para a maior parte das pessoas, a revelação tem sido preposicional, expressa do modo mais abstrato e universal possível e organizada de acordo com um sistema preconcebido coerente. Obviamente, a Bíblia não contém nada assim. A teologia cristã tende a pensar na Bíblia principalmente como "a Palavra de Deus", embora na realidade um título mais adequado seja "os Atos de Deus". "A Palavra com certeza está presente nas Escrituras, mas raramente ou nunca é dissociada do Ato; antes, é o acompanhamento do Ato."42 Wright definiu teologia bíblica como "o recital confessional dos atos redentores de Deus numa história em particular, porque a história é o principal meio de revelação".43 É provável que Wright tenha tido uma reação exagerada contra a forma preposicional da teologia sistemática, mas era sincero o seu esforço de permitir que o Antigo Testamento falasse com seus próprios termos. Wright foi influenciado nesse ponto pelo tratamento dado por von Rad aos "credos" do Antigo Testamento que recitavam os grandes atos de Deus (Dt 26.5-12). A idéia de que a revelação é histórica está muito ligada às idéias da escola da história da salvação, que se pode remontar à "escola Erlangen" de J. C. von Hofmann em meados do século XIX. "A revelação é histórica" também era uma das cinco idéias-chave no movimento da teologia bíblica nos Estados Unidos, de acordo com B. S. Childs.44 Podemos concluir, portanto, que a revelação no Antigo Testamento é principalmente histórica. É histórica nos seguintes sentidos: (1) Deus revelou-se em eventos e no ambiente da história do Antigo Testamento. (2) Os eventos, experiências e encontros reveladores ocorreram num longo período. 41 God Who Acts, 11 (no Brasil, O Deus que Age, pela 42 Ib id , 12. •'Ibid., 13. 44 Biblical Theology in Crisis, 39-44. ASTE). O C o n h e c im e n t o de Deu s 105 (3) O conhecimento de Deus no Antigo Testamento deve ser u conhecimento mediado, porque Deus é apresentado no Antigo Testamento como fogo consumidor. Ninguém pode ver a Deus e viver (Êx 33.20). Deus existe em um nível, e os seres humanos, num nível inferior. Jó reconheceu esse abismo entre Deus e a humanidade e pediu um árbitro para transpô-lo (Jó 9.33). Um modo de transpor o abismo entre Deus e as pessoas é mediar a revelação por meios históricos. Kierkegaard considerou um paradoxo a idéia de que a revelação bíblica é histórica, pois a revelação é uma visão do eterno, do imutável, do divino, mas a história é humana, mediada, ligada ao tempo. Kierkegaard falou da revelação bíblica nos seguintes termos: "Quem compreende essa contradição de dores? Não se revelar é a morte do amor; revelar-se é a morte do amado".45 Frank M. Cross parafraseou a parábola de Kierkegaard que ilustra a natureza da revelação: Havia um grande rei que amava uma humilde criada. De inicio pareceu simples para o grande rei chegar à cabana de sua amada e declarar seu am or por ela. Mas o grande rei era sábio e estava ciente de que não conquistaria o amor da criada com uma declaração de amor, pois ela ficaria atormentada. A glória dele a prostraria, e ela não poderia fazer outra coisa senão casar-se com o grande rei. Então o rei pensou que poderia tom á-la princesa, ou seja, iria exaltá-la tornando-a igual a si. Mas de novo o rei percebeu que, ao exaltá-la, ele a estaria mudando, de modo que ela deixaria de ser a criada humilde a quem amava. Assim, ele resolveu que, se fosse cortejá-la e conquistá-la como ela era, precisaria deixar seu poder e glória com o rei, tomando-se pastor. Ele só poderia ganhá-la descendo ao nível dela. Isso é o que Deus fez ao se revelar na história e na encarnação.46 Em anos recentes, o conceito de revelação como história tem sido cada vez mais atacado. James Barr predisse que virá um tempo em que o conceito não será nem claro nem útil. O conceito de fato tem problemas; tem sido muito unilateral e ambíguo. Ele tem sido unilateral no sentido de não dar lugar à revelação pela natureza, sabedoria ou palavra. Tem sido ambíguo no sentido de que o termo história pode ser e é usado de muitas maneiras diferentes. 45 Veja Frank M. Cross, "Creation and History". 46 Ibid. 106 T e o l o g ia do A n t ig o T e s t a m e n t o O conceito pode continuar como um conceito viável e significativo e como um ingrediente essencial de qualquer teologia bíblica. O conceito de revelação por intermédio da história não é uma simples moda ou aberração teológica passageira; ele faz parte do "centro da religião bíblica".47 Goldingay disse: "Não é hora de dizer adeus à Heilsgeschichte’, mas a crítica certamente tem indicado pontos em que a idéia necessita de esclarecimento e de uma perspectiva melhor".48 Filósofos gregos especularam acerca do ser, da essência e da eternidade. Eles identificaram a realidade no âmbito do "ser" estático. As Escrituras do judaísmo e do cristianismo foram produto da história e preocupam-se essencialmente com Deus e com os homens na história. As Escrituras não se preocupam com a chamada história secular, mas com a história como revelação de Deus. C. As palavras Se a revelação é principalmente histórica no Antigo Testamento, qual a relação entre as palavras (discursos) de Deus e seus atos na história? No Antigo Testamento as palavras ocupam lugar de destaque como meio divino de comunicação com seu povo. Edmond Jacob disse que o fato de que Deus se revela por palavras é uma verdade confirmada em cada livro do Antigo Testamento.49 A frase mais comum empregada nesse sentido é "a palavra do SENHOR veio a..." (Gn 15.1; 2Sm 7.4; lRs 6.11; 17.2 e na maioria dos profetas). O principal vocábulo hebraico traduzido por "palavra" é dãbãr. A forma verbal, de acordo com Jacob, pode significar "estar atrás e empurrar". Uma palavra, portanto, é a projeção do que está atrás — ou seja, o que transpõe para um ato o que está no coração.50 No Antigo Testamento, a palavra é dinâmica, poderosa, uma força que "ocorre" ou sobrevêm a alguém. É um fogo destruidor (Jr 5.14); dura para sempre (Is 40.8). Os Dez Mandamentos são chamados as "dez palavras" (Êx 20.1; 24.3, 4, 8; 34.1, 27, 28). Essas "palavras" constituem uma revelação de Deus; nelas Javé afirma ser Senhor. Elas encerram a autoridade do próprio Deus, de modo que nenhum profeta verdadeiro jamais sonhou questionar-lhes a autoridade. 47 Lemke, Interpretation 36 [1983]. 4“ Approaches to Old Testament Interpretation, 67. 49 Old Testament Theology, 127. w Ibid., 128. Veja uma modificação dessa definição de dSbSr, “palavra”, em James Barr, The Semantics o f Biblical Language, 129-140. O C o n h e c im e n t o de Deus 107 Profetas verdadeiros também faiavam a palavra de Deus, mas a diferença entre a palavra profética e as dez palavras era que as dez palavras "têm um valor permanente para todas as gerações, enquanto a palavra do profeta [...] não tem aplicação após seu cumprimento".51 Claus Westermann distinguiu três tipos de palavra no Antigo Testamento: (1) anúncio ou proclamação —ou de salvação ou de julgamento; (2) instrução ou diretriz —ou lei ou mandamento; e (3) a palavra cultual em adoração —ou bênção ou maldição. O anúncio é em geral entendido como a palavra do profeta, mas os sacerdotes e levitas também podiam proclamar a palavra de Deus nos anúncios de bênção ou maldição. Ageu pediu a seu povo que fosse aos sacerdotes perguntar acerca da santidade e da impureza (Ag 2.11-14). Os três tipos de palavra relacionam-se entre si. Quando se dá ênfase demasiada a uma função, negligenciando-se as outras, podem surgir equívocos. Por exemplo, os cristãos com freqüência dão ênfase à função preditiva da profecia, excluindo a função legal ou instrutiva. Nesse caso, o Antigo Testamento toma-se um livro cujo valor principal é a predição da vinda de Cristo. Os judeus, por sua vez, fazem da lei o aspecto mais importante do Antigo Testamento. Westermann disse que nenhuma dessas funções da palavra de Deus no Antigo Testamento pode tornar-se absoluta à parte das outras. Toda perspectiva unilateral da palavra de Deus no Antigo Testamento pode ser rebatida pelo fato de que só juntas as três funções da palavra (anúncio, instrução e culto) expressam o que a palavra de Deus é no Antigo Testamento.52 Ao falar sobre a palavra de Deus no Antigo Testamento, precisamos lembrar que o Antigo Testamento com freqüência assevera que Deus "fala" à humanidade, mas não explica como ele fala. Quando lemos que Deus falou a Abraão, a Moisés ou a um dos profetas, não podemos pressupor que tenha falado com voz audível. A palavra falar pode simplesmente significar "comunicar-se", "revelar-se" ou "manifestar-se" de várias maneiras. A palavra hebraica "voz", qôl, pode também significar "trovão" (Gn 3.8; ISm 12.17; SI 29.3, 4, 5, 7, 8, 9). Deus falou de modo audível no Antigo Testamento? Tanto o Antigo como o Novo Testamento falam que certas pessoas ouviram uma voz do céu. Quando o povo de Israel chegou ao Sinai, o monte foi envolvido por nuvens e fumaça porque Javé havia descido sobre ele em fogo. Moisés falou a Javé, e Deus respondeu-lhe num trovão (Êx 19.18-19). Então Deus falou as dez palavras a todo o povo. Eles ficaram com tanto medo quando ouviram sua voz, que perguntaram se no futuro Moisés não poderia ser o mediador entre eles e Deus, de modo que não tivessem de ouvir sua voz outra vez (Êx 20.18-19). 51 Jacob, op. cit., 130. 52 Elements o f Old Testament Theology. 24. T e o l o g ia do A n t ig o T e s t a m e n t o Tempos depois o escritor de Deuteronômio disse a respeito desse evento: "Então, o SENHOR v o s falou do meio do fogo; a voz [qôl] das palavras ouvistes; porém, além da voz [qôl], não vistes aparência nenhuma" (Dt 4.12). Pode haver referência a uma voz audível em Números 7.89: "Quando entrava Moisés na tenda da congregação para falar com o SENHOR, então, ouvia a voz que lhe falava de cima do propiciatório, que está sobre a arca do Testemunho entre osdois querubins; assim lhe falava". Esse linguajar pode significar que Moisés recebeu sua revelação de Deus da própria morada de Deus sobre a terra. Wheeler Robinson disse que na Lei e nos Profetas a revelação é em geral descrita como "falada" por Deus às pessoas. Essa exteriorização do processo era inevitável, com as supostas limitações psicológicas, para expressar a autoridade da revelação. Mas a forma histórica do evento, a verdadeira forma em que se manifestava, deve ter sido muito mais íntima que um a voz real, para garantir o necessário núcleo de convicção. Mesmo que o profeta às vezes tenha “ouvido” uma voz externa (como é bem possível), isso não nos isentaria de uma análise psicológica da experiência constituinte.51 D. A relação entre palavras e história A revelação deve ser encontrada em eventos ou em palavras? Devemos permitir que a palavra e o evento interajam, não reduzir um ao outro. É necessário haver uma combinação entre o conceito teológico e o fato histórico. "Fatos sem palavras (interpretação) são cegos; palavras sem fatos são vazias."54 Se envolve interpretação (palavras), podemos falar da "história" no Antigo Testamento como "fatos"? Deve-se admitir que os fatos no Antigo Testamento são interpretados. Os autores dão descrições do que ocorreu entre Deus, o povo e o mundo. Os historiadores do século XIX consideravam "história" só o que podia ser documentado e confirmado por métodos científicos. Descartavam quaisquer dos atos de Deus como partes integrantes da história.55 No Antigo Testamento aquilo que move a história ocorre entre Deus e o povo. A questão permanece: a história do Antigo Testamento ocorreu ou a história veterotestamentária dos atos de Deus são meras inferências ou deduções humanas a partir de certos eventos? Temos interpretação, não história? 55 Inspiralion and Revelation, 274. 54 Goldingay, Approaches to Old Testament Interpretation, 77. 55 Veja B. Stade, Geschichte des Volkes Israel I [ 1887]; cf. E. W. Nicholson, God and His People, 7-8. O C o n h e c im e n t o de Deu s 109 R. J. Blaike exige que "os que já não acreditam que Deus é um agente vivo e pessoal parem de usar os termos aios de Deus, Deus em ação e coisas semelhantes em referência a algo que não atos propositados e deliberados desse Deus".56 Lemke argumentou que a menos que possamos ou queiramos afirmar a atividade de um agente divino em ação na mente dos líderes de Israel ou ajudando a livrar Israel do Egito por meios naturais ou extraordinários, "toda conversa sobre atos de Deus ou revelação por meio da história não faz sentido e é enganosa, e uma honestidade básica deveria compelir-nos a nos refrear de fazer isso".57 Estudiosos continuam a debater sobre a diferença entre a história veterotestamentária da história de Israel e a reconstrução de tal história feita por estudiosos críticos modernos. Gerhard von Rad argumentou que existe uma ampla diferença entre o que o Antigo Testamento diz ter ocorrido e o que historiadores científicos modernos dizem ter ocorrido. De novo, precisamos lembrar que os escritores do Antigo Testamento e os historiadores modernos têm pressuposições diferentes. Mesmo com essa diferença, um reconhecido estudioso do Antigo Testamento consegue dizer: "Hoje não temos um bom motivo para duvidar de que há uma dose significativa de congruência entre os verdadeiros fatos da história de Israel reconstruídos pela crítica e o modo pelo qual são lembrados em suas tradições sagradas".58 £ . História e fé Em última análise, se a história veterotestamentária da salvação ocorreu ou não é uma questão de fé. Embora a fé seja impossível se não houver base histórica, o historiador não consegue provar ou reprovar a historicidade dos antigos atos de Deus na história de Israel. Desse modo, com base nas experiências pessoais com Deus e na mensagem da Bíblia, podemos dizer: "Posso manter a convicção de que a história da salvação ocorreu".59 Ainda assim, convicções de fé não podem tomar impertinente a investigação histórica. Se os autores do Antigo Testamento procuravam escrever "história" pura e falharam, "é difícil levar a sério o trabalho deles. Mas se estavam contando uma história com uma mensagem, é a história deles que devemos interpretar".60 Cremos que a história bíblica é fiel ao propósito de Deus em nos mostrar quem ele é por meio do que tem feito e em nos mostrar como atender a ele. George “ Secular Christianity and God Who Acts, citado por Lemke, "Revelation Through History", 4 1. 57 Op. cil., 41. " Ibid., 45-46. ” Goldingsy, Approaches to Old Testament Interpretation, 74. “ Ibid.. 110 TEOI.OCIA do A n t ig o T e s t a m e n t o L. Kelm publicou recentemente seu entendimento do relato bíblico do êxodo de Israel do Egito e sua conquista de Canaâ. Kelm rejeitou a "interpretação simplista do texto bíblico que parece desconsiderar por completo a possibilidade de um evento histórico muito mais complexo do que uma leitura informal poderia sugerir". Ele também rejeitou o método histórico-crítico que sujeita o texto bíblico a uma análise interna rigorosa para determinar a fidedignidade histórica pelo "preconceito subjetivo da crítica".61 Kelm reconheceu que "o relato bíblico apresenta um grande problema. Algumas das evidências históricas parecem claramente contraditórias, e a conciliação de detalhes bíblicos, mesmo à parte de dados extrabíblicos, não é simples".62 Ele recorreu à atuação dos escribas na transmissão dos textos para explicar muitos problemas e complexidades dos textos bíblicos presentes. Kelm concordou com muitos estudiosos judeus, entendendo que, enquanto copiavam o texto, geração após geração, os escribas podem ter feito acréscimos ou comentários aos textos "para dar sentido" a eles ou tomá-los compreensíveis à sua geração. É possível que tenham mudado, revisado ou reformulado os textos para esclarecê-los e ajudar em sua interpretação. Os chamados "anacronismos" (linguagem de uma época posterior aplicada num texto sobre uma época anterior) podem ser atribuídos aos escribas como meio de atualização dos textos.63 Essas mudanças promovidas pelos escribas podem também responder por muitas incoerências, duplicações, contradições e, em especial, diferenças de estilo e vocabulário. A modernização dos textos feita pelos escribas garantia uma constante transição de significado, por fim interrompida pela canonização. Nesse ponto a santidade dos textos bloqueou o processo interpretativo dos escribas. Seu significado foi fixado nos conceitos literários daquela época e lugar, muito distante da mente do século XX.64 Kelm pode estar correto no que disse a respeito da atuação dos escribas, mas não se podem atribuir todos os problemas textuais ou históricos do Antigo Testamento à ação dos escribas. Trent C. Butler disse que o problema começa com as pressuposições ligadas à teologia e à fé pessoal. Quem crê não chega às narrativas bíblicas para validar a qualidade das verdades nelas contidas. As narrativas já se provaram verdadeiras para a vida de fé muito antes que ele aprendesse a levantar o problema histórico. A questão histórica torna-se "um meio de reforçar a fé ou de validar a doutrina da pessoa".65 *' Escape lo Conflict, xxiii. 62 Ibid., xx. M Ibid., xxv. w Ibid., xxv-xxvi. 65 Joshua, xxxix. O C o n h e c im e n t o de Deus 111 Todos buscamos conhecimento e entendimento, de modo que insistimos na questão histórica. Cremos que a tradição bíblica é historicamente fundamentada. "A tradição bíblica não foi inventada do nada."66 Muitas teorias têm sido apresentadas para explicar a versão histórica da conquista de Israel. Até aqui não se estabeleceu nenhum consenso acadêmico em tomo de uma teoria. Nossas pressuposições teológicas podem-nos inclinar a deixar para trás as regras do historiador objetivo por uma declaração de fé a respeito da situação histórica. "Nesse caso, precisamos estar bem conscientes da natureza das declarações que estamos fazendo."67 A. O nome denota essência O conhecimento de Deus no Antigo Testamento brota não só da história, palavra, criação e teofania, mas também da revelação do nome Javé. Concorda-se em geral que "entre povos primitivos e em todo o antigo Oriente, o nome denota a essência de algo: chamar algo pelo nome é conhecê-lo e, por conseguinte, possuir poder sobre ele".6® Os israelitas não eram exceção a essa regra geral entre os povos primitivos. Eles supunham que a essência total da pessoa concentrava-se em seu nome.69 O nome estava relacionado à natureza do caráter da pessoa. O nome de Eva, "vida", ligava-a ao homem (Gn 2.18-23). Esaú disse que as ações de Jacó refletiam seu nome (Gn 27.36). Nabal era como seu nome, "um tolo" (ISm 25.25). Von Rad e Jacob argumentaram que o nome de um deus no mundo antigo encerrava poder e podia ser ou perigoso ou beneficente. Era, assim, importante conhecer o nome do deus. “ Ibid., xli. 67 Ibid., xli-xlii. “ De Vaux, Ancienl Israel, 43. 69 Jacob, op. cit., 43. 112 T e o l o g ia do A n t ig o T e s t a m e n t o B. A invocação do nome No Antigo Testamento, era necessário invocar o nome de Javé para aproximar-se dele. A primeira palavra de muitas das orações nos salmos é uma invocação, "Javé" (3.1; 6.1; 7.1; 8.1; 12.1). Entretanto, em algumas orações, Elohim, "Deus", é usado em seu lugar. A doxologia de Davi começa com a palavra Javé (1 Cr 29.10-11). A invocação do nome era ainda importante na época do Novo Testamento. Jesus ensinou seus discípulos a começar assim suas orações: "Pai nosso [...] santificado seja o teu nome" (Mt 6.9). Quando Deus tomou a iniciativa de revelar-se, começou pronunciando o próprio nome: "Eu sou Javé" (Gn 35.11; Êx 6.2; 20.1; 34.5-6). Mas a revelação do nome não tomou Javé acessível e familiar. Israel considerava o nome de Javé santo e insistia que ele não devia ser profanado (Lv 22.2, 32; SI 103.1; 105.3; 111.9; 145.21; Ez 20.39; 36.20-23; 39.7; 43.7; Am 2.7). O nome de Javé substituía o próprio Deus, representando toda sua presença santa. A invocação do nome era parte importante do culto. Se Javé não tivesse revelado seu nome, o adorador não poderia invocá-lo e não haveria culto. Childs reconheceu que a ligação entre o nome e o culto é válida. Mas quando Deus deu seu nome a Moisés (Êx 3.14), a questão era mais de relacionar o chamado de Moisés ao nome pela autoridade de Deus que pelo culto.70 C. O significado e a im portância do nome do Deus de Israel O nome Javé parece vir de uma forma imperfeita do verbo hebraico hãyâ, "ser" ou "tomar-se". Albright argumentou que o nome vem da forma hifil (causativa) do verbo, de modo que significa "aquele que causa a existência" e, portanto, "o criador". Muitos dos alunos de Albright apresentam propostas semelhantes. David Noel Freedman entende que o tetragrama YHWH deve ser traduzido "ele cria".71 Frank Cross pensava que Javé era originariamente um nome cultual de El. A frase cultual "El que cria" tomou-se mais tarde "Javé, o criador".72 Philip Hyatt afirmou que em lugar de ver Javé como uma divindade originariamente criadora, devia-se entendê-lo como a divindade padroeira de um dos ancestrais de Moisés. Seu nome poderia ter significado "ele causa a existência (do ancestral)" ou "ele sustenta (o ancestral)".73 10 The Book o f Exodus, 67. 11 "The Name o f the God of Moses", 155. 72 "Yahweh and the God o f the Fathers', 225-259. 73 "Was Yahweh Originally a Creator Deity?", 376. O C o n h e c im e n t o de Deus 113 William Brownlee, especialista no material de Qumran, entende com base no uso que o Manual de Disciplina faz de 1Samuel 2.3 e em outros indícios que o significado de Javé deve ser "aquele que faz acontecer".74 Brownlee disse que esse nome combina com o anúncio de que Javé livraria os hebreus da escravidão. A situação deles parecia desesperadora. O que eles precisavam era a garantia de que o Deus deles, Javé, podia fazer as coisas acontecerem e cumprir as promessas que lhes havia feito por intermédio de Moisés.75 A idéia de que Javé significa ”o criador" pode ser questionada seriamente porque se baseia na pressuposição de que o nome Javé vem da forma hifil (causativa) do verbo "ser". A forma hifil desse verbo jamais ocorre no Antigo Testamento.76 Tanto Jacob como von Rad criam que o significado básico de Javé é "presença", "estarei convosco" (Êx 3.12; cf. Gn 28.20; Js 3.7; Jz 6.12).77 Terrien disse: "Ao vacilante Moisés, Javé primeiro deu segurança ao afirmar: ‘Estarei contigo’".7' Pela revelação de seu nome, Javé, "Eu sou" ou "Eu serei", Deus estava prometendo sua presença a Moisés. Deus estaria com ele. Na Grande Comissão, Jesus prometeu estar com os discípulos sempre, até o fim dos tempos (Mt 28.20). Deus estava se revelando quando deu seu nome a Moisés? Ou estava sendo evasivo, recusando-se a dar uma resposta a Moisés, quando disse: "EU SOU O QUE SOU" (Êx 3.14)? Deus recusou-se a dar o nome a Jacó (Gn 32.30) e a Manoá (Jz 13.17-18). A. M. Dubarle concluiu que Deus recusa-se a revelar o nome a Moisés em Êxodo 3.14 porque isso comprometeria sua liberdade de ser Deus. Dubarle entendia que Deus estava dizendo: "Meu nome não lhe diz respeito".79 Ludwig Köhler também interpretou Êxodo 3.14 como uma resposta evasiva à pergunta. Deus é o deus absconditus.*0 Alguma ambivalência aparece no texto, mas o propósito principal é revelar o que Deus fará, e não a essência de seu ser. Assim, embora Javé tenha revelado seu nome a Moisés e a Israel e se tenha permitido ser "invocado" por eles, ou "se entregado" em compromisso e confiança só a Israel, ele ainda manteve sua liberdade. ” "The Ineffable Name o f God", 39-45. ” Ibid., 45. x Jacob, op. cit., 50. 77 Ibid., 53; von Rad, O ld Testament Theology I, 180 (no Brasil, Teologia do AT, 2 vols., pela ’* The Elusive Presence, 118. ” "La Signification du nom de Jahweh", 3-21. 10 Old Testament Theology, 242, n. 38. ASTE). 114 T e o l o g ia do A n t ig o T e s t a m e n t o Zimmerli disse que a liberdade de Javé significa que ele jamais é um simples objeto. Ainda que se tenha revelado liberalmente, ele deu o Terceiro Mandamento do Decálogo para proteger essa liberdade contra "abusos religiosos".81 D. A origem do nome O nome Javé é mais antigo que Moisés? Javé aparece como nome de Deus a partir do segundo capítulo de Gênesis. Entretanto, Êxodo 6.3 diz: "Apareci a Abraão, a Isaque e a Jacó como Deus Todo-Poderoso; mas pelo meu nome, O S e n h o r [Javé], não lhes fui conhecido". Por indícios bíblicos e extrabíblicos, é provável que o nome divino Javé existisse fora de Israel antes de Moisés; mas ainda não temos prova conclusiva disso. O elemento "Jo" em Joquebede, nome da mãe de Moisés, dá a entender um uso bíblico de Ja (Yah) antes de Moisés. A respeito de indícios extrabíblicos, P. D. Miller disse: "O nome ‘Javé’ em si é agora amplamente confirmado em inscrições na Judéia (mais de trinta casos) e não há referências a outras divindades".82 Childs disse que devemos reconhecer os cognatos do nome divino encontrados no antigo Oriente Próximo e até contar com uma longa pré-história do nome antes de sua entrada em Israel, mas o autor permaneceu aberto à possibilidade de Israel ter atribuído um significado totalmente novo ao nome.83 Walter Harrelson admitia que o aparecimento da crença em Deus sob "o nome pessoal Javé é anterior ao período mosaico".84 W. H. Schmidt chegou a dizer: "O nome Javé não se restringe a Israel e, além disso, é anterior ao Antigo Testamento, ou seja, é bem possível que não seja israelita de origem".85 R. W. L. Moberly alegou recentemente com veemência que o nome Javé foi primeiro revelado a Moisés e que empregos anteriores em Gênesis são anacronismos.86 Podemos concluir apenas que a questão da origem do nome Javé ainda não tem resposta. Old Testament Theology in Outline, 2 1. "Israelite Religion", 206, 217. The Book o f Exodus, 64. “ "Life, Faith, end the Emergence o f Tradition", 21. The Faith o f the Old Testament, 58. "■ Veja R. W. !.. Moberly, The Old Testament o f the Old Testament, 5-6. O C o n h e c im e n t o de Deu s 115 E. O nome de Deus e sua presença Deuteronômio fala com freqüência de fazer o nome de Deus "habitar" ou "morar" em certo lugar (Dt 12.5, 11). Obviamente, Israel não podia contar demais com a presença de Deus na adoração. Só Deus podia garantir sua presença. O nome de Javé representa sua presença, poder e autoridade. Talvez esse seja o motivo pelo qual o nome Javé ocorre com tanta freqüência (cerca de 6.700 vezes) no Antigo Testamento, enquanto Elohim só ocorre 2.500 vezes. Javé, não Elohim, era o nome do Deus a ser cultuado. Durante boa parte da história do Antigo Testamento o nome Javé parece ter sido usado livremente por todo e qualquer israelita. Mas no período pós-exílico o nome foi retirado do uso geral, provavelmente por temor do julgamento divino, caso o nome fosse pronunciado em vão. Na época de Jesus o nome era usado só em certas ocasiões no Templo, mas não mais nos cultos em sinagogas. Essa hesitação em pronunciar o nome reflete-se na maneira pela qual o nome aparece no texto massorético. Em geral ele aparece como quatro consoantes, YHWH, junto com as vogais da palavra ’âdonay, criando uma combinação ("Jeová") que nenhum israelita jamais pronunciava. Em Israel, no pré-exílio, é provável que o nome fosse pronunciado Javé. A palavra Jeová reflete a pronúncia alemã, uma vez que o J alemão é usado em lugar do Y, e o Wé pronunciado V em alemão. A pronúncia de Jeová jamais foi usada pelos judeus. Eles liam e pronunciavam a palavra como " ’àdonay". Entretanto, quando a palavra aparece antes do tetragrama na Bíblia Hebraica (310 vezes), as vogais da palavra elohim são usadas com as quatro consoantes, e a palavra é pronunciada "Elohim". F. Resumo Javé era o nome especial de Israel para seu Deus. Ao revelar seu nome a Moisés e, por sua vez, a Israel, Deus escolhe ser descrito como "o definível, o distintivo, o indivíduo. Desse modo a fé israelita opõe-se ao conceito abstrato de divindade e também contra uma ‘base de existência’ sem nome. Tanto os equívocos intelectualistas de Deus como os místicos são rejeitados".17 17 Eichrodt, Theology o jlh e O ld Testamtnt I, 206. 116 T f.o i .o c ia do A n t ig o T e s t a m e n t o Isso é bem diferente da descrição abstrata de Deus dada por Paulo Tillich, como aquele que é o mistério último, a profundeza infinita, a base, o poder e a fonte de todo ser.88 Essa definição não chega perto do Definido, o Deus Vivo, o Salvador Vindouro do Antigo Testamento. O nome Javé é um nome pessoal, não abstrato. Baseado numa forma do verbo "ser", relaciona-se de algum modo à idéia de existência: passada, presente e futura. Ele está ligado ao passado no que diz respeito a Moisés. Javé é o mesmo nome do Deus dos pais Abraão, Isaque e Jacó (Êx 3.16). Ele é também o Deus do futuro: "Este é o meu nome eternamente, e assim serei lembrado de geração em geração" (Êx 3.156). O nome também possui uma dimensão escatológica no Antigo Testamento. Pode haver uma ligação entre o nome Javé e a origem da escatologia, "pois um Deus que se define como "eu sou" não descansa até que esse ser e essa presença sejam concretizados em sua perfeição".89 O profeta do exílio podia referir-se a Javé como "o primeiro e o último, Criador, Senhor da história e único Salvador" (Is 41.4; 43.10; 44.6; 48.12-13; 49.6, 26; cf. Ap 22.13). Pelos atos poderosos de Javé na história, o faraó, os egípcios, as nações e Israel saberiam que Javé era Deus ("Eu sou Javé", Êx 7.5; 8.10, 22; 9.14; 10.2; Ez 20.26, 38; 24.24, 27; 34.27; 35.9, 15; 36.11, 23, 38; 38.23; 39.6, 28). Esse único Deus definível e distinto (Javé) escolheu um homem (Abraão) e um povo (Israel) e firmou uma aliança especial com eles. Por meio deles Deus abençoaria todas as nações. " Veja G. Emest Wright, The Rute o/G od, 16. " Jacob, op. cit., 54. 4 Eu serei o vosso Deus, e vós sereis o meu povo (eleição e aliança) 16. E vós sereis o meu povo (eleição) A. Tendências recentes no estudo da eleição Em 1950 H. H. Rowley lamentou o fato de a doutrina da eleição ter recebido pouca atenção em estudos bíblicos modernos.' Na realidade alguns artigos e livros sobre eleição no Antigo Testamento foram escritos antes da obra de Rowley, e a teologia do Antigo Testamento, que revivia na época, deu muita atenção a ela. Em 1928, K. Galling escreveu uma monografia, "Die Erwãhlungstraditionen Israels", em que afirma que o Antigo Testamento possui duas tradições da eleição divina de Israel, uma na época de Abraão e outra na época de Moisés. Galling afirmou que a última é a tradição mais antiga. Rowley reconheceu duas tradições de eleição no Antigo Testamento, mas defendeu a escolha remota de 1 The Biblical Doctrine o f Election, IS. 118 T e o l o g ia do A n t ig o T e s t a m e n t o Abraão, considerando-a substancialmente confiável. Rowley disse que Israel foi eleito em Abraão, mas essa eleição foi revelada por intermédio de Moisés.2 Em 1929, J. M. P. Smith afirmou que a fé dos israelitas em sua eleição firmava-se num orgulho natural de nação e raça e na fé em Javé, a quem representavam entre as nações.3 Rowley rejeitou a idéia de Smith, dizendo: "Se não tivesse uma base mais profunda que essa, possuiria pouca validade em si e não teria nada mais que um interesse histórico".4 Walter Eichrodt não dedicou uma seção especial para discutir a eleição. Ele ficou tão absorvido pela idéia de aliança, que a idéia de eleição ficou quase esquecida, mas considerou que ambas eram bem ligadas. Eichrodt disse: "Não se pode escapar do fato de que no Antigo Testamento o amor divino é absolutamente livre e não condicionado em suas escolhas; volta-se para um homem entre milhares e mantém o controle sobre ele com exclusividade zelosa, apesar de todas as suas deficiências".5 Eichrodt salientou que mesmo quando a palavra eleição não era usada, o povo e os profetas compreendiam que Israel ocupava uma posição especial entre as nações.6 G. Emest Wright considerou a eleição uma das principais chaves para compreender Israel e a fé veterotestamentária. "Eis o ponto central da literatura."7 Dois anos mais tarde, em 19S2, Wright discordou da idéia de Eichrodt de que a aliança é o principal elemento unificador no Antigo Testamento, insistindo que a eleição é mais básica que a aliança. "Ainda que as duas andem juntas, a última é uma linguagem conceptual para expressar o significado da primeira e faz considerável diferença qual delas recebe a ênfase principal."8 Wright disse que a inferência teológica inicial e principal do evento do êxodo foi a doutrina do povo escolhido. Entretanto, perto do fim da vida, Wright parece ter modificado sua postura sobre a relação entre a eleição e a aliança, concordando mais com Eichrodt em que a aliança é central.9 Em 1938 Wheeler Robinson observou que o Antigo Testamento descreve "a escolha divina de Abraão como indivíduo e segue a sorte de sua família até que ela se transforma em nação. Então a nação é libertada do Egito e se estabelece na terra prometida. Muito depois, emerge a doutrina de um remanescente justo (Is 7.3; 8.16-18)". Robinson disse que é difícil ver como qualquer religião revelada pode prescindir de uma doutrina de eleição, pois ela é o mandato para uma minoria J /AW, 30-31. 5 "The Chosen People*, 73-82. * The Biblical Doctrine o f Election, 16. 5 Theology o f the Old Testament 1 ,286. *Ibid., 269. 7 The Old Testament Against Its Environment, 47. ' God Who Acts, 36, n. I. * The O ld Testament and Theology, 62. Cu s e r e i o vosso D e u s, e v ó s s e r e i s o m eu p o v o 119 persistir em seu propósito como povo de Deus. O particularismo implicado pertence a cada missão importante e não é marca de provincialismo na religião.10 Em 1946 Robinson escreveu que a doutrina da eleição abre-se para todo o desenvolvimento da religião israelita e judaica e pode ser tomada como o principio mais abrangente de unidade nela contida, depois da ênfase básica na unidade de Deus. Ele discordou de Eichrodt em que a doutrina da eleição deva ser subordinada à da aliança." Em 1953 John Bright destacou a importância da doutrina da eleição no Antigo Testamento, dizendo: "Não encontramos em sua história nenhum período em que Israel não cresse que era o povo escolhido de Javé [...] A história da Bíblia remonta essa história da eleição a Abraão, mas foi no evento do êxodo que Israel viu seu verdadeiro início como povo".12 Bright cria que isso não era uma noção esotérica apresentada por líderes espirituais. O povo estava saturado daquilo. Em 1967 Bright escreveu que, entre o complexo de crenças no Antigo Testamento, destaca-se a palavra eleição. Sempre que se examina o Antigo Testamento, encontra-se a convicção obstinadamente mantida de que Javé, em sua graça soberana, chamou Israel para si, livrou-o da escravidão e lhe deu a terra prometida, e que Israel, portanto, ocupa uma posição especial entre as nações da terra como seu povo escolhido [...] A crença na eleição de Israel percorre todo o Antigo Testamento, tanto no início como depois. Em parte alguma do Antigo Testamento falta uma pressuposição tácita ou afumação confiante de que Javé chamou Israel dentre todas as nações da terra para ser seu povo escolhido.13 Em 1953 Th. C. Vriezen publicou uma monografia sobre eleição no Antigo Testamento, nele limitando o pleno significado de eleição ao termo bãhar, "escolher". Assim, ele chegou a um significado restrito de eleição, secundário à aliança e datado do século vil.14 Ele concordava que a maior parte do Antigo Testamento preocupa-se com o relacionamento entre Javé e Israel, embora outras vozes, como Rute, Jonas e (Segundo) Isaías, sejam ouvidas, lembrando a Israel que a graça de Deus estende-se também às outras nações.15 Vriezen disse: "No Antigo Testamento, a escolha é sempre ação de Deus, de sua graça, e sempre contém uma 10 Record and Revelation, 327. " Inspiration and Revelation, I S3. 11 The Kingdom o f God, 27. ” The Authority o f the O ld Testament, 132. 14 "Die Erwählung Israels’, 35. 15 Outline o f Old Testament Theology, 314. 120 T e o l o g ia do A n t ig o T e s t a m e n t o missão para o homem; e é só por essa missão que o homem pode compreender a escolha de Deus".16 Vriezen viu no fato de Deus eleger Israel como sua possessão uma fonte de tensão e um paradoxo no Antigo Testamento. Por um lado, Deus escolheu Israel e lhe advertiu que não tivesse nenhuma ligação com outras nações. Por outro, Deus escolheu Israel para servir a ele e às outras nações. Se nos concentrarmos em um aspecto dessa doutrina, vamos compreendê-la mal, e ela se toma falsa. Por exemplo, a verdade da eleição de Israel é inaceitável se for racionalmente interpretada para significar que por esse motivo Deus rejeitou as nações do mundo, que por esse motivo Israel é mais importante para Deus que as outras nações, pois Israel só foi eleito para servir a Deus na tarefa de levar as outras nações a Deus. Em Israel Deus buscava o mundo. Israel era o ponto de ataque de Deus ao mundo. Quando, pelo conhecimento de que era povo de Deus, Israel deduzia a certeza de sua eleição especial e, por isso, considerava-se superior à outras nações, os profetas precisavam contradizer isso e chamar o povo de volta ao Deus vivo, cuja misericórdia é grande para com Israel, mas também para com o mundo. Pois, em sua misericórdia, Deus chamara Israel para o serviço de seu reino entre as nações da terra.17 A eleição, de acordo com Vriezen, é a manifestação da majsstade e da santidade de Deus e implica o direito de tomar decisões que transcendem a humanidade.18 Vriezen fez distinção entre Erwählung, "eleição", e Erwahlheit, "sentimento de eleito", "sentimento de escolhido", o sentimento de orgulho em ser eleito. A eleição é legítima; o sentimento de eleição, não.19 Num longo trecho sobre eleição, Edmund Jacob disse que a eleição é uma das realidades centrais do Antigo Testamento. Embora seja mencionado com menos freqüência que a aliança, é o ato inicial pelo qual Javé passa a se relacionar com seu povo e a realidade permanente que pressupõe a constância desse laço. Cada intervenção de Deus na história é uma eleição.20 Jacob concordou com Rowley em que a eleição no Antigo Testamento é só para serviço. Ele cria que o fato da eleição em Abraão e Moisés é mais antigo que a teologia da eleição no javista e no deuteronomista. Jacob disse: "Havia no “ "Die Erwählung Israels", 109. 17 Outline o f Old Testament Theology, 88. "Ib id ., 316. 15 "Die Erwählung Israels", 1 IS. 20 Theology o f the Old Testament, 201. EU SEREI O VOSSO DEUS, E VÓS SEREIS O MEU POVO 121 movimento que os levou [os patriarcas] de Harã a Canaã algo que correspondia a uma eleição, e parece impossível ver na religião dos patriarcas uma simples retroprojeção de formas de crença que só foram correntes cinco séculos mais tarde".21 Von Rad falou com freqüência de eleição no Antigo Testamento, ainda que não tenha devotado uma seção à parte para o tema em Old Testament Theology. No início de sua obra ele afirmou que a crença posterior na eleição de Israel já está implícita no "culto pré-javista dos ancestrais" de Israel.22 O conceito de eleição é usado primeiro numa base teológica ampla por Deuteronômio numa data relativamente tardia, mas "a crença de que Javé tomou Israel como seu povo peculiar é, claro, antiqüíssima".23 Um dos aspectos que interessou von Rad quanto à perspectiva veterotestamentária da eleição é seu relacionamento com a lei ou os Dez Mandamentos. Ele esclareceu a perspectiva do Antigo Testamento de que a eleição ou o ato salvador veio antes da lei e dos Dez Mandamentos. Guardar a lei não era uma condição de sua salvação, mas uma expressão complementar da graça de Deus para com ele como povo eleito. "Ora, não pode haver nenhuma dúvida de que é a proclamação do Decálogo sobre ele que leva a efeito a eleição de Israel [...] os destinatários são assim resgatados por Javé."24 Sempre há uma relação estreita entre os Mandamentos e a aliança: ... mas em circunstância alguma esses mandamentos foram prefixados à aliança num sentido condicional, como se a aliança só tivesse efeito depois de rendida a obediência. A situação é, antes, inversa. A aliança é feita e, com ela, Israel recebe a revelação dos mandamentos [...] Ele [o Decálogo] era a garantia de sua eleição.25 Von Rad de fato reconheceu certas passagens em que as bênçãos da salvação são condicionadas pela obediência de Israel, dependendo dela (Dt 6.18; 7.12; 8.1; 11.8-9; 16.20; 19.8-9; 28.9). Mas mesmo com isso "a grande oferta de graça de Deuteronômio não é, de modo algum, anulada, proclamando-se um mejo legal de salvação. Mesmo os casos que parecem tomar a salvação condicional e dependente do progresso de Israel são prefaciados por uma declaração de eleição e amor de Javé".26 21 Ibid., 205. ° O ld Testament Theology I, 7 (no Brasil publicado pela ASTE sob o título Teologia do Antigo Testamento). “ Ibid., I, 178. “ Ibid., I. 192. 11 Ibid , I, 194. 26 Ibid., I 230. 122 T e o l o g ia do A n t ic o T e s t a m e n t o Von Rad cria que o conceito de eleição de Israel dissolveu-se antes da época do Cronista. O Cronista usou o verbo bShar, "escolher", onze vezes, mas os objetos dessa eleição divina são o rei, o lugar para culto ou a tribo de Levi. "O Cronista não diz absolutamente nada a respeito da eleição de Israel —nem mesmo tem conhecimento de uma teologia da aliança."27 Os profetas tomaram normativas algumas tradições anteriores de eleição. Entretanto, as tradições de eleição nem sempre eram as mesmas para todos os profetas. Oséias e Jeremias mantiveram-se nas tradições do êxodo, enquanto Isaías permaneceu nas tradições davfdicas.21 Os profetas do pós-exílio, de acordo com von Rad, criam que Israel havia infringido a aliança com Deus e estava para sofrer seu julgamento, selando o fim da presente existência da nação. Sua culpa cancelava a segurança que essas tradições de eleição davam a Israel. No exílio o profeta estava familiarizado com três tradições antigas de eleição: o êxodo (Is 41.27; 46.13; 49.13; 51.3, 11, 16; 52.1, 7-8); Abraão e Jacó (Is 41.8; 43.22, 28; 51.1-2); e Davi (Is 55.3) e Sião (Is 46.13; 49.14-21; 52.1-2). O profeta voltou os olhos para o futuro e viu um novo êxodo, um novo Davi e uma nova Sião. Por fim, o livro de Daniel não baseia suas predições em tradições de eleição anteriores. O êxodo e Sião parecem colocar-se fora do mundo mental de Daniel. "O horizonte religioso do orador parece quase não ter ligação com os eventos reais da história; ele exalta a grandeza do poder de Deus, que pode fazer e desfazer reis, salvar homens e os libertar. A sabedoria iluminadora de Deus é também louvada, bem como a indestrutibilidade de seu reino."29 As duas principais tradições de eleição no Antigo Testamento são o êxodo, preservada e mantida basicamente no reino do Norte, e as davídicas, no reino do Sul. As vezes essas tradições se misturavam. Os profetas reinterpretaram as tradições como se já não tivessem efeito, mas Deus voltaria a agir em favor de seu povo num novo êxodo, num novo Davi e numa nova Jerusalém. Hans Wildberger afirmou num artigo, "Auf dem Wege zu einer biblischen Theologie", que o conceito central do Antigo Testamento é a eleição de Israel como povo de Deus. Ele expandiu sua discussão da eleição no Antigo Testamento no artigo "bchr, erwählen". Walther Zimmerli observou que Javé não era o Deus de Israel desde o início do mundo. Israel não aparece como povo até o livro de Êxodo.30 Ainda que a teologia da eleição tenha sido formulada depois (o uso de bãhar no sentido de 27 Ibid., /, 353. “ Ibid., Il, 117. ” Ibid., Il, 309. K O ld Testament Theology in Outline, 14. EU 8EIU IO VOSSO O n iS , I VÓ6 SEREIS O MEU fOVO 123 Deus escolhendo Israel não ocorre antes de Deuteronômio), o relato do chamado de Abraão em Gênesis 12 contém as raízes da vida de Israel como povo de Deus.31 Zimmerli reconheceu que a terminologia da eleição inclui palavras hebraicas diferentes de bãhar (escolher). Qara ’(chamar), yãda' (conhecer), bãdal (separar) e hãzaq (deter), são também empregadas no contexto de eleição, embora não se encontre no Antigo Testamento nenhum substantivo que signifique "eleição".32 Zimmerli discutiu o porquê de Deus ter escolhido Israel e indicou a resposta do Antigo Testamento de que Deus amou os pais (Dt 7.8). Então ele perguntou o que a eleição divina significava para o eleito. Significava honra, santidade, mediação e serviço.33 Zimmerli observou que a eleição era aplicada ao rei no período pré-deuteronômico (ISm 8.18). Também era aplicado aos sacerdotes, especialmente à tribo de Levi (Nm 16.5; 17.2-10) e ao templo. Por fim, Zimmerli discute por que os profetas pré-exílicos quase nunca falam da eleição de Israel. Só Amós (3.2) e Jeremias (1.5) usam tal terminologia. Zimmerli cria que esse silêncio não se devia ao fato de os profetas pré-exílicos não conhecerem as tradições de eleição, conforme alegava Galling. Antes, o silêncio deles "mostra como os profetas são críticos em relação a todas as alegações convencidas, da parte de Israel, de ser o ‘povo escolhido’".34 Ronald Clements disse que, quando perguntamos por que Israel é o povo de Deus de maneira singular, o Antigo Testamento responde com uma teologia da eleição. Deuteronômio 7.6-8 é a passagem clássica dessa teologia. A forma dessa teologia é deuteronômica, mas "as idéias principais de tal teologia são com certeza muito mais antigas".35 Para Clements o livro de Deuteronômio é normativo para a teologia da eleição no Antigo Testamento. Ele vê a relação de Israel com as outras nações mais da perspectiva de crise e ameaça que da perspectiva de uma missão. Em Deuteronômio, Israel não tem função de serviço às nações.36 Entretanto, o javista disse que Abraão (e, por inferência, Israel) seria uma bênção para as nações. Nos cânticos do servo em Isaías, Israel será uma luz e um servo para as nações. Samuel Terrien disse: A separação de Israel de todos os outros povos destaca a idéia de eleição, embora a palavra ainda nSo seja empregada. Ser o objeto de um amor singular significa “ser escolhido”. A eleição é pressuposta na consciência emocional de “predileção”. Israel, porém, não é amado num vácuo 51 Ibid., 27,44. MIbid., 44. ” Ibid., 45. MIbid., 47. ” Old Testament Theology, 88. “ Ibid., 95. 124 T e o l o g ia oo A n t ic o T e s t a m e n t o histórico. Javé nSo é diletante. Israel é amado para que se tome o reino sacerdotal de Javé na história do mundo.37 Detectamos no livro de Terrien um distanciamento da forte ênfase na eleição por parte de alguns estudiosos da Bíblia. A importância decrescente da doutrina da eleição nas teologias do Antigo Testamento evidencia-se ainda mais na obra de Claus Westermann. Ele disse que por um longo tempo a idéia de eleição desempenhou papel importante na teologia do Antigo Testamento. Ela designava todas as ações de Deus em relação a Israel. Westermann limitou a idéia de eleição ao uso técnico de bãhar, "escolher", que, dizia, jamais é empregado em referência aos patriarcas ou ao êxodo, tendo sempre uma função subseqüente, interpretativa. "Não foi a eleição divina que fez de Israel seu povo, mas, antes, seu ato salvador no inicio. Esse ato de Deus foi explicado por uma reflexão subseqüente tal, que Deus elegeu Israel."3* Westermann afirmou que não se compreende bem o conceito de eleição quando se fazem alegações a seu respeito. Não devemos generalizar o conceito de eleição ou falar num sentido abstrato "sobre a tradição da eleição, a condição da eleição ou sobre um povo eleito".39 Byron Shafer argumentou que, de acordo com Deuteronômio 7.7-8, Deus escolheu Israel como seu povo simplesmente porque o amava e havia feito uma promessa a seus pais (cf. Dt 4.37; 10.15; 2Rs 19.34; Is 37.35). A eleição no Antigo Testamento não é necessariamente uma escolha racional por uma razão verificável. Às vezes a única explicação dada é "porque Deus vos ama".40 Shafer fez objeção a uma data tardia para a eleição de Israel, citando quatro evidências que sustentam uma data antiga. ( 1 ) 0 padrão da eleição real divina na literatura do antigo Oriente Próximo não é suficiente para explicar o uso que Israel faz de bãfrar, "escolher". (2) Evidências de nomes teofóricos que empregam a raiz bhr remontam a 1900 a.C. no antigo Oriente Próximo (nomes como Ibar ocorrem em 2Sm 5.15; lCr 3.6; 14.5). (3) A idéia veterotestamentária de eleição de Israel não se moveu do âmbito mítico da eleição real divina para a escolha histórica de Israel, porque nas passagens mais antigas de Deuteronômio (10.14-15, 17-18, 2122; 11.3-7, 10-12) e no salmo 47 Javé é um Deus cósmico ou universal. (4) A idéia de que a eleição dos patriarcas é uma retroprojeção tardia é questionada porque todas as passagens-chave em Deuteronômio (4.32-40; 7.7-8; 14.1-2) ligam a 31 The Elusive Presence, 124. “ Elements o f O ld Testament Theology, 4 1. ” Ibid., 42. « "The Root bitr, 20. EU SEREI O VOSSO DEUS, E VÓS SEREIS O MEU rOVO 125 eleição de Israel à promessa aos patriarcas. O estudo dos salmos antigos, como o 47, sustentam a prioridade da eleição dos patriarcas. Shafer foi influenciado pelas idéias de Frank M. Cross a respeito de El ser o Deus dos patriarcas. Cross citou Gênesis 28.10-22 como o exemplo remanescente mais completo do padrão patriarcal de aliança na Bíblia Hebraica.41 A tese de Shafer é que a antiga raiz bhr pode ser associada aos deuses dos patriarcas nas sociedades tribais do antigo Oriente Próximo. Além disso, ele afirmou que os conceitos de povo escolhido em Deuteronômio e Salmos podem ser interpretados como "remanescentes, extensões, desenvolvimentos e/ou revisões de conceitos religiosos patriarcais”42 Shafer e Frank Cross criam que o conceito de eleição remonta aos dias em que o patriarca e seu Deus faziam alianças recíprocas. Tais alianças eram condicionais, mas o Deus dos patriarcas era também visto como uma divindade cósmica e agrária que prometia dar a terra aos patriarcas e à sua estirpe. Assim, sobrevivem duas concepções de eleição e aliança desde épocas patriarcais: a condicional e a promissiva (ou incondicional). Shafer seguiu Cross ao ver uma mudança radical na época salomônica, passando da eleição condicional para o padrão de uma "aliança eterna, incondicional" com a dinastia de Davi. Após a morte de Salomão e a divisão do reino, a antiga idéia de uma eleição condicional aflorou de novo no Norte. A idéia incondicional continuou no Sul.43 Após a queda de Jerusalém em 586 a.C., as tensões entre as duas idéias de eleição continuaram pelos períodos do exílio e do segundo templo.44 Shafer usou os salmos 47, 78 e 89 para traçar as tradições patriarcal e davídica em Israel. A eleição é um tópico importante na última obra de Christoph Barth, God With Us*$ A eleição dos patriarcas é um elemento básico no credo de Israel. As histórias dos patriarcas são contadas só em Gênesis. Pouco se diz sobre eles em outros livros do Antigo Testamento. A eleição dos pais é, porém, artigo de muitos credos de Israel. Em alguns credos vem em primeiro lugar (Dt 26.5-9; Js 24.2-13; ISm 12.8). A criação vem antes dela em Neemias 9.6-31. Os pais são deixados fora de algumas recitações do credo (Dt 32.6-14; SI 135; 136; Jr 32,17-23). Christoph Barth disse que as partes essenciais do credo eram o êxodo e a dádiva da terra. "Nem a criação nem a eleição dos pais tem a mesma prioridade”.44 O tópico da eleição dos pais é complementar ao êxodo e à dádiva da terra. Israel não se tomou uma nação antes de sair do Egito (Ez 20.5-6; Os 11.1; 12.9; 41 Cf. Cross, Canaanite Myth and Hebrew Epic, 244-245; Shafer, op. ell., 36. 41 Shafer, op. cil., 30, 33. 45 Ibid., 38-39. 44 Ibid., 42. 45 1991. 46 God With Vs, 34. 126 T e o l o g ia do A n t ig o T e s t a m e n t o 13.4; Am 3.1). Christoph Barth diz que só foi depois do êxodo que Israel reconheceu descender dos patriarcas. "Essa é a seqüência correta também para os leitores modernos."47 Emest Nicholson retomou as questões de eleição e aliança no Antigo Testamento. Ele observou que, desde Wellhausen, o estudo da aliança (ao menos para alguns) havia "escorrido pelo chão, deixando a ‘aliança’ como um conceito antiquado para o estudante do Antigo Testamento". Ele disse que o debate entre os estudiosos tem possibilitado ver com mais clareza "como era crucial a idéia da aliança no desenvolvimento do que é característico na fé do antigo Israel". A aliança é um tema central e "merece ser recolocada diretamente na pauta dos estudantes do Antigo Testamento".4* Nicholson observou que F. Giesebrecht primeiro questionou a idéia de Wellhausen de que a antiga relação de Israel com Javé era uma relação natural —como a de pai e filho. Isso fez Israel semelhante às outras nações na maneira de ver seu relacionamento com seus deuses. Giesebrecht alegou que a relação de Israel era baseada na história, não tendo emergido como parte de uma "religião natural".49 Desde o início, foi a crença na eleição divina que moldou a direção peculiar. Ela trouxe consigo um exclusivismo agressivo e "uma crença na incomparabilidade de Javé".30 B. O vocabulário da eleiçAo A palavra bShar, "escolher", é usada em referência à escolha divina dos patriarcas (Ne 9.7); Israel (Dt 4.37; 7.7-8; 10.15; 14.2; SI 105.43; Is 44.1-2; Ez 20.5); Davi (2Sm 6.21; lRs 8.16; SI 78.70; 89.3); o lugar de culto (Dt 12.18, 26; 14.25; 15.20; 16.7, 16; 17.8, 10; 18.6; 31.11; Js 9.27; SI 132.13); e sacerdotes (Nm 16.5, 7; 17.5 [heb. 17.20]; Dt 18.5; ISm 2.27-28). Outros termos hebraicos são usados para expressar a idéia de eleição no Antigo Testamento. A palavra qira', "chamar", é usada em relação a Abraão em Isaias 51.2 (cf. Gn 12.1-3), a Samuel (ISm 3.4-21) e a muitos profetas. A palavra y S d a "conhecer", é empregada no sentido de "escolher" ou "eleger" em Gênesis 18.19 e Amós 3.2. Herbert Huffmon demonstrou que palavras mesopotâmicas equivalentes a y S d a "conhecer", são empregadas na literatura do antigo Oriente Próximo para " Ib id ., 39. ** God and His People, v. M Die Geschichtlichkeit des Sinaibundes, 25. * Nicholson, op. cit., 23. Eli s e r e i o vosso D e u s, e v ó s s e r e i s o m eu rovo 127 indicar o reconhecimento legal mútuo por parte do suserano e do vassalo.51 Num texto se diz a Assurbanipal: "Tu és o rei a quem o(s) deus(es) conhece(m)". Huffmon encontrou paralelos a esse linguajar nas referências do Antigo Testamento a Abraão (Gn 18.19); Moisés (Êx 33.12, 17); Ciro (Is 45.3-4); Davi (2Sm 7.20); lCr 17.18); Jeremias (1.5) e Israel (Am 3.2; Os 13.4-5). A palavra bãdal, "separar" ou "pôr à parte" no sentido de Deus separar Israel das nações é usada para indicar eleição em Levítico 20.24; Números 8.14; 16.9; Deuteronômio 10.8. A palavra mãsa', "encontrado", é usado com o sentido de "eleição" em Deuteronômio 32.10; Salmo 89.21; Oséias 9.10; e o termo lãqah, "tomar", é usado em Êxodo 6.7 e Deuteronômio 4.34. Os termos "amor" e "ódio" em Gênesis 29.31 e Malaquias 1.2-3 são termos de "eleição".52 C. As objeções à eleição Podemos ver pelo uso desses termos que a idéia de que Deus escolheu ou elegeu os patriarcas e Israel está incutida no Antigo Testamento. Mas a idéia nem sempre foi devidamente compreendida por aqueles que eram "chamados". Os profetas do pós-exílio raramente mencionavam o conceito e, quando o faziam, em geral pronunciavam julgamento contra os "escolhidos" por rejeitarem seu chamado. A partir de seu chamado, Israel com freqüência chegava a conclusões contrárias ao verdadeiro entendimento do amor de Deus —a base de seu chamado. Jacob disse: "Eles se obstinavam num exclusivismo rígido, interpretando sua eleição, que se tomara uma concepção enrijecida, como dever de odiar e questão de orgulho".53 Amós viu que Israel interpretava mal a eleição como privilégio sem responsabilidade. A maioria dos contemporâneos de Amós confundia eleição com privilégio e favoritismo. "Eles pareciam sentir que se Deus os havia escolhido, precisava amá-los mais que a todos os outros; assim, podiam contar mais com bênçãos de Deus e menos com o seu julgamento severo".54 Deuteronômio 9 condenava com vigor o pecado fatal do orgulho. A doutrina veterotestamentária da eleição não dá lugar ao orgulho. Quando alguém começa a usar o termo "escolher", surgem de imediato as idéias de exclusividade, arbitrariedade, favoritismo ou privilégio especial. Norman Snaith disse que há uma exclusividade no amor de Deus. A idéia de eleição faz parte da "ofensa do evangelho" desde tempos muito remotos. Talvez 51 "The Treaty Background o f Hebrew Yada", 31-37 5! Ralph L. Smith, Micah-Malachi, WBC 32, 305. ” Theology o f the Old Testament, 111, 204. ” Ralph L. Smith, Amos, 100. 128 T e o l o c ia do A n t ig o T e st a m e n t o não gostemos da palavra "escolhido" ou de sua companheira, "eleição". A eleição e a escolha podem-nos ser detestáveis, "mas elas estão firmemente incutidas no Antigo e no Novo Testamento".55 Celsus fez forte oposição à doutrina veterotestamentária de eleição. Em caricatura, ele disse: Judeus e cristãos parecem-me um exército de morcegos ou formigas que sai de seu esconderijo, ou como sapos que se postam num brejo, ou vermes que se encontram no canto do monte de estrume dizendo um para o outro: “Para nós Deus revela e proclama tudo. Ele não se importa com o resto do mundo; somos os únicos seres com quem ele se relaciona [...] Tudo é sujeitado a nós: a terra, a água, o ar, as estrelas. Porque aconteceu de alguns de nós ter pecado, Deus mesmo virá ou enviará o próprio Filho para destruir o perverso com fogo e para nos dar participação na vida eterna.56 Em 1945 Paul Scherer, pastor da Evangelical Lutheran Church o f the Holy Trinity e professor de homilética no Union Seminaiy em Nova York, usou uma linguagem chocante para repreender os judeus. Sua percepção do entendimento que tinham da eleição era que os judeus pensavam que o propósito de Deus na história era beneficiá-los, quando na realidade era manifestar sua glória e estabelecer seu reino sobre a terra. Scherer observou que "por todo o Antigo Testamento e entrando pelo Novo, Israel é tratado como uma nação eleita".57 A Bíblia insiste que tudo o que ocorreu, seja o que for, não ocorreu só por eles. "Isso livra o céu de uma grande dose de responsabilidade e a lança onde deve!"5* Richard L. Rubenstein, um judeu moderno, fez objeção à doutrina da eleição. Depois de Auschwitz, os judeus ... jamais poderão voltar a crer com integridade no Deus que exerce controle providencial sobre os interesses humanos; o que ocorreu foi tfio monstruoso que não pode ser conciliado por meio das técnicas comuns de teodicéia com a existência de um Deus como esse, apesar das convicções da fé bíblica. Depois de Auschwitz, crer na providência no sentido tradicional é imoral, bem como impossível, uma vez que toma Deus um cúmplice de Hitler, desejando deliberadamente a matança do povo escolhido, sem nenhuma outra razão, senão o crime de ter sido escolhido.59 55 The Distinctive Ideas o f the O ld Testament, 139. 56 Citado por Cullmann, Christ and Time, 28. 51 Event in Eternity, 193. ” Ibid., 194. " After Auschwitz, citado por Alan T. Davies, Anti-Semitism and the Christian Mind, 36. Eu S E M I O VOSSO Drus, E VÓS SEREIS O MEU rOVO 129 Rubenstein escreveu que muitos israelitas modernos rejeitam por completo a teologia da aliança. Ele diz que embora a religião bíblica faça parte da herança de todo judeu, "muitos israelenses crêem tão pouco no Deus da Bíblia quanto os gregos contemporâneos crêem nos deuses homéricos. Israel tomou-se realidade quando os judeus pararam de aguardar a intervenção divina e tomaram a história nas mãos".60 Em seu livro, My Brother Paul, Rubenstein disse: "Sob a luz da história objetiva, nenhuma posição religiosa pode ser privilegiada".61 Gordon D. Kaufman da Harvard Divinity School pronunciou a acusação de que Deus era injusto e parcial quando se revelava em Jesus Cristo a alguns e não a outros. O argumento é que, em princípio, a verdade, em especial a verdade acerca da realidade última, deve estar disponível a todos. Um Deus que exerce favoritismo nesses moldes dificilmente seria considerado amoroso, mesmo um pai humano sabe que é errado fazer discriminação sem justificativa entre seus filhos. Kaufman disse em sua Systematic Theology que essas críticas comuns são manifestamente plausíveis; mas um exame detido revela serem demasiado enganosas, pois ninguém de fato crê que todas as pessoas têm igual acesso à verdade e à realidade. A verdade que podemos ou vamos conhecer é condicionada por fatores históricos e psicológicos entre outros. Nem todas as pessoas têm a mesma oportunidade de conhecer a verdade que Platão ou Einstein ensinaram por causa de fatos históricos ou circunstanciais. A verdade conhecida e cognoscivel é sempre relativa à situação histórica do conhecedor. A alegação cristã, portanto, de que Deus revelou-se especialmente pelo desenvolvimento histórico de uma comunidade, começando na antiguidade remota e desabrochando por fim numa igreja universal, pode não implicar escândalo algum.62 G. Emest Wright disse que as respostas às objeções à eleição são óbvi Israel pagou um terrível preço por sua eleição. A história de Israel fala de si mesma numa narrativa sórdida, triste. Quando Israel alegava ser o povo escolhido, dava a única explicação possível para ter sido libertado do Egito. É uma parte da explicação israelita de sua origem, não uma idéia tardia. "Escritores posteriores tomaram por certa a questão e a entenderam como a suprema manifestação da graça divina".63 “ Prefácio a Davies, op. cil., 12. “ My Brother Paul, 21. a Systematic Theology, 14. 61 The Old Testament Against Its Environment, 50. 130 T e o i -o c ia do A n t ig o T e s t a m e n t o D. O propósito da eleição O Antigo Testamento alega que Deus escolheu Israel como seu povo especial. Será que ele nos diz por que a escolheu? Sim e não. Algumas partes do Antigo Testamento parecem deixar a resposta a essa pergunta no âmbito do mistério, e estudiosos modernos têm considerado o mistério da eleição. O poeta A. E. Housman escreveu certa vez: "Que estranho/ Deus/ escolher/ os judeus".64 Norman Snaith disse que talvez não consigamos responder a essa pergunta, mas o ensino está ali, claro o bastante. Por que é escolhido este e não aquele? "Não temos resposta. Calvino tentou encontrar a resposta para as duas partes da questão, e sua resposta foi a predestinação. Lutero disse que Calvino errou porque tentou escalar a majestade de Deus. A primeira parte da pergunta (por que um é escolhido?) pode ser respondida. Deus escolheu esse porque o amava".65 Snaith não tinha resposta satisfatória para a segunda parte de sua pergunta: por que Deus não escolheu alguns? Algumas partes do Antigo Testamento respondem que Israel foi escolhido para ser uma bênção para as nações. A única pressuposição lógica é que a eleição de Israel deve de algum modo ser a resposta para a sina da humanidade. O profeta, portanto, não está elaborando nem aprofundando uma doutrina recém inventada quando proclama que Deus chamou Israel para ser "luz para os gentios" (Is 42.5-7). Talvez se deva notar que é Israel, o remanescente que sobreviveu do antigo Israel, que será a luz para os gentios. A eleição de Israel não era o que Celsus imaginou. A liberdade e o privilégio conferidos pela eleição eram limitados pelos propósitos independentes de Deus. H. H. Rowley observou que o Antigo Testamento alerta Israel de que n foi escolhido por sua bondade ou grandeza (Dt 7.7-8; 9.4-6). A doutrina da eleição cria um drama irreal. "Se Deus escolhe os dignos, então questiona-se sua graça; se ele escolhe os indignos, então questiona-se sua justiça."66 Rowley pensou que a consideração teleológica da eleição resolve o problema. O propósito de Deus na eleição era a revelação e o serviço.67 A eleição de Israel, portanto, não foi baseada no mérito, mas na graça misteriosa de Deus; e sua realidade é confirmada no êxodo do Egito. No exílio babilónico, pelo menos um profeta compreendeu que Deus escolheu Israel para ser uma luz para as nações e o instrumento de "seus propósitos redentores universais".6* “ Citado por Scherer, op. cit., 194. 65 Snaith, The Distinctive Ideas o f the Old Testament, 139. “ The Biblical Doctrine o f Election, 39. 47 Ibid., 39, 54-68. M Wright, God Who Acts, 20. Eu SCRU O VOSSO Deu*. C VÚ6 SEKIB O MCU r a v o 191 William LaSor disse que a doutrina bíblica da eleição é muito mal compreendida. Uma concepção comum é que Deus escolhe algumas pessoas e lhes dá passe livre para o céu, consignando o restante ao infemo. Não se faz nenhuma tentativa de compreender a pessoa, o caráter ou o propósito de Deus na eleição.69 "O ‘eleito* é uma pessoa ou comunidade de pessoas a quem Deus deu ou dá uma revelação especial, e por meio de quem Deus revelar-se-á a outras nações ou pessoas [...] A eleição no sentido bíblico sempre possui um propósito de missão [...] A eleição jamais é um fim em si; sempre Visa a um fim.M7° As palavras bihar e eklegomai são positivas e não expressam o sentido de rejeição do que não é escolhido. Elas destacam a idéia de seleção ou preferência sem nenhuma explicação de reprovação.71 A base da eleição no Antigo Testamento é a soberania de Deus. Jeremias retratou Deus como o oleiro com poder absoluto de transformar o barro em qualquer vaso desejado. Mas na mesma passagem Deus reserva o direito de "arrepender-se", caso uma nação se converta (Jr 18.1-6). La§or disse: "Nenhuma declaração da doutrina da soberania de Deus pode destruir sua soberania".72 Deus não é impulsivo. Sua vontade e todo propósito incluem sua sabedoria e seu amor. Ao lado da verdade da soberania de Deus deve-se colocar o ensino bíblico de que o homem foi criado "por um pouco, menor do que Deus" (SI 8.5). Cada pessoa possui uma vontade e é completamente responsável pelas decisões pessoais. As pessoas podem ser "eleitas, mas ainda devem clamar ao nome do Senhor para serem salvas (Jl 2.32; Mt 3.5). As pessoas não são meros fantoches, mas Deus é bondoso e longânimo (Êx 34.6-7). Por que Deus escolheu Abraão em vez de Harã (Gn 11.27)? O Antigo Testamento não responde a essa pergunta. Christoph Barth disse que Deus não precisa explicar os motivos de suas decisões. Ele tem livre escolha. Deus, é claro, tem motivos para fazer o que faz; mas a base ou os motivos de sua escolha não estão nas pessoas ou objetos escolhidos, mas em seu propósito.73 Deus não escolheu os pais ou Israel porque fossem bons ou fiéis. Que dizer dos não eleitos? Se os eleitos são privilegiados, os não eleitos seriam desprivilegiados? Eles podem ser privilegiados, mas não no mesmo sentido dos eleitos. Christoph Barth disse: "Eles têm função própria e não são colocados sob uma luz especialmente má. Eles não são necessariamente recusados, rejeitados ou amaldiçoados por Deus. Eles têm um lugar em seu plano".74 “ The Truth About Armagedom, 36. 70 Ibid., 41-42. 71 Ibid., 37. 73 Ibid., 43. 73 God With Us, 41. M Ibid., 44. 132 T e o l o g ia do A n t ic o T e s t a m e n t o A eleição é parte vital do material bíblico. Porque Deus amou ao mundo, escolheu Abraão e alguns de seus descendentes para ser um reino de sacerdotes e uma luz para as nações de sua graça salvadora. 17. Eu serei o vosso Deus (aliança) A. Tendências recentes no estudo da aliança A palavra hebraica bérít, "aliança", é importante no Antigo Testamento, mas, junto com o termo que significa "eleição", tem tido uma carreira teológica instável. Às vezes tem estampado o nome numa escola inteira de pensamento teológico, enquanto outras vezes é quase completamente alijada das discussões teológicas regulares —embora as duas partes de nossa Bíblia carreguem a palavra no título. O termo aliança é usado de modo desigual no Antigo Testamento. Partes do Antigo Testamento (Dt) fazem uso amplo do termo, enquanto os profetas préexílicos e a Literatura de Sabedoria o empregam raramente. Entretanto, a importância desse conceito não depende do lugar e da freqüência com que o termo berit é usado. 1) Interesse renovado na aliança (Eichrodt e Albright). Estudiosos Antigo Testamento de épocas mais remotas, como Oehler75 e Wellhausen76 discutiram a aliança, mas não a tomaram centro de sua apresentação dos dados do Antigo Testamento. De fato, Wellhausen ensinou que a aliança no antigo Israel era um "laço natural" entre Israel e Javé, como a de pai e filho. Ela não se baseava na observância das condições de um pacto. Significava "socorro" de Deus a Israel, com freqüência em tempos de guerra. O nome Israel significa "El batalha", de acordo com Wellhausen.77 A idéia da antiga aliança era um "socorro" de Deus em todas as ocasiões, "não ‘salvação' no sentido teológico. O perdão de pecados era uma questão de importância secundária".7* Wellhausen podia dizer isso porque não cria que a legislação sacerdotal que tratava do problema do pecado fosse mosaica. A Torá sacerdotal não teria surgido antes da época de Esdras.79 75 Theology o f the Old Testament, 175-178. 74 Prolegomena, 417-419. 77 Ibid., 434. ™Ibid., 469. n Ibid., 43». Eu S U E I O VOSSO Deus, E VÓ8 S U E IS O MEU POVO 133 Entretanto, os profetas do século VIII, com sua ênfase na justiça de Deus e sua exigência de justiça social, fez Wellhausen ver uma transição de uma aliança como laço natural para uma como pacto ou tratado. Os mandamentos eram entendidos como exigências ou condições das quais dependia a relação contínua entre Javé e Israel.*0 O laço natural entre Javé e Israel fora cortado. Muitos estudiosos aceitaram as idéias de Wellhausen sobre a aliança e consideraram a questão resolvida. Por um tempo, houve pouco debate entre eles sobre o assunto. Em 1900, F. Giesebrecht publicou sua influente monografia, Die Geschichtlichkeit des Sinaibundes, em que questionava a antiga teoria do "laço natural" da aliança concebida por Wellhausen. Giesebrecht alegou que a relação de Israel com Javé era historicamente fundamentada e não havia emergido, como no caso das chamadas religiões "naturais".*1 Antes de 1933 ninguém escreveu uma teologia do Antigo Testamento fazendo da aliança seu tema central. Walther Eichrodt foi o primeiro estudioso do Antigo Testamento a escrever uma teologia do Antigo Testamento em tomo do tema central da aliança. Eichrodt disse: O conceito da aliança recebeu essa posição central no pensamento religioso do AT, de modo que, trabalhando de dentro para fora a partir dele, a unidade estrutural da mensagem do AT pode tomar-se visível de maneira mais imediata [...] Pois o conceito de aliança abriga a convicção mais fundamental de Israel, a saber, sua consciência de uma relação singular com Deus. O ponto crucial não é —como uma crítica excessivamente ingênua parece pensar— a ocorrência ou ausência da palavra hebraica berit, mas o fato de que todas as declarações cruciais de fé no AT repousam no pressuposto, explícito ou não, de que um ato voluntário de Deus na história elevou Israel à dignidade sem igual de Povo de Deus, no qual sua natureza e propósito deviam ser manifestos. O termo “aliança” em si, portanto, é, por assim dizer, só a palavra-chave para uma certeza muito mais abrangente que formava um estrato muito profundo dos fundamentos da fé israelita, sem o qual, aliás, Israel jamais seria Israel. Como que para resumir a ação de Deus na história, “aliança” não é um conceito dogmático com cujo auxílio se possa desenvolver um “corpo de doutrina”, mas a descrição típica de um processo vivo que começou num tempo e espaço definido e que foi designado para tomar manifesta a realidade divina bem singular em toda a história da religião. As referências a esse processo vivo em cada capítulo desta obra não passarão despercebidos ao leitor atento.82 10 Veja Nicholson, "Israelite Religion in the Prc-cxilic Period", 3. " Giesebrecht, 25; veja Nicholson, God and His People, 23. u Theology o f the Old Testamen I, 17-18. 134 THM jO CU do A n t ic o T h t a m s n t o W. F. Albright concordou com a idéia de que a aliança domina toda a vida religiosa de Israel e que a idéia está presente muitas vezes quando o termo bérít nSo ocorre. No prefácio à segunda edição de From the Stone Age to Christianiíy, Albright disse que embora na primeira edição do livro tivesse destacado brevemente a origem pré-mosaica da aliança entre Deus e Israel, não havia reconhecido que o conceito de aliança ... domina toda a vida religiosa de Israel em tal medida, que a aparente posição extremada de W. Eichrodt é plenamente justificada. Não podemos compreender a religião, organização política ou a instituição dos Profetas dos israelitas sem reconhecer a importância da “Aliança”. A palavra em si aparece como uma incorporação de origem semita nos séculos xv a XII na Sfria e no Egito e remonta claramente aos primeiros períodos de Israel.*1 2) Paralelos à aliança veterotestamentária nos tratados do antigo Orie Próximo. E. Bikerman parece ter sido o primeiro estudioso a perceber a possível analogia entre os tratados dos reis hititas e seus vassalos e a relação de aliança entre Javé e Israel.14 George Mendenhall seguiu a opinião de Bikerman e afirmou que a fórmula do tratado hitita foi uma fonte primitiva da idéia veterotestamentária de aliança.*5 Mendenhall afirmou que as tribos de Israel não estavam unidas por laços de sangue, mas por uma aliança baseada na religião e moldada de acordo com os tratados de suserania pelos quais o grande rei hitita obrigava seus vassalos a serem fiéis e obedientes a ele.“ Mendenhall cria que esse tipo de tratado internacional (ou aliança) proveio somente do império hitita (1450-1200 a.C.) na época aproximada do início do povo de Israel. Isso fez a fórmula da aliança no Antigo Testamento datar do período mosaico.*7 O principal propósito do tratado de suserania era estabelecer uma firme relação entre o suserano e seu vassalo, incluindo-se o apoio militar do suserano. Entretanto, os interesses dos suserano eram dominantes. Sua forma era unilateral. As estipulações eram obrigatórias só da parte do vassalo, embora um prólogo muitas vezes relatasse atos benevolentes do suserano em favor do vassalo. ° From the Stone Age to Christianity, 16. M "Couper une alliance", 133-156; vej* também E. W. Nicholson, G od and His People, 57. “ Law and Covenant in Israel, 24-27. "A W ., 25-26. 17 Ainda que o« hititas usassem a forma de tratado de suserania, i provável que n to lhe tenham dado origem. Ela parece ter sido propriedade comum de alguns estados e povos no segundo m ittnio a.C., sendo conhecida e usada por povo« muito posteriores. Veja J. J. Roberts, 'A ncient Near Eastern Environment*, em The Hebrew Bible and Its M odem Interpreters, ed. Knight e Tucker, 93-94. EU SEREI O VOSSO DEUS, E VÓS SEREIS O MEU POVO 135 Os hititas ou babilônios não possuíam uma palavra que traduzisse contrato ou aliança, mas ambos usavam uma frase que significava "votos e compromissos". As obrigações específicas impostas ao vassalo eram chamadas "palavras" do soberano.88 Quando os impérios voltaram a prosperar, em especial a Assíria, a estrutura do tratado ou aliança pela qual obrigavam seus vassalos era inteiramente diferente. Mesmo em Israel, a fórmula mais antiga de aliança já não era de amplo conhecimento após a monarquia unida. Assim, a idéia de aliança em Israel deve ter sido antiga.89 Mendenhall concordava com V. Korosec em que seis elementos das alianças hititas têm paralelos na fórmula da aliança do Sinai no Antigo Testamento. Os seis elementos são: (1) um preâmbulo, a identificação do grande rei (cf. Êx 20: "Eu sou Javé, teu Deus"); (2) o prólogo histórico; (3) as estipulações (cf. as "dez palavras"); (4) depósito de uma cópia do tratado no templo do suserano e do vassalo; (5) a lista de deuses como testemunhas; e (6) as maldições e bênçãos (cf. Dt 28). A motivação para a obediência do vassalo não é o poder do rei, mas as maldições e bênçãos impostas pelos deuses. Os clãs que saíram do Egito eram de diferentes formações, incluindo uma multidão mista. No Sinai foram transformados numa nova comunidade por uma aliança. O texto dessa aliança era o Decálogo (Êx 34.28; Dt 4.13; 9.9). Israel não se comprometeu com Moisés, mas com Javé. Moisés foi o mediador da aliança. Mendenhall cria que a aliança foi o fator que unificou as tribos de Israel quando tomaram a terra dos reis cananeus. Em 1963,90 Dennis McCarthy publicou seu "Treaty and Covenant: A Study in Form in the Ancient Orient Documents and in the Old Testament". McCarthy traduziu muitos tratados hititas e assírios e os comparou com algumas passagens do Antigo Testamento. McCarthy concluiu em 1963 que a fórmula da aliança israelita lembrava a do tratado hitita; mas também disse que não podemos nos assegurar de que a fórmula em Israel remonta ao segundo milênio. "Simplesmente não sabemos qual pode ter sido a prática no que diz respeito a tratados de c. 1200-850 a.C.".91 Em 1972 Dennins McCarthy realizou um estudo completo das opiniões de estudiosos sobre a aliança veterotestamentária. Ele concordou com Mendenhall em que a evidência do uso israelita da fórmula de tratado "para descrever seu relacionamento especial com Javé é irrefutável".92 Entretanto, ele foi muito mais ” Mendenhall, op. cil., 31. ** Ibid., 30-31. * Rev. 1978. 91 McMarthy, "Treaty and Covenant: A Study in Form in the Ancient Orient Documents and in the Old Testament", 174. n Old Testament Covenant, 14. 136 T e o l o g ia do A n t ig o T e s t a m e n t o cauteloso que Mendenhall no uso da forma literária para defender uma data remota para passagens do Antigo Testamento que usam fórmulas de tratado. McCarthy também rejeitou a idéia de Mendenhall de que Israel foi formado pelos camponeses rebeldes de Canaã, não por clãs israelitas que invadiram a Palestina pelo deserto. Ele disse que essa reconstrução de Mendenhall "é interessante, mas dificilmente bem-sucedida. São simplesmente muitas as evidências que fazem dos hebreus, antes de sua entrada na Palestina, algo como nômades".93 Já em 1930 Martin Noth apresentou uma idéia, semelhante à de Mendenhall, de sociedade tribal israelita formada por uma aliança. Noth alegou que o povo a quem as leis do Antigo Testamento foram dadas constituía uma união sagrada de doze tribos a que ele chamou anfictionia. Essa anfictionia constituiu Israel, o povo de Deus, contra os cananeus. Noth disse que a confederação de doze tribos atribuía seu relacionamento com Javé, bem como a própria existência dela, à experiência singular de uma aliança feita entre Javé e Israel. A anfictionia também remontava sua entrada pessoal num relacionamento entre Deus e o povo a uma imagem tomada de um tipo de acordo judicial humano chamado aliança.94 Martin Noth, em sua idéia da aliança como a base de Israel, foi em grande parte influenciado pelo livro de Max Weber, Ancient Judaism.95 A tese de Noth foi apresentada de maneira tão competente e persuasiva, que quase se tomou consenso acadêmico. Entretanto, em anos recentes, tem-se tomado "o alvo de uma verdadeira barragem de crítica da parte de estudiosos que negam que tal anfictionia [...] tenha existido algum dia e que, em alguns casos, chegam a negar que a própria noção de aliança tenha sido determinante em Israel até data muito posterior".96 3) Crítica de paralelos entre a aliança e os tratados. Em 1962 H. M Orlinsky97 indicou que "anfictionia" não era um nome adequado para o Israel prémonárquico. As tribos eram muito independentes; não há indícios de um governo central ou de um complexo cultual central. Outros críticos precoces da teoria de Noth foram Roland de Vaux,9®A. D. H. Mayes99 e C. H. J. de Geus.100 G. W. Anderson analisou toda a hipótese de anfictionia e rejeitou grande parte dela. Ele não encontrou indícios em favor do nome "anfictionia" no Antigo Testamento e poucos indícios para sustentar o número doze para a liga tribal no " Ibid., 22. w "Das System der Zwölf Stämme Israels"; veja também Noth, The History o f Israel, 85-109. ” Veja uma análise da obra de Weber em Nicholson, God and his People, 38-43. 96 Bright, Covenant and Promise, 33. ” “The Tribal System o f Israel", Oriens Antiquus I, 11-20. ” The Early History o f Israel, 695-715. ” Israel in the Period o f the Judges. 100 The Tribes o f Israel, cap. 2. EU SEREI O VOSSO DEUS, E VÓS SEREIS O MEU POVO 137 Antigo Testamento. Poucos indícios sustentam a importância do santuário central no período pré-monárquico.101 Anderson negou as teorias de Noth e argumentou que a base para a unidade das tribos de Israel no período de assentamento não estava tanto no que aconteceu depois de entrarem na terra, mas no que aconteceu antes de entrarem em Canaã —a saber, a aliança do Sinai. Anderson disse: Parece natural, portanto, buscar o estabelecimento dessa unidade, não na emergência de uma anfictionia em solo cananeu na esteira de uma invasão, mas, antes, onde tanta tradição israelita antiga nos levaria a esperar encontrá-lo: no perfodo antes do estabelecimento e, mais especificamente, no estabelecimento da aliança do Sinai entre Javé e as tribos israelitas.102 Anderson ainda afirmou: "Procurar o estabelecimento dessa unidade em outra parte que não na instituição da aliança do Sinai é desconsiderar o testemunho da tradição nos interesses de conjecturas transportadas pelo ar".103 Depois de reconhecer algumas objeções expressadas por estudiosos acerca do tratado de suserania e da data remota para a aliança do Sinai, John Bright continuou sustentando aquela idéia. Ele disse: A noção de uma aliança firmada entre Deus e o povo parece claramente anteceder o mais antigo dos profetas, e presume-se que era muito mais antiga ainda [...] Podemos crer com alguma confiança que Israel de fato surgiu como uma confederação sagrada formada em aliança com Javé e que essa aliança seguiu em geral o padrão daqueles tratados de soberania que nos são conhecidos nos textos do segundo milênio a.C.104 Bright concluiu que a idéia de que Israel emergiu da história como uma liga de aliança sagrada harmoniza-se melhor com as evidências bíblicas. "Só assim, aliás, pode-se compreender o Israel mais antigo".105 Robert Davidson perguntou: "E possível sustentar a tese de que a aliança, moldada segundo a fórmula de tratado, desempenhou um papel importante e, talvez, decisivo, na formação de Israel em termos ou religiosos ou sociológicos? Ou precisamos concordar (com Nicholson) que "[...] na realidade tem gerado pouco valor permanente?"106 101 "lsrael"Amphictyony" em Translating and Understanding the Old Testament, ed. Frank e Reed, 138, 141. 102 Ibid., 149. m Ibid., 150. ,tMCovenant and Promise, 43. 105 Ibid., 36. 106 "Covenant Ideology in Ancient Israel”, em The World o f Ancient Israel, ed. R. E. Clements, 332. T f.o i .o c ia 138 do A n t ig o T e s t a m e n t o Os motivos pelos quais Nicholson conclui que os paralelos aos tratados de suserania "renderam pouco do que seja valioso são: primeiro, Deuteronômio não é um documento legal no sentido em que são os tratados. Segundo, não é um tratado em sua apresentação: antes, é um discurso de despedida de Moisés. Terceiro, suas leis tratam de muitos assuntos não estritamente pertinentes à relação suserano—vassalo. Quarto, o fato de Deuteronômio conter dois prólogos não se assemelha a nada encontrado em tratados. Quinto, visivelmente ausente é a designação de "Javé como Rei".107 Nicholson levantou outra questão importante: tal analogia para o relacionamento deles com Deus teria algum apelo de natureza adequada ou desejável, especialmente quando suseranos assírios haviam sujeitado e pilhado a terra e o povo? Apesar do fato de os tratados referirem-se ao "amor" do suserano pelo vassalo e do vassalo pelo suserano, as relações entre suseranos e vassalos raramente eram de amor. Vassalos, via de regra, não “amam” os que os conquistaram, subjugaram e dominaram [...] Dizer aos israelitas que Javé os “ama” do mesmo modo que os suseranos (e.g. Assurbanipal ou Nabucodonosor) “amam” seus vassalos e que eles devem “amar” Javé como os vassalos amam seus suseranos com certeza seria uma descrição bizarra do amor de Javé.108 Nicholson apresentou alguns argumentos de peso contra o uso de paralelos aos tratados de suserania para interpretar a aliança do Sinai. Ainda pode ser verdade que o modelo da aliança de Israel com Javé fosse baseado numa analogia política. O modelo matrimonial da aliança não começou antes da época de Oséias. Duas obras muito importantes de Perlitt e Kutsch pareceram voltar a direção dos estudiosos da "fórmula de tratado" da aliança para a "idéia teológica". Perlitt datou a idéia "plenamente desenvolvida" da aliança entre Javé e Israel no período pós-exílico. Discutiremos essas duas obras com mais detalhes na próxima seção, "O significado de b é r í t" . Em 1984 W. J. Dumbrell construiu uma teologia bíblica abrangente em tomo da idéia da aliança.109 Os cinco principais capítulos do livro centram-se em promessas específicas da aliança (Noé, Abraão, Sinai, Davi e a "nova" aliança). Um breve epílogo trata dos desdobramentos do pós-exílio. Dumbrell viu a "aliança" implícita mesmo no relato da criação. 107 God and His People, 71. Ibid., 78-79. I0* Covenant and Creation. Eu s u ti o vomo Dn», e vós siu ih o Mtu povo 139 Israel nio conseguiu cumprir as condições da aliança e assim obter a plena realização das promessas da aliança, o que levou à esperança escatológica de uma nova aliança. Toda escatologia é colocada sob a expectativa inclusiva dessa nova aliança, que ainda nSo foi completamente cumprida. A obra de Dumbrell representa um constructo teológico ligado à teologia "federal" de Coceio, do século xvii, encontrando na Bíblia a idéia de "uma aliança" sob diferentes dispensações."0 Em 1985 T. E. McComiskey da Trinity Evangelical Divinity Schoool publicou um argumento semelhante em favor de uma história da redenção estruturada pela aliança. McComiskey viu dois tipos de aliança no Antigo Testamento: promissiva e administrativa. No Antigo Testamento há duas alianças promissivas: a abraâmica e a davídica. A aliança promissiva declara e garante o elemento da promessa. Ela é incondicional. Seu significado jamais falta, embora o linguajar possa ser reinterpretado."1 Três alianças administrativas no Antigo Testamento são a aliança da circuncisão, a aliança mosaica e a nova aliança. As alianças administrativas apresentam estipulações de obediência e, exceto no caso da aliança da circuncisão, explicam os elementos da promessa no âmbito das economias governadas."2 McComiskey fez distinção entre a promessa incondicional, para todos os tempos, e as alianças administrativas, que se aplicam somente numa categoria temporária. B. O significado de bérít Desde 1944 desenvolve-se entre os estudiosos do Antigo Testamento um vivo debate em tomo do significado da palavra bérít, "aliança’. Naquele ano, Joachim Begrich publicou seu agora famoso artigo em que afirmava que bérít referia-se a um relacionamento entre duas partes desiguais, pelo qual o mais forte dava ao mais fraco a garantia de comportamento amigável e proteção. Só o mais forte era obrigado pela aliança. O mais fraco permanecia completamente passivo. Begrich cria que a aliança de Deus com Israel era na origem uma aliança de promessa e garantia. Foi só depois que Israel estabeleceu-se em Canaã e adotou concepções cananéias de lei, que a bérít de doação passou para uma bérít contratual, com obrigações de ambas as partes.113 A palavra bérít é usada no Antigo Testamento num sentido secular de acordos entre indivíduos (Gn 21.22-24; 26.23-33; ISm 18.3; 23.18); entre estados e 1,0 Veja uma análise de R. E. Clements em Expostíory Times 96 (1985), 345. 111 The Covenantes o f Promlse, 140-144,223-231. m lbtd„ 140. 115 Veja Joachim Begrich, *btrit, Ein Beitrage zur Erfassung einer alttestamentlichen Denkform", 1-11. 140 T e o u ic m oo A n t ig o T e s t a m e n t o seus representantes (lR s S.1-12; 15.19; 20.34); entre reis e seus súditos (2Sm 5.3; 2Rs 11.17); e entre marido e esposa (Ez 16.8; Ml 2.14; Pv 2.17). É também empregada no sentido figurado de aliança entre pessoas e animais (Jó 5.23; 41.1-4), pessoas e pedras (Jó 5.23), uma pessoa e seus olhos (Jó 31.1) e entre uma pessoa e a morte (Is 28.15-18). "Aliança", bérít, ocorre cerca de 275 vezes no Antigo Testamento, sendo encontrada em todos os livros, exceto em Rute, Ester, Eclesiastes, Cântico dos Cânticos, Lamentações, Joel, Obadias, Jonas, Miquéias, Naum, Habacuque e Ageu. Aparece cerca de 80 vezes no Pentateuco, 70 vezes no Profetas Anteriores, 75 vezes nos Profetas Posteriores e 60 vezes nos Escritos. Alfred Jepsen concordou que bérítcarregava a idéia de garantia da parte do mais forte para o mais fraco. Jepsen insistiu que a aliança entre Deus e Israel jamais foi compreendida em bases legais ou contratuais. Nenhuma obrigação jamais foi imposta a Israel, exceto a de renunciar ao culto de outros deuses. Essa era uma "obrigação moral", não uma lei."4 Emst Kutsch conduziu um estudo completo dos contextos dos vários usos da palavra berit no Antigo Testamento. Ele concluiu que o significado básico da palavra bérít era "obrigação". Ela jamais significa relacionamento, união ou aliança, mas sempre uma obrigação. Às vezes a pessoa assumia a obrigação sem esperar um retomo. Às vezes a obrigação era imposta sobre o outro, sem que a primeira parte assumisse uma obrigação."1 Lothar Periitt atacou a abordagem da crítica da forma de Mendenhall e toda a abordagem das religiões comparadas no estudo bérít Periitt insistiu, contra Eichrodt, que a teologia da aliança deve estar atada de maneira inseparável com o uso real do termo bérít Periitt reverteu a velha concepção de Wellhausen de que todas as referências a bérít no Antigo Testamento são tardias —não anteriores ao material deuteronômico. Cada menção de uma bérít nos relatos do Sinai é eliminada por procedimentos crítico-literários. Para Periitt, o relato da bérít de Javé com Abraão em Gênesis 15 em sua forma presente era um antigo documento deuteronômico a ser datado no início do século VII.116 J. J. Roberts viu as discussões de Kutsch e Periitt como um retomo a uma discussão estreita, baseada na Bíblia, em tomo da aliança sobre um simples estudo sintático de uma única palavra hebraica. Roberts pensava que a rejeição de dados 114 Veja A. Jepsen, Berith, Ein Beilrag zur Theologie der Exilszelt, 161-179. 119 Verheißung und Gesetz; cf. THAT I [1971], 339-3S2. Bundestheologie im Alten Testament, veja uma critica às idéias de Perlitt em Zimmerii, "The History o f Israelite Religion” em Tradition and Interpretation, ed. O. W. Anderson, 379-380; Nicholson, G od and his People, 109117. Eu i n u o voaao D eu, ■vú« u in s o »nu povo 141 comparativos do antigo Oriente Próximo é "um passo em falso" e uma tentativa de obter uma "segurança fictícia no campo restritivo dos estudos puros do Antigo Testamento". Roberts disse: "Se houver um avanço genuíno nessa área, virá de uma familiaridade continua e direta com o material extrabíblico juntada a uma análise cuidadosa de textos bfblicos".117 Os estudiosos ainda debatem o significado do termo bérit Entre estudiosos recentes há quatro teorias da etimologia de berit; ela vem: (1) da palavra acadiana biritu, "apertar", "atar" ou "aguilhoar"; (2) da palavra acadiana birit, "entre"; (3) de uma raiz hebraica brh, "comer"; ou (4) de outra raiz hebraica brh, "ver, esquadrinhar, selecionar" (cf. Is 28.15-18; ISm 17.8).111 James Barr alegou que nenhuma dessas teorias é completamente satisfatória porque os estudiosos vão longe demais com a etimologia. Barr centrou seu estudo não na etimologia, mas nos usos peculiares da palavra. Ele descobriu um grupo incomum de quatro aspectos do comportamento gramatical de bèrít (1) sua obscuridade, (2) sua idiomaticidade, (3) sua não-pluralização e (4) a forma peculiar de seu campo semântico. Por obscuridade, Barr queria indicar a falta de algum significado transparente na palavra em si, como a palavra alemã Handschuh contra a palavra portuguesa "luva". Barr disse que berit é totalmente opaca, um sinal simples e arbitrário cuja derivação histórica era desconhecida."9 Por idiomaticidade Barr quer dizer que a frase "cortar uma aliança", usada 80 vezes no Antigo Testamento, é uma construção idiomática. De acordo com a definição clássica, uma expressão idiomática é uma expressão cujo significado é diferente dos significados independentes das partes que a constituem.120 "Cortar uma aliança" referia-se originalmente ao ato de cortar um bezerro a ser usado na cerimônia cultual que selava a aliança.121 O bezerro era cortado, não a aliança. Barr diz que a expressão "cortar uma aliança" é, de longe, o caso mais importante e notável de expressão idiomática no hebraico bíblico. Outra peculiaridade da aliança no Antigo Testamento é que jamais ocorre no plural. Falamos com freqüência de "alianças", mas o Antigo Testamento só fala de "aliança". Barr não tinha uma explicação adequada para esse fenômeno, mas rejeitou as sugestões de que pode ser explicada pela noção de que só há uma 117 ‘Ancient Ne«r Eastern Environment’ em The Hebrew Bible and Its Modern Interpreters, ed. Knight e Tucker, 93-94. Veja uma dtscussto completa da etimologia de bèrít tm Zimmerli, Old Testament Theology In Outline, 49; M. Weinfeld, ’berit". TD OT1, 253-2SS; Barr, "Some Semantic Notes on the Covenant", 23-38; e Nicholson, God and HIs People, 94-L09. ‘ Some Semantic Notes on the Covenant*, 26. ■“ Ibid., 27. 1,1 VejaCin 15.5-8; Jr 34.18. 142 T m m jo c u do A n t ig o T b t a m i h t o "aliança" com muitas manifestações ou que os israelitas eram incapazes de pensar nessa entidade no plural. Uma peculiaridade final do uso da palavra "aliança" no Antigo Testamento, de acordo com Barr, é que seu leque semântico parece muito amplo de uma perspectiva, mas muito restrito de outra. Por exemplo, uma variedade de diferentes palavras como acordo, tratado, contrato, promessa, obrigação tem sido usada para traduzir a palavra hebraica berit. Aliás, todas essas idéias parecem estar incluídas nessa única palavra hebraica. Barr disse que os únicos sinônimos reais são muito raros e periféricos: talvez ’ãmSaâ, "aliança", "provisão estabelecida" em Neemias 10.1 (em português, 9.38); 11.23 e fiozeht pazut, "aliança" em Isaías 28.15-18, são os únicos verdadeiros sinônimos de bérít Além dessas palavras raras e periféricas, muitas outras palavras hebraicas têm sido consideradas sinônimas de bérít Tais palavras são dSbir, "palavra"; etse, "conselho"; tõrâ, "lei"; 'Sdût, "estatuto"; 'á/áe Sèbú % "juramento, voto". Nenhuma delas, de acordo com Barr, são verdadeiros sinônimos de bérít Alguns desses termos com freqüência acompanham bérít t são associados com ela, mas não são seus sinônimos estritos. Barr concluiu que, da perspectiva da análise semântica, é melhor supor que berit seja um substantivo hebraico primitivo, não mais "derivado" de algo do que ”ab, pai" e que "jamais teve outros significados senão os que encontramos no Antigo Testamento".122 Em 1986 E. W. Nicholson publicou duas obras importantes sobre a aliança.123 Ele percorreu a história dos estudos sobre a aliança e argumentou que a aliança ainda pode ser considerada o tema central do Antigo Testamento. Aliança refere-se a escolha. A aliança toma a religião do Antigo Testamento única e distintiva, não porque outras religiões não fizeram uso da idéia de aliança, mas porque a idéia israelita não era baseada na natureza ou necessidade. Deus escolheu Israel livremente, por nenhuma razão expressa, e Israel respondeu livremente à oferta de Deus.124 Em 1991 Christoph Barth afirmou que "fazer uma aliança" tinha um fundo legal. Quando Deus escolheu Abraão, não lhe mostrou uma bondade isolada que poderia retirar a seu bel-prazer. Deus assumiu um relacionamento "permanente e regulamentado" que poderia ser entendido só em termos legais porque estava fundamentado na justiça de Deus. Os termos çédeqâ, "justiça", e hesed, "amor característico da aliança", fazem parte da linguagem da aliança. ,B 'Some Semantic Note* on the Covenant", 35. G od and HU PtopU; "Israelite Religion in the Pit-exilic Period" cm A Word in Season. IMG od and h it P tcpte, vii-vlii. EU SEREI O VOSSO DEUS, E VÓS SEREIS O MEU POVO 143 Christoph Barth disse: "Quando o Antigo Testamento retrata Deus ‘submetendo-se’ ao acordo legal por ele estabelecido, está falando de maneira figurada. Afinal, a aliança é simplesmente a Palavra de Deus proferida a Abraão quando lhe prometeu sua bênção. Por intermédio da aliança Deus abriu o coração para Abraão e lhe declarou seu firme propósito de manter a Palavra".125 Um acordo legal estabelece direitos e deveres para cada parte, mas os "direitos" da parte dos homens na aliança são baseados na promessa de Deus. Israel e Jacó não eram dignos desses "direitos" e também não os conquistaram (Gn 32.10). Deus não devia nada a ninguém. Ele não era prisioneiro de um ato ou de uma promessa dele mesmo. Ele era livre para fazer o que quisesse. Ele se manteve fiel por decisão própria.126 Uma das tendências mais novas e significativas na teologia do Antigo Testamento está associada ao nome Hans H. Schmid. Essa tendência é com freqüência chamada "teologia da criação". É uma reavaliação da criação não meramente como um tema comum com antigas religiões do Oriente Próximo, mas como o horizonte amplo da fé e crença israelita. Tem-se passado para o tema da "organização divina do mundo" como estrutura das "condições" religiosas que Israel partilhava com seus vizinhos e dentro das quais as características distintivas da religião israelita deviam e foram elaboradas. De acordo com essa idéia, não se começa com os temas "particularistas" da eleição e da aliança, mas com o "tema universalista da criação e da fé".127 Robert Davidson caracterizou o atual estado dos estudos sobre a aliança no Antigo Testamento, dizendo: As perguntas-chave em tomo das quais continua o debate, envolvendo o uso de dados extrabíblicos e a relação entre a metodologia tradicionáriohistórica e as novas abordagens literárias do Antigo Testamento dizem respeito à procedência dessas diferentes tradições da aliança e a relação entre elas. É duvidoso que a tese pan-deuteronômica ou as teorias de uma redação no exílio, que têm caracterizado boa parte dos estudos recentes, possam dar a última palavra nessas questões.121 Os dados da aliança no Antigo Testamento são tantos e tão variados, e a literatura acadêmica, tão vultosa, que será preciso mais tempo para resolver essas questões. Vamos agora voltar a atenção para os dados veterotestamentários sobre a aliança. 1,5 God With Us. 52. 124 Ibid. VejaSchmid, Gerechtigkeit als Weltordnung; Nicholson, op. eit., vii, 194-207; "Israelite Religion in the Pre-exilic Period”, 19-29. "Covenant Ideology in Ancient Israel", 343-344. 144 T e o i -o c ia do A n t ig o T e s t a m e n t o C. A aliança no Antigo Testamento 1) A aliança com Noé. bêrít, "aliança", aparece pela primeira vez no Antigo Testamento em Gênesis 6.18. Deus disse a Noé que estava para provocar um dilúvio sobre a terra. Ele destruiria toda a carne. Então Deus disse: "Contigo, porém, estabelecerei a minha aliança; entrarás na arca...". Isso se refere a uma aliança que Deus fez com Noé antes de ele entrar na arca ou seria uma promessa da aliança que Deus faria com Noé ao final do dilúvio? Delitzsch e Gunkel distinguiram as duas alianças, vendo nessa aliança antediluviana uma promessa de segurança a Noé durante o dilúvio. John Murray insistiu que essa primeira referência à aliança no Antigo Testamento foi anterior ao dilúvio; ele vê a aliança como uma aliança de graça, baseada na soberania de Deus.129 S. R. Driver130 entendeu-a como uma promessa da aliança feita em 9.8-17. A aliança de Deus com Noé inclui seus descendentes e todas as criaturas vivas com ele (9.10). E uma aliança incondicional e eterna que promete que Deus jamais eliminará toda a carne pelas águas de um dilúvio. O sinal da aliança é um arco que se eleva acima de todos os homens, entre o céu e a terra, como garantia de verdadeira graça. Von Rad disse: A palavra hebraica que traduzimos por “arco-íris” em geral significa “arco de guerra” no Antigo Testamento. A beleza da antiga concepção toma-se assim visível: Deus mostra ao mundo que colocou de lado seu arco. O homem conhece a bênção desse novo relacionamento bondoso na estabilidade das ordens da natureza, i.e., em primeiro lugar só na esfera dos elementos impessoais.131 A aliança de Deus com Noé foi sua aliança com a humanidade e com todas as criaturas da terra (Gn 9.9-10) de que jamais voltaria a destruir a terra com um dilúvio; que as quatro estações continuariam (Gn 8.21-22). O homem poderia comer a carne dos animais, mas não o sangue. Qualquer pessoa ou animal que matasse uma pessoa deveria morrer, porque os homens são feitos à imagem de Deus (Gn 9.6). Os homens deviam multiplicar-se e encher a terra. O poder de Deus sobre a natureza e sobre a história são pressupostos nessa aliança. A graça e o julgamento divino também se confirmam. 2) A aliança com Adão (?). Gênesis nada diz sobre uma aliança com Adão. Alguns estudiosos inferem dos primeiros capítulos de Gênesis e de algumas "Covenant", 264. 150 The Book o f Genesis, 88. 1,1 Genesis, 130. Eu s c a n o vosso Deus, t vós s c m b o miu rovo 145 passagens do Novo Testamento que Deus fez uma aliança com Adão. Julius Wellhausen falou de uma liber quattourfoederum , um "Livro de Quatro Alianças", entre Deus e Ad2o, Noé, Abraão e Moisés.132 Wellhausen disse que a aliança com Adão (Gn 1.28—2.4) é a mais simples das quatro. Ela não é chamada aliança, mas é a base da aliança com Noé, que a modifica.133 Alguns teólogos bíblicos e sistemáticos mais antigos, tais como Francis Roberts em 16S7, falaram de uma aliança com Adão.134 Roberts antecipou-se a Coceio e i teologia federal holandesa. W. T. Conner disse que a teoria federal ensina: Deus fez uma aliança com Adão, cujos termos eram que, desde que Adão obedecesse a Deus, seus descendentes teriam vida etema; se desobedecesse, seu pecado seria imputado a eles e, assim, seriam culpados e condenados. Nfio há o menor indício na Bíblia de que alguma aliança desse tipo tenha sido feita com Adão. Alguém bem disse que a aliança originou-se na Holanda e não no Jardim do Éden. Tal imputação dos pecados de um indivíduo humano para outro, tendo por base uma aliança com a qual aquele a quem é imputado o pecado não tem relação alguma, seria o cúmulo da injustiça.115 Mesmo assim, sistemas inteiros de teologia do Antigo Testamento têm sido elaborados sobre a idéia de uma aliança de obras antes da queda e uma aliança de graça depois dela. Gerhard Vos, Edward J. Young, John Murray e J. Barton Payne, todos da tradição dos seminários de Princeton e Westminster, seguem os teólogos federais e alegam que houve de fato essas duas alianças antes e depois da queda. A aliança da graça (após a queda) era uma aliança monérgica —ou seja, obra inteiramente divina.136 De novo, o Antigo Testamento nada diz sobre uma aliança entre Deus e Adão. A primeira aliança no Antigo Testamento é entre Deus e Noé. E uma aliança promissiva, garantindo a toda a raça humana a estabilidade das ordens da natureza. Na época do Novo Testamento, judeus e cristãos tinham desenvolvido as leis de Noé, que se aplicavam a toda a raça humana e não só aos judeus. Essas leis de Noé, baseadas em Gênesis 9.17 e em partes do Código de Santidade (Lv 17—26), ,,J Prolegomena, 338-342,357. IM Zimmerii, O ld Testament Theology, 55. 1.4 Veja Francis Roberts, The Mysterie and Marrow o f the Bible: viz., God's Covenants with Man, in thefir s t Adam, before the Fall: from the Beginning to the End o f the World; Unfolded and Illustrated in positive Aphorisms and their Explanations, 2 vol.; C. A. Briggs, The Study o f Holy Scripture, 465. 155 The Gospel o f Redemption, 29-30. 1.4 Veja Vos, Biblical Theology; E. J. Young, The Study o f O ld Testament Theology Today, 61 -78; J. Barton Payne, The Theology o f the Older Testament. 146 T e o l o g ia do A n t ig o T e s t a m e n t o incluem leis universais tais como não comer sangue nem animal que tenha sido estrangulado e a proibição de assassínio, adultério, idolatria e blasfêmia (cf. At 15.28-29). 3) A aliança com Abraão. A segunda aliança no Antigo Testamento é en Deus e Abraão. Três diferentes relatos dessa aliança aparecem em Gênesis 12; 15 e 17. Gênesis 12 não contém o termo "aliança", mas o relato do chamado de Abrão para sair de Ur. Deus promete que o nome de Abrão será grande, que ele será uma grande nação (12.2), que a terra de Canaã pertencerá a seus descendentes (12.7), que uma bênção divina sobrevirá aos que abençoarem Abrão, que uma maldição recairá sobre os que o amaldiçoarem, e que Abrão mesmo abençoará todas as famílias da terra (12.3). Nada se diz nesse capítulo sobre alguma obrigação de Abrão, exceto a obrigação implícita de ir para onde Deus mandar. A palavra "aliança" ocorre em Gênesis 15.18. Repetem-se as promessas de uma terra e de uma grande posteridade. Embora tenha correspondido em fé à promessa de Deus (15.6), nenhuma condição específica é atrelada à aliança nesse capítulo. O ritual para ratificação da aliança, envolvendo a divisão de animais sacrificiais, é descrito em Gênesis 15.9-10. Tal cerimônia é mencionada em mais um único lugar no Antigo Testamento (Jr 34.17-20), mas rituais semelhantes foram encontrados em Mári, Alalakh e Aslan Tash.137 Alguns estudiosos vêem essa cerimônia de "auto-maldição" como evidência de alguma obrigação que recai sobre ambas as partes da aliança. Mas John Bright alega que a cerimônia garante a Abraão que, após gerações de dura servidão, seus descendentes possuirão a terra. John Bright cria que seu significado era que Deus obriga-se "por uma auto-maldição solene a cumprir essa promessa. A aliança patriarcal firma-se, assim, nas promessas incondicionais de Deus para o futuro e só requer do recipiente que confie".138 É claro que estudiosos como Perlitt e Kutsch discordaram de Bright. Eles vêem obrigação em quase todas as alianças. O terceiro relato de uma aliança entre Deus e Abraão aparece em Gênesis 17. A linguagem desse capítulo é diferente. A palavra "estabelecer", hãqím, é usada em lugar de "cortar", kãrat. "Estabelecer" dá ênfase à função de Deus no processo e implica alguma permanência à disposição. De fato, a palavra "perpétua" ocorre nos versículos 7, 8 e 13. A promessa é de uma grande posteridade (v. 2, 5) e de terra (v. 8). As únicas obrigações declaradas na passagem são que Abraão deve andar na presença de Deus (El Shaddai) e ser perfeito (v. 1) e que deve guardar a aliança divina pela circuncisão de todo macho entre eles (v. 10). 157 Veja Cross, Canaanite Myth and Hebrew Epic, 265-266. Covenant and Promise, 26. E li SEREI O VOSSO DEUS, I VÓS S U E I S O MEU POVO 147 Ronald Clements observou que "esse rito de circuncisão não toma condicional a aliança à maneira da aliança da lei no Sinai; assim, não se previa nenhuma dificuldade no cumprimento das exigências de circuncidar toda criança de sexo masculino. Deve-se destacar com firmeza que os autores sacerdotais pretendiam fazer da circuncisão um sinal, não uma condição restritiva".139 Walther Zimmerli disse que, mais uma vez, estamos lidando com uma promessa pura, como ocorreu em Gênesis 15. Todo indivíduo que não seja circuncidado quebra a aliança e é eliminado (17.14), mas a punição afeta só o indivíduo obediente. "A aliança como um todo permanece intocada."140 A aliança de Abraão é uma promessa vinculadora ou um "voto promissivo da parte de Deus".141 Um debate contínuo tem sido conduzido entre estudiosos que crêem que os relatos da aliança abraâmica são uma retroprojeção de conceitos posteriores dos períodos de Davi, Salomão ou até do pós-exílio e os que vêem indícios de uma tradição dessa aliança que pode ser remontada a suas raízes numa repetição "cultual" do relato da promessa em Gênesis 15.7-21.142 Concordo com a datação remota. Robert Davidson disse em relação a isso que "há um perigo real de o período do exílio tomar-se uma área conveniente de captação para boa parte do que seja considerado teologicamente importante no Antigo Testamento, com uma preocupação insignificante de buscar a fonte dos vários ribeiros que correm para essa área de captação.143 4) Aliança com Israel no Sinai. A aliança que Deus fez com Israel noSinai é apresentada no Antigo Testamento como uma extensão ou cumprimento da aliança que Deus fez com Abraão. Decorridos muitos dias, morreu o rei do Egito; os filhos de Israel gemiam sob a servidão e por causa dela clamaram, e o seu clamor subiu a Deus. Ouvindo Deus o seu gemido, lembrou-se da sua aliança com Abraão, com Isaque e com Jacó (Êx 2.23-24). Falou mais Deus a Moisés e lhe disse: Eu sou o S e n h o r . Apareci a Abraão, a Isaque e a Jacó como Deus Todo-Poderoso; mas pelo meu nome, O SENHOR, não lhes fui conhecido. Também estabeleci a minha aliança com eles, para dar-lhes a terra de CanaS, a terra em que habitaram como peregrinos. Ainda ouvi os gemidos dos filhos de Israel, os quais os egípcios escravizam, e me lembrei da minha aliança. Portanto, dize aos filhos de Israel: eu sou o SENHOR, e vos tirarei de debaixo das cargas do 1,9 O ld Testament Theology, 73. 140 O ld Testament Theology in Outline, 56. 141 R. Davidson, "Covenant Ideology in Ancient Israel”, 338. 141 Veja R. E. Clements, "Abraham and Davis: Genesis 15 and Its Meaning for Israelite Tradition". 143 "Covenant Ideology in Ancient Israel", 342. T e o l o g ia 148 do A n t ig o T e s t a m e n t o Egito, e vos livrarei da sua servidão, e vos resgatarei com braço estendido e com grandes manifestações de julgamento. Tomar-vos-ei por meu povo e serei vosso Deus; e sabereis que eu sou o S e n h o r , vosso Deus, que vos tiro de debaixo das cargas do Egito. E vos levarei à terra a qual jurei dar a Abraão, a Isaque e a Jacó; e vo-la darei como possessão. Eu sou o S e n h o r ( Ê x 6.2-8). O principal relato da aliança do Sinai está em Êxodo 19—24, uma das passagens mais importantes do Antigo Testamento. Terrien disse: "Poucas páginas na literatura da humanidade comparam-se a essa descrição impressionante de um encontro entre Deus e o homem".144 A passagem é formada de vários tipos de material (teofania, narrativa, leis, elementos cultuais) e existe uma discordância substancial entre estudiosos quanto aos estratos exatos entretecidos no presente texto. Childs cria que as tensões literárias em Êxodo 19 são tais que a tradicional divisão de fontes (J e E) é incapaz de resolvê-las. Ele disse que mesmo que duas correntes literárias, tais como J e E, estejam presentes no capítulo 19, mantêm em comum tanta tradição oral, que uma separação é improvável e pouco significativa.145 Childs disse que se deve ter consciência da profundidade e da variedade de significados que atuam nessa passagem, mas ao mesmo tempo é preciso concentrar os esforços para interpretar a etapa final do texto. De acordo com a passagem (Êx 19—24) conforme se apresenta agora, Israel chegou ao Sinai no terceiro mês depois de sair do Egito (19.1-2). Deus ofereceu uma aliança a Israel, com a qual todo o povo concordou. Moisés serviu como mediador entre Deus e Israel (19.3-9). O povo preparou-se para a manifestação de Deus (19.10-15). Na manhã do terceiro dia, Deus desceu sobre o Sinai em fogo, fumaça, nuvens, trovão e terremoto (19.16-25). Então Javé proclamou os Dez Mandamentos da aliança (20.1-17). O povo recuou em temor e tremor, pedindo a Moisés que lhes servisse de mediador (20.18-21). As leis da aliança foram dadas (20.22—23.33), e a aliança entre Deus e Israel foi selada com sangue sacrificial e com uma refeição comunitária (24.1-18). Antes de deixar o Sinai, Israel quebrou a aliança com Javé, fazendo um bezerro de ouro e cultuando-o (Êx 32.3-8). Após o julgamento divino e a intercessão de Moisés, a aliança foi renovada (Êx 34.10, 27-28). Outro relato da aliança do Sinai aparece em Deuteronômio, um livro de aliança. O termo b è r í t ocorre pelo menos 27 vezes em Deuteronômio. O livro trata da renovação da aliança no Sinai com a segunda geração de israelitas, os 144 The Elusive Presence, 119. 145 The Book o f Exodus, 350. EU SEREI O VOSSO DEUS, E VÓS SEREIS O MEU POVO 149 sobreviventes das peregrinações no deserto, antes de entrarem na terra de Canaã. É provável que gerações sucessivas de israelitas tenham usado o material do livro como um documento de renovação da aliança até a época da reforma de Josias e depois dela (29.14-15). A aliança do Sinai, em contraste com a aliança abraâmica, parece destacar a obrigação humana de guardar as leis e ordenanças, para que ela pudesse continuar em vigor. Assim, desenvolveram-se duas tradições de aliança em Israel: (1) a tradição da aliança promissiva, ligada a Noé, Abraão e Davi, e (2) a aliança de obrigação humana, ligada aos eventos do Sinai. Parece que a aliança do Sinai tomou-se a base para a liga de doze tribos na época de Josué e dos juizes (Js 24). 5) A aliança com Davi. O surgimento da monarquia provocou uma mudança na idéia de aliança. O rei precisava da aprovação e do sustento divino. Deus fez uma aliança com Davi, pela qual um de seus descendentes sempre ocuparia seu trono (2Sm 7.12-16). A palavra aliança não ocorre nessa passagem, mas aparece nas "últimas palavras de Davi" (2Sm 23.5). A aliança de Deus com Davi era dupla: (1) o reino de Davi seria estabelecido para sempre (SI 18.50; 89.34, 35-37; Is 55.3) e (2) Jerusalém ou Sião seria morada de Deus para sempre (lR s 8.12-13; SI 78.68-69; 132.13-14). Quando Salomão morreu, a monarquia dividiu-se em reinos do Norte e do Sul. O reino do Norte, formado por dez tribos, manteve a aliança do Sinai com suas aparentes feições de obrigação humana. O reino do Sul manteve sua capital em Jerusalém e tinha um descendente de Davi no trono, apegando-se assim à aliança promissiva davídica. E possível que, ao capturar Jerusalém e tomá-la sua capital, Davi tenha conservado algumas tradições religiosas dos jebuseus e pessoas dentre o povo. Essas idéias podem ter influenciado Judá em seu conceito de reinado e aliança eterna.146 Obviamente, os estudiosos que sustentam que em Israel não surgiu nenhum conceito claro de aliança antes do período pós-exílico enfrentam dificuldades com uma aliança davídica. Hayes e Miller disseram: "A aliança é um tema tardio nas tradições patriarcais (Kutsch; Perlitt)", e 2Samuel 7 é o produto final da recomposição deuteronomista desses dados.147 6) Os Profetas e a Aliança. Os profetas do século V III fizeram pouco uso do termo "aliança", talvez pela falsa impressão das pessoas de que era automática. Amós não usou o termo em lugar algum para referir-se ao relacionamento de Deus com Israel; entretanto, é claro que os crimes que atacou eram infrações da lei da aliança. Ainda que Oséias raramente tenha usado a palavra "aliança" (e seja o único 146Veja Bright, Covenant and Promise, 49-77; Cross, Canaanile Myth and Hebrew Epic, 229-287; Miller e Hayes, A History o f Ancient Israel and Judah. 173. 141 Miller e Hayes, op. cit., 142, 333. 150 T i o u m u d o Armco TOTAM unt) profeta do século VIII a usá-la), acusou Israel de infringir sua aliança com Javé. Em um trecho (4.1-3) ele retratou Javé movendo um processo litigioso de aliança contra seu povo. Oséias firmava-se nas tradições do êxodo, nas peregrinações no deserto e na conquista, bem como nas estipulações da aliança de Javé (no Sinai). Mas parece que a teologia da aliança eterna de Javé com Davi nada significava para ele. Oséias foi o primeiro profeta a usar a metáfora do casamento para descrever a relação de aliança entre Javé e Israel. No reino do Sul, Isaías estava firmado nas tradições de Davi e na promessa segura que Deus lhe havia feito. Essa era a base teológica para a critica permanente de Isaías contra a política nacional. É provável que Isaías também estivesse familiarizado com as tradições da aliança do Sinai. Jeremias permaneceu nas tradições do reino do Norte e, portanto, trabalhou tendo por base a aliança do Sinai. Ele insistiu que Israel havia desrespeitado sua aliança com Deus (11.3-10; 22.9; 31.32; 34.18). Muitas pessoas opuseram-se a Jeremias nesse ponto, alegando que a aliança de Deus com Jerusalém era eterna e que o templo era inviolável. Mas Jeremias estava correto. Nabucodonosor atacou Jerusalém, destruiu a cidade, queimou o templo e levou muita gente do povo para a Babilônia como cativos. Isso provocou uma crise espiritual no povo que cria que Deus protegeria Jerusalém, o templo e as pessoas a qualquer preço. John Bright disse: Os fundamentos da fé tinham sido abalados. A própria sobrevivência de Israel como comunidade definida estava em jogo. E, humanamente falando, poder-se-ia dizer que talvez a naçflo nâo tivesse sobrevivido se não conseguisse encontrar alguma explicaçfio para a tragédia no âmbito de sua fé, especificamente no Âmbito do poder soberano de Javé, de sua justiça e de sua fidelidade ás promessas. É de estremecer quando se pensa no que ocorreria, caso as únicas vozes da religião em seu meio fossem a dos sacerdotes e profetas profissionais, proclamando a inviolabilidade de Si8o e a eternidade da linhagem de Davi. Simplesmente nSo era assim! Jeremias, Ezequiel e outros interpretaram o que ocorreu a Jerusalém como um ato divino de julgamento pela violação da aliança. Era uma palavra salvadora que explicava a tragédia no campo da fé. A ação de Deus não significava a morte de Israel ou da religião. Não significava que Deus fosse desleal ou injusto. Mas que dizer do futuro? Havia alguma esperança? Jeremias escreveu uma carta para alguns que foram levados cativos para a Babilônia em 597 a.C. Nessa carta dizia: E tl SEREI O VOSSO DEUS, E VÓS SEREIS O MEU POVO 1S1 Eu é que sei que pensamentos tenho a vosso respeito, diz o S e n h o r ; pensamentos de paz e não de mal, para vos dar o fim que desejais. Então, me invocareis, passareis a orar a mim, e eu vos ouvirei. Buscar-me-eis e me achareis quando me buscardes de todo o vosso coração. Serei achado de vós, diz o S e n h o r , e farei mudar a vossa sorte; congregar-vos-ei de todas as nações e de todos os lugares para onde vos lancei, diz o SENHOR, e tomarei a trazer-vos ao lugar donde vos mandei para o exilio (Jr 29.1114). Jeremias, como a maior parte dos profetas do Antigo Testamento, cria que a esperança acenava acima do julgamento. Que forma assumiria tal esperança para o futuro? 7) A nova aliança. A futura esperança para Israel não teria a forma promessa de restauração do estado pelos contornos antigos, nem mesmo da vinda de uma libertador "messiânico" da casa de Davi. Tomava a forma de uma promessa de uma nova aliança. Podemos perguntar: "Como pode haver uma nova aliança?". Israel não tinha poder, mérito nem base para reclamar uma nova; mas Deus iniciou a primeira aliança e iniciaria uma nova. Que bem traria uma nova aliança? Seria rapidamente quebrada, como fora a anterior? Deus também podia remediar essa situação. Ele perdoaria pecados passados e escreveria a lei da sua aliança no coração (ou seja, na mente e na vontade) de seu povo, dando-lhes assim o desejo e a capacidade de obedecer a ela e de viver como seu povo. Quando isso ocorreria? Tudo o que Jeremias conseguia dizer era: "Eis aí vêm dias" (31.31). Essa nova aliança é em alguns aspectos semelhante à antiga. Foi dada por iniciativa divina e baseada na graça, com a expectativa de obediência. A diferença é que o povo é renovado.14* Isso significa que a aliança do Sinai estava certa e a aliança davídica, errada? É provável que Bright estivesse correto em concluir que ambas as alianças davam expressão a aspectos essenciais da fé israelita. A aliança do Sinai lembrava a Israel a graça de Deus e as obrigações deles. As alianças abraâmica e davídica lembravam a Israel que seu futuro não dependia em última análise do que eles eram ou faziam ou deixavam de fazer, mas do "propósito imutável de Deus que nada podia cancelar".149 Ambos os padrões de aliança continuaram no Novo Testamento. Elas foram juntadas em Cristo e proclamadas cumpridas. Bright concluiu que a igreja, a exemplo de Israel, vive sob os dois padrões de aliança. Recebemos de Cristo l4t Bright, Covenant and Promise, 196; *An Exercise in Hermeneutics: Jeremiah 31.31-34", 188-210. Covenant and Promise, 196. 1S2 T f.o i .o c ia do A n t ig o T e s t a m e n t o promessas irrestritas às quais não foi associada condição alguma. Também recebemos graça e estipulações: "... guardareis os meus mandamentos" (Jo 14.15). Aceitar a promessa sem as obrigações seria afundar em complacência. Levar nos ombros o peso dos mandamentos de Cristo, sem as promessas, seria desesperar-se ou cair em legalismo auto-suficiente. Assim nós, a exemplo de Israel, devemos viver em tensão. "E uma tensão entre a graça e a obrigação: as promessas incondicionais em que somos convidados a confiar, e a obrigação de obedecer a ele como Senhor soberano da igreja.'"50 Além da expressão "nova aliança", ocorrem outras, como "aliança perpétua" e "a aliança da paz". Qual a relação entre essas expressões? A expressão "nova aliança" só ocorre uma vez no Antigo Testamento (Jr 31.31) e sete vezes no Novo Testamento (Mt 26.28; Mc 14.24; Lc 22.20; ICo 11.25; Hb 8.8; 9.15; 12.24), enquanto a expressão "aliança eterna" ocorre 19 vezes no Antigo Testamento e só uma vez no Novo (Hb 13.20). A nova aliança em Jeremias 31.31-34 não é descrita como uma aliança eterna, e a aliança eterna no Antigo Testamento jamais é chamada uma nova aliança. Isso, porém, não significa que os dois conceitos não estejam relacionados. Algumas referências a uma aliança perpétua no Antigo Testamento tratam de alianças feitas no passado: uma vez se refere à aliança com Noé (Gn 9.16); quatro vezes à aliança com Abraão (Gn 17.7, 13; SI 105.8-10; lCr 16.15-17); uma vez à observância do sábado (Ex 31.16); uma vez aos pães da proposição (Lv 24.8); uma vez ao sacerdócio de Finéias (Nm 25.13); uma vez à infração, por parte de Israel, da aliança permanente (Is 24.5). Seis referências à "aliança perpétua" tratam de uma aliança a ser feita no futuro. Javé diz em cinco ocasiões que fará uma aliança permanente com Israel (Is 55.3; 61.8; Jr 32.40; Ez 16.60; 37.26). Uma vez ele prediz que Israel juntar-se-á a Judá chorando e buscando seu Deus, pedindo que seja unido ao Senhor por uma "aliança eterna que jamais será esquecida" (Jr 50.5). Em duas ocasiões a futura aliança entre Javé e Israel é chamada uma "aliança de paz" (Ez 34.25; 37.26). Essa aliança de paz também será uma aliança eterna (Ez 37.26; cf. Is 54.4-10). Será a nova aliança completamente inédita, sem nenhuma continuidade com a antiga? Se não, o que será novo nela? A antiga podia ser infringida por Israel (Is 24.5; Jr 31.32; 34.18; Ez 17.19; 44.7) e até por Javé. Embora Javé diga que não quebrará sua aliança (Lv 26.44; Jz 2.1; SI 89.34), é acusado de renunciar a ela (SI 89.39) e de anulá-la (Zc 11.10). Essas duas últimas referências podiam ser compreendidas como atos temporários. 150Ibid., 198. El) SEREI O VOSSO DEUS, E VÓS SEREIS O MEU TOVO 153 Significa a palavra "eterno", 'õlãm, "sem fim", "eterno" no sentido filosófico? Holladay diz que não.151 G. A. F. Knight disse: Eterno, ‘õJSm não é uma palavra basicamente ligada à vida do além. Ela vem da raiz que significa “escondido”. E, assim, fala das névoas do passado, escondidas dos pensamentos do homem, e olha para as névoas do futuro, que a mente do homem não consegue nem começar a espreitar. E assim fala do Deus que é Senhor mesmo das realidades ocultas que os seres humanos só conseguem vislumbrar em termos de tempo infinito.152 E. Jenni alegou que a palavra ‘õlãm significa basicamente "o tempo ma remoto".153 O tempo mais remoto refere-se ao passado ou ao futuro. Nada na palavra em si especifica quão remoto é o tempo a que se refere. Tal especificação pode ser derivada do contexto.154 Assim, em Josué 24.2, m ê ‘õlãm significa "de tempo remoto". Jeremias 28.8 fala: "Os profetas que houve antes de mim e antes de ti", m in-ha‘õlãm, "desde a antiguidade". Barr disse que tais casos poderiam ser traduzidos "desde a eternidade", mas teriam de ser compreendidos como referências a um passado remoto e não deveriam ser compreendidos como "eternidade" num sentido filosófico. No hebraico pós-bíblico ‘õlãm é usado para designar esta era, hazeh‘õlãm, e a era vindoura, h a ‘õlãm haba’. "Eterno" no Antigo Testamento significa "tudo quanto se consegue enxergar ou compreender e além". D. F. Payne disse que o termo bèrít ‘õlãm pode ser traduzido "aliança de duração indefinida e pode implicar nada mais que os contratos assim descritos; embora firmados por um indivíduo (ou geração) específico, afetava também sua posteridade".155 Mas Payne apressou-se em dizer que não podemos aceitar essa interpretação em todos os casos. Marten H. Woudstra disse: "Não é verdade que uma aliança chamada ‘eterna’ não possa ser quebrada".156 "Ninguém, ao que parece, fez uma bérít por período limitado, ou, se fez, nenhum exemplo disso encontrou espaço no texto bíblico".157 151 ‘öläm. Concise Hebrew-Aramaic Lexicon, 267. 152 A Christian Old Testament Theology, 45. ,s) "Das Wort ‘Olam im Alten Testament”, 246-247. 154 Barr, Biblical Words fo r Time, 70. 155 "The Everlasting Covenant", 10-16. 156 “The Everlasting Covenant in Ezequiel 16.59-63, 32. 157 Cross, Canaanite Myth and Hebrew Epic, 35; veja Nicholson, God and His People, 103. 154 T e o l o g ia do A n t ig o T e st a m e n t o Moshe Weinfeld, com base em seu estudo dos "privilégios reais" no antigo Oriente Próximo, afirmou que as alianças de Javé com Abraão e Davi no Antigo Testamento foram moldadas nesses privilégios reais. Esses privilégios reais de terra e dinastia eram dados pelo imperador a um vassalo leal. Eles eram incondicionais e não podiam ser retirados.,s> Uma vez que as alianças com Abraão, Davi e Israel eram tidas em algum sentido como eternas, como devemos compreender o cumprimento delas? Elas foram cumpridas em Cristo e na igreja ou ainda serão cumpridas na nação de Israel? Os dispensacionalistas afirmam que a nova aliança é principalmente para Israel. Alguns defendem duas novas alianças: uma para a igreja e uma para Israel.159 Esse assunto está fora dos limites de um estudo descritivo de teologia do Antigo Testamento, havendo grande desacordo sobre como as passagens do Antigo Testamento a respeito da aliança devem ser compreendidas hoje. O entendimento teológico dessas passagens e o significado delas para hoje será determinado em grande parte pelo entendimento hermenêutico e pela metodologia da pessoa. A maioria dos judeus e cristãos compreende essas passagens de maneiras diversas. Mas todos os judeus não concordam entre si em questões de escatologia, e certamente todos os cristãos não concordam entre si nessas questões. Robert D. Culver, pré-milenista dedicado, discutiu a questão do cumprimento dessas passagens do Antigo Testamento. Ele analisou as opiniões de Agostinho, Calvino, Lutero, do arminianismo, de teólogos da aliança, de prémilenistas, amilenistas, pós-milenistas e dispensacionalistas. Então, concluiu que esses assuntos devem ser tratados como uma questão de escatologia e "permita-se que assim permaneçam".160 Ele defendeu que não se tome uma atitude partidária polêmica, recomendando o assunto com devoção e humildade, em atenção aos seus irmãos no ministério e companheiros cristãos de cada convicção, tentando manter a mente aberta para ser conduzido a um caminho mais excelente.161 "The Covenant o f Grant in the Old Testament and in the Ancient Near East*, 189-192. Veja A Bíblia Anotada, Hb 8.6. Veja uma critica a essa idéia em McComiskey, The Covenants o f Promise, 157161. Daniel and the Latter Days, 20. Ibid., 22. Veja um desenvolvimento conciso do assunto no Novo Testamento em Bruce Cortey, "The jew s, the Future and God*. 42-56. 5 Quem é Deus como Javé? Quando Moisés e Arão ordenaram em nome de Javé que libertasse Israel, o faraó perguntou: "Quem é o SENHOR para que lhe ouça eu a voz e deixe ir a Israel? Nao conheço o SENHOR, nem tampouco deixarei ir a Israel" (Êx 5). O faraó não sabia quem era Javé e, por isso, recusou-se a libertar Israel. Sua recusa resultou nas pragas do Egito. Terminadas as pragas, todos no Egito, inclusive o faraó e os israelitas, sabiam quem era Javé (Êx 7.5, 17; 8.10, 22; 9.14-16, 29; 10.2; 11.7; 12.31-32; 14.4, 18, 30). Javé revelou quem ele era por meio do que fez. Com sua mão poderosa e seu braço estendido, livrou da servidão um grupo de escravos. Ele provou ser um Deus de compaixão, poder e propósito. Uma coisa é perguntar por ignorância ou desprezo: "Quem é Javé?". Outra, é perguntar em compromisso e fé: "Quem é Deus como Javé?" —indicando que não há nenhum comparável a ele.1 O Antigo Testamento afirma com freqüência que Javé é incomparável. No Cântico do Mar, a pergunta é: 1 Veja uma discussSo completa e m C .J. Labuschagne, The Incomparability o f Yahweh in lhe O ld Testament. T e o l o g ia 15 6 do A n t ig o T e s t a m e n t o Ó SENHOR, quem é como tu entre os deuses? Quem é como tu, glorificado em santidade, terrível em feitos gloriosos, que operas maravilhas? (Êx 15.11) O salmista disse: O teu caminho, ó Deus, é de santidade. Que deus é tão grande como o nosso Deus? Tu és o Deus que operas maravilhas e, entre os povos, tens feito notório o teu poder. Com o teu braço remiste o teu povo, os filhos de Jacó e de José. (SI 77.13-15) Pois quem nos céus é comparável ao SENHOR? Entre os seres celestiais, quem é semelhante ao SENHOR? (SI 89.6) Miquéias perguntou: Quem, ó Deus, é semelhante a ti, que perdoas a iniqüidade e te esqueces da transgressão do restante da tua herança? (Mq 7.18) Essas perguntas retóricas declaram que nenhum Deus é tão grande, poderoso, majestoso, maravilhoso, inspirativo e clemente como Javé. Esses termos são apenas alguns de uma infinidade de palavras usadas no Antigo Testamento para descrevê-lo. Ele é um Deus de ira, zelo, julgamento e vingança (2Sm 22.48; SI 94.1; Na 1.2-6). Ele é bom, um Deus de amor, misericórdia e compaixão (Êx 34.6; Os 11.8; Na 1.7). Ele é bondoso, glorioso e maravilhoso. Ele é santo, fiel e verdadeiro. Ele é de eternidade a eternidade (SI 90.1). Ele é o Deus do céu que Q u i*! t D lllS COMO JAVÉ? 157 mora na terra (Ez 43.7, 9; Dn 2.18-19; Jn 1.9). Ele se arrepende (Gn 6.6), mas não muda (Ml 3.6). Deus anda pelo jardim na virada do dia (Gn 3.8, 10). Ele aparece a Abraão como homem, come com ele e anuncia o nascimento de Isaque e a destruição de Sodoma (Gn 18.1-8, 16-21). Ele fala com Moisés "face a face" (Êx 33.11; cf. Gn 32.30; Dt 5.4; 34.10), mas ninguém consegue ver a Deus e viver (Êx 33.20). Ele não é humano (Nm 23.19), mas possui face, mãos, pés, olhos, narinas e ouvidos. Ele é como fogo (Êx 19.18; Dt 4.24; Ez 1.27-28), luz (SI 104.2); um leão (Am 1.2). O nome Javé ocorre mais de 6 500 vezes no Antigo Testamento, e a palavra ’é/ohím (Deus) ocorre mais de 2 500 vezes. No Antigo Testamento, o único conceito destacado de modo dominante é o de Deus. Javé é a personagem central. O nome de Deus aparece em cada livro do Antigo Testamento, exceto em Ester e em Cântico dos Cânticos. Como apresentar o que o Antigo Testamento diz sobre Deus? Devemos tratar o assunto de maneira cronológica, de acordo com os diferentes gêneros literários, ou de acordo com as diferentes perspectivas teológicas (Profetas, sacerdotes, Sabedoria)? Devemos tentar apresentar uma ordem sistemática do material de todo o Antigo Testamento em sua forma canônica final? Seria interessante e instrutivo mostrar as características do Deus de Israel apresentadas nos registros escritos ordenados de acordo com a cronologia, e eles variam em ênfase de um século para outro. Numa teologia do Antigo Testamento, a pergunta "quem é Deus como Javé?" deve ser respondida de maneira sistemática por um estudo da forma canônica final do Antigo Testamento. O Antigo Testamento é coerente em sua descrição de Deus. Ronald Clements disse: "Em sua forma canônica preservada, o Antigo Testamento certamente procura apresentar Deus como um ser sobrenatural singular que se revelou a Abraão, Moisés e outras grandes figuras da vida de Israel, sendo o Senhor e o único criador do universo".2 Uma rápida inspeção nos livros básicos de teologia do Antigo Testamento não mostra um modo único de apresentar os dados do Antigo Testamento sobre a doutrina de Deus. Uns poucos temas básicos aparecem em quase todos. Seria praticamente impossível tratar de tudo o que o Antigo Testamento fala a respeito de Deus. A apresentação desse material deve ser seletiva, representando os conceitos mais significativos e singulares de Deus no Antigo Testamento. Apresentaremos o que o Antigo Testamento fala acerca de Deus, subdividindo-o em nove temas: um Deus que salva, um Deus que abençoa, um Deus criador, um Deus santo, um Deus de amor, um Deus de ira, um Deus que julga, um Deus que perdoa e o Deus único. 1 Old Testament Theology, 53. 158 T eolocia do Antigo T esta m in to A. P or que com eçar com o Deus que salva? Começamos esta discussão da perspectiva veterotestamentária de Deus com o tema do Deus que salva porque Israel conheceu a Deus como salvador antes de conhecê-lo como Senhor. O êxodo (salvação) precede a aliança entre Javé e Israel no Sinai (lei). Israel também conheceu Javé como salvador antes de conhecê-lo como criador. “A história de Israel começou com a ação salvadora de Deus motivada pela compaixão”.3 Javé era Deus de Israel “desde a terra do Egito” (Os 12.9). Todavia, eu sou o S e n h o r, teu Deus, desde a terra do Egito; portanto, não conhecerás outro deus além de mim, porque não há salvador, senão eu. (Os 13.4) B. O significado de salvação no Antigo Testamento As palavras “salvar”, “salvador” e “salvação” em hebraico estão relacionadas com a raiz y s h \ que possui o significado básico de “ser amplo”, “tornar-se espaçoso”, “ter muito espaço”.4 Salvação é um termo com vasta gama de significados. Pode referir-se a ser salvo de inimigos, de doença, de pecado, da destruição e/ou da morte. É usado em referência a pessoas, como qualidade delas —ou seja, seres humanos que salvam— mas no Antigo Testamento a referência mais freqüente é a Deus. O termo é usado em relação a livramentos passados, presentes e futuros. É usado principalmente em relação à salvação de Israel, mas pode referir-se à salvação da raça humana e/ou de um indivíduo. A maior parte do Antigo Testamento diz respeito a Israel como nação ou grupo; assim, a principal função de Javé como Deus salvador era livrar Israel de seus inimigos. Às vezes os inimigos eram outras nações, como os egípcios, amalequitas, filisteus e babilônios. Outras vezes, Israel precisava ser salvo do próprio pecado da idolatria ou do culto a Baal, o que equivalia a quebrar a aliança ’ Westermann, Elements o f O ld Testament Theology, 35 (no Brasil, Teologia do AT, pela Paulinas). * Richardson, "Salvation, Savior", 169; Scherer, Event in Eternity, 154-155. Q uem t D e u s c o m o J a v í ? 159 com Javé. Alan Richardson disse que o Antigo Testamento não se ocupa basicamente em perguntar em que consiste a salvação ou por quais técnicas se pode alcançá-la. Antes, ocupa-se principalmente com a proclamação do que Deus fez e fará. Esse é o tema, tanto do Antigo como do Novo Testamento. Deus é um Deus de salvação: esse é o evangelho da fé tanto judaica como cristã. Ele salvou seu povo e o salvará; na Bíblia a salvação é uma realidade tanto histórica como escatológica. Deus é com freqüência chamado “Salvador”, e em algumas partes da Bíblia “Salvação” é um nome de Deus. É, portanto, totalmente apropriado que o Filho de Deus, por meio de quem foi cumprido o propósito divino da salvação, seja chamado Jesus, que significa “Salvador”. Assim, a salvação é o tema central de toda a Bíblia.5 Claus Westermann percorreu a obra de Deus como Salvador pelo Pentateuco, nos livros históricos, pelos Profetas e nos Salmos, indicando que com freqüência Deus é apresentado não só como salvador de Israel, mas também de indivíduos e nações. Westermann concluiu que os perigos e ameaças aos seres humanos e sua necessidade de livramento são grandes e diversos, de modo que os atos salvadores podem ser também diversos. Ainda assim, Deus é o salvador em cada circunstância. “O Antigo e o Novo Testamento [...] concordam na declaração de que Deus é o salvador. O fato de que Deus é o salvador é um aspecto de sua divindade no Antigo Testamento e também no Novo.” Que Deus é o salvador no Antigo e no Novo Testamento “não se pode discutir [...] o Deus salvador é de importância central”.6 Westermann cria que os atos salvadores de Deus no Antigo Testamento implicam um processo. A estrutura básica desse processo de salvação é: necessidade, clamor por ajuda, declaração de que foram ouvidos, livramento divino e reação dos salvos. Westermann viu essa estrutura por trás dos livros de Êxodo e Juizes. A salvação deve estar ligada a uma necessidade consciente. Sem uma necessidade, não haveria salvação. Para ser salvo, é preciso reconhecer o desespero pessoal e clamar a Deus. Deus ouve os clamores dos necessitados e os livra. Então o povo louva ao Senhor por seu amor longânimo e atos poderosos. O Antigo Testamento proclamou: “Do SENHOR é a salvação” (SI 3.8; Jn 2.9). “Salva-nos é a constante oração, ‘salvação’ é o constante desejo do salmista”.7 Mas o povo de Israel é o único povo a ser salvo? Javé interessa-se pelas necessidades das nações? O Antigo Testamento é basicamente a história do ! Op. cit., 168. 6 Op. cit., 46. 7 Kirkpatrick, The Book o f Psalms, 16. 160 T e o l o g ia do A n t ig o T e s t a m e n t o relacionamento especial de Javé com Israel. Do primeiro capítulo de Êxodo ao final de Malaquias, os principais assuntos são Javé e Israel. Por vezes surge um quadro maior do mundo, e outras nações entram em cena. Mesmo assim, o interesse pelas outras nações está diretamente associado à relação entre Javé e Israel. Os onze primeiros capítulos de Gênesis ocupam-se com todas as nações, mas esses capítulos são o prólogo ou cenário para o drama da redenção que começa em Gênesis 12 com Abraão. Gênesis 12.3 fornece uma indicação de que Deus chamou Abraão para abençoar as famílias da terra de maneira especial. A idéia de que as nações serão abençoadas reaparece em Gênesis 18.18, 22.18; 26.4; 28.14; Deuteronômio 29.19; Salmos 72.17; Isaías 65.16; Jeremias 4.2. Às vezes outras nações serão banidas (herem) e destruídas (Nm 31.17-18; Dt 7.1 -5; 20.16-18) ou escravizadas por Israel (Is 49.22-23; 60.14; Mq 7.16-17). As profecias estrangeiras de Amós, Isaías e Jeremias e os ais apocalípticos de Ezequiel e Zacarias falam de derrota e destruição das nações. Entretanto, um raio de esperança para todos os povos brilha periodicamente em todo o Antigo Testamento (SI 22.27; Is 2.1-4; Jr 12.14-16; 16.19-21; Mq 4.1-4; Zc 2.11; 8.20-23; 14.16). Também te dei como luz para os gentios, para seres a minha salvação até à extremidade da terra. (Is 49.66) Olhai para mim e sede salvos, vós, todos os limites da terra; porque eu sou Deus, e não há outro. (Is 45.22) Antes de mim deus nenhum se formou, e depois de mim nenhum haverá. Eu, eu sou o S enhor , e fora de mim não há salvador. (Is 43.10-11; cf. 43.3; 45.15, 21; 49.26; 60.16; 63.8-9) Quem t Deus com o J a v í? 161 Muitos pensam que salvação na Bíblia é apenas ser salvo do pecado. Edward J. Young afirmou que a única verdadeira teologia do Antigo Testamento é a que "faz plena justiça à Queda".' Ele também disse: Só há uma interpretação que faz justiça aos dados das Escrituras, sendo, a única que leva a sério as afirmações da Bíblia de que Deus realmente entrou em aliança com Adão antes da queda e de novo firmou aliança com o Adão decaído. Esse fato é básico para a devida compreensão de toda a revelação do Antigo Testamento. Sobre isso, aliás, edifica-se a revelação subseqüente. Com efeito, a revelação subseqüente dada no Antigo Testamento baseia-se na pressuposição de que o homem é uma criatura decaída, alienada de Deus, que precisa ser reconciliada com ele. A brecha introduzida pelo pecado nas relações entre os homens e Deus precisa ser curada, e essa obra de cura é só de Deus.9 A salvação do pecado é uma doutrina central nas Escrituras, mas Young parece ter levado sua teologia ao estudo das Escrituras, em vez de permitir que as Escrituras determinem sua teologia. O Antigo Testamento jamais menciona uma aliança entre Deus e Adão, nem antes nem depois da queda. Os termos "salvar" e "salvação" são usados no Antigo Testamento para designar mais o livramento de males físicos do que do pecado. Salvação é um termo amplo no Antigo e no Novo Testamento. E usado em referência ao livramento do mal, seja esse mal físico (derrota nacional, fome, pobreza, medo enfermidade), moral ou espiritual. F. J. Taylor disse que "cerca de um terço das referências do N Testamento à salvação denota livramento de males específicos, tais como cativeiro, doença e possessão demoníaca (Mt 9.21; Lc 8.36), terrores escatológicos (Mc 13.20) ou morte física (Mt 8.28; At 7.20)".10 Otto Baab perguntou: Como a concepção de salvação depende da natureza do pecado? O pecado, vimos, é a recusa do homem em reconhecer sua condição de criatura e a afirmação orgulhosa de sua singularidade e liberdade espiritual. Ele se faz de Deus e passa a criar imagens dele próprio na forma de poder econômico ou político, sistemas intelectuais sacrossantos e códigos morais que substituem a justiça divina, procurando assim provar para si mesmo e para seus companheiros que ele é Deus e não criatura de Deus. Ele usa sua liberdade de maneira idólatra e não ética, invadindo a * The Study o f Old Testament Theology Today, 42. 9 Ibid., 69. 10 "Save, Salvation", 219-220. 162 T e o l o g ia do A n t ig o T e s t a m e n t o liberdade de outros a quem pode explorar e escravizar. Isso é pecado. Em vista disso, que é salvação?" Baab disse que a salvação é a chegada de um senso de humildade e dependência de Deus. Ela exige que a pessoa reconheça o fato de ser criatura, fraca, limitada. Isso não é um tipo de terapia psicossomática para restaurar a saúde da mente e do corpo. Tal restauração só pode vir como resultado da obra de Deus, não de um psiquiatra. "Nada menos que a luz penetrante da santidade de Deus que condena e ilumina pode revelar o homem para ele mesmo e mostrar-lhe seu pecado".12 Esse tipo de salvação do pecado só pode ocorrer em nível individual. Algumas passagens do Antigo Testamento descrevem indivíduos em sua experiência de salvação do pecado. Os testemunhos dos salmistas nos salmos 32 e 51 e a experiência de Isaías no templo (Is 6) são exemplos clássicos de experiências individuais de salvação do pecado no Antigo Testamento. Em cada caso Deus é o salvador. Entretanto, o Antigo Testamento fala principalmente da purificação ou do perdão de pecados para o grupo mediante observância adequada de rituais. Mas a observância adequada de rituais não salvavam por si. Só Deus podia salvar (SI 3.8; Jn 2.9). 19. Um Deus que abençoa Mais que qualquer outro estudiosos moderno, Claus Westermann destacou as diferenças entre as idéias de "salvar" e "abençoar" no Antigo Testamento. Talvez seus extensos estudos em Salmos com seus lamentos e louvores tenham-no levado a essa perspectiva. Westermann traçou a história do estudo da bênção pelas obras de Dillman, Schultz, Stade, Eichrodt, von Rad, Köhler, Vriezen, Pedersen e Mowinckel.13 Ele reconheceu Johannes Pedersen e Ludwig Köhler como os primeiros a notar uma diferença básica de significado entre livramento e bênção. Von Rad enquadrou o conceito de bênção dentro do conceito de salvação. " The Theology o f the Old Testament, 119. 11 Ibid., 119-120. 15 Blessing in the Bible, 15-23. QUCM t D t US COMO jA V tr 163 A. O significado de bênção O significado de "bênção" muda de acordo com a fonte e a forma literária no Antigo Testamento. O conceito mais amplo de bênção está na narrativa da primeira criação (Gn 1.1—2.3). Ali, o Deus Criador concede a toda a raça humana e a cada criatura vivente a bênção da fertilidade, "Sede fecundos, multiplicai-vos" (Gn 1.22, 28); do espaço, podiam encher as águas, o ar e a terra (Gn 1.22, 28); e do alimento (Gn 1.29-30). Os homens receberam a bênção especial de domínio (Gn 1.28). Deus também abençoou o sétimo dia e o tomou santo porque naquele dia descansou de sua obra de criação. Na primeira referência bíblica, a "bênção" é algo que Deus dá todas as pessoas, todos os seres viventes e ao dia de sábado (Gn 1.1—2.3). Ela é universal em sua amplitude e contínua em seus efeitos. Gênesis 5.2 e 9.1 repetem a fertilidade e a continuidade. B. Passagens do Antigo Testamento que tratam da bênção A idéia de bênção aparece com freqüência com sua oposta, a "maldição", em Gênesis 1—11. "Bênção" ocorre cinco vezes (1.22, 28; 2.3; 5.1; 9.1) e "maldição" ocorre seis vezes. Deus pronuncia uma maldição contra a serpente por tentar a mulher (3.14), contra Caim por matar o irmão (4.11) e contra a terra (3.17; 5.29). Noé amaldiçoa o filho mais novo e abençoa Sem e Jafé (9.25). Em 8.21 Deus promete que jamais voltará a amaldiçoar a terra por causa da humanidade. As maldições estão ligadas a atos de injustiça. A idéia de bênção como a provisão divina contínua de cuidado pelo mundo muda nas histórias patriarcais (Gn 12—36). Ela é aliada à promessa abraâmica. Em Gênesis 12.1-3 a palavra bãrak, "bênção", ocorre cinco vezes. Javé é quem a pronuncia, e a bênção toma-se parte da promessa aparentemente incondicional. A bênção (promessa) implica um grande nome e uma grande nação para Abraão. Wolff destacou que a dádiva da terra jamais é objeto de bênção. Ela é o objeto de um "voto" de Javé (cf. Gn 24.7; 26.3; 50.24; Nm 11.12).14 Gênesis 12 junta duas idéias teológicas diferentes: bênção e promessa. Uma (promessa) faz da salvação, o ato libertador de Deus, o centro; a outra faz da bênção constante de Deus o centro. Desse ponto em diante, a promessa de bênção é incluída na história da promessa.15 Balaão (Nm 22—24) parece ter sido um conhecido "abençoador" e "amaldiçoador" profissional. Ameaçado por Israel, Balaque, rei de Moabe, enviou mensageiros a Petor, junto ao Eufrates, para contratar Balaão para que 14 Veja "The K erygm aofthe Yahwist", 141. 15 P. D. Miller, "The Blessing o f God", 247. 164 T e o l o g ia do A n t ig o T e s t a m e n t o amaldiçoasse Israel. Relutante, Balaão foi a Moabe e tentou amaldiçoar a Israel. A cada vez que abria a boca, ele os abençoava, ao invés de amaldiçoá-los. Javé é visto firme no controle de toda bênção e maldição, pelo menos enquanto a sorte de seu povo está em jogo. Balaão disse: Como posso amaldiçoar a quem Deus não amaldiçoou? Como posso denunciar a quem o SENHOR não denunciou? (Nm 23.8) Eis que para abençoar recebi ordem; ele abençoou, não o posso revogar. (Nm 23.20) Benditos os que te abençoarem, e malditos os que te amaldiçoarem. (Nm 24.9 b) O incidente de Balaão mostra como Javé podia tomar um fenômeno bem conhecido e difundido do mundo antigo —a capacidade de certas pessoas de abençoar e/ou amaldiçoar— e usá-lo para ensinar a Israel que ele controla todos os supostos "amaldiçoadores e abençoadores" profissionais. Toda palavra de poder alheia à vontade de Deus é impotente e sem sentido.16 Aqui, o poder da bênção é o poder de Javé para proteger, garantir, defender. Deuteronômio promete a bênção de Deus. Para Deuteronômio, a obediência era o caminho para a bênção. Ele te amará, e te abençoará, e te fará multiplicar; também abençoará os teus filhos, e o fruto da tua terra, e o teu cereal, e o teu vinho, e o teu azeite, e as crias das tuas vacas e das tuas ovelhas, na terra que, sob juramento a teus pais, prometeu dar-te. Bendito serás mais do que todos os povos; não haverá entre ti nem homem, nem mulher estéril, nem entre os teus animais. O SENHOR afastará de ti toda enfermidade; sobre ti não porá nenhuma das doenças malignas dos egfpcios, que bem sabes; antes, as 16 Westermann, Blessing in lhe Bible, S0. Quem t Deus com o Javé? 165 porá sobre todos os que te odeiam. Consumirás todos os povos que te der o SENHOR, teu Deus; os teus olhos não terão piedade deles, nem servirás a seus deuses, pois isso te seria por ciladas (Dt 7.13-16). As bênçãos deviam ser lidas no monte Gerizim e as maldições, no monte Ebal, quando Israel entrasse na terra de Canaã (Dt 11.29; 27.12-13). Deuteronômio contém maldições bem como bênçãos. As bênçãos e maldições da aliança recebem expressão máxima em Deuteronômio 28 (cf. Lv 26). Aqui, o Deus que salva se toma o Deus que abençoa (aquele que concede fertilidade às pessoas, ao campo e ao rebanho). A pronúncia de bênçãos ou maldições tem pouco lugar nos livros históricos e nos profetas. Ali, a idéia de um Deus salvador/juiz é proeminente. Os salmos e a literatura de sabedoria têm mais a dizer sobre a bênção de Deus por causa da ênfase da sabedoria na criação e da ligação dos salmos com o culto. O Livro (da Sabedoria) de Jó ocupa-se do começo ao ftm com a concessão que Deus faz de suas bênçãos (Jó 1.10; 42.12). Os salmos representavam grande parte da adoração de Israel. Uma vez que o culto era um lugar em que a bênção de Deus podia ser transmitida às pessoas pelos sacerdotes, não nos surpreende a abundância de bênçãos nos salmos. As bênçãos cultuais aparecem bem cedo. Logo após a instituição do culto no Sinai, foi dada a bênção sacerdotal: O SENHOR te abençoe e te guarde; o SENHOR faça resplandecer o rosto sobre ti e tenha misericórdia de ti; o SENHOR sobre ti levante o rosto e te dê a paz. Assim, porão o meu nome sobre os filhos de Israel, e eu os abençoarei. (Nm 6.24-27) G. B. Gray disse que a bênção sacerdotal dá uma expressão concisa e bela ao pensamento de que Israel deve tudo a Javé, que protege seu povo de todo mal e supre todo o necessário para seu bem-estar, inclusive a paz.17 "Bênção" pode referir-se basicamente às necessidades físicas da vida, enquanto "guardar" destaca a obra protetora de Javé. Experimentar a face 17 Numbers, 71. 166 T e o l o g ia do A n t ig o T e s t a m e n t o resplandecente de Jav é era um sentimento amigável da presença de Deus para auxílio e favor (SI 31.16; 67.1; 80.3,7). "Misericórdia" significa estender para ajudar. Levantar o rosto, ao invés de esconder a face ou deixá-la cair, representa a atenção bondosa de Deus para com a necessidade pessoal. Paz (shãlôm) tornou-se a bênção ou saudação judaica comum. Ela é mais que a ausência de discórdia. Expressa o bem-estar positivo e a segurança daquele "cuja mente está firme em ti [Deus]" (cf. Is 26.3, ARC). shãlôm pode indicar o cessar de conflitos e a saúde física, rãpã’{SI 38.3; Is 53.5; 57.19; Jr 6.14). Ao pronunciar a bênção, os sacerdotes "colocam o nome de Javé sobre o povo de Israel". Ou seja, o povo será chamado, identificado e protegido pelo nome de Javé. A passagem termina com uma declaração enfática: "e eu [o pronome é enfático] os abençoarei". Os rabinos diziam que o pronome estava expresso para deixar claro que era Javé, não os sacerdotes, quem abençoava o povo. Bem ligada ao uso cultual da bênção pronunciada sobre outros povos e, talvez, proveniente desse uso, está a bênção empregada como saudação no Antigo e Novo Testamentos. Uma forma comum de saudação no antigo Israel aparece em Rute 2.4: "Eis que Boaz veio de Belém e disse aos segadores: O SENHOR seja convosco! Responderam-lhe eles: O SENHOR te abençoe!". A bênção como palavra de despedida para amigos, amados ou conhecidos pode ser vista na separação entre Jônatas e Davi (1 Sm 20.24) e no pedido do faraó a Moisés, na partida de Israel (Êx 12.32). A bênção sacerdotal não era alguma concessão mágica de poder, saúde ou riqueza por intermédio do poder do sacerdote. É uma oração para elevar a Deus a esperança e confiança de que ele manterá sua provisão contínua para a humanidade. O tratamento que Albert Outler dá à providência chega perto da perspectiva veterotestamentária da bênção como presença de Deus na história e na natureza e com a comunidade e os indivíduos. Outler disse que a providência tem sido associada com maior freqüência à presença constante de Deus.18 A providência e a bênção significam que Deus está no controle da história e da natureza e que ele está sempre perto. " Who Trusts in God, 72. Q uem t Deus como J a v í ? 167 20. O Deus criador No Antigo Testamento, o Deus que salva e o Deus que abençoa é também o Deus que cria. Muitos estudiosos afirmam que Israel conheceu a Deus como salvador (na experiência do êxodo), antes de conhecê-lo como criador. Zimmerli diz que dificilmente seria exagero dizer que quando o Antigo Testamento refere-se ao "livramento israelita do Egito" fornece a primeira orientação e o ponto de partida para a fé israelita.19 G. Emest Wright disse que a humanidade chegou ao entendimento da criação por intermédio do entendimento da aliança. A vontade do homem comprometida com o Senhor-Criador e obediente a ele implicava uma relação pessoal entre o homem e seu Senhor muito mais profunda que a comum no mundo religioso. O homem bíblico aprendeu isso a partir da relação de aliança, o mais profundo de todos os relacionamentos. Através disso ele também se confrontou com o mistério da criação dele mesmo.20 A. Criação: secundária, não principal, na "história sagrada" Até pouco tempo atrás, a opinião que prevalecia entre estudiosos do Antigo Testamento era que "a criação não é um dado primário na fé israelita, desempenhando, em lugar disso, função secundária na redenção [...] e ocupa lugar periférico [ou lateral] do pensamento israelita, não o centro".21 Karl Barth colocou a aliança antes da criação em sua dogmática. Christoph Barth disse que para Israel a criação é um fato salvador, não só uma verdade geral objetiva. Entretanto, não ocupa lugar central entre os tópicos da fé israelita.22 A criação como ato de Deus é um tópico complementar no credo de Israel. Ela não é citada na maioria dos "credos" de Israel no Antigo Testamento. A criação está nos "credos" em Neemias 9.6-25 e no salmo 136. E provável que Westermann tenha ido longe demais ao dizer: O Antigo Testamento jamais fala de fé no Criador [...] A criação não era uma questão de fé porque simplesmente não havia alternativa. Em outras palavras, o Antigo Testamento diferia de nós em seu entendimento da realidade, visto que não havia outra realidade, senão a estabelecida por 19 Old Testament Theology in Outline, 32. K The Old Testament and Theology, 73. 21 Crenshaw, Studies in Ancient Israelite Wisdom, 27. “ God With Us, 9. 168 T e o l o g ia do A n t ig o T e s t a m e n t o Deus. Eles não tinham necessidade expressa de crer que o mundo foi criado por Deus porque isso era uma pressuposição do pensamento deles.23 Nesse sentido, o desenvolvimento do credo da igreja é paralelo ao credo israelita. Os credos da igreja primitiva não fazem referência à criação. A criação tomou-se assunto dos credos só por volta de 150 d.C., recebendo destaque complementar apenas em Nicéia, em 325 d.C.24 A relação secundária entre a criação e a aliança tem sido contestada em anos recentes. Os estudos de H. H. Schmid sobre a "ordem no antigo Oriente Próximo" levaram-no a concluir que a criação é a estrutura dentro da qual movemse as concepções históricas. Schmid alegou que o pano de fundo dominante do pensamento veterotestamentário é a idéia abrangente de ordem do mundo e fé na criação no sentido amplo. Assim, a fé na criação não é uma idéia periférica, mas a essência de todo o pensamento do AT.25 T. M. Ludwig também questionou a idéia de que a criação é secundária à história da salvação. Ludwig estudou as tradições do estabelecimento da terra em Isaías 40—66 e concluiu que "a fé na criação em Deutero-Isaías não é meramente incluída na fé na eleição ou redenção".26 Crenshaw contestou a concepção predominante tomando por base seu estudo do caos dentro de uma discussão da criação. Crenshaw deu ênfase a três elementos: (1) a ameaça do caos no âmbito cósmico, político e social evoca uma reação na teologia da criação; (2) no pensamento de sabedoria, a criação atua basicamente como uma defesa da justiça divina; (3) a centralidade da questão da integridade de Deus na literatura israelita coloca a teologia da criação no centro do empreendimento teológico.27 Crenshaw concordou que a criação desempenha função secundária no Antigo Testamento, mas não na história da salvação, conforme ensinava von Rad. Crenshaw alegou que a função da teologia da criação é escorar a crença na justiça divina. Assim, ele afirmou que "a criação diz respeito à questão fundamental da existência humana, a saber, a integridade de Deus".28 25 Creation, 5; cf. Elements o f Old Testament Theology, 72, 85. ” Christoph Barth, op. cit., 11 ; cf. Jacob, Theology o f the Old Testament, 136. ” "Creation, Righteousness, and Salvation”, 1-19; veja Reventlow, Problems o f Old Testament Theology in the Twentieth Century, 34-185; Nicholson, "Israelite Religion in the Pre-exilic Period", 20-29. “ "The Traditions o f the Establishing o f the Earth", 345-357. 17 Studies in Ancient Israelite Wisdom, 27. “ Ibid., 34. Q uem t D eu s c o m o J a v í ? 169 B. Tipos de linguagem de criação Tudo o que o Antigo Testamento diz sobre a história da salvação é notavelmente uniforme e sem ambigüidades, mas o que diz acerca de Javé como Criador é mais variado, sendo formulado em diferentes linguagens de criaçãor29 O Antigo Testamento emprega quatro tipos claramente definidos de linguagem de criação comuns no antigo Oriente Próximo: (1) criação em que se faz ('ãáâ)ou por algum tipo de atividade; (2) criação por meio de concepção e nascimento; (3) criação por meio de batalha; e (4) criação por meio da palavra.30 Além desses quatro tipos de linguagem de criação que Israel tinha em comum com seus vizinhos, ela usava uma palavra especial para designar a criação, bãrã’ —palavra desconhecida no mundo antigo fora de Israel. O primeiro tipo de linguagem de criação empregado pelo Antigo Testamento é o de Deus "fazer", 'ãââ, algo ou alguém (Gn 1.7, 26; 2.2, 4, 18, 22; 3.1; 6.6). Também se fala de Deus "formar", yãsãr, alguém ou algo (Gn 2.7, 8, 19; Is 43.1, 21; 44.2, 21, 24; 45.7, 9, 11, 18; 49.5; Jr 1.5; Am 4.13). Outro termo usado pelo Antigo Testamento, semelhante a 'ãáâ é qãnâ, "obter", "preparar" ou "possuir", qãnâ refere-se à obra a que Deus dispensou cuidado e interesse. Ele se toma possuidor daquilo que fez (Gn 14.19, 22; Êx 15.16; Dt 32.6; SI 74.2; 78.54; 104.24; 139.13; Pv 8.22). Outros termos usados em referência ao ato de Deus criar, no sentido de "fazer", são: estender (nãtâ) os céus como uma tenda (Is 40.22; 44.24; Zc 12.1); lançar os alicerces (tãpah) dos céus (Is 48.13); lançar os alicerces (yãsad) do mundo (SI 24.2; 78.69; 89.11; Pv 3.19; Is 14.32; Am 9.6); fundar (cõnén) a terra (SI 24.2; 119.90; Is 45.18); formar (bãnâ) alguém ou algo (Gn 2.22; Am 9.6). O segundo tipo de linguagem de criação usada por Israel era o de nascimento e concepção. Outros povos da vizinhança de Israel falavam da criação em termos de sexo, concepção e nascimentos. Von Rad disse que "no culto cananeu, a cópula e a procriação eram consideradas de maneira mítica, como acontecimentos divinos; por conseguinte, a atmosfera religiosa era praticamente saturada de concepções míticas sexuais. Mas Israel não participava da divinização do sexo. Javé permanecia absolutamente além da polaridade do sexo".31 Embora Israel assumisse atitude polêmica em relação à deificação do sexo e excluísse de toda a esfera do culto a idéia e a prática, permanece alguma ” Zimmerli, Old Testament Theology in Outline, 33. w John H. Stek, "What Says the Scriptures" em Portraits o f Creation, ed. van Till, 207. 51 Old Testament Theology 1,27, 146. 170 T e o l o g ia do A n t ig o T e s t a m e n t o linguagem antiga, retratando a criação em termos de concepção (yãlad) ou nascimento (Jó 38.8; SI 90.2). Westermann disse que a palavra tõlêdôt, a "gênese" do céu e da terra, reflete essa idéia (Gn 2.4). Os termos ya sa \ "produzir", e hül, "produziu", (Pv 8.24) podem também ter essa conotação (Gn 1.20, 24). O fato de Israel ter sido capaz de usar a linguagem do nascimento em referência à criação mostra claramente que existiu em Israel, em período bem remoto, uma doutrina muito definida da criação.32 O terceiro tipo de linguagem que Israel e seus vizinhos empregavam em relatos da criação era o de batalha entre os deuses. Talvez o relato mais famoso desse tipo de batalha seja o Enuma Elish, em que Marduque mata o velho dragão, Tiamat, e o corta em duas partes. De sua metade superior, ele fez os céus, e da metade inferior, fez a terra.33 Embora o Antigo Testamento não dê indicações de que Israel alguma vez tenha pensado na criação como conseqüência de um embate de Javé com algum outro deus, a linguagem daquela antiga batalha ocorre de quando em quando. O caos, representado pelo mar, águas, as profundezas, Raabe, ou Leviatã, parece um inimigo que Javé derrotou e mantém aprisionado (Jó 3.8; 9.13; 26.12; 38.10-11; SI 46.1-3; 74.12-17; 89.9-13; 93.1-5; 104.5-9; Is 27.1; Jr 5.22). Histórias semelhantes da criação em termos de uma batalha entre os deuses foram encontradas em textos de Ras Shamra. Frank Cross descreveu e traduziu alguns desses textos cananeus de Ras Shamra e destacou semelhanças e diferenças com algumas passagens do Antigo Testamento.34 O Antigo Testamento emprega outro tipo de linguagem de criação semelhante à de seus vizinhos. E a linguagem da criação por uma palavra. Oito vezes em Gênesis 1 lemos: "Disse Deus..." (v. 3, 6, 9, 11, 14, 20, 24, 26). Von Rad observou que a criação pela palavra de Deus reflete a "absoluta ausência de esforço da ação criativa divina".35 Isso também denota que a criação é nitidamente separada em sua natureza da pessoa de Deus. O mundo criado não é emanação. Ele é seu Senhor. Fora de Gênesis 1, o Antigo Testamento raramente refere-se à criação pela palavra (SI 33.6; 148.5; Is 41.4; 48.13; Am 9.6). O conceito de criação pela palavra não é exclusivo do Antigo Testamento. No Enuma Elish,36 Marduque prova seu poder divino fazendo surgir um objeto e fazendo-o desaparecer do mesmo modo. Também nos textos do templo antigo de 11 Ibid., 28. ” Veja Heidel, The Babylonian Genesis. 54 "The Song o f the Sea and Canaanite Myth", 1-25; cf. F. F. Bruce, The New Testament Development o f Old Testament Themes, 40-50. 55 Op. cit., 142. “ Veja Heidel, op. cit. Quem t D e u s c o m o J a v é ? 171 Mênfis,37 Ptah, o deus do universo, exerce sua atividade criadora com o auxílio do "coração e da língua" —ou seja, por meio de sua palavra. "Ele criou nove deuses (a água primeva, o deus-sol Re, etc.) por sua palavra".3* O Antigo Testamento possui duas palavras especiais que significam criar a palavra bãrã’é uma palavra hebraica sem igual que significa "ele criou", bãrã’ é usada 11 vezes em Gênesis (1.1, 21, 27 [três vezes], 2.3, 4; 5.1, 2 [duas vezes]; 6.7); uma em Êxodo (34.10), Números (16.30), Deuteronômio (4.32), Eclesiastes (12.1); Amós (4.13), Jeremias (31.22), Malaquias (2.10) e em Isaías 1—39 (4.5); 20 vezes em Isaías 40—66 (40.26, 28; 41.20; 42.5; 43.1, 7, 15; 45.7 [duas vezes], 8, 12, 18 [duas vezes]; 48.7; 54.16 [duas vezes]; três vezes em Ezequiel (21.20; 28.13, 15); seis vezes em Salmos (51.10; 89.12,47; 102.18; 104.30; 148.5). Ainda assim, essa palavra não foi encontrada em línguas semíticas mais antigas fora do Antigo Testamento.39 A palavra é usada 48 vezes no Antigo Testamento nas raízes qal e nifal, significando "criar". É empregada uma vez na raiz nifil, "engordar-se" (1 Sm 2.29) e quatro vezes no piei, "cortar madeira" (Js 17.15, 18; Ez 21.24; 23.27). Quando bãrã’é empregada no sentido de "criar", o sujeito é sempre Deus. Falar de um ser humano "criando", com o uso de bãrã’ soaria blasfemo no Antigo Testamento. Além disso, o Antigo Testamento jamais menciona algum material com que Deus cria algo. Embora a criação ex nihilo (do nada) apareça primeiro de maneira explícita em 2Macabeus 7.28, o significado pode estar implícito em Gênesis l.40 C. Referências à criação no Antigo Testamento O Antigo Testamento começa com dois relatos ímpares e profundos da criação do universo e da humanidade (Gn 1.1—2.4a; 2.4A-25). Westermann disse: O primeiro capítulo da Bíblia é uma das obras-primas da literatura mundial. Todas as perguntas que têm sido dirigidas a esse primeiro capítulo da Bíblia, todas as dúvidas quanto ao que é “certo” naquilo que ali se encontra, todas as explicaçOes emocionais de que seria totalmente antiquado, de maneira alguma afetam o valor do que ali está. Quando se ouve o capítulo lido em voz alta e no devido contexto, percebe-se que o ” Veja John A. Wilson, "The Theology o f Memphis", em Ancient Eastern Texts, ed. James B. Pritchard. MVon Rad, Old Testament Theology /, 143 (no Brasil, Teologia do AT, pela ASTE); Westermann, Creation, 10; id.. Genesis I —1 ,26-41. * Veja M / i ’em t d o t ii, eds. Botterweck e Ringgren, 245. “ Zimmerli, Old Testament Theology in Outline, 35; von Rad, Old Testament Theology 1. 143. 172 T ecm x jc ia do A n t ig o T e s t a m e n t o que se expressa é algo que jam ais foi realmente dito nem antes nem depois.41 Gênesis 1 afirma que Deus criou (bãrã), sem nenhum esforço, todo o universo e tudo o que nele há. O primeiro versículo de Gênesis deve ser compreendido como uma declaração sucinta de tudo o que se descreve nos versículos seguintes. E uma oração independente e não deve ser tomada como oração subordinada introdutória dos versículos 2 e 3, como fazem algumas versões modernas (NEB, NRSV e NJB).42 Gênesis 1.2 fala da condição primeva da terra antes de sua forma final (criação) num período de sete dias (uma semana). A terra estava num estado de caos após o ato inicial de criação relatado no versículo 1. O caos é indicado por tèhôm, "abismo", hoshèk, "trevas", e tohü wãbohú, "sem forma e vazia". Algumas novas traduções (NEB, NRSV e NJB) trazem "vento" em lugar de "espírito" como tradução de rôab em Gênesis 1.2. Robert Luyster defendeu essa nova tradução: "Uma análise do conflito persistente com o mar rebelde (tèhôm ) revela que o emblema característico de sua soberania é seu vento (ou sopro, ou voz, mas não espírito). Qualquer outra interpretação de 1.2 seria incoerente com tudo o que se segue".43 Ambas as leituras, "vento" ou "espírito", são possíveis. A leitura tradicional é "Espírito", tèhôm ("abismo") refere-se com freqüência ao mar rebelde. E paralelo a "águas" nesse versículo. Depois da declaração sucinta em 1.1 e do retrato verbal do estado primevo do mundo em 1.2, a criação é descrita como obra de Deus realizada em seis dias sucessivos, seguidos pelo restante do sétimo dia. O primeiro dia testemunhou a criação da luz (1.3-5). Antes da luz, tudo era escuro e sombrio. Aqui, a luz está relacionada às trevas e não aos luzeiros (sol, lua e estrelas). Nós, hoje, tentamos compreender a luz pela astronomia e física. No Antigo Testamento pensava-se no âmbito dos fenômenos observáveis. A luz não dispersou todas as trevas. Ela foi considerada "boa" no versículo 4 e separada das trevas. Trevas pode encerrar uma implicação de "mal" em oposição à "boa luz". Quando Deus chamou a luz "dia" e as trevas "noite", exerceu sua soberania sobre elas. No mundo antigo, o poder de dar nome indicava poder de governo. No segundo dia (1.6-8), Deus fez o "firmamento", entendido como uma abóbada ou domo metálico que cruzava os céus. O verbo rãqa' pode significar "esmagar" (Ez 6.11), "estender"(Is 42.5; 44.24; SI 136.6); "moldar com martelo" 41 Crealion, 36. 43 Von Rad, Genesis, 48—49; veja uma discussSo completa dos problemas na tradução de G ínesis 1.1—3 em Lane, "The Initiation o f Creation", 63-73. 45 "Wind and Water", 10. Q uem t d eus com o J avé? 173 ou "bater para laminar" (Êx 39.3; Jó 37.18; Jr 10.9). O firmamento separou as águas dos céus das águas sobre a terra. A palavra "fez" é aqui empregada para designar a atividade criadora de Deus, em lugar da palavra "criou". Não se diz que o firmamento é "bom". O terceiro dia da criação (1.9-13) testemunha outra separação entre as águas sobre a terra e a parte seca. O conjunto de águas sobre a terra é denominado "mares". De novo, o ato de dar nome reflete a soberania de Deus sobre as águas. A terra seca, por sua vez, recebe ordens de produzir vegetação em forma de grama, ervas e árvores frutíferas. O relato reconhece que as plantas têm capacidade de se reproduzir, ainda que não se diga que sejam "viventes" no sentido pleno. De novo, Deus viu que sua obra era "boa". O quarto dia (1.14-19) fala da criação dos dois grandes luzeiros e das estrelas no firmamento. Toda a seção é fortemente polêmica. A mensagem inegável é que o sol, a lua e as estrelas são criações de Deus. Não são deuses, como acreditavam os vizinhos de Israel. Eles não devem ser cultuados. Eles não têm poder, exceto o que Deus lhes deu: o de reger o dia, a noite e as estações.44 Os nomes hebraicos traduzidos por "sol" e "lua" são deliberadamente deixados de lado, talvez porque os vizinhos de Israel os empregassem como nomes de outros deuses. Von Rad pensava que as palavras "luminares", "luzeiros" ou "iluminadores" tinham conotação prosaica ou degradante.45 Para com preender o significado dessas afirmações, deve-se lembrar que são formuladas numa atmosfera cultural e religiosa saturada de todos os tipos de falsas crenças astrológicas. Todo o antigo pensamento oriental (não o Antigo Testamento) com respeito ao tempo era determinado pelo curso cíclico das estrelas. O mundo humano, até o destino individual, era determinado pela obra de poderes siderais.46 Nunca é demais destacar a importância atual da dessacralização bíblica da natureza, inclusive dos corpos celestes. Toda a base da ciência, medicina, pesquisa e viagem espacial moderna está no fato de que a natureza não é divina. Deus e os homens têm domínio sobre ela. Esse capítulo em Gênesis e a aterrissagem do homem na lua estão ligados.47 O quinto dia da criação (1.20-23) testemunhou a criação da vida animal no mar e nos ares. Ainda que as plantas tenham sido criadas no terceiro dia, não possuíam nepesh, "vida", como os animais. Os animais são divididos em três 44 Veja Hasel, "The Polemic Nature o f the Genesis Cosmology". 81-102. 45 Genesis, 53. 46 Ibid., 54. 41 Westermanr., Creation, 44-45. T e o l o g ia 174 do A n t ig o T e s t a m e n t o grupos: (1 ) o s "en x am es" n as ág u as —p ro v a v e lm e n te os e n x a m e s ou c a rd u m e s de p eix es, p e q u e n o s a n im a is m arítim o s, e "rastejad o res", ta lv e z rép teis; (2 ) as "aves" q u e voam n os céu s; e (3 ) o s g ran d es "an im ais m arin h o s". Excurso: Os grandes animais marinhos Esses grandes monstros marinhos, baleias (KJV), crocodilos, serpentes ou animais mitológicos que os antigos pensavam habitar o mar simbolizavam o mal? Tais criaturas são mencionadas em outras passagens do Antigo Testamento. John Gammie disse que estudiosos contemporâneos dividem-se entre a opinião de que o autor de Jó entendia que as criaturas em Jó 40.15-32; 41.1-43 eram monstros míticos e a de que eram animais naturais.41 Nicolas K. Kiessling disse: "Os mais temíveis dragões do Antigo Testamento, tanin, leviatã, raabe, são horríveis, mas vagas encarnações do mal, oponentes sombriamente delineados de Deus e do homem. Eles habitam as profundezas dos mares e são com freqüência empregados como metáforas oportunas de reis pagãos hostis aos filhos de Israel".49 A palavra tanin ocorre 15 vezes no Antigo Testamento, referindo-se a diferentes tipos de criaturas: um monstro marinho que Deus destruiu ou destruirá (SI 74.13; Is 27.1; 51.9); monstros marinhos em geral (Gn 1.21; Jó 7.12; SI 148.7); uma metáfora da Babilônia (Jr 51.34) ou do Egito (Ez 29.3; 32.3) como inimigo de Israel; e serpentes (Êx 7.9, 10, 12; SI 91.13). Em Lamentações 4.3 a referência é ambígua. "Leviatã" (Jó 3.8; 41.1; SI 74.14; 104.26; Is 27.1) e "Raabe”(Jó 9.13; 26.12; SI 87.4; 89.10; ls 30.7; 51.9) são usados no Antigo Testamento como paralelos de tanin. Q u an d o G ê n e sis 1.21 d iz que D eu s crio u os "m o n stro s m a rin h o s", ta nn in , sig n ifica q u e D eu s c rio u e c o n tro la tu d o o q u e há n o u n iv erso , m esm o o que o u tro s p o vos co n sid e ra v a m sím b o lo s d o m al. A s p esso as n ad a tin h am a te m e r no m u n d o . D eus possu i o s p o d eres d o m al em suas m ãos. E le os fe z e lh es d e u n o m e. D ois o u tro s asp e c to s d essa p assag em são sig n ificativ as: (1 ) A p ala v ra b ã rã \ "crio u ", é em p re g a d a só na seg u n d a p arte d o cap ítu lo . A razão pro v áv el é que a v id a an im al fo sse co n sid e ra d a um d eg rau a cim a d o restan te d a c riaçã o até a q u ele m o m en to . (2 ) A p a la v ra "b ên ção " é u sad a p ela p rim eira v ez n e sse c a p ítu lo (1.22). W esterm an n o b serv o u q u e a "b ên ção " aqui inclui o p o d er d e p ro p a g a r a esp é cie. "E ste é o sig n ificad o b ásico d a p alav ra bênção: o p o d er d e ser fértil. E ,k "Bchcmoth and Lcviathan:, 217. " "Antecedents", 167. Q uem t D e u s c o m o J a v é ? 175 evidente que a vida do ser vivente, seja do homem, seja do animal, inclui a capacidade de propagação. Sem isso não seria uma vida real".50 O sexto dia da criação (1.24-31) testemunha a criação dos animais terrestres e dos homens com uma diferença notável na descrição da origem dos dois. Os animais terrestres vêm da terra: "Produza a terra..."(v. 24). Mas os homens são objeto íntimo e direto da obra criadora de Deus: "Façamos o homem à nossa imagem" (v. 26). A palavra "criar", bãrã’, ocorre três vezes no versículo 27 para deixar claro que o ponto culminante e alvo da criação divina é atingido na criação dos seres humanos. As pessoas e os animais foram criados no mesmo dia e ambos são chamados distintamente nepcshhãyâ , "seres viventes". Cada um possui a capacidade de propagação da espécie. Ainda assim, os homens destacam-se como seres ímpares, feitos à imagem de Deus. Eles recebem domínio sobre todos os outros seres criados.51 No sétimo dia (2.1-3), Deus terminou sua obra de criação. Ele abençoou e santificou o sétimo dia porque nele descansou de sua obra de criação. O sétimo dia da criação é especial, diferente dos seis dias de trabalho anteriores. As palavras "acabar" e "terminar" em 2.1,2 indicam que o universo está completo, terminado, sendo tudo o que Deus pretendia que fosse. Deus estabeleceu o sétimo dia à parte dos outros dias. A palavra traduzida por "descansar" é shãbãt, base da palavra "sábado". Westermann disse que ali existe mais que "uma referência ao sábado mais tarde instituído em Israel. Há uma ordem estabelecida para a humanidade: de acordo com ela o tempo é dividido entre o cotidiano e o especial, e o cotidiano alcança seu alvo no especial".52 Entretanto, não devemos encontrar toda a instituição do sábado nessa passagem. Von Rad disse que fazê-lo "seria uma compreensão completamente equivocada da passagem. Pois não há nenhuma palavra indicando que esse descanso deva ser imposto ao homem ou prescrito a ele".53 O universo pertence a Deus porque ele o fez e continua sob seu controle. Von Rad disse: "Seria completa insensatez considerar esse descanso de Deus que concluiu a criação algo parecido com um ato pelo qual Deus se afasta do mundo; é, na realidade, um ato pelo qual ele se volta de maneira particularmente misteriosa e bondosa para sua Criação".54 Deus não deu as costas para o mundo depois de criá-lo. O "descanso" é mais que uma interrupção do labor para Deus. 50 Creation, 46. 51 Discutiremos os termos imagem, domínio, macho e fim e a no cap. 6, sobre a humanidade. MCreation, 65. H Old Testament Theology I, 148. 54 Ibid., cf. Westermann, Creation, 41. 176 T e o l o g ia do A n t ig o T e s t a m e n t o Ele expressa o interesse de Deus pelo mundo e talvez indique que a história terminará num descanso divino eterno.55 O segundo relato da criação (2.46-25) é em geral considerado mais antigo que o primeiro (1.2—2.4a). Conforme se apresenta hoje, suplementa e amplia o quadro do primeiro relato da criação. O primeiro relato começa com a criação do universo e faz da humanidade o degrau máximo da pirâmide cosmológica. O segundo relato começa com a humanidade como o centro e objetivo da criação. A humanidade é feita por Deus a partir do pó. A vida é o resultado do sopro de Deus nas pessoas. Esse sopro de Deus não pertence a nenhuma outra criatura. Deus não tinha completado a humanidade após aquele ato inicial de criação. Ele proporcionou espaço e ambiente agradável (o jardim do Éden), alimento (as árvores do jardim"), trabalho ("cultivar e guardar"), comunidade ou sociedade (homem e mulher) e língua. Deus também lhes deu uma ordem: "De toda árvore do jardim comerás livremente, mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás; porque, no dia em que dela comeres, certamente morrerás" (2.16-17). Em seu estado original, a humanidade estava completamente sujeita ao comando de Deus. Deus lhes deu perfeita liberdade em todas as coisas, exceto numa (só uma árvore foi destacada entre muitas como proibida), mas exatamente nesse ponto eles quiseram exercer a liberdade. Escolheram uma ação que Deus havia proibido. O decorrer da história mostra que a ordem de Deus era melhor, pois o ato de comer o fruto proibido trouxe dor, sofrimento e, por fim, morte. Von Rad disse: "Quão simples e sóbria é nossa narrativa, comparada aos mitos sensuais das nações, ao deixar o significado da vida no Paraíso consistir completamente na questão da obediência a Deus e não no prazer e na isenção do sofrimento".56 Esses dois relatos da criação colocam-se no início do Antigo Testamento para indicar que Deus é o Senhor de todo o mundo e não só o Deus de Israel. Os dois relatos da criação devem também ser vistos como parte vital do prólogo da história da salvação de Deus com Israel, a qual começa em Gênesis 12. Declarações teológicas diretas sobre a criação sob a forma de conjuntos amplos ocorrem apenas nesses dois relatos no início de nossa Bíblia. O Antigo Testamento contém numerosas passagens não teológicas espalhadas a respeito da criação. Gênesis 14.18-20 preserva o que deve ser uma das referências mais antigas à criação no Antigo Testamento. Nessa passagem Abraão reconheceu El Elyon, o Deus de Melquisedeque, como o mesmo que seu Deus Javé, "que possui os céus e a terra". A idéia da criação ocorre de novo no Pentateuco (Gn 5.2; 24.3; Dt 4.32; 32.6-8, 18), nos livros históricos (ISm 2.8; lRs 55 Von Rad, Genesis, 60. 54 Genesis, 79. Quem t Deus co m o J a v é ? 177 8.12 [Septuaginta]; 2Rs 19.15; Ne 9.6); e nos Profetas (Is 37.14-20; Jr 5.22-24; 10.12-16; 27.5; 31.35; 32.17; 33.2; 51.15, 19; Os 2.8-9; 8.14; Am 4.13; 5.8; 9.5-8; Zc 12.1; Ml 2.10). A parte de Gênesis 1—2, Isaías 40—66 possui mais referências a Javé como o Criador que qualquer outra passagem extensa no Antigo Testamento (Is 40.2231; 41.20; 42.5; 43.1, 7, 15; 44.2, 24; 45.7-12, 18; 48.13; 49.5; 51.13, 16; 54.5, 16; 65.17-18; 66.22). Esses capítulos contêm uma variedade de palavras que denotam a criação: bãrã\ "criar", (40.26, 28; 42.5); yãsãr, "formar" (45.18); 'ãsâ, "fez", (44.24; 45.12, 18); mãtah, "estendeu" (40.22; 42.5); rãqa \ "formar", (44.24; 45.12, 18); qãrã\ "chamar" (40.26) e hanunosf, "fazer sair ou nascer" (40.26). A ênfase em Javé como Criador em Isaías 40—66 deve-se ao desejo do profeta de ajudar seu povo (no exílio babilónico) a entender que o sofrimento dos israelitas não indicava a supremacia dos deuses babilônios em relação a Javé. O sofrimento deles no exílio era devido aos seus pecados (40.2). Javé, seu Deus, era soberano sobre todo o mundo; assim, tinha poder para redimi-los (40.27-31). A criação é um tema proeminente na literatura de sabedoria. Provérbios 3.19 diz: "O SENHOR com sabedoria fundou a terra, com inteligência estabeleceu os céus". Provérbios 8.22-31 é uma passagem importante sobre a criação e o lugar da sabedoria nela.57 O SENHOR me possuía no início de sua obra, antes de suas obras mais antigas. Desde a eternidade fui estabelecida, desde o princípio, antes do começo da terra. Antes de haver abismos, eu nasci, e antes ainda de haver fontes carregadas de águas. Antes que os montes fossem firmados, antes de haver outeiros, eu nasci. Ainda ele não tinha feito a terra, nem as amplidões, nem sequer o princípio do pó do mundo. Quando ele preparava os céus, aí estava eu; quando traçava o horizonte sobre a face do abismo; 57 Veja Landes. "Creation Tradition in Proverbs 8.22-31", 279-293; Whybray, "Proverbs 8.22-31 and Its Supposed Prototypes", 390-400; John Stek, "What Says the Scriptures?" em Portraits o f Creation, ed. van Till, 203-265. 17 8 T e o l o g ia do A n t jc o T e s t a m e n t o quando firmava as nuvens de cima; quando estabelecia as fontes do abismo; quando fixava ao mar o seu limite, para que as águas não traspassassem os seus limites; quando compunha os fundamentos da terra; então, eu estava com ele e era seu arquiteto, dia após dia, eu era as suas delícias, folgando perante ele em todo o tempo; regozijando-me no seu mundo habitável e achando as minhas delícias com os filhos dos homens. (Pv 8.22-31) Derek Kidner captou o significado geral de Provérbios 8 em seu comentário de Provérbios. Ele disse que o crescente louvor à sabedoria chega à plenitude nos versículos 22-31. "Não tem a intenção de preocupar o leitor com a metafísica, mas de levá-lo a uma decisão; o verdadeiro clímax é a passagem ‘Agora, pois...’ de 32-36".58 A origem da sabedoria é descrita de três maneiras nos versículos 22-24. A sabedoria diz: "Deus me criou" (v. 22, BLH); "desde a eternidade fui estabelecida" (v. 23); "nasci" (v. 24). O significado dessas três expressões está sujeito a debate. De fato, a palavra traduzida "criou" (v. 22) não é bãrã’, mas qãnâ, “obter” ou “possuir”. Esse versículo estava envolvido no debate da hipóstase ou personificação. A sabedoria está sendo aqui divinizada? Os arianos, que negavam a divindade de Cristo, apelavam para a tradução da Septuaginta, “criado”, para negar que Cristo fosse eterno.59 Mas aqui a sabedoria não é uma hipóstase de Javé. E uma personificação de um de seus atributos. A sabedoria era um atributo de Javé desde o princípio, antes do início da criação (v. 25-29). Deus nada fez sem sabedoria. Ainda assim, não foi a sabedoria que criou o mundo. “Quando ele preparava os céus [...] quando traçava o horizonte [...] quando firmava as nuvens de cima...” a sabedoria estava ao lado de Javé em tudo isso como “seu arquiteto” ou “criancinha” (v. 30). A palavra hebraica é 'ãmôn. "Arquiteto" é sustentado pela principal versão antiga de Jeremias 52.15 e talvez Cântico dos Cânticos 7.1. "Criancinha" é apoiado por Áqiiila. Ainda que não possamos resolver todos os problemas de linguagem, o significado principal da 51 Proverbs, 76 (no Brasil, Provérbios, Introdução e Comentário, pela Vida Nova). ” Ibid., 79. Q uem é Deus c o m o J a v é ? 179 passagem é claro. Javé como Criador considerou a sabedoria básica e indispensável. A sabedoria é mais antiga que o universo e fundamental para ele. Nem um grão de matéria, nem um vestígio de ordem (v. 29) veio a existir sem a sabedoria. A sabedoria é a fonte de alegria. A alegria de criar e a alegria da existência fluem do exercício da sabedoria divina —"ou seja, da habilidade perfeita de Deus".60 Numa passagem magnífica no livro de Jó, Javé apresenta a Jó uma série de perguntas retóricas sobre sua parte na criação do mundo inanimado e animado. Javé pergunta em 38.4: Onde estavas tu, quando eu lançava os fundamentos da terra? Dize-mo, se tens entendimento. A implicação é que Jó não estava presente. Ele não tinha nem a sabedoria nem o poder de criar ou controlar o universo (39.10-12). Jó era uma parte da criação de Deus, assim como o Beemote (40.15). Javé é sábio e também soberano, porque não só fez o mundo, mas o sustenta (Jó 38.1—39.30; SI 104.27-30). A fé veterotestamentária na criação é abrangente, firme e significativa. Por anos foi mantida à margem ou periferia da teologia do Antigo Testamento porque a história da salvação (von Rad) ou a teologia da aliança (Eichrodt) ocuparam o centro do palco. Porque o Antigo Testamento faz relativamente poucas referências à criação e porque ela é com freqüência associada com a sabedoria e conceitos universais, a criação foi muitas vezes negligenciada. Entretanto, o cânon do Antigo Testamento faz da criação tópico básico e fundamental da teologia do Antigo Testamento. E verdade que o Antigo Testamento não gira em tomo da criação. Ele gira em tomo da salvação e do livramento, mas não haveria salvação sem a criação. Deus é o criador de tudo e de todos. O modo pelo qual ele fez este universo é descrito em vários tipos de linguagem de criação. A criação tem sido afetada pelo pecado humano (Os 4.1-3). O senso de "retidão" e "justiça" podem estar relacionados à criação.61 A teologia da criação expande e aprofunda o conceito que se tem de Deus, da humanidade e do mundo. A fé na criação não é proeminente no Novo Testamento. O Novo Testamento diz menos acerca da criação que o Antigo. Talvez o Novo Testamento não tivesse necessidade de dizer tanto porque o Antigo disse tanto e tão bem. “ M , 78. 61 Veja a seção "llm Deus que julga* neste capitulo, e a discussão do pecado no cap. 7. 180 TEOLOGIA DO ANTIGO TESTAMENTO 21. Um Deus santo Santidade (qõdesh)è uma palavra intimamente divina. "Ela tem a ver [...] com a própria natureza da divindade, mais do que qualquer outra, na verdade como nenhuma outra"62. "Santidade é a qualidade mais típica da fé em Deus no Antigo Testamento"63. De todas as qualidades atribuídas à natureza divina, há uma que, tanto em virtude da freqüência como da ênfase com que é usada, ocupa uma posição de importância singular —é a santidade"64. Johannes Hanel fez da santidade o centro da sua teologia do Antigo Testamento,65 e Edmond Jacob propôs qdsh como o centro gramatical do Antigo Testamento, assim como a idéia correspondente é o centro teológico.66 Deus não é criatura; conseqüentemente, ele é santo. O "atributo" da santidade refere-se a esse mistério do ser divino que o distingue como Deus. Criaturas e objetos têm santidade apenas em sentido derivado, quando são designados por Deus para servir numa função especial. G. Emest Wright disse: De todos os “atributos” divinos, a santidade chega mais perto de descrever o ser de Deus e n&o sua atividade. Ela, no entanto, não é um a “qualidade” estática e definível com o a verdade, beleza e bondade dos gregos, porque é esse mistério indefinível em Deus que o diferencia de tudo o que criou; e sua presença no mundo é sinal de que ele dirige ativamente os seus negócios.67 A etimologia da palavra qõdcsh não é clara.6* Eichrodt, Jacob e Muilenburg achavam que a raiz qdsh deriva de uma raiz primitiva hipotética, qd(d), que significaria "cortar", "marcar", "separar". Bunzen e Vriezen derivaram-na da raiz árabe e etíope q d ’ou qdw, "ser brilhante" ou "ser puro". O uso da raiz no Antigo Testamento parece favorecer o sentido "ser marcado" ou "ser separado do uso comum". A separação do sagrado do profano é o sentido básico da palavra grega “ Snaith, The Distinctive Ideas o f the Old Testament, 21. “ Vriezen, Outline o f O ld Testament Theology, 297. “ Eichrodt, Old Testament Theology 1 ,270. “ Die Religion der Heiligkeit, iii. “ Theology o f the O ld Testament, 87. 47 God Who Acts, 75 (no Brasil, O Deus que Age, pela ASTE). “ Kornfeld, TWAT6, 1181-1185. Q uem t D e u s c o m o J a v é ? 181 temenos, da palavra latina sanctus e da palavra hebraica herem. O antônimo da palavra qõdeshé hôl, que significa "comum" ou "profano". Com a raiz qdsh estamos lidando com as reações básicas e elementares do ser humano ao mistério de que ele se sentiu cercado nos primeiros dias. Von Rad chamou a experiência do santo de "dado religioso primevo", que não pode ser deduzido de outros valores humanos. Santidade não é a elevação de qualquer outra coisa ao grau mais elevado; nem é ela ligada a alguma coisa por adição. O santo pode ser designado de modo muito mais apropriado "o grande estrangeiro" no mundo humano. E a experiência de um dado em relação ao qual a pessoa inicialmente sente medo em vez de confiança. É, de fato, "o totalmente outro".69 Talvez a melhor maneira de ver que santidade e divindade são equiparados no Antigo Testamento é comparar Amós 4.2 e 6.8: "Jurou o Senhor Deus, pela sua santidade", e: "Jurou o Senhor Deus por si mesmo" (nepesh). A mesma idéia é expressa em Salmos 89.35: "Por minha santidade eu jurei uma vez: jamais vou mentir a Davi!" (BJ). Deus e o santo são sinônimos nas linhas paralelas de Habacuque 3.3: "Deus vem de Temã, e do monte de Parã vem o Santo". Deus é chamado "santo" três vezes em dois lugares do Antigo Testamento. Os serafins cantaram: "Santo, santo, santo é o Senhor dos Exércitos; toda a terra está cheia da sua glória" (Is 6.3). Em um dos salmos de entronização, o salmista proclamou três vezes que Deus é santo (SI 99.3, 5, 9). Oséias destacou a idéia de que a santidade de Deus é o que o distingue das pessoas: "Eu sou Deus e não homem, o Santo no meio de ti" (Os 11.9). A expressão "o santo de Israel" ocorre trinta vezes no livro de Isaías em referência ao Deus de Israel. Dizer que Deus é santo é dizer que Deus é Deus. Santidade sugere o poder, o mistério, a transcendência —mas não a inatingibilidade— de Deus. O Antigo Testamento com freqüência recorre a antropomorfismos para falar de Deus. Fala dos seus olhos, rosto, pés, braço e mão. Essa linguagem poderia levar à humanização de Deus, não fosse sua santidade. A santidade de Deus o separa de todas as outras coisas no universo, incluindo o próprio universo. A palavra "santo", usada para descrever Deus, toma impossível qualquer pensamento de um deus criado pelo ser humano. Deus não é uma pessoa divinizada. M Von Rad, Old Testament Theology /, 205; veja Otto, The Idea o f the Holy (no Brasil, O Sagrado). 182 T e o l o g ia do A n t ig o T e s t a m e n t o B. A história da santidade A santidade tem uma história no Antigo Testamento e no antigo Oriente Próximo. O termo provavelmente é mais antigo que Israel. Ele é encontrado em várias línguas semitas, como a inscrição fenícia Yehimilk (por volta de 1200 a.C.) e os textos ugaríticos Aqhat 1.27,11.16 (também por volta de 1200 a.C.). Cades era o nome de certas cidades e lugares no Oriente próximo antes de Israel entrar em Canaã. Cades no rio Orontes foi a capital de uma província hitita e cenário de uma batalha terrível entre Ramsés II e o rei hitita. Uma deusa chamada Cades, adorada na Síria por volta de 1500 a.C., provavelmente tinha ligações mesopotâmicas anteriores. Esses nomes de lugares e de uma deusa levaram à conclusão de que "santidade" era uma idéia muito antiga ligada a deuses. O conceito mais antigo de santidade abrangia algumas conotações primitivas (materialistas) e negativas. Em princípio, santidade era entendida em termos de um poder misterioso que era perigoso, inacessível e temível. Objetos que pertenciam a Deus eram santos e ameaçavam de morte qualquer pessoa que os tocasse. Nadabe e Abiú morreram porque ofereceram fogo não santo ao Senhor (Lv 10.1-3). O Senhor matou várias pessoas de Bete-Semes porque olharam dentro da arca. Seus companheiros perguntaram: "Quem poderia estar perante o Senhor, este Deus santo?" (1 Sm 6.19, 20). Uzá morreu quando tocou a arca (2Sm 6.6, 7). Santidade não tem sempre conotação moral ou ética no Antigo Testamento. A palavra qãdêsh, "prostituta", vem da raiz qdsh, "santo". Tanto a forma masculina, qãdêsh, como a feminina, qedeshâ, são usadas no Antigo Testamento para referir-se a prostitutos e prostitutas (Dt 23.18; lRs 14.24; 15.12; 22.46; 2Rs 23.7; Jó 36.14; cf. Formas femininas em Gn 38.21-22; Dt 23.18; Os 4.14). Todas essas referências são à prostituição cultual, com exceção de Gênesis 38. Esse uso sugere alguma influência de religiões pagãs sobre o vocabulário de Israel e talvez sobre o estilo de vida de alguns israelitas. A prostituição cultual ou sagrada era comum no antigo Oriente Próximo, como parte vital do culto da fertilidade. A adoração de Baal rivalizou com a adoração de Javé em Canaã depois que Israel entrou na terra. O casamento sagrado, hieros gamos, era parte das celebrações de ano novo em muitas religiões pagãs antigas. Engnell viu algumas evidências do casamento sagrado nas festas de Israel porque Cântico dos Cânticos é lido na sinagoga no oitavo dia da festa da Páscoa, mas Ringgren lembrou que todas as evidências da sua leitura como parte da celebração da Páscoa são tardias (500 d.C.) e que vestígios de um hieros gamos no Antigo Testamento são "discutíveis e precários".70 n Israelite Religion, 188. Q uem t D e u s c o m o J a v é ? 183 Marvin Pope, em seu comentário de Cântico dos Cânticos, disse: Enquanto avançava palavra por palavra e versículo por versículo pelo livro de Cântico dos Cânticos e revia as interpretações que lhe tem sido impostas, a impressão tomou-se convicção de que a interpretação cultual, que sofreu resistências veementes desde o começo, é a que melhor explica a linguagem erótica.71 No fim de uma introdução de 228 páginas ao seu comentário, Pope concluiu que certos aspectos de Cântico dos Cânticos podem ser entendidos à luz de "indícios consideráveis e cada vez mais numerosos de que as festas de funerais no antigo Oriente Próximo eram festas de amor, celebradas com vinho, mulheres e música".72 Apesar de a perspectiva cultual de Cantares estar longe de ser provada, amplas evidências nos profetas mostram que Israel praticou a prostituição "sagrada" em nome de Javé pelo menos em algumas ocasiões (Ez 16.25-34; 23.1221; Os 2.4-5, 13; 4.12-14; Am 2.7). A santidade não parece estar diretamente ligada a moralidade ou ética no Antigo Testamento. A reação de Isaías à sua visão de Javé entronizado (6.5) faz referência principalmente ao contraste entre a majestade de Deus e a insuficiência humana. Talvez a ordem no código de santidade, "Santos sereis, porque eu, o Senhor, vosso Deus, sou santo" (Lv 19.2), aproxime-se de uma associação entre santidade e moralidade no Antigo Testamento. Mesmo ali, no entanto, os mandamentos morais e cerimoniais estão misturados sem nada que os distinga, dando a entender que o significado básico de santidade em todo o Antigo Testamento é "separação". C. O lado espiritual da santidade Santidade no Antigo Testamento significa a essência da divindade. A santidade de Deus diz respeito a tudo sobre Deus que o separa da sua criação: seu poder misterioso e a atração dos adoradores. Num segundo sentido, santidade diz respeito ao chamado de Deus e à exigência de que as pessoas sejam santas como ele é santo, no sentido de que sejam puras, limpas, justas e compassivas. O Antigo Testamento contém algumas declarações sublimes sobre o lado espiritual da santidade (SI 51.11; Is 6.1-5; 57.15-16; Os 11.8-9) e faz referencia ao 71 Song o f Songs, 17. 72 Ibid., 228 184 T e o l o g ia do A n t ig o T e s t a m e n t o espírito três vezes santo de Deus (SI 51.11; Is 63.10-11). Mesmo assim, as idéias materialistas ou cultuais de santidade não desaparecem no Antigo Testamento. No eschaton, tudo se tomará santo. Números 14.21 diz que virá o tempo em que "toda a terra se encherá da glória do Senhor". Isso quer dizer que, no tempo presente, a santidade de Javé, chamada "glória", está restrita à esfera do culto. Mas isso é temporário. Zacarias 14.20 diz: "Naquele dia, será gravado nas campainhas dos cavalos: santo ao Senhor; e as panelas da Casa do Senhor serão como as bacias diante do altar". Isso significa que todo o âmbito secular será abrangido pela santidade de Javé. Quando isso acontecer, a santidade de Javé terá atingido seu alvo mais elevado. Santidade é um conceito difícil de entender. Muitas pessoas de hoje estão voltadas para o aqui e agora e para os negócios mundanos da vida. O que é profano e vulgar marca o espírito da maioria. Walter Brueggemann captou a necessidade do nosso mundo de hoje: A santidade de Deus é urgente em face da profanação, que esvazia a vida de paixão e dignidade maior. A santidade de Deus é urgente em face da brutalidade que permeia tudo, trivializa o propósito de Deus e maltrata o mundo de Deus. A santidade de Deus é urgente em face da crescente autoridade da técnica, que diminui o mistério que mantém a vida em aberto.73 Talvez uma visão de perto do chamado de Isaías mostre a essência da santidade de Deus na sua relação com seu povo. Isaías viu Deus em um trono, alto e elevado. Ele viu a glória de Deus representada na nuvem e sentiu o tremor do movimento do chão. Ouviu os serafins dizendo: "Santo, santo, santo é o Senhor dos Exércitos". Ele foi dominado por seu senso de pecado e impureza e pelo mesmo sentimento do povo. Experimentou a purificação de Deus por meio de uma brasa do altar. Depois ouviu o chamado de Deus para compromisso e serviço. 22. Um Deus de amor i Será que o Deus do Antigo Testamento é um Deus de amor, ou Márcion estava certo ao dizer que o Deus do Novo Testamento era de amor, e o Deus do Antigo Testamento, de ira? (Temos informações sobre Márcion somente por 75 Prefácio a John Gammie, Santidade em Israel, xii. Q uem t D e u s c o m o J a v ê ? 185 intermédio dos seus adversários, que o citavam para atacá-lo.) Tertuliano citou Márcion dizendo que o Deus do Antigo Testamento era "judicial, duro, poderoso na guerra [...] severo [...] e cruel", enquanto o Deus revelado em Jesus Cristo era "carinhoso, calmo, simplesmente bom, e amoroso".74 Para Márcion, "o Deus do Antigo Testamento é um ser diferente e inferior, o criador-demiurgo, o Deus vingativo da lei, totalmente oposto ao Deus gracioso revelado no evangelho".75 Até hoje ouvimos que o Deus do Antigo Testamento é um Deus de ira. Mas a ira é apenas um lado do retrato que o Antigo Testamento faz de Deus. O amor é o outro. A. Palavras hebraicas correspondentes a amor Diversas palavras hebraicas expressam os vários aspectos do amor: 1) ’ãhab ("amor"). A palavra mais vezes traduzida por "amor" é ’ãhab. etimologia da raiz não está clara. Jacob a derivou de uma raiz com dois sentidos, hab, que significa "soprar", "desejar", "chorar por". "O amor pode ser definido como um desejo ao mesmo tempo violento e voluntário."76 A palavra é usada mais de 200 vezes no Antigo Testamento. Refere-se 32 vezes ao amor de Deus. ’ãhab expressa com freqüência o amor entre marido e mulher (Gn 24.67; 29.18, 20, 32; Jz 16.4, 15; ISm 1.5; 18.20); dos pais pelos filhos (Gn 22.2; 25.28); da nora pela sogra (Rt 4.15); e entre amigos (1 Sm 18.1-3). Há pessoas que são objeto do amor de Deus: Salomão (2Sm 12.24; Ne 13.26) e Ciro (Is 48.14). Deuteronômio 10.18 diz que o Senhor ama o estrangeiro. Ele ama Jerusalém (SI 78.68; 87.2). Deus ama a retidão e os que agem corretamente (SI 11.7; 37.28; 45.7; 99.4; Pv 3.12; 15.9; Is 61.8; Ml 2.11). Deus amou os pais e, depois deles, escolheu seus descendentes (Dt 4.37; 10.15). Diversas vezes o Antigo Testamento fala do amor de Deus por Israel (Dt 7.8-9, 13; 23.5; lRs 10.9; 2Cr 2.11; 9.8). Ele o amou como marido (Ez 16.8; Os 3.1) e como pai (Os 11.1). Amou Jacó e odiou Esaú (Ml 1.2). Por Israel ser precioso aos seus olhos, ele o amou, redimiu e renovou (Is 43.4; 63.9; Sf 3.17). A linguagem do Antigo Testamento sobre o amor de Deus por Israel é às vezes paradoxal, para dizer o mínimo. Em Jeremias 31.3 se diz: "Com amor eterno eu te amei [Israel]"; mas em Oséias 9.15: "Já não os amarei". ’ãhab ("amor") é encontrado em todos os tipos de literatura e esteve em uso durante todo o período do Antigo Testamento. A raiz também ocorre em ugarítico, 74 Roberts e Donaldson, Anli-Nicene Christian Library, vol. 7,1.6; ii. 11. 75 Bright, The Authority o f the O ld Testament, 62. 76 Jacob, Theology o f the Old Testament, 108; cf. Gerhard Wallis, 'ahabh, TDOT I, 103. T e o l o g ia 186 do A n t ig o T e s t a m e n t o aramaico, púnico e samaritano, mas nunca como parte de um nome próprio em hebraico, como é o caso nesses idiomas. A Septuaginta a traduz por agapao. Norman Snaith chamou ’ãhabâ "amor por escolha". É amor incondicional. O amor por escolha flui do excedente espontâneo do amor de Deus.77 2) hesed ("dedicação", "lealdade", "bondade"). Uma segunda palav hebraica relacionada com o amor de Deus é hesed. Também aqui, a etimologia de hesedé incerta.78 Gesenius sugeriu "ímpeto", "zelo ardente" como sentido primário da raiz. Edmond Jacob disse: "A etimologia, mesmo que não nos dê uma resposta totalmente satisfatória para o problema, pelo menos dirige nossa atenção para o significado original, que tem que ver com força".79 A raiz hsd ocorre apenas três vezes no Antigo Testamento como verbo: uma vez no piei no sentido de "causar vergonha" (Pv 25.10) e duas vezes no hifil, em passagens paralelas que significam "mostrar-se leal" (2Sm 22.26; SI 18.25). O lado negativo de hesedé apresentado no Antigo Testamento em Provérbios 14.34 e Isaías 40.66: A justiça faz prosperar uma nação, o pecado é a vergonha (hesed) dos povos (Pv 14.34, BJ). Toda a came é erva, e toda a sua graça (hesed), como a flor do campo (Is 40.66, BJ). Em árabe, aramaico e siríaco, o sentido negativo de "vergonha" parece predominar.80 É difícil traduzir hesed para o português. A A R A via de regra traduz a palavra por "misericórdia". A Septuaginta também: eleos ("misericórdia"). Duas vezes (em Ester) ela usa charis ("graça"). A versão de Símaco parece ter preferido 71 The Distinctive Ideas o f the Old Testament, 95, 135, 140. 71 H.-J. Zobel, hesed, TDOTS, 1986,45. ” Theology o f the Old Testament, 103. *° Snaith, The Distinctive Ideas o f the Old Testament, 97; Jacob, Theology o f the Old Testament, 103. Quem t dkuscomo JavéT 187 charis a eleos}1Martinho Lutero usou a palavra Gnade ("graça") no lugar de pesed, assim como fez com a palavra charis no Novo Testamento. Snaith preferiu a expressão "amor da aliança". As várias versões em inglês usam termos como "bondade", "lealdade", "amor fiel", "dedicação". A tradução da palavra hesed foi objeto da última votação da comissão de tradução da versão em inglês conhecida como RSV.*2 Edmond Jacob usou "fidelidade de Deus" para pesed ’elôhîm, mas G. Ernest Wright criticou-o por isso: NSo creio que seja apropriado entender &esedcomo “fidelidade de Deus” e definir o termo teologicamente como “o elo entre Deus e o ser humano”. [...] Na verdade, a tradução do termo por “graça” pela LXX está mais próxima do seu sentido verdadeiro. Não se trata de um elo, mas da descrição de uma ação, imerecida e motivada por pura graça, de alguém superior em favor de alguém inferior, o que cria um elo e provoca uma resposta de graça no beneficiário. Portanto, fresed não é sinônimo de aliança (que é um termo legal), mas um tipo de açfio que cria um elo que transcende as exigências legais e produz no beneficiário uma reação apropriada, que também é fresedV O que se vê é que pesed contem dois elementos básicos. Um é a idéia de força, lealdade, fidelidade. O outro é a idéia de bondade, piedade, misericórdia e graça. Talvez "dedicação" capte os dois elementos da palavra. A palavra hesed com freqüência é usada em pares de palavras e na poesia paralela. Em 43 casos hesed é ligado a outro substantivo. Em 22 dessas vezes é com ’emet ou com alguma outra forma da raiz ’aman ("verdade"), na expressão "graça e verdade" (Gn 24.27,49; 47.29; Êx 34.6; Js 2.14; 2Sm 2.6; 15.20; SI 25.10; 40.11; 57.3; 61.7; 85.10; 86.15; 89.14,24; 98.3; 115.1; 138.2; Pv 3.3; 14.22; 16.6; 20.28). Sete vezes fresedé usado junto com "aliança" (EH 7.9, 12; lR s 8.23; 2Cr 6.14; Ne 1.5; 9.32; Dn 9.4). Emprega-se fresed com as palavras ‘õz ("força") e miégab ("fortaleza") em algumas ocasiões (SI 59.9,16; 144.2). " Dodd, Th* Biblt and the Greeks, 61. ° Kuyper, 'Grace and tnith", 8. (A Biblia de Jerusalém e a Bfblia na Linguagem de Hoje preferem "amor* [N. do Trad.].) “ "Review of Jacob’s Old Testament Theology, 81. 188 T e o l o g ia do A n t ig o T e s t a m e n t o O Antigo Testamento fala com freqüência da "abundância" ou "grandiosidade" do h esed de Deus (Êx 34.6; Nm 14.19; Ne 9.17; 13.22; SI 5.7; 36.5; 69.13; 86.5, 15; 103.8, 11; 106.7, 45; 117.2; 119.64; 145.8; Lm 3.32; J1 2.13; Jn 4.2). Uma vez o salmista diz: "A terra, Senhor, está cheia da tua hesed (bondade, SI 119.64). Três vezes o salmista diz que o hesed de Deus se estende até o céu, e sua fidelidade ( ’em et)alcança as nuvens (SI 36.5; 57.10; 108.4). A idéia é que seus hesed e ’em et não podem ser medidos. Um uso incomum de hesed aparece num estribilho de salmo: "Rendei graças ao Senhor, porque ele é bom, porque a sua misericórdia (hesed) dura para sempre". Esse estribilho ocorre 26 vezes: em lCrônicas 16.34, 41; 2Crônicas 5.13; 7.3, 6; 20.21; Esdras 3.11; Salmos 106.1; 107.1; 118.1, 2, 3, 4, 29; 136; Jeremias 33.11. Um estribilho semelhante se encontra em Salmos 107.8, 15, 21, 31. Esses estribilhos conclamam ao louvor de Deus porque ele é "bom" (tôb), e seu hesed é eterno. Ele não é volúvel, como os outros deuses do Oriente Próximo podiam ser. Uma das passagens mais famosas que contém a palavra hesed é Lamentações 3.22-24: As misericórdias (hesed) do Senhor são a causa de não sermos consumidos, porque as suas misericórdias não têm fim; renovam-se cada manhã. Grande é a tua fidelidade. A minha porção é o Senhor, diz a minha alma; portanto, esparerei nele. A confissão de que o hesed de Deus se renova a cada manhã é feita novamente em Salmos 59.16; 90.14; 92.2; 143.8. Em Lamentações 3.22, hesedestá mesmo no plural, dando a entender que as "misericórdias" de Deus são muitas ações de graça. A palavra é usada no plural diversas vezes (Gn 32.10; 2Cr 6.21; 32.32; 35.26; Ne 13.14; SI 17.7; 25.6; 89.2, 49; 1,06.7, 45; 107.43; Is 55.3; 63.7; Lm 3.22). As últimas duas referências em 2Crônicas são traduzidas por "ações de misericórdia" e "beneficências", referindo-se aos reis Ezequias e Josias. Mesmo que o sentido primário de hesed seja "força", "firmeza" e "fidelidade", ele contém também o elemento de amor, compaixão e graça, hesed é paralelo a rãhãm ("compaixão", SI 25.6; 51.1; 103.4; Is 54.8; Jr 16.5; Lm 3.22; Dn Q U M t DCUS COMO jAVtT 189 1.9; Os 2.19; Zc 7.9) e fc a ("graça", Gn 19.19; Et 2.17; SI 77.8-9; 109.12). Uma vez Israel é exortado a amar fresed( ’ahábatpesed, Mq 6.8). 3) Além de ’Shab ("amor") e pesed ("amor fiel"), duas outras raíz hebraicas, pnn e rpm, com freqüência tem a conotação de "amor", ftãnan dá a idéia de "graça" ou "amor ou favor imerecido". A diferença entre hãnan e hesedè que esta se referente primordialmente ao "amor por escolha". Ou seja, um vínculo ou relacionamento entre duas partes em aliança faz com que se esperem "atos de amor" entre eles. pãnan, por sua vez, indica o amor imerecido de alguém superior por alguém inferior, põn ("graça” ou "favor”) dá a idéia de favor imerecido, graciosidade suprema, condescendência por parte de alguém superior, sem que ele tenha a menor obrigação de agir assim. Nenhuma acusação de dureza ou crueldade pode ser levantada contra quem não a oferece. As várias formas verbais da raiz fran são usadas 76 vezes no Antigo Testamento tendo Deus ou pessoas como sujeito. A ARA traduz o termo por "ter misericórdia", "ter compaixão", "compadecer-se" (Êx 33.19; 2Rs 13.23; SI 4.1; 6.2; 31.9; 41.4; Pv 14.31; 19.17; 28.8; Is 30.19) ou "agraciar" (Gn 33.5). Às vezes o termo é traduzido por "ser generoso" (Gn 33.11). A tradução "suplicar", "orar", "pedir misericórdia" ou "mercê", "implorar", "derramar a queixa", "rogar" é encontrada em Gênesis 42.21; Deuteronômio 3.23; IReis 8.33,47; 9.3; 2Reis 1.13; 2Crônicas 6.24, 26; Ester 8.3; Jó 8.5; Salmos 30.8; 142.2; Oséias 12.4. O imperativo de hãnan é usado 19 vezes em Salmos para insistir com Javé para que "seja gracioso" com o salmista. Assim, frnn faz parte do vocabulário de oração. A forma substantiva teliinah desta raiz hnn é com freqüência paralela a tépillâ ("oração", lRs 8.28, 38, 45, 49, 54; 2Cr 6.29; Dn 9.3, 17, 18, 20). Jeremias usou uma forma substantiva de hnn em paralelo com têpillâ em acordos com Deus ou com superiores humanos, como o rei (Jr 36.7; 37.20; 38.26; 42.2, 9; cf. Dn 9.17). Outro substantivo, frõn, usado 70 vezes no Antigo Testamento, via de regra é traduzido por "favor" e ocorre como objeto dos verbos mãsã’ ("encontrar") ou nitan ("dar", Gn 6.8; 19.19; 30.27; Êx 3.21; 11.3; 12.36; 33.12; Nm 11.11; Dt 24.1; Jz 6.17; ISm 1.18; 2Sm 15.25; SI 45.2; 84.11; Zc 4.7; 12.10). O substantivo hõn nenhuma vez é usado no plural ou com o artigo. O adjetivo fiãnún ("gracioso") é usado 13 vezes no Antigo Testamento (Êx 22.27; 34.6; 2Cr 30.9; Ne 9.17, 31; SI 86.15; 103.8; 111.4; 112.4; 116.5; 145.8; J1 2.13; Jn 4.2). A maioria dessas 190 T e o l o g ia do A n t ig o T e s t a m e n t o ocorrências faz parte do credo não histórico usado freqüentemente no culto do Israel antigo: Senhor, Senhor Deus compassivo (rahum), clemente (hãnún) e longânimo e grande em misericórdia (hesed) e fidelidade ( ‘em eth) (Êx 34.6). A palavra rahõm ("compassivo" ou "misericordioso") é usada em 12 das referências paralelas a hãnún mencionadas acima. Portanto, a raiz hnn significa "graciosidade", "favor", "generosidade", "amor imerecido". Apesar de a Septuaginta traduzir hên por charís ("graça"), a palavra não significa o que Paulo tinha em mente quando usava charís. A Septuaginta segue com mais nitidez o sentido grego clássico de charís. Na verdade, no grego clássico, charís tem um espectro amplo de significados, como "aquilo que causa alegria, prazer, gozo, doçura, encanto, amabilidade, linguagem graciosa".84 Como a Septuaginta usara charís para traduzir hên quando se referia à "boa vontade" ou "generosidade" de Deus, Paulo podia usar charís no Novo Testamento para falar da "boa vontade e generosidade" de Deus.85 4) Outra palavra hebraica às vezes usada para expressar o "amor" de De é um termo rico em figuras da família, rahamim. Westermann disse que, quando fala de Deus, o Antigo Testamento contém uma peculiaridade que toma as ações de Deus, em certas ocasiões, muito humanas. Contrastando com a idéia da santidade de Deus, que enfatiza seu aspecto não humano, atribui-se com raham ("compaixão") uma emoção humana a Deus. A palavra na verdade significa "o ventre de uma mãe".86 A forma plural do substantivo expande o sentido de "ventre" na idéia abstrata de "compaixão, misericórdia, piedade, coração, amor" (veja Gn 43.14, 30; Dt 13.17; 2Sm 24.14; lRs 3.26; 8.50; lCr 21.13; 2Cr 30.9; Ne 1.11; 9.27, 28, 31; SI 25.6; 40.11; 51.1; 69.16; 77.9; 79.8; 103.4; 106.45; 119.77, 156; 145.9; Pv 12.10; Is 47.6; 54.7, 10; Jr 16.5; 42.12; Lm 3.22; Dn 1.9; 9.9, 18; Os 2.19; Am w Thayer, Greek-English Lexicon, 665. n Reed, "Some Implications o f Hen", 41. Elements o f Old Testament theology, 138. Q u em t De u s com o J a v í? 191 1.11; Zc 7.9). No Antigo Testamento, o adjetivo rahum ("compassivo, misericordioso") é usado freqüentemente junto com o adjetivo hanum ("gracioso"), sempre se referindo a Deus, nunca a pessoas (Êx 34.6; Dt 4.31; 2Cr 30.9; Ne 9.17, 31; SI 78.38; 86.15; 103.8; 111.4; 112.4; 145.8; Lm 4.10; J1 2.13; Jn 4.2). As formas verbais da raiz rhm derivam do substantivo "ventre".87 O verbo ocorre uma vez no qal significando "amor" por Deus (SI 18.1; ’ãhab traduz amor por Deus no SI 116.1); 43 vezes no piei significando "piedade" (SI 102.13; 103.13; Is 49.10; Os 2.25); "compaixão" (Dt 13.8; 30.3; Lm 3.32; Is 49.15; 54.8; Zc 10.6) e "misericórdia" (Êx 33.19; Dt 13.8; Is 60.10; Jr 42.12). Phyllis Trible dedicou um capítulo inteiro ao estudo da palavra rãham. Ela começou analisando a história das duas prostitutas que alegavam ser mãe do mesmo bebê em IReis 3.16-28. O rei Salomão conseguiu identificar a mãe verdadeira ao dizer que dividiria o bebê em duas partes com sua espada, dando a cada mãe metade da criança. Aí a mãe verdadeira propôs desistir de sua reivindicação, para que a criança pudesse viver. A razão da atitude da mãe é dada no versículo 26: "Porque o amor materno (rahamim) se aguçou (suas entranhas se comoveram, BJ) por seu filho". Trible disse que aquela mulher estava disposta até a renunciar à justiça por amor à vida. raham ("compaixão") é um amor que age em verdade e sacrifício pessoal. Somente após esse ponto a palavra mãe aparece na história. "Compaixão" é o amor de uma mãe pelo filho do seu ventre. Ele não conhece exigências do ego, de posse, nem mesmo de justiça. Trible disse: "O ventre protege e nutre, mas não possui nem controla. Ele entrega seu tesouro, para que haja integridade e bem-estar. Verdadeiramente, esse é o caminho da compaixão".88 A palavra rahamim ("compaixão") descreve o anseio de José por seu irmão, expressando uma relação fraternal (Gn 43.30). Trible viu o amor de Deus por Israel manifestado em Isaías 46.3-4 em termos da compaixão da mãe pela criança do seu ventre. Ela diz que a imagem dessa passagem "chega quase ao ponto de dizer que Deus possui um ventre".89 Outra passagem significativa que usa a terminologia da "compaixão" para falar do amor de Deus por Israel em termos de amor materno é Jeremias 31.15-22. O trecho começa com a observação de que a voz de Raquel ainda pode ser ouvida lamentando a perda dos seus filhos (v. 15). Deus consola Raquel, prometendo-lhe n Trible, God and the Rhetoric o f Sexuality, 33. “ Ibid. M Ibid., 38. 192 T e o l o g ia do A n t ig o T e s t a m c n t o que seus filhos retomarão à sua terra (v. 16, 17). Efraim (os filhos de Raquel) se arrepende (v. 18,19). Então Javé diz (v. 20): Não é Efraim meu precioso filho, filho das minhas delícias? Pois tantas vezes quantas falo contra ele, tantas vezes ternamente me lembro dele; comove-se por ele o meu coração (me‘ay, “ventreV, deveras me compadecerei (rapem ’arabamenu) dele, diz o Senhor. Trible viu nessa passagem um paralelo entre o amor matemo de Raquel por seus filhos e o amor de Deus por Efraim. Assim como Raquel chora a perda do fruto do seu ventre, Javé, do ventre divino, chora o mesmo filho. Há, porém, uma diferença. A mãe humana recusa consolar-se; a mãe divina transforma tristeza em graça. Conseqüentemente, o poema mudou do lamento desolado de Raquel para a compaixão redentora de Deus.90 A última linha do poema (31.22) é seu clímax. Infelizmente, seu sentido é obscuro. Ela diz: Até quando andarás errante, ó filha rebelde? Porque o S e n h o r criou uma coisa nova na terra: uma mulher cercará um varão (ARC). O poema começa com Raquel chorando por seus filhos que tinham ido para o exílio (v. 15,16). Javé diz que seus filhos retomarão (v. 17). Efraim se arrepende (v. 18, 19). Javé se pegunta se Efraim ainda é seu filho predileto e responde afirmativamente, prometendo ter misericórdia (raham) dele (v. 20). No versículo 21, a metáfora de Efraim muda do masculino (filho) para o feminino (filha virgem). Os cinco imperativos do versículo 21 são todos femininos. Os imperativos imploram que Israel retome às suas cidades (e ao seu Deus). Mas ela hesita. O versículo 21 pergunta: "Até quando andarás errante, ó filha rebelde?" Então, para Q uem t d e u s c o m o J a v î t 193 encorajá-la para fazer mais um esforço, o profeta diz: "Porque o Senhor criou (bãrã’) uma coisa nova na terra: uma mulher cercará um varão". O que é essa coisa nova que Deus fez? Essa é uma das frases mais difíceis de entender no Antigo Testamento e deu ensejo a uma multidão de interpretações diferentes. É algo especial, importante e incomum, porque a palavra bãrã’("criar") é usada com parcimônia no Antigo Testamento, sempre com Deus como sujeito e com a idéia de fazer algo novo. A palavra hãdashâ ("algo novo") refere-se a algo que Javé está para fazer ao trazer a nova era (cf. Is 42.9; 43.19; 48.6; 65.17; 66.22; Jr 31.31; Ez 11.19; 18.31; 36.26). Alguns autores omitiram a frase do texto, dizendo que é uma glosa.91 John Bright traduziu-a, mas deixou-a entre colchetes, dizendo: "O sentido é totalmente obscuro, e pode ter sido mais sábio deixar de fora os dois pontos".92 B. Duhm emendou o texto assim: "... a mulher é transformada em homem".93 Charles R. Brown corrigiu o texto assim: "Uma mulher anda como um homem".94 A Septuaginta parece seguir um texto diferente: "Os homens andarão em segurança" ou: "Os homens andarão em salvação".95 B. O amor de Deus no futuro Em anos recentes, Jeremias 31.22 chamou novamente a atenção. Algumas pessoas que apóiam o movimento feminista viram nesse versículo a prova de que o Antigo Testamento fala de Deus como masculino e feminino.96 Robert P. Carroll fez um estudo extenso sobre o versículo, em que reviu as opiniões de muitos estudiosos. Depois, ele disse que seria sábio admitir aqui a ignorância e reconhecer que os textos antigos eventualmente confundem a hermenêutica moderna.97 Edmond Jacob perguntou se esta passagem é feminista ou messiânica.98 Ele observou que a interpretação messiânica desse versículo remonta ao tempo de Jerônimo e foi retomada por B. Kipper numa dissertação escrita em 1957 em que ele compara neqeba ("mulher") com ‘almâ ("virgem", Is 7.14), e geber ("homem") com ’elg eb u r(''Deus poderoso", Is 9.6; 10.21). Martinho Lutero entendeu que a ” Skinner, Prophecy and Religion, 302. " Bright, Jeremiah, 282. ” Veja Peake, "Jeremiah", 96. ** Jeremiah, 173. “ Cf. Peake, "Jeremiah", 96; Green, Jeremiah, 151; Septuaginta, Jr 38.22. * Cf. Trible, God and the Rhetoric o f Sexuality, 47-56; Holladay, "Jerusalém. XXXI 22b Reconsidered", 236-239. ” Jeremiah, 604. w "Féminisme ou Messianisme?", 179-184. 194 T e o l o g ia do A n t ig o T e s t a m e n t o passagem se referia a uma época em que a maldição da dor de parto seria retirada da mulher.99 A. W. Streane optou pela perspectiva messiânica: "Esse pensamento é realmente messiânico, porque se completa apenas na encarnação do divino Filho de Deus".100 Edmond Jacob entendeu que "coisa nova" aqui se refere a mais do que o retomo de Israel do exílio na Babilônia. A expressão "uma mulher cercará um homem" é linguagem de casamento ou aliança. Ele lembrou a experiência de Oséias com Gômer e a analogia da aliança (casamento) de Deus com Israel. Citou também duas referências e que o verbo "cercar" é usado como linguagem de aliança (SI 32.10). À luz do contexto dessa passagem (Jr 30-31), provavelmente o melhor a fazer é entendê-la como referência a algo além do retomo de Israel da Babilônia —talvez também a nova aliança. O amor de Javé no Antigo Testamento pode ser como amor de mãe, mas também é maior que amor de mãe: Acaso, pode uma mulher esquecer-se do filho que ainda mama, de sorte que não se compadeça do filho do seu ventre? Mas ainda que esta viesse a esquecer-se dele, eu, todavia, não me esquecerei de ti (Is 49.15). Talvez o maior capítulo sobre o amor de Deus no Antigo Testamento seja Oséias 11. De muitas maneiras, ele se aproxima do conceito neotestamentário da natureza de Deus. Podemos esboçá-lo assim: 1) amor que escolhe (v. 1); 2) amor rejeitado (v. 2); 3) amor protetor (v. 3-4); 4) amor disciplinador (v. 5-7); 5) amor sofredor (v. 8-9); e 6) amor redentor (v.10-11).101 B. W. Anderson disse que aqui Oséias "apela a todos os recursos da linguagem na tentativa de atingir a profundeza incompreensível do amor santo de Deus, amor que inclui tanto juízo quanto misericórdia".102 Israel recebe a ordem de amar a Deus várias vezes no Antigo Testamento (Dt 6.5; 11.1; 19.9; 30.16). De fato, Jesus disse que esse é o maior dos ” Vcja Jacob, "Feminisme ou Messianisme?", 181. 100 "Jeremiah", Cambridge Bible, 212. 101 Ralph L. Smith, “Major Motifs in Hosea", 27-28. lra "The Book o f Hosea", 301. Q uem é De v s com o J avé? 195 mandamentos (Mt 22.37; Mc 12.30; Lc 10.27). Alguns estudiosos perguntam: "Como o amor pode ser exigido?" Isso deve ser parte da influência dos tratados hititas. E. W. Nicholson argumentou que a ordem de Deus de amá-lo faz parte do contexto familiar da vida diária. O israelita recebe a ordem de amar seu próximo (Lv 19.18, 34) e o estrangeiro (Dt 10.19). Oséias recebe a ordem de amar uma adúltera (Os 3.1). O povo recebe a ordem de amar a sabedoria (Pv 4.6), a verdade e a paz (Zc 8.19) e o bem (Am 5.15). Então, por que o mandamento de amar a Deus deve ser entendido como "algo estranho", explicável somente pelos que conhecem a linguagem dos suseranos?103 O amor de Deus por Israel e pelo mundo, apesar de não ser mencionado muitas vezes no Antigo Testamento, é muito poderoso. Deuteronômio diz que, por ter Deus amado ( ’ãhab) Israel e seus antepassados, ele os tirou da escravidão no Egito (Dt 4.37; 7.8; 23.5). Oséias tem sido chamado o profeta do amor de Deus. Ele usa as quatro principais palavras correspondentes a amor ( ’ãhab, hesed, raham e naham). Em Oséias, o amor de Deus não é exaurido por um estudo de vocabulário. Em Oséias, todo o conceito de fazer a corte, de noivado e casamento é permeado de amor. Uma cena interessante de "conquista" é a que se descreve em 2.14: "Eis que eu a atrairei, e a levarei para o deserto, e lhe falarei ao coração". As palavras "atrair" e "falar ao coração" fazem parte do vocabulário do amor. Siquém falou com carinho ao coração de Diná (Gn 34.3); Boaz falou ao coração de Rute (Rt 2.11-13); o levita falou ao coração da sua esposa, que retomara à casa do pai (Jz 19.3). Oséias recebeu a ordem: "Vai outra vez, ama uma mulher, amada de seu amigo e adúltera, como o Senhor ama os filhos de Israel, embora eles olhem para outros deuses e amem bolos de passas" (Os 3.1). A idéia veterotestamentária do amor de Deus é que ele é profundo, forte e permanente. Ele serve de pano de fundo para o conceito de amor de Deus no Novo Testamento. Lester Kuyper observou que João, no prólogo ao seu evangelho (1.14), usou uma expressão neotestamentária, "cheio de graça e de verdade", para dizer que Jesus é Deus. A expressão equivalente no Antigo Testamento, hesed e ’em et ("amor e fidelidade"), é usada muitas vezes em referência a Deus no Antigo Testamento.104 103 Nicholson, God and his People, 74-80. 104 "Grace and Truth", 3-19. 196 T e o l o g ia do A n t ig o T e s t a m e n t o A ira é um dos sentimentos de Deus mais freqüentemente mencionados no Antigo Testamento. A ira de Deus é bem real e muito séria para as pessoas do Antigo Testamento. O que é ira? No Egito antigo, ira significava "cólera", "raiva", "reação violenta". Os sinais hieroglíficos correspondentes à ira retratam "o espancamento de um mendigo", "um macaco em fúria" ou "um leopardo feroz". Os egípcios também usavam uma palavra que significa "vermelho" para indicar "coração", e uma para "nariz", muito semelhante ao termo hebraico, para representar a raiva. Em acádico, as duas palavras usadas com mais freqüência são agagu, "ser momentaneamente forte", e ezezu, "ser selvagem e furioso", freqüentemente aplicada a fenômenos naturais.105 Na religião grega, os deuses não eram considerados amigos do ser humano. Os escritores gregos continuamente reclamavam da "natureza vingativa, má vontade e mesquinhez" dos deuses.106 Divindades da terra anteriores aos gregos e as que trazem maldições, como as Eríneas, "têm ira até em seu nome, ‘as fúrias’".107 A punição pelos deuses não é geralmente por motivos morais. As pessoas eram punidas por suas ofensas pessoais contra os deuses. Dos poucos condenados ao tormento eterno, Ixion atacara Hera, ato considerado uma infração da prerrogativa de Zeus; Sísifo disse a Esopo para onde Zeus levara à força sua filha Égira; e Prometeu salvou a raça humana dando-lhe o segredo do fogo, reservado aos deuses. A ira de Zeus foi suscitada porque ele temia pela continuação da sua tirania.108 Nas religiões mais primitivas, as pessoas se sentiam ameaçadas pelo poder dos deuses. "Terror demoníaco" caracterizava as religiões primitivas. E "o horror de um poder que não se preocupa nem com minha razão nem com minha moral".109 Mais de 20 palavras hebraicas diferentes, usadas mais de 580 vezes no Antigo Testamento, se referem à ira de Deus.110 Disse ele: A ira de Deus é um conceito que não pode ser erradicado do Antigo Testamento sem causar perdas irreparáveis. Não é monopólio de um ou 105 J. Bergman, E. Johnson, "anaph, TDOT I, 350. 106 Heschel, The Prophets, 342. Kleinknecht, Fichtner e outros, "Wrath", 3. Heschel, op. cit., 243. I0* Van der Leeuw, Religion in Essence and Manifestation, 134. 110 Morris, The Apostolic Preaching o f the Cross, 131. Q uem t d e u s c o m o J a v í T 197 dois escritores, mas permeia o texto todo. [...] O conceito tem de ser compreendido com cuidado, mas está tão entrelaçado no Antigo Testamento que, se o ignorarmos, nâo poderemos entender corretamente a visão hebraica de Deus ou do ser hum ano."1 E. Jacob disse que a ira fazia parte tão normal da pessoa de Deus no Antigo Testamento que os primeiros israelitas não viam problema nela.112 Para muitos teólogos e estudiosos da Bíblia modernos a ira de Deus tem sido um problema. Abraham Heschel afirma que, entre os que continuam abertos para a mensagem da ira de Deus, à qual a Bíblia sempre se refere, alguns se retraíram; outros a interpretam alegoricamente; e ainda outros têm se sentido afastados por ela.113 C. H. Dodd disse que a ira de Deus é "uma expressão arcaica", que pertence "a uma idéia totalmente arcaica".114 Elizabeth Achtemeier observou que Norman Snaith, em seu livro sobre os sete salmos de penitência, afirmou que é impróprio dizer que Deus se ira. E bom que os pecadores sintam primeiro que Deus está irado em relação a eles, mas depois de crescerem espiritualmente e conhecerem mais das temas misericórdias de Deus, abandonarão essa linguagem.115 Em seguida Achtemeier disse: "Essa idéia é tolice à luz da revelação bíblica, não apenas do Antigo Testamento, mas também do Novo; e foram idéias como essa que produziram a crença popular de que o Deus e Pai de Jesus Cristo é um deusinho sentimental de amor que não liga para os nossos erros e nos ama independentemente do que fizermos. Em toda a Bíblia, Deus destrói Israel e a raça humana inteira por sua falta de dependência de seu senhorio e por sua rebeldia contra seus mandamentos soberanos. Este com certeza é parte do sentido da cruz de Cristo —que morremos por pecar contra Deus".116 Heschel disse que é impossível fechar os olhos para as palavras sobre a ira de Deus nas Escrituras. Interpretar a ira de Deus seguindo linhas alegóricas ou como metonímia "equivale a entender errado o sentido real da palavra e distorcer o pensamento bíblico. [...] A palavra sobre a ira divina aponta para uma realidade nua e crua, para o poder por trás dos fatos, não para uma figura de linguagem".117 A ira de Deus faz parte da santidade divina e não deve ser descartada como mero antropomorfismo.118 "Os israelitas realmente criam na ira de Javé e não a 111 Ibid., 156. 112 Theology o f the Old Testament, 114. ,n The Prophets, 279. 114 The Epistle o f Paul to the Romans, 20. 115 The Seven Psalms, 22. 116 "Overcoming the World", 80. The Prophets, 280. "* Robinson, Redemption and Revelation, 269; Record and Revelation, 342. 198 T e o l o c ia do A n t ig o T e s t a m e n t o projetavam sobre Deus a partir das provas e castigos pelos quais tinham passado". O Antigo Testamento fala da ira ou da indignação de Deus três vezes mais do que da ira humana. Alguns termos, como Aaron ’aph e za ‘am são usados somente para a ira de Deus. A maioria dos termos com a idéia de ira é emprestada de expressões concretas, fisiológicas, como "ficar quente" ou "queimar" (Is 65.5; Jr 15.14; 17.4); "irromper" ou "transbordar" (Ez 13.13; 38.22); o "poder destrutivo da tempestade" (SI 83.15; Is 30.30; Jr 23.19-20; 30.23-24); o líquido em um cálice que é derramado (SI 69.24; Jr 10.25; Os 5.10) ou deve ser bebido (Jó 21.20; Jr 25.1516); a mão de Javé estendida (Is 5.25; 9.12, 17, 21; 10.4). A ira parece ser mais uma atividade de Deus do que uma emoção. Expressões que se referem à ira nunca são ligadas ao coração.120 Duas palavras ligadas de perto à ira no Antigo Testamento são "ciúme" e "vingança". O ciúme de Deus significa que ele não tolerará nenhum outro deus (Êx 20.5; 34.14; Dt 4.24). Os inimigos de Israel são objeto da ira ciumenta de Deus (Na 1.2-3; Sf 1.18). Às vezes o ciúme de Deus se torna o zelo de Javé por seu povo, para estabelecer seu reino (Is 9.7; 37.32; Ez 39.25; Zc 1.14). O ciúme de Deus no Antigo Testamento tem relação com sua santidade, sua singularidade, sua inacessibilidade, sua afirmação pessoal. Th. C. Vriezen disse: Temos de ser muito exatos em nossas distinções nessa idéia: ela não deve ser identificada com o que é conhecido no paganismo como ciúme dos deuses, que pode ser manifestado não apenas contra outros deuses, mas também contra o ser humano quando as coisas estão indo particularmente bem para ele. O medo do ciúme dos deuses nas religiões politeístas mais elevadas é um efeito tardio de uma crença demoníaca em Deus banida no Antigo Testamento. Aplicada a Javé, essa palavra tem um significado um pouco diferente da que se refere ao ser humano. O verbo com que qanna’ está ligado significa, além de ter ciúme, preservar os direitos pessoais à custa da exclusão de outros.121 Vriezen observou que a preservação ciumenta por Javé do seu direito de ser adorado exclusivamente explica por que Adão e Eva não tiveram permissão para comer da árvore do conhecimento do bem e do mal. Se o fizessem, isso os levaria a se tomar como Deus. Isso também explica por que construir a torre de Jacob, Theology o f the Old Testament, 114. 120 Ringgren, Israelite Religion, 76. 111 P. ex. Nm 11.29; 2Sm 21.2; Outline o f Old Testament Theology, 302. Q uem t D e u s c o m o J a v é ? 199 Babel foi errado e por que todos os tipos de adivinhação, magia, necromancia e feitiçaria foram proibidos. O fato de a Bíblia dizer que Deus é ciumento é uma surpresa ou até um choque para algumas pessoas. John R. Stott observou que o ciúme é condenado no Novo Testamento como pecado (veja G1 5.19-20). O ciúme pode descrever tanto um atributo de Deus como um pecado humano porque ciúme é neutro. "Se ele é bom ou mau é determinado pela situação que o provoca. Em essência, ciúme é intolerância de rivais. É virtude ou pecado dependendo se o rival é legítimo".122 Outra palavra hebraica ligada de perto a ira é nãqam geralmente traduzida por "vingança" ou "desforra". A obra de W. F. Albright e seus alunos George Mendenhall e G. E. Wright deu-nos uma compreensão melhor do termo no Antigo Testamento e no antigo Oriente Próximo. Albright disse que a palavra hebraica nãqam raramente significa "vingar"; antes, "salvar", como em Mári e nas tabuinhas de Amama.123 G. Emest Wright disse que "vingança" é uma tradução pobre para nãqam Esse termo se refere à condenação ou à redenção efetuada pelo soberano senhor da história, que tem a responsabilidade final por justiça e salvação. "Por isso, essa é uma prerrogativa de Deus apenas".124 Mendenhall disse que nãqam significa "exercer poder legítimo", razão pela qual devemos traduzi-lo por "a soberania é minha".125 nãqam é usado com freqüência com relação à guerra santa (Nm 31.1-2; ISm 14.24; 18.25; 2Sm 4.8; 22.48; SI 18.48). Não se permite que ninguém se aproprie dessa prerrogativa: "a vingança é minha" (Lv 19.18; Dt 32.35; cf. Rm 12.19). Às vezes, porém, isso acontece (Gn 4.24; Pv 6.34). "Vingança" muitas vezes é ligado ao papel de um juiz. Javé é chamado de Deus da vingança e solicitado a levantar-se e julgar a terra (SI 94.1-2). Talvez a passagem mais clara que expressa a relação entre nãqam e um juiz seja 1Samuel 24.12. Davi disse a Saul: "Julgue o Senhor entre mim e ti e vingue-me (nãqam) o Senhor a teu respeito; porém a minha mão não será contra ti". Jeremias usou a palavra nãqam três vezes em suas "confissões", no contexto em que Javé o julga e o "livra dos seus inimigos" (Jr 11.20; 15.15; 20.12). Ciúme e vingança estão intimamente ligados a ira, mas não são idênticos a ela. O que é ira? Algumas pessoas a apresentam como uma paixão sinistra e Our Guilty Silence, 17. m History. Archaeology, and Christian Humanism, 96. 114 "History and Reality", 195. 125 The Tenth Generation, 75-76. 200 T f.o i .o c ia do A n t ig o T e s t a m e n t o maligna, uma força negativa que tem sempre de ser reprimida. Aristóteles definiu a ira como o desejo de retaliar ou de se vingar. Cícero disse que a ira é "a ânsia de vingança", e Horácio a chamou "breve loucura".126 Contudo, no Antigo Testamento, a idéia da ira de Deus recebe sua marca singular do fato de, "basicamente, Israel ter apenas um Deus, sem saída para o panteão e o mundo dos demônios".127 Eichrodt disse que a ira de Deus no Antigo Testamento jamais adquire as características de manis, "esse ódio e inveja malignos tão comuns nos implacáveis deuses gregos e também nas divindades babilónicas. Mesmo se às vezes ela é incompreensível, a ira de Javé não tem nada de satânica; ela é simplesmente a manifestação de desagrado da grandeza insondável de Deus".128 A ira de Deus é incompreensível apenas em algumas das primeiras histórias, como a luta de Jacó com o homem no Jaboque, que o fez manquejar (Gn 32.24-32); o encontro de Deus com Moisés no caminho para o Egito, quando tentou matá-lo (Êx 4.24-26); ou Javé incitando Davi a recensear o povo (2Sm 24.1). A ira de Deus era muito real para Israel. Apesar de nem sempre a entenderem, eles a aceitavam. A ira de Deus não deve ser estudada separadamente de outros aspectos da sua natureza ou do pecado humano. "E mais um instrumento do que uma força, antes transitória do que espontânea. E uma emoção secundária, nunca a paixão dominante".129 Alguns estudiosos discordam de algumas dessas assertivas. Tasker disse que a ira "é a atitude permanente do Deus santo e justo quando confrontado com o pecado e com o mal".130 Quem ou o que são os objetos da ira de Deus no Antigo Testamento? A ira de Deus no Antigo Testamento vem sobre indivíduos: Moisés (Êx 4.14; Dt 1.37); Arão (Dt 9.20); Arão e Miriã (Nm 12.9); Nadabe e Abiú (Lv 10.1-2); Israel (Êx 32.10 e muitas outras referências); e as nações (SI 2.5; Is 13.3, 5, 13; 30.27; Jr 50.13, 15; Ez 25.4; 30.15; Sf 3.8). A razão aparente para a ira de Deus é o pecado. Leon Morris disse: "Ela é provocada única e inevitavelmente pelo pecado".131 Entre os pecados que provocam a ira de Deus estão: a adoração de outros deuses (Êx 32; Nm 25; Dt 2.15; 4.25-26; 9.19; Jz2.14; lRs 11.9-10; 14.9, 15;2Rs 17.17-18); o derramamento de sangue (Ez 16.38; 24.7-8); adultério (Ez 16.38; 23.25); injustiças sociais (Êx 22.21-24). Quais são as causas da ira de Deus? Nem sempre é possível determinar a causa da ira de Deus no Antigo Testamento. Tragédias, desastres nacionais e '* Veja Heschel, The Prophets, 280, nota 4. 117Kleinknecht, Fichter e outros, "Wrath”, 25. Eichrodt, Theology o f the Old Testament /, 261. Heschel, The Prophets, 282-283. 110"Wrath", 1341. 1,1 The Apostolic Preaching o f the Cross, 131. Qu em £ Deu s com o J avéî 201 mortes prematuras se tomam um enigma para muitos no Antigo Testamento. Dificuldades e males são muitas vezes vistos como castigos de Deus (veja 2Rs 23.26-30; cf. 2Cr 35.20-25; Jó 2.10; SI 44.8-22). Eichrodt disse que Israel falou da ira divina nos casos em que a desgraça sobrevinha de maneiras extraordinárias ou contrárias a qualquer expectativa. Amós tinha por certo que todo infortúnio era produto da ira de Deus (Am 3.6). "Tanto a morte acidental como a calamidade pública extraordinária são atribuídas a Deus (Êx 21.13; 8.15; ISm 6.5). A única atitude razoável para o infortúnio incompreensível é curvar-se ao desagrado divino".132 Quais são os efeitos da ira de Deus? J. Fichtner disse que "o efeito básico da ira de Javé deve ser aniquilar, apagar completamente".133 Depois que Arão e o povo fizeram o bezerro de ouro e o adoraram, o Senhor disse a Moisés: "Agora, pois, deixa-me, para que se acenda contra eles o meu furor, e eu os consuma" (Êx 32.10; cf. Nm 16.21; Dt 7.4). Amós e Ezequiel anunciaram que o "fim" chegara para Israel e Judá (Am 8.2; Ez 7.2-21). A queda de Jerusalém e o exílio foram efeitos da ira de Deus (2Rs 23.26; Ez 7.4, 9,24; 8.18; 29.12). A ira não é a última palavra de Deus no Antigo Testamento. Foi Leon Morris quem disse: "A ira é uma realidade terrível, mas não deve ser tomada como a última palavra sobre Deus".134 E Jacob: "Com um Deus vivo e que concede vida, a ira não pode ser a última palavra".135 No Antigo Testamento, a ira de Deus é modificada ou condicionada por seu amor. São palavras de Amós: Eis que os olhos do Senhor Deus estão contra este reino pecador, e eu o destruirei de sobre a face da terra; mas não destruirei de todo a casa de Jacó, diz o Senhor. (Am 9.8) 1,1 Theology o f the Old Testament /, 260. IM Kleinknecht, Fichtner e outros, "Wrath", 33. 154 The Apostolic Preaching o f the Cross, 135. 155 Theology o f the Old Testament, 116. 202 T c o u jg i a do A n t ig o T e s t a m e n t o Oséias registrou: Como te deixaria, ó Efraim? Como te entregaria, ó Israel? [...] Meu coração está comovido dentro de mim, as minhas compaixões, à uma, se acendem. Não executarei o furor da minha ira; não tomarei para destruir a Efraim (Os 11.8-9). Isaías falou de um remanescente que sobreviveria à crise assíria (Is 10.2023). Dois versículos adiante, ele anunciou o fim da ira de Deus contra Judá, fazendo-a recair sobre a Assíria (Is 10.25). Jeremias chamou: Volta, ó pérfida Israel, diz o Senhor, e não farei cair a minha ira sobre ti, porque eu sou compassivo, diz o Senhor, e não manterei para sempre a minha ira. (Jr 3.12) O salmista declarou: Não passa de um momento a sua ira, o seu favor dura a vida inteira. Ao anoitecer, pode vir o choro, mas a alegria vem pela manhã. (SI 30.5; Hb 6) O profeta no exílio disse: Por breve momento te deixei, mas com grandes misericórdias tomo a acolher-te; num ímpeto de indignação, Q uem t D eus co m o J a v í? 203 escondi de ti a minha face por um momento; mas com misericórdia tema me compadeço de ti, diz o Senhor, o teu Redentor. (Is 54.7-8) E Miquéias: Quem, ó Deus, é semelhante a ti, que perdoas a iniqüidade e te esqueces da transgressão do restante da tua herança? O Senhor não retém a sua ira para sempre, porque tem prazer na misericórdia. (Mq 7.18) Será que a ira de Deus é apenas temporária, um aspecto secundário da sua natureza, que não causa efeitos permanentes em seu relacionamento ou trato com as pessoas? Eichrodt deu essa impressão: "Diferente da santidade ou da retidão, a ira nunca é um atributo permanente do Deus de Israel; ela só pode ser entendida como, por assim dizer, uma nota de rodapé da vontade do Deus da aliança de manter comunhão".136 Eichrodt não afirmou que o Antigo Testamento dizia que, por ser a ira de Deus temporária, não haveria julgamento ou punição para os pecadores. Na verdade, ele disse que a esfera principal e apropriada de atuação da ira de Deus no Antigo Testamento é na administração da justiça retributiva.137Tudo o que pode ser chamado de punição pelo pecado é considerado ação da ira de Deus no âmbito nacional e individual. Mas todo o tom em que o Israel antigo falou da punição por Deus prova que havia um "profundo sentimento do fundam ento moral da punição".,w Via de regra se reconhece que Deus não dá liberdade de ação total à sua ira. Ele a restringe, a fim de punir em um momento em que a correção da sua ação poderá ser discernida mais facilmente e, mesmo então, anunciando a punição iminente com antecedência. IM Theology o f the Old Testament I, 262. 157 Ibid., 263. Ibid., 265. 204 T e o l o g ia do A n t ig o T e s t a m e n t o Christoph Barth observou que as histórias de julgamento de Números introduzem um novo aspecto, "a ira de Deus". Êxodo nunca fala da ira de Deus, a não ser no capítulo 32. Números se refere a ela com freqüência (11.1-10; 12.9; 16.46; 25.4; cf. SI 78.21, 31, 38; 95.11). A ira de Deus de forma alguma contradiz sua misericórdia, sua fidelidade, sua paciência ou sua prontidão para perdoar. O mesmo Deus é quem demonstra paciência surpreendente em Êxodo e atinge o limite da sua paciência em Números. Quando mostra misericórdia, ele não deixa Israel fazer o que quer. [...] Quando mostra ira e pune seu povo rebelde, ele não esgotou sua paciência, nem pretende cortar todo e qualquer relacionamento com Israel.1” O Antigo Testamento fala com freqüência da paciência de Deus, mas paciência nesse caso não deve ser entendida como apatia, indiferença ou tolerância. Heschel disse: A paciência de Deus quer dizer que ele está refreando sua ira justificada. Não devemos confundir o perdão divino com indulgência. Há um limite, depois do qual a longanimidade de Deus deixa de ser uma bênção. O perdão não é nem absoluto nem incondicional. Podemos perdoar o criminoso; mas será que é correto perdoar o crime? Posso perdoar o mal que alguém fez contra mim; mas será que tenho o direito de perdoar o mal feito a outros? Perdão incondicional pode ser encontrado em uma caixa de Pandora, um belo incentivo a maus hábitos. A ira é um lembrete de que o ser humano carece de perdão e de que o perdão não é automático. O Senhor é longânimo, compassivo, amoroso e fiel, mas também é exigente, insistente, terrível e perigoso.140 A ira de Deus é justificada no Antigo Testamento: Os seus adversários triunfam, os seus inimigos prosperam; porque o Senhor a afligiu, por causa da multidão das suas prevaricações. [...] 1,5 God With Us, 97-98. 140 The Prophets, 285. Quem t deus como J a v í ? 205 Justo é o Senhor, pois eu me rebelei contra a sua palavra. [...] Fez o Senhor o que intentou; cumpriu a ameaça que pronunciou desde os dias da antigüidade; derrubou e não se apiedou. (Lm 1.5, 18; 2.17). Apesar de a ira de Deus poder parecer cruel às vezes, ela é a contrapartida do seu amor, não a antítese. Há amor que pune, assim como há crueldade que perdoa. "A severidade tem de domesticar quem o amor não consegue conquistar."141 Às vezes o carinho tem de ser reprimido para que o amor possa atuar. Um cirurgião não pode ceder à sua compaixão natural pelo paciente ao tratar dele. Leon Morris disse que o Antigo Testamento nos traça um quadro de Deus que mostra que ele é misericordioso por natureza e não pode ser controlado por esforços humanos para obter perdão: O perdão, em última instância, deve-se sempre ao fato de Deus ser o que é, e não a qualquer coisa que o ser humano possa fazer. Por Deus ser Deus, ele tem de reagir da maneira mais forte possível ao pecado do ser humano, e assim atingimos o conceito de ira divina. Mas por Deus ser Deus, a ira não pode ser a última palavra. “O Senhor é bom; a sua misericórdia dura para sempre (SI 5).”142 Mesmo sendo a ira algo que chega perto do mal, ela não deve ser identificada com o mal em termos de essência. Paulo parafraseou Salmos 4.4-5: "Irai-vos, mas não pequeis" (Ef 4.26). Ira é atribuída a Jesus em Marcos 3.5. Como o fogo, a ira é neutra. Ela pode ser bênção ou maldição —repreensível quando ligada à malícia, moralmente necessária para resistir à malícia. m Ibid., 296. 142 The Apostolic Preaching o f the Cross, 136. 206 T f.o i .o g ia do A n t ig o T e s t a m e n t o 24. Um Deus que julga A. O papel de Deus como juiz Se Deus é um Deus que salva, abençoa, criador, santo, amoroso, será que não é também um Deus que julga? Agir como juiz é incompatível com salvar, abençoar, criar, amar, ira e santidade? O Antigo Testamento fala muitas vezes de Deus como juiz. Logo no começo do Antigo Testamento, Abraão perguntou se é certo que o juiz de toda a terra destrua os justos com os ímpios. "Não fará justiça o Juiz de toda a terra?" (Gn 18.25). O salmista disse: "Os céus anunciam a sua justiça, porque é o próprio Deus que julga" (SI 50.6). Isaías disse: "O Senhor é o nosso juiz, o Senhor é o nosso legislador, o Senhor é o nosso rei; ele nos salvará" (ls 33.22). No Antigo Testamento, Deus julga entre indivíduos (Gn 16.5; 31.53; ISm 24.12, 15) e nações (Is 2.4). Ele também julga indivíduos (Gn 30.6; SI 7.8; 26.1-2; 35.24-25; 43.1; 54.1); famílias (ISm 3.13); nações (Gn 15.14; SI 110.6; J1 3.12); seu povo (SI 50.4; 67.4; Is 3.13; 33.22; Ez 36.19); a tera (Gn 18.25; ISm 2.10; SI 9.8; 82.8; 94.2; 96.10); os deuses e as pessoas importantes (Jó 21.22; SI 82.1-2). O fato de Deus poder julgar todos esses grupos indica que tem autoridade e soberania sobre eles. Três coisas são essenciais a um bom juiz: autoridade e soberania; decisões justas e imparciais; e a capacidade de perceber e interpretar corretamente todas as evidências. Javé tem as três qualidades. Ele é o soberano de toda a terra. Ele julga as pessoas de acordo com o que fazem (Ez 7.27; 24.14; 33.20). Suas decisões são corretas e imparciais (Gn 18.25; SI 9.4, 8; 67.4; 72.2; 75.2; 96.10. Perto do fim do Antigo Testamento, alguns escritores da Sabedoria levantaram questões sérias sobre a justiça de Deus: Jó 8.3; 9.2, 20, 22-24). A coisa que mais qualificou Javé para ser juiz foi sua capacidade de olhar dentro das pessoas e conhecer-lhes as motivações e o verdadeiro caráter. O Senhor disse a Samuel: O homem vê o exterior, porém o Senhor, o coração. (ISm 16.7) Q uem t deus com o J av i? 207 O salmista disse: Examina-me, Senhor, e prova-me; sonda-me o coração e os pensamentos. (SI 26.2; cf. 139.23) Se tivéssemos esquecido o nome do nosso Deus ou tivéssemos estendido as mãos a deus estranho, porventura, não o teria atinado Deus, ele, que conhece os segredos dos corações? (SI 44.20-21) E Jeremias: Mas, ó Senhor dos Exércitos, justo Juiz, que provas o mais íntimo do coração, veja eu a tua vingança sobre eles; pois a ti revelei a minha causa. (Jr 11.20) O papel do juiz no mundo antigo era mais do que ouvir o depoimento das testemunhas e tomar uma decisão quanto à culpa ou inocência do acusado. O papel do juiz podia incluir descobrir o crime, ouvir, acusar, defender, sentenciar e executar a sentença.143 Labão acusou Jacó de roubar seus deuses do lar. Labão alcançou Jacó no caminho para o Jaboque e revistou sua bagagem. Quando não encontrou evidências incriminatórias, Jacó lhe disse: "Havendo apalpado todos os meus utensílios, que achaste de todos os utensílios de tua casa? Põe-nos aqui diante de meus irmãos e de teus irmãos, para que julguem entre mim e ti" (Gn 31.37). Depois de poupar a vida de Saul na caverna de En-Gedi, Davi lhe disse: "Julgue o Senhor entre mim e ti e vingue-me o Senhor a teu respeito; porém a minha mão não será contra ti" (ISm 24.12). Mais tarde Davi disse: "Seja o Senhor o meu juiz, e julgue entre mim e ti, e veja, e pleiteie a minha causa, e me faça justiça, e me livre da tua mão" (ISm 24.15). 141 Snaith, Distinctive Ideas o f the Old Testament, 74; Jacob, Theology o f the Old Testament, 97; Westcrmann, Elements o f Old Testament Theology, 120. 208 T e o l o g ia do A n t ig o T e s t a m e n t o Deus é apresentado no credo não histórico (Êx 34.6) como um Deus gracioso, paciente, fiel, amoroso e que perdoa, mas também como aquele que "não inocenta o culpado" (v. 7). Ele é um juiz justo que de modo algum deixará impune o culpado (SI 9.12). Ele os arrasta ao "tribunal" e os acusa de infringir a aliança. O Senhor com freqüência tem uma controvérsia ou "acusação" contra seu povo (Is 1.18; Jr 2.9; Os 4.1-3; 12.2; Mq 6.2). A convicção de que Deus é juiz é refletida em alguns nomes pessoais: Josafá significa "Javé julga". Daniel significa "Deus é juiz", assim como Elifal (veja lCr 11.35). Abidã significa "meu pai é juiz" (veja Nm 1.11; 2.22; 7.60; 10.24). Às vezes a palavra "juiz" refere-se a Deus em papel político como o dos governantes terrenos. Ele inclui a capacidade de perceber a diferença entre bem e mal e agir conforme essa percepção. Salomão orou: "Dá ao teu servo coração compreensivo para julgar a teu povo, para que prudentemente discirna entre o bem e o mal" (lR s 3.9). Ludwig Köhler disse que não é que Deus diga o que é certo; antes, ele ajuda a tomar as coisas certas.144 B. A justiça e a retidão de Deus A justiça (m ishpat) e a retidão (tsèdãqâ) de Deus freqüentemente têm relação com seu papel como juiz. Os termos são muitas vezes usados juntos. Com freqüência é difícil distinguir o sentido de cada palavra, mas o conceito geral por trás de ambas está claro e é muito importante. Heschel disse: "Há poucos pensamentos gravados tão profundamente na mente do ser humano na Bíblia como a idéia da justiça e da retidão de Deus. Isso não é uma inferência, mas um elemento apriorístico evidente da fé bíblica; não um atributo acrescentado à essência de Deus, mas inerente à própria idéia de Deus. Ele faz parte da sua essência e é identificado com sua maneira de agir".145 Heschel está muito próximo do conceito de retidão de H. H. Schmid, de retidão como parte da ordem do mundo (veja a análise pertinente mais adiante neste capítulo). Von Rad disse que não há absolutamente nenhum conceito no Antigo Testamento com um significado tão central para todos os relacionamentos da vida humana como o de tsèdãqâ ("retidão" ou "justiça"). Ele é o padrão para o relacionamento com Deus e para o relacionamento das pessoas entre si, incluindo até os animais e o ambiente natural, tsèdãqâ pode ser descrito como "o valor mais elevado da vida, sobre o qual toda a vida se apóia quando organizada 144 Old Testament Theology, 32. 145 The Prophets, 199-200. QUEM t DEUS COMO JAVÉ? 209 corretamente".146 Johnson enfatizou o papel de tsêdãqâ como um termo de relacionamento que descreve forma, funcionamento e efeitos dos relacionamentos comunitários ordenados de forma positiva.147 O Antigo Testamento diz muitas vezes que Deus age com correção (Êx 9.27; SI 11.7; 111.3; 116.5; 129.4; 145.17; Jr 12.1;Dn 9.14). Eis a Rocha! Suas obras são perfeitas, porque todos os seus caminhos são juízo; Deus é fidelidade, e não há nele injustiça; é justo e reto. (Dt 32.4) Justo és, Senhor, e retos, os teus juízos. (SI 119.137) Qual é a diferença entre justiça e retidão no Antigo Testamento? m ishpaí ("justiça") é um termo legal usado no sistema judicial, tsêdãqâ ("retidão") denota conformidade a uma norma. Com freqüência a norma é a aliança. Deus e Israel são retos quando fiéis à aliança. Objetos podem ser "corretos, justos", no Antigo Testamento. Balanças, pesos e medidas são "justas" quando são como devem (Lv 19.36; Ez 45.10). Sacrifícios são "retos" quando oferecidos segundo as regras (Dt 33.19; SI 4.5; 51.19). Carvalhos são "justos" porque estão sempre verdes (Is 61.3), e caminhos são "retos" quando se pode andar por eles (SI 23.3). Assim, tsêdãqâ ("retidão") é conformidade à norma segundo a qual cada pessoa ou coisa deve ser. No Antigo Testamento, o próprio Deus é a origem do direito.141 Heschel tentou distinguir entre retidão e justiça sugerindo que retidão é uma qualidade da pessoa, enquanto justiça é um modo de agir. O substantivo ju iz significa "alguém que age como juiz", porém o substantivo reto se refere a uma pessoa correta. Retidão vai além de justiça. A justiça com freqüência é "rígida e exata, dando a cada pessoa o que lhe é devido. Retidão implica benevolência, gentileza, generosidade. Justiça é forma, uma condição de equilíbrio; retidão tem o 146 Von Rad, O ld Testament Theology 1 ,370. 147 B. Johnson, tw atvi , 923. ““ Dt 1.17; cf. Heschel, The Prophets, 200. 2 10 T f.o i .o c ia do A n t ig o T e s t a m e n t o significado de um substantivo. A justiça pode ser legal; a retidão está ligada a uma compaixão ardente pelos oprimidos".149 A retidão de Deus não pode ser separada da figura de Deus como juiz.150 A justiça originariamente referia-se às decisões e determinações de Deus como juiz. Julgamentos feitos em nome de Deus por juizes locais tomaram-se a base da lei comum em Israel. Não devemos equiparar nossa idéia de Deus como juiz no Antigo Testamento com a clássica figura da moça vendada segurando uma balança na mão. "A justiça de Deus estende um braço ao trapo jogado no chão enquanto com o outro afasta aquele que causa o infortúnio".151 Desse modo, a justiça de Deus tem sempre um elemento de graça e misericórdia. Com freqüência favorece o pobre e necessitado. C. Retidão como vitória ou salvação Quase desde o começo do Antigo Testamento, a "retidão" de Deus era sinônimo de "vitória" e "salvação". Os grandes atos redentores de Deus em favor de Israel são chamados "atos retos de Javé" ("triunfos", Jz 5.11; "atos salvadores", ISm 12.7; "justificação", SI 71.15-16; 103.6; Dn 9.16; Mq 6.5). É na última parte de Isaías e em alguns salmos que a combinação das idéias de retidão, vitória e salvação se toma mais clara (SI 22.31; 35.24, 27-28; 48.10; 51.1, 14; 65.5; Is 45.8, 21, 25; 46.12-13; 51.1, 5-6, 8; 61.10; 62.1-2). Muitos estudiosos falam de um desenvolvimento do sentido da idéia da retidão de Deus no Antigo Testamento, mas von Rad disse que não há transformação radical nem desenvolvimento perceptível no conceito israelita antigo da retidão de Javé. Desde a época do cântico de Débora, a retidão de Javé "não era uma norma, mas atos, e atos que concedem salvação".152 No Antigo Testamento, um indivíduo podia experimentar esses "retos" atos salvadores de Deus tanto quanto a nação (SI 22.31; 40.11; 71.2-22; 143.1). Toda a idéia da justiça de Deus no Antigo Testamento foi questionada por Klaus Koch e J. L. Crenshaw (veja mais detalhes no capítulo 7, em especial a divisão 33: "Os efeitos do pecado"). O substantivo "reto" aparece nas formas masculina (tsedíq), feminina singular (tsédãqâ) e feminina plural (tsêdeqôt). Tem havido muita especulação quanto à diferença entre as formas masculina e feminina porque ambas podem m Ibid., 201; cf. Dt 24.10-13. 150 Veja Jacob, n e o lo g y o f the Old Testament, 96; J6 4.8-10; 9.13; 26.12; SI 74.13-14; 89.10; 96.10-13; 98.7-9; Is 27.1; 17.9; Nicholson, God and His People, 198. 151 Jacob, Theology o f the Old Testament, 99. I5J Old Testament Theology I, 372-373. Q uem t D eus co m o J a v ê? 2 11 ocorrer na mesma frase. Mais recentemente Johnson argumentou que a forma feminina é mais concreta, e a masculina, mais abstrata.153 Não há diferença significativa perceptível no emprego dos substantivos masculino e feminino. Jacob entendeu que a diferença era que a forma masculina destaca a norma da ação de Deus, enquanto a forma feminina enfatiza a manifestação visível dessa norma.154 Segundo Jepsen, a forma masculina significa "correção", "ordem", e a forma feminina significa "a conduta que objetiva a ordem correta".155 G. A. F. Knight disse que até recentemente os estudiosos não havia esclarecido a diferença entre as formas masculina e feminina. "Porém de novo temos de dizer humildemente que, visto que eles descrevem aspectos da graça e da bondade indizíveis do Deus vivo, podemos apenas tatear por palavras quando tentamos expressar o que Deus está fazendo".156 Em outro texto, Knight deu a entender que a forma masculina refere-se aos atos salvadores de Deus que vêm de cima, de pura graça, porque no mundo antigo o céu era considerado masculino. Ele disse que a forma feminina se refere principalmente aos atos redentores ou salvadores das pessoas umas em relação às outras, e é feminina porque terra é feminina.157 Nesse último sentido das ações humanas redentoras ou salvadoras uns pelos outros, retidão é sinônimo de justiça: Corra o juízo (justiça) como as águas; e a justiça (retidão), como ribeiro perene. (Am 5.24) As palavras "justiça" e "retidão" são usadas de tantas maneiras diferentes no Antigo Testamento que cada uso tem de ser estudado com muita atenção, à luz do seu contexto e do seu significado em outras passagens. Quando "retidão" se refere à retidão de Deus, de algum modo está vinculada às suas "ações salvadoras" pela graça. Quando a referência é à retidão humana, está ligada ou à posição da pessoa na aliança com Deus e/ou ao modo pelo qual tratou os outros em termos éticos. Walther Zimmerli observou que "retidão", que caracteriza a esfera da justiça divina com referência específica aos atos de Javé, toma-se o termo central para a justiça humana. Os salmos 111-112 mostram como a retidão de Javé (SI 111) é ,5J T W A T 6 , 912-919. 154 Theology o f the Old Testament, 98. 155 Citado por Zimmerli, Old Testament Theology in Outline, 143. 156 Psalms /, 4. A Christian Theology o f the Old Testament, 245, nota 1. 212 T e o l o c ia do A n t ig o T e s t a m e n t o refletida (SI 112) nas ações de alguém que teme a Deus.158 Johnson sublinhou os relacionamentos da aliança, sendo a retidão a conduta alinhada com a aliança.159 Temos de admitir que algumas passagens do Antigo Testamento falam de Deus como juiz ou rei do mundo porque ele o criou e sustenta. O mundo está fundamentado em retidão e justiça (SI 89.14; Is 28.16-17). Algumas passagens mostram o Senhor em batalha contra as forças do mal, contra o caos ou contra seus inimigos, para manter o mundo firmado em retidão. Às vezes essas forças do mal são chamadas Raabe, Leviatã, Tanin ou dragão. Em português são chamadas bestas, serpentes, monstros marinhos, ou rios, enchentes e oceanos (Jó 9.13; 26.12; 38.8-11; SI 74.13; 89.10; 93.3-4; 96.10-13; 98.7-9; 104.6-9; Is 27.1; 51.9). Em Habacuque 3.8-15, o profeta fala de uma batalha entre Javé e os mares, rios e águas, usando metáforas do êxodo e da travessia do mar Vermelho. É óbvia a presença de uma antiga linguagem mitológica de uma batalha contra o dragão Tiamate. As águas no Antigo Testamento freqüentemente simbolizam o mal cósmico. Javé está no controle. Ele tem poder sobre as águas e sobre o mal.160 Com seu poder aquietou o Mar, com sua destreza aniquilou Raab. O seu sopro clareou os Céus e sua mão traspassou a Serpente fugitiva. (Jó 26.12-13, BJ) Acaso, é contra os rios, Senhor, que estás irado? É contra os ribeiros a tua ira ou contra o mar, o teu furor, já que andas montado nos teus cavalos, nos teus carros de vitória? Tiras a descoberto o teu arco, e farta está a tua aljava de flechas. Tu fendes a terra com rios. Os montes te vêem e se contorcem; l5* Old Testament theology in Outline, 143. 159 TWAT 6 , 919-920. Smith, Word Biblical Themes: Micah-Malachi, 35-57. Q uem t Deus como J avé ? 213 passam torrentes de água; as profundezas do mar fazem ouvir a sua voz e levantam bem alto as suas mãos. O sol e a lua param nas suas moradas, ao resplandecer a luz das tuas flechas sibilantes, ao fulgor do relâmpago da tua lança. Na tua indignação, marchas peia terra, na tua ira, calcas aos pés as nações. Tu sais para salvamento do teu povo, para salvar o teu ungido; feres o telhado da casa do perverso e lhe descobres de todo o fundamento. Traspassas a cabeça dos guerreiros do inimigo com as suas próprias lanças, os quais, como tempestade, avançam para me destruir; regozijam-se, como se estivessem para devorar o pobre às ocultas. Marchas com os teus cavalos pelo mar, pela massa das grandes águas. (Hc 3.8-15) Disseste: Hei de aproveitar o tempo determinado; hei de julgar retamente. Vacilem a terra e todos os seus moradores, ainda assim eu firmarei as suas colunas. (SI 75.2-3) Habacuque sabia que o poder do mal era como um monstro. Um poder grande demais para ele, mas Deus era soberano sobre o mar. O apóstolo João, prisioneiro na ilha de Patmos, previu o dia em que o mar já não existirá —querendo dizer "não haverá mais mal" (Ap 21.1). Apocalipse 12.7-12 diz que Deus é soberano sobre o mal, assim como é sobre o mar. Haverá guerra no céu entre Miguel e seus anjos e o dragão e seus anjos. O dragão e seus anjos serão derrotados 214 T e o l o c ia do A n t ig o T e s t a m e n t o e expulsos do céu. A vitória é atribuída ao sangue de Cristo e ao testemunho fiel dos mártires cristãos (Ap 12.11). No hebraico posterior e no aramaico, "retidão" se tomou quase sinônimo de ações de misericórdia e de esmolas (Dn 4.27; Mt 6.1).161 O apóstolo Paulo usou "retidão" de duas maneiras. Ao escrever sobre a lei da retidão, estava pensando no sentido genuinamente ético (Rm 9.31; 10.1-6; Fp 3.6, 9). Ao falar do "dom da retidão" (Rm 1.17; 3.22; 5.17), estava pensando no grande ato salvador de Deus em Cristo. Nisso Paulo é herdeiro dos profetas e dos salmistas que tomaram retidão sinônimo de salvação. Portanto, Javé é juiz de todo o mundo no Antigo Testamento. Ele o criou. Ele o sustenta. Ele luta contra as forças do mal para preservar a retidão e a justiça. No fim, o "conhecimento de Deus" cobrirá a terra como as "águas" (símbolo do mal) cobrem o mar (veja Is 11.3-9; Hc 2.14). 25. Um Deus que perdoa A experiência de ser perdoado pode ser uma das mais alegres, humilhantes e terapêuticas da vida. As exclamações mais líricas de poesia e doxologia no Antigo Testamento vêm dos que comemoram o perdão. Miquéias se maravilhou; Quem, ó Deus, é semelhante a ti, que perdoas a iniqüidade e te esqueces da transgressão do restante da tua herança? O Senhor não retém a sua ira para sempre, porque tem prazer na misericórdia. (Mq 7.18) 161 Cf. Snaith, "Righteous, Righteousness", 202-203; Jacob, Theology o f the Old Testament, 102; Von Rad, O ld Testament Theology 1,383; Toy, Proverbs, 199. Q uem é Deus com o Javé? 215 O salmista declarou: Bem-aventurado aquele cuja iniqüidade é perdoada, cujo pecado é coberto. Bem-aventurado o homem a quem o Senhor não atribui iniqüidade e em cujo espírito não há dolo [...]. Confessei-te o meu pecado e a minha iniqüidade não mais ocultei. Disse: Confessarei ao Senhor as minhas transgressões; e tu perdoaste a iniqüidade do meu pecado [...]. Tu és o meu esconderijo; tu me preservas da tribulação e me cercas de alegres cantos de livramento. (SI 32.1-2, 5, 7) O perdão é necessário porque todos pecamos e carecemos da glória de Deus (Is 53.6). Somente Deus pode perdoar pecados (Is 53.4-5; veja SI 51.3-4; 130.3-4; Mc 2.7; Lc 5.21; 7.49). Duas raízes hebraicas traduzem o conceito básico de "perdoar" no Antigo Testamento. Uma é sãlah e é freqüentemente traduzida por "perdoar". Em acadiano, uma raiz semelhante, salãhu, significa "aspergir" e é usada no sentido médico e cultual. Em hebraico, esse sentido concreto não transparece, mas a raiz pode ter vindo de um contexto de culto e poderia ter sido usada com o sentido de "aspergir", e depois "perdoar".162 Se isso é verdade, o perdão é um processo de purificação espiritual e mental que restaura o relacionamento entre Deus e o ser humano e entre as pessoas. A segunda raiz hebraica que significa "perdoar" é nãáã’ e tem o sentido literal de "levantar", "carregar", sãlah ocorre apenas com Deus como sujeito, mas nãáã’ é usada tanto com Deus como com as pessoas como sujeito. Os irmãos de 162 Jacob, Theology o f the Old Testament, 292; Köhler e Baumgartner, Hebrew Lexicon, 659. 216 T e o l o c ia do A n t ig o T e s t a m e n t o José pediram que ele os perdoasse (Gn 50.17); Saul pediu perdão a Samuel, para que pudesse adorar (ISm 15.25); Abigail pediu a Davi que a perdoassepor sua parte na má conduta de seu marido em relação a ele (ISm 25.28). O perdão também está presente em outros termos além de nãéã’ e sãlah. Expressões como "ser gracioso", "esconder-se da ira de Deus" e "que Deus se arrependa ou se desvie da sua ira" podem indicar o perdão de Deus. O "credo" não histórico de Êxodo 34.6-7 descreve Javécomo misericordioso e gracioso, tardio para se irar, rico em amor firme e em fidelidade, mantendo seu amor por milhares, e perdoando (nãáã’) iniqüidade, transgressão e pecado. A raiz slh é usada no credo em Êxodo 34.9 na oração: "Perdoa (slh) nossa iniqüidade e nosso pecado". Essa parte do "credo" é repetida duas vezes. Uma forma da raiz slh ocorre em Neemias 9.17: "Tu és Deus perdoador". Israel acreditava que Javé era um Deus que perdoa, mesmo que em algumas ocasiões Deus diga que não perdoará (Êx 23.21; Dt 29.20; Js 24.19; 2Rs 24.4; Jó 7.21; Lm 3.42; Os 1.6). Amós orou para que Deus perdoasse Israel (Am 7.2, S), e o Senhor se arrependeu e desistiu do castigo pretendido. Mais tarde Amós teve duas outras visões do julgamento vindouro, e Javé disse que havia chegado ao fim a paciência divina com Israel: "Jamais passarei por ele" (Am 7.8; 8.2). Javé disse rês vezes a Jeremias que não orasse mais por seu povo, porque Javé não os pouparia do castigo (Jr 7.16; 11.14; 14.11). O perdão de Deus nem sempre era garantido. Amós disse: Aborrecei o mal, e amai o bem, e estabelecei na porta o juízo; talvez o Senhor, o Deus dos Exércitos, se compadeça do restante de José. (Am 5.15) Na mesma linha, Sofonias conclamou: Buscai o Senhor, vós todos os mansos da terra, que cumpris o seu juízo; buscai a justiça, buscai a mansidão; porventura, lograreis esconder-vos QVUi t Dcus COMO jA V tr 217 no dia da ira do Senhor. (Sf 2.3) O rei de Nínive não achou que o perdão de Javé fosse automático. Djsse ele: "Clamarão fortemente a Deus; e se converterão, cada um do seu mau caminho e da violência que há nas suas mãos. Quem sabe se voltará Deus, e se arrependerá, e se apartará do furor da sua ira, de sorte que não pereçamos?" (Jn 3.8-9). Nessas três passagens, o perdão de Deus não é automático nem garantido. Deus é livre para perdoar ou não. Durante a maior parte do tempo, Israel tinha uma fé firme na disposição de Deus de perdoar (Ne 9.17; SI 32.1-5; 65.3; 86.5; 99.8; 103.3; Is 55.7; Mq 7.18). Comentando a ocasião em que Israel pressupôs o perdão de Deus (Is 48.12), G. A. F. Knight lembrou a insolência da famosa declaração de Heinrich Heine no seu leito de morte: "Deus há de me perdoar, porque esse é o seu trabalho".163 Knight viu uma importante verdade evangélica em Isaías 44.22, que assevera que Deus já nos perdoou antes que nos arrependamos, não quando e se nos arrependermos.164 Mais tarde Knight disse: "Deus oferece perdão ao ser humano no mesmo momento em que este comete o pecado fundamental do qual derivam todos os outros. Deus perdoará abundantemente, [...] ou ‘multiplicará o perdão’".165 De acordo com o Antigo Testamento, o maior problema da raça humana é o pecado. Somente Deus pode lidar com ele eficientemente; isso ele fez, e faz, em Cristo.166 Os conceitos de pecado e perdão serão discutidos mais a fundo no capítulo 7. O Antigo Testamento afirma que Javé é único (Dt 6.4) e que somente ele é Deus (Dt 4.35, 39; 2Sm 7.22; lRs 8.60; 2Rs 19.15; SI 86.10; Is 43.10-13; 44.6-8; 45.5-6,21-22; J1 2.27; cf. Is 41.4; 48.12; 64.4). Essas afirmações são poucas, e suas datas são discutíveis. É surpreendente que o shema (Dt 6.4), que se tomara a divisa do judaísmo no começo da era cristã, é mencionado apenas uma vez no Antigo Testamento, e seu significado exato não está claro. O texto hebraico pode ser lido 163 Deutero-Isaiah, 166; veja Stewart, A Faith to Proclaim, 52. 164 Ibid., 122. 165 Ibid., 262. Veja Smith, Word Biblical Themes: Micah-Malachi, 20. 218 T f.o i .o c ia do A n t ig o T e s t a m e n t o assim: "Ouve, ó Israel, Javé (é) nosso deus, Javé (é) um"; ou: "Ouve, ó Israel, Javé (é) nosso Deus, apenas Javé". G. Emest Wright disse que o significado essencial está claro mesmo que nossa tradução não esteja. O objeto da atenção, afeição e adoração exclusiva de Israel (cf. v. 5) não é difuso, mas específico. Não é um panteão de deuses, cada um com uma personalidade dividida de modo desconcertante por adeptos e santuários rivais, tanto que a atenção do adorador não tem como se concentrar. A atenção de Israel é indivisa; ela é restrita a um único ser definido cujo nome é Javé. [...] A palavra “um” é, portanto, usada em contraposição a “muitos”, mas também implica singularidade e diferença.167 A palavra traduzida por "um" é o numeral cardeal comum ’éhad. G. A. F. Knight propôs que essa palavra "um" ( ’éhad) não deve ser vista aqui em sentido matemático, porque com freqüência é usada para uma unidade na diversidade, como no exemplo de "uma só carne" de marido e esposa (Gn 2.24). "A pessoa de Deus [...] nao deve ser entendida em termos individualistas modernos. Deus não é uma mera mônada, a mera ‘unicidade’ de ser no sentido matemático da palavra ‘um’. Ele é uma ‘unidade na diversidade’".15* Knight observou que outra palavra hebraica, yahid, pode significar "um" no sentido de singularidade ou "o único" (Gn 22.2, 12, 16; Jz 11.34; SI 22.20; 25.16; 35.17; 68.7; Pv 4.3; Jr 6.26; Am 8.10; Zc 12.10). Os cristãos lembram o fato de que Deuteronômio 6.4 usa o único unido ( ’éhad)com o evidência de que a doutrina da Trindade de forma alguma contradiz ou se opõe ao shema. Temos de tomar cuidado, no entanto, para não ler a doutrina cristã da Trindade dentro do shema do Antigo Testamento. David S. Dockery disse que é freqüente a confusão quanto ao fato de a Bíblia afirmar ao mesmo tempo a doutrina da Trindade e o monoteísmo. Contudo, essas duas afirmações de modo algum são contraditórias. A doutrina da Trindade não ensina a existência de três deuses "Deus não se revelou em termos claramente trinitários no Antigo Testamento. Todavia, o Antigo Testamento preparou o fiel para a doutrina da Trindade".169 A idéia da unicidade de Deus no Antigo Testamento é singular e significativa. Enquanto outros povos antigos achavam que seus deuses eram muitos, cada um tendo sua própria esfera de influência e responsabilidade, o Israel antigo entendia que seu Deus era um (indiviso), com todos os atributos e poderes l<'7 "Deuteronomy", /fl, 372-373. IMA Christian Theology, 58. 169 Dockery, "Monotheism in the Scriptures", 30; cf. V. P. Hamilton, Genesis 1-17, 132-133. qu em É deus com o J avé? 219 da divindade em si mesmo, governando todas as esferas da existência. Não há distinções sexuais em Javé. O hebraico não tem palavra traduzível por deusa (veja Excurso: Aserá —consorte de Javé?). Não há indicação de que o Javé do reino do Norte fosse de qualquer forma diferente do Javé do reino do Sul. Westermann disse: Por ser o criador e também o salvador, por ser o Deus que abençoa sua criação em um horizonte universal o mesmo que salva e julga seu povo, por ser o Deus em quem cada pessoa confia o mesmo que “dá o alimento aos animais e aos filhos dos corvos” (SI 147.9), e por existir apenas um para louvar e um a quem se queixar —há coerência e relação em tudo o que acontece entre Deus e o ser humano, entre Deus e sua criação. Por isso essa história é real, do começo ao fim.170 Excurso: Aserá —consorte de Javé? Será que Israel conseguiu viver no meio dos seus vizinhos sem ter uma contrapartida feminina para Javé? Algumas evidências recentes parecem dizer que não. William Dever afirmou que o Antigo Testamento contém quarenta referências veladas ao culto de Aserá, a antiga divindade cananéia da fertilidade, consorte do El de Ugarite.171 Alguns papiros de Elefantina, uma ilha no rio Nilo, foram publicados no começo do século XX(1906, 1908, 1911). Eles vinham de uma colônia militar judaica na ilha e são datados de cerca de 4S0 a.C. Mostram que havia um templo na ilha, onde Javé era adorado ao lado de outros deuses. Uma das deusas mencionadas nos papiros era Anate, antiga deusa cananéia.172John Day examinou a grande quantidade de dados de Ugarite que tratam Aserá como deusa.175 Recentemente, duas escavações arqueológicas no território de Judá trouxeram a lume inscrições de cerca de 750 a.C. Alguns estudiosos interpretaram as inscrições como referências a "Javé e sua Aserá". Os textos vêm de duas localidades: Khirbet el-Qôm, aldeia quase a meio caminho entre Hebrom e Laquis, e Luntillet Ajrud, estação remota no caminho do deserto do norte do Sinai, mais ou menos 40 quilômetros a sudoeste de Cades-Baméia. Não podemos comentar 170 Elements o f Old Testament Theology, 32. 171 "Asherah, Consort", 217. 1,2 Rowley, "Papyri from Elephantine", 256-257. 1,5 "Asherah in the Hebrew Bible", 385. 220 T e o l o g ia do A n t ig o T e s t a m e n t o todas as evidências aqui, mas parece que a conclusão de Emerton é a melhor até o momento: "A Aserá invocada na frase ‘Javé e sua Aserá’ provavelmente é o símbolo de madeira da deusa com esse nome, cuja vinculaçâo ao culto de Javé é confirmada no Antigo Testamento. Ela pode ter sido considerada em alguns círculos como consorte de Javé, mas as inscrições não dão prova direta desse relacionamento".174 Nenhum estudioso sério do Antigo Testamento afirma que alguma passagem veterotestamentária dá provas de que Javé tinha uma consorte ou partilhava sua adoração com alguém ou algo. Poderia ser dito que a leitura "e sua Aserá" de forma alguma é segura. Se a leitura estivesse correta, fica a pergunta se Aserá se refere a uma deusa ou a um lugar, e se os textos representam a religião judaica normativa ou a de um grupo sectário. Baruch Margalit disse que, apesar de não haver uma confirmação "totalmente segura" de Aserá, que significa "esposa" na Bíblia hebraica, muitas referências a Aserá no Antigo Testamento parecem pressupor que ela é uma deusa.175 É difícil determinar quando Israel chegou a entender que seu Deus era só um e que era o único Deus. É provável que Israel soubesse que Deus era só um antes de compreender todas as implicações desse fato, ou seja, se Deus é só um e tem em si todo o poder e todas as prerrogativas da divindade, não pode haver outro. Israel não chegou a essa conclusão por meio de dedução racional, mas pela observação das ações de Deus na história.176 Desde o começo da sua história (com Moisés ou com Abraão), Israel creu que Deus é só um. Westermann disse: "O fato de que Deus é só um é sabido e aceito no Antigo Testamento do começo ao fim".177 W. F. AIbright, G. E. Wright, H. H. Rowley, Th. C. Vriezen, E. Jacob e Dennis Baly defendem um monoteísmo incipiente ou implícito desde a época de Moisés. Estudiosos como E. Renan, Andrew Lang, N. Soderblom, R. Pettazzoni, W. Schmidt, G. Widengren e I. Engnell recorreram a evidências da sociologia, da antropologia e da história das religiões para tentar identificar um "monoteísmo primitivo" ou a adoração de "deuses elevados".178 Apesar de Israel, desde o começo da sua história, pensar que seu Deus era só um, eles passaram a negar a existência de outros deuses somente bem adiante cm sua história.179 Eichrodt disse que é fácil provar que, no Israel antigo, a existência de outros deuses além de Javé ainda era um fato com o qual se devia 17« «New Light on Israelite Religion”, 19. 1,5 "The Meaning and Significance o f Ashe rah", 283. ,H Wright, The O ld Testament Against its Environment, 39. 177 Elements o f Old Testament Theology, 32. I7* Cf. W. F. Albright, From the Stone Age to Christianity, 70; Rowley, The Old Testament and M odem Study, 286290; Jacob, Theology o f the Old Testament, 44, 76. Dockery, "Monotheism in the Scriptures", 28. Q uem é D eus com o J avé? 221 contar.180 O primeiro mandamento, "Não terás outros deuses diante de mim", indica a possibilidade de que outros deuses sejam reais. Josué conclamou o povo a escolher entre Javé e outros deuses (Js 24.2, 24). A adoração de Baal era uma constante ameaça ao relacionamento de aliança entre Javé e Israel após a conquista de Canaã. O livro de Juizes é uma história contínua da adoração de outros deuses por Israel. Gideão fez um éfode (Jz 8.27); Mica fez uma imagem esculpida ou fundida da prata que roubara da mãe (Jz 17.3-4; 18.14, 24). Davi acreditava que, expulso da sua terra, teria de adorar outros deuses (ISm 26.19). A história de Israel foi de repetida apostasia (cf. Dt 9: SI 106; Ez 16; 20). A idolatria foi um problema para Israel até o tempo do exílio. Como Israel tentou lidar com a existência de outros deuses? Zimmerli diz: "O javismo não eliminou simplesmente a noção de outras divindades, por mais que considerasse apenas Javé a única divindade para a nação. Israel desconhece o monoteísmo teórico. Achava normal que houvesse outros deuses nas outras nações".181 Israel tentou resolver a questão da existência de outros deuses de várias maneiras. Em Deuteronômio 32.8, segundo a Septuaginta e os manuscritos do mar Morto, o Deus Altíssimo distribuiu porções às nações quando separou os ftlhos dos homens. Fixou limites para os povos conforme os filhos de Deus (ou seja, os anjos). O texto hebraico (massorético) parece ter mudado aqui o texto original de "filhos de Deus" para "filhos dos homens". "Filhos de Deus" sugeriria que Israel e as outras nações foram atribuídas ou distribuídas a divindades ou anjos da guarda.182 Deuteronômio 4.19 e 29.26 dão a entender que, quando Deus separou as nações, ele lhes deu outros deuses para adorar, mas Israel foi terminantemente proibido de adorar esses deuses. O salmo 82 pode ter a solução "definitiva" para o problema de outros deuses, mas admito que ele é muito difícil de interpretar. Será que o salmo 82 está falando da morte dos "deuses"? O versículo 1 diz que Deus ( ’è