HISTORIA. M E T O D O E M EN SA G EM
RALPH L. SMITH
VIDA NOVA
c a ta lo g a ç ã o na fo n t e do
DEPARTAMENTO NACIONAL DO LIVRO
S657t
Smith, Ralph L. (Ralph Lee), 1918Teologia do Antigo Testamento: história, método e
mensagem / Ralph L. Smith ; tradução: Hans Udo Fuchs,
Lucy Yamakami. - São Paulo : Vida Nova, 2001.
448 p. ; 16x23 cm.
ISBN 8 5 -2 75-0279-8
Tradução de: Old Testament theology.
1. Bíblia. A.T. - Teologia. 1. Título.
CDD: 230
mr
"1
TEOLOGIA
DO
j^ A N T I G O TESTAMENTO j
RALPH L.SMITH
TRADUÇÃO
HANS U D O FUC HS
LUCY YAMAKAMI
Copyright © 1993 Broadman & Holman Publishers
Título do original: Old Testament Theology
Traduzido da edição publicada pela
Broadman & Holman Publishers, Nashville, Tennessee,
1.* edição: 2001
Reimpressões: 2002, 2005
Publicado no Brasil com a devida autorização
e com todos os direitos reservados por
S o c i e d a d e R e u g io s a E d iç O e s V id a N o v a ,
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meios (mecânicos, eletrônicos, xerográfícos,
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com indicação de fonte.
Printed in Brazil / Impresso no Brasil
ISBN 85-275-0279-8
C o o r d e n a ç ã o e d it o r i a l
Robinson Malkomes
C o o r d en a ç ã o d e pro d u çã o
Roger Luiz Malkomes
C apa
Julio Carvalho
EUA
Para
Dorothy
Conteúdo
Abreviaturas .......................................................................................................... 11
Prefácio ................................................................................................................... 13
Introdução ............................................................................................................... 15
1. A história da teologia do Antigo Testamento ............................................... 21
1. Teologia do Antigo Testamento:
Uma disciplina moderna com raízes antigas ....................................
2. Lançando a semente da
teologia do Antigo Testamento ..........................................................
3. A germinação e o crescimento
da teologia do Antigo Testamento ...................................................
4. A morte da teologia do Antigo Testamento
e o triunfo da Religiongeschichteschule ...........................................
5. O reavivamento da teologia do Antigo Testamento ..........................
6. O movimento da teologia bíblica .......................................................
7. A situação atual da
teologia do Antigo Testamento .........................................................
21
22
28
33
36
46
49
8
T e o i . o c ia
do
A n t ig o T e s t a m e n t o
Excurso: o relacionamento judeu-cristão
e a teologia do Antigo Testamento .................................................... 59
2. A natureza e o método da teologia do Antigo Testamento ......................... 67
8. A natureza da teologia do Antigo Testamento ................................... 67
9. O método da teologia do Antigo Testamento ..................................... 72
3. O conhecimento de Deus
.................................................................................. 89
10. A teologia do Antigo Testamento
começa com a revelação ..................................................................... 89
11. A existência de Deus é pressuposta
no Antigo Testamento ......................................................................... 92
12. Conhecer a Deus é mais do que
conhecimento intelectual ..................................................................... 93
13. O Deus abscôndito ................................................................................ 98
14. Meios de revelação .......................................................................... 102
1 5 .0 nome de Deus rrriN ittíK nvw ....................................................... 111
4. Eu serei o vosso Deus, e vós sereis o meu p o v o ........................................... 117
16. E vós sereis o meu povo (eleição) ................................................... 117
17. Eu serei o vosso Deus (aliança) ....................................................... 132
5. Quem é Deus como Javé? ............................................................................... 155
18. Um Deus que salva ..........................................................................
19. Um Deus que abençoa ......................................................................
20. O Deus criador ...................................................................................
Excurso: Os grandes animais marinhos .................................................
21. Um Deus santo ...................................................................................
22. Um Deus de amor ............................................................................
23. Um Deus de ira .................................................................................
158
162
167
174
180
184
196
C onteúdo
24. Um Deus que j u l g a ............................................................................
25. Um Deus que perdoa ........................................................................
26. Um Deus ú n ic o ...................................................................................
Excurso: Aserá —consorte de J a v é ? .......................................................
9
206
214
217
219
6. Que é o homem? .............................................................................................. 225
27. O
28. O
29. O
30. O
ser humano é um ser criado .........................................................
ser humano é semelhante a Deus (a imago Dei) ........................
ser humano: um ser social ............................................................
ser humano é um ser unitário .......................................................
227
228
237
251
7. Pecado e redenção ............................................................................................ 263
31.
32.
33.
34.
A natureza do pecado ........................................................................
A origem do pecado ..........................................................................
Os efeitos do pecado ........................................................................
A remoção do p e c a d o ........................................................................
266
273
276
286
8. Adoração .......................................................................................................... 299
35. Os termos da adoração ......................................................................
36. Horas e locais de ad o ração ................................................................
37. Formas de adoração ..........................................................................
Excurso: A circuncisão e o b a tism o .......................................................
300
304
316
317
9. A vida reta ........................................................................................................ 323
38. A vida reta e a religião
no Antigo Testamento ...................................................................... 323
39. Panorama da literatura sobre a ética
do Antigo Testamento ...................................................................... 326
40. Como estudar a ética
do Antigo Testamento ...................................................................... 340
T e o l o g ia
10
do
A n t ig o T e s t a m e n t o
10. A morte e o além ........................................................................................... 357
41.
42.
43.
44.
Que é a morte? ...................................................................................
O túmulo e o Sheol ..........................................................................
O túmulo e o além ............................................................................
A ressurreição ...................................................................................
11. Naquele dia
359
362
368
375
.................................................................................................... 379
45. O fim ou culminação da história .....................................................
46. Criação e escatologia ........................................................................
47. A restauração da nação
e o reinado universal de Deus .........................................................
48. O Messias ...........................................................................................
49. O servo so fred o r.................................................................................
50. O Filho do homem ............................................................................
5 1 .0 Antigo Testamento e o Novo:
cristãos e judeus ..............................................................................
381
384
386
390
395
402
404
Epílogo ................................................................................................................... 413
Bibliografia .......................................................................................................... 419
Abreviaturas
AJSL
BA
American Journal o f Semitic Languages
Biblical Archaeologist
BAR
Biblical Archaeologist Reader
BASOR
Bulletin o f American Schools o f Oriental Research
BBC
Broadman Bible Commentary
BDB
Brown, Driver, and Briggs, Hebrew and English Lexicon o f the Old
Testament
BJRL
Bulletin o f the John Rylands UniversityLibrary o f Manchester
BTB
Biblical Theology Bulletin
BWANT
Beitrage zur Wissenschaft vom Alten und Neuen Testament
BZAW
Beihefte zur ZA W
CBQ
Catholic Biblical Quarterly
EJ
Encyclopedia Judaica
ET
Expository Times
HBT
Horizons in Biblical Theology
HTR
Harvard Theological Review
HUCA
Hebrew Union College Annual
12
IB
ICC
IDB
JAOS
JBL
JBR
JR
JSOT
JTS
NICOT
OTMS
RSPhTH
SBL
SBT
SJT
SVT
SWJT
TB
TDOT
THAT
ThLZ
TOTC
TWAT
TTZ
VT
WMANT
WBC
ZAW
ZTK
T f. o i . o c ia
do
A n t ig o T e st a m e n t o
Interpreter ’s Bible
International Critical Commentary
Interpreter ’s Dictionary o f the Bible
Journal o f American Oriental Society
Journal o f Biblical Literature
Journal o f Bible and Religion
Journal o f Religion
Journal fo r the Study o f the Old Testament
Journal o f Theological Studies
New International Commentary on the Old Testament
Old Testament and Modern Study
Revue des sciences philosophiques et theologiques
Society o f Biblical Literature
Studies in Biblical Theology
Scottish Journal o f Theology
Supplements to Vetus Testamentum
Southwestern Journal o f Theology
Tyndale Bulletin
Theological Dictionary o f the Old Testament
Theologisches Handwörterbuch zum Alten Testament
Theologische Literaturzeitung
Tyndale Old Testament Commentary
Theologisches Wörterbuch zum Alten Testament
Trierer Theologische Zeitschrift
Vetus Testamentum
Wissenschaftliche Monographien zum Alten und Neuen
Testament
Word Bible Commentary
Zeitschrift fü r die altestamentliche Wissenschaft
Zeitschrift fu r Theologie und Kirche
Prefácio
A teologia do Antigo Testamento tem tido uma vida privilegiada.
Encontra-se em crise desde o nascimento. Alguns estudiosos têm falado em sua
morte e renascimento. Entretanto, continua a sobreviver. James Barr, J. J. Collins e
outros são céticos quanto ao seu futuro.1 Os estudiosos divergem a respeito de sua
definição, metodologia, valor e conteúdo; até agora, a discussão continua. Este
volume não foi escrito com a finalidade de participar desse debate, embora
dialogue com a maioria das questões em discussão. E antes uma introdução
elementar ao estudo da teologia do Antigo Testamento. Começou como um
"manual" de teologia do Antigo Testamento e foi transformado no meio do
caminho com o propósito expresso no presente título: Teologia do Antigo
Testamento: História, Método e Mensagem. Dirige-se a estudantes, pastores e
leigos interessados. O grande número de citações de "autoridades" faz parte de um
projeto para familiarizar o leitor com a bibliografia básica no campo e permitir às
autoridades que expressem seus pensamentos com suas próprias palavras. A
maioria das citações bíblicas foi extraída da tradução de Almeida, Revista e
Atualizada, 2* edição.
1Veja Gerhard Hasel, Old Testament Theology: Basic Issues in the Current Debate (Grand Rapids: Eerdmans, 1991),
37, 94-95.
14
T e o l o g ia
do
A n t ig o T e s t a m e n t o
Tenho dívida de gratidão para com inúmeras pessoas (professores, alunos,
pais, família e amigos) e instituições (escolas, faculdades e seminários) que me
ajudaram na preparação. Quero agradecer em especial ao Dr. Trent C. Butler, da
Broadman & Holman Publishers, sua inestimável colaboração neste projeto, e à
Sra. Denise Hess a demonstração de suprema paciência, compromisso, dons e
capacidade fora do comum na preparação do manuscrito. Sem eles, eu não teria
conseguido escrever e publicar este livro. Agradeço também aos meus colegas é à
administração o apoio e estímulo. Acima de tudo, agradeço à Dorothy, minha
esposa, por ser a mais preciosa companheira que algum ser humano já teve. Ela
aprendeu muitas de suas virtudes pela leitura do Antigo Testamento.
Ralph L. Smith
Southwestem Baptist Theological Seminary
Agosto de 1992
Introdução
Que é teologia do Antigo Testamento?
Como devemos fazer teologia do Antigo Testamento?
Qual a relação do Antigo Testamento com o Novo e com a fé cristã?
Por que o Antigo Testamento faz parte da Bíblia cristã?
Os cristãos devem continuar a chamar de "Antigo Testamento" a primeira
divisão da Bíblia, como têm feito através da maior parte da história, ou devem se
unir ao crescente número de estudiosos que o chamam "a Bíblia hebraica"?
Quais são os maiores escritores nesse campo? Como eles fizeram teologia
do Antigo Testamento? Qual a situação atual dessa disciplina e qual o seu futuro?
O Antigo Testamento tem realmente uma mensagem para nós hoje?
Essas são algumas perguntas de que tratarei em Teologia do Antigo
Testamento: História, Método e Mensagem.
O propósito deste livro é pesquisar, não discutir ou debater. Não apresenta
nenhum método radicalmente novo de fazer teologia do Antigo Testamento ou de
interpretá-lo. Seu alvo é fornecer a alunos de universidades e seminários um livro
de texto que proporcione um relato parcial do que os outros têm dito e feito no
campo da teologia do Antigo Testamento e, depois, sugira modos pelos quais os
dados teológicos no Antigo Testamento possam ser organizados, interpretados e
apropriados.
16
T f.o i . o g u
do
A n t ig o T fü t a m e n t o
O capítulo 1 acompanha a história da teologia do Antigo Testamento desde
os tempos veterotestamentários até o presente. O capítulo 2 trata, com um pouco
mais de detalhes, da natureza e do método da teologia do Antigo Testamento. Não
escolhi nenhum tema central, tal como a aliança, para servir de mastro ao redor do
qual se deve organizar todo o material. Tampouco selecionei algum tópico mais
amplo, como "a promessa" ou "história da salvação", que possa ser seguido
cronologicamente através do Antigo Testamento. Antes, escolhi uma abordagem
temático-sistemática. Portanto, os capítulos 3 a 11 são exemplos de como se pode
fazer teologia do Antigo Testamento usando os seguintes temas teológicos
maiores: o conhecimento de Deus; eleição e aliança; quem é Deus como Javé?; que
é o homem?; pecado e redenção; adoração; a vida reta; a morte e o além; e naquele
dia.
Os perigos dessa abordagem estão bem documentados. Talvez o maior
perigo seja que, ao selecionar temas a serem incluídos ou omitidos e ao
sistematizar os dados na discussão de cada tema, eu posso dar meu "toque" pessoal
na organização e interpretação de cada assunto. Nesse caso, o resultado corre o
risco de corresponder ao que coloco em discussão e não ao que o Antigo
Testamento realmente diz. Esse perigo, porém, é inerente a qualquer apresentação
de teologia do Antigo Testamento.
A disciplina em sua forma moderna teve início no final da década de 1700
como tentativa de libertar o estudo teológico da Bíblia dos grilhões da teologia
dogmática e de seu uso incorreto da Bíblia para sustentar suas crenças.1 Toda
apresentação da teologia do Antigo Testamento recebe cor própria que depende do
ponto de vista, contexto e preparação do autor. Devemos estar conscientes dos
perigos da subjetividade e lutar para permitir que os dados do Antigo Testamento
falem por si.
Uma fonte de subjetividade nesse campo pode ser a filiação religiosa e/ou
o compromisso do autor. Ao longo da história, as teologias do Antigo Testamento
têm sido escritas por cristãos principalmente para cristãos. O termo "Antigo
Testamento" é um termo cristão. Os judeus não usam esse termo; usam "Bíblia
hebraica", "a Bíblia", "a Escritura" ou "Tanakh", acrônimo derivado do nome das
três partes da Bíblia hebraica: Torah, NebVim e Keíhubim (Lei, Profetas e
Escritos).
O termo teologia tem sido amplamente usado pelos cristãos. A igreja
primitiva adotou a palavra grega theologia quando os cristãos penetraram no
mundo ocidental. Os gregos usavam theologia para designar histórias e ensinos
acerca de seus deuses. "A igreja a aplicou ao Deus de Israel, revelado de modo
'"Veja a terceira divisão principal do capítulo 1, "A germinação e o desenvolvimento da teologia do Antigo
Testamento).
In t r o d u ç ã o
17
definitivo em Jesus Cristo. Para cristãos, ‘teologia’ significa ensino acerca de
Deus. A teologia do Antigo Testamento é, portanto, o ensino acerca de Deus na
escritura de Israel."2
Os escritores judeus nunca produziram uma teologia abrangente do Antigo
Testamento ou do judaísmo. O Antigo Testamento em si é não-sistemático quanto
à forma, assim como a Mishná e o Talmude. A literatura rabínica é notoriamente
não-hoiística em sua abordagem. Samuel Sandmel, conhecido estudioso judeu do
Novo Testamento, disse que embora os judeus tenham originado eminentes
filósofos, eruditos religiosos e brilhantes especialistas em homilética, geraram
poucos teólogos de grande valor. "Temos originado homens que têm feito um bom
trabalho sobre temas teológicos, mas nenhum teólogo sistemático de primeira
linha."3
M. H. Goshen-Gottstein dedicou atenção à falta de "teologias judaicas do
Antigo Testamento" num trabalho lido no Oitavo Congresso da International
Organization for the Study of the Old Testament, que se realizou em Edimburgo
em agosto de 1974. Goshen-Gottstein apresentou sua crença em que o fato de os
judeus não produzirem uma teologia do Antigo Testamento é resultado direto da
falta de participação nos estudos bíblicos acadêmicos da Europa até o século X X .
"Do ponto de vista da instituição acadêmica, os estudos bíblicos foram realizados
dentro da estrutura das ‘faculdades teológicas’ ou equivalentes. [...] Nenhum judeu
do século X IX poderia pensar em se tomar um ‘estudioso da Bíblia’ no sentido
europeu, que quase necessariamente acarretava movimento de um lado para outro
entre os testamentos."4
Os estudiosos judeus que poderiam ser chamados teólogos de alguma
maneira (Heschel, Gordis, Sandmel e Jon D. Levenson) têm atuado quase
exclusivamente no contexto dos seminários teológicos americanos. Se
acrescentarmos os nomes de alguns filósofos judeus não-americanos (como Buber
e Neher), a lista fica quase completa. Goshen-Gottstein pode ser o primeiro
professor de Bíblia numa universidade israelense que insiste em ministrar um curso
de pós-graduação em teologia bíblica.
Goshen-Gottstein concluiu que se admitirmos que "a teologia é
necessariamente" um ramo de estudo restrito ao cristianismo, perceberemos melhor
que só a entrada tardia dos judeus na erudição bíblica do século X X tem impedido
até agora o desenvolvimento de uma teologia judaica do Antigo Testamento.
Estudiosos judeus estão entrando agora no campo da teologia bíblica em
grande estilo. Jacob Neusner e Jon D. Levenson são dois "brilhantes luminares"
2 Christoph Barth, God With Us, 2.
3 "Reflection on the Problem o f Theology for Jews", i l l .
4 "Christianity, Judaism and Modem Bible Study", 77.
18
T e o i .o c ia
do
A n t ig o T e s t a m e n t o
entre os estudiosos judeus contemporâneos neste campo.5 Jon D. Levenson da
Harvard Divinity School escreveu um artigo, "Why Jews Are Not Interested in
Biblical Theology",6 no qual declarou que a teologia bíblica era uma preocupação
protestante e não estava isenta dos pressupostos protestantes acerca da Torá.
A teologia do Antigo Testamento é uma disciplina essencialmente cristã,
não por causa do uso do termo "Antigo Testamento" nem porque os cristãos são
mais aptos para sistematizar dados bíblicos ou para teologizar sobre eles, mas
porque Jesus via a si mesmo e a igreja primitiva também o via como o
cumprimento das esperanças e promessas veterotestamentárias. Uma vez que Jesus
fez uso teológico do Antigo Testamento para se referir a si mesmo, os cristãos que
o seguem têm usado o livro teologicamente. Por outro lado, os judeus, que têm
mostrado pouco interesse por teologia ao longo da história, não têm escrito
teologias da Bíblia hebraica.
A maioria das teologias do Antigo Testamento tem sido cristológica em
certo sentido. Edmund Jacob disse que uma teologia do Antigo Testamento que
não esteja fundamentada em versículos isolados mas no Antigo Testamento como
um todo "só pode ser uma cristologia, pois tudo o que foi revelado sob a antiga
aliança, através de uma longa e variegada história, em eventos, pessoas e
instituições, se reúne e se aperfeiçoa em Cristo".7 No final de seu segundo volume
sobre a teologia do Antigo Testamento, von Rad disse: "... todos esses escritos do
antigo Israel eram encarados por Jesus Cristo, e com certeza pelos apóstolos e pela
igreja primitiva, como uma coleção de predições que apontavam para ele como o
Salvador do mundo".8 Gerhard von Rad usou o método tradicionário-histórico de
interpretação ao tentar entender as implicações teológicas do Antigo Testamento.
Usando esse método, concluiu que o Antigo Testamento deve ser lido como um
livro em que a "expectativa vai se avolumando até atingir grandes proporções". O
Antigo Testamento é absorvido no Novo como "fim lógico de um processo
iniciado pelo próprio Antigo Testamento".9
Walter Eichrodt acreditava que "aliança" era o tema central do Antigo
Testamento. A aliança constituía "a mais profunda camada no fundamento da fé de
Israel". Ele tinha por pressuposto que a idéia de aliança estava presente,
independentemente de a palavra ser usada ou não. "Aliança" não era um conceito
dogmático, mas a "descrição típica de um processo vivo que começou em época e
5 Veja Brooks e Collins, 1-29,109-146.
4 Veja Neusner, Judaic Perspectives o f Biblical Studies, 2 8 1-307.
1 Theology o f the Old Testament, 12.
* Old Testament Theology II, 319.
’ Ibid., 321.
In t r o d u ç ã o
19
lugar específicos e que se destinava a tomar manifesta uma realidade divina
incomparável na história da religião".10
Eichrodt declarou também que qualquer pessoa que estude o
desenvolvimento histórico do Antigo Testamento encontrará através dos dados um
movimento poderoso e com propósito que exige sua atenção. Às vezes a religião
pode parecer estática, prestes a enrijecer-se num sistema inflexível, mas sempre
que isso acontece o impulso para a frente rompe o impasse e dá continuidade ao
movimento. "Esse movimento não cessa até a manifestação de Cristo, em quem se
concretizam os mais nobres poderes do Antigo Testamento. O judaísmo com
aparência de torso e separado do cristianismo apóia essa declaração de forma
negativa."11
Declarações como essas de Eichrodt —de que os "mais nobres" poderes do
Antigo Testamento se concretizam em Cristo e que o judaísmo separado do
cristianismo tem aparência de torso— têm provocado reações acaloradas. Alguns
estudiosos recentes do Antigo Testamento sustentam que não se deve pensar que a
teologia do Antigo Testamento só aponta para Jesus Cristo ou termina nele, uma
vez que isso denigre o judaísmo moderno.
John H. Hayes fez críticas severas a Eichrodt e von Rad por causa do
preconceito "anti-judaísmo" deles. Hayes disse: "Esse preconceito anti-judaísmo
tem suas raízes no Novo Testamento e tem sido uma chaga cancerosa na igreja em
toda parte".12 Hayes alega que "o judaísmo deve ser visto como uma continuação
tão legítima das escrituras hebraicas quanto o cristianismo. São ambas filhas
legítimas da mesma velha genitora".13
Nesse particular, há atritos. O Novo Testamento e o cristianismo histórico
alegam que o cumprimento do Antigo Testamento se dá em Cristo. A maioria dos
judeus e muitos estudiosos cristãos do Antigo Testamento alegam que os judeus
têm tanto direito de acreditar que o Antigo Testamento se cumpre no judaísmo
moderno quanto os cristãos de crer que ele se cumpre somente em Cristo.
Conseguiremos resolver essa questão? Existe um "centro", "coração" ou "núcleo"
no Antigo Testamento que aponta inevitavelmente para Cristo?
Seria a teologia do Antigo Testamento uma disciplina unicamente cristã?
Sim, se Eichrodt, von Rad, o Novo Testamento e talvez o próprio Antigo
Testamento estiverem corretos em declarar que existe um processo ou movimento
que se desenvolve em todo o Antigo Testamento e tem seu alvo ou cumprimento
em Jesus Cristo. Isso significa que a teologia do Antigo Testamento deve focalizar
apenas esse processo ou movimento e não levar em consideração todos os dados
,<>Theology o f the Old Testament I, 18.
" Ibid., 26.
u Hayes e Prussner, Old Testament Theology: Its History and Development, 276.
11 Ibid.. 279.
20
TEOI.OCIA
do
A n t ig o T e s t a m e n t o
veterotestamentários como história, lei, culto e sabedoria em seu próprio contexto
dentro do Antigo Testamento? A resposta a essa questão terá algum peso quando se
tentar decidir se a teologia do Antigo Testamento é uma disciplina normativa ou
descritiva. Essas e outras questões serão tratadas no capítulo 2 sobre "a natureza e
o método da teologia do Antigo Testamento".
Antes, devemos analisar a história da teologia do Antigo Testamento.
Como ela começou? Como tem caminhado na condição de disciplina
independente? Qual a situação atual dos estudos?
1
A história da teologia do Antigo
Testamento
1. A teologia do Antigo Testamento: uma disciplina
moderna com raízes antigas
A história da teologia do Antigo Testamento é longa, fascinante e sinuosa.
Embora essa disciplina em sua forma moderna mal tenha 200 anos, suas raízes
remontam ao próprio Antigo Testamento. Muitos estudiosos do Antigo Testamento
datam o início do estudo moderno da teologia do Antigo Testamento com a palestra
inaugural de Johann Philipp Gabler na Universidade de Altdorf em 1787.' Até a
época de Gabler a igreja não fazia distinção entre teologia dogmática e teologia
1 Veja Hayes e Prussner, 2; Hasel, Basic Issues, IS (publicado no Brasil pela JUERP como Teologia do Amigo
Testamento)\Ollenburger, Martens e Hasel, The Flowering o f Old Testament Theology, 489,507,527; Martin H.
Woudstra, "The Old Testament in Biblical Theology and Dogmatics", 47-51.
22
T e o l o g ia
do
A n t ig o T e s t a m e n t o
bíblica ou entre teologia do Novo Testamento e teologia do Antigo Testamento.
Gabler pensava que se deviam fazer essas distinções. Embora ele não tenha escrito
uma teologia do Antigo Testamento, estabeleceu os princípios básicos e o método
pelos quais seria possível escrever uma teologia bíblica e uma teologia do Antigo
Testamento. Gabler era racionalista e provavelmente estava irritado com o que
considerava uma força repressora que a igreja exercia sobre a exegese e sobre a
interpretação das Escrituras.
Naquela época talvez só um racionalista poderia pedir ou teria pedido de
fato uma separação entre teologia dogmática e bíblica. A separação que se seguiu
teve um efeito distorcido. Em vez de estabelecer as doutrinas do Antigo
Testamento de modo mais claro, as primeiras teologias do Antigo Testamento
filtraram o material teológico do Antigo Testamento com as lentes do racionalismo.
É provável que o primeiro livro a usar o título Teologia do Antigo
Testamento tenha sido Theologie des Alten Testaments de G. L. Bauer, publicado
em Leipzig em 1796. Bauer também era racionalista; Hayes e Prussner disseram
que Bauer avaliava continuamente o material do Antigo Testamento segundo os
padrões de sua interpretação racionalista da religião. Desviou-se do seu caminho
“para destacar os elementos mitológicos, lendários ou miraculosos nas escrituras
hebraicas e para rejeitá-los como superstições de uma raça primitiva”.2 Joseph
Blenkinsopp disse que Bauer obteve a distinção de escrever a primeira teologia do
Antigo Testamento e, ao mesmo tempo, de rejeitar como indignos de maior atenção
cerca de quatro quintos do Antigo Testamento.3
2. Lançando a semente da teologia do Antigo Testamento
Para que se possa entender os problemas da teologia do Antigo Testamento
e os debates sobre ela, precisa-se começar não com Gabler, mas com o próprio
Antigo Testamento. E depois deve-se rastrear a história do uso teológico que vários
grupos têm feito do Antigo Testamento através dos séculos.
Os últimos autores do Antigo Testamento fizeram uso teológico de alguns
dos escritos mais antigos. Zacarias se referiu várias vezes aos ensinos dos
“primeiros profetas” (veja Zc 1.4; 7.7, 12). Ageu devia conhecer a profecia de
Jeremias de que Deus retiraria seu “anel do selo” da mão de Jeconias (Jr 22.24-25),
quando disse que o Senhor faria de Zorobabel, neto de Jeconias, como um anel de
2 Hayes e Prussner, 69.
3 Blenkinsopp, "Old Testament Theology and the Jewish-Christian Connection", 3.
A HISTÓRIA DA TEOLOGIA DO ANTIGO TESTAMENTO
23
selar (Ag 2.23). Jeremias falou de uma nova aliança (Jr 31.31-34). Outros profetas
falaram de um novo êxodo (Is 43.14-21; 48.20; 52.12) e de um novo Davi (Jr 23.56; Ez 34.23-24; 37.24-27). O precursor do Messias seria uma “vinda” de Elias (Ml
4.5-6).
A comunidade de Qumran interpretava teologicamente o material do
Antigo Testamento. Escreveram comentários sobre alguns livros do Antigo
Testamento e cantavam hinos baseados em temas do Antigo Testamento. Viam a si
mesmos como pessoas que estavam vivendo nos últimos dias e acreditavam que o
Antigo Testamento estava sendo cumprido em algumas de suas experiências.
Existem semelhanças e contrastes entre o método de interpretação de
Qumran e o usado no Novo Testamento. Ambos reinterpretavam o Antigo
Testamento de acordo com sua própria situação. Ambos acreditavam que as
profecias do Antigo Testamento continham algo misterioso, cujo significado era
revelado a seus líderes (o mestre da justiça no caso da comunidade de Qumran e
Jesus para os cristãos do primeiro século). Nenhuma comunidade criou eventos
para se adaptar às Escrituras, mas ambas interpretaram as Escrituras de modo que
elas se encaixassem nos seus eventos da época.
A principal diferença entre a interpretação do Antigo Testamento em
Qumran e a dos autores do Novo Testamento está em o povo de Qumran ainda
esperar pelo Messias. No Novo Testamento as pessoas afirmavam que ele já tinha
vindo. Além disso, os escritores do Novo Testamento entendiam que os gentios
estavam incluídos na promessa abraâmica (Rm 9.24-26; IPe 2.10). Tal aplicação
das Escrituras do Antigo Testamento —estendendo aos gentios privilégios iguais
dentro da aliança abraâmica— teria sido inaceitável para a seita de Qumran.4
O Novo Testamento fez uso teológico do Antigo Testamento. Dos 27 livros
do Novo Testamento, apenas Filemom não mostra nenhuma relação direta com o
Antigo Testamento. Henry Shires disse que se todas as influências do Antigo
Testamento fossem retiradas do Novo Testamento, este iria “consistir de trechos
pequenos e sem sentido”.5 Os escritores do Novo Testamento nunca questionam a
natureza escriturística do Antigo Testamento; tampouco elaboram um sistema
teológico a partir dele.6
Jesus falou com autoridade, originalidade, novidade e liberdade ao lidar
com as Escrituras do Antigo Testamento. Ele se colocou acima delas; não
considerava o Antigo Testamento completo ou a última palavra de Deus, mas
aceitava-o como as primeiras palavras de Deus. Jesus disse: “Não penseis que vim
revogar a Lei ou os Profetas; não vim para revogar, vim para cumprir” (Mt 5.17).
4 Veja discussão sobre como a comunidade de Qumran usava o Antigo Testamento em Ralph L. Smith, MicahMalachi, WBC 32, 179-180; e F. F. Bruce, Biblical Exegesis in lhe Qumran Texts.
5 Finding the Old Testament in the New, 15.
6 Veja C. H. Dodd, According to the Scriptures, 12.
24
T e o l o g ia
do
A n t ic o T e s t a m e n t o
Em cinco exemplos no Sermão do Monte, Jesus colocou sua autoridade acima da
Lei, não para anular ou ab-rogar a Lei, mas para preenchê-la com um significado
mais elevado e pleno (Mt 5.21-22, 27-28, 33-35, 38-39, 43-45).
Paulo fez uso teológico do Antigo Testamento. Sustentou sua doutrina de
justificação pela fé fazendo referência a Habacuque 2.4 (veja Rm 4.3; G1 3.6). Fez
citações a partir de vários salmos como evidência de que “todos pecaram” (Rm
3.10-18). Outros escritores do Novo Testamento fizeram uso teológico do Antigo
Testamento (IPe 1.10-12; Hb 1.1; 10.1), mas em nenhum lugar apresentam uma
teologia do Antigo Testamento. Mateus, por exemplo, referiu-se a muitas passagens
do Antigo Testamento para tentar convencer os judeus de que Jesus era o Messias.
A igreja primitiva derrotou o marcionismo e reteve todo o Antigo
Testamento como suas Escrituras, mas não concentrou toda a sua atenção nele. A
igreja continuou a pesquisar as Escrituras, mas não escreveu comentários sobre ele
como fez a comunidade de Qumran. Jesus, não o Antigo Testamento, era o centro
da fé da igreja primitiva.
Quando Paulo se tomou o apóstolo dos gentios, surgiu uma contenda sobre
a necessidade de exigir dos convertidos gentios a observância das leis judaicas no
Antigo Testamento. O concílio de Jerusalém decidiu que as leis da aliança de
Moisés não deveriam ser aplicadas aos cristãos gentios. “Pois pareceu bem ao
Espírito Santo e a nós não vos impor maior encargo além destas coisas essenciais:
que vos abstenhais das coisas sacrificadas a ídolos, bem como do sangue, da carne
de animais sufocados e das relações sexuais ilícitas; destas coisas fareis bem se vos
guardardes. Saúde” (At 15.28-29).
Muitos antigos pais da igreja não mantiveram a perspectiva
neotestamentária do Antigo Testamento. Envolveram-se em amargas controvérsias
com alguns judeus e com grupos heréticos antigos. Usavam o Antigo Testamento
para defender sua fé e como uma fonte para seu ensino, mas ao fazê-lo recorriam
muitas vezes ao uso excessivo de alegoria e tipologia.
O autor da Epístola de Bamabé (cerca de 130 d.C.) considerava o Antigo
Testamento um livro de parábolas e um depósito de mistérios que não podiam ser
entendidos pelos judeus nos tempos do Antigo Testamento. Bamabé encarava o
bode emissário (Lv 16.10) como um tipo de Cristo. A lã escarlate com que ele era
coroado apontava para o manto escarlate de Cristo em seu julgamento. Bamabé
encarava a novilha vermelha de Números 19.2-3 como um tipo de Cristo. Para ele,
os 318 homens no exército de Abraão apontavam para a crucificação, pois o
número “trezentos” em grego é representado pela letra tau, que tem a forma de uma
cruz. Os números “dez” e “oito”, totalizando dezoito, são representados pelas letras
iota e eta, as duas primeiras letras no nome de Jesus.
Tais extremos na interpretação do Antigo Testamento eram uma
característica dos primeiros séculos da igreja cristã. Só uns poucos lugares, como a
escola de Antioquia (e mesmo ali apenas por curto tempo), viram algum esforço
A HISTÓRIA DA TEOLOGIA DO ANTIGO TESTAMENTO
25
real por interpretar o Antigo Testamento à luz de seu contexto histórico. A teologia
do Antigo Testamento em seu sentido moderno não poderia existir em tal ambiente
religioso.
O Antigo Testamento não teve melhor sorte na Idade Média do que teve
nos tempos mais antigos. Na realidade, ele foi quase completamente ignorado ou
esquecido. Os textos gregos e hebraicos não constituíam mais a base do estudo
bíblico. Mesmo os estudiosos liam apenas a antiga versão latina (a Vulgata). A
Idade Média enfatizava a autoridade da igreja, não da Bíblia. Os estudiosos
simplesmente sistematizavam o que os pais da igreja haviam dito, dando pouca
atenção às Escrituras. A igreja nada fazia para encorajar a pesquisa ou a busca de
novas verdades na Palavra. O mundo medieval era estático. O menor desvio de
qualquer ensino da igreja naqueles dias traria sobre a cabeça do inovador a
condenação da igreja, condenação que os cristãos medievais temiam mais do que
qualquer outra coisa.
Na Idade Média os estudiosos ensinavam que toda passagem das Escrituras
tinha quatro significados: literal ou histórico; alegórico ou teológico — aquilo em
que devemos crer; moral ou tropológico — o que devemos fazer; e espiritual ou
anagógico — para onde estamos nos dirigindo. Pode-se ver um exemplo dos quatro
significados nos vários sentidos atribuídos à palavra “maná”. Literalmente, maná
era o alimento que Deus fornecia de modo miraculoso para os israelitas no deserto.
Alegoricamente, era o sacramento bendito na eucaristia. Tropologicamente, era a
substância espiritual diária da alma mediante o Espírito de Deus que nela habita. E
anagogicamente, ele se tomou o alimento das almas benditas no céu — a “visão
beatífica” e a união perfeita com Cristo. Essa era a situação na igreja romana desde
cerca de 800 até 1500. Esse tipo de hermenêutica não podia produzir uma teologia
do Antigo Testamento.
A longa e escura noite do período medieval terminou com o início da
Renascença. A Renascença começou provavelmente na Itália pouco depois de 1300
como um avivamento do aprendizado acerca de artes, ciências e literatura clássica
do mundo antigo grego e latino. Espalhou-se para outros países durante os séculos
subseqüentes (1400 a 1600) e marcou a transição do mundo medieval para o
moderno.
Uma característica distintiva da Renascença foi a redescoberta do valor e
da individualidade das pessoas. Na Idade Média o indivíduo era um dente de
engrenagem na maquinaria da humanidade. Reventlow conta que, para alguns, a
Renascença foi o clímax na história do espírito humano. Trazido à vida pela
redescoberta da antiguidade, a Renascença encontrou as forças do novo
individualismo em toda parte — na política, na arte e na educação. Fluiu o
entusiasmo por estética, liberdade de pensamento, seriedade moral, paixão
desenfreada, desejo de vingança sangrenta e ascetismo —tudo junto, numa
26
T e o l o g ia
do
A n t ig o T e s t a m e n t o
justaposição inimitável. Podemos também encontrar nessas atitudes o germe de
uma alienação firmemente arraigada da religião tradicional.7
O que acontecia com o Antigo Testamento em meio a tudo isso? Foi
redescoberto como um dos “clássicos”. Alguns estudiosos judeus haviam mantido
certa familiaridade com a Bíblia Hebraica. Um judeu convertido, Nicolau de Lyra
(cerca de 1340), defendia um novo método de interpretar as Escrituras. Lyra dizia
que o significado literal ou histórico era o único significado verdadeiro das
Escrituras. Lyra parece ter influenciado Martinho Lutero em seu rompimento com a
visão quádrupla da interpretação da Bíblia. Lutero, porém, começou com um
princípio bem diferente daquele que busca o sentido literal de cada passagem das
Escrituras.
É provável que John Wycliffe tenha influenciado a visão de Lutero acerca
da Bíblia mais do que Lyra. Wycliffe (1328-1384), formado em Oxford e monge
agostiniano, seguia o ensino de Agostinho segundo o qual a verdadeira igreja era
composta por aqueles que Deus escolheu para a salvação e não necessariamente
pelos que estão na Igreja Católica Romana. Baseado nesse ensino, a filiação numa
igreja visível e a participação em seus sacramentos nada tinham que ver com a
salvação. Isso tomava desnecessário todo o sistema católico. A denúncia amarga de
Wycliffe contra o papa como o Anticristo e contra os pecados do clero preparou o
caminho para a revolta. Mesmo efeito teve o seu apelo à Bíblia como autoridade
última.
Lutero, assim como Wycliffe, enfatizou não tanto o significado literal das
Escrituras, mas a autoridade das Escrituras acima da autoridade do papa e da igreja.
Continuou a usar a alegoria ao interpretar o Antigo Testamento e não fez nenhuma
distinção entre a autoridade dos dois Testamentos. Para ele, o Antigo Testamento
continha a plena revelação de Cristo. No prefácio à edição de 1523 de sua tradução,
escreveu:
Aqui (no Antigo Testamento) encontrarás as faixas e a manjedoura em
que Cristo está deitado — pobres e de pequeno valor são as faixas, mas
caro é o Cristo, o tesouro que nelas está deitado.8
De novo, na mesma obra, escreveu:
Moisés é a fonte de toda a sabedoria e entendimento, da qual jorra tudo o
que é conhecido e dito por todos os profetas. O Novo Testamento também
7 Veja H. G. Reventlow, The Authority o f the Bible, 10.
* Citado por G. F. Oehler, Theology o f Old Testament, 24.
A HISTÓRIA DA TEOLOGIA DO ANTIGO TESTAMENTO
27
flui dele, e nele está fundado. — Se desejas interpretar bem e com
segurança, toma Cristo para ti; pois ele é o único homem ao qual tudo se
refere. Assim, portanto, não vejas ninguém no sumo sacerdote Arão,
senão somente Cristo.9
Isso parece alegoria ou tipologia, e é mesmo. Mas ao reivindicar que se
deixasse a Bíblia falar por si, Lutero fez avanços em relação àqueles vieram antes
dele.
João Calvino foi mais longe que Lutero na aplicação do princípio de que
toda passagem bíblica tem apenas um significado literal. Calvino lançou os
alicerces para a exegese histórica insistindo que toda passagem bíblica deve ser
interpretada de acordo com seu próprio contexto histórico. De fato, Calvino era um
expositor tão histórico dos profetas, a ponto de seus adversários referirem-se a ele
como “o judaizante Calvino”. No tratamento doutrinário do Antigo Testamento,
porém, ele tomou uma posição tão rígida quanto a de Lutero.
Para Calvino, a diferença entre os Testamentos não estava em suas
doutrinas, mas em suas forma. Calvino cristianizou o Antigo Testamento de tal
maneira que quase perdeu a visão da novidade do evangelho. Para ele, a diferença
entre as duas revelações estava apenas no nível de clareza. Uma vez que nem a
Reforma detectou a verdadeira relação entre os Testamentos, nenhum reformador
tentou escrever uma teologia do Antigo Testamento.
Um período de escolasticismo protestante veio imediatamente após a
Reforma. Em seus vigorosos debates com os católicos romanos, os protestantes
desenvolveram um autoritarismo tão rígido quanto o da igreja romana, com a única
diferença de que os protestantes tinham na Bíblia a sua autoridade final.
Contestavam com firmeza qualquer pessoa ou movimento que desafiasse sua visão
das Escrituras, chegando até mesmo a alegar que toda palavra e toda letra do texto
original era inspirada — incluindo os pontos vocálicos do hebraico.
Em 1538 um estudioso judeu, Elias Levita, desafiou essa visão e sustentou
que os pontos vocálicos não faziam parte dos textos hebraicos originais. Johann
Buxtorf e seu filho, da Universidade de Basiléia, debateram duramente por muito
tempo para defender a visão ortodoxa, mas no final perderam a causa. Sabemos
agora a partir de descobertas como a dos manuscritos do Mar Morto que o texto
hebraico original não tinham sinais vocálicos. Estes foram inventados pelos
massoretas entre 500 e 800 d.C.
Para os católicos, o “argumento a partir das Escrituras” começou pouco
tempo depois de 1500, na época do Concílio de Trento. Começou principalmente
como uma resposta à controvérsia com os protestantes ou nas controvérsias entre
jesuítas e dominicanos. Joseph Blenkinsopp deu a entender que uma das razões
9 Citado por Oehler, 2.
28
T e o i .o c ia
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A n t ig o T e st a m e n t o
pelas quais a Bíblia foi dividida em versículos nesse período foi “o propósito de
fornecer munição rápida para fins de controvérsia”.10
Além de Lutero e Calvino, outros grupos desafiaram a visão tradicional das
Escrituras, incluindo os anabatistas e socinianos. Os anabatistas em geral
rejeitavam o Antigo Testamento como autoridade para os cristãos, alegando que ele
era um livro destinado apenas para os judeus. Acreditavam também que o Antigo
Testamento não contém nenhuma crença em imortalidade do indivíduo." Os
socinianos admitiam o caráter divino do Antigo Testamento, mas sustentavam que
agora ele era apenas de interesse histórico e não essencial para a doutrina cristã.12
Os anabatistas e socinianos foram os primeiros de muitos a tentar romper
com a tradição em direção a uma abordagem mais objetiva do Antigo Testamento
— um tratamento que conduz por fim à verdadeira teologia do Antigo Testamento.
Pouco depois de 1600 George Calixtus negou que o Antigo Testamento contém a
doutrina da trindade. Outros tentaram voltar à Bíblia como fonte principal de sua
teologia. Desses, os mais proeminentes foram Cocceius (1603-1669), líder dos
pietistas, e G. C. Storr, fundador da “Antiga Escola de Tübingen”.13
Juntamente com esses homens e movimentos, as universidades se tornaram
centros para publicação de textos-prova — (dieta probantia) extraídos de todas as
partes da Bíblia para sustentar a doutrina ortodoxa. Dentan disse que embora a
maioria das obras escritas a partir desse ponto de vista fosse inexpressiva e
artificial no tratamento da Bíblia, esses livros “continham a semente do interesse a
partir do qual se devia desenvolver o estudo da teologia bíblica, e o último deles,
um tratado por Cari Haymann (1768), era de fato intitulado Biblische Theologie”.1*
3. A germinação e o crescimento da teologia do Antigo Testamento
Se a semente do interesse na teologia bíblica pode ser vista nas obras dos
que usaram textos-prova para sustentar a doutrina ortodoxa, ela foi nutrida pelos
que usaram textos-prova para criticar a ortodoxia. O método de textos-prova nunca
poderia produzir uma verdadeira teologia do Antigo Testamento. A teologia do
Antigo Testamento é basicamente uma disciplina histórica e descritiva. Só depois
10 A Sketchbook o f Biblical Theology, 6.
11 Veja Emil G. Kraeling, The Old Testament Since the Reformation, 22.
12 Ibid., 40.
13 Dentan, Preface to Old Testament Theology, 16-17.
14 Ibid., 418.
A HISTÓRIA DA TEOLOGIA DO ANTIGO TESTAMENTO
29
da descoberta dos princípios histórico-gramaticais de interpretação é que poderia
ser escrita uma verdadeira teologia do Antigo Testamento. Isso não ocorreu até a
Era da Razão.
A Era da Razão foi uma conseqüência da Renascença e da Reforma. Os
cruzados tinham redescoberto os clássicos gregos na ciência e na filosofia. Os
pioneiros da ciência moderna, orientando-se a partir dos antigos clássicos gregos,
começaram a desafiar as teorias tradicionais acerca do universo. Copémico (14731543) insistiu que o sol, não a terra, era o centro do universo; e Sir Isaac Newton
(1642-1727) via o mundo como uma máquina movida por leis naturais. Os deístas
ingleses, tais como Lord Herbert de Cherbury e Thomas Hobbes (1588-1679), não
negavam a existência de Deus, mas excluíram da história e da natureza a revelação,
os milagres e o sobrenatural.
O deísmo inglês não sobreviveu, mas o racionalismo alemão, sim. J. D.
Michaelis (1717-1791) e J. D. Semler (1725-1792) foram figuras fundamentais na
aplicação dos princípios do racionalismo à Bíblia. A Era da Razão descobriu o
princípio histórico-gramatical de interpretação das Escrituras, desenvolveu
habilidades e instrumentos apropriados para a pesquisa e libertou da autoridade da
igreja e do estado os estudiosos da Bíblia e os teólogos.
Johann Philipp Gabler foi o primeiro racionalista a clamar por uma
disciplina de teologia bíblica em separado das outras. Acreditava que muita
confusão no mundo cristão era provocada em grande parte pelo uso impróprio da
Bíblia e pelo fato de os ministros da igreja não fazerem distinção entre a teologia
dogmática e a religião histórica simples da Bíblia. Em sua palestra inaugural na
Universidade de Altdorf, em 30 de março de 1787, intitulada “De iuso discrimine
theologiae biblicae et dogmaticae regundisque recte utriusque fm ibus” (“Da
distinção correta entre as teologias bíblica e dogmática e da determinação adequada
dos alvos de cada uma delas”), Gabler pediu a separação das duas disciplinas. Por
essa razão, ele é muitas vezes chamado o pai da teologia bíblica.
Para Gabler, a teologia dogmática é didática e normativa em caráter e
ensina o que um teólogo em particular decide acerca de uma matéria de acordo com
seu caráter, tempo, idade, lugar, seita ou escola. A teologia bíblica é histórica e
descritiva em caráter, transmitindo o que os escritores sagrados pensavam acerca de
assuntos sagrados.
Gabler estabeleceu os princípios para fazer a teologia bíblica. Disse que o
teólogo bíblico deve primeiro estudar cada passagem das Escrituras separadamente
de acordo com os princípios histórico-gramaticais de interpretação. Segundo, deve
comparar as passagens específicas das Escrituras umas com as outras, observando
diferenças e semelhanças. Terceiro, deve sistematizar ou formular idéias gerais sem
distorcer o material nem obliterar distinções.
30
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A n t ig o T e s t a m e n t o
Gabler inspirou muitos estudiosos a escrever teologias bíblicas. G. L.
Bauer (1755-1806) foi o primeiro a publicar uma teologia do Antigo Testamento.15
A organização desse livro em três seções —teologia, antropologia e cristologia—
mostrou que Bauer continuava a depender das rubricas da teologia dogmática. Sua
interpretação dos dados bíblicos, porém, era ingenuamente racionalista. “Qualquer
idéia de revelações sobrenaturais de Deus por meio de teofanias, milagres ou
profecias deve ser rejeitada, uma vez que essas coisas são contrárias à razão sadia e
podem-se encontrar facilmente seus paralelos entre os povos.16
O campo da teologia bíblica foi ocupado quase exclusivamente por
racionalistas durante cinqüenta anos depois da palestra de Gabler. Os racionalistas
libertaram a teologia bíblica da influência desordenada da teologia dogmática, mas
colocaram-na imediatamente debaixo da tirania do racionalismo.
A influência da filosofia sobre a teologia do Antigo Testamento pode ser
sentida no afastamento de W. M. L. de Wette do racionalismo extremo. Com a
publicação de Biblische Dogmatick em 1813, tentou colocar-se acima tanto do
racionalismo como da ortodoxia para alcançar uma unidade mais elevada da fé e do
sentimento religioso. De Wette recebeu forte influência de Jacob Fries, seu
professor e colega na Universidade de Jena. Fries, tal como Schleiermacher, foi
educado pelos irmãos morávios e tinha fortes sentimentos religiosos. O pensamento
de Fries, porém, era mais kantiano. Pode-se ver a influência de Kant também na
obra de de Wette. Para de Wette, revelação significava “qualquer idéia religiosa
verdadeira expressa em linguagem ou símbolo”.17 Tais idéias verdadeiras, segundo
de Wette, não podem aparecer sem o Espírito de Deus atuando mediante a razão. O
pensador, portanto, deve sempre estar consciente da dependência desse poder mais
elevado.
Três filósofos extraordinários que trabalharam na Europa durante a
primeira parte do século XIX exerceram um efeito tremendo sobre a teologia do
Antigo Testamento. Foram eles Friedrich Schleiermacher (1768-1834), pai da
teologia moderna, George Wilhelm Hegel (1770-1831) e Soren Kierkegaard (18131855). Schleiermacher foi um influente pastor em Berlim, que fez do sentimento de
dependência a base da fé cristã. Schleiermacher tinha um baixo conceito do Antigo
Testamento. “Para ele, foi por mero acidente histórico que o cristianismo se
desenvolveu do solo do judaísmo.” 1*
Hegel foi colega de Schleiermacher e de de Wette na Universidade de
Berlim. A característica mais importante da filosofia de Hegel é a sua natureza
dialética. Para Hegel, todas as coisas no mundo têm o seu oposto, toda tese, a sua
15 Theologie des Allen Testaments, Leipzig, 1796.
16 Dentan, Preface to Old Testament Theology, 27.
17 Biblische Dogmatick, 25.
'* Dentan, Preface to Old Testament Theology, 35.
A HISTÓRIA DA TEOLOGIA DO ANTIGO TESTAMENTO
31
antítese. Cada tese e antítese se juntam para formar uma síntese, que se torna uma
nova tese para um estágio mais elevado de pensamento ou ser. Assim, segundo
Hegel, a idéia do desenvolvimento de um estágio mais baixo para um mais alto era
a chave para a compreensão do segredo do universo. O efeito de tal filosofia
revolucionou nosso entendimento de quase todas as áreas da vida, incluindo o
estudo da teologia do Antigo Testamento.
A teoria de desenvolvimento de Hegel foi quase imediatamente aplicada ao
Antigo Testamento por seu aluno e colega, Wilhelm Vatke, que publicou Biblische
Theologie em 1835. Por causa de seu estilo e terminologia filosóficos e de sua
visão extremamente nova e crítica do Antigo Testamento a obra não teve aceitação
geral. Embora sua influência não tenha sido notada por quase 25 anos, essa
aplicação da filosofia de Hegel ao estudo do Antigo Testamento levou ao
estabelecimento, por Wellhausen, da moderna hipótese documentária do
Pentateuco e, por fim, à morte da teologia do Antigo Testamento.
Seren Kierkegaard, o “Dinamarquês Melancólico”, rejeitou a dialética de
Hegel com sua ênfase no racionalismo em favor de uma ênfase existencial na
experiência. A questão central para Kierkegaard era: “Que significa ser cristão
— na cristandade?” Ele via no Cristianismo a verdade que os homens não
conseguem descobrir por si mesmos. Kenneth Scott Latourette disse sobre
Kierkegaard:
Ele rejeitou de modo veemente o hegelianismo com suas tentativas de
alcançar a verdade mediante a razão humana. Para ele, falar da
racionalidade do cristianismo era traição, porque isy> sujeitava a autorevelação do Deus infinito a padrões humanos. Cristianismo, sustentava,
não pode ser verificado pela mente humana; é um escândalo, uma pedra
de tropeço, para nossas faculdades intelectuais. Dava ênfase ao caráter
paradoxal do cristianismo. A nota central da fé cristã é Deus no tempo;
isso, contudo — declarou— é pura contradição, pois Deus é etem o por
definição. Diante de Deus o homem é sempre um pecador e tanto o seu
melhor como o seu pior se colocam debaixo do julgam ento de Deus e
precisam do perdão divino. Entre o Deus sem pecado e o homem
pecaminoso abre-se um profundo abismo. Contudo, o paradoxo é
resolvido em Deus e por Deus. O que é impossível para a razão humana
foi feito por Deus. O Etem o entra no tempo: o Filho de Deus se tom a
encarnado, unindo os dois elementos irreconciliáveis, Deus e homem. Fez
isso incógnito e em fraqueza. A cruz é uma ofensa tanto para a razão do
homem como para o seu senso moral. Pelo salto da fé sacrificamos nosso
intelecto e aceitamos o que Deus fez por nós. Kierkegaard foi atingido
32
T e o ix >g ia
do
A n t ig o T e s t a m e n t o
pelo contraste entre “cristandade” e as exigências de Cristo. Para ele a
cristandade é uma ilusão prodigiosa: ela matou o cristianismo.19
Os conservadores entraram no campo da teologia bíblica cerca de 50 anos
após a palestra de Gabler. O primeiro conservador no campo da teologia bíblica foi
E. W. Hengstenberg. Ele foi educado na tradição reformada e exposto a fortes
influências racionalistas como estudante da Universidade de Bonn. Reagindo ao
racionalismo extremo da universidade, experimentou mudança marcante em sua
visão em 1823 quando entrou na escola Missionária de Basiléia. Em 1824 foi da
escola Missionária para a Universidade de Berlim. Já era profundamente piedoso,
“cheio de zelo pela ortodoxia e pronto para combater com forte mão toda forma de
erro”.20
O pietismo contava com o favor da corte real de Frederick William III
(1770-1840), de modo que a promoção de Hengstenberg foi rápida e fácil. Em 1825
tomou-se membro do corpo docente de Berlim, opondo-se aos colegas Vatke,
Schleiermacher, Bleek, Hegel e Neander. Em 1827 começou a publicação de
“Evangelical Church Review”. Era dedicado defensor do rei e de outras causas
conservadoras. Seu ódio à democracia e ao governo constitucional levou-o a apoiar
os estados do sul dos EUA em defesa da escravidão e a condenar amargamente o
presidente Lincoln.21
Hengstenberg não escreveu nenhuma teologia do Antigo Testamento, mas
publicou Christology o f the Old Testament, em 4 volumes, um comentário sobre as
profecias messiânicas do Antigo Testamento. A publicação dessa obra marcou um
vigoroso e novo despertar da visão estritamente ortodoxa da Bíblia. Hengstenberg
rejeitava qualquer idéia de progresso real na revelação, quase não fazendo distinção
entre os Testamentos e apresentando uma interpretação “espiritual” das profecias
do Antigo Testamento que quase ignora qualquer consideração de sua referência
original.22
H. A. C. Havemick, aluno de Hengstenberg e jovem professor em
Königsberg, escreveu Vorlesungen über die Theologie des Alten Testaments
(1848), obra bem conservadora com algumas percepções novas e estimulantes. Ele
exigia o uso dos métodos históricos objetivos no estudo do material, mas
reconhecia que estes por si não dariam resultados adequados. O estudante deve ter
uma “atitude teológica” que vem por meio da f é e da experiência. Havemick disse
que Deus revela a si mesmo não em idéias abstratas, mas numa série de atos que
formam um todo orgânico em desenvolvimento.
19 Nineteenth Century in Europe, 143-144.
20 A. H. Newman, A Manual o f Church History 11, 556.
21 Ibid., 558.
22 Dentan, Preface to Old Testament Theology, 41.
A HISTÓRIA DA TEOLOGIA DO ANTIGO TESTAMENTO
33
Neste último ponto Havernick estava muito perto de outro extraordinário
estudioso conservador desse período, J. C. K. von Hofmann (1810-1877), de
Erlangen. Von Hofmann foi um dos pilares na formação da história da salvação, ou
Heilsgeschichte, escola do século X IX . Segundo Hofmann, a Bíblia é um registro
linear da história da salvação em que o Senhor ativo da história é o Deus triúno,
cujo propósito e meta é redimir a humanidade. Em seu livro Promise and
Fulfillment, von Hofmann argumentou que o Antigo e o Novo Testamentos mantêm
entre si a relação de profecia e cumprimento, mas destacou que Cristo foi o
cumprimento de toda a história de Israel. A abordagem da fé bíblica segundo o
ponto de vista da história da salvação tem exercido tremenda influência através dos
anos e pode ser vista em obras de estudiosos mais recentes como G. E. Wright e
Gerhard von Rad.
Gustav Friedrich Oehler (1812-1872), de Tübingen, dominou o estudo do
Antigo Testamento até 1875. Aluno de Steudel, um racionalista, recebeu forte
influência de Hegel. Criticou seu professor por não ver que a religião hebraica
tinha apresentado crescimento orgânico. Publicou seu Prolegomena to Old
Testament Theology em 1845, mas seu livro mais longo sobre a teologia do Antigo
Testamento foi publicado postumamente por seu filho, Theodor Oehler, em 1873.
Apresentou o material em três partes: Mosaísmo, Profetismo e Sabedoria. O livro
Old Testament Theology de Oehler foi a primeira obra do gênero a ser traduzida
para o inglês (1874-1875).
O ano de 1878 marca o início do período de fracasso da teologia do Antigo
Testamento. Naquele ano Julius Wellhausen publicou seu Prolegomena zur
Geschichte Israels, culminação lógica da abordagem genética e desenvolvimentista
da história da literatura e religião de Israel. Baseando sua obra na de Graf e
Keunen, que o precederam, Wellhausen afirmou que os profetas do Antigo
Testamento viveram antes da outorga da Lei. Ele chegou a essa conclusão em parte
por meio de seu estudo do Antigo Testamento, ao julgar que os livros de Josué,
Juizes, Samuel e Reis mostram pouco conhecimento das leis do Pentateuco, e em
parte por causa de sua pressuposição de que todas as coisas se movem do simples
para o complexo e da liberdade para o autoritarismo.
Wellhausen acreditava que a religião do Antigo Testamento desenvolveu-se
a partir da religião natural. Por trás dos sacrifícios e rituais de Israel estavam as
34
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A n t ig o T e s t a m e n t o
festas agrícolas de seus vizinhos pagãos. Ele pensava que o antigo estágio agrícola
da religião de Israel ainda podia ser visto nas fontes mais antigas da literatura de
Israel.23 Segundo Wellhausen, Deuteronômio fez com que essas festividades
agrícolas parecessem históricas e as amarrou à história da redenção.
Ele não encontrou apenas uma teologia no Antigo Testamento, mas muitas
teologias diferentes, todas seguindo a linha de desenvolvimento. A teologia que se
encontra agora no Pentateuco é uma retroprojeção da fé posterior de Israel sobre o
período mais antigo. Embora algumas teologias do Antigo Testamento
continuassem a ser publicadas depois da obra de Wellhausen, eram em grande parte
resultantes do período anterior.
Nos países de língua inglesa bem pouco havia sido feito no campo da
teologia bíblica antes de Wellhausen. A primeira obra extensa em inglês sobre
teologia do Antigo Testamento foi The Theology o f the Old Testamení de A. B.
Davidson, publicada em 1904. Embora tenha alguns aspectos indesejáveis, em
grande parte por ter sido editada postumamente por um ex-aluno, continua uma
obra útil. Se Davidson tivesse editado seu próprio livro, poderia ter-lhe dado outra
forma. Ele dá a entender isso muito bem quando diz no capítulo inicial:
[...] embora falemos em teologia do Antigo Testamento, tudo o que
podemos tentar é apresentar a religião ou as idéias religiosas do Antigo
Testamento. Da forma como se viam na mente do povo hebreu e expostas
em suas Escrituras, essas idéias não constituem por enquanto nenhuma
teologia. Não existe nelas nenhum sistema de nenhuma espécie. [...] Não
encontramos uma teologia no Antigo Testamento; encontramos uma
religião. [...] Somos nós mesmos que criamos a teologia quando damos a
essas idéias e convicções religiosas uma forma sistemática ou ordenada.
Portanto, nosso assunto é na realidade a História da Religião de Israel
representada no Antigo Testamento.24
Ainda assim, Davidson apresentava suas aulas em forma de teologia sistemática e
organizou seu livro do mesmo modo.
Duas outras obras importantes sobre a teologia do Antigo Testamento
foram publicadas nesse período de “hibernação”. The Religious Ideas o f the Old
Testament, de H. Wheeler Robinson, e The Religious Teachings o f the Old
Testament, de A. C. Knudson, foram publicadas em 1913 e 1918 respectivamente.
Nenhum desses livros é abrangente nem tinha sobre si o título “teologia do Antigo
Testamento”. Ambos seguem os padrões da teologia sistemática na apresentação do
material.
11 Prolegomena to the History o f Israel, 83-120.
M The Theology o f the Old Testament, 11.
A HISTÓRIA DA TEOLOGIA DO ANTIGO TESTAMENTO
35
Vários volumes sobre a religião de Israel foram publicados durante esse
período, tais como os escritos por R. L. Ottley, The Religion o f Israel;25 KarI Marti,
The Religion o f the Old Testament;26 W. O. E. Oesterley e Theodore E. Robinson,
Hebrew Religion: Its Origin and Development;27 e Harry Emerson Fosdick, A
Guide to Understanding the Bible.2* Todos esses volumes seguiram a abordagem
desenvolvimentista de Wellhausen até o movimento chegar à sua conclusão lógica.
Walter Eichrodt disse que o livro de Fosdick representava o fim de uma era.
O autor escreveu, para dizer francamente, o obituário de toda uma
corrente de abordagem erudita e método de investigação. [...] Embora
nenhum estudioso treinado de hoje vá negar a grande importância do
princípio evolucionário na história, muito menos o seu valor em elucidar
muitos fenômenos aparentemente enigmáticos da literatura bíblica, temos
hoje viva consciência do perigo de pressupor a evolução unilinear das
instituições ou idéias.29
James Smart disse que a teologia do Antigo Testamento “adoeceu, morreu
e foi sepultada silenciosamente quando começava o século XX” .30 As causas da
morte ou do fracasso da teologia do Antigo Testamento são várias. A obra de
Wellhausen, uma das principais causas, dava ênfase à variedade de teologias no
Antigo Testamento e negava destaque à sua unidade. Outra causa foi a reação
contra os estudiosos mais antigos que enxergavam no texto suas pressuposições
teológicas em quantidade excessiva. Nesta nova era, os estudiosos tentavam ser
totalmente objetivos em sua abordagem das Escrituras. O terceiro fator que causou
a morte da teologia do Antigo Testamento foi a falta generalizada de interesse na
teologia per se no início do século XX. Os estudiosos do Antigo Testamento
voltaram sua atenção antes para o estudo da arqueologia, das línguas semíticas e
das religiões comparadas.
Por quase vinte e cinco anos depois de Davidson publicar seu Old
Testament Theology em 1904, fez-se muito pouco nesse campo. Mas no começo da
década de 1930 uma nova corrente de dados começou a aparecer, corrente que se
tomou um verdadeiro dilúvio por volta de 1950.
25 Cambridge: The University Press, 1905, 3* ed. 1926.
26 Trad. G. A. Bienmann (New York: G. P. Putnam’s Sons, 1907).
27 London: SPCK, 1930.
28 New York: Harper and Brothers, 1938.
29 Eichrodt, "Review: A Guide to Understanding the Bible, 205.
30 "The Death and the Rebirth o f Old Testament Theology", 1.
T f. o i .o g ia
36
do
A n t ig o T e s t a m e n t o
5. O reavivamento da teologia do Antigo Testamento
O que causou essa súbita mudança na teologia do Antigo Testamento? O
que a trouxe de volta à vida? A principal causa da mudança na teologia e nos
estudos bíblicos foi a “precipitação radioativa” da Primeira Guerra Mundial. Antes
de 1917, a atitude que prevalecia no mundo ocidental era de confiança no progresso
inevitável. As pessoas podiam erguer-se por seus próprios esforços de qualquer
crise e transformá-la em meio para alcançar um padrão mais elevado de vida.
E então em apenas uma geração ocorreram duas guerras mundiais, com
toda sua destruição, devastação, crueldade, ódio e alienação. A confiança no
progresso inevitável e na bondade e capacidade inerentes à humanidade foi
esmagada. As pessoas começaram a buscar uma fonte de força e uma palavra de
orientação fora de si mesmas. Algumas encontraram essa força e orientação na
Palavra de Deus.
Karl Barth descreveu a mudança na teologia depois de 1918:
O fim efetivo do século XIX como os “bons velhos tempos” chegou para a
teologia e para tudo o mais com o ano fatídico de 1914. Acidentalmente
ou não, naquele mesmo ano um evento significativo aconteceu. Emst
Troeltsch, famoso professor de teologia sistemática e lfder da escola mais
moderna de então, desistiu de sua cadeira de teologia por uma de filosofia.
Um dia no começo do mês de agosto de 1914 sobressai em minha
lembrança como um dia negro. Noventa e três intelectuais alemães
impressionaram a opinião pública ao proclamar apoio à política de guerra
de Guilherme II e seus conselheiros. Descobri horrorizado que entre esses
intelectuais encontravam-se quase todos os meus professores de teologia
pelos quais eu tinha grande veneração. Desesperado em saber o que isso
indicava acerca dos sinais dos tempos, percebi de repente que eu não
poderia mais seguir a ética ou a dogmática deles nem o entendimento que
eles tinham da Bíblia e da história. Para mim pelo menos a teologia do
século XIX não tinha mais nenhum futuro. Para muitos, se não para a
maioria das pessoas, essa teologia não voltou a ser novamente o que era
antes, uma vez que as águas da chuva que caiam sobre nós naquela época
perderam um pouco de sua força.31
James Smart disse que o comentário de Karl Barth sobre Romanos,
publicado em 1919, foi “como a explosão de uma bomba, ou melhor, como a
introdução de uma substância química que provocou a separação dos elementos
31 The Humanity o f God, 14-15.
A HISTÓRIA DA TEOLOGIA DO ANTICO TESTAMENTO
37
divergentes que se haviam misturado nos estudos eruditos do Novo Testamento”.32
Segundo Smart, a origem do comentário de Romanos foi a frustração sentida por
dois pastores suíços, Barth e Thumeysen, ao tentar cumprir seus votos de
ordenação para serem ministros da Palavra de Deus junto ao seu povo. Ambos
tinham sido treinados em crítica histórica, mas não na compreensão da Palavra de
Deus como revelação única de Deus ao povo. Contudo, era esse o ponto a partir do
qual tinham de falar como ministros de Deus.
Barth e Thumeysen voltaram-se para Lutero, Calvino, Kierkegaard e
outros, à procura de ajuda. Desafiaram as conclusões de um século de estudos
eruditos do Novo Testamento. Os leitores encontraram de imediato muitas falhas
no comentário (ele foi talhado de modo tão rudimentar que Barth começou a
reescrevê-lo assim que acabou), mas os estudiosos do Novo Testamento foram
obrigados a reconhecer a legitimidade da abordagem teológica.33
Karl Barth abriu o caminho para a nova teologia dogmática que influenciou
a teologia bíblica quase imediatamente. As sortes dessas duas disciplinas muitas
vezes têm andado de mãos dadas. A teologia bíblica tem vivido e morrido à sombra
da teologia dogmática. Um interesse renovado na teologia do Antigo Testamento
começou em 1921 quando Rudolf Kittel falou em Leipzig para um grupo de
estudiosos do Antigo Testamento sobre “o futuro da ciência do Antigo
Testamento”. Kittel deu ênfase à incapacidade da investigação literária e histórica e
pediu a “elucidação dos valores especificamente religiosos do Antigo Testamento”.
Disse que os estudiosos devem fazer uma apresentação sistemática da essência da
religião do Antigo Testamento e se aprofundar no segredo do poder divino em que
ela se baseia.34
O. Eissfeldt e W. Eichrodt discutiram de modo acalorado de 1926 a 1929 se
a teologia do Antigo Testamento era uma disciplina histórica. Eissfeldt
argumentava que a história da religião de Israel e a teologia do Antigo Testamento
eram duas disciplinas distintas e devem usar métodos e alvos diferentes. Eichrodt
insistia que os teólogos do Antigo Testamento poderiam chegar à “essência” da
religião do Antigo Testamento por intermédio dos mesmos métodos históricocríticos usados pelos pesquisadores da história da religião.35
Uma razão para o interesse renovado no Antigo Testamento depois da
Primeira Guerra Mundial foi o fato de que muitos teólogos e políticos na Alemanha
começaram a atacar o Antigo Testamento como parte de uma campanha de antisemitismo. Durante os últimos anos da década de 1920 e especialmente na década
32 Smart, The Interpretation o f Scripture, 276.
33 Ibid., 278.
34 "Die Zukunft der altestamentlichen Wissenschaft", 84-99.
35 Veja artigos de Eichrodt e Eissfeldt em Ollenburger, et. al., The Flowering o f Old Testament Theology, 3-39.
38
T e o l o g ia
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A n t ig o T e s t a m e n t o
seguinte, a luta na Alemanha concentrou-se no Antigo Testamento e começou a
provocar pensamentos radicais sobre sua natureza e importância.
Esses pensamentos radicais foram expressos em obras como: Adolph von
Hamack, Marcion, das Evangelium vom Fremden Gott36-, Friedrich Delitzsch, Die
grosse Täuschung I e II; Houston S. Chamberlain, Foundations o f the 19th
Century37', Adolf Hitler, Mein Kampf (1925-1927); e Alfred Rosenberg, Myth o f the
20th Century (1930). Von Hamack disse que o Antigo Testamento devia ser
retirado do cânon cristão e colocado no topo da lista dos apócrifos.” Friedrich
Delitzsch, filho do famoso estudioso luterano conservador do Antigo Testamento
Franz Delitzsch, era fortemente anti-semita. Ele considerava o Antigo Testamento
um livro muito perigoso para os cristãos e também ensinava que Jesus era gentio.
Houston Steward Chamberlain nasceu em 1855 em uma família de posição
elevada no exército inglês. A saúde fraca impediu-o de prestar serviço militar e
acabou com a possibilidade de ele lutar contra os alemães. Cedo em sua vida,
Chamberlain tomou-se um apaixonado da arte alemã, levando-o a passar sua vida
na Alemanha e na Áustria. Durante a primeira Guerra Mundial tomou-se cidadão
alemão e amigo de Adolf Hitler no começo da década de 1920. Chamberlain viu a
salvação da Alemanha vindo no movimento de Hitler, mas morreu em 1927, seis
anos antes de Hitler tomar-se chanceler.39
Foundations, de Chamberlain, é uma obra em dois volumes em que ele
argumenta que a história da Europa é um registro da luta entre indo-europeus e
semitas. O ataque de Roma pelos cartigeneses e a invasão muçulmana da Europa
foram dois exemplos dessa luta. Chamberlain via em Cristo uma pessoa de suma
importância para a história do mundo e pensava que ele não era judeu. A obra de
Chamberlain foi muito lida na Alemanha, desde a sua publicação (1889-1901) até
1918. O Kaiser doou pessoalmente dez mil marcos para a compra de exemplares
para bibliotecas alemãs. Depois da guerra, sua popularidade retrocedeu; em 1938,
porém, os nazistas a publicaram em forma de brochura barata, e ela passou por oito
reimpressões com Hitler. Numa das edições populares, foi anunciado que mais de
200 mil exemplares tinham sido vendidos.
O regime nazista (1933-1945) caracterizou-se por racismo (pureza e
superioridade da raça alemã), nacionalismo (supremacia do estado alemão) e ênfase
na terra (santidade da pátria alemã). Por essa razão, tudo o que não era alemão ou
ariano tinha de ser isolado e submetido ao controle do estado alemão. Os judeus,
com sua Bíblia hebraica (Antigo Testamento), tomaram-se alvo de extermínio. Até
36 Leipzig, 1924.
37 Muniquc, 1898.
31 Veja Bright, The Authority o f the Old Testament, 65.
39 Veja Tanner, The Nazi Christ, 2; Andrew J. Krzesinski, National Cultures, Nazism, and the Church (Bruce
Humphries, 1945); D. L. Baker, Two Testaments one Bible (Downers Grove, InterVarsity Press, 1976), 79-85; H.
G. Reventlow, Problems o f the Old Testament Theology, 28-43.
A HISTÓRIA DA TEOLOGIA DO ANTIGO TESTAMENTO
39
alguns estudiosos cristãos emprestaram sua influência à eliminação dos judeus e do
Antigo Testamento. W. F. Albright escreveu que Gerhard Kittel, filho mais novo
do destacado estudioso de hebraico Rudolph Kittel e editor do Theological
Wordbook o f the New Testament, “tomou-se porta-voz do mais feroz antisemitismo nazista, compartilhando com Emanuel Hirsch, de Gõttingen, o mérito
sinistro de tomar o extermínio dos judeus teologicamente respeitável”.40
Segundo S. J. de Vries, o regime nazista na Alemanha tornou-se possível
principalmente porque estudiosos bíblicos modernos antes de 1933
gostavam de considerar a fé do Antigo Testamento, e também a do Novo,
uma expressão infantil do humanismo emergente — e nada mais. Agora o
Antigo Testamento parecia distante; os judeus eram escarnecidos, junto
com os cristãos tradicionalistas. [...] A modernidade moldara o Antigo
Testam ento a seu gosto; sua antiga palavra soberana não podia mais ser
ouvida por ela. Se isso não tivesse acontecido, talvez a igreja européia,
especialmente a alemã, teria conservado suficiente zelo profético para
opor-se às afirmações monstruosas do nacional-socialismo. Mas isso não
aconteceu; já que o Antigo Testamento estava morto, os judeus tinham de
morrer.41
O ataque aos judeus pelos nazistas também abrangia um ataque ao Antigo
Testamento e ao cristianismo. Esse ataque levou a uma reação por parte de muitos
estudiosos sensíveis à Bíblia e de muitos líderes cristãos, que defenderam o Antigo
Testamento como parte integrante do cânon cristão e começaram novamente a
concentrar-se na mensagem do Antigo Testamento para o Israel antigo e para as
pessoas modernas.
É irônico que as primeiras obras completas sobre a teologia do Antigo
Testamento depois do seu reavivamento foram publicadas em 1933, no mesmo ano
em que Hitler se tomou chanceler da Alemanha. Foram elas a obra em dois
volumes de Emst Sellin, Alttestamentliche Theologie a u f religionsgeschichtiicher
Grundlage, e o primeiro volume da obra de três de Walther Eichrodt, Theologie des
Alten Testaments.
Sellin (1867-1945) foi professor na Universidade de Berlim e editor da
série de comentários KAT sobre o Antigo Testamento. A perspectiva de Sellin da
teologia do Antigo Testamento era que ela devia apresentar de forma sistemática os
ensinos religiosos e a fé da comunidade judaica, baseados nos escritos compilados
e canonizados no período entre 500 e 100 a.C. Sellin disse que: 1) o cânon do
Antigo Testamento é significativo para o teólogo do Antigo Testamento apenas à
40 Albright, History, Archaeology, and Christian Humanism, 229.
41 The achievements o f biblical religion, 12-13.
40
T f.o i .o c ia
do
A n t i c o T esta m fjv to
medida que era aceito por Jesus e pelos apóstolos; 2) a teologia do Antigo
Testamento está interessada somente nas passagens cumpridas nos evangelhos; 3) o
cristianismo foi baseado no Antigo Testamento, mas acrescentou-lhe algo novo; e
4) a teologia cristã do Antigo Testamento deve ser seletiva, deixando de lado a
influência cananéia e também todo o lado nacional-cúltico da religião de Israel.
Uma das teologias mais importantes do Antigo Testamento é a obra em três
volumes de Walther Eichrodt, Theologie des Altes Testaments.*2 Walther Eichrodt
nasceu em Gernsback, na Alemanha, em agosto de 1890. Seus estudos incluíram o
trabalho na escola teológica de Bethel-Bielefeld e nas universidades de Griefswald
e Heidelberg. Em 1917, Otto Procksch nomeou-o Privatdozent em Erlangen. Em
1922 ele sucedeu Albrecht Alt numa cadeira remunerada de estudos bíblicos em
Basiléia. Em 1934 foi nomeado catedrático pleno em Basiléia, e em 1953 foi eleito
reitor da universidade.
Norman Gottwald chamou a teologia do Antigo Testamento de Eichrodt “a
obra isolada mais importante do seu gênero no século X X ” .43 Robert C. Dentan
chamou a obra “incomparavelmente maior que qualquer outra já publicada no
campo da teologia do Antigo Testamento, tanto em termos de simples magnitude
como de profundidade de percepção”.44 John Baker, tradutor da Theology o f the
Old Testament de Eichrodt para o inglês, escreveu que “esta é a maior obra já
escrita em seu campo, sem comparação — uma obra em que fé ardente e precisão
científica se combinam para dar ao leitor uma experiência viva dessa nova
realidade de Deus de que ele tanto fala”.45
O próprio Eichrodt escreveu no prefácio da sua primeira edição (1933):
A situação espiritual em geral e a teológica em particular está causando
impressão cada vez mais peremptória em todos os que se ocupam da
teologia do Antigo Testamento. Existem muitas descrições históricas da
religião israelita e judaica; com isso, porém, contrasta que apenas
tentativas muito rudimentares foram feitas para apresentar a religião da
qual encontramos os registros no Antigo Testamento como uma entidade
completa em si mesma, que exibe, apesar das condições históricas sempre
em mudança, uma tendência e um caráter básico constantes.46
As preocupações de Eichrodt estão evidentes na declaração acima. Ele
estava preocupado com seu ambiente espiritual e cultural. Estava preocupado em
42 1933-1939, editado e traduzido para o inglês em 1961-1967.
43 Norman Gottwald, "W. Eichrodt, Theology o f the Old Testament", em Contemporary Old Testament theologians,
editado por Robert B. Laurin, 25.
44 Preface to O ld Testament theology, 66.
45 Eichrodt, Theology o f the Old Testament I, 21.
46 Theology o f the Old Testament I, 11.
A HISTÓRIA DA TEOLOGIA DO ANTICO TESTAMENTO
41
passar da história da religião de Israel para a “entidade completa em si mesma” no
Antigo Testamento, que tem uma tendência básica e constância em meio a
mudanças históricas. Eichrodt sugeriu que a “entidade completa em si mesma” é a
aliança entre Javé e Israel.
Para ele, a aliança era o conceito central que ilumina a unidade estrutural e
a tendência básica imutável da mensagem do Antigo Testamento. A idéia da
aliança era mais abrangente que o uso do termo hebraico berií. Era um símbolo
conveniente da descrição de um processo vivo que começou em determinado lugar
e hora a fim de revelar a realidade divina única em toda a história da religião.47
Eichrodt disse que a teologia do Antigo Testamento se concentra em um
quadro completo da esfera da fé do Antigo Testamento, a fim de compreender sua
imensidade e singularidade. A singularidade da fé do Antigo Testamento pode ser
vista com mais clareza em seu contraste com as religiões do antigo Oriente
Próximo e no movimento poderoso e propositado na direção do Novo Testamento.
O que une os dois Testamentos é “a vinda do reinado de Deus a este mundo e seu
estabelecimento aqui”48. O mesmo Deus segue no mesmo propósito nos dois
Testamentos.
Eichrodt emprestou seu esboço geral, que presumivelmente segue a
dialética do Antigo Testamento, do seu professor Otto Procksch. O volume 1 se
concentra no “Deus do povo”; o volume 2, no “Deus da Palavra”; e o volume 3, em
“Deus e o ser humano” (ou seja, o indivíduo).
Hermann Schultz, no segundo volume da segunda edição inglesa (1895) da
sua obra, usou um esboço semelhante ao de Procksch e Eichrodt: “Deus e o povo”,
“Deus e a Palavra”, “Deus e o ser humano” e “a esperança de Israel”.
Ludwig Köhler (1880-1956), professor em Zurique, era antes de tudo um
estudioso de lingüística. Ele e W. Baumgartner publicaram um léxico hebraico
abrangente (Brill, 1953). Sua Old Testament Theology é breve e sem
documentação. Está organizada em tomo dos tópicos da teologia sistemática:
teologia, antropologia e soteriologia.. Köhler tratou do culto no fim da parte sobre
o ser humano. Disse que o culto não faz parte da área soteriológica (não faz parte
do plano de salvação divino) nem da antropológica. Ele colocou seu estudo do
culto no fim da seção sobre antropologia porque ele tem que ver com os esforços
das pessoas para salvar a si mesmas.49 Um conceito totalmente novo do culto surgiu
a partir da obra de Köhler, sendo ele visto agora como uma instituição que
transmitiu boa parte da tradição do Antigo Testamento.
A importância da obra de Köhler está em que ele, um lingüista e
historiador, interrompeu seu trabalho para escrever um manual breve, mas útil,
47 Theology o f the Old Testament I, 13-14.
48 Theology o f the Old Testament 1, 26.
49 Old Testament Theology, 9.
42
T e o i .o c ia
do
A n t ic o T e s t a m e n t o
sobre a teologia do Antigo Testamento. Um dos seus pontos fortes é seu estudo de
pelo menos setenta palavras hebraicas. Apesar de Kõhler ter usado o esboço amplo
da teologia sistemática, ele afirmou que um livro pode ser chamado de “teologia do
Antigo Testamento se consegue reunir e relacionar as idéias, pensamentos e
conceitos do Antigo Testamento que são ou podem ser importantes”. Kõhler
acreditava que o tema central ou declaração fundamental na teologia do Antigo
Testamento é: Deus é o senhor que governa. “Todas as outras coisas estão ligadas a
isso. Todas as outras coisas podem ser entendidas como referentes a isso e apenas a
isso. Todas as outras coisas se subordinam a isso”.50
Um dos estudiosos do Antigo Testamento mais influentes na Alemanha
durante a primeira parte do século XX foi Artur Weiser. Ele não chegou a escrever
uma teologia do Antigo Testamento, mas estudou o assunto com freqüência.51
Weiser encarava a exegese como uma tarefa teológica, além de histórica e crítica.
Segundo ele, ninguém compreende adequadamente uma passagem do Antigo
Testamento determinando o sentido gramatical, sintático e histórico. A vida real da
passagem está em sua religião (ou fé) e em seu caráter distinto.
Weiser argumentou que uma visão dinâmica da realidade perpassa o Antigo
Testamento, com um modo teológico de ver as pessoas e os eventos no próprio
texto. Ele acreditava que sistematizar a teologia do Antigo Testamento era
contrário à compreensão dinâmica do próprio Antigo Testamento, apesar de
concordar que há certo valor pedagógico em ordenar fatos dispersos. Weiser seguiu
Barth no argumento de que a exegese deve realizar a tarefa teológica. Apesar de
não escrever uma teologia do Antigo Testamento, Weiser iniciou e editou uma das
mais importantes séries de comentários do Antigo Testamento, Das Alte Testament
Deutsch (ATD). Um dos traços distintivos dessa série é sua ênfase na mensagem
teológica de cada seção. Estudiosos como Gerhard von Rad, Martin Noth, Walther
Eichrodt, Norman Porteous, Karl Elliger e o próprio Weiser foram colaboradores
da série. Vários desses volumes foram traduzidos para o inglês, como parte da “Old
Testament Library Series”.
Sem sombra de dúvida, um dos homens mais destacados no campo da
teologia do Antigo Testamento foi Gerhard von Rad (1901-1971). Depois de
estudos abrangentes em Erlangen e Tübingen, Von Rad tomou-se pastor de uma
igreja luterana na Baviera em 1925. Sua luta diária com um crescente antisemitismo levou-o a retomar aos estudos acadêmicos do Antigo Testamento em
Leipzig. Otto Procksch e Albrecht Alt guiaram-no em seus estudos e em sua
dissertação, Das Goííesvolk im Deuteronomium.52
* Ibid., 30.
51 Veja Artur Weiser, Glaube und Geschichte im Alten Testament (Göttingen, 1961); "Vom Verstehen des Alten
Testaments", Z A W 6 \ (1945), 17-30.
52 BWANT, 47 (Stuttgart, W. Kohlhammer Verlag, 1929).
A HISTÓRIA DA TEOLOGIA DO ANTIGO TESTAMENTO
43
Em 1930, von Rad juntou-se a Alt como professor em Leipzig. Em 1934
transferiu-se para Jena, onde florescia o nacional-socialismo. Ali von Rad foi um
professor impopular, mas conseguiu envolver em debates ilegais na igreja muitos
que não tinham se rendido ao anti-semitismo da época.53
Do verão de 1944 até junho de 1945, von Rad foi forçado a lutar pelo
exército alemão, até ser preso pelos vitoriosos. Após a guerra ele ensinou
brevemente em Bethel, Bonn e Erlangen, para depois mudar-se para Gottingen. Em
1949 transferiu-se para Heidelberg, onde ensinou até sua aposentadoria em 1967 e
continuou a morar até sua morte em 1971.
Von Rad estudou a teologia do Antigo Testamento de uma perspectiva
totalmente diferente de todos os seus predecessores. Ele viu uma relação muito
próxima entre a teologia do Antigo Testamento e a crítica do Antigo Testamento.
Todo aquele que deseja compreender a obra Teologia do Antigo Testamento de von
Rad deve estar familiarizado com suas opiniões quanto à origem e transmissão da
literatura do Antigo Testamento. Uma das suas primeiras obras foi The FormCritical Problem o f the Hexateuch, publicada em 1938, em que lançou os alicerces
da sua Teologia do Antigo Testamento.
Von Rad argumentou que o Hexateuco (Gênesis-Josué) fora edificado
sobre um antigo credo de culto, que agora se encontra em Deuteronômio 26.5b-9;
6.20-24; Josué 24.2-13; e ISamuel 12.7-8. O editor javista tomou diversas tradições
diferentes, antes ligadas a vários santuários tribais em Israel, e organizou-as na
ordem que constituiu a moldura do Pentateuco. Von Rad interpôs um longo período
de tempo entre o “evento” original (da promessa patriarcal, do êxodo e da
conquista) e a redação do documento em que o relato do evento está preservado.
Durante esse período, as “histórias” foram transmitidas oralmente, freqüentemente
no contexto de culto de um altar tribal. De acordo com von Rad, o javista foi um
teólogo.
Um dos problemas que os sucessores de von Rad têm tido com sua
perspectiva é a vasta distância entre seu conceito de “história santa” (o relato da
sua história pelo próprio Israel) e o relato científico da história de Israel
reconstruído pelos atuais estudiosos do Antigo Testamento. Mesmo dizendo que a
teologia do Antigo Testamento está baseada na história, von Rad pareceu muito
cético quanto à autenticidade de alguns personagens e eventos no Antigo
Testamento. Outros estudiosos criticaram a obra de von Rad por faltar-lhe
organização sistemática. Alguns disseram que sua maior obra na verdade é uma
história das tradições de Israel e não uma teologia do Antigo Testamento.54
Joseph W. Groves escreveu uma dissertação doutoral sobre o método de
interpretação de von Rad (e outros), intitulado “Actualization and interpretation in
53 Cf. James L. Crenshaw, Gerhard von Rad, 21.
54 Dentan, Preface to Old Testament Theology, 79.
44
T e o i -OCia
do
A n t ig o T e st a m e n t ©
the Old Testament”,55 em que declarou que “o alvo de uma base dentro da Bíblia
para a interpretação teológico-histórica (como a de von Rad) ainda está por ser
atingido”.56
O holandês Th. C. Vriezen publicou seu Hoofdinjnen der Theologie von het
Oude Testament em 1949. Essa obra foi quase totalmente revisada na terceira
edição em holandês (1966) e publicada como segunda edição inglesa em 1970. As
primeiras 150 páginas do livro de Vriezen são introdutórias. Lidam com o lugar do
Antigo Testamento na igreja, como ele deve ser interpretado, e a tarefa e método da
teologia do Antigo Testamento. A parte principal do livro é dividida em quatro
capítulos bastante longos: 1) o conhecimento de Deus; 2) o relacionamento entre
Deus e ser humano; 3) a comunidade de Deus; e 4) o futuro. Vriezen via a
comunhão, ou o relacionamento entre Deus e o ser humano, como central no
Antigo Testamento.
Edmond Jacob, professor de Strasbourg, escreveu uma teologia do Antigo
Testamento substancial mas popular em 1955. Sua obra Theologie de 1'Ancien
Testament foi traduzida para o inglês em 1958. Ela serviu como livro de referência
popular de institutos e seminários bíblicos nesse campo por vinte anos. É clara e
concisa, mas trata de modo adequado de quase todas as facetas da teologia do
Antigo Testamento. Tem uma excelente introdução. A principal parte do livro
segue um esboço sistemático modificado.
É surpreendente que nenhum estudioso britânico tenha escrito uma teologia
completa do Antigo Testamento desde A. B. Davidson (1904). H. Wheeler
Robinson e Norman Porteous escreveram diversos livros e estudos sobre a teologia
do Antigo Testamento. H. H. Rowley escreveu um volume fmo, The Faith o f
Israel, em 1956, e outro, The Biblical Doctrine o f Election, em 1948. Ronald E.
Clements publicou sua Old Testament Theology, a Fresh Approach em 1978, mas a
obra estava na verdade baseada em uma série de palestras no Spurgeon’s College
em 1976 e admite representar apenas um estudo provisório.
H. Wheeler Robinson (1872-1945), estudioso britânico batista, conseguiu
combinar erudição crítica sólida e fé evangélica fervorosa. Ele afirmou que o
Antigo Testamento não consistia em um sistema de doutrina, mas era
principalmente um drama divino representado na arena da história, onde Deus
revelou a si e sua vontade por intermédio dos seus atos. Robinson reconheceu que
falar de uma “revelação histórica” é um paradoxo. A história implica algum tipo de
movimento dinâmico, quer seja isso chamado progresso, quer não; revelação
implica verdade estática e permanente”.57 A solução do paradoxo da relação entre a
55 Atlanta, SBL Dissertation Series 86, 1987.
56 Groves, 162-163; veja também Hasel, Basic Issues, 75-77 (no Brasil, Teologia do AT, pela JUERP).
57 Record and Revelation, 305.
A HISTÓRIA DA TEOLOGIA DO ANTIGO TESTAMENTO
45
revelação que não se prende ao tempo e a história que muda encontra-se na “vida
atual”, em que revelação e história formam uma unidade mesclada.58
De uma visão geral das obras de Robinson sobre a teologia do Antigo
Testamento pode-se concluir que ele estava tentando seguir os pensamentos de
Deus. Para ele, a chave da teologia do Antigo Testamento era a idéia de revelação,
idéia que aparece nos títulos de muitos dos seus livros. Robinson quis deixar o
Antigo Testamento falar por si mesmo. Ele sabia do perigo de impor algum sistema
externo à sua mensagem, mas também sabia que algum princípio organizador era
necessário para apresentar os dados do Antigo Testamento ao intérprete moderno.
Ele acreditava que esses dados ligavam-se à vida e que todo o que esperava
compreendê-los precisava ser pelo menos um “estrangeiro residente”.59 Ele dividiu
a teologia do Antigo Testamento em três partes: Deus e natureza, Deus e ser
humano, e Deus e história, e apresentou as doutrinas características em
proposições. Escreveu ele:
É inevitável formular isso numa série de proposições, para formar uma
“teologia do Antigo Testamento”, mesmo que organizadas em ordem
histórica. [...] Se elas são colocadas de modo tópico e não cronológico,
como exige uma “teologia”, elas se tomam ainda mais abstratas e distantes
da antes viva, vibrante e dinâmica religião de Israel.60
Eric Rust, um dos alunos de Wheeler Robinson, chegou aos Estados
Unidos em 1952 como professor de teologia bíblica no Crozier Theological
Seminary e tomou-se professor de apologética cristã no The Southern Baptist
Theological Seminary em Louisville, no Kentucky, em 1953. Rust fez diversas
contribuições para o campo da teologia do Antigo Testamento. Em 1953 publicou
Nature and Man in Biblical Thought. No número de outubro de 1953 de The
Review and Expositor, Rust tratou de “The Nature and Problems o f Biblical
Theology” (63-64). Em 1964 publicou seu livro completo, Salvation History,61
dedicado a H. Wheeler Robinson e T. W. Manson. Em 1969 Rust escreveu seu
artigo“The Theology o f the Old Testament” no Broadman Bible Commentary62.
Outro estudioso britânico do Antigo Testamento que trabalho no campo da
teologia do Antigo Testamento, mas nunca publicou um livro completo sobre o
assunto, é Norman Porteous. Ele foi pastor e professor em St. Andrews e
Edimburgo, e diretor do New College de 1964 até sua aposentadoria em 1968.
5* Cf. Max Polley, "H. Wheeler Robinson and the Problem o f Organizing an Old Testament Theology”, em The use
o f the Old Testament in the New, ed. James M. Efird, 157.
59 Inspiration and Revelation in the Old Testament, 2 8 1-282.
60 Ibid., 281.
61 Atlanta, John Knox Press.
62 Vol. 1, 71-86 (série de comentários publicada no Brasil pela JUERP).
46
T e o l o g ia
do
A n t ig o T e st a m e n t o
Porteous publicou vários estudos sobre a teologia do Antigo Testamento em
diversas revistas teológicas. Alguns foram reimpressos em forma de livro: Living
the Mystery. Seus estudos mais importantes são: “Towards a theology o f the Old
Testament”;63 “Semantics and Old Testament Theology”;64 “Old Testament
Theology”;65 “The Old Testament and some Theological Thought Forms”;66 “The
State o f Old Testament Studies Today: Old Testament Theology”;67 “The Present
State o f Old Testament Theology”;6’ “The Theology of the Old Testament”;69
“Magnolia Dei"'™ e com Ronald E. Clements, “Old Testament Theology”.71
Porteous via a teologia do Antigo Testamento como a ciência da religião
israelita, baseada no uso das técnicas modernas da arqueologia, das religiões
comparadas e da análise histórica e literária. Seu método pode ser tão sistemático
como o objeto de estudo permite. Além disso, ela tem uma função normativa e
pode, portanto, fazer uso do direito de ser considerada teologia.72 Depois de tratar
de questões preliminares, Porteous esboçou assim sua abordagem no Peake’s
Commentary. 1) Ia o conhecimento de Deus; 2) os atos salvíficos de Deus; 3) a
aliança; 4) Javé, o Deus da aliança, 5) Israel e as nações; 6) teologia régia; 7) os
profetas; 8) as instituições do judaísmo; 9) sabedoria e esperança.
As obras de outros estudiosos britânicos que têm tratado recentemente da
teologia do Antigo Testamento (G. A. F. Knight, F. F. Bruce, W. J. Harrelson e
Ronald E. Clements) serão vistas na seção 7.
6. O movimento da teologia bíblica
Robert Dentan chamou o período que começou em 1949 como "a era de
ouro" da teologia do Antigo Testamento. Ele dizia que essa era de ouro começou
com Otto Baab, The Theology o f the Old Testament (1949), Otto Procksch,
Theologie des Alten Testaments (1949) e Th. C. Vriezen, An Outline o f Old
63 S J T l (1948).
64 Oudtestamentlische Studien 8 (19S0).
65 OTMS. e d H. H. Rowley (1951).
66 S JT 7 (1954).
67 The London Quarterly and Holborn Review (1959).
64 E T 75 (1963).
** Em Peake 's Commentary on the Bible (1962).
70 Festschrift de von Rad, ed. H. W. Wolff, Probleme biblischer Theologie (1971), 417-427.
71 Em The Westminster Dictionary o f Christian Theology, eds. A. Richardson e J. Bowden (Philadelphia,
Westminster, 1983), 398-403,406-413.
71 Veja Porteous, T h e theology o f the Old Testament", em Peake's Commentary on the Bible, 151.
A HISTÓRIA DA TEOLOGIA DO ANTIGO TESTAMENTO
47
Testament Theology (1949).73 Estudiosos católicos romanos contribuíram para o
campo quando Theology o f the Old Testament, de Paul Heinisch, foi publicado (em
inglês) em 1950, e Paul van Imschoot, estudioso católico francês, publicou uma
obra abrangente, em dois volumes, sobre a teologia do Antigo Testamento em 1954
e 1956.
Uma nova série de monografias, Studies in Biblical Theology, foi iniciada
em 1950. Até 1963 tinham sido publicados trinta e sete títulos, doze dos quais
sobre o Antigo Testamento.
O que Dentan chamou de “era de ouro” da teologia do Antigo Testamento
foi estudado como o “movimento de teologia bíblica” por Brevard Childs (Biblical
Theology in Crisis). Childs entendeu que o movimento de teologia bíblica começou
perto do fim da Segunda Guerra Mundial. H. H. Rowley, The Relevance o f the
Bible ( 1942) e Rediscovery o f the Old Testament ( 1946), Alan Richardson, A
Preface to Bible Study ( 1943) e Norman Snaith, The Distinctive Ideas o f the Old
Testament ( 1944) abriram o caminho na Inglaterra. Nos Estados Unidos, G. Ernest
Wright, The Challenge o f Israel’s Faith ( 1944), Paul Minear, Eyes o f Faith ( 1946),
e B. W. Anderson, Rediscovering the Bible (1951) estiveram na vanguarda do novo
movimento.
Novas revistas foram lançadas para dar apoio ao movimento: Theology
Today (1944), Interpretation (1947), The Scottish Journal o f Theology (1948),
além de numerosos artigos sobre a teologia do Antigo Testamento publicados em
outras revistas: James Smart, “The Death and Rebirth o f Old Testament
Theology”;74 Clarence T. Craig, “Biblical Theology and the Rise o f Historicism”;75
Muriel S. Curtis, “The Relevance of Old Testament Today”;76 W. A. Irwin, “The
Reviving Theology o f the Old Testament”;77 “The Nature and Function o f Old
Testament Theology”;78 W. F. Albright, “Return to Biblical Theology”.79
Childs acreditava que o movimento de teologia bíblica tinha atingido um
consenso em torno de cinco temas principais: 1) a redescoberta da dimensão
teológica (o objetivo era penetrar no coração da Bíblia para recuperar sua
mensagem e mistério, perdidos pela geração anterior); 2) a unidade de toda a
Bíblia; 3) a idéia de que a revelação é histórica; 4) o caráter distinto do pensamento
bíblico (hebraico); e 5) a singularidade da fé bíblica diante de outras religiões.
Childs disse que as rachaduras começaram a aparecer no muro do consenso
do movimento de teologia bíblica quando um grupo de estudiosos que incluía
73 Editado e traduzido do holandês em 1958.
J R l i (1943), 1-11, 125-136.
™JBL 62(1943), 281-294.
16JBR 9 (1943), 81-87.
77 JR 25 (1945), 235-247.
78 JBR 14(1946), 16-21.
79 The Christian Century 75 ( 1958), 1328-1331.
48
T e o l o g ia
do
A n t ig o T e s t a m e n t o
James Barr, Langdon Gilkey e Bertil Albrektson começou a questionar a revelação,
a história e a singularidade da fé israelita. Gerhard von Rad usou um método
totalmente novo ao escrever sua teologia do Antigo Testamento, que levantou
questões sérias para o consenso anterior. O domínio das idéias de Barth e Brunner
declinou mesmo antes da morte deles. Novos interesses e preocupações, questões
sociais e políticas desviaram os holofotes da teologia. Childs datou o fim do
movimento de teologia bíblica em maio de 1963, com a publicação de Honest to
God, de J. A. T. Robinson. Este popularizou as opiniões céticas em relação a Deus
e às religiões institucionais, expressas por filósofos e teólogos como Tillich,
Bonhoeffer e Bultmann e por alguns cientistas e secularistas modernos.
Childs afimou que o movimento de teologia bíblica acabou, mas a
necessidade da teologia bíblica permanece. Ele propôs uma nova forma,
começando com o estabelecimento de um contexto apropriado. Transformou todo o
cânon da Bíblia no contexto, e pode-se ver imediatamente que, para Childs, os dois
Testamentos estão juntos, com pouco espaço para disciplinas separadas de teologia
do Antigo Testamento e do Novo.*0
James Smart, pastor presbiteriano, professor, escritor e organizador de
currículos para igrejas, respondeu a Childs. Segundo Smart, Childs criou um
quadro errado do desenvolvimento da interpretação bíblica.81 Smart fez objeção ao
uso do termo “movimento” por Childs, dizendo que ele não é apropriado para o
estudo da teologia bíblica. Movimentos vêm e vão. O movimento da “morte de
Deus”, o movimento da “cidade secular” ou o movimento da “teologia da
libertação” centram-se em tópicos e são “modas” passageiras da teologia. Smart
disse que a teologia bíblica não é um movimento, a exemplo do desenvolvimento
da crítica literária, histórica e/ou da forma.82
Smart argumentou que a teologia bíblica é internacional em sua
preocupação. Ele concedeu que Childs estava correto ao falar de crise, mas errado
ao localizá-la na teologia bíblica. Smart via a crise em todo o vasto
empreendimento da erudição bíblica.83 Ele acreditava que o problema é
hermenêutico. A solução para o problema é reconhecer a natureza dupla das
Escrituras, que é histórica e teológica, e a impossibilidade de separar as duas.84
80 Biblical Theology in Crisis, 6.
81 Smart, The Past, Present and Future o f Biblical Theology, 7.
82 Ibid., 11.
83 Ibid., 22.
84 Ibid., 145.
A HISTÓRIA DA TEOLOGIA DO ANTIGO TESTAMENTO
49
7. A situação atual da teologia do Antigo Testamento
A. O interesse continuado na teologia do Antigo Testamento até 1985 e o fluxo de
literatura sobre o tema
A teologia bíblica pode estar em crise, mas isso não deteve o fluxo de
teologias do Antigo Testamento, de artigos e estudos que tratam de aspectos
importantes do tema. Várias teologias novas do Antigo Testamento surgiram desde
1970. Um estudioso católico, A. Deissler, escreveu Die Grundbotschaft des Alten
Testaments em 1972. Deissler via o centro da fé veterotestamentária como o
relacionamento de Deus com o mundo e com o ser humano.
Walther Zimmerli publicou seu livro Old Testament Theology in Outline
em 1972. Ele considerou o Antigo Testamento um “livro de pronunciamentos”, em
contraste com o conceito de von Rad do Antigo Testamento como um “livro de
história”. Zimmerli fez do primeiro mandamento seu ponto de partida e centro do
seu estudo. Disse ele: “A obediência a Javé, o único Deus, que libertou Israel da
escravidão e zela por ser o único, define a natureza fundamental da fé
veterotestamentária”.85
Georg Fohrer, editor de 7AW, publicou seu livro Theologische
Grundstrukturen des Alten Testaments em 1972. O primeiro capítulo trata do
problema da interpretação do Antigo Testamento. O capítulo 2 trata de revelação e
o Antigo Testamento. Fohrer, como existencialista, via a revelação nas decisões de
vida e morte do ouvinte. O capítulo 3 fala da diversidade de atitudes diante da vida
no Antigo Testamento. O capítulo 4 estuda a questão de um centro ou ponto
eqüidistante no Antigo Testamento, que Fohrer cria ser a soberania de Deus e a
comunidade de Deus. O capítulo trata do poder transformador e do potencial da fé
veterotestamentária. O capítulo 6 descreve certos elementos básicos no Antigo
Testamento, como o fato de Deus se manter oculto, e seus atos na história e na
natureza. O capítulo 7 faz uma aplicação, ao lidar com tópicos como a crise do ser
humano, o estado e a política, pobreza e projetos sociais, o ser humano e a
tecnologia, e o futuro na profecia e na literatura apocalíptica.86
Em 1974, John L. McKenzie, um destacado estudioso católico do Antigo
Testamento, publicou A Theology o f the Old Testament. Em seu prefácio,
McKenzie disse que uma teologia do Antigo Testamento ou uma história de Israel
oferece ao autor uma oportunidade de fazer um resumo de toda a sua obra.
*5 O ld Testament Theology in Outline, 116.
86 Veja a resenha de G. E. Wright em Interpretation 28 ( 1974), 460-462; e G. F. Hasel, Old Testament Theology:
Basic Issues, 63-66 ( n o Brasil, Teologia do AT, p e l a JUERP).
50
T e o l o c ia
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A n t ig o T e s t a m e n t o
Todavia, existe um obstáculo oculto: a teologia do Antigo Testamento não tem uma
estrutura ou estilo aceito por todos. McKenzie disse que leu a maioria dos livros
sobre o assunto, tendo colhido principalmente o fruto de aprender o que não fazer.
Citou James Barr, dizendo que “a teologia bíblica atualmente está fora de moda”, e
depois observou que estava decidido a mostrar que Barr é quem estava “fora de
moda”.87 McKenzie criticou o método de von Rad como uma “teologia do
desenvolvimento”.88 Ele definiu a teologia como “conversa de Deus” e disse que,
se alguém reunir tudo o que Deus fala no Antigo Testamento, emergirá uma
realidade pessoal bastante clara, que provavelmente não será totalmente coerente
em si mesma, mas também não poderá ser identificada com nenhuma outra
realidade pessoal. O livro de McKenzie é uma teologia do Antigo Testamento — e
não uma exegese, uma história da religião de Israel, ou uma teologia da Bíblia. Seu
interesse não está na “experiência religiosa”; está voltado para os documentos do
Antigo Testamento. “Pode-se presumir que surja algo da totalidade, que não surge
de um pronunciamento isolado.”89 Uma teologia do Antigo Testamento deve
formular essa realidade na linguagem do debate acadêmico.
Depois da introdução, o livro de McKenzie tem sete capítulos: 1) culto; 2)
revelação; 3) história; 4) natureza; 5) sabedoria; 6) instituições políticas e sociais;
7) o futuro de Israel, terminando com um epílogo.
Em 1978, Walter C. Kaiser, Jr., da Trinity Evangelical Divinity School,
publicou seu livro Toward an Old Testament Theology (no Brasil, publicado pela
Vida Nova como Teologia do Antigo Testamento). Kaiser defendia que a teologia
do Antigo Testamento funciona melhor “como serva da teologia exegética do que
em seu papel tradicional de fornecer dados para a teologia sistemática” (p. viii). O
principal ponto de partida de Kaiser é a idéia de que os próprios escritores do
Antigo Testamento “pronunciam suas mensagens contra o pano de fundo de uma
teologia acumulada que eles, seus ouvintes e agora seus leitores têm de recordar se
quiserem captar a profundidade exata da intenção original da mensagem” (p. viii).
Kaiser parece afirmar que os escritores do Antigo Testamento escreveram com
conhecimento de um conjunto de dados teológicos. Ele também parece pensar que
podemos descobrir a “intenção” original desses escritores. “Intenção” sempre é
difícil de descobrir e de provar.
Depois de repassar a história da teologia do Antigo Testamento de 1933 até
1978, Kaiser asseverou que a disciplina está em estado de confusão — se não de
crise— porque os estudiosos não têm conseguido “reafirmar e reaplicar” a
autoridade da Bíblia. Para ele, a autoridade da Bíblia está intimamente relacionada
17 McKenzie, A Theology o f the Old Testament, 10.
n Ibid., 20.
K Ibid.,, 21.
A HISTÓRIA DA TEOLOGIA DO ANTIGO TESTAMENTO
51
ao tipo normativo de teologia.90 Kaiser via a norma da teologia do Antigo
Testamento no seu centro, que ele identificou com a promessa. A exemplo de
Eichrodt, Kaiser acreditava que “a busca de um centro, um conceito unificador,
estava no cerne da preocupação dos receptores da palavra divina”.91
O conceito de Kaiser de uma teologia do Antigo Testamento era que ela
tem de ser “uma teologia em conformidade com toda a Bíblia, descrita e contida na
Bíblia, e que conscientemente recebe acréscimos de época em época. O contexto
imediatamente antecedente passa a ser a base para a teologia que seguia em cada
época”.92 Não é surpreendente, dadas as pressuposições de Kaiser, que seu método
era acompanhar a “promessa” por todo o Antigo Testamento. Ao concentrar-se em
promessa e bênção, porém, Kaiser ignorou quase totalmente tópicos como criação,
culto e sabedoria.
Outro escritor conservador, William Dymess, deão da escola de teologia no
Fuller Theological Seminary, disse que seu livro Themes in Old Testament
Theology é resultado da sua experiência de ensino no Asian Theological Seminary
em Manila. Ele sentiu a necessidade de um livro como esse em seus alunos
asiáticos e não conseguiu encontrar uma pesquisa teológica recente do Antigo
Testamento adequada para eles. Disse ele que seu livro é “mais um reconhecimento
dessa lacuna do que uma tentativa de preenchê-la”.
Elmer A. Martens, presidente e professor de Antigo Testamento no
Mennonite Brethren Biblical Seminary, escreveu G od’s Design: a Focus on Old
Testament Theology. Culto e conservador, Martens, estudioso do Antigo
Testamento, foi co-editor de The Flowering o f Old Testament Theology (1992).
Martens afirmou que o tema que percorre todo o Antigo Testamento é o plano de
Deus encontrado em Êxodo 5.22-6.8. “Plano” pode significar “centro”. Este plano
tem quatro componentes: libertação, comunidade, conhecimento de Deus e vida
abundante. Martens tentou fazer uma abordagem sintética (os quatro temas) e
diacrônica dos três períodos da história do Antigo Testamento, que são: prémonarquia, monarquia e período pós-exílico. Ele também tentou estudar a teologia
do Antigo Testamento de modo descritivo e normativo.
Ronald Clements é um dos estudiosos contemporâneos do Antigo
Testamento mais criativos da Inglaterra. Seu interesse na teologia do Antigo
Testamento está refletido em “The Problem of Old Testament Thelogy”.93
Clements, escrevendo contra o pano de fundo da profusão de outras teologias do
Antigo Testamento, argumenta que uma nova estratégia toma-se necessária —que
90 Toward an Old Testament Theology, 6.
91 Ibid., 6-7.
92 Ibid., 9.
93 Veja The London Quarterly and Holborn Review 190(1965), 11-17; G od’s Chosen People; One Hundred Years
o f Old Testament Interpretation, cap. 7; Old Testament Theology: a Fresh Approach; e "Old Testament
Theology", de N. Porteous, cm The Westminster Dictionary o f Christian Theology ( 1983), 398-403, 406-413.
52
T f.o i .o c ia
do
A n t ig o T e s t a m e n t o
na realidade é antiga. A nova estratégia de Clements é prestar mais atenção em
como os cristãos e, em certa medida também os judeus, na verdade ouvem o Antigo
Testamento lhes falar teologicamente.94 Clements crê que a idéia do cânon é
importante na teologia do Antigo Testamento. Ele determina os limites, a
autoridade e a forma de um estudo assim.
Old Testament Theology é um livro pequeno, de 200 páginas, organizado
em oito capítulos. O primeiro capítulo lida com os problemas da teologia do Antigo
Testamento: que é e como fazê-la. O capítulo 2 estuda as dimensões da fé no
Antigo Testamento: literária, histórica, de culto e intelectual. Os capítulos 3 e 4
formam o coração do estudo: o conceito que Israel tinha de Deus e de si mesmo
como povo de Deus. Os capítulos 5 e 6 apresentam a idéia que Clements tem do
cânon. O capítulo 5 trata do Antigo Testamento como Lei (Torá) e o 6 lida com
profecia ou promessa. Ele não tem uma seção separada sobre salmos e sabedoria.
Os últimos dois capítulos (7 e 8) tratam da relevância do Antigo Testamento e da
teologia do Antigo Testamento para a religião e para a teologia contemporâneas.
Samuel Terrien, franco-americano, formado na Universidade de Paris
(1933) e no Union Seminary em Nova York (1941), lecionou no Wooster College
(1936-1940) e no Union Seminary (1941-1976). Terrien foi instruído nos clássicos,
em arqueologia, nos estudos semíticos e na história das religiões. Seu interesse
pelos semitas e por religiões comparadas ajudou-o a concentrar sua atenção na
literatura de sabedoria do Antigo Testamento e no livro de Jó. Seu interesse em Jó
levou-o a procurar a presença divina na ausência, busca que culminou em seu livro
The Elusive Presence: Toward a New Biblical Theology.
Terrien acreditava que a realidade da presença de Deus está no centro da fé
bíblica, mas que essa presença é sempre elusiva, de difícil percepção.95 Apenas
uma meia dúzia de ancestrais, profetas e poetas tinha realmente percebido a
presença imediata de Deus. O grosso do povo experimentava a proximidade de
Deus sendo representado ou intermediado no culto.96 Contudo, o culto nem sempre
trazia Deus para perto do povo. Freqüentemente ele produzia estagnação e
corrupção.
Terrien chamou seu livro de “prolegômenos”, preâmbulo de uma
verdadeira teologia bíblica que pode trabalhar as semelhanças e diferenças entre a
idéia da presença de Deus na fé israelita e a dos seus vizinhos.97 A idéia da
presença de Deus pode proporcionar o elo que atravessa os séculos entre os
patriarcas e Jesus e uma base para o diálogo entre judeus e cristãos. Ela pode
94 Old Testament Theology, 4.
95 The Elusive Presence, xxvii.
96 Ibid.. 1-2.
97 Ibid., 27.
A HISTÓRIA DA TEOLOGIA DO ANTIGO TESTAMENTO
53
incorporar todos os tipos de literatura veterotestamentária (sabedoria e salmos) na
teologia do Antigo Testamento.
Depois de rejeitar a idéia da aliança de Eichrodt e o método da história da
salvação de von Rad para organizar a teologia bíblica, Terrien perguntou: “Será
que a teologia hebraica da presença proporciona uma abordagem legítima de uma
teologia autêntica de toda a Bíblia?” Ele sugeriu que “esse pode muito bem ser o
caso”.9* Esse livro deve ser considerado o prefácio de uma descrição das
características específicas da fé bíblica. Ele frisa demais a dificuldade de percepção
da presença de Deus em detrimento da realidade da sua presença. O método
demora-se demais no estudo dos diferentes tipos de literatura e não é “sistemático”
ou “teológico”. E dirigido demais à sociedade secular e não o suficiente à igreja,
dando preferência a Deus como criador em vez de Deus como redentor. Um rápido
exame no índice de assuntos do livro de Terrien mostra quão pouco se fala sobre
pecado ou culpa.99
Um dos escritores mais prolíficos no campo dos estudos do Antigo
Testamento foi Claus Westermann. Ele se aposentou como professor de Antigo
Testamento em Heidelberg em 1978. Escreveu comentários sobre Gênesis e Isaías
40-66, estudos abrangentes sobre os salmos e os profetas, e dois livros sobre a
teologia do Antigo Testamento: What does the Old Testament Say About God? e
Elements o f Old Testament Theology. Este último é uma tradução de Theologie des
Altes Testaments in Grundzügen (publicado no Brasil como Teologia do Antigo
Testamento pela Paulinas).100 Esses dois livros são muito semelhantes e têm
essencialmente o mesmo esboço. O livro de 1979 está baseado em uma série de
palestras feitas no Union Theological Seminaiy em Richmond, na Virginia, em
1977.
Westermann insistia que a tarefa da teologia do Antigo Testamento é
resumir e ver em conjunto o que o Antigo Testamento como um todo diz sobre
Deus.101 O Antigo Testamento não tem um centro teológico, como o Novo
Testamento. Temos de apresentar a teologia do Antigo Testamento da maneira
como o Antigo Testamento o faz: em forma de narrativa ou história, baseado em
eventos em vez de conceitos.
Westermann usou a divisão tríplice do cânon hebraico (Torá, Profetas e
Escritos) como guia para a teologia das várias partes do Antigo Testamento. A Torá
contém história ou os atos salvíficos de Deus; os Profetas representam a Palavra de
Deus; e os Escritos (Sabedoria e Salmos) representam a resposta humana. Todos
esses três elementos são necessários para uma teologia do Antigo Testamento. O
94 Ibid., 473.
99 Ibid., 510.
100 Gottingen. 1978.
101 Elements o f Old Testament Theology, 9.
54
T e o l o g ia
do
A n t ig o T e s t a m e n t o
capítulo 1 trata principalmente de definição e metodologia. Os capítulos 2 e 3
falam de Deus como o Deus que salva e abençoa. O capítulo 4 (os Profetas)
apresenta a palavra de Deus proferida em condenação e compaixão. O capítulo 5 é
a resposta humana aos atos e à palavra salvadora de Deus. As pessoas respondem
em louvor e lamento, bem como em ações, aos mandamentos e leis na vida diária e
na adoração.
Sem dúvida a idéia da tradição ou tradições ocupa hoje um lugar central
nos estudos do Antigo Testamento, especialmente na área da teologia do Antigo
Testamento. Em 1977, uma coletânea de artigos, Tradition and Theology in the Old
Testament, foi publicada pela Fortress Press. O editor foi Douglas A. Knight, da
Vanderbilt University. Na introdução, Knight falou dos efeitos positivos e
negativos que as tradições têm sobre todos nós. O termo tradição pode ser aplicado
tanto à literatura oral e escrita como a costumes, hábitos, crenças, padrões morais,
atitudes culturais e normas. Knight definiu a tradição como qualquer coisa na
herança do passado que é transferido ao presente e pode contribuir para a formação
de um novo etos.102
Tradição pode referir-se ao processo de transmissão assim como ao
conteúdo do material passado para frente. Walter Harrelson, no mesmo volume,
referiu-se a uma definição estreita de tradição, que fala de passar adiante o que
alguém (ou um grupo) recebeu, da maneira que o recebeu.103 As tradições podem
mudar ou aumentar no curso das transmissões, mas o processo de transmissão tem
de manter intacto o que foi recebido. Os elementos essenciais das tradições têm de
estar ali, reconhecíveis. Algumas tradições passadas adiante não tinham muito
peso, no sentido de que não eram decisivas para a autocompreensão do grupo.
Outras tradições foram passadas adiante porque tinham peso genuíno. O grupo
reconheceu nelas algo de importância decisiva para a manutenção da sua vida e
fé.104 Harrelson discerniu uma tradição central composta de quatro partes que
funcionavam oralmente e respondiam pelas origens de Israel: 1) Javé era o Deus de
Israel (isso começa num mistério); 2) ele os acompanhou em seus movimentos; 3)
ele estava particularmente preocupado com os oprimidos e maltratados entre eles; e
4) ele os estava levando para um futuro do qual os aspectos ainda não se haviam
definido. Harrelson argumentou que essas tradições centrais pertencem aos
primórdios da comunidade e têm o caráter de revelação fundamental ou
descoberta.105
102 Tradition and Theology, 2.
103 Ibid., 15.
104 Veja um exemplo interessante de percurso da tradição em Trent C. Butler, Joshua, xxii-xxiii. “Havia Tradição
e Tradições* (Knight, Tradition and Theology, 17).
105 Knight, Tradition and Theology, 22-28.
A HISTÓRIA DA TEOLOGIA DO ANT1CO TESTAMENTO
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O ultimo artigo em Tradition and Theology é “Tradition and Biblical
Theology”, escrito por Hartmut Gese. Como professor de Antigo Testamento em
Tübingen, Gese seguiu a maneira de von Rad estudar a história das tradições de
Israel. Ele estava convicto de que o Antigo Testamento e o Novo não devem ser
separados, como os cristãos já fizeram no passado. Ele diz que há apenas um
cânon. O mesmo processo de formação do cânon do Antigo Testamento continuou
no período do Novo Testamento e dos apóstolos.106 Gese argumentou que existe
uma unidade entre o Antigo e o Novo Testamento. A morte e ressurreição de Jesus
indicam o objetivo, o fim, o telos do percurso da tradição bíblica. Por isso, com a
morte e ressurreição de Jesus, o cânon se encerra onde não se encerrara antes.
Gese continuou seu trabalho na teologia bíblica fazendo uso do método da
história da tradição. Em uma coletânea de Essays on Biblical Theology,'01 Gese
explica seu método de fazer teologia bíblica e trata de seis temas bíblicos histórica
e teologicamente. Os seis temas são: morte, a lei, expiação, ceia do Senhor, o
Messias e o prólogo ao evangelho de João. Gese entendeu que todos esses temas
começam no Antigo Testamento e continuam no Novo. A origem da Ceia do
Senhor, por exemplo, encontra-se nos salmos de ações de graça do Antigo
Testamento.10*
John Goldingay avaliou o novo método da história das tradições em seu
livro Approaches to Old Testament Interpretation. Ele reconheceu que o cânon
bíblico é resultado de um processo longo.109 Sobre a história da tradição, Goldingay
disse: “O método histórico-tradicionário é sugestivo, apesar de ser exclusivista
demais. O Novo Testamento é uma atualização seletiva do Antigo, e não o objetivo
inevitável para o qual todo o Antigo Testamento manifestamente se dirige”.110
A maioria dos teólogos do Antigo Testamento fez da “história da salvação”
a ênfase principal da teologia do Antigo Testamento, mas ultimamente há um
enfoque cada vez maior na sabedoria como um tema importante."1 Em 1962, von
Rad disse que Israel não conhecia nem o nosso conceito da natureza nem o
conceito grego do cosmos. “Para eles, o mundo não era um organismo estável e
ordenado harmonicamente.”112
H. H. Schmid adotou uma perspectiva totalmente diversa em relação à
categoria básica de pensamento no Antigo Testamento. Schmid argumentou que em
Israel, como em todo o antigo Oriente Próximo, a ordem do mundo é a categoria de
106 Ibid., 322.
101 Editada e traduzida para o inglês em 1981.
108 Veja Hartmut Gese, Zur Biblischen Theologie: Allteslamentliche Vorträge (Chr. Kaiser Verlag, Munique), 1977,
editado e traduzido para o inglês em 1981.
109 Approaches to Old Testament interpretation, 122.
110 Ibid., 131.
111 Cf. Walther Zimmerli, "The Place and Limit o f Wisdom in the Framework o f Old Testament Theology", 165-181.
112 Old Testament Theology 1,426 (no Brasil, Teologia do Antigo Testamento, 2 vols., pela ASTE).
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do
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pensamento básica. Ele afirmou que a palavra hebraica sedeq equivale à palavra
egípcia maat e ao sumério me. A ordem do mundo abrange lei, sabedoria, natureza,
guerra, culto e história. Segundo Schmid, termos hebraicos como 'emet, shalom e
chesed fazem parte do mesmo campo semântico. Essa terminologia está
profundamente arraigada no pensamento de sabedoria; por isso, “a sabedoria não é
algo secundário, mas um elemento central na Bíblia”.113
Em 1983, Simon J. de Vries publicou The Achievements o f Biblical
Religion. Esse livro procura a compreensão bíblica de um ponto de vista
rigorosamente histórico e exegético, destacando temas específicos que distinguem
Israel dos seus vizinhos. De Vries afirmou que esses elementos distintivos
respondem pelo fato de o Antigo Testamento ter sobrevivido e ser relevante até
hoje.114 Os temas específicos que diferenciavam Israel são: 1) a transcendência de
Deus; 2) a imagem divina espelhada na pessoalidade humana; 3) a vida de
integridade realizada na comunidade da aliança; 4) a história como diálogo
responsável com Deus; e 5) sentido e propósito na existência finita. Esses cinco
temas dão título aos cinco capítulos do seu livro.
De Vries concluiu que existe unidade na Bíblia e que “de Gênesis a
Apocalipse dá-se testemunho do mesmo Deus, avançando de época em época,
levando suas obras à perfeição cada vez maior”.115 De Vries cria que a razão por
que judaísmo e cristianismo sobreviveram, cresceram e se espalharam pelo mundo
em face de oposição e perseguição foi que “tinham algo precioso em que se apegar,
algo que lhes tomava a vida diferente da vida dos vizinhos pagãos, algo pelo que
valia a pena morrer, que transcendia a morte”.116
Em 1983, Martin H. Woudstra escreveu um artigo sobre “The Old
Testament in Biblical Theology and Dogmatics”, em que tratou do interesse atual
no Antigo Testamento e seu lugar na dogmática. Antes de analisar o lugar do
Antigo Testamento na dogmática, ele traçou a história do movimento de teologia
bíblica da obra de Gabler até o presente. Woudstra acreditava que a obra de Gabler
foi muito mais influente do que um simples chamado para a separação entre
dogmática e teologia bíblica. Gabler foi uma personagem fundamental no
desenvolvimento do estudo da Bíblia na Alemanha. Woudstra cria que Gabler foi
influenciado principalmente por quatro pessoas: Eichhom, Semler, Lessing e
Herder. A influência desses quatro homens foi mais negativa que positiva no que
tange à perspectiva cristã da Bíblia e da teologia.
113 "Creation, Righteousness, and Salvation", em Creation in the Old Testament, 102-117; cf. H. G raf Reventlow,
"Basic Problems in Old Testament Theology", 10; Roland E. Murphy, "Wisdom —Theses and Hypotheses", em
Israelite Wisdom, editado por John Gammie e outros, 37.
114 The achievements o f Biblical Religion, vii.
115 Ibid., 28.
U6 Ibid., 29.
A HISTÓRIA DA TEOLOGIA DO ANTIGO TESTAMENTO
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Woudstra observou que Gabler foi o primeiro a considerar a idéia de
“mito” um termo adequado para compreender a natureza da narrativa bíblica.
Gabler minou a autoridade dos credos da igreja e disse que o estudo erudito da
Bíblia é um “esforço esotérico” 117.
Woudstra destacou Abraham Kuyper, Charles Hodge e B. B. Warfield
como modelos de teólogos dogmáticos e pareceu aprovar a maneira como eles
usavam o Antigo Testamento, em oposição ao trabalho de estudiosos modernos
como K. H. Miskotte, A. A. van Ruler, K. Barth e H. Berkhof. Woudstra dizia que
esses últimos estudiosos faziam muito caso do aspecto “judaico” do Antigo
Testamento, o que põe em xeque a unidade e a continuidade dos Testamentos.118
Woudstra acreditava que o método bartiano toma difusa a linha divisória entre
judaísmo e igreja. Ele objetou ao uso do termo cisma por Miskotte e William
Temple para referir-se à divisão entre judeus e cristãos, porque o termo sugere uma
separação entre pessoas da mesma fé. Woudstra disse: “Isso não faz justiça a toda a
profundidade da perspectiva bíblica”.119 O denominador comum, para Woudstra, é
o uso que o Novo Testamento faz do Antigo:
Este escritor acredita que a identidade messiânica de Jesus e, em conseqüência, a
natureza e missão do seu ministério terreno, do nascimento à ascensão, dependem
totalm ente da aceitação em fé, também do ponto de vista exegético, das opiniões do
Novo Testamento quanto ao significado do Antigo.120
O ideal de que precisamos, segundo Woudstra, é uma versão melhorada de
Miskotte, van Ruler, Berkhof e Emst Block:
Esta é uma grande tarefa, e as pessoas disponíveis para executá-la de uma
perspectiva biblica coerente são raras e às vezes sobrecarregadas. [...] Enquanto isso,
os próprios estudiosos do Antigo Testamento deveriam tentar “digerir” e expor o
material bíblico de tal modo que o sistematizador possa usá-lo sem precisar fazer
uma reorientação total.121
Um livro recente sobre a história da teologia do Antigo Testamento, Old
Testament Theology: its History and Developmení, de Hayes e Prussner, assume
essa posição “judaica” de que Woudstra falou. Trata-se da expansão, revisão e
atualização por Hayes da tese de doutorado de Prussner na Universidade de
Chicago em 1952. O livro se compõe de cinco capítulos: 1) os primeiros
117 "The Old Testament in Biblical Theology", 49.
118 Ibid., 53.
119 Ibid., 57, nota 39.
120 Ibid., 58.
121 Ibid., 60-61.
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desenvolvimentos da teologia do Antigo Testamento; 2) a teologia do Antigo
Testamento no século XVIII; 3) a teologia do Antigo Testamento no século XIX; 4) o
renascimento da teologia do Antigo Testamento; e 5) desenvolvimentos recentes da
teologia do Antigo Testamento.
Excelentes bibliografias atualizadas iniciam cada divisão principal. No
livro há ao todo 21 bibliografias atuais amplas, e mais ou menos 50 obras
importantes sobre teologia do Antigo Testamento são resenhadas e avaliadas.
Todavia, um “propósito oculto” parece estar por trás de boa parte do livro
de Hayes e Prussner. Podemos começar com a dedicatória: “A Sidney Isenberg, que
sabe todas as razões por quê.” Diferente da maioria das obras sobre teologia do
Antigo Testamento, que terminam com alguma referência à sua continuação ou
“cumprimento” no Novo Testamento e na fé cristã, Hayes e Prussner terminam seu
livro com uma apologia abrupta do judaísmo como continuação e interpretação
legítima das Escrituras hebraicas. Depois o leitor é informado de que, “em todo
esse volume”, os autores perceberam a baixa estima que os teólogos bíblicos têm
pelo judaísmo pós-exílico e posterior.122 Hayes falou do menosprezo pelo judaísmo
e disse que é lamentável que a atitude negativa em relação ao judaísmo tenha sido
continuada por Eichrodt e von Rad.
Na verdade, a obra de Hayes e Prussner reflete a tendência de alguns
estudiosos contemporâneos do Antigo Testamento, que tentam corrigir a injustiça
que sentem estar sendo feita aos judeus pelos estudiosos do Antigo Testamento
cristãos. James Barr fez a sétima palestra de Montefiore sobre Judaism: iís
Continuity with the Bible, na Universidade de Southampton em 1968. Barr disse
que Claude Montefiore se ressentia, com o que Barr concordava, de que os cristãos,
em especial os instruídos e eruditos, costumavam olhar de cima para baixo para o
judaísmo, como uma religião à qual faltava espiritualidade e moralidade genuína.
Eles dizem que é um conjunto de práticas que são seguidas sem convicção interna.
Essas opiniões supostamente estavam de acordo com a crítica básica e original do
judaísmo, exemplificada nos ensinos do próprio Jesus e apoiada e incentivada pela
descrição do judaísmo feita nos evangelhos e nas cartas de Paulo.123
Para contrabalançar essa imagem negativa do judaísmo, Montefiore se
dispôs a apresentar o material rabínico da época de Jesus de uma maneira que
mostrasse sua espiritualidade, nobreza moral e valores fundamentais. Montefiore
enfatizou os ensinos positivos do judaísmo e do cristianismo sem fazer juízo de
valor da pessoa, da função e das ações miraculosas de Jesus.124
Todavia, depois da Segunda Guerra Mundial e do ataque nazista ao Antigo
Testamento, a tentativa de exterminar os judeus provocou uma atmosfera pró-
122 O ld Testament Theology, 276.
123 Barr, Judaism: its Continuity with the Bible, 5.
124 Ibid., 6.
A HISTÓRIA DA TEOLOGIA DO ANTIGO TESTAMENTO
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semita na teologia acadêmica. O Antigo Testamento passou a ser altamente
valorizado, e muitos estudiosos e teólogos faziam coro às palavras de Jesus: “A
salvação vem dos judeus” (Jo 4.22). A ênfase não era expressa em termos de
espiritualidade e moralidade, mas de continuidade e diferença.
Os cristãos têm um grande apreço por sua herança judaica, mas sua ênfase
nos atos redentores de Deus encontrados no Antigo Testamento levou de modo
natural e bíblico, segundo o Novo Testamento, a Cristo. Como muitos judeus
rejeitam as afirmações dos cristãos a respeito de Jesus, Barr pensou que na
estrutura do cristianismo estava embutida uma tendência de desprezar o
judaísmo.125 Parece que Hayes e Prussner tinham a forte impressão de que o
judaísmo fora prejudicado pelos teólogos bíblicos, e se esforçaram para corrigir a
situação.
Excurso: o relacionamento judeu-cristão e a teologia
do Antigo Testamento
Martin Woudstra tocou uma área sensível quando disse que K. H. Miskotte, A. A. van Ruler
e Karl Barth destacaram demais o caráter “judaico” do Antigo Testam ento.126 Até
recentemente, nenhum judeu participara da autoria de uma teologia do Antigo Testamento, e
os judeus via de regra não tomavam parte na disciplina. O regime nazista (1933-1945),
porém, mudou tudo isso. A matança de seis milhões de judeus no Holocausto causou em
muitos líderes cristãos um sentimento de vergonha e culpa, porque sentiam que podiam ter
contribuído para a ascensão e para a conduta de A dolf Hitler.
O relacionamento entre judeus e cristãos tem sido tem a de uma enorme quantidade de
escritos e debates acalorados desde 1945. R. W. L. Moberly disse: “O crescimento do
diálogo judeu-cristão tem sido um dos traços mais marcantes do debate teológico recente no
mundo ocidental” .127 Muitos cristãos arriscaram a vida protegendo judeus e se opondo a
Hitler. Bonhoefifer, K. Barth, Miskotte, G. von Rad e outros líderes cristãos estiveram
envolvidos ativa e publicamente na resistência aos nazistas.
Karl Barth viu uma relação estreita entre o papel de Israel e o de Jesus. Ele disse que a
missão de Jesus era a missão de Israel:
Neste Jesus Cristo estam os lidando com o homem em que a missão deste povo
singular, o povo de Israel, o povo judeu, é mostrada e revelada. Cristo, o Servo de
125 Judaism: ils continuity with the Bible, 9.
126 Woudstra, "The Old Testament in Biblical Theology and Dogmatics", 53.
127 The Old Testament o f the Old Testament, 147.
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Deus que veio desse povo, o futuro do Servo de Deus para todos os povos, assim
como este povo de Israel, são duas realidades inseparáveis, não só naquele tempo
mas para toda a história, na verdade para toda a eternidade. Israel não é nada sem
Jesus Cristo; mas também temos de dizer que Jesus Cristo não seria Jesus Cristo sem
Israel.128
Para Barth, houve pouco avanço redentivo do Antigo Testamento para o Novo. Ele tendia a
considerá-los “dois círculos concêntricos que giram em tom o de um círculo idêntico”.129 A
igreja e a sinagoga juntas constituem a congregação de Deus. Elas são uma só e também
separadas. Ninguém pode pertencer à igreja e à sinagoga ao mesmo tem po.130 Israel no
Antigo Testamento está presente de modo singular e distinto, em sua eleição e chamado. Em
sua tolice, perversidade e fraqueza, ele é objeto do “am or e bondade sempre novos de Deus,
mas também [...] da condenação de Deus — essa nação corporifica na história a graça
gratuita de Deus para todos nós”.131 Barth afirmou que o quadro que o Antigo Testamento
pinta dos israelitas é, “de maneira chocante, o de um homem que resiste à sua própria
eleição e conseqüentemente à missão que lhe foi dada, que prova pessoalmente ser indigno
e incapaz da missão e que, como conseqüência, por ser objeto da graça de Deus, é
constantemente prostrado e quebrado pelo castigo que o aflige exatamente porque ele se
afasta da graça” .132
A missão de Israel tem de ser entendida como uma missão cumprida, revelada e realizada
em Jesus Cristo; mas, de acordo com Barth, Israel ainda tem a missão de demonstrar a
indignidade humana e, ao mesmo tempo, tom ar-se uma demonstração da graça gratuita de
Deus. Miskotte comprou “por atacado” a teologia de K. Barth e escreveu provavelmente a
primeira obra teológica nos tempos pós-bíblicos que diz respeito tanto ao judaísm o quanto
ao cristianism o.133
A Igreja Católica Romana foi severamente criticada por seu envolvimento ou falta de
envolvimento no terror nazista contra os judeus. O papa João XXIII convocou um raro
concílio ecumênico (Vaticano li) em 1964-1965. O papa queria que o concilio fizesse uma
declaração sobre os judeus, e pediu ao cardeal Bea que a providenciasse. “Entre esse
começo e o resultado temos talvez a história mais dramática do concílio.” 134
O documento do Vaticano ll sobre os não cristãos diz que a Igreja de Cristo reconhece que o
início da sua fé e eleição pode já ser encontrado com os patriarcas, Moisés e os profetas. A
igreja não pode esquecer que recebeu a revelação do Antigo Testamento do povo por meio
128 Dogmatics in Outline, 74.
129 K. H. Miskotte, When the Gods are Silent, x.
m Ibid., 77-78,81.
131 Barth, Dogmatics in Outline, 74.
m l b i d . ,n .
133 Miskotte, When the Gods are Silent, ix-x, 76-77.
134 Robert A. Graham, S. J., "Non-Christians", em The Documents o f Vatican II, ed. Walter M. Abbot, S. J. (Nova
York, Guild Press, 1966), 656.
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do qual Deus fez a aliança antiga. Do povo judeu procederam os apóstolos e a maioria dos
primeiros discípulos; porém Jerusalém não reconheceu o tempo da sua visitação (veja Lc
19.44), e os judeus não aceitaram o evangelho em grande número. Mesmo assim, os judeus
continuam sendo muito preciosos para Deus (Rm 11.28, 29). “A igreja espera o dia, que só
Deus conhece, em que todos os povos se dirigirão ao Senhor em uníssono e ‘o servirão de
comum acordo’” .135 Os documentos do Vaticano II absolvem os judeus de qualquer
acusação de deicidio e lamentam o ódio, as perseguições e as manifestações de antisemitismo voltadas contra os judeus em qualquer época e lugar.
As declarações do Vaticano II motivaram um grande número de diálogos entre cristãos e
judeus. A princípio, os judeus foram acusados de rejeitar Jesus e de não crer no evangelho.
Contudo, nos últimos anos parece que muitos líderes cristãos desculpam os judeus por não
crer no evangelho e por rejeitar Cristo, com base em que os judeus ainda são povo da
aliança de Deus e têm o direito de definir e interpretar quem são à luz da Bíblia hebraica. A
antiga idéia teológica de que o cristianismo ultrapassou o judaísm o foi colocada de lado por
muitos teólogos cristãos. N a introdução a um volume de palestras feitas na Universidade de
Notre Dame em 1989, os editores disseram que a alegação tradicional dos que afirmam a
superioridade do cristianismo, de que a religião bíblica encontra seu cumprimento
verdadeiro no cristianismo, inegavelmente fez com que o judaísm o antigo, medieval e
moderno fosse denegrido, e não pode ser inocentada do furor do anti-semitismo e do
holocausto no século XX. “ É uma pressuposição do diálogo apresentado neste volume de
que a idéia de substituição do Antigo Testamento não pode mais ser mantida.” 136
Muitos escritores cristãos estão fazendo outras concessões aos judeus, tentando, por
exemplo, mudar o nome “Antigo Testamento” para “ Bíblia hebraica” ou “ Primeiro
Testamento”, como sugeriu James Sanders.137 Sanders disse que o mundo pensante em geral
parece estar se acostumando com “Bíblia hebraica”. A expressão pode ser encontrada em
catálogos de seminários cristãos e nos nomes de livros e artigos. Uma publicação importante
recente da Society for Biblical Literature foi intitulada The Hebrew Bible and its Modern
Interpreters.l38
Alguns cristãos se sentem incomodados com o nome “Antigo Testamento” porque acham
que os judeus se sentem incomodados com ele.139 Jacob Neusner, no entanto, convenceu
muitos estudantes e especialistas de que o verdadeiro cânon do judaísm o não é o “ Antigo
Testamento” ou a Bíblia hebraica, mas o corpo rabínico do judaísm o formativo,
especialmente a M ishná e os Talmudes.140
135 Documents o f Vatican II, 664-665.
136 Roger Brooks e John J. Collins, eds., Hebrew Bible or Old Testament, 1.
137 'F irst Testament and Second", 47-49.
138 D. A. Knight and G. M. Tucker; veja também Norman K. Gottwald, The Hebrew Bible: a Socio-Literary
Introduction.
139 Sanders, Hebrew Bible or Old Testament, 41.
140 Formative Judaism, 2 vols.
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O termo “Antigo Testamento” tem sido rotulado de “ impróprio”, “anti-semita” e
“pejorativo” .141 M. Braybrooke disse que é melhor evitar o uso de “Antigo” e “Novo”
Testamentos porque implica, em especial para ouvidos judaicos, “que a igreja substituiu o
povo judaico e que Deus os abandonou porque mataram Jesus” .142 J. F. A. Sawyer, da
Universidade N ewcastle, sempre disse que o uso cristão do termo “Antigo Testamento” é
anti-semita, “demagógico, arrogante, opressor, simbolo da rejeição dos judeus, e
teologicamente indefensável”.143
Nem todos os estudiosos concordam com a afirmação de que o termo “ Antigo Testamento”
tem de ser abandonado. Roland Murphy continuou a usar “Antigo Testamento” porque é
tradicional (veja 2Co 3.14) e porque “antigo” não significa necessariamente “ultrapassado”
ou “obsoleto”.144
Uma das razões por que os cristãos não devem abandonar o termo “Antigo Testamento” é
que não existe outro termo que expresse adequadamente o sentido bíblico da “antiga” e da
“nova” aliança. R. W. L. Moberly sugeriu que os cristãos, antes de abandonar o uso dos
termos “Antigo” e “Novo” Testamento, devem fazer duas perguntas. Primeira: esses termos
expressam conteúdos tão essenciais que a integridade da fé cristã estaria ameaçada com seu
abandono? Segunda: se os termos são essenciais à fé cristã, eles necessariamente implicam
uma postura negativa diante dos judeus ou do judaísm o?
Moberly concluiu que a terminologia “Antigo” e “Novo” Testamentos é essencial. “É tão
necessário para o cristão que a fé centrada em Jesus sobrepuje de algumas maneiras a
religião do Antigo Testamento, assim como para os adeptos do javism o mosaico era
necessário que sua fé sobrepujasse de algumas maneiras a religião patriarca!” .,4S Há um
senso de continuidade em relação ao que veio antes, para o javism o mosaico e para o
cristianismo, mas também há o senso de um novo começo, que confere uma condição
normativa aos adeptos do novo e relativiza a importância do antigo ou anterior. Não é mais
possível que os adeptos da “nova era” continuem na antiga, do jeito que ela era. Qualquer
que seja a atração aparente para abandonar a terminologia “Antigo Testamento”,
“simplesmente não é possível para o cristão fazê-lo e continuar explicando a lógica da
posição diferente do cristão em relação ao judeu” .146
A segunda pergunta levantada por Moberly é: será que os termos “Antigo” e “Novo”
(Testamentos) necessariamente implicam uma conceituação negativa da fé judaica? A
resposta de Moberly é “não” . Ele fundamentou sua resposta com sua analogia de como o
141 Veja Moberly, The Old Testament o f the Old Testament, 159.
142 Time to Meet, 171, nota 16; veja C. M. Williamson e R. J. Allen, Interpreting Difficult Texts: Anti-Judaism and
Christian Preaching, 115.
143 "Combating Prejudices about the Bible and Judaism", 269-278; veja Moberly, The Old Testament o f the Old
Testament, 160.
144 "Canon and Interpretation", em Hebrew Bible or Old Testament, 11, nota I .
145 The Old Testament o f the Old Testament, 161.
146 R. W. L. Moberly, 161.
A HISTÓRIA DA TEOLOGIA DO ANTIGO TESTAMENTO
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javism o mosaico tratou a religião patriarcal e de como a igreja tratou o javism o mosaico. A
religião patriarcal adorava apenas um Deus, sem se opor a que os seguidores de outros
deuses os adorassem. No javism o mosaico, o prim eiro mandamento exigia de todo Israel a
adoração exclusiva de Javé. Gênesis não registra nenhum antagonismo ou oposição
patriarcal às práticas religiosas “pagãs” dos habitantes de Canaâ. O javism o mosaico, por
sua vez, proibiu a adoração de ídolos no segundo mandamento. Os patriarcas adoravam a
Deus onde quer que ele lhes tivesse aparecido. No javism o mosaico, apenas um lugar
acabou sendo legitimado como lugar para adorar e oferecer sacrifícios. Regras detalhadas e
rígidas regulamentavam os privilégios e responsabilidades dos sacerdotes no javism o
mosaico. A religião patriarcal tinha poucas dessas regras.
Poderíamos relacionar outras diferenças entre a religião patriarcal e a mosaica; o que se vê é
que o javism o mosaico não denegriu a religião patriarcal quando se sobrepôs a ela.
Respeitou-a e preservou os aspectos característicos da religião patriarcal como fundamentos
da sua própria fé, incluindo-os em seu “credo”, em que recitava os grandes atos de Deus (Dt
26.5-9).
Da mesma maneira, os cristãos devem respeitar a religião dos patriarcas e o javism o
mosaico como parte dos seus fundamentos religiosos e do seu “credo”. Em si, porém, o
cristianismo é algo novo. Algumas coisas do antigo são deixadas para trás. Há diferenças
fundamentais na maneira de cristãos e judeus usarem o Antigo Testamento. O Antigo
Testamento faz parte da Bíblia cristã, mas os cristãos o interpretam à luz de Jesus Cristo.
Seus ensinos rompem os odres velhos (Mt 9.17). Seu sangue era o sangue da nova aliança
(Mt 26.28).
Há uma diferença na m aneira de o javism o mosaico tratar a religião patriarcal e de os
cristãos tratarem o javism o mosaico. O javism o absorveu os patriarcas e seus descendentes
(com a possível exceção dos recabitas: 2Rs 10.15; Jr 35.2-11). A religião patriarcal não
sobreviveu como instituição separada. O javism o mosaico não sobreviveu no judaísm o sem
algumas mudanças básicas. No fundo, tanto judaísm o como cristianismo estão arraigados no
Antigo Testamento. O apóstolo Paulo disse: “Se alguns dos ramos foram quebrados, e tu,
sendo oliveira brava, foste enxertado em meio deles e te tom aste participante da raiz e da
seiva da oliveira, não te glories contra os ramos. [...] Pela sua incredulidade, foram
quebrados; tu, porém, mediante a fé, estás firme” (Rm 11.17-20).
O javism o mosaico não acabou quando Jesus veio. Foi absorvido e transformado no
judaísm o rabínico, que usou a Mishná e o Talmude para interpretar as formas antigas.
Perdura até hoje o debate acalorado sobre o relacionamento apropriado entre judeus e
cristãos. Joseph Blenkinsopp disse: “Nenhuma teologia do Antigo Testamento tem chance
de ser bem sucedida se perpetuar um entendimento preconceituoso e falso dos
desenvolvimentos durante o segundo acordo, um dos quais naturalmente foi o surgimento e
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consolidação do movimento cristão”.147 Também pode ser dito que provavelm ente não se
pode escrever uma teologia do Antigo Testamento bem sucedida sem uma compreensão
adequada da teologia do Novo Testamento.
Bruce Corley, deão da escola de teologia do Southwestem Baptist Theological Seminary,
iniciou um artigo no SW JT com uma referência à palavra que K. L. Schmidt dirigiu à Igreja
Confessante no auge do terror nazista. Schmidt apelou a Romanos 9-11 como chave da fé
em tempos perigosos. A esperança de Paulo para Israel foi proclamada como uma luz em
trevas ameaçadoras e não como um pingo de revelação, mas como manifestação da presença
de Deus. Corley disse: “0 clímax da palestra [de Schmidt] é: “A pergunta por Deus, a
pergunta pelo futuro, a pergunta pelos judeus, é a mesma pergunta” .148 Corley considerou a
afirmação de Schmidt um resumo bem equilibrado de Romanos 9-11. “ De fato, quando
Paulo analisa a questão da incredulidade, seus olhos acabam se voltando para a esperança
da salvação futura de Israel. Todo seu raciocínio, porém, origina-se de um a posição bem
marcada na história: a situação presente do Israel endurecido engrandece genuinamente a
fidelidade de Deus” .149 Deus foi fiel desde o princípio da sua obra de salvação. Ele não é
injusto (Rm 9.14), e não rejeitou o seu povo (11.1). Apesar de Israel como povo não ter
crido no evangelho, sua rejeição do evangelho é parcial (Rm 11.1-10) e temporária (v. 1127). Paulo acreditava que viria um tempo em que todo Israel seria salvo, quando e caso
cresse no evangelho (Rm 11.23).
Corley advertiu o leitor quanto a ver particularismo, dispensacionalismo ou universalismo
nessa passagem. Nada se diz sobre “a restauração da teocracia na terra da Palestina ou sobre
a salvação automática de todo judeu, vivo ou morto!”.150
A grande extensão desse excurso sublinha a importância das questões envolvidas no
relacionamento entre judeus e cristãos. Até aqui, os debates e diálogos levantaram muito
mais perguntas do que as responderam. A busca por respostas e soluções tem de continuar.
B. O interesse na teologia do Antigo Testamento e no fluxo da respectiva
literatura a partir de 1985
Em 1985, Thomas E. McComiskey do Trinity Evangelical Seminary
escreveu The Covenants o f Promise: a Theology o f the Old Testament Covenants.
Esse livro vê a aliança como centro das ações de Deus na história, da criação até o
fim dos tempos. Apesar de o autor usar princípios modernos de exegese, o livro
147 "Old Testament Theology and the Jewish-Christian Connection”, 11.
148 Corley, “The Jews, the future, and God", 42.
149 Corley, 42.
15° «jjjg j ew s ,j,e future
God", 55.
A HISTÓRIA DA TEOLOGIA DO ANTIGO TESTAMENTO
65
essencialmente não é crítico. Recorre muito ao Novo Testamento e é bastante
influenciado pela teologia da aliança. Contudo, ele reflete a continuação do
interesse na teologia do Antigo Testamento.
Bem diferente de The Covenants o f Promise, de McComiskey, é o último
livro de Brevard Childs, Old Testament Theology in a Canonical Context. Trata-se
de um volume pequeno, de 250 páginas. Por essa razão, é apenas um resumo ou
esboço do entendimento de Childs do que deve constituir a forma e o conteúdo de
uma teologia do Antigo Testamento. A análise dos diversos tópicos em seus vinte
capítulos é bastante telegráfica. Ele foi coerente ao continuar a dar ênfase na
abordagem canônica das Escrituras, postura que tem tido desde o fim da década de
1960 (suas primeiras duas obras, Myth and Reality in the Old Testament [1960] e
Memory and Tradition in Israel [1962] não mencionam o cânon).
Pode-se detectar na obra mais recente de Childs a influência de Eichrodt,
von Rad e Zimmerli, mas ele foi além deles. Childs enfatiza muito o Antigo
Testamento como revelação. O decálogo sempre ocupou um lugar de destaque na
teologia do Antigo Testamento para Childs. Ele tratou de eleição e aliança, das
instituições de Israel e seus oficiais, da ética do Antigo Testamento, condenação e
promessa. Seguiu um esquema sistemático modificado, e o livro contém
bibliografias importantes no fim de cada capítulo.
Mais recentemente, Childs trouxe a público sua estrutura de uma teologia
bíblica completa (Biblical Theology o f the Old and New Testaments). Ele mostra o
“testemunho discreto”, primeiro do Antigo e depois do Novo Testamento; depois
exemplifica a exegese no contexto da teologia bíblica, trabalhando com Gênesis
22.1-19 como akedah e Mateus 21.33-46.
Por último, ele faz reflexão teológica sobre a Bíblia cristã, esboçando o
testemunho do Antigo Testamento e a posição do judaísmo e do Novo Testamento
sobre temas importantes. Em seguida traça a linha que vai da teologia bíblica para a
dogmática e reflete sobre isso.
Em 1988, Jesper Hogenhaven publicou uma pequena monografia sobre
Problems and Prospects o f Old Testament Theology.m Essa obra resultou de um
seminário no Queens College em Oxford em 1983, e originalmente foi publicada
em dinamarquês. Hogenhaven propôs fazer das principais categorias literárias do
Antigo Testamento (literatura de sabedoria, de salmos, narrativa, legal e profética)
a estrutura da teologia do Antigo Testamento.
Christoph Barth (1917-1986), o segundo filho de Karl Barth, passou boa
parte da sua vida na Indonésia ministrando educação teológica, mas também atuou
doze anos como professor de Antigo Testamento em Mainz, na Alemanha. No
151 JSOT Press.
66
T e o l o c ia
do
A n t ig o T e s t a m e n t o
prefácio ao seu livro God With Us152 somos informados de que ele quis escrever um
livro de referência “que apurasse os ouvidos dos alunos, de modo que, ouvindo o
que Deus disse e fez no passado, estivessem abertos ao que o Espírito de Deus diz e
faz hoje” (viii).
Na verdade, o livro é produto do trabalho editorial de Geoffrey Bromiley,
do Fuller Seminary. Com a permissão da esposa de Christoph Barth, Bromiley
reuniu as anotações e palestras do Dr. Barth e as preparou para publicação. O
mundo da pesquisa do Antigo Testamento está em dívida com Bromiley e William
B. Eerdmans, Jr. por terem colocado esse material à disposição.
O método é uma tentativa de expor a mensagem do Antigo Testamento de
uma maneira que seja fiel ao Antigo Testamento em si — isto é, como um relato das
ações poderosas de Deus, e não como doutrinas abstratas. Os títulos dos nove
capítulos são: 1) Deus criou céu e terra; 2) Deus escolheu os pais de Israel; 3) Deus
tirou Israel do Egito; 4) Deus conduziu seu povo pelo deserto; 5) Deus se revelou
no Sinai; 6) Deus entregou a Israel a terra de Canaã; 8) Deus escolheu Jerusalém;
9) Deus enviou seus profetas. É um livro de leitura inspirativa e proveitosa.
Outra obra importante sobre teologia do Antigo Testamento é uma
compilação de 22 artigos publicados anteriormente. Ben C. Ollenburger, Elmer A.
Martens e Gerhard F. Hasel selecionaram, prefaciaram e, em alguns casos,
traduziram esses artigos de renomados estudiosos do Antigo Testamento. O livro é
chamado The Flowering o f Old Testament Theology (1992).
Talvez um livro que não é chamado “teologia do Antigo Testamento” mas
trata de muitos temas da teologia do Antigo Testamento deva ser mencionado aqui.
É The World o f Ancient Israel, editado por R. E. Clements. Ele estuda o contexto
histórico e cultural de Israel, a monarquia, a lei, a profecia, a sabedoria, a literatura
apocalíptica, a santidade, a aliança, a mulher e vida e morte.
Síudies in Old Testament Theology (1992) é um Festschrift para David A.
Hubbard, editada por seu sobrinho Robert L. Hubbard, Jr., Robert K. Johnston e
Robert P. Meye. Essa compilação abrange 14 artigos relacionados com o estudo do
Antigo Testamento.
Começamos este capítulo dizendo que a história da teologia do Antigo
Testamento “é longa, fascinante e sinuosa”. Até aqui foi longa. É fascinante no
sentido de que intriga e cativa a mente do leitor sério. Levanta questões de vida e
morte. Às vezes é sinuosa; ficamos atolados em minúcias e perdidos em muitas idas
e vindas. Mas não podemos parar. Temos de avançar para a questão da natureza e
do método da teologia do Antigo Testamento.
152 Eerdmans. 1991.
2
A natureza e o método da teologia
do Antigo Testamento
8. A natureza da teologia do Antigo Testamento
A. Nenhuma definição universalmente aceita
Q u e é te o lo g ia d o A n tig o T e sta m e n to ? U m a in sp eç ão d o s liv ro s b ásico s
so bre a te o lo g ia d o A n tig o T e sta m e n to esc rito s n os ú ltim o s 50 a n o s m o stra p o u ca
co n co rd ân c ia q u a n to à n atu reza, ta re fa e m e to d o lo g ia d e ssa d isc ip lin a . John
M cK en z ie disse: "A te o lo g ia b íb lic a é a ú n ica d isc ip lin a ou su b d isc ip lin a no ca m p o
d a teo lo g ia q u e c a re c e d e p rin c íp io s, m é to d o s e e stru tu ra que receb am a ce ita çã o
geral. N em m e sm o ex iste u m a d e fin iç ã o geral d e seu p ro p ó sito e e sc o p o " .1 G erh ard
von R ad esc re v e u q u e "não ex iste até o m o m en to a c o rd o q u a n to ao q u e re a lm e n te é
o a ssu n to [...] d a te o lo g ia d o A n tig o T e sta m e n to ".2
1 A Theology o f the Old Testament, 15.
2 Old Testament Theology /, v (publicado no Brasil pela
a s te
como Teologia do Antigo Testamento).
68
T f.o l o c ia
do
A n t ig o T e s t a m e n t o
B. O Antigo Testamento contém "teologia"?
Alguns estudiosos relutam em dar o nome "teologia" a qualquer estudo que
se limite ao Antigo Testamento ou mesmo a toda a Bíblia. James Barr disse que
teologia significa o estudo de Deus, mas o estudo de Deus não deve ser limitado ao
Antigo Testamento ou à Bíblia. Para Barr, a teologia deve incluir o estudo de
história, filosofia, psicologia e o mundo natural, junto com a Bíblia.
Para alguns, teologia bíblica não é de fato teologia porque limita-se aos
dados bíblicos e organiza-os de maneira descritiva. Para a maior parte dos teólogos
sistemáticos, a teologia é um construto crítico moderno e "um refinamento de
nossos conceitos de Deus em Cristo e na Igreja".3
Para a maior parte dos teólogos hoje, a teologia do Antigo Testamento
"deriva da reflexão teológica sobre um corpo de textos bíblicos recebido".4 A
teologia do Antigo Testamento é mais uma disciplina normativa que uma disciplina
meramente descritiva.
A palavra teologia pode ser em si fonte de confusão porque tem sido usada
de muitos modos diferentes. A palavra não ocorre no Antigo ou no Novo
Testamento. Platão e Aristóteles a empregaram no sentido de "ciência das coisas
divinas", idéia que pode insinuar que as coisas divinas podem ser compreendidas
só com o intelecto. Terrien opôs-se a essa definição de Platão e Aristóteles. Ele
disse que, no Antigo Testamento, a expressão mais próxima de teologia é "o
conhecimento de Deus". Essa expressão indica uma realidade que induz e
transcende a investigação e a discussão intelectual. "Ela designa a presença de
Javé."5
No sentido hebraico de "o conhecimento de Deus", a teologia não se refere
a uma ciência objetiva de coisas divinas, mas usa as faculdades críticas da mente.
Ela provém de um compromisso interno com a fé e também de uma participação
no destino de um povo.
C. É preciso que a teologia seja normativa?
Pode o termo teologia ser usado para designar um estudo descritivo,
fenomenológico da religião de Israel? Ou é preciso que a teologia seja normativa e
correlata ao Novo Testamento e à teologia dogmática? James L. Mays perguntou:
3 Ban, "The Theology Case Against Biblical Theology" em Canon, Theology and Old Testament Interpretation",
9.
4 Childs, Old Testament Theology in a Canonical Context, 6.
5 The Elusive Presence, 41.
A NATUREZA E O MÉTODO DA TEOLOGIA DO ANTIGO TESTAMENTO
69
"Uma descrição abrangente do Antigo Testamento ainda é teologia à parte de uma
correlação com o Novo Testamento ou de uma coordenação com as categorias da
dogmática? Ou o assunto da teologia pode ser esclarecido a partir do próprio
Antigo Testamento?".6 Tanto Eichrodt como von Rad limitaram suas discussões da
teologia do Antigo Testamento basicamente aos dados veterotestamentários.
Alguns estudiosos ainda recusam-se a ligar o termo teologia a algum
estudo descritivo e histórico. Eles insistem que teologia implica experiência,
compromisso e fé. Norman Porteous limitaria a teologia a uma ciência normativa.
Ele disse: "É possível, claro, e à sua maneira legítimo usar a palavra ‘teologia’ de
maneira perfeitamente inócua como um nome para a exposição sistemática de
crenças sustentadas pelos adeptos [...] de alguma religião particular. Qualquer
estudioso com o conhecimento requerido poderia escrever tal teologia, e o
resultado bem poderia ser valioso e esclarecedor para certos propósitos".7
Porteous alegou também que a teologia é uma disciplina "ligada ao
conhecimento de Deus". Ele afirmou que, na concepção bíblica, o conhecimento de
Deus não significa mera cognição, mas envolve as emoções e a vontade, não
menos que o intelecto. Assim, se o teólogo bíblico não possui ele mesmo o
conhecimento de Deus, "então, a rigor, o objeto de seu estudo desaparece de
vista".*
Porteous também perguntou:
Seria tarefa do teólogo do Antigo Testamento determinar com a maior
precisão possível e expor algum sistema que possa imaginar o que criam
os hebreus, nos tempos do Antigo Testamento, acerca de Deus e acerca de
si mesmos em relação a Deus, e de que maneiras concretas davam
expressão ao que criam? Não há dúvida nenhuma acerca da importância
de cum prir tal tarefa. Ela representa um passo indispensável rumo à
apropriação correta do Antigo Testamento. Mas o que o cumprimento
dessa tarefa nos forneceria é, a rigor, mais uma fenomenologia religiosa
do Antigo Testamento que uma teologia.9
Para Porteous, então, qualquer estudo que leve o nome Teologia do Antigo
Testamento deve ser considerado normativo em algum sentido para quem está
realizando o estudo. Parece que isso limitaria os que poderiam escrever uma
teologia do Antigo Testamento aos cristãos e judeus. H. Wheeler Robinson disse:
"Vamos nos lembrar constantemente que essa religião, como qualquer outra, só
6 James L. Mays, "Historical and Canonical: Recent Discussion About the Old Testament and the Christian Faith",
Magnolia Dei, ed. F. M. Cross, Lemke and Miller, 510-530.
7 Living the Mystery, 22-23.
8 Ibid., 23.
9 Ibid., 36-37.
70
T e o l o g ia
do
A n t ig o T e s t a m e n t o
pode ser compreendida de dentro ou por meio de uma harmonia de sentimentos que
nos tome ‘estrangeiros residentes’ (gerim) nela".10 De acordo com essa idéia, a
teologia do Antigo Testamento é normativa, relevante e contemporânea.
Recentemente John Goldingay defendeu essa idéia com vigor. Goldingay
disse que a tarefa de escrever uma teologia do Antigo Testamento não é
[...] uma tarefa meramente reconstrutora. Não estamos meramente
reformulando a fé expressa explicitamente ou pressuposta de maneira
implfcita por uma comunidade de fiéis da época do Antigo Testamento,
para compreender a fé do Antigo Testamento por si, mas formulando as
implicações teológicas daquela fé de maneira que fiquem esclarecidas
para nós como membros de uma comunidade de fiéis em nossos dias” .11
Essa concepção não é unânime entre os estudiosos da Bíblia. Pode
surpreender alguns leitores ouvir um estudioso conservador como F. F. Bruce dizer
que "uma teologia sistemática do Antigo Testamento não precisa ser
distintivamente cristã; pode ser igualmente judaica, e a norma, então, seria a
tradição rabínica, em lugar do cumprimento neotestamentário".12
E tarefa da teologia do Antigo Testamento tomar contemporânea e
normatizar a mensagem teológica do Antigo Testamento? Se for, isso representa
um distanciamento importante do propósito percebido por Gabler e muitos que o
seguiram. A. B. Davidson disse: "Teologia bíblica é o conhecimento da grande
operação de Deus ao introduzir seu reino entre os homens, apresentada à nossa
vista exatamente como na Bíblia".13 G. E. Wright disse que a teologia bíblica é o
recital confessional dos atos redentores de Deus numa história em particular.14John
Bright escreveu:
A tarefa da teologia bíblica é essencialmente descritiva. Ela não possui,
como teologia bíblica, a tarefa de defender a validade da fé bíblica ou de
apresentar sua importância na época — embora o teólogo bíblico, como
professor e ministro da igreja, bem possa estar e, aliás, precise estar,
preocupado de maneira vital e incessante justam ente com essas coisas.15
Precisamos admitir que nosso interesse na mensagem do Antigo
Testamento é mais que uma curiosidade passageira. Queremos saber o que as
10 Inspiration and Revelation in the Old Testament, 281-282.
11 Theological Diversity and the Authority o f the Old Testament, 111.
12 T h e Theology and Interpretation o f the Old Testament”, Tradition and Interpretation, 386.
13 Old Testament Theology, 1.
14 God Who Acts, 13 (no Brasil, O Deus que Age, pela a s t e )
15 The Authority o f the Old Testament, 115.
A NATUREZA E O MÍTODO DA TEOLOGIA DO ANTIGO TESTAMENTO
71
pessoas do Antigo Testamento criam a respeito de Deus, conhecer a relação entre
Deus e as pessoas e o mundo, porque cremos que o Antigo Testamento é a
revelação de Deus sobre assuntos como esse naquele período. Concordamos que a
teologia trata da revelação e do conhecimento de Deus e que a revelação do Antigo
Testamento é válida em toda sua extensão. Vriezen estava correto em concordar
com a definição de teologia dada por Haitjema como "o pensamento da fé que
brota da revelação".16
Roland de Vaux disse:
A Bíblia é considerada Escritura sagrada não só por conter história
sagrada, mas principalmente por ter sido escrita sob inspiração de Deus
para expressar, preservar e transmitir a revelação de Deus para os homens.
O objeto de uma teologia não pode, portanto, restringir-se, como
entenderia von Rad, à definição das m aneiras pelas quais Israel concebia
seu relacionamento com Deus e à consciência de Israel de que Deus
intervinha na história. O teólogo, aceitando o Antigo Testamento como
Palavra de Deus, busca ali o que o próprio Deus quis ensinar por meio da
história e também a nós.'7
É difícil definir teologia do Antigo Testamento. Ela é descritiva no sentido
de descrever o que Deus e o povo fizeram e disseram, segundo registrado no
Antigo Testamento, e basear-se nisso. Ela deve incluir todos os dados do Antigo
Testamento. Para os protestantes, esses dados limitam-se principalmente ao texto
massorético. Para os católicos, podem incluir os apócrifos. A teologia do Antigo
Testamento é teológica. Ela não se preocupa meramente em recitar a história de
Israel ou em recontar o que Deus fez com Israel e para Israel. O Antigo Testamento
é Escritura inspirada e possui uma mensagem de Deus para todos os tempos. A
teologia do Antigo Testamento é uma "reflexão", uma "interpretação" e um
"construto" dos dados teológicos no Antigo Testamento pertinentes para nós.
16 An Outline o f Old Testament Theology, 145, nota 6.
17 The Bible and the Ancient Near East, 58.
72
T e o l o g ia
do
A n t ig o T e s t a m e n t o
9. O método da teologia do Antigo Testamento
A. Nenhum método único, natural ou óbvio
Como devemos fazer uma teologia do Antigo Testamento? A maioria das
disciplinas acadêmicas possui um modo "natural" ou "inerente" de apresentar sua
matéria. As teologias dogmáticas costumam seguir algum tipo de tratamento
sistemático lógico. As introduções ao Antigo Testamento seguem o mesmo esboço
natural de tratar assuntos gerais, tais como cânon e texto, seguidos de discussões
sobre cada livro do Antigo Testamento. A teologia do Antigo Testamento, porém,
não parece possuir um método natural de apresentação de seu material.
As mais antigas teologias bíblicas ou teologias do Antigo Testamento
usavam o método sistemático ao seguir as categorias da teologia dogmática:
teologia, antropologia e soteriologia. O método sistemático ainda era usado em
1935, quando Ludwig Köhler publicou sua Old Testament Theology, mas muitos
métodos diferentes vêm sendo usados desde então.
Em 1975 Gerhard Hasel disse que estavam em voga cinco métodos
principais distinguíveis, mas não mutuamente exclusivos.18 De acordo com Hasel,
os cinco principais métodos para fazer teologia do Antigo Testamento eram: (1) o
Método Descritivo; (2) o Método Confessional; (3) o Método Transversal, (4) o
Método Diacrônico e (5) o Novo Método da Teologia Bíblica. Os cinco principais
métodos de Hasel sobrepõem-se uns aos outros e não se distinguem com nitidez.
Em sua edição revisada de 1982, Hasel ampliou para nove o número de principais
métodos em voga. Em 1991, Hasel publicou sua quarta edição de Old Testament
Theology: Basic Issues in the Current Debate, expandindo seu tratamento 14
páginas desde a terceira edição. Ele acrescentou um novo método, "Recent Criticai
Old Testament Theology Methods",19elevando o número de métodos a dez.
Os dez métodos de Hasel, junto com representantes de cada um são:
( 1 ) 0 Método Dogmático-Didático é o método tradicional de organizar a
teologia do Antigo Testamento com categorias sistemáticas: teologia, antropologia
e soteriologia. Old Testament Theology de Ludwig Köhler é um bom exemplo do
uso desse método.
18 Old Testament Theology: Basic Issues, 35 (no Brasil, Teologia do AT, pela JUERP).
19 P. 94.
A NATUREZA E O MÉTODO DA TEOLOGIA DO ANTIGO TESTAMENTO
73
(2) O Método Genético-Progressivo apresenta o desenrolar da revelação de
Deus conforme a Bíblia o apresenta. As obras de Geerhardus Vos’ e Chester K.
Lehman empregam esse método.
(3) O Método Transversal é uma tentativa de combinar as abordagens
temática e diacrônica. Walther Eichrodt foi o principal exemplo dessa abordagem.
Ele tomou a idéia da aliança e tratou suas ocorrências em todo o Antigo
Testamento enquanto falava acerca do Deus da aliança, do povo da aliança e das
instituições da aliança.
(4) O Método Tópico emprega tópicos extraídos apenas do Antigo
Testamento para organizar uma discussão de sua teologia. Old Testament Theology
de John McKenzie é o melhor exemplo desse método.
(5) O Método Diacrônico depende do método histórico-tradicionário de
interpretação desenvolvido na década de 1930 por von Rad e seus companheiros.
Trata-se de uma narração do querigma, "os atos salvíficos de Deus", conforme
dispostos nas confissões de Israel. Ele penetra nas sucessivas camadas de tradições
recitadas e reconstitui o crescimento da fé israelita de período em período. Von
Rad foi o único autor de uma teologia diacrônica do Antigo Testamento totalmente
desenvolvida.
(6) O Método da Formação da Tradição é representado na obra de Hartmut
Gese. Este insistia que só há uma teologia bíblica realizada por meio da formação
da tradição do Antigo Testamento, a qual se encerra no Novo Testamento.20
(7) O Método Temático-Dialético é representado por três proeminentes
estudiosos do Antigo Testamento: Samuel Terrien, Claus Westermann e Paul
Hanson. Esses três estudiosos têm apresentado uma dialética predominante da
" é tic a /e s té tic a " (T e rrie n ), "liv ra m en to /b ên ção " (W esterm an n ) e
"teleológica/cósmica" (Hanson). Esse método tem sido útil ao permitir que o leitor
veja como ênfases opostas podem relacionar-se para expandir o entendimento de
um problema maior.
(8) Métodos "Críticos" Recentes de Teologia do Antigo Testamento. Essa é
a mais nova categoria de Hasel. Esse método é o de estudiosos como James Barr e
John J. Collins, que não escreveram uma teologia do Antigo Testamento e têm
sérias dúvidas quanto ao futuro da disciplina.
(9) O Método da Nova Teologia Bíblica. Esse método lida com o problema
da relação entre o Antigo e o Novo Testamento. Brevard Childs crê que é possível
fazer uma teologia do Antigo Testamento e uma teologia do Novo Testamento
separadamente, juntando-as depois. Ele fez uma teologia do Antigo Testamento e
20 "Tradition and Biblical Theology", em Knight, Tradition and Theology, 322.
74
T f.o i .o c ia
do
A n t ig o T e s t a m e n t o
uma teologia bíblica separada. Childs insiste que só a forma final do texto bíblico
no cânon que temos agora é Escritura e autorizada.21
(10)
Teologia Canônica Múltipla do Antigo Testamento é um resumo
concepção de teologia do Antigo Testamento adotada por Hasel. Primeiro, ele
entende que a teologia do Antigo Testamento deve estar ligada à forma canônica
final do Antigo Testamento. Isso exclui as abordagens da história da religião e da
história das tradições. Segundo, uma teologia do Antigo Testamento deve ser
temática, em vez de lidar com um conceito central ou chave. Terceiro, a estrutura
deve ser múltipla, o que evita as armadilhas dos métodos transversal, genético e
tópico. Quarto, o objetivo final de uma teologia do Antigo Testamento é penetrar
nas várias teologias de cada livro e grupos de escritos chegando à unidade
dinâmica que liga todas as teologias e temas.
Por fim, de acordo com Hasel, a teologia cristã entende que a teologia do
Antigo Testamento faz parte de um todo maior. A teologia do Antigo Testamento
não é igual à teologia do Israel antigo e implica o todo maior da Bíblia inteira,
formada pelos dois Testamentos.
Essas propostas de uma teologia canônica do Antigo Testamento
procuram considerar com seriedade a rica variedade teológica dos textos
do Antigo Testamento em sua forma final, sem forçar os testemunhos
multiformes numa única estrutura, um ponto de vista não linear ou mesmo
uma abordagem composta de natureza limitada. Ela permite plena
sensibilidade tanto para as semelhanças como para as mudanças, bem
como para o antigo e o novo, sem a mínima distorção dos textos.22
Por que tantos teólogos do Antigo Testamento usaram tal variedade de
métodos para apresentar a teologia do Antigo Testamento? Porque no próprio
Antigo Testamento não se insinua nenhum método inerente ou "natural" e porque
cada teólogo do Antigo Testamento aborda a tarefa de uma perspectiva diferente,
além de poder ter alvos distintos.
B. Chaves metodológicas no Antigo Testamento
Será que o Antigo Testamento possui alguma explicação de como fazer
teologia do Antigo Testamento? Claus Westarmann respondeu sim, dizendo:
Se desejarmos descrever o que o Antigo Testamento como um todo diz
acerca de Deus, precisamos começar examinando como se apresenta o
21 Veja um bom Fesumo da abordagem de Childs em Hasel (1991), 103-111.
22 Old Testament Theology: Basic Issues, 4. ed., 114.
A NATUIfEZA E O MÉTODO DA TEOLOGIA DO ANTIGO TESTAMENTO
75
Antigo Testamento [...] “O Antigo Testamento conta uma história” (G.
von Rad). Com essa declaração chegamos à nossa primeira decisão acerca
da forma de uma teologia do Antigo Testamento: se o Antigo Testamento
relata o que tem a dizer em forma de uma história (compreendida aqui no
sentido mais amplo de evento), então a estrutura de uma teologia do
Antigo Testamento deve ser baseada mais em eventos que em conceitos.21
Contar uma história é mesmo o único meio que o Antigo Testamento tem
para apresentar sua mensagem? O Antigo Testamento é só um relato da história de
Israel? Nada disso é verdade; ainda assim, a forma narrativa da maior parte do
Antigo Testamento nos dá uma pista da natureza e da forma da teologia do Antigo
Testamento. Os hebreus sabiam como era Deus por meio das coisas que ele havia
feito.
Walter Kaiser alegou ter encontrado o modo "bíblico" de fazer teologia do
Antigo Testamento, embora tal modo deva excluir todos os "resultados garantidos"
da crítica da fonte. Essa crítica apagou os vinculadores textuais de cada avanço em
"palavra, evento e tempo" de um tema central unificador (a Promessa) que corre
por boa parte do Antigo Testamento. Kaiser ainda asseverou que, ao ouvir o cânon
como testemunha canônica de si mesmo, descobre-se que cada evento ou
significado antecedente foi transmitido de uma figura-chave, geração, país ou crise
para outro por vinculadores apagados ou atribuídos pela crítica a "redatores
piedosos ou mal-orientados". Ele concluiu dizendo que "a teologia bíblica sempre
permanecerá uma espécie em extinção até que os modos brutos da crítica das
fontes imaginária, da história da tradição e de certos tipos de crítica da forma
tenham sido detidos".24
A maior parte dos teólogos do Antigo Testamento não se convenceu pelas
alegações de Kaiser. Eles não se dispõem a abandonar o uso da fonte, da forma, da
história da tradição ou da crítica canônica ao fazer teologia do Antigo Testamento.
Entretanto, as alegações de Kaiser ainda não foram refutadas.
Existiriam no Antigo Testamento outras explicações de como fazer
teologia do Antigo Testamento? Algumas chaves podem ser encontradas em certos
"credos" ou "confissões de fé contidos no Antigo Testamento. Alguns desses
credos são históricos e, outros, não históricos. A forma do cânon (Torá, Profetas e
Escritos) também pode proporcionar uma chave do método da teologia do Antigo
Testamento.
Gerhard von Rad foi o primeiro estudioso do Antigo Testamento a chamar
a atenção para os credos históricos no Antigo Testamento. Em The Problem o f the
23 Elements o f Old Testament Theology, 9 (no Brasil, Teologia do AT, pela Paulinas).
24 Toward an Old Testament Theology, 9 (no Brasil, Teologia do Antigo Testamento, pela Vida Nova).
76
T e o l o g ia
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A n t ig o T e s t a m e n t o
Hexateuch and Other Essays25e em Old Testament Theology, I,26 von Rad alegou
que o Hexateuco tem como centro uma confissão primitiva de fé israelita,
encontrada em Deuteronômio 26.5-9:
Arameu prestes a perecer foi meu pai, e desceu para o Egito, e ali viveu
como estrangeiro com pouca gente; e ali veio a ser naç3o grande, forte e
numerosa. Mas os egípcios nos maltrataram, e afligiram, e nos impuseram
dura servidão. Clamamos ao SENHOR, Deus de nossos pais; e o SENHOR
ouviu a nossa voz e atentou para a nossa angústia, para o nosso trabalho e
para a nossa opressão; e o S e n h o r nos tirou do Egito com poderosa mão,
e com braço estendido, e com grande espanto, e com sinais, e com
milagres; e nos trouxe a este lugar e nos deu esta terra, terra que m ana
leite e mel.
Essa confissão histórica tem como contexto a oferta do dízimo (Dt 26.1-4)
e contém três elementos básicos: (1) o chamado dos patriarcas (26.56), (2) o êxodo
do Egito (26.8) e (3) a dádiva da terra de Canaã (26.9).
Von Rad alegou que esse credo histórico, que recita os grande atos
redentores de Deus, foi mais tarde expandido para incluir a criação e a aliança de
Deus com Davi. Diferentes formas desse credo histórico são encontradas em
muitas partes do Antigo Testamento (Dt 6.20-24; Js 24.2-13; ISm 12.7-8; Ne 9.637; SI 77.12-20; 78; 105; 136). Esses credos que recitam os grandes atos redentores
de Deus foram um dos principais meios que Israel tinha para confessar sua fé.
Diferente do Novo Testamento e do movimento cristão primitivo, que expressavam
a fé com substantivos que representavam idéias absolutas e abstratas tomados da
língua grega, o Antigo Testamento expressava sua fé principalmente com verbos de
ação como salvar, libertar, julgar e abençoar}1
G. Emest Wright disse: "Um evento é expresso por meio de um sujeito
conjugando um verbo [...] Termos e conceitos universais não se declinam; não
estão em movimento histórico; são definidos e relacionados uns aos outros como
substantivos e adjetivos, principalmente pelos verbos de ligação ‘ser ou estar’".2* A
linguagem do Antigo Testamento é centrada em verbos, não em substantivos: o
Antigo Testamento não possui substantivos que designem revelação, eleição ou
escatologia.
Em muitas partes do Antigo Testamento, dá-se grande ênfase à transmissão
da tradição dos grandes atos de salvação de Deus. Em cultos festivos, as crianças
25 1966.
24 1962.
27 Cf. Weslcrmann, Elements o f Old Testament Theology, 10.
2* The O ld Testament and Theology, 44-45.
A NATUREZA E O MÉTODO DA TEOLOGIA DO ANTIGO TESTAMENTO
77
eram ensinadas a perguntar o significado dos rituais, e os pais respondiam
recitando os grandes atos de Deus (Êx 13.14-16; Dt 6.20-24; Js 4.6-7, 21-24). Os
salmos referem-se com frequência às narrativas, feitas durante a adoração, desses
grandes atos redentores:
A posteridade o servirá;
falar-se-á do Senhor à geração vindoura.
Hão de vir anunciar a justiça dele;
ao povo que há de nascer,
contarão que foi ele quem o fez.
(SI 22.30-31)
Percorrei a Siâo, rodeai-a toda,
contai-lhe as torres;
notai bem os seus baluartes,
observai os seus palácios,
para narrardes às gerações
vindouras que este é Deus,
o nosso Deus para todo o sempre;
ele será nosso guia até à morte.
(SI 48.12-14)
não o encobriremos a seus filhos;
contaremos à vindoura geração
os louvores do S enhor , e o seu poder,
e as maravilhas que fez.
Ele estabeleceu um testemunho em Jacó,
e instituiu uma lei em Israel,
e ordenou a nossos pais
que os transmitissem a seus filhos,
a fim de que a nova geração os conhecesse,
filhos que ainda hão de nascer se levantassem
e por sua vez os referissem aos seus descendentes;
para que pusessem em Deus a sua confiança
e não se esquecessem dos feitos de Deus,
mas lhe observassem os mandamentos;
e que não fossem, como seus pais,
geração obstinada e rebelde,
78
T e o l o g ia
do
A n t ig o T e s t a m e n t o
geração de coração inconstante,
e cujo espirito não foi fiel a Deus.
(SI 78.4-8)
Rendei graças ao SENHOR, invocai o seu nome,
fazei conhecidos, entre os povos, os seus feitos.
Cantai-lhe, cantai-lhe salmos;
narrai todas as suas maravilhas.
Gloriai-vos no seu santo nome;
alegre-se o coração dos que buscam o SENHOR.
Buscai o S enhor e o seu poder;
buscai perpetuamente a sua presença.
Lembrai-vos das maravilhas que fez,
dos seus prodígios e dos juízos de seus lábios.
(SI 105.1-5)
Essa forma de recitar os atos de salvação de Deus tomou-se a base da
pregação dos apóstolos. Eles acrescentaram à lista o último e apoteótico ato de
salvação de Deus, a saber, a morte e ressurreição de Jesus (compare At 7.2-53;
13.16-41).
Outra confissão ou credo notável, mas totalmente diferente, encontra-se em
Êxodo 34.1-7 (tradução do autor):
Javé, Javé, um Deus compassivo e bondoso, tardio em irar-se e grande em
devoção e fidelidade, mantendo a devoção, perdoando a iniquidade e a
transgressão e o pecado, mas de modo algum dispensando (o culpado),
visitando a iniqüidade dos pais nos filhos e nos filhos dos filhos até a
terceira e quarta (geração).
Essa passagem, que chamamos não histórica, é citada ou refletida em muitas outras
partes do Antigo Testamento (Nm 14.18; 2Cr 30.9; Ne 9.17, 31; SI 86.15; 103.8;
111.4; 112.4; Jr 30.1 lè; 32.18; Jl 2.13; Jn 4.2). G. Emest Wright disse: "O que
mais se aproxima de uma apresentação abstrata da natureza de Deus por meio de
seus ‘atributos’ na Bíblia é uma antiga confissão litúrgica encravada em Êxodo
34.6-7 [...] Essa confissão é uma das pouquíssimas na Bíblia que não é um recital
de eventos".29
No Pentateuco, conforme se encontra agora, essa confissão faz parte de um
relato de teofania em que o nome de Javé é proclamado ou revelado. Sem dúvida, a
29 God Who Acts, 85.
A NATUREZA E O MÉTODO DA TEOLOGIA DO ANTIGO TESTAMENTO
79
referência à bondade de Deus (Êx 34.6) está relacionada com a promessa anterior:
"... terei misericórdia de quem eu tiver misericórdia" (Êx 33.19). A referência a
Deus visitando a iniqüidade dos pais em seus filhos (Êx 34.7) está com certeza
ligada à ameaça de julgamento: "... no dia da minha visitação, vingarei, neles, o seu
pecado" (Êx 32.42Í»).
Essa passagem (Êx 34) destaca-se de seu contexto e da maioria das
formulações teológicas do Antigo Testamento por sua natureza "proposicional".
Ela não é querigmática, mas descritiva; não se ocupa dos atos de Deus, mas com
seu caráter. Essa passagem mantém em tensão "o Deus que ama e o Deus que
pune". Assim, temos alguma base bíblica para fazer teologia do Antigo Testamento
pelo uso de declarações "proposicionais" modificadas acerca da natureza e do
caráter de Deus.
Esse credo não histórico conclui dizendo que "Deus visita a iniqüidade dos
pais em seus descendentes por algumas gerações", declaração omitida em todas as
citações dessa passagem ou referências posteriores a ela. Essa última parte da
passagem destaca o fato inevitável de que é comum os filhos sofrerem pelas falhas
dos pais, evidência de que o pecado não floresce sem retribuição. Qualquer que
seja o significado dessa última parte da confissão, ela tem a intenção de prevenir
que os que a recitavam supusessem que o amor de Deus significava que ele seria
indiferente a erros.
Entre outros "credos" ou partes de credos não históricos do Antigo
Testamento estão o Shema (Dt 6.4), o primeiro mandamento e certas doxologias
(Am 4.13; 5.8-9; 9.5-6; lCr 29.10; Zc 12.16). O judaísmo não conhece nenhuma
tradição devocional mais importante que a leitura do Shema. O fiel recita a
passagem ao acordar de manhã e antes de recolher-se à noite, reconhecendo assim
a soberania de Deus sobre ele próprio e sobre o mundo.
Não sabemos quando o Shema tomou-se parte da devoção diária individual
dos judeus. A mishná Tamid (4.3—5.1) indica que quatro passagens do Antigo
Testamento estavam incluídas na leitura: o Decálogo, o Shema, Deuteronômio
11.13-21 e Números 15.37-41. O papiro Nash, descoberto no Egito, data de c. 150
a.C. e contém o Decálogo e o Shema. É provável que esse papiro fizesse parte do
conteúdo de um mezuzah de uma sinagoga ou lar judaico. O mezuzah era um
recipiente de metal grudado à porta ou porão, contendo algumas passagens das
Escrituras chamadas Shema. Pouco depois do início da era cristã, os judeus tiraram
a leitura do Decálogo do credo, porque os "hereges" argumentavam que o
Decálogo era a única parte da Torá que ainda encerrava autoridade.
O Shema diz que Javé é um —ou seja, indiviso em sua natureza. Só ele é
soberano sobre as pessoas e sobre o mundo. No contexto de Deuteronômio, Israel
era um povo apóstata cuja atenção exclusiva a Javé fora turvada pela sedução de
cultos estrangeiros e práticas idólatras. O Shema pode ser uma reformulação
80
T e o l o g ia
do
A n t ig o T e s t a m e n t o
afirmativa do quinto mandamento, mas a fórmula possui "uma aura litúrgica, a
impressão de ter sido moldada mediante longo emprego no culto".30 Reflexos do
Shema encontram-se em 2Reis 23.25 e Zacarias 14.9. Ecos dele podem ser vistos
em Deuteronômio 4.19; 10.12; 11.13; 13.3; 26.16; 30.2, 6, 10; Josué 22.5; 23.14;
lRs 2.4; 8.48; 2Reis 23.3; 2Crônicas 15.12; Jeremias 32.41.
As doxologias em Amós são muito parecidas em conteúdo e estrutura e
podem servir como uma chave do método da teologia do Antigo Testamento.
Porque é ele quem forma os montes,
e cria o vento,
e declara ao homem qual é o seu pensamento;
e faz da manhã trevas
e pisa os altos da terra;
SENHOR, Deus dos Exércitos, é o seu nome.
(Am 4.13)
... procurai o que faz o Sete-estrelo e o Órion,
e tom a a densa treva em manhã,
e muda o dia em noite;
o que chama as águas do mar
e as derrama sobre a terra;
S enhor é o seu nome.
É ele que faz vir súbita destruição sobre o forte
e ruína contra a fortaleza.
(Am 5.8-9)
Porque o Senhor, o SENHOR dos Exércitos,
é o que toca a terra, e ela se derrete,
e todos os que habitam nela se enlutarão;
ela subirá toda como o Nilo
e abaixará como o rio do Egito.
Deus é o que edifica as suas câmaras no céu
e a sua abóbada fundou na terra;
é o que chama as águas do mar
e as derrama sobre a terra;
30 McBride, "The Yoke o f the Kingdom", 296-297.
A NATUREZA E O MÉTODO DA TEOLOGIA DO ANTIGO TESTAMENTO
81
S enhor é o seu nome.
(Am 9.5-6)
Todas essas doxologias usam particípios predicativos e têm refrão como os
de hinos: "Javé, Deus dos exércitos, em seu nome". Elas retratam a majestade e o
poder de Javé. Ele é o Criador e o mantenedor da criação. Ele dá a chuva, controla
0 vento, a luz e as trevas; anda em lugares altos; comunica seu propósito ao povo e
julga as obras humanas.
Duas outras doxologias ou fragmentos de credo encontram-se em
1Crônicas 29.106-12 e Zacarias 12.16:
Bendito és tu, SENHOR, Deus de Israel, nosso pai, de eternidade em
eternidade. Teu, SENHOR, é o poder, a grandeza, a honra, a vitória e a
majestade; porque teu é tudo quanto há nos céus e na terra; teu, SENHOR, é
o reino, e tu te exaltaste por chefe sobre todos. Riquezas e glória vêm de
ti, tu dominas sobre tudo, na tua mão há força e poder; contigo está o
engrandecer e a tudo dar força (lC r 29.10-12).
Essa passagem é a doxologia na oração de Davi perto do fim da vida, antes
de se construir o templo. Cinco palavras hebraicas diferentes são usadas no
versículo 11 para atribuir a Javé "glória" e "poder". Sua soberania e preeminência
são reconhecidas por todos. A expressão "Fala o SENHOR, o que estendeu o céu,
fundou a terra e formou o espírito do homem dentro dele" (Zc 12.1b) parece um
fragmento de um hino ou "credo". Idéias semelhantes podem ser encontradas em
Isaías 42.5; 44.24; 45.12; 51.13.
Assim, vemos meio escondidas, com freqüência em lugares remotos,
evidências de declarações teológicas de Israel. Elas fornecem muitas chaves
teológicas, mas seriam muitas delas compreensíveis o suficiente para formar a
estrutura para uma apresentação da teologia do Antigo Testamento? Muitos
estudiosos têm tentado construir teologias do Antigo Testamento a partir dessas
chaves. Walther Eichrodt escreveu uma teologia do Antigo Testamento usando a
aliança como tema central. Von Rad encontrou sua chave nas repetições ou
recitações dos grandes atos de Deus (Dt 26.5-9); Js 24; ISm 12.7-8). A chave de
Zimmerli é o primeiro mandamento. A de Marten é "desígnio de Deus" em Êxodo
5.22—6.8. A de Terrien é a "presença de Deus" e a de Westermann, a forma do
cânon (Torá, Profetas e Escritos; o Deus que salva, abençoa e cria; o julgamento e
o amor de Deus; e a resposta do povo). A chave de H. H. Schmid é "fé criadora" e a
de James Crenshaw, "sabedoria" ou "teodicéia".
82
T e o i -o c ia
do
A n t ig o T e s t a m e n t o
John Goldingay afirmou que a busca da estrutura correta de uma teologia
do Antigo Testamento "tem sido infrutífera (ou superfrutífera!)".31 Gondingay não
pensava que a busca superfrutífera fosse ruim. Na realidade, apresentam-se muitos
pontos de partida para ajudar-nos a compreender a teologia do Antigo Testamento.
"Nenhuma solução única do problema de estruturação de uma teologia do Antigo
Testamento iluminará o todo; uma multiplicidade de abordagens levará a uma
multiplicidade de percepções".32
Qualquer pessoa que tente escrever uma teologia do Antigo Testamento
deve com certeza estar familiarizada com todos os vários modelos produzidos em
anos recentes.33 Em vez de usar um dos dez métodos de Hasel (veja a lista citada
anteriormente), é provável que seja melhor considerar um ou mais dos seguintes
seis modelos principais: o modelo sistemático; o modelo do tema central; o modelo
recital, diacrônico ou da Heilsgeschichte\ o modelo da palavra-chave; o modelo da
história da tradição e o modelo canônico. Talvez alguma combinação de todos
esses modelos seja necessária para lidar com todo o material teológico no Antigo
Testamento.
1.
A teologia do Antigo Testamento começou pelo uso do model
sistemático da teologia ortodoxa. Theologie des Alten Testaments de G. L. Bauer34
adotava a estrutura tríplice de teologia, antropologia e cristologia. A. B. Davidson e
Otto Baab seguiram o modelo sistemático. Old Testament Theology de Edmond
Jacob35 usava um método sistemático modificado. Dentan defendeu um modelo
sistemático:
O fato é que qualquer modelo de organização que possamos adotar será
imposto de fora [...] Por conseguinte, somos forçados a buscar algum
método que (1) seja simples e (2) apresente o material de forma
significativa para nós. Por isso parece difícil pensar num esboço melhor
que o usado na teologia sistemática, uma vez que surgiu de uma tentativa
de responder às questões básicas da vida humana: Qual a natureza de
Deus [...]? (teologia); Qual a natureza do homem [...]? (antropologia);
Qual a natureza do processo dinâmico pelo qual a fraqueza do homem é
reconciliada com a perfeição de Deus? (soteriologia).56
Dentan acrescentou que esse esboço simples e óbvio não distorce de modo
algum o material ao qual é imposto e tem a óbvia vantagem de deixar clara a
31 Approaches to O ld Testament Interpretation, 27.
32 Ibid., 29.
33 Veja G. Hasel, Old Testament Theology: Basic Issues, 4. ed., 29-114.
34 1796.
35 1955.
36 Preface to Old Testament Theology, 119-120.
A NATUREZA E O MÉTODO DA TEOLOGIA DO ANTIGO TESTAMENTO
83
importância da religião do Antigo Testamento para o pensamento contemporâneo.
As perguntas que tenta responder nem sempre são feitas por um professor em sala
de aula, mas por todas as pessoas em sua situação existencial.
Precisamos modificar o argumento de Dentan, admitindo que a imposição
de qualquer sistema sobre os dados do Antigo Testamento acarreta o risco de
alterar o significado dos textos originais simplesmente pela alteração do contexto
deles. Ao explicar, articular e definir conceitos veterotestamentários, o teólogo do
Antigo Testamento pode não estar meramente descrevendo a fé do Antigo
Testamento, mas criando novos conceitos de Deus e do mundo, pela interação do
que diz o Antigo Testamento e o que o teólogo nele introduz. Um leigo corre o
risco de "subestimar" temas distintos do Antigo Testamento como a lei, Israel, a
terra e o culto. Entretanto, um modelo sistemático modificado ainda pode ser o
melhor para fazer teologia do Antigo Testamento.
2. O método do tema central, tal como o uso que Eichrodt faz da aliança,
tenta destacar o tema central do Antigo Testamento; mas não é suficientemente
abrangente para cobrir todos os dados do Antigo Testamento. A literatura de
sabedoria não faz uso da idéia da aliança.
3. O modelo recital, diacrônico ou da história da salvação possui mérito
por sua chave vir diretamente dos "credos" do Antigo Testamento e por traçar a
história da teologia de Israel de período a período. Suas fraquezas são que consiste
principalmente no relato da história da salvação de Israel e que seu sistema não
comporta a literatura de sabedoria.
4. O modelo da "palavra-chave" sustentado por livros teológicos que
estudam palavras, sofre do problema de falta de ligação entre uma palavra chave e
outra e com o contexto original. Muito se pode colher sobre um conceito teológico
pelo estudo da etimologia e do uso de uma palavra hebraica ou grega, mas o
método da "palavra-chave" é inadequado para apresentar a teologia do Antigo
Testamento.
James Barr observou que as expectativas de um dicionário teológico
alcançaram o máximo de reputação no auge do Theological Word Book o f the New
Testament de Kittel, mas as expectativas foram-se para sempre. Por quê? Porque o
método não proporciona um alinhamento direto ou necessário entre os padrões do
vocabulário bíblico e a estrutura da teologia bíblica.37
5. O modelo da história da tradição é um desdobramento do método da
"história da salvação" de von Rad, mas dá muito mais ênfase ao período da
transmissão oral dos textos e ao suposto Sitz im Leben em que circularam as
tradições. Harmut Gese disse:
37 Veja uma crftica ao Theological Word Book o f the New Testament de Kittel em James Barr, The Semantics o f
Biblical Language, 206-262.
84
T f.o i .o c ia
do
A n t ig o T e s t a m e n t o
A história da tradição no sentido mais estreito descreve a tradição préliterária, oral do texto ou do seu conteúdo; num sentido mais amplo, a
história da tradição descreve as pressuposições formais e substanciais
extraídas da tradição. Assim verificada, essa formação do texto é de
importância decisiva [...] O motivo dessa grande importância é que os
textos bíblicos brotam de processos de vida e existem em contextos de
vida.n
A força básica da abordagem da história das tradições é que Israel
reinterpretou e reaplicou sua tradição para atender às necessidades de cada geração
sucessiva e sua situação. Não pode haver dúvidas de que se supunha que a aliança
fosse renovada periodicamente (Dt 31.10-13). Há alguns indícios de que cada
geração de israelitas pensava em si como se estivesse no Egito, junto ao mar
Vermelho e junto ao Sinai (Êx 13.8; Dt 5.3; 26.5-9).
Além disso, o método da história da tradição é muito subjetivo, uma vez
que nem o Antigo Testamento explica quando e como reinterpreta suas tradições.
As pressuposições dos estudiosos que utilizam esse método com freqüência
determinam suas conclusões. Elas baseiam-se mais em reconstruções teóricas que
no texto bíblico. A teologia do Antigo Testamento encontra a autoridade que a
fundamente na literatura, não na tradição.
6.
O método canônico apareceu em anos recentes, com o intere
renovado no cânon como guia para a teologia do Antigo Testamento e/ou para a
teologia bíblica. A idéia de um cânon dá sustento ao caráter autorizado dos dados
bíblicos e pode ser um guia objetivo quanto à metodologia. B. S. Childs alegou que
uma nova teologia bíblica devia ser escrita com o emprego de ambos, Antigo e
Novo Testamentos. A chave para o uso dos dados do Antigo Testamento seria
como e quando o Novo Testamento os usa.39 Por outro lado, John Bright disse que
a autoridade do Antigo Testamento ou da Bíblia não reside numa lista
mecanicamente determinada de livros chamada cânon, mas na estrutura de sua
teologia. "Ao estabelecer o cânon, a igreja não criou uma nova autoridade; antes,
reconheceu e ratificou uma que já existia".40
Claus Westermann toma a estrutura tríplice do cânon do Antigo
Testamento (Lei, Profetas e Escritos) como chave para sua apresentação da
teologia do Antigo Testamento. Westermann disse: "A estrutura do Antigo
Testamento em suas três partes indica que a narrativa no Antigo Testamento é
determinada pela palavra de Deus que nela ocorre e pela resposta daqueles para
31 T radition and Biblical Theology* em Knight, Tradition and Theology, 308.
39 Biblical Theology in Crisis, 97-122.
40 The Authority o f the Old Testament, 38, 156-160.
A NATUREZA C O MÉTODO DA TEOLOCIA DO APíTIGO TtSTAM tNTO
85
quem e com quem se desenvolve essa história".41 Hartmut Gese também liga a
forma da teologia bíblica à forma do cânon. Mas uma vez que não acredita que o
cânon do Antigo Testamento tenha sido fechado em tempos pré-cristãos, não vê
dois cânones (do Antigo e do Novo), mas um, que abrange toda a Bíblia.42 Para
Gese não há teologia do Antigo Testamento ou teologia do Novo Testamento — só
teologia bíblica.
Tal argumento desconsidera as diferenças entre a fé do Antigo Testamento
e a do Novo Testamento. O entendimento de Deus ou o entendimento da identidade
do povo de Deus são essencialmente iguais nos dois Testamentos. Mas o Antigo
Testamento é um livro pré-cristão e, em certo sentido, deve ser estudado "como se
o Novo Testamento não existisse".43 O Antigo Testamento é também um livro
cristão porque os cristãos o receberam de Jesus. Era a única Bíblia que a igreja
primitiva possuía. Todo o Antigo Testamento hebraico é canônico e autorizado. A
questão na era cristã primitiva não parece ter sido "O Antigo Testamento é
cristão?", mas: "O Novo Testamento é bíblico?".44
Deve a teologia do Antigo Testamento ser uma disciplina distinta, à parte
da teologia do Novo? Se o objetivo ou tarefa da teologia do Antigo é histórico e
descritivo, a resposta é sim. Se a tarefa é considerada normativa, a resposta
provável é não. Ainda que o Antigo Testamento seja parte importante da Bíblia
cristã e prenuncie algo que está além dele, não deve ser lido como se contivesse o
conhecimento completo de Deus. H. H. Rowley disse:
Num sentido real, eles (o Antigo Testamento e o Novo) pertencem um ao
outro e formam um todo único; o Antigo Testamento não deve ser lido
como um livro cristão. Ele é parte essencial da Bíblia cristã, mas não uma
parte em que se deva encontrar o significado do todo. Um médico pode
tom ar uma amostra de nosso sangue e examiná-lo, extraindo conclusões
sadias acerca do sangue que ficou em nossas veias; mas a Bíblia não deve
ser tratada desse modo. Essa unidade é de ordem totalmente distinta. Há
unidade na vida de um indivíduo; ainda assim, mesmo com o estudo mais
cuidadoso a respeito de uma criança é impossível saber a trajetória futura
de sua vida. A unidade da Bíblia é desse último tipo. É a unidade do
crescimento, não uma unidade estática, e cada estágio do crescimento
deve ser considerado em relação ao todo, bem como em sua
singularidade.45
41 Elements o f Old Testament Theology, 10.
42 Essays on Biblical Theology, 10.
43 Goldingay, Approaches to Old Testament Interpretation, 19.
44 Ibid., 34.
45 The Faith o f Israel, 14.
86
T e o l o g ia
do
A n t ig o T e s t a m e n t o
John Bright concorda com a idéia de Rowley. "Toda a perspectiva do Antigo
Testamento é do tipo a.C. Cada palavra foi falada antes de Cristo, por homens e
para homens que viviam antes de Cristo e foram apanhados numa história que se
movia rumo a um destino cuja natureza não era clara na ocasião".46
Como, portanto, devemos apresentar a teologia do Antigo Testamento?
Primeiro, devemos reconhecer nossas pressuposições. Usamos o termo teologia do
Antigo Testamento deliberadamente. Com o termo Antigo Testamento confessamos
que essa parte da Bíblia é parte importante do registro inspirado da revelação de
Deus, que culmina na sua revelação plena e definitiva em Jesus Cristo. Pelo uso do
termo teologia entendemos que o conteúdo do Antigo Testamento é tanto humano
como divino.
Segundo, devemos estar conscientes das dificuldades ao desenvolver uma
teologia do Antigo Testamento. De fato, alguns estudiosos têm alegado que se trata
de uma tarefa impossível. F. F. Bruce chamou a atenção para o artigo de P.
Wemberg-Moller no Hibbert Journal, intitulado: "Is There an Old Testament
Theology?", em que se levanta uma questão real quanto à legitimidade dessa
tarefa.47
A tarefa de fazer teologia do Antigo Testamento é repleta de todos os tipos
de dificuldades: textuais, históricas, literárias, hermenêuticas e teológicas. Mas ela é
necessária e pode ser gratificante. Uma teologia do Antigo Testamento deve ser
bíblica em conteúdo e em forma o quanto possível. Deve-se limitar basicamente aos
dados do Antigo Testamento. Deve incluir todo o Antigo Testamento em seu
escopo, mas concentrar-se nos aspectos repetitivos, penetrantes e normativos da fé
israelita.48 Deve empregar todos os instrumentos hermenêuticos modernos
disponíveis aos estudantes do Antigo Testamento: críticas textual, literária, da
forma, da história da tradição e canônica. As descobertas da arqueologia podem
com freqüência ser úteis na reconstrução da vida e da religião de Israel e de seus
vizinhos.
Deve-se fornecer algum tipo de "grade" ou estrutura para apresentar o
material teológico do Antigo Testamento de maneira ordenada. Cabe o alerta contra
uma sistematização racional desse material, mas isso não pode nos impedir de
pensar em Deus de modo sistemático. Eichrodt e Barth foram grandes
sistematizadores. Um tema central não é suficientemente amplo para incluir toda a
variedade e diversidade teológica do Antigo Testamento.
Para desenvolver uma teologia abrangente do Antigo Testamento, é preciso
considerar o que os vários livros e fontes do Antigo têm em comum, mas também o
46 The Authority o f the Old Testament, 206.
47 Bruce, New Testament Development, 11.
48 Bright, Authority o f the Old Testament, 115.
A NATUREZA E O MÉTODO DA TEOLOGIA DO ANTIGO TESTAMENTO
87
que significam em conjunto. John Goldingay disse: "Ao estudar a teologia do
Antigo Testamento, estamos interessados não só nas crenças de fato expressas
individualmente por escritores do Antigo Testamento [...] nem só nas
pressuposições por trás dessas crenças, nem só na fé do Antigo Testamento como
‘uma entidade apresentada já pronta no início e que na história apenas se
desenrola’, mas na perspectiva total".49
Para Goldingay, a tarefa de fazer teologia do Antigo Testamento é
construtiva. O Antigo Testamento fornece os blocos de construção reunidos pelos
judeus, que os organizaram num cânon. De acordo com Goldingay, o que deve ser
desenvolvido não é necessariamente a visão que eles tinham da construção. O
prédio deve ser adequado ao próprio material, embora este possa ter sido extraído
de pedreiras diferentes e tenha formas diversas. Os blocos não devem ser reduzidos
ao mesmo tamanho e forma, mas cada um deve ser usado para potencializar sua
distinção. Por si, cada bloco pode não parecer utilizável. Mas, juntos, como um
todo, podem apresentar uma teologia que não corresponde à idéia de nenhum
escritor em particular, mas que faz jus ao que cada um deles conhecia.
Essa tarefa é assoberbante e quase impossível, mas deve-se tentar cumprila, para que se compreenda toda a realidade expressa em seus vários aspectos de
formas não sistemáticas no Antigo Testamento.50
Este livro não faz nenhuma tentativa de apresentar um tratamento
abrangente de toda a teologia do Antigo Testamento. O que se segue é um modelo
de como fazer teologia do Antigo e uma discussão de alguns temas importantes que
devem ser incluídos. Tentar-se-á mostrar que um modelo sistemático modificado é
ainda o melhor para fazer teologia do Antigo Testamento. Fornecerá aos alunos
uma base de metodologia, reflexão e conteúdo que podem usar para construir sua
própria teologia do Antigo Testamento.
Antes de começar, o aluno precisa parar neste ponto para refletir sobre as
seis opções metodológicas apresentadas neste capítulo. Deve-se adotar um pouco
de cada uma delas ou só de algumas? Que deve ser rejeitado? Que forma cada uma
daria para um teologia plenamente desenvolvida? As chaves fornecidas pela
própria Bíblia dão informações suficientes para dar forma a uma teologia do
Antigo Testamento?
49 Theological Diversity and the Authority o jth e Old Testament, 183.
50 Veja Goldingay, Theological Diversity and the Authority o f the Old Testament, 184.
3
O conhecimento de Deus
10. A teologia do Antigo Testamento começa com a revelação
Por onde começamos o estudo da teologia do Antigo Testamento?
Começaríamos por onde começa a Bíblia —com Deus como Criador— ou com o
chamado de Abraão e o início da "história da salvação" (Dt 26.5-15)? Poderíamos
começar com uma reflexão sistematizada sobre o material teológico
veterotestamentário sobre Deus ou sobre a humanidade. Teólogos sistemáticos com
freqüência iniciam pela "revelação". Talvez nem seja correto falar da "visão"
israelita de revelação porque os israelitas nem possuem uma palavra que designe
revelação, muito menos um tratamento sistemático do assunto.
Ao selecionar a revelação como o ponto de partida necessário para a
teologia, seguimos uma ênfase moderna. Como James Barr disse, uma afirmação
da revelação é absolutamente necessária para a fé cristã; de outro modo, "teríamos
uma série de idéias que elaboramos por nós mesmos".1 Karl Barth, Emil Brunner,
1 O U and New in Interpretation, 83.
90
T e o l o g ia
do
A n t ig o T e s t a m e n t o
Paul Tillich, D. M. Baillie, Wheeler Robinson, Rudolph Bultmann e Wolfhart
Pannenberg destacam, todos, a revelação.2
Por que hoje damos tanta ênfase à revelação, se nossa fonte de revelação
não parece fazê-lo? James Barr disse que na teologia moderna a idéia de revelação
atua contra dois problemas específicos que não existiam ou não eram importantes
no mundo antigo. O primeiro problema é a negação de que Deus existe ou de que
haja algum conhecimento verdadeiro a seu respeito. O segundo é fazer separação
entre o conhecimento que Deus dá de si mesmo e os métodos e o conteúdo das
ciências humanas independentes da revelação. "Na Bíblia, à parte de algumas
concessões bem limitadas, não existe algum estágio em que Deus é desconhecido
[...] Os problemas em relação às coisas sobre as quais a revelação atua parecem não
existir na Bíblia ou não ser centrais nela. Em Israel Deus é conhecido."3
Nem todos os teólogos modernos começam na revelação. James Crenshaw
não começaria um estudo da teologia do Antigo Testamento com a revelação. Ele
crê que se deve começar com a humanidade. Crenshaw eleva a antropologia ou
sociologia a uma posição no mínimo equivalente à da teologia na compreensão do
Antigo Testamento.4 Ele sustenta que a questão do sentido é mais básica que a de
Deus. O ponto de partida bíblico não foi Deus, mas a pessoa. A questão de Deus é
secundária na autocompreensão, de acordo com Crenshaw.
"Isso dá a entender que a teologia do Antigo Testamento deve começar
com o homem, em lugar de Deus, como é comum nas obras que adotam o princípio
sistemático."5 Pensa-se que talvez o estudo intenso da literatura de sabedoria tenha
levado Crenshaw a essa conclusão.
Dois outros autores contemporâneos que iniciam com o homem, em lugar
de Deus, em seu estudo do Antigo Testamento são Norman Gottwald6 e Peter L.
Berger.7 Gottwald começou com uma abordagem sociológica e explicou a
ideologia religiosa do Antigo Testamento como um mutante cultural-materialista.
Não há lugar para o tema da revelação na obra de Gottwald. O termo não ocorre no
índice de seu livro. Brevard Childs disse que "a posição de Gottwald resulta num
grande reducionismo teológico".8 A devoção de Gottwald à metodologia
sociológica o conduz para longe da revelação.
! Observe que em outros aspectos a posição teológica deles é bem diferente. A ênfase na revelação nSo leva a uma
unidade ou consenso teológico.
1 Op. cit., 89.
4 Studies irt Ancient Israelite Wisdom, 291.
! Ibid., 291.
6 The Tribes o f Yahweh (no Brasil, As Tribos deJaweh, pela Paulinas).
7 A Rumor o f Angels.
* O ld Testament Theology, 25.
O C o n h e c im e n t o
de
Deus
91
Peter Berger em A Rumor o f Angels procurou um modo de começar com o
ser humano ao fazer teologia, sem glorificar a humanidade como faz a "teologia"
secular. Berger viu "sinais de transcendência" em alguns comportamento humanos.
Algumas atitudes das pessoas pressupõem uma ordem no universo. Uma maldição
ou tragédia de dimensões sobrenaturais pode ser causada por comportamento
excessivamente afrontoso. Mesmo os ateus podem às vezes sentir-se gratos pela
vida e pelo mundo, embora possam dizer que não têm ninguém a quem agradecer
tais bênçãos. A questão é que pressupõem uma crença na transcendência.9
G. Emest Wright assumiu uma postura firme a favor de um estudo da
teologia do Antigo Testamento que comece com Deus, não com o homem. Ele
disse:
Uma vez que tanto judeus como cristãos entendem que pela fé se crê na
Bíblia como revelação daquele que de outra maneira no mundo seria o
Deus desconhecido, não me habilito a iniciar a discussão com a questão
existencial: “Que significa para mim o Antigo Testamento? Qual a
possibilidade básica que ele apresenta para uma nova existência agora?”
Sou antes convocado a transcender a mim mesmo e a minha existência, o
quanto puder, para lutar pela compreensão de uma nova realidade externa
a mim mesmo. Não cabe a mim dar ordens; antes, é ele mesmo, separado
de mim e de minha comunidade no que diz respeito a seu ambiente e
época originais.10
Gerhard von Rad disse que não se tropeça na transcendência. O
entendimento humano de Deus ou do homem não começa do eu para depois
perguntar, desse ponto de partida, sobre o contato com Deus. Começa com Deus e
afirma que uma pessoa só pode ser completamente compreendida se começar por
Deus. Todos os outros meios de compreender o homem só podem levar a
distorções ou reduções.
A humanidade encontra sua origem no coração de Deus. Na criação Deus
extraiu de um mundo divino superior o modelo para o homem, algo que não fez
para as outras obras da criação. "O homem é, desse modo, uma criatura que só
pode ser compreendida a partir de cima e que, tendo cortado seu relacionamento
com Deus, só pode reconquistar e manter sua humanidade dando ouvidos à palavra
divina"."
Hans W. Wolff perguntou como no Antigo Testamento a pessoa é iniciada
no conhecimento de si própria. Uma doutrina confiável do homem é um imperativo
9 Veja em John Goldingay, Theological Diversity, 211, uma critica à concepção de Berger.
10 Reflections, 380.
11 G odat Work in Israel, 91-92.
92
T e o l o g ia
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A n t ig o T e s t a m e n t o
na teologia do Antigo Testamento; entretanto, o autoconhecimento humano não
começa com pessoas terrenas, mas com o Deus Criador. WolfT disse: "Assim como
é impossível ao homem confrontar a si mesmo e ver-se por todos os lados [...] por
certo o homem necessita fundamentalmente encontrar-se com outro que o
investigue e o explique. Mas onde está o outro a quem o ser humano pode fazer a
pergunta: "Quem sou eu?" A resposta de WolfT era que o Outro já se mostrou pelo
seu laço com o homem em palavras e em atos registrados no Antigo Testamento.12
Deve-se começar o estudo de teologia do Antigo Testamento com Deus e
não com o homem. Mas como fazer isso? B. S. Childs levantou essa questão no
início de seu Old Testament Theology.n Para ele, o contexto canônico faz
diferença. Falar do Antigo Testamento como cânon é dizer que é Escritura e
autoridade. O Antigo Testamento testifica que Deus revelou-se a Abraão, e nós
confessamos que Deus irrompeu em nossa vida.
''Não chego ao Antigo Testamento para ser informado sobre algum
fenômeno religioso estranho, mas, em fé, empenho-me por obter conhecimento
enquanto procuro compreender a nós mesmos pela luz do autodesvendamento de
Deus. No contexto das Escrituras da igreja, procuro ser conduzido para nosso Deus
que se fez conhecido, se faz conhecido e se fará conhecido.'"4 Childs também disse
que o termo revelação é só "uma fórmula abreviada que indica todo o
empreendimento da reflexão teológica acerca da realidade de Deus".15
Pode-se negar um ponto de partida absoluto para fazer teologia do Antigo
Testamento. John Goldingay disse: "Muitos pontos de partidas, estruturas e pontos
centrais podem iluminar o cenário do Antigo Testamento; uma multiplicidade de
abordagens levará a uma multiplicidade de percepções".16 Ainda assim, vamos
começar com a revelação porque não descobrimos a Deus; Deus nos encontra. De
fato, Deus sabe tudo a nosso respeito (SI 139.1-18).
11. A existência de Deus é pressuposta no Antigo Testamento
i
O Israel antigo não defendia a existência de Deus nem tentava prová-la; o
povo simplesmente aceitava que Deus existe e se revela aos homens. Deus é
pressuposto no Antigo Testamento. A. B. Davidson afirmou que jamais ocorreu a
12 Anthropology o f the Old Testament, 1-2.
11 P. 28.
14 Childs, Old Testament Theology, 28.
15 Ibid., 25-26.
16 Theological Diversity and Authority, 115.
O C o n h e c im e n t o
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Deus
93
qualquer profeta ou escritor do Antigo Testamento provar a existência de Deus.
“Fazer isso poderia perfeitamente ser considerado absurdo.”17
Edmond Jacob disse que a afirmação da soberania de Deus dá ao Antigo
Testamento vigor e unidade. Deus é a base de todas as coisas, e tudo o que existe
só existe por sua vontade. Além disso, a existência de Deus jamais é questionada.
O conhecimento de Deus, no sentido de realidade divina, deve ser encontrado em
todas as partes. O mundo inteiro conhece a Deus. A natureza foi criada para
proclamar seu poder (SI 148.9-13). Mesmo o pecado proclama a existência de Deus
por contraste. "O fato de Deus é tão normal que não temos no Antigo Testamento
indícios de especulação sobre a origem ou evolução de Deus. Enquanto religiões
circunvizinhas apresentam uma teogonia como o primeiro passo na organização do
caos, o Deus do Antigo Testamento está presente desde o início".18
G. Emest Wright observou: "... a proposição que é a grande dádiva de
Israel para a humanidade é simplesmente esta: Deus é. Sua existência para o
escritor israelita é completamente manifesta, sempre pressuposta e jamais
questionada".19A doutrina bíblica repousa na crença de que "o Deus oculto à nossa
vista revela-se ao homem".20
O agnosticismo no sentido moderno não tem lugar no pensamento
hebraico. R. E. Clements crê que a "idéia de Deus permanece como pressuposição
indispensável" em todos os escritos do Antigo Testamento. As idéias de criação,
ordem natural, ordem social, tempo e âmbito espacial estão todas estabelecidas na
relação com uma crença em Deus. A noção de uma sociedade "secular"
simplesmente não existia. A cosmologia do antigo Israel era fundamentalmente
religiosa em caráter, de modo que as instituições fundamentais da sociedade —
reino, lei, cultura e educação — estavam todas baseadas em pressuposições
religiosas.21
12. Conhecer a Deus é mais do que conhecimento intelectual
O Antigo Testamento não só pressupõe que Deus pode ser conhecido;
também afirma claramente que ele se faz conhecido:
17 Old Testament Theology, 30.
'* Jacob, Theology o f the Old Testament, 37-38.
” The Challenge o f Israel's Faith, 55.
20 Rowley, The Faith o f Israel, 23.
11 R. E. Clements, 'Israel in its Historical and Cultural Setting", em The World o f Ancient Israel, 9.
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T c o ia g i a
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Manifestou os seus caminhos a Moisés
e os seus feitos, aos filhos de Israel.
(SI 103.7)
Apareci a Abraão, a Isaque e a Jacó como Deus Todo-Poderoso;
mas pelo meu nome, O SENHOR, não lhes fui conhecido.
(Êx 6.3)
Então, disse: Ouvi, agora, as minhas palavras;
se entre vós há profeta,
eu, o S enhor , em visão a ele,
me faço conhecer ou falo com ele em sonhos.
Não é assim com o meu servo Moisés,
que é fiel em toda a minha casa.
Boca a boca falo com ele, claramente e não por enigmas;
pois ele vê a forma do SENHOR.
(Nm 12.6-8)
No dia em que escolhi a Israel, levantando a mão,
jurei à descendência da casa de Jacó
e me dei a conhecer a eles na terra do Egito.
(Ez 20.5)
A. O vocabulário da revelação
Essas passagens usam as formas passiva ou reflexiva do verbo
yãda‘, “conhecer”, iã'â, “ver”, e a forma intensiva do verbo dãbar, “falar”. Todos
esses verbos são palavras cognitivas. O hebraico não possui um substantivo que
signifique “revelação”; possui o verbo gãlâ, “revelar”. A raiz ocorre cerca de 180
vezes no Antigo Testamento. Ela contém dois conceitos básicos: “desvendar”,
“revelar", e “ir para o exílio”, a menos que o pensamento fosse: “indo o povo para o
exílio, a terra ficou sem cobertura”.22
A palavra gãlâè empregada predominantemente no Antigo Testamento no
sentido comum de "ir embora", "ser aberto" (Jr 32.11, 14). Em alguns casos referese à revelação do próprio Javé. E usada em Gênesis 35.7 em referência à ocasião
22 Cf. Hans-JUrgen Zobel, galah em TDOT, 478.
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Deus
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em que Deus apareceu a Jacó em Betei, quando este fugia de Esaú. "E edificou ali
um altar e ao lugar chamou El-Betel; porque ali Deus se lhe revelou [perf. nifal]
quando fugia da presença de seu irmão".
A forma participial nifal de gãlâ é usada em Deuteronômio 29.29 (heb. v.
28) em referência à Torá como "as [coisas] reveladas": "As coisas encobertas
pertencem ao S e n h o r , nosso Deus, porém as reveladas nos pertencem, a nós e a
nossos filhos, para sempre, para que cumpramos todas as palavras desta lei". Esse
versículo indica que algumas coisas são revelas e eles eram responsáveis por
executá-las, enquanto algumas eram secretas (não reveladas). Eles não tinham
conhecimento delas. Eles não tinham responsabilidade por coisas não reveladas. Os
versículos 21-27 de Deuteronômio 29 referem-se a uma época em que Israel
quebraria a aliança, cultuando outros deuses, e isso os levaria ao exílio. Eles
tinham sido alertados que isso ocorreria se não obedecessem às palavras reveladas
da lei.
Peter Craigie disse que seria pretensão supor que essa revelação lhes dava
conhecimento total de Deus. "Talvez jamais seja possível conhecer todas as coisas,
as coisas encobertas, pois a mente humana é restrita pelos limites de sua finitude
[...] e é possível conhecer a Deus de um modo profundo e vivo, por meio de sua
graça, sem jamais ter captado ou compreendido as coisas encobertas".n
A palavra gãlâé usada em referência a uma época em que Samuel não
conhecia o Senhor. "Porém Samuel ainda não conhecia o SENHOR, e ainda não lhe
tinha sido manifestada [imperf. nifal] a palavra do SENHOR" (ISm 3.7).
Usa-se gãlâ em 2Samuel 7.27 quando Davi alegou que o Senhor dos
Exércitos "descobriu seus ouvidos", revelando-lhe que Deus lhe construiria uma
casa —ou seja, uma dinastia. Isaías afirmou que Deus "desvendou-se" ou "revelouse" aos ouvidos de Isaías, dizendo que o pecado que o profeta havia identificado
não seria perdoado (Is 22.14). O termo gãlâé usado para falar da revelação da
palavra de Javé (ISm 2.27), de sua glória (Is 40.5), de seu braço (Is 53.1), de sua
salvação (Is 56.1), das coisas secretas (Dt 29.29; Am 3.7) e do mistério (Dn 2.19,
22, 28, 29, 30, 47). O povo no Antigo Testamento cria que Deus havia se revelado
muitas vezes, mas em modos, lugares e momentos escolhidos por ele.
B. O significado da revelação
O Antigo Testamento fala com freqüência em "conhecer" (y d ) ou "não
conhecer" Javé (compare Is 1.3; Jr 2.8; 4.22; 31.34; Os 2.20; 4.1, 6; 5.3-4; 6.6;
13.4). O conhecimento no Antigo Testamento é bem diferente de nosso
“ The Book o f Deuteronomy, 361.
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entendimento do termo. Para nós, conhecimento implica compreender coisas pela
razão, analisar e buscar relações de causa e efeito. No Antigo Testamento,
conhecimento significa "comunhão", "familiaridade íntima com alguém ou algo".
Falando em nome de Deus a Israel, Amós disse:
De todas as famílias da terra
a vós somente conheci;
portanto, todas as vossas injustiças
visitarei sobre vós.
(Am 3.2, ARC)
Vriezen disse que o Antigo Testamento faz do "conhecimento de Deus" a
primeira exigência da vida, mas jamais explica o significado do termo. O propósito
da revelação divina não é declarado especificamente no Antigo Testamento. A
revelação não se baseia em alguma necessidade de Deus. Deus não criou o mundo
nem revela a si mesmo para ter alguém que guarde o sábado, como diziam alguns
rabinos antigos. O conhecimento de Deus é mais que um mero conhecimento
intelectual; diz respeito à vida humana como um todo.
É essencialmente uma comunhão com Deus e é também fé; é um
conhecimento do coração que exige o amor do homem (Dt iv); sua
exigência vital é que o homem aja de acordo com a vontade de Deus e
ande humildemente nos caminhos do Senhor (Mq vi.8). É o
reconhecimento de Deus como Deus, a rendição total a Deus como
Senhor.24
Gerhard von Rad entende que "o conhecimento de Deus" significa
"compromisso", "confiança", "obediência à vontade divina". O conhecimento
efetivo de Deus é a única coisa que coloca uma pessoa num relacionamento correto
com os objetos de sua percepção. "A fé —como é comum crer hoje— não obstrui o
conhecimento; pelo contrário, ela o libera."“
Assim, "conhecer Javé" é ser obediente a ele, ter um compromisso com ele.
"Não conhecer a Deus" significava "rebelar-se contra ele", "negar o compromisso
com ele". Em Oséias, o significado do termo "conhecimento de Deus" é ampliado
para incluir a moralidade do israelita como indivíduo. O conhecimento de Deus
pode ser identificado como a prática da moralidade hebraica tradicional,
integridade moral (Os 4.1-2).
2i Outline o f Old Testament Theology, 154.
25 Wisdom in Israel, 67-68.
O C o n h e c im e n t o
de
Deus
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A expressão hebraica "o conhecimento de Deus" traz assim pelo menos três
conotações: (1) o sentido intelectual, (2) o sentido emocional e (3) o sentido
volitivo. O verbo "conhecer" (yãda‘) refere-se basicamente ao que chamamos
atividade intelectual, cognitiva; mas a psicologia hebraica não conhecia uma
faculdade específica que compreendesse o intelecto ou a razão.
O hebraico não possui uma palavra que signifique "cérebro". A palavra
mais comum usada em lugar de "mente" em hebraico é "coração", 7éô(lSm 9.20;
Is 46.8). O coração é considerado sede do intelecto, bem como da vontade e das
emoções. O hebraico antigo não supunha que as pessoas pensavam com a mente,
sentiam com as emoções e tomavam decisões com a vontade. Todas essas
atividades eram desempenhadas pela pessoa como um todo.26
"Conhecer a Deus" significava ter um entendimento intelectual de quem
ele era, ter um relacionamento pessoal e emocional com ele e ser obediente à sua
aliança e mandamentos. Um verdadeiro conhecimento de Deus sempre resultava
numa conduta ética. Jeremias disse ao perverso rei Jeoiaquim a respeito de seu pai
justo:
Acaso, teu pai não comeu, e bebeu,
e não exercitou o juízo e a justiça?
Por isso, tudo lhe sucedeu bem.
Julgou a causa do aflito e do necessitado;
por isso, tudo lhe ia bem..
Porventura, não é isso conhecer-me?
—diz o S enhor .
(Jr 22.15-16)
"Não conhecer a Deus" no Antigo Testamento não significa necessariamente
ignorância acerca de Deus; às vezes significa falta de disposição para obedecer a
ele.
C. A sobrevalorização da revelação
Karl Barth e alguns outros teólogos modernos sobrevalorizaram o papel da
revelação na teologia ao negar todo e qualquer conhecimento de Deus nas pessoas,
exceto pela revelação especial. Cari Braaten questionou a concepção de Barth, que
fazia da revelação a idéia dominante na teologia. Braaten disse: "Se a ignorância do
MVeja no cap. 6, divisão 30-C, uma discussSo mais detalhada de "coração"
T f.o i .o c ia
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do
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homem posta-se no centro, o fato da revelação alivia essa sina; mas se a culpa do
homem é o problema, então não é a revelação, mas a reconciliação, o que deve
tomar-se o centro teológico".27 Barth negou todos os outros meios de revelação,
exceto Jesus Cristo, por causa de sua convicção de que Cristo é singular e único.
Braaten cria na singularidade de Cristo, mas disse:
Distinguindo, porém, entre revelação e reconciliação, é possível sustentar
tanto a dualidade da revelação como a singularidade de Cristo. Jesus é o
único Salvador, não o único revelador. A idéia de revelação dá a entender
que algo previamente oculto é desvendado. O evento de Cristo não é o
desvendar de algo que sempre existiu, mas que até então permanecia
oculto e encoberto em mistério. Essa é uma visão completamente
platônica de revelação. A reconciliação não é apenas revelada, como se
estivesse ali, meramente oculta; ela é realizada na história, um evento
único, algo absolutamente inédito debaixo do sol [...] O ato de
reconciliação provoca uma situação objetivamente nova, não só para o que
crê, mas também para o cosmo. O mundo foi reconciliado com Deus em
Cristo.28
"Conhecer o Senhor" significa ser "reconciliado" com ele. Ele faz isso por
nós mediante a morte e a vida de seu Filho em nosso lugar (veja Rm 5.10-11; 2Co
5.15-21).
13. O Deus abscôndito
i
Embora o Antigo Testamento reconheça que, em certo sentido, todo o
mundo está ciente do divino ou do "sagrado", ele se refere com freqüência ao Deus
abscôndito. Jó cria em Deus, mas não conseguia encontrá-lo.
21 History and Hermeneutics, 14.
n Ibid., 15.
O C o n h e c im e n t o
de
Deus
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Eis que ele passa por mim, e não o vejo;
segue perante mim, e não o percebo.
Eis que arrebata a presa! Quem o pode impedir?
Quem lhe dirá: Que fazes?
(Jó 9.11-12)
O profeta do exílio disse:
Verdadeiramente, tu és o Deus que te ocultas,
o Deus de Israel, o Salvador.
(Is 45.15, ARC)
Na folha de guarda de seu The Elusive Presence, Samuel Terrien citou
Blaise Pascal: "Uma religião que não afirma que Deus está oculto não é
verdadeira".29 Pascal continua seu discurso sobre Deus ser abscôndito: "Uma
religião que não ofereça uma razão (para o fato de ele ser abscôndito) não é
iluminadora".30 Terrien entende que, porque Jesus estaria em agonia até o fim do
mundo, Pascal podia apropriar-se com segurança das palavras do profeta: Vere tu
es Deus Absconditus (Is 45.15).
A verdade é que Deus jamais é totalmente visível ou completamente
conhecido no Antigo Testamento. Se Deus fosse completamente conhecido, seria
limitado pela capacidade humana de compreensão e não seria, de modo algum,
Deus. Só um punhado de ancestrais, profetas e poetas de fato perceberam a
proximidade de Deus; e, então, mediou-se o desvendar de Deus.
B.
W. Anderson disse: "A pressuposição da Revelação é que Deus es
oculto à vista do homem. A revelação, portanto, é Deus desvendando ou
descobrindo a si mesmo e a seus propósitos".31 O Antigo Testamento fala com
freqüência de um Deus "oculto". Afirma-se 26 vezes que Deus esconde o rosto (Dt
31.17, 18; 32.20; Jó 13.24; 34.29; SI 10.11; 13.1; 22.24; 27.9; 30.7; 44.24; 51.19;
69.17; 88.14; 102.2; 104.29; 143.7; Is 8.17; 54.8; 59.2; 64.5; Jr 33.5; Ez 39.23, 24,
29; Mq 3.4). Deus esconde os olhos (Is 1.15) e os ouvidos (Lm 3.56). Deus se
oculta (SI 10.1; 55.1; 89.46; Is 45.15).32
” Cf. Blaise Pascal, Pensees, n. 584.
50 Terrien, The Elusive Presence, 474.
Jl "The Old Testament View o f God", 419.
32 Veja uma discussão das palavras hebraicas que significam "ocultar" nas obras de Samuel E. Ballentine alistadas
na Bibliografia.
100
T e o lo g ia do
Afmco T e s t a m e n t o
Que quer dizer o Antigo Testamento quando fala que Deus se oculta?
Vriezen disse que é a substância de Deus que permanece oculta. "O conhecimento
de Deus não implica uma teoria sobre sua natureza, não é ontológico, mas
existencial [...] conhecimento de Deus e comunhão com ele são possíveis, mas o
segredo da Substância de Deus jamais é atingido.”33
Isso pode ser verdade, mas quando o Antigo Testamento fala que Deus se
oculta refere-se principalmente à sua inatividade em favor de seus adoradores e ao
fato de Deus parecer não responder às orações deles. Muitas das expressões de que
Deus esconde o rosto estão nos lamentos (em Salmos e Lamentações). O salmo 44
é um exemplo de lamento comunitário porque Deus se oculta. Israel tinha sido
derrotado e Deus não o resgatou como fizera em outras ocasiões. Assim, o salmista
pergunta:
Por que escondes a face
e te esqueces da nossa miséria
e da nossa opressão?
(SI 44.24)
Por que Deus parecia agir em algumas ocasiões de modo diferente do que
agira em outras? Esse era o mistério. Os que falam no salmo 44 reclamavam que
Deus não lhes havia ajudado como ajudara seus pais, embora não tivessem pecado
(SI 44.9-22). Eclesiastes diz que as pessoas não conseguem encontrar o motivo
pelo qual Deus faz o que faz (Ec 8.17).
Muitos dos salmos falam de "esperar em Deus" (25.3; 37.9; 40.17; 62.1; Is
8.17) e de Deus estar longe (10.1; 22.1, 11, 19). Eles alegam que Deus se esqueceu
(13.1).Os salmistas criam que Deus era coerente em seu propósito e fiel à sua
palavra. Nas complexidades e ambigüidades da existência histórica, porém, o
propósito de Deus pode ser visto só de maneira vaga.
Os salmos de lamento conduzem-nos à dimensão mais profunda do
testemunho da Bíblia: o reconhecimento de fé de que o Deus que se revela na
história muitas vezes permanece oculto. Ele não é prisioneiro de pensamentos
humanos ou cativo de seus esquemas. Seu propósito também não é de fácil
discernimento no desenrolar dos dramas da história humana. Deus permitiu que os
filisteus capturassem a arca da aliança, provocando consternação por parte de Israel
e dos filisteus (1 Sm 4.18-19; 6.9).
” An Outline o f Old Testament Theology, 155.
O C o n h e c im e n t o
de
D eu s
101
Vriezen concordava que o propósito de Deus nem sempre pode ser visto,
mesmo na história da salvação. Ele disse que se compararmos essa história a uma
linha, só certos pontos dela estariam visíveis. Ninguém consegue copiar a linha em
si porque é um segredo de Deus e porque ele mesmo se mantém um Deus
miraculoso e essencialmente oculto.34
Os profetas jamais supuseram saber com precisão o que Deus estava para
fazer. Deus é livre para fazer o que quer. Seus propósitos, planos e caminhos são
com freqüência secretos. Os profetas evitavam dizer exatamente o que Deus faria
ou deixaria de fazer.
Porque os meus pensamentos não são os vossos pensamentos,
nem os vossos caminhos, os meus caminhos, diz o S enhor ,
porque, assim como os céus são mais altos do que a terra,
assim são os meus caminhos mais altos do que os vossos caminhos,
e os meus pensamentos, mais altos do que os vossos pensamentos.
(Is 55.8-9)
Aborrecei o mal, e amai o bem,
e estabelecei na porta o juízo;
talvez o SENHOR, o Deus dos Exércitos,
se compadeça do restante de José.
(Am 5.15)
Buscai o S enhor , vós todos os mansos da terra,
que cumpris o seu juízo;
buscai a justiça, buscai a mansidão;
porventura, lograreis esconder-vos
no dia da ira do S enhor .
(S f 2.3)
O rei de Nínive disse: "Que o homem e os animais clamem poderosamente
a Deus; sim, cada um se converta de seu mau caminho e da violência que está em
suas mãos. Quem sabe Deus possa ainda arrepender-se e afastar-se de sua ira feroz,
de modo que não pereçamos" (Jn 3.8-9, tradução do autor).
O arrependimento de Deus no Antigo Testamento ancora-se no conceito de
sua liberdade.
34lbid., 152.
102
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A n t ig o T e s t a m e n t o
Os deuses pagãos das nações vizinhas de Israel careciam dessa liberdade.
Uma vez que falassem ou emitissem um decreto, eram impotentes para
alterar de algum modo o feito. Era diferente com o Deus de Israel. Ele
sempre se mantinha Senhor dos próprios propósitos. Ele mantinha aberta a
opção de mudar seus decretos sempre que a situação garantisse tal
mudança.35
Essa mudança no curso de ação determinado por Deus frustrou Jonas, mas
revelou a graça de Deus. Os hebreus acreditavam que Deus podia "arrepender-se"
de seu propósito estabelecido se as atitudes e ações humanas mudassem, mas ele
também tinha a liberdade de não se arrepender. Kelley disse: "O arrependimento de
Deus nos salva tanto do desespero como da arrogância".36 O arrependimento de
Deus é coerente com o fato de ele estar oculto. Assim, não só a Substância de Deus
é oculta no Antigo Testamento; seus propósitos e caminhos também são
conhecidos só de maneira parcial.
Eis que isto são apenas as orlas dos seus caminhos!
Que leve sussurro temos ouvido dele!
Mas o trovão do seu poder, quem o entenderá?
(Jó 26.14)
14. Os meios de revelação
Como Deus se revela no Antigo Testamento? De muitas e várias maneiras.
John Goldingay observou a vasta gama de meios pelos quais Javé se revelou a
Israel:
Ele [Israel] experimentou sua presença e atividade e ouviu sua voz na
história de seu passado como nação e esperava experimentá-la no futuro.
Assim, ele tinha consciência de viver na história. Mas também a
experimentava em seu presente, na natureza, na experiência pessoal, no
culto, na teofania, no ouvir e no pronunciar a palavra profética, em sua
consciência moral, na lei, em suas instituições e ordenanças.37
55 Kelley, "The repentance o f God", 13.
“ Ibid.
” Approaches to Old Testament Interpretation, 69.
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Deu s
103
A. Teofanias e epifanias
Num modelo de teologia do Antigo Testamento só podemos dar algumas
pinceladas sobre os meios pelos quais Deus se faz conhecido. Um dos meios pelos
quais Deus se revela no Antigo Testamento é pelas suas aparições
(teofanias/epifanias). Adão e Eva ouviram o som de Deus andando no jardim no
frescor do dia (Gn 3.8). O Senhor apareceu aos patriarcas Abraão, Isaque e Jacó
(Gn 15.1-21; 17.1-21; 18.33; 26.2-5, 24; 28.12-16; 32.24-32).
Alguns estudiosos referem-se a todas as aparições de Deus no Antigo
Testamento como teofanias. Outros fazem distinção entre teofanias e epifanias.
Terrien referiu-se à aparições de Deus aos patriarcas como "visitações epifânicas"
porque em geral não se acompanham de manifestações da natureza como
terremoto, fogo, nuvem, vento, trovão e/ou fumaça como ocorre em outras
teofanias notáveis. As teofanias mais notáveis no Antigo Testamento são a sarça
ardente (Êx 3), o estremecimento do Sinai (Êx 19-24), os chamados de Isaías (Is 6)
e Ezequiel (Ez 1), e o redemoinho (Jó 38).38
Claus Westermann isolou algumas passagens a que chamou epifanias (Dt
33; Jz 5.4-5; SI 18.7-15; 29; 50.1-3; 68.7-8, 33; 77.16-19; 97.2-5; 114; Is 30.27-33;
59.156-20; 63.1-6; Mq 1.3-4; Na 1.36-6; Hc 3.3-15; Zc 9.14). De acordo com
Westermann, as epifanias referem-se só às aparições de Deus para ajudar, resgatar
ou salvar seu povo. A teofania é uma aparição de Deus com o propósito de
transmitir uma mensagem —chamar um profeta, fazer uma aliança ou promessa.39
Bem próximos das teofanias e/ou epifanias estão os relatos de aparições de
Deus a pessoas em visões e sonhos, no anjo do Senhor, em sua face, seu nome ou
sua glória. Kuntz disse que a aparição divina não possui form a consistente. A
descrição teofãnica pode mencionar alguns dos instrumentos divinamente
destacados pelos quais a divindade pode ser representada. Estudiosos de teologia
bíblica em geral identificam quatro: o kãbôd (glória), m a l’ã k (mensageiro ou
anjo), pãnim (face) e Sem (nome). Esses veículos, tecnicamente conhecidos por
teologômenos, são as “representações” da divindade em sua natureza real, mas
jamais plenamente revelada.40
M The Elusive Presence, 63-66.
” Elements o f Old Testament Theology, 25-26, 57-61 (no Brasil, Teologia do AT, pela Paulinas).
40 Kuntz, The Self-Revelation o f God, 37.
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B. A história
Durante séculos os teólogos cristãos falaram da revelação como "a palavra
de Deus". A maior parte dos teólogos sistemáticos fala que a revelação é
preposicional, mas em 1952 G. Emest Wright tentou recuperar a concepção bíblica
de revelação a partir dos teólogos dogmáticos. Em God Who Acts ele disse: "O
propósito desta monografia é descrever a natureza especial e característica da
apresentação bíblica da fé e defender o uso da palavra ‘teologia’ para ela".41 Wright
alegou que, para a maior parte das pessoas, a revelação tem sido preposicional,
expressa do modo mais abstrato e universal possível e organizada de acordo com
um sistema preconcebido coerente. Obviamente, a Bíblia não contém nada assim.
A teologia cristã tende a pensar na Bíblia principalmente como "a Palavra de
Deus", embora na realidade um título mais adequado seja "os Atos de Deus". "A
Palavra com certeza está presente nas Escrituras, mas raramente ou nunca é
dissociada do Ato; antes, é o acompanhamento do Ato."42 Wright definiu teologia
bíblica como "o recital confessional dos atos redentores de Deus numa história em
particular, porque a história é o principal meio de revelação".43
É provável que Wright tenha tido uma reação exagerada contra a forma
preposicional da teologia sistemática, mas era sincero o seu esforço de permitir que
o Antigo Testamento falasse com seus próprios termos. Wright foi influenciado
nesse ponto pelo tratamento dado por von Rad aos "credos" do Antigo Testamento
que recitavam os grandes atos de Deus (Dt 26.5-12).
A idéia de que a revelação é histórica está muito ligada às idéias da escola
da história da salvação, que se pode remontar à "escola Erlangen" de J. C. von
Hofmann em meados do século XIX. "A revelação é histórica" também era uma das
cinco idéias-chave no movimento da teologia bíblica nos Estados Unidos, de
acordo com B. S. Childs.44
Podemos concluir, portanto, que a revelação no Antigo Testamento é
principalmente histórica. É histórica nos seguintes sentidos:
(1) Deus revelou-se em eventos e no ambiente da história do Antigo
Testamento.
(2) Os eventos, experiências e encontros reveladores ocorreram num longo
período.
41 God Who Acts, 11 (no Brasil, O Deus que Age, pela
42 Ib id , 12.
•'Ibid., 13.
44 Biblical Theology in Crisis, 39-44.
ASTE).
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Deu s
105
(3)
O conhecimento de Deus no Antigo Testamento deve ser u
conhecimento mediado, porque Deus é apresentado no Antigo Testamento como
fogo consumidor. Ninguém pode ver a Deus e viver (Êx 33.20).
Deus existe em um nível, e os seres humanos, num nível inferior. Jó
reconheceu esse abismo entre Deus e a humanidade e pediu um árbitro para
transpô-lo (Jó 9.33). Um modo de transpor o abismo entre Deus e as pessoas é
mediar a revelação por meios históricos. Kierkegaard considerou um paradoxo a
idéia de que a revelação bíblica é histórica, pois a revelação é uma visão do eterno,
do imutável, do divino, mas a história é humana, mediada, ligada ao tempo.
Kierkegaard falou da revelação bíblica nos seguintes termos: "Quem compreende
essa contradição de dores? Não se revelar é a morte do amor; revelar-se é a morte
do amado".45
Frank M. Cross parafraseou a parábola de Kierkegaard que ilustra a
natureza da revelação:
Havia um grande rei que amava uma humilde criada. De inicio pareceu
simples para o grande rei chegar à cabana de sua amada e declarar seu
am or por ela. Mas o grande rei era sábio e estava ciente de que não
conquistaria o amor da criada com uma declaração de amor, pois ela
ficaria atormentada. A glória dele a prostraria, e ela não poderia fazer
outra coisa senão casar-se com o grande rei. Então o rei pensou que
poderia tom á-la princesa, ou seja, iria exaltá-la tornando-a igual a si. Mas
de novo o rei percebeu que, ao exaltá-la, ele a estaria mudando, de modo
que ela deixaria de ser a criada humilde a quem amava. Assim, ele
resolveu que, se fosse cortejá-la e conquistá-la como ela era, precisaria
deixar seu poder e glória com o rei, tomando-se pastor. Ele só poderia
ganhá-la descendo ao nível dela. Isso é o que Deus fez ao se revelar na
história e na encarnação.46
Em anos recentes, o conceito de revelação como história tem sido cada vez
mais atacado. James Barr predisse que virá um tempo em que o conceito não será
nem claro nem útil. O conceito de fato tem problemas; tem sido muito unilateral e
ambíguo.
Ele tem sido unilateral no sentido de não dar lugar à revelação pela
natureza, sabedoria ou palavra. Tem sido ambíguo no sentido de que o termo
história pode ser e é usado de muitas maneiras diferentes.
45 Veja Frank M. Cross, "Creation and History".
46 Ibid.
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O conceito pode continuar como um conceito viável e significativo e como
um ingrediente essencial de qualquer teologia bíblica. O conceito de revelação por
intermédio da história não é uma simples moda ou aberração teológica passageira;
ele faz parte do "centro da religião bíblica".47 Goldingay disse: "Não é hora de
dizer adeus à Heilsgeschichte’, mas a crítica certamente tem indicado pontos em
que a idéia necessita de esclarecimento e de uma perspectiva melhor".48
Filósofos gregos especularam acerca do ser, da essência e da eternidade.
Eles identificaram a realidade no âmbito do "ser" estático. As Escrituras do
judaísmo e do cristianismo foram produto da história e preocupam-se
essencialmente com Deus e com os homens na história. As Escrituras não se
preocupam com a chamada história secular, mas com a história como revelação de
Deus.
C. As palavras
Se a revelação é principalmente histórica no Antigo Testamento, qual a
relação entre as palavras (discursos) de Deus e seus atos na história? No Antigo
Testamento as palavras ocupam lugar de destaque como meio divino de
comunicação com seu povo. Edmond Jacob disse que o fato de que Deus se revela
por palavras é uma verdade confirmada em cada livro do Antigo Testamento.49 A
frase mais comum empregada nesse sentido é "a palavra do SENHOR veio a..." (Gn
15.1; 2Sm 7.4; lRs 6.11; 17.2 e na maioria dos profetas). O principal vocábulo
hebraico traduzido por "palavra" é dãbãr. A forma verbal, de acordo com Jacob,
pode significar "estar atrás e empurrar". Uma palavra, portanto, é a projeção do que
está atrás — ou seja, o que transpõe para um ato o que está no coração.50
No Antigo Testamento, a palavra é dinâmica, poderosa, uma força que
"ocorre" ou sobrevêm a alguém. É um fogo destruidor (Jr 5.14); dura para sempre
(Is 40.8). Os Dez Mandamentos são chamados as "dez palavras" (Êx 20.1; 24.3, 4,
8; 34.1, 27, 28). Essas "palavras" constituem uma revelação de Deus; nelas Javé
afirma ser Senhor. Elas encerram a autoridade do próprio Deus, de modo que
nenhum profeta verdadeiro jamais sonhou questionar-lhes a autoridade.
47 Lemke, Interpretation 36 [1983].
4“ Approaches to Old Testament Interpretation, 67.
49 Old Testament Theology, 127.
w Ibid., 128. Veja uma modificação dessa definição de dSbSr, “palavra”, em James Barr, The Semantics o f Biblical
Language, 129-140.
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Deus
107
Profetas verdadeiros também faiavam a palavra de Deus, mas a diferença
entre a palavra profética e as dez palavras era que as dez palavras "têm um valor
permanente para todas as gerações, enquanto a palavra do profeta [...] não tem
aplicação após seu cumprimento".51
Claus Westermann distinguiu três tipos de palavra no Antigo Testamento:
(1) anúncio ou proclamação —ou de salvação ou de julgamento; (2) instrução ou
diretriz —ou lei ou mandamento; e (3) a palavra cultual em adoração —ou bênção
ou maldição. O anúncio é em geral entendido como a palavra do profeta, mas os
sacerdotes e levitas também podiam proclamar a palavra de Deus nos anúncios de
bênção ou maldição. Ageu pediu a seu povo que fosse aos sacerdotes perguntar
acerca da santidade e da impureza (Ag 2.11-14).
Os três tipos de palavra relacionam-se entre si. Quando se dá ênfase
demasiada a uma função, negligenciando-se as outras, podem surgir equívocos. Por
exemplo, os cristãos com freqüência dão ênfase à função preditiva da profecia,
excluindo a função legal ou instrutiva. Nesse caso, o Antigo Testamento toma-se
um livro cujo valor principal é a predição da vinda de Cristo. Os judeus, por sua
vez, fazem da lei o aspecto mais importante do Antigo Testamento.
Westermann disse que nenhuma dessas funções da palavra de Deus no
Antigo Testamento pode tornar-se absoluta à parte das outras. Toda perspectiva
unilateral da palavra de Deus no Antigo Testamento pode ser rebatida pelo fato de
que só juntas as três funções da palavra (anúncio, instrução e culto) expressam o
que a palavra de Deus é no Antigo Testamento.52
Ao falar sobre a palavra de Deus no Antigo Testamento, precisamos
lembrar que o Antigo Testamento com freqüência assevera que Deus "fala" à
humanidade, mas não explica como ele fala. Quando lemos que Deus falou a
Abraão, a Moisés ou a um dos profetas, não podemos pressupor que tenha falado
com voz audível. A palavra falar pode simplesmente significar "comunicar-se",
"revelar-se" ou "manifestar-se" de várias maneiras. A palavra hebraica "voz", qôl,
pode também significar "trovão" (Gn 3.8; ISm 12.17; SI 29.3, 4, 5, 7, 8, 9).
Deus falou de modo audível no Antigo Testamento? Tanto o Antigo como
o Novo Testamento falam que certas pessoas ouviram uma voz do céu. Quando o
povo de Israel chegou ao Sinai, o monte foi envolvido por nuvens e fumaça porque
Javé havia descido sobre ele em fogo. Moisés falou a Javé, e Deus respondeu-lhe
num trovão (Êx 19.18-19). Então Deus falou as dez palavras a todo o povo. Eles
ficaram com tanto medo quando ouviram sua voz, que perguntaram se no futuro
Moisés não poderia ser o mediador entre eles e Deus, de modo que não tivessem de
ouvir sua voz outra vez (Êx 20.18-19).
51 Jacob, op. cit., 130.
52 Elements o f Old Testament Theology. 24.
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Tempos depois o escritor de Deuteronômio disse a respeito desse evento:
"Então, o SENHOR v o s falou do meio do fogo; a voz [qôl] das palavras ouvistes;
porém, além da voz [qôl], não vistes aparência nenhuma" (Dt 4.12). Pode haver
referência a uma voz audível em Números 7.89: "Quando entrava Moisés na tenda
da congregação para falar com o SENHOR, então, ouvia a voz que lhe falava de
cima do propiciatório, que está sobre a arca do Testemunho entre osdois
querubins; assim lhe falava". Esse linguajar pode significar que Moisés recebeu sua
revelação de Deus da própria morada de Deus sobre a terra.
Wheeler Robinson disse que na Lei e nos Profetas a revelação é em geral
descrita como "falada" por Deus às pessoas.
Essa exteriorização do processo era inevitável, com as supostas limitações
psicológicas, para expressar a autoridade da revelação. Mas a forma
histórica do evento, a verdadeira forma em que se manifestava, deve ter
sido muito mais íntima que um a voz real, para garantir o necessário
núcleo de convicção. Mesmo que o profeta às vezes tenha “ouvido” uma
voz externa (como é bem possível), isso não nos isentaria de uma análise
psicológica da experiência constituinte.51
D. A relação entre palavras e história
A revelação deve ser encontrada em eventos ou em palavras? Devemos
permitir que a palavra e o evento interajam, não reduzir um ao outro. É necessário
haver uma combinação entre o conceito teológico e o fato histórico. "Fatos sem
palavras (interpretação) são cegos; palavras sem fatos são vazias."54 Se envolve
interpretação (palavras), podemos falar da "história" no Antigo Testamento como
"fatos"? Deve-se admitir que os fatos no Antigo Testamento são interpretados. Os
autores dão descrições do que ocorreu entre Deus, o povo e o mundo. Os
historiadores do século XIX consideravam "história" só o que podia ser
documentado e confirmado por métodos científicos. Descartavam quaisquer dos
atos de Deus como partes integrantes da história.55
No Antigo Testamento aquilo que move a história ocorre entre Deus e o
povo. A questão permanece: a história do Antigo Testamento ocorreu ou a história
veterotestamentária dos atos de Deus são meras inferências ou deduções humanas a
partir de certos eventos? Temos interpretação, não história?
55 Inspiralion and Revelation, 274.
54 Goldingay, Approaches to Old Testament Interpretation, 77.
55 Veja B. Stade, Geschichte des Volkes Israel I [ 1887]; cf. E. W. Nicholson, God and His People, 7-8.
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109
R. J. Blaike exige que "os que já não acreditam que Deus é um agente vivo
e pessoal parem de usar os termos aios de Deus, Deus em ação e coisas
semelhantes em referência a algo que não atos propositados e deliberados desse
Deus".56
Lemke argumentou que a menos que possamos ou queiramos afirmar a
atividade de um agente divino em ação na mente dos líderes de Israel ou ajudando
a livrar Israel do Egito por meios naturais ou extraordinários, "toda conversa sobre
atos de Deus ou revelação por meio da história não faz sentido e é enganosa, e uma
honestidade básica deveria compelir-nos a nos refrear de fazer isso".57
Estudiosos continuam a debater sobre a diferença entre a história veterotestamentária da história de Israel e a reconstrução de tal história feita por estudiosos
críticos modernos. Gerhard von Rad argumentou que existe uma ampla diferença
entre o que o Antigo Testamento diz ter ocorrido e o que historiadores científicos
modernos dizem ter ocorrido. De novo, precisamos lembrar que os escritores do
Antigo Testamento e os historiadores modernos têm pressuposições diferentes.
Mesmo com essa diferença, um reconhecido estudioso do Antigo Testamento
consegue dizer: "Hoje não temos um bom motivo para duvidar de que há uma dose
significativa de congruência entre os verdadeiros fatos da história de Israel
reconstruídos pela crítica e o modo pelo qual são lembrados em suas tradições
sagradas".58
£ . História e fé
Em última análise, se a história veterotestamentária da salvação ocorreu ou
não é uma questão de fé. Embora a fé seja impossível se não houver base histórica,
o historiador não consegue provar ou reprovar a historicidade dos antigos atos de
Deus na história de Israel. Desse modo, com base nas experiências pessoais com
Deus e na mensagem da Bíblia, podemos dizer: "Posso manter a convicção de que
a história da salvação ocorreu".59 Ainda assim, convicções de fé não podem tomar
impertinente a investigação histórica. Se os autores do Antigo Testamento
procuravam escrever "história" pura e falharam, "é difícil levar a sério o trabalho
deles. Mas se estavam contando uma história com uma mensagem, é a história
deles que devemos interpretar".60
Cremos que a história bíblica é fiel ao propósito de Deus em nos mostrar
quem ele é por meio do que tem feito e em nos mostrar como atender a ele. George
“ Secular Christianity and God Who Acts, citado por Lemke, "Revelation Through History", 4 1.
57 Op. cil., 41.
" Ibid., 45-46.
” Goldingsy, Approaches to Old Testament Interpretation, 74.
“ Ibid..
110
TEOI.OCIA
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L. Kelm publicou recentemente seu entendimento do relato bíblico do êxodo de
Israel do Egito e sua conquista de Canaâ. Kelm rejeitou a "interpretação simplista
do texto bíblico que parece desconsiderar por completo a possibilidade de um
evento histórico muito mais complexo do que uma leitura informal poderia
sugerir". Ele também rejeitou o método histórico-crítico que sujeita o texto bíblico
a uma análise interna rigorosa para determinar a fidedignidade histórica pelo
"preconceito subjetivo da crítica".61
Kelm reconheceu que "o relato bíblico apresenta um grande problema.
Algumas das evidências históricas parecem claramente contraditórias, e a
conciliação de detalhes bíblicos, mesmo à parte de dados extrabíblicos, não é
simples".62 Ele recorreu à atuação dos escribas na transmissão dos textos para
explicar muitos problemas e complexidades dos textos bíblicos presentes. Kelm
concordou com muitos estudiosos judeus, entendendo que, enquanto copiavam o
texto, geração após geração, os escribas podem ter feito acréscimos ou comentários
aos textos "para dar sentido" a eles ou tomá-los compreensíveis à sua geração. É
possível que tenham mudado, revisado ou reformulado os textos para esclarecê-los
e ajudar em sua interpretação. Os chamados "anacronismos" (linguagem de uma
época posterior aplicada num texto sobre uma época anterior) podem ser atribuídos
aos escribas como meio de atualização dos textos.63
Essas mudanças promovidas pelos escribas podem também responder por
muitas incoerências, duplicações, contradições e, em especial, diferenças de estilo
e vocabulário. A modernização dos textos feita pelos escribas garantia uma
constante transição de significado, por fim interrompida pela canonização. Nesse
ponto a santidade dos textos bloqueou o processo interpretativo dos escribas. Seu
significado foi fixado nos conceitos literários daquela época e lugar, muito distante
da mente do século XX.64
Kelm pode estar correto no que disse a respeito da atuação dos escribas,
mas não se podem atribuir todos os problemas textuais ou históricos do Antigo
Testamento à ação dos escribas. Trent C. Butler disse que o problema começa com
as pressuposições ligadas à teologia e à fé pessoal. Quem crê não chega às
narrativas bíblicas para validar a qualidade das verdades nelas contidas. As
narrativas já se provaram verdadeiras para a vida de fé muito antes que ele
aprendesse a levantar o problema histórico. A questão histórica torna-se "um meio
de reforçar a fé ou de validar a doutrina da pessoa".65
*' Escape lo Conflict, xxiii.
62 Ibid., xx.
M Ibid., xxv.
w Ibid., xxv-xxvi.
65 Joshua, xxxix.
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Deus
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Todos buscamos conhecimento e entendimento, de modo que insistimos na
questão histórica. Cremos que a tradição bíblica é historicamente fundamentada.
"A tradição bíblica não foi inventada do nada."66 Muitas teorias têm sido
apresentadas para explicar a versão histórica da conquista de Israel. Até aqui não se
estabeleceu nenhum consenso acadêmico em tomo de uma teoria. Nossas
pressuposições teológicas podem-nos inclinar a deixar para trás as regras do
historiador objetivo por uma declaração de fé a respeito da situação histórica.
"Nesse caso, precisamos estar bem conscientes da natureza das declarações que
estamos fazendo."67
A. O nome denota essência
O conhecimento de Deus no Antigo Testamento brota não só da história,
palavra, criação e teofania, mas também da revelação do nome Javé. Concorda-se
em geral que "entre povos primitivos e em todo o antigo Oriente, o nome denota a
essência de algo: chamar algo pelo nome é conhecê-lo e, por conseguinte, possuir
poder sobre ele".6®
Os israelitas não eram exceção a essa regra geral entre os povos primitivos.
Eles supunham que a essência total da pessoa concentrava-se em seu nome.69 O
nome estava relacionado à natureza do caráter da pessoa. O nome de Eva, "vida",
ligava-a ao homem (Gn 2.18-23). Esaú disse que as ações de Jacó refletiam seu
nome (Gn 27.36). Nabal era como seu nome, "um tolo" (ISm 25.25).
Von Rad e Jacob argumentaram que o nome de um deus no mundo antigo
encerrava poder e podia ser ou perigoso ou beneficente. Era, assim, importante
conhecer o nome do deus.
“ Ibid., xli.
67 Ibid., xli-xlii.
“ De Vaux, Ancienl Israel, 43.
69 Jacob, op. cit., 43.
112
T e o l o g ia
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B. A invocação do nome
No Antigo Testamento, era necessário invocar o nome de Javé para
aproximar-se dele. A primeira palavra de muitas das orações nos salmos é uma
invocação, "Javé" (3.1; 6.1; 7.1; 8.1; 12.1). Entretanto, em algumas orações,
Elohim, "Deus", é usado em seu lugar. A doxologia de Davi começa com a palavra
Javé (1 Cr 29.10-11). A invocação do nome era ainda importante na época do Novo
Testamento. Jesus ensinou seus discípulos a começar assim suas orações: "Pai
nosso [...] santificado seja o teu nome" (Mt 6.9).
Quando Deus tomou a iniciativa de revelar-se, começou pronunciando o
próprio nome: "Eu sou Javé" (Gn 35.11; Êx 6.2; 20.1; 34.5-6). Mas a revelação do
nome não tomou Javé acessível e familiar. Israel considerava o nome de Javé santo
e insistia que ele não devia ser profanado (Lv 22.2, 32; SI 103.1; 105.3; 111.9;
145.21; Ez 20.39; 36.20-23; 39.7; 43.7; Am 2.7). O nome de Javé substituía o
próprio Deus, representando toda sua presença santa.
A invocação do nome era parte importante do culto. Se Javé não tivesse
revelado seu nome, o adorador não poderia invocá-lo e não haveria culto. Childs
reconheceu que a ligação entre o nome e o culto é válida. Mas quando Deus deu
seu nome a Moisés (Êx 3.14), a questão era mais de relacionar o chamado de
Moisés ao nome pela autoridade de Deus que pelo culto.70
C. O significado e a im portância do nome do Deus de Israel
O nome Javé parece vir de uma forma imperfeita do verbo hebraico hãyâ,
"ser" ou "tomar-se". Albright argumentou que o nome vem da forma hifil
(causativa) do verbo, de modo que significa "aquele que causa a existência" e,
portanto, "o criador". Muitos dos alunos de Albright apresentam propostas
semelhantes. David Noel Freedman entende que o tetragrama YHWH deve ser
traduzido "ele cria".71 Frank Cross pensava que Javé era originariamente um nome
cultual de El. A frase cultual "El que cria" tomou-se mais tarde "Javé, o criador".72
Philip Hyatt afirmou que em lugar de ver Javé como uma divindade
originariamente criadora, devia-se entendê-lo como a divindade padroeira de um
dos ancestrais de Moisés. Seu nome poderia ter significado "ele causa a existência
(do ancestral)" ou "ele sustenta (o ancestral)".73
10 The Book o f Exodus, 67.
11 "The Name o f the God of Moses", 155.
72 "Yahweh and the God o f the Fathers', 225-259.
73 "Was Yahweh Originally a Creator Deity?", 376.
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William Brownlee, especialista no material de Qumran, entende com base
no uso que o Manual de Disciplina faz de 1Samuel 2.3 e em outros indícios que o
significado de Javé deve ser "aquele que faz acontecer".74 Brownlee disse que esse
nome combina com o anúncio de que Javé livraria os hebreus da escravidão. A
situação deles parecia desesperadora. O que eles precisavam era a garantia de que o
Deus deles, Javé, podia fazer as coisas acontecerem e cumprir as promessas que
lhes havia feito por intermédio de Moisés.75
A idéia de que Javé significa ”o criador" pode ser questionada seriamente
porque se baseia na pressuposição de que o nome Javé vem da forma hifil
(causativa) do verbo "ser". A forma hifil desse verbo jamais ocorre no Antigo
Testamento.76 Tanto Jacob como von Rad criam que o significado básico de Javé é
"presença", "estarei convosco" (Êx 3.12; cf. Gn 28.20; Js 3.7; Jz 6.12).77
Terrien disse: "Ao vacilante Moisés, Javé primeiro deu segurança ao
afirmar: ‘Estarei contigo’".7' Pela revelação de seu nome, Javé, "Eu sou" ou "Eu
serei", Deus estava prometendo sua presença a Moisés. Deus estaria com ele. Na
Grande Comissão, Jesus prometeu estar com os discípulos sempre, até o fim dos
tempos (Mt 28.20).
Deus estava se revelando quando deu seu nome a Moisés? Ou estava sendo
evasivo, recusando-se a dar uma resposta a Moisés, quando disse: "EU SOU O
QUE SOU" (Êx 3.14)? Deus recusou-se a dar o nome a Jacó (Gn 32.30) e a Manoá
(Jz 13.17-18). A. M. Dubarle concluiu que Deus recusa-se a revelar o nome a
Moisés em Êxodo 3.14 porque isso comprometeria sua liberdade de ser Deus.
Dubarle entendia que Deus estava dizendo: "Meu nome não lhe diz respeito".79
Ludwig Köhler também interpretou Êxodo 3.14 como uma resposta evasiva à
pergunta. Deus é o deus absconditus.*0
Alguma ambivalência aparece no texto, mas o propósito principal é revelar
o que Deus fará, e não a essência de seu ser. Assim, embora Javé tenha revelado
seu nome a Moisés e a Israel e se tenha permitido ser "invocado" por eles, ou "se
entregado" em compromisso e confiança só a Israel, ele ainda manteve sua
liberdade.
” "The Ineffable Name o f God", 39-45.
” Ibid., 45.
x Jacob, op. cit., 50.
77 Ibid., 53; von Rad, O ld Testament Theology I, 180 (no Brasil, Teologia do AT, 2 vols., pela
’* The Elusive Presence, 118.
” "La Signification du nom de Jahweh", 3-21.
10 Old Testament Theology, 242, n. 38.
ASTE).
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T e o l o g ia
do
A n t ig o T e s t a m e n t o
Zimmerli disse que a liberdade de Javé significa que ele jamais é um
simples objeto. Ainda que se tenha revelado liberalmente, ele deu o Terceiro
Mandamento do Decálogo para proteger essa liberdade contra "abusos
religiosos".81
D. A origem do nome
O nome Javé é mais antigo que Moisés? Javé aparece como nome de Deus
a partir do segundo capítulo de Gênesis. Entretanto, Êxodo 6.3 diz: "Apareci a
Abraão, a Isaque e a Jacó como Deus Todo-Poderoso; mas pelo meu nome, O
S e n h o r [Javé], não lhes fui conhecido". Por indícios bíblicos e extrabíblicos, é
provável que o nome divino Javé existisse fora de Israel antes de Moisés; mas
ainda não temos prova conclusiva disso. O elemento "Jo" em Joquebede, nome da
mãe de Moisés, dá a entender um uso bíblico de Ja (Yah) antes de Moisés. A
respeito de indícios extrabíblicos, P. D. Miller disse: "O nome ‘Javé’ em si é agora
amplamente confirmado em inscrições na Judéia (mais de trinta casos) e não há
referências a outras divindades".82
Childs disse que devemos reconhecer os cognatos do nome divino
encontrados no antigo Oriente Próximo e até contar com uma longa pré-história do
nome antes de sua entrada em Israel, mas o autor permaneceu aberto à
possibilidade de Israel ter atribuído um significado totalmente novo ao nome.83
Walter Harrelson admitia que o aparecimento da crença em Deus sob "o nome
pessoal Javé é anterior ao período mosaico".84
W. H. Schmidt chegou a dizer: "O nome Javé não se restringe a Israel e,
além disso, é anterior ao Antigo Testamento, ou seja, é bem possível que não seja
israelita de origem".85 R. W. L. Moberly alegou recentemente com veemência que
o nome Javé foi primeiro revelado a Moisés e que empregos anteriores em Gênesis
são anacronismos.86 Podemos concluir apenas que a questão da origem do nome
Javé ainda não tem resposta.
Old Testament Theology in Outline, 2 1.
"Israelite Religion", 206, 217.
The Book o f Exodus, 64.
“ "Life, Faith, end the Emergence o f Tradition", 21.
The Faith o f the Old Testament, 58.
"■ Veja R. W. !.. Moberly, The Old Testament o f the Old Testament, 5-6.
O C o n h e c im e n t o
de
Deu s
115
E. O nome de Deus e sua presença
Deuteronômio fala com freqüência de fazer o nome de Deus "habitar" ou
"morar" em certo lugar (Dt 12.5, 11). Obviamente, Israel não podia contar demais
com a presença de Deus na adoração. Só Deus podia garantir sua presença. O nome
de Javé representa sua presença, poder e autoridade. Talvez esse seja o motivo pelo
qual o nome Javé ocorre com tanta freqüência (cerca de 6.700 vezes) no Antigo
Testamento, enquanto Elohim só ocorre 2.500 vezes. Javé, não Elohim, era o nome
do Deus a ser cultuado. Durante boa parte da história do Antigo Testamento o
nome Javé parece ter sido usado livremente por todo e qualquer israelita. Mas no
período pós-exílico o nome foi retirado do uso geral, provavelmente por temor do
julgamento divino, caso o nome fosse pronunciado em vão. Na época de Jesus o
nome era usado só em certas ocasiões no Templo, mas não mais nos cultos em
sinagogas. Essa hesitação em pronunciar o nome reflete-se na maneira pela qual o
nome aparece no texto massorético. Em geral ele aparece como quatro consoantes,
YHWH, junto com as vogais da palavra ’âdonay, criando uma combinação ("Jeová")
que nenhum israelita jamais pronunciava. Em Israel, no pré-exílio, é provável que
o nome fosse pronunciado Javé.
A palavra Jeová reflete a pronúncia alemã, uma vez que o J alemão é usado
em lugar do Y, e o Wé pronunciado V em alemão. A pronúncia de Jeová jamais foi
usada pelos judeus. Eles liam e pronunciavam a palavra como " ’àdonay".
Entretanto, quando a palavra aparece antes do tetragrama na Bíblia Hebraica (310
vezes), as vogais da palavra elohim são usadas com as quatro consoantes, e a
palavra é pronunciada "Elohim".
F. Resumo
Javé era o nome especial de Israel para seu Deus. Ao revelar seu nome a
Moisés e, por sua vez, a Israel, Deus escolhe ser descrito como "o definível, o
distintivo, o indivíduo. Desse modo a fé israelita opõe-se ao conceito abstrato de
divindade e também contra uma ‘base de existência’ sem nome. Tanto os
equívocos intelectualistas de Deus como os místicos são rejeitados".17
17 Eichrodt, Theology o jlh e O ld Testamtnt I, 206.
116
T f.o i .o c ia
do
A n t ig o T e s t a m e n t o
Isso é bem diferente da descrição abstrata de Deus dada por Paulo Tillich,
como aquele que é o mistério último, a profundeza infinita, a base, o poder e a
fonte de todo ser.88 Essa definição não chega perto do Definido, o Deus Vivo, o
Salvador Vindouro do Antigo Testamento. O nome Javé é um nome pessoal, não
abstrato. Baseado numa forma do verbo "ser", relaciona-se de algum modo à idéia
de existência: passada, presente e futura.
Ele está ligado ao passado no que diz respeito a Moisés. Javé é o mesmo
nome do Deus dos pais Abraão, Isaque e Jacó (Êx 3.16). Ele é também o Deus do
futuro: "Este é o meu nome eternamente, e assim serei lembrado de geração em
geração" (Êx 3.156). O nome também possui uma dimensão escatológica no
Antigo Testamento. Pode haver uma ligação entre o nome Javé e a origem da
escatologia, "pois um Deus que se define como "eu sou" não descansa até que esse
ser e essa presença sejam concretizados em sua perfeição".89
O profeta do exílio podia referir-se a Javé como "o primeiro e o último,
Criador, Senhor da história e único Salvador" (Is 41.4; 43.10; 44.6; 48.12-13; 49.6,
26; cf. Ap 22.13). Pelos atos poderosos de Javé na história, o faraó, os egípcios, as
nações e Israel saberiam que Javé era Deus ("Eu sou Javé", Êx 7.5; 8.10, 22; 9.14;
10.2; Ez 20.26, 38; 24.24, 27; 34.27; 35.9, 15; 36.11, 23, 38; 38.23; 39.6, 28). Esse
único Deus definível e distinto (Javé) escolheu um homem (Abraão) e um povo
(Israel) e firmou uma aliança especial com eles. Por meio deles Deus abençoaria
todas as nações.
" Veja G. Emest Wright, The Rute o/G od, 16.
" Jacob, op. cit., 54.
4
Eu serei o vosso Deus, e vós sereis o
meu povo (eleição e aliança)
16. E vós sereis o meu povo (eleição)
A. Tendências recentes no estudo da eleição
Em 1950 H. H. Rowley lamentou o fato de a doutrina da eleição ter
recebido pouca atenção em estudos bíblicos modernos.' Na realidade alguns artigos
e livros sobre eleição no Antigo Testamento foram escritos antes da obra de
Rowley, e a teologia do Antigo Testamento, que revivia na época, deu muita
atenção a ela.
Em 1928, K. Galling escreveu uma monografia, "Die Erwãhlungstraditionen Israels", em que afirma que o Antigo Testamento possui duas tradições
da eleição divina de Israel, uma na época de Abraão e outra na época de Moisés.
Galling afirmou que a última é a tradição mais antiga. Rowley reconheceu duas
tradições de eleição no Antigo Testamento, mas defendeu a escolha remota de
1 The Biblical Doctrine o f Election, IS.
118
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A n t ig o T e s t a m e n t o
Abraão, considerando-a substancialmente confiável. Rowley disse que Israel foi
eleito em Abraão, mas essa eleição foi revelada por intermédio de Moisés.2
Em 1929, J. M. P. Smith afirmou que a fé dos israelitas em sua eleição
firmava-se num orgulho natural de nação e raça e na fé em Javé, a quem
representavam entre as nações.3 Rowley rejeitou a idéia de Smith, dizendo: "Se não
tivesse uma base mais profunda que essa, possuiria pouca validade em si e não
teria nada mais que um interesse histórico".4
Walter Eichrodt não dedicou uma seção especial para discutir a eleição. Ele
ficou tão absorvido pela idéia de aliança, que a idéia de eleição ficou quase
esquecida, mas considerou que ambas eram bem ligadas. Eichrodt disse: "Não se
pode escapar do fato de que no Antigo Testamento o amor divino é absolutamente
livre e não condicionado em suas escolhas; volta-se para um homem entre
milhares e mantém o controle sobre ele com exclusividade zelosa, apesar de todas
as suas deficiências".5 Eichrodt salientou que mesmo quando a palavra eleição não
era usada, o povo e os profetas compreendiam que Israel ocupava uma posição
especial entre as nações.6
G. Emest Wright considerou a eleição uma das principais chaves para
compreender Israel e a fé veterotestamentária. "Eis o ponto central da literatura."7
Dois anos mais tarde, em 19S2, Wright discordou da idéia de Eichrodt de que a
aliança é o principal elemento unificador no Antigo Testamento, insistindo que a
eleição é mais básica que a aliança. "Ainda que as duas andem juntas, a última é
uma linguagem conceptual para expressar o significado da primeira e faz
considerável diferença qual delas recebe a ênfase principal."8 Wright disse que a
inferência teológica inicial e principal do evento do êxodo foi a doutrina do povo
escolhido. Entretanto, perto do fim da vida, Wright parece ter modificado sua
postura sobre a relação entre a eleição e a aliança, concordando mais com Eichrodt
em que a aliança é central.9
Em 1938 Wheeler Robinson observou que o Antigo Testamento descreve
"a escolha divina de Abraão como indivíduo e segue a sorte de sua família até que
ela se transforma em nação. Então a nação é libertada do Egito e se estabelece na
terra prometida. Muito depois, emerge a doutrina de um remanescente justo (Is 7.3;
8.16-18)". Robinson disse que é difícil ver como qualquer religião revelada pode
prescindir de uma doutrina de eleição, pois ela é o mandato para uma minoria
J /AW, 30-31.
5 "The Chosen People*, 73-82.
* The Biblical Doctrine o f Election, 16.
5 Theology o f the Old Testament 1 ,286.
*Ibid., 269.
7 The Old Testament Against Its Environment, 47.
' God Who Acts, 36, n. I.
* The O ld Testament and Theology, 62.
Cu s e r e i o vosso D e u s, e
v ó s s e r e i s o m eu p o v o
119
persistir em seu propósito como povo de Deus. O particularismo implicado
pertence a cada missão importante e não é marca de provincialismo na religião.10
Em 1946 Robinson escreveu que a doutrina da eleição abre-se para todo o
desenvolvimento da religião israelita e judaica e pode ser tomada como o principio
mais abrangente de unidade nela contida, depois da ênfase básica na unidade de
Deus. Ele discordou de Eichrodt em que a doutrina da eleição deva ser subordinada
à da aliança."
Em 1953 John Bright destacou a importância da doutrina da eleição no
Antigo Testamento, dizendo: "Não encontramos em sua história nenhum período
em que Israel não cresse que era o povo escolhido de Javé [...] A história da Bíblia
remonta essa história da eleição a Abraão, mas foi no evento do êxodo que Israel
viu seu verdadeiro início como povo".12 Bright cria que isso não era uma noção
esotérica apresentada por líderes espirituais. O povo estava saturado daquilo. Em
1967 Bright escreveu que, entre o complexo de crenças no Antigo Testamento,
destaca-se a palavra eleição.
Sempre que se examina o Antigo Testamento, encontra-se a convicção
obstinadamente mantida de que Javé, em sua graça soberana, chamou
Israel para si, livrou-o da escravidão e lhe deu a terra prometida, e que
Israel, portanto, ocupa uma posição especial entre as nações da terra como
seu povo escolhido [...] A crença na eleição de Israel percorre todo o
Antigo Testamento, tanto no início como depois. Em parte alguma do
Antigo Testamento falta uma pressuposição tácita ou afumação confiante
de que Javé chamou Israel dentre todas as nações da terra para ser seu
povo escolhido.13
Em 1953 Th. C. Vriezen publicou uma monografia sobre eleição no Antigo
Testamento, nele limitando o pleno significado de eleição ao termo bãhar,
"escolher". Assim, ele chegou a um significado restrito de eleição, secundário à
aliança e datado do século vil.14 Ele concordava que a maior parte do Antigo
Testamento preocupa-se com o relacionamento entre Javé e Israel, embora outras
vozes, como Rute, Jonas e (Segundo) Isaías, sejam ouvidas, lembrando a Israel que
a graça de Deus estende-se também às outras nações.15 Vriezen disse: "No Antigo
Testamento, a escolha é sempre ação de Deus, de sua graça, e sempre contém uma
10 Record and Revelation, 327.
" Inspiration and Revelation, I S3.
11 The Kingdom o f God, 27.
” The Authority o f the O ld Testament, 132.
14 "Die Erwählung Israels’, 35.
15 Outline o f Old Testament Theology, 314.
120
T e o l o g ia
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A n t ig o T e s t a m e n t o
missão para o homem; e é só por essa missão que o homem pode compreender a
escolha de Deus".16
Vriezen viu no fato de Deus eleger Israel como sua possessão uma fonte de
tensão e um paradoxo no Antigo Testamento. Por um lado, Deus escolheu Israel e
lhe advertiu que não tivesse nenhuma ligação com outras nações. Por outro, Deus
escolheu Israel para servir a ele e às outras nações. Se nos concentrarmos em um
aspecto dessa doutrina, vamos compreendê-la mal, e ela se toma falsa.
Por exemplo, a verdade da eleição de Israel é inaceitável se for
racionalmente interpretada para significar que por esse motivo Deus
rejeitou as nações do mundo, que por esse motivo Israel é mais importante
para Deus que as outras nações, pois Israel só foi eleito para servir a Deus
na tarefa de levar as outras nações a Deus. Em Israel Deus buscava o
mundo. Israel era o ponto de ataque de Deus ao mundo. Quando, pelo
conhecimento de que era povo de Deus, Israel deduzia a certeza de sua
eleição especial e, por isso, considerava-se superior à outras nações, os
profetas precisavam contradizer isso e chamar o povo de volta ao Deus
vivo, cuja misericórdia é grande para com Israel, mas também para com o
mundo. Pois, em sua misericórdia, Deus chamara Israel para o serviço de
seu reino entre as nações da terra.17
A eleição, de acordo com Vriezen, é a manifestação da majsstade e da
santidade de Deus e implica o direito de tomar decisões que transcendem a
humanidade.18 Vriezen fez distinção entre Erwählung, "eleição", e Erwahlheit,
"sentimento de eleito", "sentimento de escolhido", o sentimento de orgulho em ser
eleito. A eleição é legítima; o sentimento de eleição, não.19
Num longo trecho sobre eleição, Edmund Jacob disse que a eleição é uma
das realidades centrais do Antigo Testamento.
Embora seja mencionado com menos freqüência que a aliança, é o ato
inicial pelo qual Javé passa a se relacionar com seu povo e a realidade
permanente que pressupõe a constância desse laço. Cada intervenção de
Deus na história é uma eleição.20
Jacob concordou com Rowley em que a eleição no Antigo Testamento é só para
serviço. Ele cria que o fato da eleição em Abraão e Moisés é mais antigo que a
teologia da eleição no javista e no deuteronomista. Jacob disse: "Havia no
“ "Die Erwählung Israels", 109.
17 Outline o f Old Testament Theology, 88.
"Ib id ., 316.
15 "Die Erwählung Israels", 1 IS.
20 Theology o f the Old Testament, 201.
EU SEREI O VOSSO DEUS, E VÓS SEREIS O MEU POVO
121
movimento que os levou [os patriarcas] de Harã a Canaã algo que correspondia a
uma eleição, e parece impossível ver na religião dos patriarcas uma simples
retroprojeção de formas de crença que só foram correntes cinco séculos mais
tarde".21
Von Rad falou com freqüência de eleição no Antigo Testamento, ainda que
não tenha devotado uma seção à parte para o tema em Old Testament Theology. No
início de sua obra ele afirmou que a crença posterior na eleição de Israel já está
implícita no "culto pré-javista dos ancestrais" de Israel.22 O conceito de eleição é
usado primeiro numa base teológica ampla por Deuteronômio numa data
relativamente tardia, mas "a crença de que Javé tomou Israel como seu povo
peculiar é, claro, antiqüíssima".23
Um dos aspectos que interessou von Rad quanto à perspectiva
veterotestamentária da eleição é seu relacionamento com a lei ou os Dez
Mandamentos. Ele esclareceu a perspectiva do Antigo Testamento de que a eleição
ou o ato salvador veio antes da lei e dos Dez Mandamentos. Guardar a lei não era
uma condição de sua salvação, mas uma expressão complementar da graça de Deus
para com ele como povo eleito. "Ora, não pode haver nenhuma dúvida de que é a
proclamação do Decálogo sobre ele que leva a efeito a eleição de Israel [...] os
destinatários são assim resgatados por Javé."24
Sempre há uma relação estreita entre os Mandamentos e a aliança:
... mas em circunstância alguma esses mandamentos foram prefixados à
aliança num sentido condicional, como se a aliança só tivesse efeito
depois de rendida a obediência. A situação é, antes, inversa. A aliança é
feita e, com ela, Israel recebe a revelação dos mandamentos [...] Ele [o
Decálogo] era a garantia de sua eleição.25
Von Rad de fato reconheceu certas passagens em que as bênçãos da
salvação são condicionadas pela obediência de Israel, dependendo dela (Dt 6.18;
7.12; 8.1; 11.8-9; 16.20; 19.8-9; 28.9). Mas mesmo com isso "a grande oferta de
graça de Deuteronômio não é, de modo algum, anulada, proclamando-se um mejo
legal de salvação. Mesmo os casos que parecem tomar a salvação condicional e
dependente do progresso de Israel são prefaciados por uma declaração de eleição e
amor de Javé".26
21 Ibid., 205.
° O ld Testament Theology I, 7 (no Brasil publicado pela ASTE sob o título Teologia do Antigo Testamento).
“ Ibid., I, 178.
“ Ibid., I. 192.
11 Ibid , I, 194.
26 Ibid., I 230.
122
T e o l o g ia
do
A n t ic o T e s t a m e n t o
Von Rad cria que o conceito de eleição de Israel dissolveu-se antes da
época do Cronista. O Cronista usou o verbo bShar, "escolher", onze vezes, mas os
objetos dessa eleição divina são o rei, o lugar para culto ou a tribo de Levi. "O
Cronista não diz absolutamente nada a respeito da eleição de Israel —nem mesmo
tem conhecimento de uma teologia da aliança."27
Os profetas tomaram normativas algumas tradições anteriores de eleição.
Entretanto, as tradições de eleição nem sempre eram as mesmas para todos os
profetas. Oséias e Jeremias mantiveram-se nas tradições do êxodo, enquanto Isaías
permaneceu nas tradições davfdicas.21 Os profetas do pós-exílio, de acordo com
von Rad, criam que Israel havia infringido a aliança com Deus e estava para sofrer
seu julgamento, selando o fim da presente existência da nação. Sua culpa cancelava
a segurança que essas tradições de eleição davam a Israel.
No exílio o profeta estava familiarizado com três tradições antigas de
eleição: o êxodo (Is 41.27; 46.13; 49.13; 51.3, 11, 16; 52.1, 7-8); Abraão e Jacó (Is
41.8; 43.22, 28; 51.1-2); e Davi (Is 55.3) e Sião (Is 46.13; 49.14-21; 52.1-2). O
profeta voltou os olhos para o futuro e viu um novo êxodo, um novo Davi e uma
nova Sião.
Por fim, o livro de Daniel não baseia suas predições em tradições de
eleição anteriores. O êxodo e Sião parecem colocar-se fora do mundo mental de
Daniel. "O horizonte religioso do orador parece quase não ter ligação com os
eventos reais da história; ele exalta a grandeza do poder de Deus, que pode fazer e
desfazer reis, salvar homens e os libertar. A sabedoria iluminadora de Deus é
também louvada, bem como a indestrutibilidade de seu reino."29
As duas principais tradições de eleição no Antigo Testamento são o êxodo,
preservada e mantida basicamente no reino do Norte, e as davídicas, no reino do
Sul. As vezes essas tradições se misturavam. Os profetas reinterpretaram as
tradições como se já não tivessem efeito, mas Deus voltaria a agir em favor de seu
povo num novo êxodo, num novo Davi e numa nova Jerusalém.
Hans Wildberger afirmou num artigo, "Auf dem Wege zu einer biblischen
Theologie", que o conceito central do Antigo Testamento é a eleição de Israel
como povo de Deus. Ele expandiu sua discussão da eleição no Antigo Testamento
no artigo "bchr, erwählen".
Walther Zimmerli observou que Javé não era o Deus de Israel desde o
início do mundo. Israel não aparece como povo até o livro de Êxodo.30 Ainda que a
teologia da eleição tenha sido formulada depois (o uso de bãhar no sentido de
27 Ibid., /, 353.
“ Ibid., Il, 117.
” Ibid., Il, 309.
K O ld Testament Theology in Outline, 14.
EU 8EIU IO VOSSO O n iS , I VÓ6 SEREIS O MEU fOVO
123
Deus escolhendo Israel não ocorre antes de Deuteronômio), o relato do chamado de
Abraão em Gênesis 12 contém as raízes da vida de Israel como povo de Deus.31
Zimmerli reconheceu que a terminologia da eleição inclui palavras
hebraicas diferentes de bãhar (escolher). Qara ’(chamar), yãda' (conhecer), bãdal
(separar) e hãzaq (deter), são também empregadas no contexto de eleição, embora
não se encontre no Antigo Testamento nenhum substantivo que signifique
"eleição".32 Zimmerli discutiu o porquê de Deus ter escolhido Israel e indicou a
resposta do Antigo Testamento de que Deus amou os pais (Dt 7.8). Então ele
perguntou o que a eleição divina significava para o eleito. Significava honra,
santidade, mediação e serviço.33 Zimmerli observou que a eleição era aplicada ao
rei no período pré-deuteronômico (ISm 8.18). Também era aplicado aos
sacerdotes, especialmente à tribo de Levi (Nm 16.5; 17.2-10) e ao templo.
Por fim, Zimmerli discute por que os profetas pré-exílicos quase nunca
falam da eleição de Israel. Só Amós (3.2) e Jeremias (1.5) usam tal terminologia.
Zimmerli cria que esse silêncio não se devia ao fato de os profetas pré-exílicos não
conhecerem as tradições de eleição, conforme alegava Galling. Antes, o silêncio
deles "mostra como os profetas são críticos em relação a todas as alegações
convencidas, da parte de Israel, de ser o ‘povo escolhido’".34
Ronald Clements disse que, quando perguntamos por que Israel é o povo
de Deus de maneira singular, o Antigo Testamento responde com uma teologia da
eleição. Deuteronômio 7.6-8 é a passagem clássica dessa teologia. A forma dessa
teologia é deuteronômica, mas "as idéias principais de tal teologia são com certeza
muito mais antigas".35 Para Clements o livro de Deuteronômio é normativo para a
teologia da eleição no Antigo Testamento. Ele vê a relação de Israel com as outras
nações mais da perspectiva de crise e ameaça que da perspectiva de uma missão.
Em Deuteronômio, Israel não tem função de serviço às nações.36 Entretanto, o
javista disse que Abraão (e, por inferência, Israel) seria uma bênção para as nações.
Nos cânticos do servo em Isaías, Israel será uma luz e um servo para as nações.
Samuel Terrien disse:
A separação de Israel de todos os outros povos destaca a idéia de eleição,
embora a palavra ainda nSo seja empregada. Ser o objeto de um amor
singular significa “ser escolhido”. A eleição é pressuposta na consciência
emocional de “predileção”. Israel, porém, não é amado num vácuo
51 Ibid., 27,44.
MIbid., 44.
” Ibid., 45.
MIbid., 47.
” Old Testament Theology, 88.
“ Ibid., 95.
124
T e o l o g ia
oo
A n t ic o T e s t a m e n t o
histórico. Javé nSo é diletante. Israel é amado para que se tome o reino
sacerdotal de Javé na história do mundo.37
Detectamos no livro de Terrien um distanciamento da forte ênfase na eleição por
parte de alguns estudiosos da Bíblia.
A importância decrescente da doutrina da eleição nas teologias do Antigo
Testamento evidencia-se ainda mais na obra de Claus Westermann. Ele disse que
por um longo tempo a idéia de eleição desempenhou papel importante na teologia
do Antigo Testamento. Ela designava todas as ações de Deus em relação a Israel.
Westermann limitou a idéia de eleição ao uso técnico de bãhar, "escolher", que,
dizia, jamais é empregado em referência aos patriarcas ou ao êxodo, tendo sempre
uma função subseqüente, interpretativa. "Não foi a eleição divina que fez de Israel
seu povo, mas, antes, seu ato salvador no inicio. Esse ato de Deus foi explicado por
uma reflexão subseqüente tal, que Deus elegeu Israel."3* Westermann afirmou que
não se compreende bem o conceito de eleição quando se fazem alegações a seu
respeito. Não devemos generalizar o conceito de eleição ou falar num sentido
abstrato "sobre a tradição da eleição, a condição da eleição ou sobre um povo
eleito".39
Byron Shafer argumentou que, de acordo com Deuteronômio 7.7-8, Deus
escolheu Israel como seu povo simplesmente porque o amava e havia feito uma
promessa a seus pais (cf. Dt 4.37; 10.15; 2Rs 19.34; Is 37.35). A eleição no Antigo
Testamento não é necessariamente uma escolha racional por uma razão verificável.
Às vezes a única explicação dada é "porque Deus vos ama".40
Shafer fez objeção a uma data tardia para a eleição de Israel, citando quatro
evidências que sustentam uma data antiga. ( 1 ) 0 padrão da eleição real divina na
literatura do antigo Oriente Próximo não é suficiente para explicar o uso que Israel
faz de bãfrar, "escolher". (2) Evidências de nomes teofóricos que empregam a raiz
bhr remontam a 1900 a.C. no antigo Oriente Próximo (nomes como Ibar ocorrem
em 2Sm 5.15; lCr 3.6; 14.5). (3) A idéia veterotestamentária de eleição de Israel
não se moveu do âmbito mítico da eleição real divina para a escolha histórica de
Israel, porque nas passagens mais antigas de Deuteronômio (10.14-15, 17-18, 2122; 11.3-7, 10-12) e no salmo 47 Javé é um Deus cósmico ou universal. (4) A idéia
de que a eleição dos patriarcas é uma retroprojeção tardia é questionada porque
todas as passagens-chave em Deuteronômio (4.32-40; 7.7-8; 14.1-2) ligam a
31 The Elusive Presence, 124.
“ Elements o f O ld Testament Theology, 4 1.
” Ibid., 42.
« "The Root bitr, 20.
EU SEREI O VOSSO DEUS, E VÓS SEREIS O MEU rOVO
125
eleição de Israel à promessa aos patriarcas. O estudo dos salmos antigos, como o
47, sustentam a prioridade da eleição dos patriarcas.
Shafer foi influenciado pelas idéias de Frank M. Cross a respeito de El ser
o Deus dos patriarcas. Cross citou Gênesis 28.10-22 como o exemplo remanescente
mais completo do padrão patriarcal de aliança na Bíblia Hebraica.41
A tese de Shafer é que a antiga raiz bhr pode ser associada aos deuses dos
patriarcas nas sociedades tribais do antigo Oriente Próximo. Além disso, ele
afirmou que os conceitos de povo escolhido em Deuteronômio e Salmos podem ser
interpretados como "remanescentes, extensões, desenvolvimentos e/ou revisões de
conceitos religiosos patriarcais”42 Shafer e Frank Cross criam que o conceito de
eleição remonta aos dias em que o patriarca e seu Deus faziam alianças recíprocas.
Tais alianças eram condicionais, mas o Deus dos patriarcas era também visto como
uma divindade cósmica e agrária que prometia dar a terra aos patriarcas e à sua
estirpe. Assim, sobrevivem duas concepções de eleição e aliança desde épocas
patriarcais: a condicional e a promissiva (ou incondicional).
Shafer seguiu Cross ao ver uma mudança radical na época salomônica,
passando da eleição condicional para o padrão de uma "aliança eterna,
incondicional" com a dinastia de Davi. Após a morte de Salomão e a divisão do
reino, a antiga idéia de uma eleição condicional aflorou de novo no Norte. A idéia
incondicional continuou no Sul.43 Após a queda de Jerusalém em 586 a.C., as
tensões entre as duas idéias de eleição continuaram pelos períodos do exílio e do
segundo templo.44 Shafer usou os salmos 47, 78 e 89 para traçar as tradições
patriarcal e davídica em Israel.
A eleição é um tópico importante na última obra de Christoph Barth, God
With Us*$ A eleição dos patriarcas é um elemento básico no credo de Israel. As
histórias dos patriarcas são contadas só em Gênesis. Pouco se diz sobre eles em
outros livros do Antigo Testamento. A eleição dos pais é, porém, artigo de muitos
credos de Israel. Em alguns credos vem em primeiro lugar (Dt 26.5-9; Js 24.2-13;
ISm 12.8). A criação vem antes dela em Neemias 9.6-31. Os pais são deixados fora
de algumas recitações do credo (Dt 32.6-14; SI 135; 136; Jr 32,17-23). Christoph
Barth disse que as partes essenciais do credo eram o êxodo e a dádiva da terra.
"Nem a criação nem a eleição dos pais tem a mesma prioridade”.44
O tópico da eleição dos pais é complementar ao êxodo e à dádiva da terra.
Israel não se tomou uma nação antes de sair do Egito (Ez 20.5-6; Os 11.1; 12.9;
41 Cf. Cross, Canaanite Myth and Hebrew Epic, 244-245; Shafer, op. ell., 36.
41 Shafer, op. cil., 30, 33.
45 Ibid., 38-39.
44 Ibid., 42.
45 1991.
46 God With Vs, 34.
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13.4; Am 3.1). Christoph Barth diz que só foi depois do êxodo que Israel
reconheceu descender dos patriarcas. "Essa é a seqüência correta também para os
leitores modernos."47
Emest Nicholson retomou as questões de eleição e aliança no Antigo
Testamento. Ele observou que, desde Wellhausen, o estudo da aliança (ao menos
para alguns) havia "escorrido pelo chão, deixando a ‘aliança’ como um conceito
antiquado para o estudante do Antigo Testamento". Ele disse que o debate entre os
estudiosos tem possibilitado ver com mais clareza "como era crucial a idéia da
aliança no desenvolvimento do que é característico na fé do antigo Israel". A
aliança é um tema central e "merece ser recolocada diretamente na pauta dos
estudantes do Antigo Testamento".4*
Nicholson observou que F. Giesebrecht primeiro questionou a idéia de
Wellhausen de que a antiga relação de Israel com Javé era uma relação natural
—como a de pai e filho. Isso fez Israel semelhante às outras nações na maneira de
ver seu relacionamento com seus deuses. Giesebrecht alegou que a relação de
Israel era baseada na história, não tendo emergido como parte de uma "religião
natural".49 Desde o início, foi a crença na eleição divina que moldou a direção
peculiar. Ela trouxe consigo um exclusivismo agressivo e "uma crença na
incomparabilidade de Javé".30
B. O vocabulário da eleiçAo
A palavra bShar, "escolher", é usada em referência à escolha divina dos
patriarcas (Ne 9.7); Israel (Dt 4.37; 7.7-8; 10.15; 14.2; SI 105.43; Is 44.1-2; Ez
20.5); Davi (2Sm 6.21; lRs 8.16; SI 78.70; 89.3); o lugar de culto (Dt 12.18, 26;
14.25; 15.20; 16.7, 16; 17.8, 10; 18.6; 31.11; Js 9.27; SI 132.13); e sacerdotes (Nm
16.5, 7; 17.5 [heb. 17.20]; Dt 18.5; ISm 2.27-28).
Outros termos hebraicos são usados para expressar a idéia de eleição no
Antigo Testamento. A palavra qira', "chamar", é usada em relação a Abraão em
Isaias 51.2 (cf. Gn 12.1-3), a Samuel (ISm 3.4-21) e a muitos profetas. A palavra
y S d a "conhecer", é empregada no sentido de "escolher" ou "eleger" em Gênesis
18.19 e Amós 3.2.
Herbert Huffmon demonstrou que palavras mesopotâmicas equivalentes a
y S d a "conhecer", são empregadas na literatura do antigo Oriente Próximo para
" Ib id ., 39.
** God and His People, v.
M Die Geschichtlichkeit des Sinaibundes, 25.
* Nicholson, op. cit., 23.
Eli s e r e i
o vosso D e u s, e v ó s
s e r e i s o m eu
rovo
127
indicar o reconhecimento legal mútuo por parte do suserano e do vassalo.51 Num
texto se diz a Assurbanipal: "Tu és o rei a quem o(s) deus(es) conhece(m)".
Huffmon encontrou paralelos a esse linguajar nas referências do Antigo
Testamento a Abraão (Gn 18.19); Moisés (Êx 33.12, 17); Ciro (Is 45.3-4); Davi
(2Sm 7.20); lCr 17.18); Jeremias (1.5) e Israel (Am 3.2; Os 13.4-5).
A palavra bãdal, "separar" ou "pôr à parte" no sentido de Deus separar
Israel das nações é usada para indicar eleição em Levítico 20.24; Números 8.14;
16.9; Deuteronômio 10.8. A palavra mãsa', "encontrado", é usado com o sentido de
"eleição" em Deuteronômio 32.10; Salmo 89.21; Oséias 9.10; e o termo lãqah,
"tomar", é usado em Êxodo 6.7 e Deuteronômio 4.34. Os termos "amor" e "ódio"
em Gênesis 29.31 e Malaquias 1.2-3 são termos de "eleição".52
C. As objeções à eleição
Podemos ver pelo uso desses termos que a idéia de que Deus escolheu ou
elegeu os patriarcas e Israel está incutida no Antigo Testamento. Mas a idéia nem
sempre foi devidamente compreendida por aqueles que eram "chamados". Os
profetas do pós-exílio raramente mencionavam o conceito e, quando o faziam, em
geral pronunciavam julgamento contra os "escolhidos" por rejeitarem seu
chamado. A partir de seu chamado, Israel com freqüência chegava a conclusões
contrárias ao verdadeiro entendimento do amor de Deus —a base de seu chamado.
Jacob disse: "Eles se obstinavam num exclusivismo rígido, interpretando sua
eleição, que se tomara uma concepção enrijecida, como dever de odiar e questão de
orgulho".53
Amós viu que Israel interpretava mal a eleição como privilégio sem
responsabilidade. A maioria dos contemporâneos de Amós confundia eleição com
privilégio e favoritismo. "Eles pareciam sentir que se Deus os havia escolhido,
precisava amá-los mais que a todos os outros; assim, podiam contar mais com
bênçãos de Deus e menos com o seu julgamento severo".54 Deuteronômio 9
condenava com vigor o pecado fatal do orgulho. A doutrina veterotestamentária da
eleição não dá lugar ao orgulho. Quando alguém começa a usar o termo "escolher",
surgem de imediato as idéias de exclusividade, arbitrariedade, favoritismo ou
privilégio especial.
Norman Snaith disse que há uma exclusividade no amor de Deus. A idéia
de eleição faz parte da "ofensa do evangelho" desde tempos muito remotos. Talvez
51 "The Treaty Background o f Hebrew Yada", 31-37
5! Ralph L. Smith, Micah-Malachi, WBC 32, 305.
” Theology o f the Old Testament, 111, 204.
” Ralph L. Smith, Amos, 100.
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A n t ig o T
e st a m e n t o
não gostemos da palavra "escolhido" ou de sua companheira, "eleição". A eleição e
a escolha podem-nos ser detestáveis, "mas elas estão firmemente incutidas no
Antigo e no Novo Testamento".55
Celsus fez forte oposição à doutrina veterotestamentária de eleição. Em
caricatura, ele disse:
Judeus e cristãos parecem-me um exército de morcegos ou formigas que
sai de seu esconderijo, ou como sapos que se postam num brejo, ou
vermes que se encontram no canto do monte de estrume dizendo um para
o outro: “Para nós Deus revela e proclama tudo. Ele não se importa com o
resto do mundo; somos os únicos seres com quem ele se relaciona [...]
Tudo é sujeitado a nós: a terra, a água, o ar, as estrelas. Porque aconteceu
de alguns de nós ter pecado, Deus mesmo virá ou enviará o próprio Filho
para destruir o perverso com fogo e para nos dar participação na vida
eterna.56
Em 1945 Paul Scherer, pastor da Evangelical Lutheran Church o f the Holy Trinity
e professor de homilética no Union Seminaiy em Nova York, usou uma linguagem
chocante para repreender os judeus. Sua percepção do entendimento que tinham da
eleição era que os judeus pensavam que o propósito de Deus na história era
beneficiá-los, quando na realidade era manifestar sua glória e estabelecer seu reino
sobre a terra. Scherer observou que "por todo o Antigo Testamento e entrando pelo
Novo, Israel é tratado como uma nação eleita".57 A Bíblia insiste que tudo o que
ocorreu, seja o que for, não ocorreu só por eles. "Isso livra o céu de uma grande
dose de responsabilidade e a lança onde deve!"5*
Richard L. Rubenstein, um judeu moderno, fez objeção à doutrina da
eleição. Depois de Auschwitz, os judeus
... jamais poderão voltar a crer com integridade no Deus que exerce
controle providencial sobre os interesses humanos; o que ocorreu foi tfio
monstruoso que não pode ser conciliado por meio das técnicas comuns de
teodicéia com a existência de um Deus como esse, apesar das convicções
da fé bíblica. Depois de Auschwitz, crer na providência no sentido
tradicional é imoral, bem como impossível, uma vez que toma Deus um
cúmplice de Hitler, desejando deliberadamente a matança do povo
escolhido, sem nenhuma outra razão, senão o crime de ter sido
escolhido.59
55 The Distinctive Ideas o f the O ld Testament, 139.
56 Citado por Cullmann, Christ and Time, 28.
51 Event in Eternity, 193.
” Ibid., 194.
" After Auschwitz, citado por Alan T. Davies, Anti-Semitism and the Christian Mind, 36.
Eu S E M I O VOSSO Drus, E VÓS SEREIS O MEU rOVO
129
Rubenstein escreveu que muitos israelitas modernos rejeitam por completo
a teologia da aliança. Ele diz que embora a religião bíblica faça parte da herança de
todo judeu, "muitos israelenses crêem tão pouco no Deus da Bíblia quanto os
gregos contemporâneos crêem nos deuses homéricos. Israel tomou-se realidade
quando os judeus pararam de aguardar a intervenção divina e tomaram a história
nas mãos".60 Em seu livro, My Brother Paul, Rubenstein disse: "Sob a luz da
história objetiva, nenhuma posição religiosa pode ser privilegiada".61
Gordon D. Kaufman da Harvard Divinity School pronunciou a acusação de
que Deus era injusto e parcial quando se revelava em Jesus Cristo a alguns e não a
outros. O argumento é que, em princípio, a verdade, em especial a verdade acerca
da realidade última, deve estar disponível a todos. Um Deus que exerce favoritismo
nesses moldes dificilmente seria considerado amoroso, mesmo um pai humano
sabe que é errado fazer discriminação sem justificativa entre seus filhos.
Kaufman disse em sua Systematic Theology que essas críticas comuns são
manifestamente plausíveis; mas um exame detido revela serem demasiado
enganosas, pois ninguém de fato crê que todas as pessoas têm igual acesso à
verdade e à realidade. A verdade que podemos ou vamos conhecer é condicionada
por fatores históricos e psicológicos entre outros. Nem todas as pessoas têm a
mesma oportunidade de conhecer a verdade que Platão ou Einstein ensinaram por
causa de fatos históricos ou circunstanciais.
A verdade conhecida e cognoscivel é sempre relativa à situação histórica
do conhecedor. A alegação cristã, portanto, de que Deus revelou-se
especialmente pelo desenvolvimento histórico de uma comunidade,
começando na antiguidade remota e desabrochando por fim numa igreja
universal, pode não implicar escândalo algum.62
G.
Emest Wright disse que as respostas às objeções à eleição são óbvi
Israel pagou um terrível preço por sua eleição. A história de Israel fala de si mesma
numa narrativa sórdida, triste. Quando Israel alegava ser o povo escolhido, dava a
única explicação possível para ter sido libertado do Egito. É uma parte da
explicação israelita de sua origem, não uma idéia tardia. "Escritores posteriores
tomaram por certa a questão e a entenderam como a suprema manifestação da
graça divina".63
“ Prefácio a Davies, op. cil., 12.
“ My Brother Paul, 21.
a Systematic Theology, 14.
61 The Old Testament Against Its Environment, 50.
130
T e o i -o c ia
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D. O propósito da eleição
O Antigo Testamento alega que Deus escolheu Israel como seu povo
especial. Será que ele nos diz por que a escolheu? Sim e não. Algumas partes do
Antigo Testamento parecem deixar a resposta a essa pergunta no âmbito do
mistério, e estudiosos modernos têm considerado o mistério da eleição. O poeta A.
E. Housman escreveu certa vez: "Que estranho/ Deus/ escolher/ os judeus".64
Norman Snaith disse que talvez não consigamos responder a essa pergunta,
mas o ensino está ali, claro o bastante. Por que é escolhido este e não aquele? "Não
temos resposta. Calvino tentou encontrar a resposta para as duas partes da questão,
e sua resposta foi a predestinação. Lutero disse que Calvino errou porque tentou
escalar a majestade de Deus. A primeira parte da pergunta (por que um é
escolhido?) pode ser respondida. Deus escolheu esse porque o amava".65 Snaith não
tinha resposta satisfatória para a segunda parte de sua pergunta: por que Deus não
escolheu alguns?
Algumas partes do Antigo Testamento respondem que Israel foi escolhido
para ser uma bênção para as nações. A única pressuposição lógica é que a eleição
de Israel deve de algum modo ser a resposta para a sina da humanidade. O profeta,
portanto, não está elaborando nem aprofundando uma doutrina recém inventada
quando proclama que Deus chamou Israel para ser "luz para os gentios" (Is 42.5-7).
Talvez se deva notar que é Israel, o remanescente que sobreviveu do antigo Israel,
que será a luz para os gentios. A eleição de Israel não era o que Celsus imaginou. A
liberdade e o privilégio conferidos pela eleição eram limitados pelos propósitos
independentes de Deus.
H.
H. Rowley observou que o Antigo Testamento alerta Israel de que n
foi escolhido por sua bondade ou grandeza (Dt 7.7-8; 9.4-6). A doutrina da eleição
cria um drama irreal. "Se Deus escolhe os dignos, então questiona-se sua graça; se
ele escolhe os indignos, então questiona-se sua justiça."66 Rowley pensou que a
consideração teleológica da eleição resolve o problema. O propósito de Deus na
eleição era a revelação e o serviço.67
A eleição de Israel, portanto, não foi baseada no mérito, mas na graça
misteriosa de Deus; e sua realidade é confirmada no êxodo do Egito. No exílio
babilónico, pelo menos um profeta compreendeu que Deus escolheu Israel para ser
uma luz para as nações e o instrumento de "seus propósitos redentores
universais".6*
“ Citado por Scherer, op. cit., 194.
65 Snaith, The Distinctive Ideas o f the Old Testament, 139.
“ The Biblical Doctrine o f Election, 39.
47 Ibid., 39, 54-68.
M Wright, God Who Acts, 20.
Eu SCRU O VOSSO Deu*. C VÚ6 SEKIB O MCU r a v o
191
William LaSor disse que a doutrina bíblica da eleição é muito mal
compreendida. Uma concepção comum é que Deus escolhe algumas pessoas e lhes
dá passe livre para o céu, consignando o restante ao infemo. Não se faz nenhuma
tentativa de compreender a pessoa, o caráter ou o propósito de Deus na eleição.69
"O ‘eleito* é uma pessoa ou comunidade de pessoas a quem Deus deu ou dá uma
revelação especial, e por meio de quem Deus revelar-se-á a outras nações ou
pessoas [...] A eleição no sentido bíblico sempre possui um propósito de missão
[...] A eleição jamais é um fim em si; sempre Visa a um fim.M7° As palavras bihar e
eklegomai são positivas e não expressam o sentido de rejeição do que não é
escolhido. Elas destacam a idéia de seleção ou preferência sem nenhuma
explicação de reprovação.71
A base da eleição no Antigo Testamento é a soberania de Deus. Jeremias
retratou Deus como o oleiro com poder absoluto de transformar o barro em
qualquer vaso desejado. Mas na mesma passagem Deus reserva o direito de
"arrepender-se", caso uma nação se converta (Jr 18.1-6). La§or disse: "Nenhuma
declaração da doutrina da soberania de Deus pode destruir sua soberania".72 Deus
não é impulsivo. Sua vontade e todo propósito incluem sua sabedoria e seu amor.
Ao lado da verdade da soberania de Deus deve-se colocar o ensino bíblico
de que o homem foi criado "por um pouco, menor do que Deus" (SI 8.5). Cada
pessoa possui uma vontade e é completamente responsável pelas decisões pessoais.
As pessoas podem ser "eleitas, mas ainda devem clamar ao nome do Senhor para
serem salvas (Jl 2.32; Mt 3.5). As pessoas não são meros fantoches, mas Deus é
bondoso e longânimo (Êx 34.6-7).
Por que Deus escolheu Abraão em vez de Harã (Gn 11.27)? O Antigo
Testamento não responde a essa pergunta. Christoph Barth disse que Deus não
precisa explicar os motivos de suas decisões. Ele tem livre escolha. Deus, é claro,
tem motivos para fazer o que faz; mas a base ou os motivos de sua escolha não
estão nas pessoas ou objetos escolhidos, mas em seu propósito.73 Deus não
escolheu os pais ou Israel porque fossem bons ou fiéis.
Que dizer dos não eleitos? Se os eleitos são privilegiados, os não eleitos
seriam desprivilegiados? Eles podem ser privilegiados, mas não no mesmo sentido
dos eleitos. Christoph Barth disse: "Eles têm função própria e não são colocados
sob uma luz especialmente má. Eles não são necessariamente recusados, rejeitados
ou amaldiçoados por Deus. Eles têm um lugar em seu plano".74
“ The Truth About Armagedom, 36.
70 Ibid., 41-42.
71 Ibid., 37.
73 Ibid., 43.
73 God With Us, 41.
M Ibid., 44.
132
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A eleição é parte vital do material bíblico. Porque Deus amou ao mundo,
escolheu Abraão e alguns de seus descendentes para ser um reino de sacerdotes e
uma luz para as nações de sua graça salvadora.
17. Eu serei o vosso Deus (aliança)
A. Tendências recentes no estudo da aliança
A palavra hebraica bérít, "aliança", é importante no Antigo Testamento,
mas, junto com o termo que significa "eleição", tem tido uma carreira teológica
instável. Às vezes tem estampado o nome numa escola inteira de pensamento
teológico, enquanto outras vezes é quase completamente alijada das discussões
teológicas regulares —embora as duas partes de nossa Bíblia carreguem a palavra
no título.
O termo aliança é usado de modo desigual no Antigo Testamento. Partes
do Antigo Testamento (Dt) fazem uso amplo do termo, enquanto os profetas préexílicos e a Literatura de Sabedoria o empregam raramente. Entretanto, a
importância desse conceito não depende do lugar e da freqüência com que o termo
berit é usado.
1)
Interesse renovado na aliança (Eichrodt e Albright). Estudiosos
Antigo Testamento de épocas mais remotas, como Oehler75 e Wellhausen76
discutiram a aliança, mas não a tomaram centro de sua apresentação dos dados do
Antigo Testamento. De fato, Wellhausen ensinou que a aliança no antigo Israel era
um "laço natural" entre Israel e Javé, como a de pai e filho. Ela não se baseava na
observância das condições de um pacto. Significava "socorro" de Deus a Israel,
com freqüência em tempos de guerra. O nome Israel significa "El batalha", de
acordo com Wellhausen.77
A idéia da antiga aliança era um "socorro" de Deus em todas as ocasiões,
"não ‘salvação' no sentido teológico. O perdão de pecados era uma questão de
importância secundária".7* Wellhausen podia dizer isso porque não cria que a
legislação sacerdotal que tratava do problema do pecado fosse mosaica. A Torá
sacerdotal não teria surgido antes da época de Esdras.79
75 Theology o f the Old Testament, 175-178.
74 Prolegomena, 417-419.
77 Ibid., 434.
™Ibid., 469.
n Ibid., 43».
Eu S U E I O VOSSO Deus, E VÓ8 S U E IS O MEU POVO
133
Entretanto, os profetas do século VIII, com sua ênfase na justiça de Deus e
sua exigência de justiça social, fez Wellhausen ver uma transição de uma aliança
como laço natural para uma como pacto ou tratado. Os mandamentos eram
entendidos como exigências ou condições das quais dependia a relação contínua
entre Javé e Israel.*0 O laço natural entre Javé e Israel fora cortado.
Muitos estudiosos aceitaram as idéias de Wellhausen sobre a aliança e
consideraram a questão resolvida. Por um tempo, houve pouco debate entre eles
sobre o assunto. Em 1900, F. Giesebrecht publicou sua influente monografia, Die
Geschichtlichkeit des Sinaibundes, em que questionava a antiga teoria do "laço
natural" da aliança concebida por Wellhausen. Giesebrecht alegou que a relação de
Israel com Javé era historicamente fundamentada e não havia emergido, como no
caso das chamadas religiões "naturais".*1
Antes de 1933 ninguém escreveu uma teologia do Antigo Testamento
fazendo da aliança seu tema central. Walther Eichrodt foi o primeiro estudioso do
Antigo Testamento a escrever uma teologia do Antigo Testamento em tomo do
tema central da aliança. Eichrodt disse:
O conceito da aliança recebeu essa posição central no pensamento
religioso do AT, de modo que, trabalhando de dentro para fora a partir
dele, a unidade estrutural da mensagem do AT pode tomar-se visível de
maneira mais imediata [...] Pois o conceito de aliança abriga a convicção
mais fundamental de Israel, a saber, sua consciência de uma relação
singular com Deus. O ponto crucial não é —como uma crítica
excessivamente ingênua parece pensar— a ocorrência ou ausência da
palavra hebraica berit, mas o fato de que todas as declarações cruciais de
fé no AT repousam no pressuposto, explícito ou não, de que um ato
voluntário de Deus na história elevou Israel à dignidade sem igual de
Povo de Deus, no qual sua natureza e propósito deviam ser manifestos. O
termo “aliança” em si, portanto, é, por assim dizer, só a palavra-chave
para uma certeza muito mais abrangente que formava um estrato muito
profundo dos fundamentos da fé israelita, sem o qual, aliás, Israel jamais
seria Israel. Como que para resumir a ação de Deus na história, “aliança”
não é um conceito dogmático com cujo auxílio se possa desenvolver um
“corpo de doutrina”, mas a descrição típica de um processo vivo que
começou num tempo e espaço definido e que foi designado para tomar
manifesta a realidade divina bem singular em toda a história da religião.
As referências a esse processo vivo em cada capítulo desta obra não
passarão despercebidos ao leitor atento.82
10 Veja Nicholson, "Israelite Religion in the Prc-cxilic Period", 3.
" Giesebrecht, 25; veja Nicholson, God and His People, 23.
u Theology o f the Old Testamen I, 17-18.
134
THM jO CU
do
A n t ic o T h t a m s n t o
W. F. Albright concordou com a idéia de que a aliança domina toda a vida
religiosa de Israel e que a idéia está presente muitas vezes quando o termo bérít
nSo ocorre. No prefácio à segunda edição de From the Stone Age to Christianiíy,
Albright disse que embora na primeira edição do livro tivesse destacado
brevemente a origem pré-mosaica da aliança entre Deus e Israel, não havia
reconhecido que o conceito de aliança
... domina toda a vida religiosa de Israel em tal medida, que a aparente
posição extremada de W. Eichrodt é plenamente justificada. Não podemos
compreender a religião, organização política ou a instituição dos Profetas
dos israelitas sem reconhecer a importância da “Aliança”. A palavra em si
aparece como uma incorporação de origem semita nos séculos xv a XII na
Sfria e no Egito e remonta claramente aos primeiros períodos de Israel.*1
2)
Paralelos à aliança veterotestamentária nos tratados do antigo Orie
Próximo. E. Bikerman parece ter sido o primeiro estudioso a perceber a possível
analogia entre os tratados dos reis hititas e seus vassalos e a relação de aliança
entre Javé e Israel.14
George Mendenhall seguiu a opinião de Bikerman e afirmou que a fórmula
do tratado hitita foi uma fonte primitiva da idéia veterotestamentária de aliança.*5
Mendenhall afirmou que as tribos de Israel não estavam unidas por laços de
sangue, mas por uma aliança baseada na religião e moldada de acordo com os
tratados de suserania pelos quais o grande rei hitita obrigava seus vassalos a serem
fiéis e obedientes a ele.“
Mendenhall cria que esse tipo de tratado internacional (ou aliança) proveio
somente do império hitita (1450-1200 a.C.) na época aproximada do início do povo
de Israel. Isso fez a fórmula da aliança no Antigo Testamento datar do período
mosaico.*7
O principal propósito do tratado de suserania era estabelecer uma firme
relação entre o suserano e seu vassalo, incluindo-se o apoio militar do suserano.
Entretanto, os interesses dos suserano eram dominantes. Sua forma era unilateral.
As estipulações eram obrigatórias só da parte do vassalo, embora um prólogo
muitas vezes relatasse atos benevolentes do suserano em favor do vassalo.
° From the Stone Age to Christianity, 16.
M "Couper une alliance", 133-156; vej* também E. W. Nicholson, G od and His People, 57.
“ Law and Covenant in Israel, 24-27.
"A W ., 25-26.
17 Ainda que o« hititas usassem a forma de tratado de suserania, i provável que n to lhe tenham dado origem. Ela
parece ter sido propriedade comum de alguns estados e povos no segundo m ittnio a.C., sendo conhecida e usada
por povo« muito posteriores. Veja J. J. Roberts, 'A ncient Near Eastern Environment*, em The Hebrew Bible and
Its M odem Interpreters, ed. Knight e Tucker, 93-94.
EU SEREI O VOSSO DEUS, E VÓS SEREIS O MEU POVO
135
Os hititas ou babilônios não possuíam uma palavra que traduzisse contrato
ou aliança, mas ambos usavam uma frase que significava "votos e compromissos".
As obrigações específicas impostas ao vassalo eram chamadas "palavras" do
soberano.88
Quando os impérios voltaram a prosperar, em especial a Assíria, a estrutura
do tratado ou aliança pela qual obrigavam seus vassalos era inteiramente diferente.
Mesmo em Israel, a fórmula mais antiga de aliança já não era de amplo
conhecimento após a monarquia unida. Assim, a idéia de aliança em Israel deve ter
sido antiga.89
Mendenhall concordava com V. Korosec em que seis elementos das
alianças hititas têm paralelos na fórmula da aliança do Sinai no Antigo Testamento.
Os seis elementos são: (1) um preâmbulo, a identificação do grande rei (cf. Êx 20:
"Eu sou Javé, teu Deus"); (2) o prólogo histórico; (3) as estipulações (cf. as "dez
palavras"); (4) depósito de uma cópia do tratado no templo do suserano e do
vassalo; (5) a lista de deuses como testemunhas; e (6) as maldições e bênçãos (cf.
Dt 28). A motivação para a obediência do vassalo não é o poder do rei, mas as
maldições e bênçãos impostas pelos deuses.
Os clãs que saíram do Egito eram de diferentes formações, incluindo uma
multidão mista. No Sinai foram transformados numa nova comunidade por uma
aliança. O texto dessa aliança era o Decálogo (Êx 34.28; Dt 4.13; 9.9). Israel não se
comprometeu com Moisés, mas com Javé. Moisés foi o mediador da aliança.
Mendenhall cria que a aliança foi o fator que unificou as tribos de Israel quando
tomaram a terra dos reis cananeus.
Em 1963,90 Dennis McCarthy publicou seu "Treaty and Covenant: A Study
in Form in the Ancient Orient Documents and in the Old Testament". McCarthy
traduziu muitos tratados hititas e assírios e os comparou com algumas passagens do
Antigo Testamento. McCarthy concluiu em 1963 que a fórmula da aliança israelita
lembrava a do tratado hitita; mas também disse que não podemos nos assegurar de
que a fórmula em Israel remonta ao segundo milênio. "Simplesmente não sabemos
qual pode ter sido a prática no que diz respeito a tratados de c. 1200-850 a.C.".91
Em 1972 Dennins McCarthy realizou um estudo completo das opiniões de
estudiosos sobre a aliança veterotestamentária. Ele concordou com Mendenhall em
que a evidência do uso israelita da fórmula de tratado "para descrever seu
relacionamento especial com Javé é irrefutável".92 Entretanto, ele foi muito mais
” Mendenhall, op. cil., 31.
** Ibid., 30-31.
* Rev. 1978.
91 McMarthy, "Treaty and Covenant: A Study in Form in the Ancient Orient Documents and in the Old Testament",
174.
n Old Testament Covenant, 14.
136
T e o l o g ia
do
A n t ig o T e s t a m e n t o
cauteloso que Mendenhall no uso da forma literária para defender uma data remota
para passagens do Antigo Testamento que usam fórmulas de tratado. McCarthy
também rejeitou a idéia de Mendenhall de que Israel foi formado pelos camponeses
rebeldes de Canaã, não por clãs israelitas que invadiram a Palestina pelo deserto.
Ele disse que essa reconstrução de Mendenhall "é interessante, mas dificilmente
bem-sucedida. São simplesmente muitas as evidências que fazem dos hebreus,
antes de sua entrada na Palestina, algo como nômades".93
Já em 1930 Martin Noth apresentou uma idéia, semelhante à de
Mendenhall, de sociedade tribal israelita formada por uma aliança. Noth alegou
que o povo a quem as leis do Antigo Testamento foram dadas constituía uma união
sagrada de doze tribos a que ele chamou anfictionia. Essa anfictionia constituiu
Israel, o povo de Deus, contra os cananeus.
Noth disse que a confederação de doze tribos atribuía seu relacionamento
com Javé, bem como a própria existência dela, à experiência singular de uma
aliança feita entre Javé e Israel. A anfictionia também remontava sua entrada
pessoal num relacionamento entre Deus e o povo a uma imagem tomada de um tipo
de acordo judicial humano chamado aliança.94 Martin Noth, em sua idéia da aliança
como a base de Israel, foi em grande parte influenciado pelo livro de Max Weber,
Ancient Judaism.95
A tese de Noth foi apresentada de maneira tão competente e persuasiva,
que quase se tomou consenso acadêmico. Entretanto, em anos recentes, tem-se
tomado "o alvo de uma verdadeira barragem de crítica da parte de estudiosos que
negam que tal anfictionia [...] tenha existido algum dia e que, em alguns casos,
chegam a negar que a própria noção de aliança tenha sido determinante em Israel
até data muito posterior".96
3)
Crítica de paralelos entre a aliança e os tratados. Em 1962 H. M
Orlinsky97 indicou que "anfictionia" não era um nome adequado para o Israel prémonárquico. As tribos eram muito independentes; não há indícios de um governo
central ou de um complexo cultual central. Outros críticos precoces da teoria de
Noth foram Roland de Vaux,9®A. D. H. Mayes99 e C. H. J. de Geus.100
G. W. Anderson analisou toda a hipótese de anfictionia e rejeitou grande
parte dela. Ele não encontrou indícios em favor do nome "anfictionia" no Antigo
Testamento e poucos indícios para sustentar o número doze para a liga tribal no
" Ibid., 22.
w "Das System der Zwölf Stämme Israels"; veja também Noth, The History o f Israel, 85-109.
” Veja uma análise da obra de Weber em Nicholson, God and his People, 38-43.
96 Bright, Covenant and Promise, 33.
” “The Tribal System o f Israel", Oriens Antiquus I, 11-20.
” The Early History o f Israel, 695-715.
” Israel in the Period o f the Judges.
100 The Tribes o f Israel, cap. 2.
EU SEREI O VOSSO DEUS, E VÓS SEREIS O MEU POVO
137
Antigo Testamento. Poucos indícios sustentam a importância do santuário central
no período pré-monárquico.101 Anderson negou as teorias de Noth e argumentou
que a base para a unidade das tribos de Israel no período de assentamento não
estava tanto no que aconteceu depois de entrarem na terra, mas no que aconteceu
antes de entrarem em Canaã —a saber, a aliança do Sinai. Anderson disse:
Parece natural, portanto, buscar o estabelecimento dessa unidade, não na
emergência de uma anfictionia em solo cananeu na esteira de uma
invasão, mas, antes, onde tanta tradição israelita antiga nos levaria a
esperar encontrá-lo: no perfodo antes do estabelecimento e, mais
especificamente, no estabelecimento da aliança do Sinai entre Javé e as
tribos israelitas.102
Anderson ainda afirmou: "Procurar o estabelecimento dessa unidade em
outra parte que não na instituição da aliança do Sinai é desconsiderar o testemunho
da tradição nos interesses de conjecturas transportadas pelo ar".103
Depois de reconhecer algumas objeções expressadas por estudiosos acerca
do tratado de suserania e da data remota para a aliança do Sinai, John Bright
continuou sustentando aquela idéia. Ele disse:
A noção de uma aliança firmada entre Deus e o povo parece claramente
anteceder o mais antigo dos profetas, e presume-se que era muito mais
antiga ainda [...] Podemos crer com alguma confiança que Israel de fato
surgiu como uma confederação sagrada formada em aliança com Javé e
que essa aliança seguiu em geral o padrão daqueles tratados de soberania
que nos são conhecidos nos textos do segundo milênio a.C.104
Bright concluiu que a idéia de que Israel emergiu da história como uma liga de
aliança sagrada harmoniza-se melhor com as evidências bíblicas. "Só assim, aliás,
pode-se compreender o Israel mais antigo".105
Robert Davidson perguntou: "E possível sustentar a tese de que a aliança,
moldada segundo a fórmula de tratado, desempenhou um papel importante e,
talvez, decisivo, na formação de Israel em termos ou religiosos ou sociológicos?
Ou precisamos concordar (com Nicholson) que "[...] na realidade tem gerado
pouco valor permanente?"106
101 "lsrael"Amphictyony" em Translating and Understanding the Old Testament, ed. Frank e Reed, 138, 141.
102 Ibid., 149.
m Ibid., 150.
,tMCovenant and Promise, 43.
105 Ibid., 36.
106 "Covenant Ideology in Ancient Israel”, em The World o f Ancient Israel, ed. R. E. Clements, 332.
T f.o i .o c ia
138
do
A n t ig o T e s t a m e n t o
Os motivos pelos quais Nicholson conclui que os paralelos aos tratados de
suserania "renderam pouco do que seja valioso são: primeiro, Deuteronômio não é
um documento legal no sentido em que são os tratados. Segundo, não é um tratado
em sua apresentação: antes, é um discurso de despedida de Moisés. Terceiro, suas
leis tratam de muitos assuntos não estritamente pertinentes à relação
suserano—vassalo. Quarto, o fato de Deuteronômio conter dois prólogos não se
assemelha a nada encontrado em tratados. Quinto, visivelmente ausente é a
designação de "Javé como Rei".107
Nicholson levantou outra questão importante: tal analogia para o
relacionamento deles com Deus teria algum apelo de natureza adequada ou
desejável, especialmente quando suseranos assírios haviam sujeitado e pilhado a
terra e o povo? Apesar do fato de os tratados referirem-se ao "amor" do suserano
pelo vassalo e do vassalo pelo suserano, as relações entre suseranos e vassalos
raramente eram de amor.
Vassalos, via de regra, não “amam” os que os conquistaram, subjugaram e
dominaram [...] Dizer aos israelitas que Javé os “ama” do mesmo modo
que os suseranos (e.g. Assurbanipal ou Nabucodonosor) “amam” seus
vassalos e que eles devem “amar” Javé como os vassalos amam seus
suseranos com certeza seria uma descrição bizarra do amor de Javé.108
Nicholson apresentou alguns argumentos de peso contra o uso de paralelos
aos tratados de suserania para interpretar a aliança do Sinai. Ainda pode ser
verdade que o modelo da aliança de Israel com Javé fosse baseado numa analogia
política. O modelo matrimonial da aliança não começou antes da época de Oséias.
Duas obras muito importantes de Perlitt e Kutsch pareceram voltar a
direção dos estudiosos da "fórmula de tratado" da aliança para a "idéia teológica".
Perlitt datou a idéia "plenamente desenvolvida" da aliança entre Javé e Israel no
período pós-exílico. Discutiremos essas duas obras com mais detalhes na próxima
seção, "O significado de b é r í t" .
Em 1984 W. J. Dumbrell construiu uma teologia bíblica abrangente em
tomo da idéia da aliança.109 Os cinco principais capítulos do livro centram-se em
promessas específicas da aliança (Noé, Abraão, Sinai, Davi e a "nova" aliança).
Um breve epílogo trata dos desdobramentos do pós-exílio. Dumbrell viu a
"aliança" implícita mesmo no relato da criação.
107 God and His People, 71.
Ibid., 78-79.
I0* Covenant and Creation.
Eu s u ti o vomo Dn», e vós siu ih o Mtu povo
139
Israel nio conseguiu cumprir as condições da aliança e assim obter a plena
realização das promessas da aliança, o que levou à esperança escatológica de uma
nova aliança. Toda escatologia é colocada sob a expectativa inclusiva dessa nova
aliança, que ainda nSo foi completamente cumprida. A obra de Dumbrell
representa um constructo teológico ligado à teologia "federal" de Coceio, do século
xvii, encontrando na Bíblia a idéia de "uma aliança" sob diferentes dispensações."0
Em 1985 T. E. McComiskey da Trinity Evangelical Divinity Schoool
publicou um argumento semelhante em favor de uma história da redenção
estruturada pela aliança. McComiskey viu dois tipos de aliança no Antigo
Testamento: promissiva e administrativa. No Antigo Testamento há duas alianças
promissivas: a abraâmica e a davídica. A aliança promissiva declara e garante o
elemento da promessa. Ela é incondicional. Seu significado jamais falta, embora o
linguajar possa ser reinterpretado."1
Três alianças administrativas no Antigo Testamento são a aliança da
circuncisão, a aliança mosaica e a nova aliança. As alianças administrativas
apresentam estipulações de obediência e, exceto no caso da aliança da circuncisão,
explicam os elementos da promessa no âmbito das economias governadas."2
McComiskey fez distinção entre a promessa incondicional, para todos os tempos, e
as alianças administrativas, que se aplicam somente numa categoria temporária.
B. O significado de bérít
Desde 1944 desenvolve-se entre os estudiosos do Antigo Testamento um
vivo debate em tomo do significado da palavra bérít, "aliança’. Naquele ano,
Joachim Begrich publicou seu agora famoso artigo em que afirmava que bérít
referia-se a um relacionamento entre duas partes desiguais, pelo qual o mais forte
dava ao mais fraco a garantia de comportamento amigável e proteção. Só o mais
forte era obrigado pela aliança. O mais fraco permanecia completamente passivo.
Begrich cria que a aliança de Deus com Israel era na origem uma aliança de
promessa e garantia. Foi só depois que Israel estabeleceu-se em Canaã e adotou
concepções cananéias de lei, que a bérít de doação passou para uma bérít
contratual, com obrigações de ambas as partes.113
A palavra bérít é usada no Antigo Testamento num sentido secular de
acordos entre indivíduos (Gn 21.22-24; 26.23-33; ISm 18.3; 23.18); entre estados e
1,0 Veja uma análise de R. E. Clements em Expostíory Times 96 (1985), 345.
111 The Covenantes o f Promlse, 140-144,223-231.
m lbtd„ 140.
115 Veja Joachim Begrich, *btrit, Ein Beitrage zur Erfassung einer alttestamentlichen Denkform", 1-11.
140
T e o u ic m
oo
A n t ig o T e s t a m e n t o
seus representantes (lR s S.1-12; 15.19; 20.34); entre reis e seus súditos (2Sm 5.3;
2Rs 11.17); e entre marido e esposa (Ez 16.8; Ml 2.14; Pv 2.17). É também
empregada no sentido figurado de aliança entre pessoas e animais (Jó 5.23; 41.1-4),
pessoas e pedras (Jó 5.23), uma pessoa e seus olhos (Jó 31.1) e entre uma pessoa e
a morte (Is 28.15-18).
"Aliança", bérít, ocorre cerca de 275 vezes no Antigo Testamento, sendo
encontrada em todos os livros, exceto em Rute, Ester, Eclesiastes, Cântico dos
Cânticos, Lamentações, Joel, Obadias, Jonas, Miquéias, Naum, Habacuque e
Ageu. Aparece cerca de 80 vezes no Pentateuco, 70 vezes no Profetas Anteriores,
75 vezes nos Profetas Posteriores e 60 vezes nos Escritos.
Alfred Jepsen concordou que bérítcarregava a idéia de garantia da parte do
mais forte para o mais fraco. Jepsen insistiu que a aliança entre Deus e Israel
jamais foi compreendida em bases legais ou contratuais. Nenhuma obrigação
jamais foi imposta a Israel, exceto a de renunciar ao culto de outros deuses. Essa
era uma "obrigação moral", não uma lei."4
Emst Kutsch conduziu um estudo completo dos contextos dos vários usos
da palavra berit no Antigo Testamento. Ele concluiu que o significado básico da
palavra bérít era "obrigação". Ela jamais significa relacionamento, união ou
aliança, mas sempre uma obrigação. Às vezes a pessoa assumia a obrigação sem
esperar um retomo. Às vezes a obrigação era imposta sobre o outro, sem que a
primeira parte assumisse uma obrigação."1
Lothar Periitt atacou a abordagem da crítica da forma de Mendenhall e toda
a abordagem das religiões comparadas no estudo bérít Periitt insistiu, contra
Eichrodt, que a teologia da aliança deve estar atada de maneira inseparável com o
uso real do termo bérít Periitt reverteu a velha concepção de Wellhausen de que
todas as referências a bérít no Antigo Testamento são tardias —não anteriores ao
material deuteronômico. Cada menção de uma bérít nos relatos do Sinai é
eliminada por procedimentos crítico-literários. Para Periitt, o relato da bérít de Javé
com Abraão em Gênesis 15 em sua forma presente era um antigo documento
deuteronômico a ser datado no início do século VII.116
J. J. Roberts viu as discussões de Kutsch e Periitt como um retomo a uma
discussão estreita, baseada na Bíblia, em tomo da aliança sobre um simples estudo
sintático de uma única palavra hebraica. Roberts pensava que a rejeição de dados
114 Veja A. Jepsen, Berith, Ein Beilrag zur Theologie der Exilszelt, 161-179.
119 Verheißung und Gesetz; cf. THAT I [1971], 339-3S2.
Bundestheologie im Alten Testament, veja uma critica às idéias de Perlitt em Zimmerii, "The History o f Israelite
Religion” em Tradition and Interpretation, ed. O. W. Anderson, 379-380; Nicholson, G od and his People, 109117.
Eu i n u o voaao D eu, ■vú« u in s o »nu povo
141
comparativos do antigo Oriente Próximo é "um passo em falso" e uma tentativa de
obter uma "segurança fictícia no campo restritivo dos estudos puros do Antigo
Testamento". Roberts disse: "Se houver um avanço genuíno nessa área, virá de
uma familiaridade continua e direta com o material extrabíblico juntada a uma
análise cuidadosa de textos bfblicos".117
Os estudiosos ainda debatem o significado do termo bérit Entre estudiosos
recentes há quatro teorias da etimologia de berit; ela vem: (1) da palavra acadiana
biritu, "apertar", "atar" ou "aguilhoar"; (2) da palavra acadiana birit, "entre"; (3) de
uma raiz hebraica brh, "comer"; ou (4) de outra raiz hebraica brh, "ver,
esquadrinhar, selecionar" (cf. Is 28.15-18; ISm 17.8).111
James Barr alegou que nenhuma dessas teorias é completamente
satisfatória porque os estudiosos vão longe demais com a etimologia. Barr centrou
seu estudo não na etimologia, mas nos usos peculiares da palavra. Ele descobriu
um grupo incomum de quatro aspectos do comportamento gramatical de bèrít (1)
sua obscuridade, (2) sua idiomaticidade, (3) sua não-pluralização e (4) a forma
peculiar de seu campo semântico.
Por obscuridade, Barr queria indicar a falta de algum significado
transparente na palavra em si, como a palavra alemã Handschuh contra a palavra
portuguesa "luva". Barr disse que berit é totalmente opaca, um sinal simples e
arbitrário cuja derivação histórica era desconhecida."9
Por idiomaticidade Barr quer dizer que a frase "cortar uma aliança", usada
80 vezes no Antigo Testamento, é uma construção idiomática. De acordo com a
definição clássica, uma expressão idiomática é uma expressão cujo significado é
diferente dos significados independentes das partes que a constituem.120 "Cortar
uma aliança" referia-se originalmente ao ato de cortar um bezerro a ser usado na
cerimônia cultual que selava a aliança.121 O bezerro era cortado, não a aliança. Barr
diz que a expressão "cortar uma aliança" é, de longe, o caso mais importante e
notável de expressão idiomática no hebraico bíblico.
Outra peculiaridade da aliança no Antigo Testamento é que jamais ocorre
no plural. Falamos com freqüência de "alianças", mas o Antigo Testamento só fala
de "aliança". Barr não tinha uma explicação adequada para esse fenômeno, mas
rejeitou as sugestões de que pode ser explicada pela noção de que só há uma
117 ‘Ancient Ne«r Eastern Environment’ em The Hebrew Bible and Its Modern Interpreters, ed. Knight e Tucker,
93-94.
Veja uma dtscussto completa da etimologia de bèrít tm Zimmerli, Old Testament Theology In Outline, 49; M.
Weinfeld, ’berit". TD OT1, 253-2SS; Barr, "Some Semantic Notes on the Covenant", 23-38; e Nicholson, God
and HIs People, 94-L09.
‘ Some Semantic Notes on the Covenant*, 26.
■“ Ibid., 27.
1,1 VejaCin 15.5-8; Jr 34.18.
142
T m m jo c u
do
A n t ig o T b t a m i h t o
"aliança" com muitas manifestações ou que os israelitas eram incapazes de pensar
nessa entidade no plural.
Uma peculiaridade final do uso da palavra "aliança" no Antigo Testamento,
de acordo com Barr, é que seu leque semântico parece muito amplo de uma
perspectiva, mas muito restrito de outra. Por exemplo, uma variedade de diferentes
palavras como acordo, tratado, contrato, promessa, obrigação tem sido usada para
traduzir a palavra hebraica berit. Aliás, todas essas idéias parecem estar incluídas
nessa única palavra hebraica. Barr disse que os únicos sinônimos reais são muito
raros e periféricos: talvez ’ãmSaâ, "aliança", "provisão estabelecida" em Neemias
10.1 (em português, 9.38); 11.23 e fiozeht pazut, "aliança" em Isaías 28.15-18, são
os únicos verdadeiros sinônimos de bérít
Além dessas palavras raras e periféricas, muitas outras palavras hebraicas
têm sido consideradas sinônimas de bérít Tais palavras são dSbir, "palavra"; etse,
"conselho"; tõrâ, "lei"; 'Sdût, "estatuto"; 'á/áe Sèbú % "juramento, voto". Nenhuma
delas, de acordo com Barr, são verdadeiros sinônimos de bérít Alguns desses
termos com freqüência acompanham bérít t são associados com ela, mas não são
seus sinônimos estritos. Barr concluiu que, da perspectiva da análise semântica, é
melhor supor que berit seja um substantivo hebraico primitivo, não mais
"derivado" de algo do que ”ab, pai" e que "jamais teve outros significados senão os
que encontramos no Antigo Testamento".122
Em 1986 E. W. Nicholson publicou duas obras importantes sobre a
aliança.123 Ele percorreu a história dos estudos sobre a aliança e argumentou que a
aliança ainda pode ser considerada o tema central do Antigo Testamento. Aliança
refere-se a escolha. A aliança toma a religião do Antigo Testamento única e
distintiva, não porque outras religiões não fizeram uso da idéia de aliança, mas
porque a idéia israelita não era baseada na natureza ou necessidade. Deus escolheu
Israel livremente, por nenhuma razão expressa, e Israel respondeu livremente à
oferta de Deus.124
Em 1991 Christoph Barth afirmou que "fazer uma aliança" tinha um fundo
legal. Quando Deus escolheu Abraão, não lhe mostrou uma bondade isolada que
poderia retirar a seu bel-prazer. Deus assumiu um relacionamento "permanente e
regulamentado" que poderia ser entendido só em termos legais porque estava
fundamentado na justiça de Deus. Os termos çédeqâ, "justiça", e hesed, "amor
característico da aliança", fazem parte da linguagem da aliança.
,B 'Some Semantic Note* on the Covenant", 35.
G od and HU PtopU; "Israelite Religion in the Pit-exilic Period" cm A Word in Season.
IMG od and h it P tcpte, vii-vlii.
EU SEREI O VOSSO DEUS, E VÓS SEREIS O MEU POVO
143
Christoph Barth disse: "Quando o Antigo Testamento retrata Deus
‘submetendo-se’ ao acordo legal por ele estabelecido, está falando de maneira
figurada. Afinal, a aliança é simplesmente a Palavra de Deus proferida a Abraão
quando lhe prometeu sua bênção. Por intermédio da aliança Deus abriu o coração
para Abraão e lhe declarou seu firme propósito de manter a Palavra".125 Um acordo
legal estabelece direitos e deveres para cada parte, mas os "direitos" da parte dos
homens na aliança são baseados na promessa de Deus. Israel e Jacó não eram
dignos desses "direitos" e também não os conquistaram (Gn 32.10).
Deus não devia nada a ninguém. Ele não era prisioneiro de um ato ou de
uma promessa dele mesmo. Ele era livre para fazer o que quisesse. Ele se manteve
fiel por decisão própria.126
Uma das tendências mais novas e significativas na teologia do Antigo
Testamento está associada ao nome Hans H. Schmid. Essa tendência é com
freqüência chamada "teologia da criação". É uma reavaliação da criação não
meramente como um tema comum com antigas religiões do Oriente Próximo, mas
como o horizonte amplo da fé e crença israelita. Tem-se passado para o tema da
"organização divina do mundo" como estrutura das "condições" religiosas que
Israel partilhava com seus vizinhos e dentro das quais as características distintivas
da religião israelita deviam e foram elaboradas. De acordo com essa idéia, não se
começa com os temas "particularistas" da eleição e da aliança, mas com o "tema
universalista da criação e da fé".127
Robert Davidson caracterizou o atual estado dos estudos sobre a aliança no
Antigo Testamento, dizendo:
As perguntas-chave em tomo das quais continua o debate, envolvendo o
uso de dados extrabíblicos e a relação entre a metodologia tradicionáriohistórica e as novas abordagens literárias do Antigo Testamento dizem
respeito à procedência dessas diferentes tradições da aliança e a relação
entre elas. É duvidoso que a tese pan-deuteronômica ou as teorias de uma
redação no exílio, que têm caracterizado boa parte dos estudos recentes,
possam dar a última palavra nessas questões.121
Os dados da aliança no Antigo Testamento são tantos e tão variados, e a
literatura acadêmica, tão vultosa, que será preciso mais tempo para resolver essas
questões. Vamos agora voltar a atenção para os dados veterotestamentários sobre a
aliança.
1,5 God With Us. 52.
124 Ibid.
VejaSchmid, Gerechtigkeit als Weltordnung; Nicholson, op. eit., vii, 194-207; "Israelite Religion in the Pre-exilic
Period”, 19-29.
"Covenant Ideology in Ancient Israel", 343-344.
144
T e o i -o c ia
do
A n t ig o T e s t a m e n t o
C. A aliança no Antigo Testamento
1) A aliança com Noé. bêrít, "aliança", aparece pela primeira vez no Antigo
Testamento em Gênesis 6.18. Deus disse a Noé que estava para provocar um
dilúvio sobre a terra. Ele destruiria toda a carne. Então Deus disse: "Contigo,
porém, estabelecerei a minha aliança; entrarás na arca...". Isso se refere a uma
aliança que Deus fez com Noé antes de ele entrar na arca ou seria uma promessa da
aliança que Deus faria com Noé ao final do dilúvio? Delitzsch e Gunkel
distinguiram as duas alianças, vendo nessa aliança antediluviana uma promessa de
segurança a Noé durante o dilúvio. John Murray insistiu que essa primeira
referência à aliança no Antigo Testamento foi anterior ao dilúvio; ele vê a aliança
como uma aliança de graça, baseada na soberania de Deus.129 S. R. Driver130
entendeu-a como uma promessa da aliança feita em 9.8-17.
A aliança de Deus com Noé inclui seus descendentes e todas as criaturas
vivas com ele (9.10). E uma aliança incondicional e eterna que promete que Deus
jamais eliminará toda a carne pelas águas de um dilúvio. O sinal da aliança é um
arco que se eleva acima de todos os homens, entre o céu e a terra, como garantia de
verdadeira graça. Von Rad disse:
A palavra hebraica que traduzimos por “arco-íris” em geral significa “arco
de guerra” no Antigo Testamento. A beleza da antiga concepção toma-se
assim visível: Deus mostra ao mundo que colocou de lado seu arco. O
homem conhece a bênção desse novo relacionamento bondoso na
estabilidade das ordens da natureza, i.e., em primeiro lugar só na esfera
dos elementos impessoais.131
A aliança de Deus com Noé foi sua aliança com a humanidade e com todas
as criaturas da terra (Gn 9.9-10) de que jamais voltaria a destruir a terra com um
dilúvio; que as quatro estações continuariam (Gn 8.21-22). O homem poderia
comer a carne dos animais, mas não o sangue. Qualquer pessoa ou animal que
matasse uma pessoa deveria morrer, porque os homens são feitos à imagem de
Deus (Gn 9.6). Os homens deviam multiplicar-se e encher a terra. O poder de Deus
sobre a natureza e sobre a história são pressupostos nessa aliança. A graça e o
julgamento divino também se confirmam.
2) A aliança com Adão (?). Gênesis nada diz sobre uma aliança com Adão.
Alguns estudiosos inferem dos primeiros capítulos de Gênesis e de algumas
"Covenant", 264.
150 The Book o f Genesis, 88.
1,1 Genesis, 130.
Eu s c a n o vosso Deus, t vós s c m b o miu rovo
145
passagens do Novo Testamento que Deus fez uma aliança com Adão. Julius
Wellhausen falou de uma liber quattourfoederum , um "Livro de Quatro Alianças",
entre Deus e Ad2o, Noé, Abraão e Moisés.132 Wellhausen disse que a aliança com
Adão (Gn 1.28—2.4) é a mais simples das quatro. Ela não é chamada aliança, mas é
a base da aliança com Noé, que a modifica.133
Alguns teólogos bíblicos e sistemáticos mais antigos, tais como Francis
Roberts em 16S7, falaram de uma aliança com Adão.134 Roberts antecipou-se a
Coceio e i teologia federal holandesa. W. T. Conner disse que a teoria federal
ensina:
Deus fez uma aliança com Adão, cujos termos eram que, desde que Adão
obedecesse a Deus, seus descendentes teriam vida etema; se
desobedecesse, seu pecado seria imputado a eles e, assim, seriam culpados
e condenados. Nfio há o menor indício na Bíblia de que alguma aliança
desse tipo tenha sido feita com Adão. Alguém bem disse que a aliança
originou-se na Holanda e não no Jardim do Éden. Tal imputação dos
pecados de um indivíduo humano para outro, tendo por base uma aliança
com a qual aquele a quem é imputado o pecado não tem relação alguma,
seria o cúmulo da injustiça.115
Mesmo assim, sistemas inteiros de teologia do Antigo Testamento têm sido
elaborados sobre a idéia de uma aliança de obras antes da queda e uma aliança de
graça depois dela. Gerhard Vos, Edward J. Young, John Murray e J. Barton Payne,
todos da tradição dos seminários de Princeton e Westminster, seguem os teólogos
federais e alegam que houve de fato essas duas alianças antes e depois da queda. A
aliança da graça (após a queda) era uma aliança monérgica —ou seja, obra
inteiramente divina.136
De novo, o Antigo Testamento nada diz sobre uma aliança entre Deus e
Adão. A primeira aliança no Antigo Testamento é entre Deus e Noé. E uma aliança
promissiva, garantindo a toda a raça humana a estabilidade das ordens da natureza.
Na época do Novo Testamento, judeus e cristãos tinham desenvolvido as leis de
Noé, que se aplicavam a toda a raça humana e não só aos judeus. Essas leis de Noé,
baseadas em Gênesis 9.17 e em partes do Código de Santidade (Lv 17—26),
,,J Prolegomena, 338-342,357.
IM Zimmerii, O ld Testament Theology, 55.
1.4 Veja Francis Roberts, The Mysterie and Marrow o f the Bible: viz., God's Covenants with Man, in thefir s t Adam,
before the Fall: from the Beginning to the End o f the World; Unfolded and Illustrated in positive Aphorisms and
their Explanations, 2 vol.; C. A. Briggs, The Study o f Holy Scripture, 465.
155 The Gospel o f Redemption, 29-30.
1.4 Veja Vos, Biblical Theology; E. J. Young, The Study o f O ld Testament Theology Today, 61 -78; J. Barton Payne,
The Theology o f the Older Testament.
146
T e o l o g ia
do
A n t ig o T e s t a m e n t o
incluem leis universais tais como não comer sangue nem animal que tenha sido
estrangulado e a proibição de assassínio, adultério, idolatria e blasfêmia (cf. At
15.28-29).
3)
A aliança com Abraão. A segunda aliança no Antigo Testamento é en
Deus e Abraão. Três diferentes relatos dessa aliança aparecem em Gênesis 12; 15 e
17. Gênesis 12 não contém o termo "aliança", mas o relato do chamado de Abrão
para sair de Ur. Deus promete que o nome de Abrão será grande, que ele será uma
grande nação (12.2), que a terra de Canaã pertencerá a seus descendentes (12.7),
que uma bênção divina sobrevirá aos que abençoarem Abrão, que uma maldição
recairá sobre os que o amaldiçoarem, e que Abrão mesmo abençoará todas as
famílias da terra (12.3). Nada se diz nesse capítulo sobre alguma obrigação de
Abrão, exceto a obrigação implícita de ir para onde Deus mandar.
A palavra "aliança" ocorre em Gênesis 15.18. Repetem-se as promessas de
uma terra e de uma grande posteridade. Embora tenha correspondido em fé à
promessa de Deus (15.6), nenhuma condição específica é atrelada à aliança nesse
capítulo. O ritual para ratificação da aliança, envolvendo a divisão de animais
sacrificiais, é descrito em Gênesis 15.9-10. Tal cerimônia é mencionada em mais
um único lugar no Antigo Testamento (Jr 34.17-20), mas rituais semelhantes foram
encontrados em Mári, Alalakh e Aslan Tash.137
Alguns estudiosos vêem essa cerimônia de "auto-maldição" como
evidência de alguma obrigação que recai sobre ambas as partes da aliança. Mas
John Bright alega que a cerimônia garante a Abraão que, após gerações de dura
servidão, seus descendentes possuirão a terra. John Bright cria que seu significado
era que Deus obriga-se "por uma auto-maldição solene a cumprir essa promessa. A
aliança patriarcal firma-se, assim, nas promessas incondicionais de Deus para o
futuro e só requer do recipiente que confie".138 É claro que estudiosos como Perlitt
e Kutsch discordaram de Bright. Eles vêem obrigação em quase todas as alianças.
O terceiro relato de uma aliança entre Deus e Abraão aparece em Gênesis
17. A linguagem desse capítulo é diferente. A palavra "estabelecer", hãqím, é usada
em lugar de "cortar", kãrat. "Estabelecer" dá ênfase à função de Deus no processo e
implica alguma permanência à disposição. De fato, a palavra "perpétua" ocorre nos
versículos 7, 8 e 13. A promessa é de uma grande posteridade (v. 2, 5) e de terra (v.
8). As únicas obrigações declaradas na passagem são que Abraão deve andar na
presença de Deus (El Shaddai) e ser perfeito (v. 1) e que deve guardar a aliança
divina pela circuncisão de todo macho entre eles (v. 10).
157 Veja Cross, Canaanite Myth and Hebrew Epic, 265-266.
Covenant and Promise, 26.
E li SEREI O VOSSO DEUS, I VÓS S U E I S O MEU POVO
147
Ronald Clements observou que "esse rito de circuncisão não toma
condicional a aliança à maneira da aliança da lei no Sinai; assim, não se previa
nenhuma dificuldade no cumprimento das exigências de circuncidar toda criança
de sexo masculino. Deve-se destacar com firmeza que os autores sacerdotais
pretendiam fazer da circuncisão um sinal, não uma condição restritiva".139 Walther
Zimmerli disse que, mais uma vez, estamos lidando com uma promessa pura, como
ocorreu em Gênesis 15. Todo indivíduo que não seja circuncidado quebra a aliança
e é eliminado (17.14), mas a punição afeta só o indivíduo obediente. "A aliança
como um todo permanece intocada."140
A aliança de Abraão é uma promessa vinculadora ou um "voto promissivo
da parte de Deus".141 Um debate contínuo tem sido conduzido entre estudiosos que
crêem que os relatos da aliança abraâmica são uma retroprojeção de conceitos
posteriores dos períodos de Davi, Salomão ou até do pós-exílio e os que vêem
indícios de uma tradição dessa aliança que pode ser remontada a suas raízes numa
repetição "cultual" do relato da promessa em Gênesis 15.7-21.142
Concordo com a datação remota. Robert Davidson disse em relação a isso
que "há um perigo real de o período do exílio tomar-se uma área conveniente de
captação para boa parte do que seja considerado teologicamente importante no
Antigo Testamento, com uma preocupação insignificante de buscar a fonte dos
vários ribeiros que correm para essa área de captação.143
4) Aliança com Israel no Sinai. A aliança que Deus fez com Israel noSinai
é apresentada no Antigo Testamento como uma extensão ou cumprimento da
aliança que Deus fez com Abraão.
Decorridos muitos dias, morreu o rei do Egito; os filhos de Israel gemiam
sob a servidão e por causa dela clamaram, e o seu clamor subiu a Deus.
Ouvindo Deus o seu gemido, lembrou-se da sua aliança com Abraão, com
Isaque e com Jacó (Êx 2.23-24).
Falou mais Deus a Moisés e lhe disse: Eu sou o S e n h o r . Apareci a
Abraão, a Isaque e a Jacó como Deus Todo-Poderoso; mas pelo meu
nome, O SENHOR, não lhes fui conhecido. Também estabeleci a minha
aliança com eles, para dar-lhes a terra de CanaS, a terra em que habitaram
como peregrinos. Ainda ouvi os gemidos dos filhos de Israel, os quais os
egípcios escravizam, e me lembrei da minha aliança. Portanto, dize aos
filhos de Israel: eu sou o SENHOR, e vos tirarei de debaixo das cargas do
1,9 O ld Testament Theology, 73.
140 O ld Testament Theology in Outline, 56.
141 R. Davidson, "Covenant Ideology in Ancient Israel”, 338.
141 Veja R. E. Clements, "Abraham and Davis: Genesis 15 and Its Meaning for Israelite Tradition".
143 "Covenant Ideology in Ancient Israel", 342.
T e o l o g ia
148
do
A n t ig o T e s t a m e n t o
Egito, e vos livrarei da sua servidão, e vos resgatarei com braço estendido
e com grandes manifestações de julgamento. Tomar-vos-ei por meu povo
e serei vosso Deus; e sabereis que eu sou o S e n h o r , vosso Deus, que vos
tiro de debaixo das cargas do Egito. E vos levarei à terra a qual jurei dar a
Abraão, a Isaque e a Jacó; e vo-la darei como possessão. Eu sou o
S e n h o r ( Ê x 6.2-8).
O principal relato da aliança do Sinai está em Êxodo 19—24, uma das
passagens mais importantes do Antigo Testamento. Terrien disse: "Poucas páginas
na literatura da humanidade comparam-se a essa descrição impressionante de um
encontro entre Deus e o homem".144 A passagem é formada de vários tipos de
material (teofania, narrativa, leis, elementos cultuais) e existe uma discordância
substancial entre estudiosos quanto aos estratos exatos entretecidos no presente
texto.
Childs cria que as tensões literárias em Êxodo 19 são tais que a tradicional
divisão de fontes (J e E) é incapaz de resolvê-las. Ele disse que mesmo que duas
correntes literárias, tais como J e E, estejam presentes no capítulo 19, mantêm em
comum tanta tradição oral, que uma separação é improvável e pouco
significativa.145 Childs disse que se deve ter consciência da profundidade e da
variedade de significados que atuam nessa passagem, mas ao mesmo tempo é
preciso concentrar os esforços para interpretar a etapa final do texto.
De acordo com a passagem (Êx 19—24) conforme se apresenta agora,
Israel chegou ao Sinai no terceiro mês depois de sair do Egito (19.1-2). Deus
ofereceu uma aliança a Israel, com a qual todo o povo concordou. Moisés serviu
como mediador entre Deus e Israel (19.3-9). O povo preparou-se para a
manifestação de Deus (19.10-15). Na manhã do terceiro dia, Deus desceu sobre o
Sinai em fogo, fumaça, nuvens, trovão e terremoto (19.16-25). Então Javé
proclamou os Dez Mandamentos da aliança (20.1-17). O povo recuou em temor e
tremor, pedindo a Moisés que lhes servisse de mediador (20.18-21). As leis da
aliança foram dadas (20.22—23.33), e a aliança entre Deus e Israel foi selada com
sangue sacrificial e com uma refeição comunitária (24.1-18).
Antes de deixar o Sinai, Israel quebrou a aliança com Javé, fazendo um
bezerro de ouro e cultuando-o (Êx 32.3-8). Após o julgamento divino e a
intercessão de Moisés, a aliança foi renovada (Êx 34.10, 27-28).
Outro relato da aliança do Sinai aparece em Deuteronômio, um livro de
aliança. O termo b è r í t ocorre pelo menos 27 vezes em Deuteronômio. O livro trata
da renovação da aliança no Sinai com a segunda geração de israelitas, os
144 The Elusive Presence, 119.
145 The Book o f Exodus, 350.
EU SEREI O VOSSO DEUS, E VÓS SEREIS O MEU POVO
149
sobreviventes das peregrinações no deserto, antes de entrarem na terra de Canaã. É
provável que gerações sucessivas de israelitas tenham usado o material do livro
como um documento de renovação da aliança até a época da reforma de Josias e
depois dela (29.14-15).
A aliança do Sinai, em contraste com a aliança abraâmica, parece destacar
a obrigação humana de guardar as leis e ordenanças, para que ela pudesse continuar
em vigor. Assim, desenvolveram-se duas tradições de aliança em Israel: (1) a
tradição da aliança promissiva, ligada a Noé, Abraão e Davi, e (2) a aliança de
obrigação humana, ligada aos eventos do Sinai. Parece que a aliança do Sinai
tomou-se a base para a liga de doze tribos na época de Josué e dos juizes (Js 24).
5) A aliança com Davi. O surgimento da monarquia provocou uma
mudança na idéia de aliança. O rei precisava da aprovação e do sustento divino.
Deus fez uma aliança com Davi, pela qual um de seus descendentes sempre
ocuparia seu trono (2Sm 7.12-16). A palavra aliança não ocorre nessa passagem,
mas aparece nas "últimas palavras de Davi" (2Sm 23.5). A aliança de Deus com
Davi era dupla: (1) o reino de Davi seria estabelecido para sempre (SI 18.50; 89.34, 35-37; Is 55.3) e (2) Jerusalém ou Sião seria morada de Deus para sempre (lR s
8.12-13; SI 78.68-69; 132.13-14).
Quando Salomão morreu, a monarquia dividiu-se em reinos do Norte e do
Sul. O reino do Norte, formado por dez tribos, manteve a aliança do Sinai com suas
aparentes feições de obrigação humana. O reino do Sul manteve sua capital em
Jerusalém e tinha um descendente de Davi no trono, apegando-se assim à aliança
promissiva davídica. E possível que, ao capturar Jerusalém e tomá-la sua capital,
Davi tenha conservado algumas tradições religiosas dos jebuseus e pessoas dentre
o povo. Essas idéias podem ter influenciado Judá em seu conceito de reinado e
aliança eterna.146
Obviamente, os estudiosos que sustentam que em Israel não surgiu nenhum
conceito claro de aliança antes do período pós-exílico enfrentam dificuldades com
uma aliança davídica. Hayes e Miller disseram: "A aliança é um tema tardio nas
tradições patriarcais (Kutsch; Perlitt)", e 2Samuel 7 é o produto final da
recomposição deuteronomista desses dados.147
6) Os Profetas e a Aliança. Os profetas do século V III fizeram pouco uso do
termo "aliança", talvez pela falsa impressão das pessoas de que era automática.
Amós não usou o termo em lugar algum para referir-se ao relacionamento de Deus
com Israel; entretanto, é claro que os crimes que atacou eram infrações da lei da
aliança. Ainda que Oséias raramente tenha usado a palavra "aliança" (e seja o único
146Veja Bright, Covenant and Promise, 49-77; Cross, Canaanile Myth and Hebrew Epic, 229-287; Miller e Hayes,
A History o f Ancient Israel and Judah. 173.
141 Miller e Hayes, op. cit., 142, 333.
150
T i o u m u d o Armco TOTAM unt)
profeta do século VIII a usá-la), acusou Israel de infringir sua aliança com Javé. Em
um trecho (4.1-3) ele retratou Javé movendo um processo litigioso de aliança
contra seu povo. Oséias firmava-se nas tradições do êxodo, nas peregrinações no
deserto e na conquista, bem como nas estipulações da aliança de Javé (no Sinai).
Mas parece que a teologia da aliança eterna de Javé com Davi nada significava
para ele. Oséias foi o primeiro profeta a usar a metáfora do casamento para
descrever a relação de aliança entre Javé e Israel.
No reino do Sul, Isaías estava firmado nas tradições de Davi e na promessa
segura que Deus lhe havia feito. Essa era a base teológica para a critica permanente
de Isaías contra a política nacional. É provável que Isaías também estivesse
familiarizado com as tradições da aliança do Sinai. Jeremias permaneceu nas
tradições do reino do Norte e, portanto, trabalhou tendo por base a aliança do Sinai.
Ele insistiu que Israel havia desrespeitado sua aliança com Deus (11.3-10; 22.9;
31.32; 34.18).
Muitas pessoas opuseram-se a Jeremias nesse ponto, alegando que a
aliança de Deus com Jerusalém era eterna e que o templo era inviolável. Mas
Jeremias estava correto. Nabucodonosor atacou Jerusalém, destruiu a cidade,
queimou o templo e levou muita gente do povo para a Babilônia como cativos. Isso
provocou uma crise espiritual no povo que cria que Deus protegeria Jerusalém, o
templo e as pessoas a qualquer preço.
John Bright disse:
Os fundamentos da fé tinham sido abalados. A própria sobrevivência de
Israel como comunidade definida estava em jogo. E, humanamente
falando, poder-se-ia dizer que talvez a naçflo nâo tivesse sobrevivido se
não conseguisse encontrar alguma explicaçfio para a tragédia no âmbito de
sua fé, especificamente no Âmbito do poder soberano de Javé, de sua
justiça e de sua fidelidade ás promessas. É de estremecer quando se pensa
no que ocorreria, caso as únicas vozes da religião em seu meio fossem a
dos sacerdotes e profetas profissionais, proclamando a inviolabilidade de
Si8o e a eternidade da linhagem de Davi. Simplesmente nSo era assim!
Jeremias, Ezequiel e outros interpretaram o que ocorreu a Jerusalém como
um ato divino de julgamento pela violação da aliança. Era uma palavra salvadora
que explicava a tragédia no campo da fé. A ação de Deus não significava a morte
de Israel ou da religião. Não significava que Deus fosse desleal ou injusto.
Mas que dizer do futuro? Havia alguma esperança? Jeremias escreveu uma
carta para alguns que foram levados cativos para a Babilônia em 597 a.C. Nessa
carta dizia:
E tl SEREI O VOSSO DEUS, E VÓS SEREIS O MEU POVO
1S1
Eu é que sei que pensamentos tenho a vosso respeito, diz o S e n h o r ;
pensamentos de paz e não de mal, para vos dar o fim que desejais. Então,
me invocareis, passareis a orar a mim, e eu vos ouvirei. Buscar-me-eis e
me achareis quando me buscardes de todo o vosso coração. Serei achado
de vós, diz o S e n h o r , e farei mudar a vossa sorte; congregar-vos-ei de
todas as nações e de todos os lugares para onde vos lancei, diz o SENHOR,
e tomarei a trazer-vos ao lugar donde vos mandei para o exilio (Jr 29.1114).
Jeremias, como a maior parte dos profetas do Antigo Testamento, cria que
a esperança acenava acima do julgamento. Que forma assumiria tal esperança para
o futuro?
7)
A nova aliança. A futura esperança para Israel não teria a forma
promessa de restauração do estado pelos contornos antigos, nem mesmo da vinda
de uma libertador "messiânico" da casa de Davi. Tomava a forma de uma promessa
de uma nova aliança. Podemos perguntar: "Como pode haver uma nova aliança?".
Israel não tinha poder, mérito nem base para reclamar uma nova; mas Deus iniciou
a primeira aliança e iniciaria uma nova.
Que bem traria uma nova aliança? Seria rapidamente quebrada, como fora
a anterior? Deus também podia remediar essa situação. Ele perdoaria pecados
passados e escreveria a lei da sua aliança no coração (ou seja, na mente e na
vontade) de seu povo, dando-lhes assim o desejo e a capacidade de obedecer a ela e
de viver como seu povo. Quando isso ocorreria? Tudo o que Jeremias conseguia
dizer era: "Eis aí vêm dias" (31.31).
Essa nova aliança é em alguns aspectos semelhante à antiga. Foi dada por
iniciativa divina e baseada na graça, com a expectativa de obediência. A diferença
é que o povo é renovado.14*
Isso significa que a aliança do Sinai estava certa e a aliança davídica,
errada? É provável que Bright estivesse correto em concluir que ambas as alianças
davam expressão a aspectos essenciais da fé israelita. A aliança do Sinai lembrava
a Israel a graça de Deus e as obrigações deles. As alianças abraâmica e davídica
lembravam a Israel que seu futuro não dependia em última análise do que eles
eram ou faziam ou deixavam de fazer, mas do "propósito imutável de Deus que
nada podia cancelar".149
Ambos os padrões de aliança continuaram no Novo Testamento. Elas
foram juntadas em Cristo e proclamadas cumpridas. Bright concluiu que a igreja, a
exemplo de Israel, vive sob os dois padrões de aliança. Recebemos de Cristo
l4t Bright, Covenant and Promise, 196; *An Exercise in Hermeneutics: Jeremiah 31.31-34", 188-210.
Covenant and Promise, 196.
1S2
T f.o i .o c ia
do
A n t ig o T e s t a m e n t o
promessas irrestritas às quais não foi associada condição alguma. Também
recebemos graça e estipulações: "... guardareis os meus mandamentos" (Jo 14.15).
Aceitar a promessa sem as obrigações seria afundar em complacência.
Levar nos ombros o peso dos mandamentos de Cristo, sem as promessas, seria
desesperar-se ou cair em legalismo auto-suficiente. Assim nós, a exemplo de Israel,
devemos viver em tensão. "E uma tensão entre a graça e a obrigação: as promessas
incondicionais em que somos convidados a confiar, e a obrigação de obedecer a ele
como Senhor soberano da igreja.'"50
Além da expressão "nova aliança", ocorrem outras, como "aliança
perpétua" e "a aliança da paz". Qual a relação entre essas expressões? A expressão
"nova aliança" só ocorre uma vez no Antigo Testamento (Jr 31.31) e sete vezes no
Novo Testamento (Mt 26.28; Mc 14.24; Lc 22.20; ICo 11.25; Hb 8.8; 9.15; 12.24),
enquanto a expressão "aliança eterna" ocorre 19 vezes no Antigo Testamento e só
uma vez no Novo (Hb 13.20). A nova aliança em Jeremias 31.31-34 não é descrita
como uma aliança eterna, e a aliança eterna no Antigo Testamento jamais é
chamada uma nova aliança. Isso, porém, não significa que os dois conceitos não
estejam relacionados. Algumas referências a uma aliança perpétua no Antigo
Testamento tratam de alianças feitas no passado: uma vez se refere à aliança com
Noé (Gn 9.16); quatro vezes à aliança com Abraão (Gn 17.7, 13; SI 105.8-10; lCr
16.15-17); uma vez à observância do sábado (Ex 31.16); uma vez aos pães da
proposição (Lv 24.8); uma vez ao sacerdócio de Finéias (Nm 25.13); uma vez à
infração, por parte de Israel, da aliança permanente (Is 24.5). Seis referências à
"aliança perpétua" tratam de uma aliança a ser feita no futuro. Javé diz em cinco
ocasiões que fará uma aliança permanente com Israel (Is 55.3; 61.8; Jr 32.40; Ez
16.60; 37.26). Uma vez ele prediz que Israel juntar-se-á a Judá chorando e
buscando seu Deus, pedindo que seja unido ao Senhor por uma "aliança eterna que
jamais será esquecida" (Jr 50.5).
Em duas ocasiões a futura aliança entre Javé e Israel é chamada uma
"aliança de paz" (Ez 34.25; 37.26). Essa aliança de paz também será uma aliança
eterna (Ez 37.26; cf. Is 54.4-10).
Será a nova aliança completamente inédita, sem nenhuma continuidade
com a antiga? Se não, o que será novo nela? A antiga podia ser infringida por Israel
(Is 24.5; Jr 31.32; 34.18; Ez 17.19; 44.7) e até por Javé. Embora Javé diga que não
quebrará sua aliança (Lv 26.44; Jz 2.1; SI 89.34), é acusado de renunciar a ela (SI
89.39) e de anulá-la (Zc 11.10). Essas duas últimas referências podiam ser
compreendidas como atos temporários.
150Ibid., 198.
El) SEREI O VOSSO DEUS, E VÓS SEREIS O MEU TOVO
153
Significa a palavra "eterno", 'õlãm, "sem fim", "eterno" no sentido
filosófico? Holladay diz que não.151 G. A. F. Knight disse:
Eterno, ‘õJSm não é uma palavra basicamente ligada à vida do além. Ela
vem da raiz que significa “escondido”. E, assim, fala das névoas do
passado, escondidas dos pensamentos do homem, e olha para as névoas do
futuro, que a mente do homem não consegue nem começar a espreitar. E
assim fala do Deus que é Senhor mesmo das realidades ocultas que os
seres humanos só conseguem vislumbrar em termos de tempo infinito.152
E.
Jenni alegou que a palavra ‘õlãm significa basicamente "o tempo ma
remoto".153 O tempo mais remoto refere-se ao passado ou ao futuro. Nada na
palavra em si especifica quão remoto é o tempo a que se refere. Tal especificação
pode ser derivada do contexto.154 Assim, em Josué 24.2, m ê ‘õlãm significa "de
tempo remoto". Jeremias 28.8 fala: "Os profetas que houve antes de mim e antes de
ti", m in-ha‘õlãm, "desde a antiguidade". Barr disse que tais casos poderiam ser
traduzidos "desde a eternidade", mas teriam de ser compreendidos como
referências a um passado remoto e não deveriam ser compreendidos como
"eternidade" num sentido filosófico. No hebraico pós-bíblico ‘õlãm é usado para
designar esta era, hazeh‘õlãm, e a era vindoura, h a ‘õlãm haba’. "Eterno" no Antigo
Testamento significa "tudo quanto se consegue enxergar ou compreender e além".
D. F. Payne disse que o termo bèrít ‘õlãm pode ser traduzido "aliança de duração
indefinida e pode implicar nada mais que os contratos assim descritos; embora
firmados por um indivíduo (ou geração) específico, afetava também sua
posteridade".155 Mas Payne apressou-se em dizer que não podemos aceitar essa
interpretação em todos os casos.
Marten H. Woudstra disse: "Não é verdade que uma aliança chamada
‘eterna’ não possa ser quebrada".156 "Ninguém, ao que parece, fez uma bérít por
período limitado, ou, se fez, nenhum exemplo disso encontrou espaço no texto
bíblico".157
151 ‘öläm. Concise Hebrew-Aramaic Lexicon, 267.
152 A Christian Old Testament Theology, 45.
,s) "Das Wort ‘Olam im Alten Testament”, 246-247.
154 Barr, Biblical Words fo r Time, 70.
155 "The Everlasting Covenant", 10-16.
156 “The Everlasting Covenant in Ezequiel 16.59-63, 32.
157 Cross, Canaanite Myth and Hebrew Epic, 35; veja Nicholson, God and His People, 103.
154
T e o l o g ia
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A n t ig o T e st a m e n t o
Moshe Weinfeld, com base em seu estudo dos "privilégios reais" no antigo
Oriente Próximo, afirmou que as alianças de Javé com Abraão e Davi no Antigo
Testamento foram moldadas nesses privilégios reais. Esses privilégios reais de
terra e dinastia eram dados pelo imperador a um vassalo leal. Eles eram
incondicionais e não podiam ser retirados.,s>
Uma vez que as alianças com Abraão, Davi e Israel eram tidas em algum
sentido como eternas, como devemos compreender o cumprimento delas? Elas
foram cumpridas em Cristo e na igreja ou ainda serão cumpridas na nação de
Israel? Os dispensacionalistas afirmam que a nova aliança é principalmente para
Israel. Alguns defendem duas novas alianças: uma para a igreja e uma para
Israel.159
Esse assunto está fora dos limites de um estudo descritivo de teologia do
Antigo Testamento, havendo grande desacordo sobre como as passagens do Antigo
Testamento a respeito da aliança devem ser compreendidas hoje. O entendimento
teológico dessas passagens e o significado delas para hoje será determinado em
grande parte pelo entendimento hermenêutico e pela metodologia da pessoa. A
maioria dos judeus e cristãos compreende essas passagens de maneiras diversas.
Mas todos os judeus não concordam entre si em questões de escatologia, e
certamente todos os cristãos não concordam entre si nessas questões.
Robert D. Culver, pré-milenista dedicado, discutiu a questão do
cumprimento dessas passagens do Antigo Testamento. Ele analisou as opiniões de
Agostinho, Calvino, Lutero, do arminianismo, de teólogos da aliança, de prémilenistas, amilenistas, pós-milenistas e dispensacionalistas. Então, concluiu que
esses assuntos devem ser tratados como uma questão de escatologia e "permita-se
que assim permaneçam".160 Ele defendeu que não se tome uma atitude partidária
polêmica, recomendando o assunto com devoção e humildade, em atenção aos seus
irmãos no ministério e companheiros cristãos de cada convicção, tentando manter a
mente aberta para ser conduzido a um caminho mais excelente.161
"The Covenant o f Grant in the Old Testament and in the Ancient Near East*, 189-192.
Veja A Bíblia Anotada, Hb 8.6. Veja uma critica a essa idéia em McComiskey, The Covenants o f Promise, 157161.
Daniel and the Latter Days, 20.
Ibid., 22. Veja um desenvolvimento conciso do assunto no Novo Testamento em Bruce Cortey, "The jew s, the
Future and God*. 42-56.
5
Quem é Deus como Javé?
Quando Moisés e Arão ordenaram em nome de Javé que libertasse Israel, o
faraó perguntou: "Quem é o SENHOR para que lhe ouça eu a voz e deixe ir a Israel?
Nao conheço o SENHOR, nem tampouco deixarei ir a Israel" (Êx 5). O faraó não
sabia quem era Javé e, por isso, recusou-se a libertar Israel. Sua recusa resultou nas
pragas do Egito. Terminadas as pragas, todos no Egito, inclusive o faraó e os
israelitas, sabiam quem era Javé (Êx 7.5, 17; 8.10, 22; 9.14-16, 29; 10.2; 11.7;
12.31-32; 14.4, 18, 30). Javé revelou quem ele era por meio do que fez. Com sua
mão poderosa e seu braço estendido, livrou da servidão um grupo de escravos. Ele
provou ser um Deus de compaixão, poder e propósito.
Uma coisa é perguntar por ignorância ou desprezo: "Quem é Javé?". Outra,
é perguntar em compromisso e fé: "Quem é Deus como Javé?" —indicando que não
há nenhum comparável a ele.1 O Antigo Testamento afirma com freqüência que
Javé é incomparável. No Cântico do Mar, a pergunta é:
1 Veja uma discussSo completa e m C .J. Labuschagne, The Incomparability o f Yahweh in lhe O ld Testament.
T e o l o g ia
15 6
do
A n t ig o T e s t a m e n t o
Ó SENHOR, quem é como tu entre os deuses?
Quem é como tu, glorificado em santidade,
terrível em feitos gloriosos, que operas maravilhas?
(Êx 15.11)
O salmista disse:
O teu caminho, ó Deus, é de santidade.
Que deus é tão grande como o nosso Deus?
Tu és o Deus que operas maravilhas
e, entre os povos, tens feito notório o teu poder.
Com o teu braço remiste o teu povo,
os filhos de Jacó e de José.
(SI 77.13-15)
Pois quem nos céus
é comparável ao SENHOR?
Entre os seres celestiais,
quem é semelhante ao SENHOR?
(SI 89.6)
Miquéias perguntou:
Quem, ó Deus, é semelhante a ti, que perdoas a iniqüidade
e te esqueces da transgressão
do restante da tua herança?
(Mq 7.18)
Essas perguntas retóricas declaram que nenhum Deus é tão grande,
poderoso, majestoso, maravilhoso, inspirativo e clemente como Javé. Esses termos
são apenas alguns de uma infinidade de palavras usadas no Antigo Testamento para
descrevê-lo. Ele é um Deus de ira, zelo, julgamento e vingança (2Sm 22.48; SI
94.1; Na 1.2-6). Ele é bom, um Deus de amor, misericórdia e compaixão (Êx 34.6;
Os 11.8; Na 1.7). Ele é bondoso, glorioso e maravilhoso. Ele é santo, fiel e
verdadeiro. Ele é de eternidade a eternidade (SI 90.1). Ele é o Deus do céu que
Q u i*! t D lllS COMO JAVÉ?
157
mora na terra (Ez 43.7, 9; Dn 2.18-19; Jn 1.9). Ele se arrepende (Gn 6.6), mas não
muda (Ml 3.6).
Deus anda pelo jardim na virada do dia (Gn 3.8, 10). Ele aparece a Abraão
como homem, come com ele e anuncia o nascimento de Isaque e a destruição de
Sodoma (Gn 18.1-8, 16-21). Ele fala com Moisés "face a face" (Êx 33.11; cf. Gn
32.30; Dt 5.4; 34.10), mas ninguém consegue ver a Deus e viver (Êx 33.20). Ele
não é humano (Nm 23.19), mas possui face, mãos, pés, olhos, narinas e ouvidos.
Ele é como fogo (Êx 19.18; Dt 4.24; Ez 1.27-28), luz (SI 104.2); um leão (Am 1.2).
O nome Javé ocorre mais de 6 500 vezes no Antigo Testamento, e a palavra
’é/ohím (Deus) ocorre mais de 2 500 vezes. No Antigo Testamento, o único
conceito destacado de modo dominante é o de Deus. Javé é a personagem central.
O nome de Deus aparece em cada livro do Antigo Testamento, exceto em Ester e
em Cântico dos Cânticos.
Como apresentar o que o Antigo Testamento diz sobre Deus? Devemos
tratar o assunto de maneira cronológica, de acordo com os diferentes gêneros
literários, ou de acordo com as diferentes perspectivas teológicas (Profetas,
sacerdotes, Sabedoria)? Devemos tentar apresentar uma ordem sistemática do
material de todo o Antigo Testamento em sua forma canônica final? Seria
interessante e instrutivo mostrar as características do Deus de Israel apresentadas
nos registros escritos ordenados de acordo com a cronologia, e eles variam em
ênfase de um século para outro.
Numa teologia do Antigo Testamento, a pergunta "quem é Deus como
Javé?" deve ser respondida de maneira sistemática por um estudo da forma
canônica final do Antigo Testamento. O Antigo Testamento é coerente em sua
descrição de Deus. Ronald Clements disse: "Em sua forma canônica preservada, o
Antigo Testamento certamente procura apresentar Deus como um ser sobrenatural
singular que se revelou a Abraão, Moisés e outras grandes figuras da vida de Israel,
sendo o Senhor e o único criador do universo".2
Uma rápida inspeção nos livros básicos de teologia do Antigo Testamento
não mostra um modo único de apresentar os dados do Antigo Testamento sobre a
doutrina de Deus. Uns poucos temas básicos aparecem em quase todos. Seria
praticamente impossível tratar de tudo o que o Antigo Testamento fala a respeito
de Deus. A apresentação desse material deve ser seletiva, representando os
conceitos mais significativos e singulares de Deus no Antigo Testamento.
Apresentaremos o que o Antigo Testamento fala acerca de Deus, subdividindo-o
em nove temas: um Deus que salva, um Deus que abençoa, um Deus criador, um
Deus santo, um Deus de amor, um Deus de ira, um Deus que julga, um Deus que
perdoa e o Deus único.
1 Old Testament Theology, 53.
158
T eolocia do Antigo T esta m in to
A. P or que com eçar com o Deus que salva?
Começamos esta discussão da perspectiva veterotestamentária de Deus com
o tema do Deus que salva porque Israel conheceu a Deus como salvador antes de
conhecê-lo como Senhor. O êxodo (salvação) precede a aliança entre Javé e Israel
no Sinai (lei). Israel também conheceu Javé como salvador antes de conhecê-lo
como criador. “A história de Israel começou com a ação salvadora de Deus
motivada pela compaixão”.3 Javé era Deus de Israel “desde a terra do Egito” (Os
12.9).
Todavia, eu sou o
S e n h o r,
teu Deus,
desde a terra do Egito;
portanto, não conhecerás outro deus além de mim,
porque não há salvador, senão eu.
(Os 13.4)
B. O significado de salvação no Antigo Testamento
As palavras “salvar”, “salvador” e “salvação” em hebraico estão
relacionadas com a raiz y s h \ que possui o significado básico de “ser amplo”,
“tornar-se espaçoso”, “ter muito espaço”.4 Salvação é um termo com vasta gama de
significados. Pode referir-se a ser salvo de inimigos, de doença, de pecado, da
destruição e/ou da morte. É usado em referência a pessoas, como qualidade delas
—ou seja, seres humanos que salvam— mas no Antigo Testamento a referência
mais freqüente é a Deus. O termo é usado em relação a livramentos passados,
presentes e futuros. É usado principalmente em relação à salvação de Israel, mas
pode referir-se à salvação da raça humana e/ou de um indivíduo.
A maior parte do Antigo Testamento diz respeito a Israel como nação ou
grupo; assim, a principal função de Javé como Deus salvador era livrar Israel de
seus inimigos. Às vezes os inimigos eram outras nações, como os egípcios,
amalequitas, filisteus e babilônios. Outras vezes, Israel precisava ser salvo do
próprio pecado da idolatria ou do culto a Baal, o que equivalia a quebrar a aliança
’ Westermann, Elements o f O ld Testament Theology, 35 (no Brasil, Teologia do AT, pela Paulinas).
* Richardson, "Salvation, Savior", 169; Scherer, Event in Eternity, 154-155.
Q uem t D e u s c o m o J a v í ?
159
com Javé. Alan Richardson disse que o Antigo Testamento não se ocupa
basicamente em perguntar em que consiste a salvação ou por quais técnicas se pode
alcançá-la. Antes, ocupa-se principalmente com a proclamação do que Deus fez e
fará.
Esse é o tema, tanto do Antigo como do Novo Testamento. Deus é um
Deus de salvação: esse é o evangelho da fé tanto judaica como cristã. Ele
salvou seu povo e o salvará; na Bíblia a salvação é uma realidade tanto
histórica como escatológica. Deus é com freqüência chamado “Salvador”,
e em algumas partes da Bíblia “Salvação” é um nome de Deus. É,
portanto, totalmente apropriado que o Filho de Deus, por meio de quem
foi cumprido o propósito divino da salvação, seja chamado Jesus, que
significa “Salvador”. Assim, a salvação é o tema central de toda a Bíblia.5
Claus Westermann percorreu a obra de Deus como Salvador pelo
Pentateuco, nos livros históricos, pelos Profetas e nos Salmos, indicando que com
freqüência Deus é apresentado não só como salvador de Israel, mas também de
indivíduos e nações. Westermann concluiu que os perigos e ameaças aos seres
humanos e sua necessidade de livramento são grandes e diversos, de modo que os
atos salvadores podem ser também diversos. Ainda assim, Deus é o salvador em
cada circunstância. “O Antigo e o Novo Testamento [...] concordam na declaração
de que Deus é o salvador. O fato de que Deus é o salvador é um aspecto de sua
divindade no Antigo Testamento e também no Novo.” Que Deus é o salvador no
Antigo e no Novo Testamento “não se pode discutir [...] o Deus salvador é de
importância central”.6
Westermann cria que os atos salvadores de Deus no Antigo Testamento
implicam um processo. A estrutura básica desse processo de salvação é:
necessidade, clamor por ajuda, declaração de que foram ouvidos, livramento divino
e reação dos salvos. Westermann viu essa estrutura por trás dos livros de Êxodo e
Juizes. A salvação deve estar ligada a uma necessidade consciente. Sem uma
necessidade, não haveria salvação. Para ser salvo, é preciso reconhecer o desespero
pessoal e clamar a Deus. Deus ouve os clamores dos necessitados e os livra. Então
o povo louva ao Senhor por seu amor longânimo e atos poderosos.
O Antigo Testamento proclamou: “Do SENHOR é a salvação” (SI 3.8; Jn
2.9). “Salva-nos é a constante oração, ‘salvação’ é o constante desejo do salmista”.7
Mas o povo de Israel é o único povo a ser salvo? Javé interessa-se pelas
necessidades das nações? O Antigo Testamento é basicamente a história do
! Op. cit., 168.
6 Op. cit., 46.
7 Kirkpatrick, The Book o f Psalms, 16.
160
T e o l o g ia
do
A n t ig o T e s t a m e n t o
relacionamento especial de Javé com Israel. Do primeiro capítulo de Êxodo ao final
de Malaquias, os principais assuntos são Javé e Israel. Por vezes surge um quadro
maior do mundo, e outras nações entram em cena. Mesmo assim, o interesse pelas
outras nações está diretamente associado à relação entre Javé e Israel.
Os onze primeiros capítulos de Gênesis ocupam-se com todas as nações,
mas esses capítulos são o prólogo ou cenário para o drama da redenção que começa
em Gênesis 12 com Abraão. Gênesis 12.3 fornece uma indicação de que Deus
chamou Abraão para abençoar as famílias da terra de maneira especial. A idéia de
que as nações serão abençoadas reaparece em Gênesis 18.18, 22.18; 26.4; 28.14;
Deuteronômio 29.19; Salmos 72.17; Isaías 65.16; Jeremias 4.2.
Às vezes outras nações serão banidas (herem) e destruídas (Nm 31.17-18;
Dt 7.1 -5; 20.16-18) ou escravizadas por Israel (Is 49.22-23; 60.14; Mq 7.16-17). As
profecias estrangeiras de Amós, Isaías e Jeremias e os ais apocalípticos de Ezequiel
e Zacarias falam de derrota e destruição das nações. Entretanto, um raio de
esperança para todos os povos brilha periodicamente em todo o Antigo Testamento
(SI 22.27; Is 2.1-4; Jr 12.14-16; 16.19-21; Mq 4.1-4; Zc 2.11; 8.20-23; 14.16).
Também te dei como luz para os gentios,
para seres a minha salvação
até à extremidade da terra.
(Is 49.66)
Olhai para mim e sede salvos,
vós, todos os limites da terra;
porque eu sou Deus, e não há outro.
(Is 45.22)
Antes de mim deus nenhum se formou,
e depois de mim nenhum haverá.
Eu, eu sou o S enhor ,
e fora de mim não há salvador.
(Is 43.10-11; cf. 43.3; 45.15, 21; 49.26; 60.16; 63.8-9)
Quem
t Deus com o J a v í?
161
Muitos pensam que salvação na Bíblia é apenas ser salvo do pecado.
Edward J. Young afirmou que a única verdadeira teologia do Antigo Testamento é
a que "faz plena justiça à Queda".' Ele também disse:
Só há uma interpretação que faz justiça aos dados das Escrituras, sendo, a
única que leva a sério as afirmações da Bíblia de que Deus realmente
entrou em aliança com Adão antes da queda e de novo firmou aliança com
o Adão decaído. Esse fato é básico para a devida compreensão de toda a
revelação do Antigo Testamento. Sobre isso, aliás, edifica-se a revelação
subseqüente. Com efeito, a revelação subseqüente dada no Antigo
Testamento baseia-se na pressuposição de que o homem é uma criatura
decaída, alienada de Deus, que precisa ser reconciliada com ele. A brecha
introduzida pelo pecado nas relações entre os homens e Deus precisa ser
curada, e essa obra de cura é só de Deus.9
A salvação do pecado é uma doutrina central nas Escrituras, mas Young
parece ter levado sua teologia ao estudo das Escrituras, em vez de permitir que as
Escrituras determinem sua teologia. O Antigo Testamento jamais menciona uma
aliança entre Deus e Adão, nem antes nem depois da queda. Os termos "salvar" e
"salvação" são usados no Antigo Testamento para designar mais o livramento de
males físicos do que do pecado. Salvação é um termo amplo no Antigo e no Novo
Testamento. E usado em referência ao livramento do mal, seja esse mal físico
(derrota nacional, fome, pobreza, medo enfermidade), moral ou espiritual.
F.
J. Taylor disse que "cerca de um terço das referências do N
Testamento à salvação denota livramento de males específicos, tais como cativeiro,
doença e possessão demoníaca (Mt 9.21; Lc 8.36), terrores escatológicos (Mc
13.20) ou morte física (Mt 8.28; At 7.20)".10
Otto Baab perguntou:
Como a concepção de salvação depende da natureza do pecado? O
pecado, vimos, é a recusa do homem em reconhecer sua condição de
criatura e a afirmação orgulhosa de sua singularidade e liberdade
espiritual. Ele se faz de Deus e passa a criar imagens dele próprio na
forma de poder econômico ou político, sistemas intelectuais sacrossantos
e códigos morais que substituem a justiça divina, procurando assim provar
para si mesmo e para seus companheiros que ele é Deus e não criatura de
Deus. Ele usa sua liberdade de maneira idólatra e não ética, invadindo a
* The Study o f Old Testament Theology Today, 42.
9 Ibid., 69.
10 "Save, Salvation", 219-220.
162
T e o l o g ia
do
A n t ig o T e s t a m e n t o
liberdade de outros a quem pode explorar e escravizar. Isso é pecado. Em
vista disso, que é salvação?"
Baab disse que a salvação é a chegada de um senso de humildade e
dependência de Deus. Ela exige que a pessoa reconheça o fato de ser criatura,
fraca, limitada. Isso não é um tipo de terapia psicossomática para restaurar a saúde
da mente e do corpo. Tal restauração só pode vir como resultado da obra de Deus,
não de um psiquiatra. "Nada menos que a luz penetrante da santidade de Deus que
condena e ilumina pode revelar o homem para ele mesmo e mostrar-lhe seu
pecado".12
Esse tipo de salvação do pecado só pode ocorrer em nível individual.
Algumas passagens do Antigo Testamento descrevem indivíduos em sua
experiência de salvação do pecado. Os testemunhos dos salmistas nos salmos 32 e
51 e a experiência de Isaías no templo (Is 6) são exemplos clássicos de
experiências individuais de salvação do pecado no Antigo Testamento. Em cada
caso Deus é o salvador. Entretanto, o Antigo Testamento fala principalmente da
purificação ou do perdão de pecados para o grupo mediante observância adequada
de rituais. Mas a observância adequada de rituais não salvavam por si. Só Deus
podia salvar (SI 3.8; Jn 2.9).
19. Um Deus que abençoa
Mais que qualquer outro estudiosos moderno, Claus Westermann destacou
as diferenças entre as idéias de "salvar" e "abençoar" no Antigo Testamento.
Talvez seus extensos estudos em Salmos com seus lamentos e louvores tenham-no
levado a essa perspectiva. Westermann traçou a história do estudo da bênção pelas
obras de Dillman, Schultz, Stade, Eichrodt, von Rad, Köhler, Vriezen, Pedersen e
Mowinckel.13 Ele reconheceu Johannes Pedersen e Ludwig Köhler como os
primeiros a notar uma diferença básica de significado entre livramento e bênção.
Von Rad enquadrou o conceito de bênção dentro do conceito de salvação.
" The Theology o f the Old Testament, 119.
11 Ibid., 119-120.
15 Blessing in the Bible, 15-23.
QUCM t D t US COMO jA V tr
163
A. O significado de bênção
O significado de "bênção" muda de acordo com a fonte e a forma literária
no Antigo Testamento. O conceito mais amplo de bênção está na narrativa da
primeira criação (Gn 1.1—2.3). Ali, o Deus Criador concede a toda a raça humana e
a cada criatura vivente a bênção da fertilidade, "Sede fecundos, multiplicai-vos"
(Gn 1.22, 28); do espaço, podiam encher as águas, o ar e a terra (Gn 1.22, 28); e do
alimento (Gn 1.29-30). Os homens receberam a bênção especial de domínio (Gn
1.28). Deus também abençoou o sétimo dia e o tomou santo porque naquele dia
descansou de sua obra de criação. Na primeira referência bíblica, a "bênção" é algo
que Deus dá todas as pessoas, todos os seres viventes e ao dia de sábado (Gn
1.1—2.3). Ela é universal em sua amplitude e contínua em seus efeitos. Gênesis 5.2
e 9.1 repetem a fertilidade e a continuidade.
B. Passagens do Antigo Testamento que tratam da bênção
A idéia de bênção aparece com freqüência com sua oposta, a "maldição",
em Gênesis 1—11. "Bênção" ocorre cinco vezes (1.22, 28; 2.3; 5.1; 9.1) e
"maldição" ocorre seis vezes. Deus pronuncia uma maldição contra a serpente por
tentar a mulher (3.14), contra Caim por matar o irmão (4.11) e contra a terra (3.17;
5.29). Noé amaldiçoa o filho mais novo e abençoa Sem e Jafé (9.25). Em 8.21
Deus promete que jamais voltará a amaldiçoar a terra por causa da humanidade. As
maldições estão ligadas a atos de injustiça.
A idéia de bênção como a provisão divina contínua de cuidado pelo mundo
muda nas histórias patriarcais (Gn 12—36). Ela é aliada à promessa abraâmica. Em
Gênesis 12.1-3 a palavra bãrak, "bênção", ocorre cinco vezes. Javé é quem a
pronuncia, e a bênção toma-se parte da promessa aparentemente incondicional. A
bênção (promessa) implica um grande nome e uma grande nação para Abraão.
Wolff destacou que a dádiva da terra jamais é objeto de bênção. Ela é o objeto de
um "voto" de Javé (cf. Gn 24.7; 26.3; 50.24; Nm 11.12).14
Gênesis 12 junta duas idéias teológicas diferentes: bênção e promessa.
Uma (promessa) faz da salvação, o ato libertador de Deus, o centro; a outra faz da
bênção constante de Deus o centro. Desse ponto em diante, a promessa de bênção é
incluída na história da promessa.15
Balaão (Nm 22—24) parece ter sido um conhecido "abençoador" e
"amaldiçoador" profissional. Ameaçado por Israel, Balaque, rei de Moabe, enviou
mensageiros a Petor, junto ao Eufrates, para contratar Balaão para que
14 Veja "The K erygm aofthe Yahwist", 141.
15 P. D. Miller, "The Blessing o f God", 247.
164
T e o l o g ia
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A n t ig o T e s t a m e n t o
amaldiçoasse Israel. Relutante, Balaão foi a Moabe e tentou amaldiçoar a Israel. A
cada vez que abria a boca, ele os abençoava, ao invés de amaldiçoá-los. Javé é
visto firme no controle de toda bênção e maldição, pelo menos enquanto a sorte de
seu povo está em jogo. Balaão disse:
Como posso amaldiçoar
a quem Deus não amaldiçoou?
Como posso denunciar
a quem o SENHOR não denunciou?
(Nm 23.8)
Eis que para abençoar recebi ordem;
ele abençoou, não o posso revogar.
(Nm 23.20)
Benditos os que te abençoarem,
e malditos os que te amaldiçoarem.
(Nm 24.9 b)
O incidente de Balaão mostra como Javé podia tomar um fenômeno bem
conhecido e difundido do mundo antigo —a capacidade de certas pessoas de
abençoar e/ou amaldiçoar— e usá-lo para ensinar a Israel que ele controla todos os
supostos "amaldiçoadores e abençoadores" profissionais. Toda palavra de poder
alheia à vontade de Deus é impotente e sem sentido.16 Aqui, o poder da bênção é o
poder de Javé para proteger, garantir, defender.
Deuteronômio promete a bênção de Deus. Para Deuteronômio, a
obediência era o caminho para a bênção.
Ele te amará, e te abençoará, e te fará multiplicar; também abençoará os
teus filhos, e o fruto da tua terra, e o teu cereal, e o teu vinho, e o teu
azeite, e as crias das tuas vacas e das tuas ovelhas, na terra que, sob
juramento a teus pais, prometeu dar-te. Bendito serás mais do que todos os
povos; não haverá entre ti nem homem, nem mulher estéril, nem entre os
teus animais. O SENHOR afastará de ti toda enfermidade; sobre ti não porá
nenhuma das doenças malignas dos egfpcios, que bem sabes; antes, as
16 Westermann, Blessing in lhe Bible, S0.
Quem
t Deus com o Javé?
165
porá sobre todos os que te odeiam. Consumirás todos os povos que te der
o SENHOR, teu Deus; os teus olhos não terão piedade deles, nem servirás a
seus deuses, pois isso te seria por ciladas (Dt 7.13-16).
As bênçãos deviam ser lidas no monte Gerizim e as maldições, no monte Ebal,
quando Israel entrasse na terra de Canaã (Dt 11.29; 27.12-13). Deuteronômio
contém maldições bem como bênçãos. As bênçãos e maldições da aliança recebem
expressão máxima em Deuteronômio 28 (cf. Lv 26). Aqui, o Deus que salva se
toma o Deus que abençoa (aquele que concede fertilidade às pessoas, ao campo e
ao rebanho).
A pronúncia de bênçãos ou maldições tem pouco lugar nos livros históricos
e nos profetas. Ali, a idéia de um Deus salvador/juiz é proeminente. Os salmos e a
literatura de sabedoria têm mais a dizer sobre a bênção de Deus por causa da ênfase
da sabedoria na criação e da ligação dos salmos com o culto. O Livro (da
Sabedoria) de Jó ocupa-se do começo ao ftm com a concessão que Deus faz de suas
bênçãos (Jó 1.10; 42.12). Os salmos representavam grande parte da adoração de
Israel. Uma vez que o culto era um lugar em que a bênção de Deus podia ser
transmitida às pessoas pelos sacerdotes, não nos surpreende a abundância de
bênçãos nos salmos.
As bênçãos cultuais aparecem bem cedo. Logo após a instituição do culto
no Sinai, foi dada a bênção sacerdotal:
O SENHOR te abençoe e te guarde;
o SENHOR faça resplandecer o rosto sobre ti
e tenha misericórdia de ti;
o SENHOR sobre ti levante o rosto
e te dê a paz.
Assim, porão o meu nome sobre os filhos de Israel,
e eu os abençoarei.
(Nm 6.24-27)
G. B. Gray disse que a bênção sacerdotal dá uma expressão concisa e bela ao
pensamento de que Israel deve tudo a Javé, que protege seu povo de todo mal e
supre todo o necessário para seu bem-estar, inclusive a paz.17
"Bênção" pode referir-se basicamente às necessidades físicas da vida,
enquanto "guardar" destaca a obra protetora de Javé. Experimentar a face
17 Numbers, 71.
166
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A n t ig o T e s t a m e n t o
resplandecente de Jav é era um sentimento amigável da presença de Deus para
auxílio e favor (SI 31.16; 67.1; 80.3,7). "Misericórdia" significa estender para
ajudar. Levantar o rosto, ao invés de esconder a face ou deixá-la cair, representa a
atenção bondosa de Deus para com a necessidade pessoal. Paz (shãlôm) tornou-se a
bênção ou saudação judaica comum. Ela é mais que a ausência de discórdia.
Expressa o bem-estar positivo e a segurança daquele "cuja mente está firme em ti
[Deus]" (cf. Is 26.3, ARC). shãlôm pode indicar o cessar de conflitos e a saúde
física, rãpã’{SI 38.3; Is 53.5; 57.19; Jr 6.14).
Ao pronunciar a bênção, os sacerdotes "colocam o nome de Javé sobre o
povo de Israel". Ou seja, o povo será chamado, identificado e protegido pelo nome
de Javé. A passagem termina com uma declaração enfática: "e eu [o pronome é
enfático] os abençoarei". Os rabinos diziam que o pronome estava expresso para
deixar claro que era Javé, não os sacerdotes, quem abençoava o povo.
Bem ligada ao uso cultual da bênção pronunciada sobre outros povos e,
talvez, proveniente desse uso, está a bênção empregada como saudação no Antigo e
Novo Testamentos. Uma forma comum de saudação no antigo Israel aparece em
Rute 2.4: "Eis que Boaz veio de Belém e disse aos segadores: O SENHOR seja
convosco! Responderam-lhe eles: O SENHOR te abençoe!". A bênção como palavra
de despedida para amigos, amados ou conhecidos pode ser vista na separação entre
Jônatas e Davi (1 Sm 20.24) e no pedido do faraó a Moisés, na partida de Israel (Êx
12.32).
A bênção sacerdotal não era alguma concessão mágica de poder, saúde ou
riqueza por intermédio do poder do sacerdote. É uma oração para elevar a Deus a
esperança e confiança de que ele manterá sua provisão contínua para a
humanidade. O tratamento que Albert Outler dá à providência chega perto da
perspectiva veterotestamentária da bênção como presença de Deus na história e na
natureza e com a comunidade e os indivíduos. Outler disse que a providência tem
sido associada com maior freqüência à presença constante de Deus.18 A
providência e a bênção significam que Deus está no controle da história e da
natureza e que ele está sempre perto.
" Who Trusts in God, 72.
Q uem t Deus como J a v í ?
167
20. O Deus criador
No Antigo Testamento, o Deus que salva e o Deus que abençoa é também
o Deus que cria. Muitos estudiosos afirmam que Israel conheceu a Deus como
salvador (na experiência do êxodo), antes de conhecê-lo como criador. Zimmerli
diz que dificilmente seria exagero dizer que quando o Antigo Testamento refere-se
ao "livramento israelita do Egito" fornece a primeira orientação e o ponto de
partida para a fé israelita.19 G. Emest Wright disse que a humanidade chegou ao
entendimento da criação por intermédio do entendimento da aliança.
A vontade do homem comprometida com o Senhor-Criador e obediente a
ele implicava uma relação pessoal entre o homem e seu Senhor muito mais
profunda que a comum no mundo religioso. O homem bíblico aprendeu
isso a partir da relação de aliança, o mais profundo de todos os
relacionamentos. Através disso ele também se confrontou com o mistério
da criação dele mesmo.20
A. Criação: secundária, não principal, na "história sagrada"
Até pouco tempo atrás, a opinião que prevalecia entre estudiosos do Antigo
Testamento era que "a criação não é um dado primário na fé israelita,
desempenhando, em lugar disso, função secundária na redenção [...] e ocupa lugar
periférico [ou lateral] do pensamento israelita, não o centro".21 Karl Barth colocou
a aliança antes da criação em sua dogmática.
Christoph Barth disse que para Israel a criação é um fato salvador, não só
uma verdade geral objetiva. Entretanto, não ocupa lugar central entre os tópicos da
fé israelita.22 A criação como ato de Deus é um tópico complementar no credo de
Israel. Ela não é citada na maioria dos "credos" de Israel no Antigo Testamento. A
criação está nos "credos" em Neemias 9.6-25 e no salmo 136. E provável que
Westermann tenha ido longe demais ao dizer:
O Antigo Testamento jamais fala de fé no Criador [...] A criação não era
uma questão de fé porque simplesmente não havia alternativa. Em outras
palavras, o Antigo Testamento diferia de nós em seu entendimento da
realidade, visto que não havia outra realidade, senão a estabelecida por
19 Old Testament Theology in Outline, 32.
K The Old Testament and Theology, 73.
21 Crenshaw, Studies in Ancient Israelite Wisdom, 27.
“ God With Us, 9.
168
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A n t ig o T e s t a m e n t o
Deus. Eles não tinham necessidade expressa de crer que o mundo foi
criado por Deus porque isso era uma pressuposição do pensamento
deles.23
Nesse sentido, o desenvolvimento do credo da igreja é paralelo ao credo
israelita. Os credos da igreja primitiva não fazem referência à criação. A criação
tomou-se assunto dos credos só por volta de 150 d.C., recebendo destaque
complementar apenas em Nicéia, em 325 d.C.24
A relação secundária entre a criação e a aliança tem sido contestada em
anos recentes. Os estudos de H. H. Schmid sobre a "ordem no antigo Oriente
Próximo" levaram-no a concluir que a criação é a estrutura dentro da qual movemse as concepções históricas. Schmid alegou que o pano de fundo dominante do
pensamento veterotestamentário é a idéia abrangente de ordem do mundo e fé na
criação no sentido amplo. Assim, a fé na criação não é uma idéia periférica, mas a
essência de todo o pensamento do AT.25
T. M. Ludwig também questionou a idéia de que a criação é secundária à
história da salvação. Ludwig estudou as tradições do estabelecimento da terra em
Isaías 40—66 e concluiu que "a fé na criação em Deutero-Isaías não é meramente
incluída na fé na eleição ou redenção".26 Crenshaw contestou a concepção
predominante tomando por base seu estudo do caos dentro de uma discussão da
criação. Crenshaw deu ênfase a três elementos: (1) a ameaça do caos no âmbito
cósmico, político e social evoca uma reação na teologia da criação; (2) no
pensamento de sabedoria, a criação atua basicamente como uma defesa da justiça
divina; (3) a centralidade da questão da integridade de Deus na literatura israelita
coloca a teologia da criação no centro do empreendimento teológico.27
Crenshaw concordou que a criação desempenha função secundária no
Antigo Testamento, mas não na história da salvação, conforme ensinava von Rad.
Crenshaw alegou que a função da teologia da criação é escorar a crença na justiça
divina. Assim, ele afirmou que "a criação diz respeito à questão fundamental da
existência humana, a saber, a integridade de Deus".28
25 Creation, 5; cf. Elements o f Old Testament Theology, 72, 85.
” Christoph Barth, op. cit., 11 ; cf. Jacob, Theology o f the Old Testament, 136.
” "Creation, Righteousness, and Salvation”, 1-19; veja Reventlow, Problems o f Old Testament Theology in the
Twentieth Century, 34-185; Nicholson, "Israelite Religion in the Pre-exilic Period", 20-29.
“ "The Traditions o f the Establishing o f the Earth", 345-357.
17 Studies in Ancient Israelite Wisdom, 27.
“ Ibid., 34.
Q uem t D eu s c o m o J a v í ?
169
B. Tipos de linguagem de criação
Tudo o que o Antigo Testamento diz sobre a história da salvação é
notavelmente uniforme e sem ambigüidades, mas o que diz acerca de Javé como
Criador é mais variado, sendo formulado em diferentes linguagens de criaçãor29 O
Antigo Testamento emprega quatro tipos claramente definidos de linguagem de
criação comuns no antigo Oriente Próximo: (1) criação em que se faz ('ãáâ)ou por
algum tipo de atividade; (2) criação por meio de concepção e nascimento; (3)
criação por meio de batalha; e (4) criação por meio da palavra.30 Além desses
quatro tipos de linguagem de criação que Israel tinha em comum com seus
vizinhos, ela usava uma palavra especial para designar a criação, bãrã’ —palavra
desconhecida no mundo antigo fora de Israel.
O primeiro tipo de linguagem de criação empregado pelo Antigo
Testamento é o de Deus "fazer", 'ãââ, algo ou alguém (Gn 1.7, 26; 2.2, 4, 18, 22;
3.1; 6.6). Também se fala de Deus "formar", yãsãr, alguém ou algo (Gn 2.7, 8, 19;
Is 43.1, 21; 44.2, 21, 24; 45.7, 9, 11, 18; 49.5; Jr 1.5; Am 4.13). Outro termo usado
pelo Antigo Testamento, semelhante a 'ãáâ é qãnâ, "obter", "preparar" ou
"possuir", qãnâ refere-se à obra a que Deus dispensou cuidado e interesse. Ele se
toma possuidor daquilo que fez (Gn 14.19, 22; Êx 15.16; Dt 32.6; SI 74.2; 78.54;
104.24; 139.13; Pv 8.22).
Outros termos usados em referência ao ato de Deus criar, no sentido de
"fazer", são: estender (nãtâ) os céus como uma tenda (Is 40.22; 44.24; Zc 12.1);
lançar os alicerces (tãpah) dos céus (Is 48.13); lançar os alicerces (yãsad) do
mundo (SI 24.2; 78.69; 89.11; Pv 3.19; Is 14.32; Am 9.6); fundar (cõnén) a terra
(SI 24.2; 119.90; Is 45.18); formar (bãnâ) alguém ou algo (Gn 2.22; Am 9.6).
O segundo tipo de linguagem de criação usada por Israel era o de
nascimento e concepção. Outros povos da vizinhança de Israel falavam da criação
em termos de sexo, concepção e nascimentos. Von Rad disse que "no culto
cananeu, a cópula e a procriação eram consideradas de maneira mítica, como
acontecimentos divinos; por conseguinte, a atmosfera religiosa era praticamente
saturada de concepções míticas sexuais. Mas Israel não participava da divinização
do sexo. Javé permanecia absolutamente além da polaridade do sexo".31
Embora Israel assumisse atitude polêmica em relação à deificação do sexo
e excluísse de toda a esfera do culto a idéia e a prática, permanece alguma
” Zimmerli, Old Testament Theology in Outline, 33.
w John H. Stek, "What Says the Scriptures" em Portraits o f Creation, ed. van Till, 207.
51 Old Testament Theology 1,27, 146.
170
T e o l o g ia
do
A n t ig o T e s t a m e n t o
linguagem antiga, retratando a criação em termos de concepção (yãlad) ou
nascimento (Jó 38.8; SI 90.2). Westermann disse que a palavra tõlêdôt, a "gênese"
do céu e da terra, reflete essa idéia (Gn 2.4). Os termos ya sa \ "produzir", e hül,
"produziu", (Pv 8.24) podem também ter essa conotação (Gn 1.20, 24). O fato de
Israel ter sido capaz de usar a linguagem do nascimento em referência à criação
mostra claramente que existiu em Israel, em período bem remoto, uma doutrina
muito definida da criação.32
O terceiro tipo de linguagem que Israel e seus vizinhos empregavam em
relatos da criação era o de batalha entre os deuses. Talvez o relato mais famoso
desse tipo de batalha seja o Enuma Elish, em que Marduque mata o velho dragão,
Tiamat, e o corta em duas partes. De sua metade superior, ele fez os céus, e da
metade inferior, fez a terra.33 Embora o Antigo Testamento não dê indicações de
que Israel alguma vez tenha pensado na criação como conseqüência de um embate
de Javé com algum outro deus, a linguagem daquela antiga batalha ocorre de
quando em quando. O caos, representado pelo mar, águas, as profundezas, Raabe,
ou Leviatã, parece um inimigo que Javé derrotou e mantém aprisionado (Jó 3.8;
9.13; 26.12; 38.10-11; SI 46.1-3; 74.12-17; 89.9-13; 93.1-5; 104.5-9; Is 27.1; Jr
5.22).
Histórias semelhantes da criação em termos de uma batalha entre os deuses
foram encontradas em textos de Ras Shamra. Frank Cross descreveu e traduziu
alguns desses textos cananeus de Ras Shamra e destacou semelhanças e diferenças
com algumas passagens do Antigo Testamento.34
O Antigo Testamento emprega outro tipo de linguagem de criação
semelhante à de seus vizinhos. E a linguagem da criação por uma palavra. Oito
vezes em Gênesis 1 lemos: "Disse Deus..." (v. 3, 6, 9, 11, 14, 20, 24, 26). Von Rad
observou que a criação pela palavra de Deus reflete a "absoluta ausência de esforço
da ação criativa divina".35 Isso também denota que a criação é nitidamente separada
em sua natureza da pessoa de Deus. O mundo criado não é emanação. Ele é seu
Senhor. Fora de Gênesis 1, o Antigo Testamento raramente refere-se à criação pela
palavra (SI 33.6; 148.5; Is 41.4; 48.13; Am 9.6).
O conceito de criação pela palavra não é exclusivo do Antigo Testamento.
No Enuma Elish,36 Marduque prova seu poder divino fazendo surgir um objeto e
fazendo-o desaparecer do mesmo modo. Também nos textos do templo antigo de
11 Ibid., 28.
” Veja Heidel, The Babylonian Genesis.
54 "The Song o f the Sea and Canaanite Myth", 1-25; cf. F. F. Bruce, The New Testament Development o f Old
Testament Themes, 40-50.
55 Op. cit., 142.
“ Veja Heidel, op. cit.
Quem t D e u s c o m o J a v é ?
171
Mênfis,37 Ptah, o deus do universo, exerce sua atividade criadora com o auxílio do
"coração e da língua" —ou seja, por meio de sua palavra. "Ele criou nove deuses (a
água primeva, o deus-sol Re, etc.) por sua palavra".3*
O Antigo Testamento possui duas palavras especiais que significam criar a palavra bãrã’é uma palavra hebraica sem igual que significa "ele criou", bãrã’ é
usada 11 vezes em Gênesis (1.1, 21, 27 [três vezes], 2.3, 4; 5.1, 2 [duas vezes];
6.7); uma em Êxodo (34.10), Números (16.30), Deuteronômio (4.32), Eclesiastes
(12.1); Amós (4.13), Jeremias (31.22), Malaquias (2.10) e em Isaías 1—39 (4.5); 20
vezes em Isaías 40—66 (40.26, 28; 41.20; 42.5; 43.1, 7, 15; 45.7 [duas vezes], 8,
12, 18 [duas vezes]; 48.7; 54.16 [duas vezes]; três vezes em Ezequiel (21.20;
28.13, 15); seis vezes em Salmos (51.10; 89.12,47; 102.18; 104.30; 148.5). Ainda
assim, essa palavra não foi encontrada em línguas semíticas mais antigas fora do
Antigo Testamento.39 A palavra é usada 48 vezes no Antigo Testamento nas raízes
qal e nifal, significando "criar". É empregada uma vez na raiz nifil, "engordar-se"
(1 Sm 2.29) e quatro vezes no piei, "cortar madeira" (Js 17.15, 18; Ez 21.24; 23.27).
Quando bãrã’é empregada no sentido de "criar", o sujeito é sempre Deus. Falar de
um ser humano "criando", com o uso de bãrã’ soaria blasfemo no Antigo
Testamento. Além disso, o Antigo Testamento jamais menciona algum material
com que Deus cria algo. Embora a criação ex nihilo (do nada) apareça primeiro de
maneira explícita em 2Macabeus 7.28, o significado pode estar implícito em
Gênesis l.40
C. Referências à criação no Antigo Testamento
O Antigo Testamento começa com dois relatos ímpares e profundos da
criação do universo e da humanidade (Gn 1.1—2.4a; 2.4A-25).
Westermann disse:
O primeiro capítulo da Bíblia é uma das obras-primas da literatura
mundial. Todas as perguntas que têm sido dirigidas a esse primeiro
capítulo da Bíblia, todas as dúvidas quanto ao que é “certo” naquilo que
ali se encontra, todas as explicaçOes emocionais de que seria totalmente
antiquado, de maneira alguma afetam o valor do que ali está. Quando se
ouve o capítulo lido em voz alta e no devido contexto, percebe-se que o
” Veja John A. Wilson, "The Theology o f Memphis", em Ancient Eastern Texts, ed. James B. Pritchard.
MVon Rad, Old Testament Theology /, 143 (no Brasil, Teologia do AT, pela ASTE); Westermann, Creation, 10; id..
Genesis I —1 ,26-41.
* Veja M / i ’em t d o t ii, eds. Botterweck e Ringgren, 245.
“ Zimmerli, Old Testament Theology in Outline, 35; von Rad, Old Testament Theology 1. 143.
172
T ecm x jc ia
do
A n t ig o T e s t a m e n t o
que se expressa é algo que jam ais foi realmente dito nem antes nem
depois.41
Gênesis 1 afirma que Deus criou (bãrã), sem nenhum esforço, todo o
universo e tudo o que nele há. O primeiro versículo de Gênesis deve ser
compreendido como uma declaração sucinta de tudo o que se descreve nos
versículos seguintes. E uma oração independente e não deve ser tomada como
oração subordinada introdutória dos versículos 2 e 3, como fazem algumas versões
modernas (NEB, NRSV e NJB).42 Gênesis 1.2 fala da condição primeva da terra antes
de sua forma final (criação) num período de sete dias (uma semana). A terra estava
num estado de caos após o ato inicial de criação relatado no versículo 1. O caos é
indicado por tèhôm, "abismo", hoshèk, "trevas", e tohü wãbohú, "sem forma e
vazia". Algumas novas traduções (NEB, NRSV e NJB) trazem "vento" em lugar de
"espírito" como tradução de rôab em Gênesis 1.2. Robert Luyster defendeu essa
nova tradução: "Uma análise do conflito persistente com o mar rebelde (tèhôm )
revela que o emblema característico de sua soberania é seu vento (ou sopro, ou voz,
mas não espírito). Qualquer outra interpretação de 1.2 seria incoerente com tudo o
que se segue".43 Ambas as leituras, "vento" ou "espírito", são possíveis. A leitura
tradicional é "Espírito", tèhôm ("abismo") refere-se com freqüência ao mar
rebelde. E paralelo a "águas" nesse versículo.
Depois da declaração sucinta em 1.1 e do retrato verbal do estado primevo
do mundo em 1.2, a criação é descrita como obra de Deus realizada em seis dias
sucessivos, seguidos pelo restante do sétimo dia. O primeiro dia testemunhou a
criação da luz (1.3-5). Antes da luz, tudo era escuro e sombrio. Aqui, a luz está
relacionada às trevas e não aos luzeiros (sol, lua e estrelas).
Nós, hoje, tentamos compreender a luz pela astronomia e física. No Antigo
Testamento pensava-se no âmbito dos fenômenos observáveis. A luz não dispersou
todas as trevas. Ela foi considerada "boa" no versículo 4 e separada das trevas.
Trevas pode encerrar uma implicação de "mal" em oposição à "boa luz". Quando
Deus chamou a luz "dia" e as trevas "noite", exerceu sua soberania sobre elas. No
mundo antigo, o poder de dar nome indicava poder de governo.
No segundo dia (1.6-8), Deus fez o "firmamento", entendido como uma
abóbada ou domo metálico que cruzava os céus. O verbo rãqa' pode significar
"esmagar" (Ez 6.11), "estender"(Is 42.5; 44.24; SI 136.6); "moldar com martelo"
41 Crealion, 36.
43 Von Rad, Genesis, 48—49; veja uma discussSo completa dos problemas na tradução de G ínesis 1.1—3 em Lane,
"The Initiation o f Creation", 63-73.
45 "Wind and Water", 10.
Q uem t
d eus com o
J avé?
173
ou "bater para laminar" (Êx 39.3; Jó 37.18; Jr 10.9). O firmamento separou as
águas dos céus das águas sobre a terra. A palavra "fez" é aqui empregada para
designar a atividade criadora de Deus, em lugar da palavra "criou". Não se diz que
o firmamento é "bom".
O terceiro dia da criação (1.9-13) testemunha outra separação entre as
águas sobre a terra e a parte seca. O conjunto de águas sobre a terra é denominado
"mares". De novo, o ato de dar nome reflete a soberania de Deus sobre as águas. A
terra seca, por sua vez, recebe ordens de produzir vegetação em forma de grama,
ervas e árvores frutíferas. O relato reconhece que as plantas têm capacidade de se
reproduzir, ainda que não se diga que sejam "viventes" no sentido pleno. De novo,
Deus viu que sua obra era "boa".
O quarto dia (1.14-19) fala da criação dos dois grandes luzeiros e das
estrelas no firmamento. Toda a seção é fortemente polêmica. A mensagem inegável
é que o sol, a lua e as estrelas são criações de Deus. Não são deuses, como
acreditavam os vizinhos de Israel. Eles não devem ser cultuados. Eles não têm
poder, exceto o que Deus lhes deu: o de reger o dia, a noite e as estações.44 Os
nomes hebraicos traduzidos por "sol" e "lua" são deliberadamente deixados de
lado, talvez porque os vizinhos de Israel os empregassem como nomes de outros
deuses. Von Rad pensava que as palavras "luminares", "luzeiros" ou
"iluminadores" tinham conotação prosaica ou degradante.45
Para com preender o significado dessas afirmações, deve-se lembrar que
são formuladas numa atmosfera cultural e religiosa saturada de todos os
tipos de falsas crenças astrológicas. Todo o antigo pensamento oriental
(não o Antigo Testamento) com respeito ao tempo era determinado pelo
curso cíclico das estrelas. O mundo humano, até o destino individual, era
determinado pela obra de poderes siderais.46
Nunca é demais destacar a importância atual da dessacralização bíblica da
natureza, inclusive dos corpos celestes. Toda a base da ciência, medicina, pesquisa
e viagem espacial moderna está no fato de que a natureza não é divina. Deus e os
homens têm domínio sobre ela. Esse capítulo em Gênesis e a aterrissagem do
homem na lua estão ligados.47
O quinto dia da criação (1.20-23) testemunhou a criação da vida animal no
mar e nos ares. Ainda que as plantas tenham sido criadas no terceiro dia, não
possuíam nepesh, "vida", como os animais. Os animais são divididos em três
44 Veja Hasel, "The Polemic Nature o f the Genesis Cosmology". 81-102.
45 Genesis, 53.
46 Ibid., 54.
41 Westermanr., Creation, 44-45.
T e o l o g ia
174
do
A n t ig o T e s t a m e n t o
grupos: (1 ) o s "en x am es" n as ág u as —p ro v a v e lm e n te os e n x a m e s ou c a rd u m e s de
p eix es, p e q u e n o s a n im a is m arítim o s, e "rastejad o res", ta lv e z rép teis; (2 ) as "aves"
q u e voam n os céu s; e (3 ) o s g ran d es "an im ais m arin h o s".
Excurso: Os grandes animais marinhos
Esses grandes monstros marinhos, baleias (KJV), crocodilos, serpentes ou animais
mitológicos que os antigos pensavam habitar o mar simbolizavam o mal? Tais criaturas são
mencionadas em outras passagens do Antigo Testamento. John Gammie disse que
estudiosos contemporâneos dividem-se entre a opinião de que o autor de Jó entendia que as
criaturas em Jó 40.15-32; 41.1-43 eram monstros míticos e a de que eram animais
naturais.41 Nicolas K. Kiessling disse: "Os mais temíveis dragões do Antigo Testamento,
tanin, leviatã, raabe, são horríveis, mas vagas encarnações do mal,
oponentes
sombriamente delineados de Deus e do homem. Eles habitam as profundezas dos mares e
são com freqüência empregados como metáforas oportunas de reis pagãos hostis aos filhos
de Israel".49
A palavra tanin ocorre 15 vezes no Antigo Testamento, referindo-se a diferentes tipos de
criaturas: um monstro marinho que Deus destruiu ou destruirá (SI 74.13; Is 27.1; 51.9);
monstros marinhos em geral (Gn 1.21; Jó 7.12; SI 148.7); uma metáfora da Babilônia (Jr
51.34) ou do Egito (Ez 29.3; 32.3) como inimigo de Israel; e serpentes (Êx 7.9, 10, 12; SI
91.13). Em Lamentações 4.3 a referência é ambígua. "Leviatã" (Jó 3.8; 41.1; SI 74.14;
104.26; Is 27.1) e "Raabe”(Jó 9.13; 26.12; SI 87.4; 89.10; ls 30.7; 51.9) são usados no
Antigo Testamento como paralelos de tanin.
Q u an d o G ê n e sis 1.21 d iz que D eu s crio u os "m o n stro s m a rin h o s", ta nn in ,
sig n ifica q u e D eu s c rio u e c o n tro la tu d o o q u e há n o u n iv erso , m esm o o que o u tro s
p o vos co n sid e ra v a m sím b o lo s d o m al. A s p esso as n ad a tin h am a te m e r no m u n d o .
D eus possu i o s p o d eres d o m al em suas m ãos. E le os fe z e lh es d e u n o m e. D ois
o u tro s asp e c to s d essa p assag em são sig n ificativ as: (1 ) A p ala v ra b ã rã \ "crio u ", é
em p re g a d a só na seg u n d a p arte d o cap ítu lo . A razão pro v áv el é que a v id a an im al
fo sse co n sid e ra d a um d eg rau a cim a d o restan te d a c riaçã o até a q u ele m o m en to . (2 )
A p a la v ra "b ên ção " é u sad a p ela p rim eira v ez n e sse c a p ítu lo (1.22).
W esterm an n o b serv o u q u e a "b ên ção " aqui inclui o p o d er d e p ro p a g a r a
esp é cie. "E ste é o sig n ificad o b ásico d a p alav ra bênção: o p o d er d e ser fértil. E
,k "Bchcmoth and Lcviathan:, 217.
" "Antecedents", 167.
Q uem t D e u s c o m o J a v é ?
175
evidente que a vida do ser vivente, seja do homem, seja do animal, inclui a
capacidade de propagação. Sem isso não seria uma vida real".50
O sexto dia da criação (1.24-31) testemunha a criação dos animais
terrestres e dos homens com uma diferença notável na descrição da origem dos
dois. Os animais terrestres vêm da terra: "Produza a terra..."(v. 24). Mas os homens
são objeto íntimo e direto da obra criadora de Deus: "Façamos o homem à nossa
imagem" (v. 26). A palavra "criar", bãrã’, ocorre três vezes no versículo 27 para
deixar claro que o ponto culminante e alvo da criação divina é atingido na criação
dos seres humanos. As pessoas e os animais foram criados no mesmo dia e ambos
são chamados distintamente nepcshhãyâ , "seres viventes". Cada um possui a
capacidade de propagação da espécie. Ainda assim, os homens destacam-se como
seres ímpares, feitos à imagem de Deus. Eles recebem domínio sobre todos os
outros seres criados.51
No sétimo dia (2.1-3), Deus terminou sua obra de criação. Ele abençoou e
santificou o sétimo dia porque nele descansou de sua obra de criação. O sétimo dia
da criação é especial, diferente dos seis dias de trabalho anteriores. As palavras
"acabar" e "terminar" em 2.1,2 indicam que o universo está completo, terminado,
sendo tudo o que Deus pretendia que fosse. Deus estabeleceu o sétimo dia à parte
dos outros dias. A palavra traduzida por "descansar" é shãbãt, base da palavra
"sábado".
Westermann disse que ali existe mais que "uma referência ao sábado mais
tarde instituído em Israel. Há uma ordem estabelecida para a humanidade: de
acordo com ela o tempo é dividido entre o cotidiano e o especial, e o cotidiano
alcança seu alvo no especial".52 Entretanto, não devemos encontrar toda a
instituição do sábado nessa passagem. Von Rad disse que fazê-lo "seria uma
compreensão completamente equivocada da passagem. Pois não há nenhuma
palavra indicando que esse descanso deva ser imposto ao homem ou prescrito a
ele".53 O universo pertence a Deus porque ele o fez e continua sob seu controle.
Von Rad disse: "Seria completa insensatez considerar esse descanso de
Deus que concluiu a criação algo parecido com um ato pelo qual Deus se afasta do
mundo; é, na realidade, um ato pelo qual ele se volta de maneira particularmente
misteriosa e bondosa para sua Criação".54 Deus não deu as costas para o mundo
depois de criá-lo. O "descanso" é mais que uma interrupção do labor para Deus.
50 Creation, 46.
51 Discutiremos os termos imagem, domínio, macho e fim e a no cap. 6, sobre a humanidade.
MCreation, 65.
H Old Testament Theology I, 148.
54 Ibid., cf. Westermann, Creation, 41.
176
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Ele expressa o interesse de Deus pelo mundo e talvez indique que a história
terminará num descanso divino eterno.55
O segundo relato da criação (2.46-25) é em geral considerado mais antigo
que o primeiro (1.2—2.4a). Conforme se apresenta hoje, suplementa e amplia o
quadro do primeiro relato da criação. O primeiro relato começa com a criação do
universo e faz da humanidade o degrau máximo da pirâmide cosmológica. O
segundo relato começa com a humanidade como o centro e objetivo da criação. A
humanidade é feita por Deus a partir do pó. A vida é o resultado do sopro de Deus
nas pessoas. Esse sopro de Deus não pertence a nenhuma outra criatura.
Deus não tinha completado a humanidade após aquele ato inicial de
criação. Ele proporcionou espaço e ambiente agradável (o jardim do Éden),
alimento (as árvores do jardim"), trabalho ("cultivar e guardar"), comunidade ou
sociedade (homem e mulher) e língua. Deus também lhes deu uma ordem: "De
toda árvore do jardim comerás livremente, mas da árvore do conhecimento do bem
e do mal não comerás; porque, no dia em que dela comeres, certamente morrerás"
(2.16-17).
Em seu estado original, a humanidade estava completamente sujeita ao
comando de Deus. Deus lhes deu perfeita liberdade em todas as coisas, exceto
numa (só uma árvore foi destacada entre muitas como proibida), mas exatamente
nesse ponto eles quiseram exercer a liberdade. Escolheram uma ação que Deus
havia proibido. O decorrer da história mostra que a ordem de Deus era melhor, pois
o ato de comer o fruto proibido trouxe dor, sofrimento e, por fim, morte. Von Rad
disse: "Quão simples e sóbria é nossa narrativa, comparada aos mitos sensuais das
nações, ao deixar o significado da vida no Paraíso consistir completamente na
questão da obediência a Deus e não no prazer e na isenção do sofrimento".56
Esses dois relatos da criação colocam-se no início do Antigo Testamento
para indicar que Deus é o Senhor de todo o mundo e não só o Deus de Israel. Os
dois relatos da criação devem também ser vistos como parte vital do prólogo da
história da salvação de Deus com Israel, a qual começa em Gênesis 12.
Declarações teológicas diretas sobre a criação sob a forma de conjuntos amplos
ocorrem apenas nesses dois relatos no início de nossa Bíblia.
O Antigo Testamento contém numerosas passagens não teológicas
espalhadas a respeito da criação. Gênesis 14.18-20 preserva o que deve ser uma
das referências mais antigas à criação no Antigo Testamento. Nessa passagem
Abraão reconheceu El Elyon, o Deus de Melquisedeque, como o mesmo que seu
Deus Javé, "que possui os céus e a terra". A idéia da criação ocorre de novo no
Pentateuco (Gn 5.2; 24.3; Dt 4.32; 32.6-8, 18), nos livros históricos (ISm 2.8; lRs
55 Von Rad, Genesis, 60.
54 Genesis, 79.
Quem t Deus co m o J a v é ?
177
8.12 [Septuaginta]; 2Rs 19.15; Ne 9.6); e nos Profetas (Is 37.14-20; Jr 5.22-24;
10.12-16; 27.5; 31.35; 32.17; 33.2; 51.15, 19; Os 2.8-9; 8.14; Am 4.13; 5.8; 9.5-8;
Zc 12.1; Ml 2.10).
A parte de Gênesis 1—2, Isaías 40—66 possui mais referências a Javé como
o Criador que qualquer outra passagem extensa no Antigo Testamento (Is 40.2231; 41.20; 42.5; 43.1, 7, 15; 44.2, 24; 45.7-12, 18; 48.13; 49.5; 51.13, 16; 54.5, 16;
65.17-18; 66.22). Esses capítulos contêm uma variedade de palavras que denotam a
criação: bãrã\ "criar", (40.26, 28; 42.5); yãsãr, "formar" (45.18); 'ãsâ, "fez",
(44.24; 45.12, 18); mãtah, "estendeu" (40.22; 42.5); rãqa \ "formar", (44.24; 45.12,
18); qãrã\ "chamar" (40.26) e hanunosf, "fazer sair ou nascer" (40.26).
A ênfase em Javé como Criador em Isaías 40—66 deve-se ao desejo do
profeta de ajudar seu povo (no exílio babilónico) a entender que o sofrimento dos
israelitas não indicava a supremacia dos deuses babilônios em relação a Javé. O
sofrimento deles no exílio era devido aos seus pecados (40.2). Javé, seu Deus, era
soberano sobre todo o mundo; assim, tinha poder para redimi-los (40.27-31).
A criação é um tema proeminente na literatura de sabedoria. Provérbios
3.19 diz: "O SENHOR com sabedoria fundou a terra, com inteligência estabeleceu os
céus". Provérbios 8.22-31 é uma passagem importante sobre a criação e o lugar da
sabedoria nela.57
O SENHOR me possuía no início de sua obra,
antes de suas obras mais antigas.
Desde a eternidade fui estabelecida,
desde o princípio, antes do começo da terra.
Antes de haver abismos, eu nasci,
e antes ainda de haver fontes carregadas de águas.
Antes que os montes fossem firmados,
antes de haver outeiros, eu nasci.
Ainda ele não tinha feito a terra, nem as amplidões,
nem sequer o princípio do pó do mundo.
Quando ele preparava os céus, aí estava eu;
quando traçava o horizonte sobre a face do abismo;
57 Veja Landes. "Creation Tradition in Proverbs 8.22-31", 279-293; Whybray, "Proverbs 8.22-31 and Its Supposed
Prototypes", 390-400; John Stek, "What Says the Scriptures?" em Portraits o f Creation, ed. van Till, 203-265.
17 8
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A n t jc o T e s t a m e n t o
quando firmava as nuvens de cima;
quando estabelecia as fontes do abismo;
quando fixava ao mar o seu limite,
para que as águas não traspassassem os seus limites;
quando compunha os fundamentos da terra;
então, eu estava com ele e era seu arquiteto,
dia após dia, eu era as suas delícias,
folgando perante ele em todo o tempo;
regozijando-me no seu mundo habitável
e achando as minhas delícias com os filhos dos homens.
(Pv 8.22-31)
Derek Kidner captou o significado geral de Provérbios 8 em seu
comentário de Provérbios. Ele disse que o crescente louvor à sabedoria chega à
plenitude nos versículos 22-31. "Não tem a intenção de preocupar o leitor com a
metafísica, mas de levá-lo a uma decisão; o verdadeiro clímax é a passagem
‘Agora, pois...’ de 32-36".58
A origem da sabedoria é descrita de três maneiras nos versículos 22-24. A
sabedoria diz: "Deus me criou" (v. 22, BLH); "desde a eternidade fui estabelecida"
(v. 23); "nasci" (v. 24). O significado dessas três expressões está sujeito a debate.
De fato, a palavra traduzida "criou" (v. 22) não é bãrã’, mas qãnâ, “obter” ou
“possuir”. Esse versículo estava envolvido no debate da hipóstase ou
personificação. A sabedoria está sendo aqui divinizada? Os arianos, que negavam a
divindade de Cristo, apelavam para a tradução da Septuaginta, “criado”, para negar
que Cristo fosse eterno.59 Mas aqui a sabedoria não é uma hipóstase de Javé. E uma
personificação de um de seus atributos.
A sabedoria era um atributo de Javé desde o princípio, antes do início da
criação (v. 25-29). Deus nada fez sem sabedoria. Ainda assim, não foi a sabedoria
que criou o mundo. “Quando ele preparava os céus [...] quando traçava o horizonte
[...] quando firmava as nuvens de cima...” a sabedoria estava ao lado de Javé em
tudo isso como “seu arquiteto” ou “criancinha” (v. 30). A palavra hebraica é 'ãmôn.
"Arquiteto" é sustentado pela principal versão antiga de Jeremias 52.15 e talvez
Cântico dos Cânticos 7.1. "Criancinha" é apoiado por Áqiiila. Ainda que não
possamos resolver todos os problemas de linguagem, o significado principal da
51 Proverbs, 76 (no Brasil, Provérbios, Introdução e Comentário, pela Vida Nova).
” Ibid., 79.
Q uem é Deus c o m o J a v é ?
179
passagem é claro. Javé como Criador considerou a sabedoria básica e
indispensável. A sabedoria é mais antiga que o universo e fundamental para ele.
Nem um grão de matéria, nem um vestígio de ordem (v. 29) veio a existir sem a
sabedoria. A sabedoria é a fonte de alegria. A alegria de criar e a alegria da
existência fluem do exercício da sabedoria divina —"ou seja, da habilidade perfeita
de Deus".60
Numa passagem magnífica no livro de Jó, Javé apresenta a Jó uma série de
perguntas retóricas sobre sua parte na criação do mundo inanimado e animado.
Javé pergunta em 38.4:
Onde estavas tu, quando eu
lançava os fundamentos da terra?
Dize-mo, se tens entendimento.
A implicação é que Jó não estava presente. Ele não tinha nem a sabedoria
nem o poder de criar ou controlar o universo (39.10-12). Jó era uma parte da
criação de Deus, assim como o Beemote (40.15). Javé é sábio e também soberano,
porque não só fez o mundo, mas o sustenta (Jó 38.1—39.30; SI 104.27-30).
A fé veterotestamentária na criação é abrangente, firme e significativa. Por
anos foi mantida à margem ou periferia da teologia do Antigo Testamento porque a
história da salvação (von Rad) ou a teologia da aliança (Eichrodt) ocuparam o
centro do palco. Porque o Antigo Testamento faz relativamente poucas referências
à criação e porque ela é com freqüência associada com a sabedoria e conceitos
universais, a criação foi muitas vezes negligenciada. Entretanto, o cânon do Antigo
Testamento faz da criação tópico básico e fundamental da teologia do Antigo
Testamento. E verdade que o Antigo Testamento não gira em tomo da criação. Ele
gira em tomo da salvação e do livramento, mas não haveria salvação sem a criação.
Deus é o criador de tudo e de todos. O modo pelo qual ele fez este universo é
descrito em vários tipos de linguagem de criação. A criação tem sido afetada pelo
pecado humano (Os 4.1-3). O senso de "retidão" e "justiça" podem estar
relacionados à criação.61
A teologia da criação expande e aprofunda o conceito que se tem de Deus,
da humanidade e do mundo. A fé na criação não é proeminente no Novo
Testamento. O Novo Testamento diz menos acerca da criação que o Antigo. Talvez
o Novo Testamento não tivesse necessidade de dizer tanto porque o Antigo disse
tanto e tão bem.
“ M , 78.
61 Veja a seção "llm Deus que julga* neste capitulo, e a discussão do pecado no cap. 7.
180
TEOLOGIA DO ANTIGO TESTAMENTO
21. Um Deus santo
Santidade (qõdesh)è uma palavra intimamente divina. "Ela tem a ver [...]
com a própria natureza da divindade, mais do que qualquer outra, na verdade como
nenhuma outra"62. "Santidade é a qualidade mais típica da fé em Deus no Antigo
Testamento"63. De todas as qualidades atribuídas à natureza divina, há uma que,
tanto em virtude da freqüência como da ênfase com que é usada, ocupa uma
posição de importância singular —é a santidade"64. Johannes Hanel fez da santidade
o centro da sua teologia do Antigo Testamento,65 e Edmond Jacob propôs qdsh
como o centro gramatical do Antigo Testamento, assim como a idéia
correspondente é o centro teológico.66
Deus não é criatura; conseqüentemente, ele é santo. O "atributo" da
santidade refere-se a esse mistério do ser divino que o distingue como Deus.
Criaturas e objetos têm santidade apenas em sentido derivado, quando são
designados por Deus para servir numa função especial. G. Emest Wright disse:
De todos os “atributos” divinos, a santidade chega mais perto de descrever
o ser de Deus e n&o sua atividade. Ela, no entanto, não é um a “qualidade”
estática e definível com o a verdade, beleza e bondade dos gregos, porque
é esse mistério indefinível em Deus que o diferencia de tudo o que criou;
e sua presença no mundo é sinal de que ele dirige ativamente os seus
negócios.67
A etimologia da palavra qõdcsh não é clara.6* Eichrodt, Jacob e Muilenburg
achavam que a raiz qdsh deriva de uma raiz primitiva hipotética, qd(d), que
significaria "cortar", "marcar", "separar". Bunzen e Vriezen derivaram-na da raiz
árabe e etíope q d ’ou qdw, "ser brilhante" ou "ser puro". O uso da raiz no Antigo
Testamento parece favorecer o sentido "ser marcado" ou "ser separado do uso
comum". A separação do sagrado do profano é o sentido básico da palavra grega
“ Snaith, The Distinctive Ideas o f the Old Testament, 21.
“ Vriezen, Outline o f O ld Testament Theology, 297.
“ Eichrodt, Old Testament Theology 1 ,270.
“ Die Religion der Heiligkeit, iii.
“ Theology o f the O ld Testament, 87.
47 God Who Acts, 75 (no Brasil, O Deus que Age, pela ASTE).
“ Kornfeld, TWAT6, 1181-1185.
Q uem t D e u s c o m o J a v é ?
181
temenos, da palavra latina sanctus e da palavra hebraica herem. O antônimo da
palavra qõdeshé hôl, que significa "comum" ou "profano".
Com a raiz qdsh estamos lidando com as reações básicas e elementares do
ser humano ao mistério de que ele se sentiu cercado nos primeiros dias. Von Rad
chamou a experiência do santo de "dado religioso primevo", que não pode ser
deduzido de outros valores humanos. Santidade não é a elevação de qualquer outra
coisa ao grau mais elevado; nem é ela ligada a alguma coisa por adição. O santo
pode ser designado de modo muito mais apropriado "o grande estrangeiro" no
mundo humano. E a experiência de um dado em relação ao qual a pessoa
inicialmente sente medo em vez de confiança. É, de fato, "o totalmente outro".69
Talvez a melhor maneira de ver que santidade e divindade são equiparados
no Antigo Testamento é comparar Amós 4.2 e 6.8: "Jurou o Senhor Deus, pela sua
santidade", e: "Jurou o Senhor Deus por si mesmo" (nepesh). A mesma idéia é
expressa em Salmos 89.35: "Por minha santidade eu jurei uma vez: jamais vou
mentir a Davi!" (BJ). Deus e o santo são sinônimos nas linhas paralelas de
Habacuque 3.3: "Deus vem de Temã, e do monte de Parã vem o Santo".
Deus é chamado "santo" três vezes em dois lugares do Antigo Testamento.
Os serafins cantaram: "Santo, santo, santo é o Senhor dos Exércitos; toda a terra
está cheia da sua glória" (Is 6.3). Em um dos salmos de entronização, o salmista
proclamou três vezes que Deus é santo (SI 99.3, 5, 9). Oséias destacou a idéia de
que a santidade de Deus é o que o distingue das pessoas: "Eu sou Deus e não
homem, o Santo no meio de ti" (Os 11.9). A expressão "o santo de Israel" ocorre
trinta vezes no livro de Isaías em referência ao Deus de Israel.
Dizer que Deus é santo é dizer que Deus é Deus. Santidade sugere o poder,
o mistério, a transcendência —mas não a inatingibilidade— de Deus. O Antigo
Testamento com freqüência recorre a antropomorfismos para falar de Deus. Fala
dos seus olhos, rosto, pés, braço e mão. Essa linguagem poderia levar à
humanização de Deus, não fosse sua santidade. A santidade de Deus o separa de
todas as outras coisas no universo, incluindo o próprio universo. A palavra "santo",
usada para descrever Deus, toma impossível qualquer pensamento de um deus
criado pelo ser humano. Deus não é uma pessoa divinizada.
M Von Rad, Old Testament Theology /, 205; veja Otto, The Idea o f the Holy (no Brasil, O Sagrado).
182
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A n t ig o T e s t a m e n t o
B. A história da santidade
A santidade tem uma história no Antigo Testamento e no antigo Oriente
Próximo. O termo provavelmente é mais antigo que Israel. Ele é encontrado em
várias línguas semitas, como a inscrição fenícia Yehimilk (por volta de 1200 a.C.)
e os textos ugaríticos Aqhat 1.27,11.16 (também por volta de 1200 a.C.). Cades era
o nome de certas cidades e lugares no Oriente próximo antes de Israel entrar em
Canaã. Cades no rio Orontes foi a capital de uma província hitita e cenário de uma
batalha terrível entre Ramsés II e o rei hitita. Uma deusa chamada Cades, adorada
na Síria por volta de 1500 a.C., provavelmente tinha ligações mesopotâmicas
anteriores. Esses nomes de lugares e de uma deusa levaram à conclusão de que
"santidade" era uma idéia muito antiga ligada a deuses.
O conceito mais antigo de santidade abrangia algumas conotações
primitivas (materialistas) e negativas. Em princípio, santidade era entendida em
termos de um poder misterioso que era perigoso, inacessível e temível. Objetos que
pertenciam a Deus eram santos e ameaçavam de morte qualquer pessoa que os
tocasse. Nadabe e Abiú morreram porque ofereceram fogo não santo ao Senhor (Lv
10.1-3). O Senhor matou várias pessoas de Bete-Semes porque olharam dentro da
arca. Seus companheiros perguntaram: "Quem poderia estar perante o Senhor, este
Deus santo?" (1 Sm 6.19, 20). Uzá morreu quando tocou a arca (2Sm 6.6, 7).
Santidade não tem sempre conotação moral ou ética no Antigo Testamento.
A palavra qãdêsh, "prostituta", vem da raiz qdsh, "santo". Tanto a forma
masculina, qãdêsh, como a feminina, qedeshâ, são usadas no Antigo Testamento
para referir-se a prostitutos e prostitutas (Dt 23.18; lRs 14.24; 15.12; 22.46; 2Rs
23.7; Jó 36.14; cf. Formas femininas em Gn 38.21-22; Dt 23.18; Os 4.14). Todas
essas referências são à prostituição cultual, com exceção de Gênesis 38.
Esse uso sugere alguma influência de religiões pagãs sobre o vocabulário
de Israel e talvez sobre o estilo de vida de alguns israelitas. A prostituição cultual
ou sagrada era comum no antigo Oriente Próximo, como parte vital do culto da
fertilidade. A adoração de Baal rivalizou com a adoração de Javé em Canaã depois
que Israel entrou na terra. O casamento sagrado, hieros gamos, era parte das
celebrações de ano novo em muitas religiões pagãs antigas. Engnell viu algumas
evidências do casamento sagrado nas festas de Israel porque Cântico dos Cânticos
é lido na sinagoga no oitavo dia da festa da Páscoa, mas Ringgren lembrou que
todas as evidências da sua leitura como parte da celebração da Páscoa são tardias
(500 d.C.) e que vestígios de um hieros gamos no Antigo Testamento são
"discutíveis e precários".70
n Israelite Religion, 188.
Q uem t D e u s c o m o J a v é ?
183
Marvin Pope, em seu comentário de Cântico dos Cânticos, disse:
Enquanto avançava palavra por palavra e versículo por versículo pelo
livro de Cântico dos Cânticos e revia as interpretações que lhe tem sido
impostas, a impressão tomou-se convicção de que a interpretação cultual,
que sofreu resistências veementes desde o começo, é a que melhor explica
a linguagem erótica.71
No fim de uma introdução de 228 páginas ao seu comentário, Pope
concluiu que certos aspectos de Cântico dos Cânticos podem ser entendidos à luz
de "indícios consideráveis e cada vez mais numerosos de que as festas de funerais
no antigo Oriente Próximo eram festas de amor, celebradas com vinho, mulheres e
música".72
Apesar de a perspectiva cultual de Cantares estar longe de ser provada,
amplas evidências nos profetas mostram que Israel praticou a prostituição
"sagrada" em nome de Javé pelo menos em algumas ocasiões (Ez 16.25-34; 23.1221; Os 2.4-5, 13; 4.12-14; Am 2.7).
A santidade não parece estar diretamente ligada a moralidade ou ética no
Antigo Testamento. A reação de Isaías à sua visão de Javé entronizado (6.5) faz
referência principalmente ao contraste entre a majestade de Deus e a insuficiência
humana.
Talvez a ordem no código de santidade, "Santos sereis, porque eu, o
Senhor, vosso Deus, sou santo" (Lv 19.2), aproxime-se de uma associação entre
santidade e moralidade no Antigo Testamento. Mesmo ali, no entanto, os
mandamentos morais e cerimoniais estão misturados sem nada que os distinga,
dando a entender que o significado básico de santidade em todo o Antigo
Testamento é "separação".
C. O lado espiritual da santidade
Santidade no Antigo Testamento significa a essência da divindade. A
santidade de Deus diz respeito a tudo sobre Deus que o separa da sua criação: seu
poder misterioso e a atração dos adoradores. Num segundo sentido, santidade diz
respeito ao chamado de Deus e à exigência de que as pessoas sejam santas como
ele é santo, no sentido de que sejam puras, limpas, justas e compassivas.
O Antigo Testamento contém algumas declarações sublimes sobre o lado
espiritual da santidade (SI 51.11; Is 6.1-5; 57.15-16; Os 11.8-9) e faz referencia ao
71 Song o f Songs, 17.
72 Ibid., 228
184
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espírito três vezes santo de Deus (SI 51.11; Is 63.10-11). Mesmo assim, as idéias
materialistas ou cultuais de santidade não desaparecem no Antigo Testamento. No
eschaton, tudo se tomará santo. Números 14.21 diz que virá o tempo em que "toda
a terra se encherá da glória do Senhor". Isso quer dizer que, no tempo presente, a
santidade de Javé, chamada "glória", está restrita à esfera do culto. Mas isso é
temporário. Zacarias 14.20 diz: "Naquele dia, será gravado nas campainhas dos
cavalos: santo ao Senhor; e as panelas da Casa do Senhor serão como as bacias
diante do altar". Isso significa que todo o âmbito secular será abrangido pela
santidade de Javé. Quando isso acontecer, a santidade de Javé terá atingido seu
alvo mais elevado.
Santidade é um conceito difícil de entender. Muitas pessoas de hoje estão
voltadas para o aqui e agora e para os negócios mundanos da vida. O que é profano
e vulgar marca o espírito da maioria. Walter Brueggemann captou a necessidade do
nosso mundo de hoje:
A santidade de Deus é urgente em face da profanação, que esvazia a vida
de paixão e dignidade maior. A santidade de Deus é urgente em face da
brutalidade que permeia tudo, trivializa o propósito de Deus e maltrata o
mundo de Deus. A santidade de Deus é urgente em face da crescente
autoridade da técnica, que diminui o mistério que mantém a vida em
aberto.73
Talvez uma visão de perto do chamado de Isaías mostre a essência da
santidade de Deus na sua relação com seu povo. Isaías viu Deus em um trono, alto
e elevado. Ele viu a glória de Deus representada na nuvem e sentiu o tremor do
movimento do chão. Ouviu os serafins dizendo: "Santo, santo, santo é o Senhor dos
Exércitos". Ele foi dominado por seu senso de pecado e impureza e pelo mesmo
sentimento do povo. Experimentou a purificação de Deus por meio de uma brasa
do altar. Depois ouviu o chamado de Deus para compromisso e serviço.
22. Um Deus de amor
i
Será que o Deus do Antigo Testamento é um Deus de amor, ou Márcion
estava certo ao dizer que o Deus do Novo Testamento era de amor, e o Deus do
Antigo Testamento, de ira? (Temos informações sobre Márcion somente por
75 Prefácio a John Gammie, Santidade em Israel, xii.
Q uem t D e u s c o m o J a v ê ?
185
intermédio dos seus adversários, que o citavam para atacá-lo.) Tertuliano citou
Márcion dizendo que o Deus do Antigo Testamento era "judicial, duro, poderoso
na guerra [...] severo [...] e cruel", enquanto o Deus revelado em Jesus Cristo era
"carinhoso, calmo, simplesmente bom, e amoroso".74 Para Márcion, "o Deus do
Antigo Testamento é um ser diferente e inferior, o criador-demiurgo, o Deus
vingativo da lei, totalmente oposto ao Deus gracioso revelado no evangelho".75
Até hoje ouvimos que o Deus do Antigo Testamento é um Deus de ira. Mas
a ira é apenas um lado do retrato que o Antigo Testamento faz de Deus. O amor é o
outro.
A. Palavras hebraicas correspondentes a amor
Diversas palavras hebraicas expressam os vários aspectos do amor:
1)
’ãhab ("amor"). A palavra mais vezes traduzida por "amor" é ’ãhab.
etimologia da raiz não está clara. Jacob a derivou de uma raiz com dois sentidos,
hab, que significa "soprar", "desejar", "chorar por". "O amor pode ser definido
como um desejo ao mesmo tempo violento e voluntário."76 A palavra é usada mais
de 200 vezes no Antigo Testamento. Refere-se 32 vezes ao amor de Deus.
’ãhab expressa com freqüência o amor entre marido e mulher (Gn 24.67;
29.18, 20, 32; Jz 16.4, 15; ISm 1.5; 18.20); dos pais pelos filhos (Gn 22.2; 25.28);
da nora pela sogra (Rt 4.15); e entre amigos (1 Sm 18.1-3).
Há pessoas que são objeto do amor de Deus: Salomão (2Sm 12.24; Ne
13.26) e Ciro (Is 48.14). Deuteronômio 10.18 diz que o Senhor ama o estrangeiro.
Ele ama Jerusalém (SI 78.68; 87.2). Deus ama a retidão e os que agem
corretamente (SI 11.7; 37.28; 45.7; 99.4; Pv 3.12; 15.9; Is 61.8; Ml 2.11). Deus
amou os pais e, depois deles, escolheu seus descendentes (Dt 4.37; 10.15).
Diversas vezes o Antigo Testamento fala do amor de Deus por Israel (Dt
7.8-9, 13; 23.5; lRs 10.9; 2Cr 2.11; 9.8). Ele o amou como marido (Ez 16.8; Os
3.1) e como pai (Os 11.1). Amou Jacó e odiou Esaú (Ml 1.2). Por Israel ser
precioso aos seus olhos, ele o amou, redimiu e renovou (Is 43.4; 63.9; Sf 3.17). A
linguagem do Antigo Testamento sobre o amor de Deus por Israel é às vezes
paradoxal, para dizer o mínimo. Em Jeremias 31.3 se diz: "Com amor eterno eu te
amei [Israel]"; mas em Oséias 9.15: "Já não os amarei".
’ãhab ("amor") é encontrado em todos os tipos de literatura e esteve em uso
durante todo o período do Antigo Testamento. A raiz também ocorre em ugarítico,
74 Roberts e Donaldson, Anli-Nicene Christian Library, vol. 7,1.6; ii. 11.
75 Bright, The Authority o f the O ld Testament, 62.
76 Jacob, Theology o f the Old Testament, 108; cf. Gerhard Wallis, 'ahabh, TDOT I, 103.
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aramaico, púnico e samaritano, mas nunca como parte de um nome próprio em
hebraico, como é o caso nesses idiomas. A Septuaginta a traduz por agapao.
Norman Snaith chamou ’ãhabâ "amor por escolha". É amor incondicional. O amor
por escolha flui do excedente espontâneo do amor de Deus.77
2)
hesed ("dedicação", "lealdade", "bondade"). Uma segunda palav
hebraica relacionada com o amor de Deus é hesed. Também aqui, a etimologia de
hesedé incerta.78 Gesenius sugeriu "ímpeto", "zelo ardente" como sentido primário
da raiz. Edmond Jacob disse: "A etimologia, mesmo que não nos dê uma resposta
totalmente satisfatória para o problema, pelo menos dirige nossa atenção para o
significado original, que tem que ver com força".79 A raiz hsd ocorre apenas três
vezes no Antigo Testamento como verbo: uma vez no piei no sentido de "causar
vergonha" (Pv 25.10) e duas vezes no hifil, em passagens paralelas que significam
"mostrar-se leal" (2Sm 22.26; SI 18.25). O lado negativo de hesedé apresentado no
Antigo Testamento em Provérbios 14.34 e Isaías 40.66:
A justiça faz prosperar uma nação,
o pecado é a vergonha (hesed)
dos povos
(Pv 14.34, BJ).
Toda a came é erva,
e toda a sua graça (hesed),
como a flor do campo
(Is 40.66, BJ).
Em árabe, aramaico e siríaco, o sentido negativo de "vergonha" parece
predominar.80
É difícil traduzir hesed para o português. A A R A via de regra traduz a
palavra por "misericórdia". A Septuaginta também: eleos ("misericórdia"). Duas
vezes (em Ester) ela usa charis ("graça"). A versão de Símaco parece ter preferido
71 The Distinctive Ideas o f the Old Testament, 95, 135, 140.
71 H.-J. Zobel, hesed, TDOTS, 1986,45.
” Theology o f the Old Testament, 103.
*° Snaith, The Distinctive Ideas o f the Old Testament, 97; Jacob, Theology o f the Old Testament, 103.
Quem t dkuscomo JavéT
187
charis a eleos}1Martinho Lutero usou a palavra Gnade ("graça") no lugar de pesed,
assim como fez com a palavra charis no Novo Testamento. Snaith preferiu a
expressão "amor da aliança". As várias versões em inglês usam termos como
"bondade", "lealdade", "amor fiel", "dedicação". A tradução da palavra hesed foi
objeto da última votação da comissão de tradução da versão em inglês conhecida
como RSV.*2
Edmond Jacob usou "fidelidade de Deus" para pesed ’elôhîm, mas G.
Ernest Wright criticou-o por isso:
NSo creio que seja apropriado entender &esedcomo “fidelidade de Deus”
e definir o termo teologicamente como “o elo entre Deus e o ser humano”.
[...] Na verdade, a tradução do termo por “graça” pela LXX está mais
próxima do seu sentido verdadeiro. Não se trata de um elo, mas da
descrição de uma ação, imerecida e motivada por pura graça, de alguém
superior em favor de alguém inferior, o que cria um elo e provoca uma
resposta de graça no beneficiário. Portanto, fresed não é sinônimo de
aliança (que é um termo legal), mas um tipo de açfio que cria um elo que
transcende as exigências legais e produz no beneficiário uma reação
apropriada, que também é fresedV
O que se vê é que pesed contem dois elementos básicos. Um é a idéia de
força, lealdade, fidelidade. O outro é a idéia de bondade, piedade, misericórdia e
graça. Talvez "dedicação" capte os dois elementos da palavra.
A palavra hesed com freqüência é usada em pares de palavras e na poesia
paralela. Em 43 casos hesed é ligado a outro substantivo. Em 22 dessas vezes é
com ’emet ou com alguma outra forma da raiz ’aman ("verdade"), na expressão
"graça e verdade" (Gn 24.27,49; 47.29; Êx 34.6; Js 2.14; 2Sm 2.6; 15.20; SI 25.10;
40.11; 57.3; 61.7; 85.10; 86.15; 89.14,24; 98.3; 115.1; 138.2; Pv 3.3; 14.22; 16.6;
20.28). Sete vezes fresedé usado junto com "aliança" (EH 7.9, 12; lR s 8.23; 2Cr
6.14; Ne 1.5; 9.32; Dn 9.4). Emprega-se fresed com as palavras ‘õz ("força") e
miégab ("fortaleza") em algumas ocasiões (SI 59.9,16; 144.2).
" Dodd, Th* Biblt and the Greeks, 61.
° Kuyper, 'Grace and tnith", 8. (A Biblia de Jerusalém e a Bfblia na Linguagem de Hoje preferem "amor* [N. do
Trad.].)
“ "Review of Jacob’s Old Testament Theology, 81.
188
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O Antigo Testamento fala com freqüência da "abundância" ou
"grandiosidade" do h esed de Deus (Êx 34.6; Nm 14.19; Ne 9.17; 13.22; SI 5.7;
36.5; 69.13; 86.5, 15; 103.8, 11; 106.7, 45; 117.2; 119.64; 145.8; Lm 3.32; J1 2.13;
Jn 4.2). Uma vez o salmista diz: "A terra, Senhor, está cheia da tua hesed (bondade,
SI 119.64). Três vezes o salmista diz que o hesed de Deus se estende até o céu, e
sua fidelidade ( ’em et)alcança as nuvens (SI 36.5; 57.10; 108.4). A idéia é que seus
hesed e ’em et não podem ser medidos. Um uso incomum de hesed aparece num
estribilho de salmo: "Rendei graças ao Senhor, porque ele é bom, porque a sua
misericórdia (hesed) dura para sempre".
Esse estribilho ocorre 26 vezes: em lCrônicas 16.34, 41; 2Crônicas 5.13;
7.3, 6; 20.21; Esdras 3.11; Salmos 106.1; 107.1; 118.1, 2, 3, 4, 29; 136; Jeremias
33.11. Um estribilho semelhante se encontra em Salmos 107.8, 15, 21, 31. Esses
estribilhos conclamam ao louvor de Deus porque ele é "bom" (tôb), e seu hesed é
eterno. Ele não é volúvel, como os outros deuses do Oriente Próximo podiam ser.
Uma das passagens mais famosas que contém a palavra hesed é
Lamentações 3.22-24:
As misericórdias (hesed) do Senhor
são a causa de não sermos consumidos,
porque as suas misericórdias não têm fim;
renovam-se cada manhã.
Grande é a tua fidelidade.
A minha porção é o Senhor, diz a minha alma;
portanto, esparerei nele.
A confissão de que o hesed de Deus se renova a cada manhã é feita
novamente em Salmos 59.16; 90.14; 92.2; 143.8. Em Lamentações 3.22, hesedestá
mesmo no plural, dando a entender que as "misericórdias" de Deus são muitas
ações de graça. A palavra é usada no plural diversas vezes (Gn 32.10; 2Cr 6.21;
32.32; 35.26; Ne 13.14; SI 17.7; 25.6; 89.2, 49; 1,06.7, 45; 107.43; Is 55.3; 63.7;
Lm 3.22). As últimas duas referências em 2Crônicas são traduzidas por "ações de
misericórdia" e "beneficências", referindo-se aos reis Ezequias e Josias.
Mesmo que o sentido primário de hesed seja "força", "firmeza" e
"fidelidade", ele contém também o elemento de amor, compaixão e graça, hesed é
paralelo a rãhãm ("compaixão", SI 25.6; 51.1; 103.4; Is 54.8; Jr 16.5; Lm 3.22; Dn
Q U M t DCUS COMO jAVtT
189
1.9; Os 2.19; Zc 7.9) e fc a ("graça", Gn 19.19; Et 2.17; SI 77.8-9; 109.12). Uma
vez Israel é exortado a amar fresed( ’ahábatpesed, Mq 6.8).
3)
Além de ’Shab ("amor") e pesed ("amor fiel"), duas outras raíz
hebraicas, pnn e rpm, com freqüência tem a conotação de "amor", ftãnan dá a idéia
de "graça" ou "amor ou favor imerecido". A diferença entre hãnan e hesedè que
esta se referente primordialmente ao "amor por escolha". Ou seja, um vínculo ou
relacionamento entre duas partes em aliança faz com que se esperem "atos de
amor" entre eles. pãnan, por sua vez, indica o amor imerecido de alguém superior
por alguém inferior, põn ("graça” ou "favor”) dá a idéia de favor imerecido,
graciosidade suprema, condescendência por parte de alguém superior, sem que ele
tenha a menor obrigação de agir assim. Nenhuma acusação de dureza ou crueldade
pode ser levantada contra quem não a oferece.
As várias formas verbais da raiz fran são usadas 76 vezes no Antigo
Testamento tendo Deus ou pessoas como sujeito. A ARA traduz o termo por "ter
misericórdia", "ter compaixão", "compadecer-se" (Êx 33.19; 2Rs 13.23; SI 4.1; 6.2;
31.9; 41.4; Pv 14.31; 19.17; 28.8; Is 30.19) ou "agraciar" (Gn 33.5). Às vezes o
termo é traduzido por "ser generoso" (Gn 33.11). A tradução "suplicar", "orar",
"pedir misericórdia" ou "mercê", "implorar", "derramar a queixa", "rogar" é
encontrada em Gênesis 42.21; Deuteronômio 3.23; IReis 8.33,47; 9.3; 2Reis 1.13;
2Crônicas 6.24, 26; Ester 8.3; Jó 8.5; Salmos 30.8; 142.2; Oséias 12.4. O
imperativo de hãnan é usado 19 vezes em Salmos para insistir com Javé para que
"seja gracioso" com o salmista. Assim, frnn faz parte do vocabulário de oração.
A forma substantiva teliinah desta raiz hnn é com freqüência paralela a
tépillâ ("oração", lRs 8.28, 38, 45, 49, 54; 2Cr 6.29; Dn 9.3, 17, 18, 20). Jeremias
usou uma forma substantiva de hnn em paralelo com têpillâ em acordos com Deus
ou com superiores humanos, como o rei (Jr 36.7; 37.20; 38.26; 42.2, 9; cf. Dn
9.17).
Outro substantivo, frõn, usado 70 vezes no Antigo Testamento, via de regra
é traduzido por "favor" e ocorre como objeto dos verbos mãsã’ ("encontrar") ou
nitan ("dar", Gn 6.8; 19.19; 30.27; Êx 3.21; 11.3; 12.36; 33.12; Nm 11.11; Dt 24.1;
Jz 6.17; ISm 1.18; 2Sm 15.25; SI 45.2; 84.11; Zc 4.7; 12.10). O substantivo hõn
nenhuma vez é usado no plural ou com o artigo. O adjetivo fiãnún ("gracioso") é
usado 13 vezes no Antigo Testamento (Êx 22.27; 34.6; 2Cr 30.9; Ne 9.17, 31; SI
86.15; 103.8; 111.4; 112.4; 116.5; 145.8; J1 2.13; Jn 4.2). A maioria dessas
190
T e o l o g ia
do
A n t ig o T e s t a m e n t o
ocorrências faz parte do credo não histórico usado freqüentemente no culto do
Israel antigo:
Senhor, Senhor Deus compassivo (rahum),
clemente (hãnún) e longânimo
e grande em misericórdia (hesed)
e fidelidade ( ‘em eth)
(Êx 34.6).
A palavra rahõm ("compassivo" ou "misericordioso") é usada em 12 das
referências paralelas a hãnún mencionadas acima.
Portanto, a raiz hnn significa "graciosidade", "favor", "generosidade",
"amor imerecido". Apesar de a Septuaginta traduzir hên por charís ("graça"), a
palavra não significa o que Paulo tinha em mente quando usava charís. A
Septuaginta segue com mais nitidez o sentido grego clássico de charís. Na verdade,
no grego clássico, charís tem um espectro amplo de significados, como "aquilo que
causa alegria, prazer, gozo, doçura, encanto, amabilidade, linguagem graciosa".84
Como a Septuaginta usara charís para traduzir hên quando se referia à "boa
vontade" ou "generosidade" de Deus, Paulo podia usar charís no Novo Testamento
para falar da "boa vontade e generosidade" de Deus.85
4)
Outra palavra hebraica às vezes usada para expressar o "amor" de De
é um termo rico em figuras da família, rahamim. Westermann disse que, quando
fala de Deus, o Antigo Testamento contém uma peculiaridade que toma as ações de
Deus, em certas ocasiões, muito humanas. Contrastando com a idéia da santidade
de Deus, que enfatiza seu aspecto não humano, atribui-se com raham
("compaixão") uma emoção humana a Deus. A palavra na verdade significa "o
ventre de uma mãe".86
A forma plural do substantivo expande o sentido de "ventre" na idéia
abstrata de "compaixão, misericórdia, piedade, coração, amor" (veja Gn 43.14, 30;
Dt 13.17; 2Sm 24.14; lRs 3.26; 8.50; lCr 21.13; 2Cr 30.9; Ne 1.11; 9.27, 28, 31;
SI 25.6; 40.11; 51.1; 69.16; 77.9; 79.8; 103.4; 106.45; 119.77, 156; 145.9; Pv
12.10; Is 47.6; 54.7, 10; Jr 16.5; 42.12; Lm 3.22; Dn 1.9; 9.9, 18; Os 2.19; Am
w Thayer, Greek-English Lexicon, 665.
n Reed, "Some Implications o f Hen", 41.
Elements o f Old Testament theology, 138.
Q u em t De u s
com o
J a v í?
191
1.11; Zc 7.9). No Antigo Testamento, o adjetivo rahum ("compassivo,
misericordioso") é usado freqüentemente junto com o adjetivo hanum ("gracioso"),
sempre se referindo a Deus, nunca a pessoas (Êx 34.6; Dt 4.31; 2Cr 30.9; Ne 9.17,
31; SI 78.38; 86.15; 103.8; 111.4; 112.4; 145.8; Lm 4.10; J1 2.13; Jn 4.2). As
formas verbais da raiz rhm derivam do substantivo "ventre".87 O verbo ocorre uma
vez no qal significando "amor" por Deus (SI 18.1; ’ãhab traduz amor por Deus no
SI 116.1); 43 vezes no piei significando "piedade" (SI 102.13; 103.13; Is 49.10; Os
2.25); "compaixão" (Dt 13.8; 30.3; Lm 3.32; Is 49.15; 54.8; Zc 10.6) e
"misericórdia" (Êx 33.19; Dt 13.8; Is 60.10; Jr 42.12).
Phyllis Trible dedicou um capítulo inteiro ao estudo da palavra rãham. Ela
começou analisando a história das duas prostitutas que alegavam ser mãe do
mesmo bebê em IReis 3.16-28. O rei Salomão conseguiu identificar a mãe
verdadeira ao dizer que dividiria o bebê em duas partes com sua espada, dando a
cada mãe metade da criança. Aí a mãe verdadeira propôs desistir de sua
reivindicação, para que a criança pudesse viver.
A razão da atitude da mãe é dada no versículo 26: "Porque o amor materno
(rahamim) se aguçou (suas entranhas se comoveram, BJ) por seu filho". Trible disse
que aquela mulher estava disposta até a renunciar à justiça por amor à vida. raham
("compaixão") é um amor que age em verdade e sacrifício pessoal. Somente após
esse ponto a palavra mãe aparece na história. "Compaixão" é o amor de uma mãe
pelo filho do seu ventre. Ele não conhece exigências do ego, de posse, nem mesmo
de justiça. Trible disse: "O ventre protege e nutre, mas não possui nem controla.
Ele entrega seu tesouro, para que haja integridade e bem-estar. Verdadeiramente,
esse é o caminho da compaixão".88
A palavra rahamim ("compaixão") descreve o anseio de José por seu irmão,
expressando uma relação fraternal (Gn 43.30). Trible viu o amor de Deus por Israel
manifestado em Isaías 46.3-4 em termos da compaixão da mãe pela criança do seu
ventre. Ela diz que a imagem dessa passagem "chega quase ao ponto de dizer que
Deus possui um ventre".89
Outra passagem significativa que usa a terminologia da "compaixão" para
falar do amor de Deus por Israel em termos de amor materno é Jeremias 31.15-22.
O trecho começa com a observação de que a voz de Raquel ainda pode ser ouvida
lamentando a perda dos seus filhos (v. 15). Deus consola Raquel, prometendo-lhe
n Trible, God and the Rhetoric o f Sexuality, 33.
“ Ibid.
M Ibid., 38.
192
T e o l o g ia
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A n t ig o T e s t a m c n t o
que seus filhos retomarão à sua terra (v. 16, 17). Efraim (os filhos de Raquel) se
arrepende (v. 18,19). Então Javé diz (v. 20):
Não é Efraim meu precioso filho,
filho das minhas delícias?
Pois tantas vezes quantas falo contra ele,
tantas vezes ternamente me lembro dele;
comove-se por ele o meu coração (me‘ay, “ventreV,
deveras me compadecerei (rapem ’arabamenu) dele,
diz o Senhor.
Trible viu nessa passagem um paralelo entre o amor matemo de Raquel por seus
filhos e o amor de Deus por Efraim. Assim como Raquel chora a perda do fruto do
seu ventre, Javé, do ventre divino, chora o mesmo filho. Há, porém, uma diferença.
A mãe humana recusa consolar-se; a mãe divina transforma tristeza em graça.
Conseqüentemente, o poema mudou do lamento desolado de Raquel para a
compaixão redentora de Deus.90
A última linha do poema (31.22) é seu clímax. Infelizmente, seu sentido é
obscuro. Ela diz:
Até quando andarás errante,
ó filha rebelde?
Porque o S e n h o r criou uma coisa nova na terra:
uma mulher cercará um varão (ARC).
O poema começa com Raquel chorando por seus filhos que tinham ido para
o exílio (v. 15,16). Javé diz que seus filhos retomarão (v. 17). Efraim se arrepende
(v. 18, 19). Javé se pegunta se Efraim ainda é seu filho predileto e responde
afirmativamente, prometendo ter misericórdia (raham) dele (v. 20). No versículo
21, a metáfora de Efraim muda do masculino (filho) para o feminino (filha
virgem). Os cinco imperativos do versículo 21 são todos femininos. Os imperativos
imploram que Israel retome às suas cidades (e ao seu Deus). Mas ela hesita. O
versículo 21 pergunta: "Até quando andarás errante, ó filha rebelde?" Então, para
Q uem t d e u s c o m o J a v î t
193
encorajá-la para fazer mais um esforço, o profeta diz: "Porque o Senhor criou
(bãrã’) uma coisa nova na terra: uma mulher cercará um varão".
O que é essa coisa nova que Deus fez? Essa é uma das frases mais difíceis
de entender no Antigo Testamento e deu ensejo a uma multidão de interpretações
diferentes. É algo especial, importante e incomum, porque a palavra bãrã’("criar")
é usada com parcimônia no Antigo Testamento, sempre com Deus como sujeito e
com a idéia de fazer algo novo. A palavra hãdashâ ("algo novo") refere-se a algo
que Javé está para fazer ao trazer a nova era (cf. Is 42.9; 43.19; 48.6; 65.17; 66.22;
Jr 31.31; Ez 11.19; 18.31; 36.26). Alguns autores omitiram a frase do texto,
dizendo que é uma glosa.91 John Bright traduziu-a, mas deixou-a entre colchetes,
dizendo: "O sentido é totalmente obscuro, e pode ter sido mais sábio deixar de fora
os dois pontos".92 B. Duhm emendou o texto assim: "... a mulher é transformada em
homem".93 Charles R. Brown corrigiu o texto assim: "Uma mulher anda como um
homem".94 A Septuaginta parece seguir um texto diferente: "Os homens andarão
em segurança" ou: "Os homens andarão em salvação".95
B. O amor de Deus no futuro
Em anos recentes, Jeremias 31.22 chamou novamente a atenção. Algumas
pessoas que apóiam o movimento feminista viram nesse versículo a prova de que o
Antigo Testamento fala de Deus como masculino e feminino.96 Robert P. Carroll
fez um estudo extenso sobre o versículo, em que reviu as opiniões de muitos
estudiosos. Depois, ele disse que seria sábio admitir aqui a ignorância e reconhecer
que os textos antigos eventualmente confundem a hermenêutica moderna.97
Edmond Jacob perguntou se esta passagem é feminista ou messiânica.98 Ele
observou que a interpretação messiânica desse versículo remonta ao tempo de
Jerônimo e foi retomada por B. Kipper numa dissertação escrita em 1957 em que
ele compara neqeba ("mulher") com ‘almâ ("virgem", Is 7.14), e geber ("homem")
com ’elg eb u r(''Deus poderoso", Is 9.6; 10.21). Martinho Lutero entendeu que a
” Skinner, Prophecy and Religion, 302.
" Bright, Jeremiah, 282.
” Veja Peake, "Jeremiah", 96.
** Jeremiah, 173.
“ Cf. Peake, "Jeremiah", 96; Green, Jeremiah, 151; Septuaginta, Jr 38.22.
* Cf. Trible, God and the Rhetoric o f Sexuality, 47-56; Holladay, "Jerusalém. XXXI 22b Reconsidered", 236-239.
” Jeremiah, 604.
w "Féminisme ou Messianisme?", 179-184.
194
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A n t ig o T e s t a m e n t o
passagem se referia a uma época em que a maldição da dor de parto seria retirada
da mulher.99
A. W. Streane optou pela perspectiva messiânica: "Esse pensamento é
realmente messiânico, porque se completa apenas na encarnação do divino Filho de
Deus".100
Edmond Jacob entendeu que "coisa nova" aqui se refere a mais do que o
retomo de Israel do exílio na Babilônia. A expressão "uma mulher cercará um
homem" é linguagem de casamento ou aliança. Ele lembrou a experiência de
Oséias com Gômer e a analogia da aliança (casamento) de Deus com Israel. Citou
também duas referências e que o verbo "cercar" é usado como linguagem de
aliança (SI 32.10). À luz do contexto dessa passagem (Jr 30-31), provavelmente o
melhor a fazer é entendê-la como referência a algo além do retomo de Israel da
Babilônia —talvez também a nova aliança.
O amor de Javé no Antigo Testamento pode ser como amor de mãe, mas
também é maior que amor de mãe:
Acaso, pode uma mulher esquecer-se do filho que ainda mama,
de sorte que não se compadeça
do filho do seu ventre?
Mas ainda que esta viesse a esquecer-se dele,
eu, todavia, não me esquecerei de ti
(Is 49.15).
Talvez o maior capítulo sobre o amor de Deus no Antigo Testamento seja
Oséias 11. De muitas maneiras, ele se aproxima do conceito neotestamentário da
natureza de Deus. Podemos esboçá-lo assim: 1) amor que escolhe (v. 1); 2) amor
rejeitado (v. 2); 3) amor protetor (v. 3-4); 4) amor disciplinador (v. 5-7); 5) amor
sofredor (v. 8-9); e 6) amor redentor (v.10-11).101 B. W. Anderson disse que aqui
Oséias "apela a todos os recursos da linguagem na tentativa de atingir a profundeza
incompreensível do amor santo de Deus, amor que inclui tanto juízo quanto
misericórdia".102
Israel recebe a ordem de amar a Deus várias vezes no Antigo Testamento
(Dt 6.5; 11.1; 19.9; 30.16). De fato, Jesus disse que esse é o maior dos
” Vcja Jacob, "Feminisme ou Messianisme?", 181.
100 "Jeremiah", Cambridge Bible, 212.
101 Ralph L. Smith, “Major Motifs in Hosea", 27-28.
lra "The Book o f Hosea", 301.
Q uem
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195
mandamentos (Mt 22.37; Mc 12.30; Lc 10.27). Alguns estudiosos perguntam:
"Como o amor pode ser exigido?" Isso deve ser parte da influência dos tratados
hititas. E. W. Nicholson argumentou que a ordem de Deus de amá-lo faz parte do
contexto familiar da vida diária. O israelita recebe a ordem de amar seu próximo
(Lv 19.18, 34) e o estrangeiro (Dt 10.19). Oséias recebe a ordem de amar uma
adúltera (Os 3.1). O povo recebe a ordem de amar a sabedoria (Pv 4.6), a verdade e
a paz (Zc 8.19) e o bem (Am 5.15). Então, por que o mandamento de amar a Deus
deve ser entendido como "algo estranho", explicável somente pelos que conhecem
a linguagem dos suseranos?103
O amor de Deus por Israel e pelo mundo, apesar de não ser mencionado
muitas vezes no Antigo Testamento, é muito poderoso. Deuteronômio diz que, por
ter Deus amado ( ’ãhab) Israel e seus antepassados, ele os tirou da escravidão no
Egito (Dt 4.37; 7.8; 23.5). Oséias tem sido chamado o profeta do amor de Deus.
Ele usa as quatro principais palavras correspondentes a amor ( ’ãhab, hesed, raham
e naham). Em Oséias, o amor de Deus não é exaurido por um estudo de
vocabulário. Em Oséias, todo o conceito de fazer a corte, de noivado e casamento é
permeado de amor. Uma cena interessante de "conquista" é a que se descreve em
2.14: "Eis que eu a atrairei, e a levarei para o deserto, e lhe falarei ao coração".
As palavras "atrair" e "falar ao coração" fazem parte do vocabulário do
amor. Siquém falou com carinho ao coração de Diná (Gn 34.3); Boaz falou ao
coração de Rute (Rt 2.11-13); o levita falou ao coração da sua esposa, que retomara
à casa do pai (Jz 19.3). Oséias recebeu a ordem: "Vai outra vez, ama uma mulher,
amada de seu amigo e adúltera, como o Senhor ama os filhos de Israel, embora eles
olhem para outros deuses e amem bolos de passas" (Os 3.1).
A idéia veterotestamentária do amor de Deus é que ele é profundo, forte e
permanente. Ele serve de pano de fundo para o conceito de amor de Deus no Novo
Testamento. Lester Kuyper observou que João, no prólogo ao seu evangelho (1.14),
usou uma expressão neotestamentária, "cheio de graça e de verdade", para dizer
que Jesus é Deus. A expressão equivalente no Antigo Testamento, hesed e ’em et
("amor e fidelidade"), é usada muitas vezes em referência a Deus no Antigo
Testamento.104
103 Nicholson, God and his People, 74-80.
104 "Grace and Truth", 3-19.
196
T e o l o g ia
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A n t ig o T e s t a m e n t o
A ira é um dos sentimentos de Deus mais freqüentemente mencionados no
Antigo Testamento. A ira de Deus é bem real e muito séria para as pessoas do
Antigo Testamento. O que é ira? No Egito antigo, ira significava "cólera", "raiva",
"reação violenta". Os sinais hieroglíficos correspondentes à ira retratam "o
espancamento de um mendigo", "um macaco em fúria" ou "um leopardo feroz". Os
egípcios também usavam uma palavra que significa "vermelho" para indicar
"coração", e uma para "nariz", muito semelhante ao termo hebraico, para
representar a raiva. Em acádico, as duas palavras usadas com mais freqüência são
agagu, "ser momentaneamente forte", e ezezu, "ser selvagem e furioso",
freqüentemente aplicada a fenômenos naturais.105
Na religião grega, os deuses não eram considerados amigos do ser humano.
Os escritores gregos continuamente reclamavam da "natureza vingativa, má
vontade e mesquinhez" dos deuses.106 Divindades da terra anteriores aos gregos e
as que trazem maldições, como as Eríneas, "têm ira até em seu nome, ‘as
fúrias’".107
A punição pelos deuses não é geralmente por motivos morais. As pessoas
eram punidas por suas ofensas pessoais contra os deuses. Dos poucos condenados
ao tormento eterno, Ixion atacara Hera, ato considerado uma infração da
prerrogativa de Zeus; Sísifo disse a Esopo para onde Zeus levara à força sua filha
Égira; e Prometeu salvou a raça humana dando-lhe o segredo do fogo, reservado
aos deuses. A ira de Zeus foi suscitada porque ele temia pela continuação da sua
tirania.108
Nas religiões mais primitivas, as pessoas se sentiam ameaçadas pelo poder
dos deuses. "Terror demoníaco" caracterizava as religiões primitivas. E "o horror
de um poder que não se preocupa nem com minha razão nem com minha moral".109
Mais de 20 palavras hebraicas diferentes, usadas mais de 580 vezes no
Antigo Testamento, se referem à ira de Deus.110 Disse ele:
A ira de Deus é um conceito que não pode ser erradicado do Antigo
Testamento sem causar perdas irreparáveis. Não é monopólio de um ou
105 J. Bergman, E. Johnson, "anaph, TDOT I, 350.
106 Heschel, The Prophets, 342.
Kleinknecht, Fichtner e outros, "Wrath", 3.
Heschel, op. cit., 243.
I0* Van der Leeuw, Religion in Essence and Manifestation, 134.
110 Morris, The Apostolic Preaching o f the Cross, 131.
Q uem t d e u s c o m o J a v í T
197
dois escritores, mas permeia o texto todo. [...] O conceito tem de ser
compreendido com cuidado, mas está tão entrelaçado no Antigo
Testamento que, se o ignorarmos, nâo poderemos entender corretamente a
visão hebraica de Deus ou do ser hum ano."1
E. Jacob disse que a ira fazia parte tão normal da pessoa de Deus no Antigo
Testamento que os primeiros israelitas não viam problema nela.112
Para muitos teólogos e estudiosos da Bíblia modernos a ira de Deus tem
sido um problema. Abraham Heschel afirma que, entre os que continuam abertos
para a mensagem da ira de Deus, à qual a Bíblia sempre se refere, alguns se
retraíram; outros a interpretam alegoricamente; e ainda outros têm se sentido
afastados por ela.113 C. H. Dodd disse que a ira de Deus é "uma expressão arcaica",
que pertence "a uma idéia totalmente arcaica".114
Elizabeth Achtemeier observou que Norman Snaith, em seu livro sobre os
sete salmos de penitência, afirmou que é impróprio dizer que Deus se ira. E bom
que os pecadores sintam primeiro que Deus está irado em relação a eles, mas
depois de crescerem espiritualmente e conhecerem mais das temas misericórdias
de Deus, abandonarão essa linguagem.115
Em seguida Achtemeier disse: "Essa idéia é tolice à luz da revelação
bíblica, não apenas do Antigo Testamento, mas também do Novo; e foram idéias
como essa que produziram a crença popular de que o Deus e Pai de Jesus Cristo é
um deusinho sentimental de amor que não liga para os nossos erros e nos ama
independentemente do que fizermos. Em toda a Bíblia, Deus destrói Israel e a raça
humana inteira por sua falta de dependência de seu senhorio e por sua rebeldia
contra seus mandamentos soberanos. Este com certeza é parte do sentido da cruz de
Cristo —que morremos por pecar contra Deus".116
Heschel disse que é impossível fechar os olhos para as palavras sobre a ira
de Deus nas Escrituras. Interpretar a ira de Deus seguindo linhas alegóricas ou
como metonímia "equivale a entender errado o sentido real da palavra e distorcer o
pensamento bíblico. [...] A palavra sobre a ira divina aponta para uma realidade
nua e crua, para o poder por trás dos fatos, não para uma figura de linguagem".117 A
ira de Deus faz parte da santidade divina e não deve ser descartada como mero
antropomorfismo.118 "Os israelitas realmente criam na ira de Javé e não a
111 Ibid., 156.
112 Theology o f the Old Testament, 114.
,n The Prophets, 279.
114 The Epistle o f Paul to the Romans, 20.
115 The Seven Psalms, 22.
116 "Overcoming the World", 80.
The Prophets, 280.
"* Robinson, Redemption and Revelation, 269; Record and Revelation, 342.
198
T e o l o c ia
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A n t ig o T e s t a m e n t o
projetavam sobre Deus a partir das provas e castigos pelos quais tinham
passado".
O Antigo Testamento fala da ira ou da indignação de Deus três vezes mais
do que da ira humana. Alguns termos, como Aaron ’aph e za ‘am são usados
somente para a ira de Deus. A maioria dos termos com a idéia de ira é emprestada
de expressões concretas, fisiológicas, como "ficar quente" ou "queimar" (Is 65.5; Jr
15.14; 17.4); "irromper" ou "transbordar" (Ez 13.13; 38.22); o "poder destrutivo da
tempestade" (SI 83.15; Is 30.30; Jr 23.19-20; 30.23-24); o líquido em um cálice que
é derramado (SI 69.24; Jr 10.25; Os 5.10) ou deve ser bebido (Jó 21.20; Jr 25.1516); a mão de Javé estendida (Is 5.25; 9.12, 17, 21; 10.4). A ira parece ser mais
uma atividade de Deus do que uma emoção. Expressões que se referem à ira nunca
são ligadas ao coração.120
Duas palavras ligadas de perto à ira no Antigo Testamento são "ciúme" e
"vingança". O ciúme de Deus significa que ele não tolerará nenhum outro deus (Êx
20.5; 34.14; Dt 4.24). Os inimigos de Israel são objeto da ira ciumenta de Deus (Na
1.2-3; Sf 1.18). Às vezes o ciúme de Deus se torna o zelo de Javé por seu povo,
para estabelecer seu reino (Is 9.7; 37.32; Ez 39.25; Zc 1.14).
O ciúme de Deus no Antigo Testamento tem relação com sua santidade,
sua singularidade, sua inacessibilidade, sua afirmação pessoal. Th. C. Vriezen
disse:
Temos de ser muito exatos em nossas distinções nessa idéia: ela não deve
ser identificada com o que é conhecido no paganismo como ciúme dos
deuses, que pode ser manifestado não apenas contra outros deuses, mas
também contra o ser humano quando as coisas estão indo particularmente
bem para ele. O medo do ciúme dos deuses nas religiões politeístas mais
elevadas é um efeito tardio de uma crença demoníaca em Deus banida no
Antigo Testamento. Aplicada a Javé, essa palavra tem um significado um
pouco diferente da que se refere ao ser humano. O verbo com que qanna’
está ligado significa, além de ter ciúme, preservar os direitos pessoais à
custa da exclusão de outros.121
Vriezen observou que a preservação ciumenta por Javé do seu direito de
ser adorado exclusivamente explica por que Adão e Eva não tiveram permissão
para comer da árvore do conhecimento do bem e do mal. Se o fizessem, isso os
levaria a se tomar como Deus. Isso também explica por que construir a torre de
Jacob, Theology o f the Old Testament, 114.
120 Ringgren, Israelite Religion, 76.
111 P. ex. Nm 11.29; 2Sm 21.2; Outline o f Old Testament Theology, 302.
Q uem t D e u s c o m o J a v é ?
199
Babel foi errado e por que todos os tipos de adivinhação, magia, necromancia e
feitiçaria foram proibidos.
O fato de a Bíblia dizer que Deus é ciumento é uma surpresa ou até um
choque para algumas pessoas. John R. Stott observou que o ciúme é condenado no
Novo Testamento como pecado (veja G1 5.19-20). O ciúme pode descrever tanto
um atributo de Deus como um pecado humano porque ciúme é neutro. "Se ele é
bom ou mau é determinado pela situação que o provoca. Em essência, ciúme é
intolerância de rivais. É virtude ou pecado dependendo se o rival é legítimo".122
Outra palavra hebraica ligada de perto a ira é nãqam geralmente traduzida
por "vingança" ou "desforra". A obra de W. F. Albright e seus alunos George
Mendenhall e G. E. Wright deu-nos uma compreensão melhor do termo no Antigo
Testamento e no antigo Oriente Próximo. Albright disse que a palavra hebraica
nãqam raramente significa "vingar"; antes, "salvar", como em Mári e nas tabuinhas
de Amama.123
G. Emest Wright disse que "vingança" é uma tradução pobre para nãqam
Esse termo se refere à condenação ou à redenção efetuada pelo soberano senhor da
história, que tem a responsabilidade final por justiça e salvação. "Por isso, essa é
uma prerrogativa de Deus apenas".124 Mendenhall disse que nãqam significa
"exercer poder legítimo", razão pela qual devemos traduzi-lo por "a soberania é
minha".125
nãqam é usado com freqüência com relação à guerra santa (Nm 31.1-2;
ISm 14.24; 18.25; 2Sm 4.8; 22.48; SI 18.48). Não se permite que ninguém se
aproprie dessa prerrogativa: "a vingança é minha" (Lv 19.18; Dt 32.35; cf. Rm
12.19). Às vezes, porém, isso acontece (Gn 4.24; Pv 6.34).
"Vingança" muitas vezes é ligado ao papel de um juiz. Javé é chamado de
Deus da vingança e solicitado a levantar-se e julgar a terra (SI 94.1-2). Talvez a
passagem mais clara que expressa a relação entre nãqam e um juiz seja 1Samuel
24.12. Davi disse a Saul: "Julgue o Senhor entre mim e ti e vingue-me (nãqam) o
Senhor a teu respeito; porém a minha mão não será contra ti". Jeremias usou a
palavra nãqam três vezes em suas "confissões", no contexto em que Javé o julga e
o "livra dos seus inimigos" (Jr 11.20; 15.15; 20.12).
Ciúme e vingança estão intimamente ligados a ira, mas não são idênticos a
ela. O que é ira? Algumas pessoas a apresentam como uma paixão sinistra e
Our Guilty Silence, 17.
m History. Archaeology, and Christian Humanism, 96.
114 "History and Reality", 195.
125 The Tenth Generation, 75-76.
200
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maligna, uma força negativa que tem sempre de ser reprimida. Aristóteles definiu a
ira como o desejo de retaliar ou de se vingar. Cícero disse que a ira é "a ânsia de
vingança", e Horácio a chamou "breve loucura".126
Contudo, no Antigo Testamento, a idéia da ira de Deus recebe sua marca
singular do fato de, "basicamente, Israel ter apenas um Deus, sem saída para o
panteão e o mundo dos demônios".127 Eichrodt disse que a ira de Deus no Antigo
Testamento jamais adquire as características de manis, "esse ódio e inveja
malignos tão comuns nos implacáveis deuses gregos e também nas divindades
babilónicas. Mesmo se às vezes ela é incompreensível, a ira de Javé não tem nada
de satânica; ela é simplesmente a manifestação de desagrado da grandeza
insondável de Deus".128 A ira de Deus é incompreensível apenas em algumas das
primeiras histórias, como a luta de Jacó com o homem no Jaboque, que o fez
manquejar (Gn 32.24-32); o encontro de Deus com Moisés no caminho para o
Egito, quando tentou matá-lo (Êx 4.24-26); ou Javé incitando Davi a recensear o
povo (2Sm 24.1). A ira de Deus era muito real para Israel. Apesar de nem sempre a
entenderem, eles a aceitavam.
A ira de Deus não deve ser estudada separadamente de outros aspectos da
sua natureza ou do pecado humano. "E mais um instrumento do que uma força,
antes transitória do que espontânea. E uma emoção secundária, nunca a paixão
dominante".129 Alguns estudiosos discordam de algumas dessas assertivas. Tasker
disse que a ira "é a atitude permanente do Deus santo e justo quando confrontado
com o pecado e com o mal".130
Quem ou o que são os objetos da ira de Deus no Antigo Testamento? A ira
de Deus no Antigo Testamento vem sobre indivíduos: Moisés (Êx 4.14; Dt 1.37);
Arão (Dt 9.20); Arão e Miriã (Nm 12.9); Nadabe e Abiú (Lv 10.1-2); Israel (Êx
32.10 e muitas outras referências); e as nações (SI 2.5; Is 13.3, 5, 13; 30.27; Jr
50.13, 15; Ez 25.4; 30.15; Sf 3.8).
A razão aparente para a ira de Deus é o pecado. Leon Morris disse: "Ela é
provocada única e inevitavelmente pelo pecado".131 Entre os pecados que provocam
a ira de Deus estão: a adoração de outros deuses (Êx 32; Nm 25; Dt 2.15; 4.25-26;
9.19; Jz2.14; lRs 11.9-10; 14.9, 15;2Rs 17.17-18); o derramamento de sangue (Ez
16.38; 24.7-8); adultério (Ez 16.38; 23.25); injustiças sociais (Êx 22.21-24).
Quais são as causas da ira de Deus? Nem sempre é possível determinar a
causa da ira de Deus no Antigo Testamento. Tragédias, desastres nacionais e
'* Veja Heschel, The Prophets, 280, nota 4.
117Kleinknecht, Fichter e outros, "Wrath”, 25.
Eichrodt, Theology o f the Old Testament /, 261.
Heschel, The Prophets, 282-283.
110"Wrath", 1341.
1,1 The Apostolic Preaching o f the Cross, 131.
Qu em £ Deu s
com o
J avéî
201
mortes prematuras se tomam um enigma para muitos no Antigo Testamento.
Dificuldades e males são muitas vezes vistos como castigos de Deus (veja 2Rs
23.26-30; cf. 2Cr 35.20-25; Jó 2.10; SI 44.8-22).
Eichrodt disse que Israel falou da ira divina nos casos em que a desgraça
sobrevinha de maneiras extraordinárias ou contrárias a qualquer expectativa. Amós
tinha por certo que todo infortúnio era produto da ira de Deus (Am 3.6). "Tanto a
morte acidental como a calamidade pública extraordinária são atribuídas a Deus
(Êx 21.13; 8.15; ISm 6.5). A única atitude razoável para o infortúnio
incompreensível é curvar-se ao desagrado divino".132
Quais são os efeitos da ira de Deus? J. Fichtner disse que "o efeito básico
da ira de Javé deve ser aniquilar, apagar completamente".133 Depois que Arão e o
povo fizeram o bezerro de ouro e o adoraram, o Senhor disse a Moisés: "Agora,
pois, deixa-me, para que se acenda contra eles o meu furor, e eu os consuma" (Êx
32.10; cf. Nm 16.21; Dt 7.4). Amós e Ezequiel anunciaram que o "fim" chegara
para Israel e Judá (Am 8.2; Ez 7.2-21). A queda de Jerusalém e o exílio foram
efeitos da ira de Deus (2Rs 23.26; Ez 7.4, 9,24; 8.18; 29.12).
A ira não é a última palavra de Deus no Antigo Testamento. Foi Leon
Morris quem disse: "A ira é uma realidade terrível, mas não deve ser tomada como
a última palavra sobre Deus".134 E Jacob: "Com um Deus vivo e que concede vida,
a ira não pode ser a última palavra".135 No Antigo Testamento, a ira de Deus é
modificada ou condicionada por seu amor. São palavras de Amós:
Eis que os olhos do Senhor Deus estão
contra este reino pecador,
e eu o destruirei
de sobre a face da terra;
mas não destruirei
de todo a casa de Jacó,
diz o Senhor.
(Am 9.8)
1,1 Theology o f the Old Testament /, 260.
IM Kleinknecht, Fichtner e outros, "Wrath", 33.
154 The Apostolic Preaching o f the Cross, 135.
155 Theology o f the Old Testament, 116.
202
T c o u jg i a
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Oséias registrou:
Como te deixaria, ó Efraim?
Como te entregaria, ó Israel? [...]
Meu coração está comovido dentro de mim,
as minhas compaixões, à uma, se acendem.
Não executarei o furor da minha ira;
não tomarei para destruir a Efraim
(Os 11.8-9).
Isaías falou de um remanescente que sobreviveria à crise assíria (Is 10.2023). Dois versículos adiante, ele anunciou o fim da ira de Deus contra Judá,
fazendo-a recair sobre a Assíria (Is 10.25). Jeremias chamou:
Volta, ó pérfida Israel, diz o Senhor,
e não farei cair a minha ira sobre ti,
porque eu sou compassivo, diz o Senhor,
e não manterei para sempre a minha ira.
(Jr 3.12)
O salmista declarou:
Não passa de um momento a sua ira,
o seu favor dura a vida inteira.
Ao anoitecer, pode vir o choro,
mas a alegria vem pela manhã.
(SI 30.5; Hb 6)
O profeta no exílio disse:
Por breve momento te deixei,
mas com grandes misericórdias tomo a acolher-te;
num ímpeto de indignação,
Q uem t D eus co m o J a v í?
203
escondi de ti a minha face por um momento;
mas com misericórdia tema me compadeço de ti,
diz o Senhor, o teu Redentor.
(Is 54.7-8)
E Miquéias:
Quem, ó Deus, é semelhante a ti,
que perdoas a iniqüidade e te esqueces da transgressão
do restante da tua herança?
O Senhor não retém a sua ira para sempre,
porque tem prazer na misericórdia.
(Mq 7.18)
Será que a ira de Deus é apenas temporária, um aspecto secundário da sua
natureza, que não causa efeitos permanentes em seu relacionamento ou trato com
as pessoas? Eichrodt deu essa impressão: "Diferente da santidade ou da retidão, a
ira nunca é um atributo permanente do Deus de Israel; ela só pode ser entendida
como, por assim dizer, uma nota de rodapé da vontade do Deus da aliança de
manter comunhão".136
Eichrodt não afirmou que o Antigo Testamento dizia que, por ser a ira de
Deus temporária, não haveria julgamento ou punição para os pecadores. Na
verdade, ele disse que a esfera principal e apropriada de atuação da ira de Deus no
Antigo Testamento é na administração da justiça retributiva.137Tudo o que pode ser
chamado de punição pelo pecado é considerado ação da ira de Deus no âmbito
nacional e individual. Mas todo o tom em que o Israel antigo falou da punição por
Deus prova que havia um "profundo sentimento do fundam ento moral da
punição".,w
Via de regra se reconhece que Deus não dá liberdade de ação total à sua
ira. Ele a restringe, a fim de punir em um momento em que a correção da sua ação
poderá ser discernida mais facilmente e, mesmo então, anunciando a punição
iminente com antecedência.
IM Theology o f the Old Testament I, 262.
157 Ibid., 263.
Ibid., 265.
204
T e o l o g ia
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Christoph Barth observou que as histórias de julgamento de Números
introduzem um novo aspecto, "a ira de Deus". Êxodo nunca fala da ira de Deus, a
não ser no capítulo 32. Números se refere a ela com freqüência (11.1-10; 12.9;
16.46; 25.4; cf. SI 78.21, 31, 38; 95.11).
A ira de Deus de forma alguma contradiz sua misericórdia, sua fidelidade,
sua paciência ou sua prontidão para perdoar. O mesmo Deus é quem
demonstra paciência surpreendente em Êxodo e atinge o limite da sua
paciência em Números. Quando mostra misericórdia, ele não deixa Israel
fazer o que quer. [...] Quando mostra ira e pune seu povo rebelde, ele não
esgotou sua paciência, nem pretende cortar todo e qualquer
relacionamento com Israel.1”
O Antigo Testamento fala com freqüência da paciência de Deus, mas
paciência nesse caso não deve ser entendida como apatia, indiferença ou tolerância.
Heschel disse:
A paciência de Deus quer dizer que ele está refreando sua ira justificada.
Não devemos confundir o perdão divino com indulgência. Há um limite,
depois do qual a longanimidade de Deus deixa de ser uma bênção. O
perdão não é nem absoluto nem incondicional. Podemos perdoar o
criminoso; mas será que é correto perdoar o crime? Posso perdoar o mal
que alguém fez contra mim; mas será que tenho o direito de perdoar o mal
feito a outros? Perdão incondicional pode ser encontrado em uma caixa de
Pandora, um belo incentivo a maus hábitos. A ira é um lembrete de que o
ser humano carece de perdão e de que o perdão não é automático. O
Senhor é longânimo, compassivo, amoroso e fiel, mas também é exigente,
insistente, terrível e perigoso.140
A ira de Deus é justificada no Antigo Testamento:
Os seus adversários triunfam,
os seus inimigos prosperam;
porque o Senhor a afligiu,
por causa da multidão das suas prevaricações. [...]
1,5 God With Us, 97-98.
140 The Prophets, 285.
Quem t
deus como J a v í ?
205
Justo é o Senhor,
pois eu me rebelei contra a sua palavra. [...]
Fez o Senhor o que intentou;
cumpriu a ameaça que pronunciou
desde os dias da antigüidade;
derrubou e não se apiedou.
(Lm 1.5, 18; 2.17).
Apesar de a ira de Deus poder parecer cruel às vezes, ela é a contrapartida
do seu amor, não a antítese. Há amor que pune, assim como há crueldade que
perdoa. "A severidade tem de domesticar quem o amor não consegue
conquistar."141 Às vezes o carinho tem de ser reprimido para que o amor possa
atuar. Um cirurgião não pode ceder à sua compaixão natural pelo paciente ao tratar
dele.
Leon Morris disse que o Antigo Testamento nos traça um quadro de Deus
que mostra que ele é misericordioso por natureza e não pode ser controlado por
esforços humanos para obter perdão:
O perdão, em última instância, deve-se sempre ao fato de Deus ser o que
é, e não a qualquer coisa que o ser humano possa fazer. Por Deus ser
Deus, ele tem de reagir da maneira mais forte possível ao pecado do ser
humano, e assim atingimos o conceito de ira divina. Mas por Deus ser
Deus, a ira não pode ser a última palavra. “O Senhor é bom; a sua
misericórdia dura para sempre (SI 5).”142
Mesmo sendo a ira algo que chega perto do mal, ela não deve ser
identificada com o mal em termos de essência. Paulo parafraseou Salmos 4.4-5:
"Irai-vos, mas não pequeis" (Ef 4.26). Ira é atribuída a Jesus em Marcos 3.5. Como
o fogo, a ira é neutra. Ela pode ser bênção ou maldição —repreensível quando
ligada à malícia, moralmente necessária para resistir à malícia.
m Ibid., 296.
142 The Apostolic Preaching o f the Cross, 136.
206
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24. Um Deus que julga
A. O papel de Deus como juiz
Se Deus é um Deus que salva, abençoa, criador, santo, amoroso, será que
não é também um Deus que julga? Agir como juiz é incompatível com salvar,
abençoar, criar, amar, ira e santidade? O Antigo Testamento fala muitas vezes de
Deus como juiz. Logo no começo do Antigo Testamento, Abraão perguntou se é
certo que o juiz de toda a terra destrua os justos com os ímpios. "Não fará justiça o
Juiz de toda a terra?" (Gn 18.25).
O salmista disse: "Os céus anunciam a sua justiça, porque é o próprio Deus
que julga" (SI 50.6).
Isaías disse: "O Senhor é o nosso juiz, o Senhor é o nosso legislador, o
Senhor é o nosso rei; ele nos salvará" (ls 33.22).
No Antigo Testamento, Deus julga entre indivíduos (Gn 16.5; 31.53; ISm
24.12, 15) e nações (Is 2.4). Ele também julga indivíduos (Gn 30.6; SI 7.8; 26.1-2;
35.24-25; 43.1; 54.1); famílias (ISm 3.13); nações (Gn 15.14; SI 110.6; J1 3.12);
seu povo (SI 50.4; 67.4; Is 3.13; 33.22; Ez 36.19); a tera (Gn 18.25; ISm 2.10; SI
9.8; 82.8; 94.2; 96.10); os deuses e as pessoas importantes (Jó 21.22; SI 82.1-2). O
fato de Deus poder julgar todos esses grupos indica que tem autoridade e soberania
sobre eles.
Três coisas são essenciais a um bom juiz: autoridade e soberania; decisões
justas e imparciais; e a capacidade de perceber e interpretar corretamente todas as
evidências. Javé tem as três qualidades. Ele é o soberano de toda a terra. Ele julga
as pessoas de acordo com o que fazem (Ez 7.27; 24.14; 33.20). Suas decisões são
corretas e imparciais (Gn 18.25; SI 9.4, 8; 67.4; 72.2; 75.2; 96.10. Perto do fim do
Antigo Testamento, alguns escritores da Sabedoria levantaram questões sérias
sobre a justiça de Deus: Jó 8.3; 9.2, 20, 22-24). A coisa que mais qualificou Javé
para ser juiz foi sua capacidade de olhar dentro das pessoas e conhecer-lhes as
motivações e o verdadeiro caráter. O Senhor disse a Samuel:
O homem vê o exterior,
porém o Senhor, o coração.
(ISm 16.7)
Q uem t
deus com o
J av i?
207
O salmista disse:
Examina-me, Senhor, e prova-me;
sonda-me o coração e os pensamentos.
(SI 26.2; cf. 139.23)
Se tivéssemos esquecido o nome do nosso Deus
ou tivéssemos estendido as mãos a deus estranho,
porventura, não o teria atinado Deus,
ele, que conhece os segredos dos corações?
(SI 44.20-21)
E Jeremias:
Mas, ó Senhor dos Exércitos, justo Juiz,
que provas o mais íntimo do coração,
veja eu a tua vingança sobre eles;
pois a ti revelei a minha causa.
(Jr 11.20)
O papel do juiz no mundo antigo era mais do que ouvir o depoimento das
testemunhas e tomar uma decisão quanto à culpa ou inocência do acusado. O papel
do juiz podia incluir descobrir o crime, ouvir, acusar, defender, sentenciar e
executar a sentença.143
Labão acusou Jacó de roubar seus deuses do lar. Labão alcançou Jacó no
caminho para o Jaboque e revistou sua bagagem. Quando não encontrou evidências
incriminatórias, Jacó lhe disse: "Havendo apalpado todos os meus utensílios, que
achaste de todos os utensílios de tua casa? Põe-nos aqui diante de meus irmãos e de
teus irmãos, para que julguem entre mim e ti" (Gn 31.37). Depois de poupar a vida
de Saul na caverna de En-Gedi, Davi lhe disse: "Julgue o Senhor entre mim e ti e
vingue-me o Senhor a teu respeito; porém a minha mão não será contra ti" (ISm
24.12). Mais tarde Davi disse: "Seja o Senhor o meu juiz, e julgue entre mim e ti, e
veja, e pleiteie a minha causa, e me faça justiça, e me livre da tua mão" (ISm
24.15).
141 Snaith, Distinctive Ideas o f the Old Testament, 74; Jacob, Theology o f the Old Testament, 97; Westcrmann,
Elements o f Old Testament Theology, 120.
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Deus é apresentado no credo não histórico (Êx 34.6) como um Deus
gracioso, paciente, fiel, amoroso e que perdoa, mas também como aquele que "não
inocenta o culpado" (v. 7). Ele é um juiz justo que de modo algum deixará impune
o culpado (SI 9.12). Ele os arrasta ao "tribunal" e os acusa de infringir a aliança. O
Senhor com freqüência tem uma controvérsia ou "acusação" contra seu povo (Is
1.18; Jr 2.9; Os 4.1-3; 12.2; Mq 6.2).
A convicção de que Deus é juiz é refletida em alguns nomes pessoais:
Josafá significa "Javé julga". Daniel significa "Deus é juiz", assim como Elifal
(veja lCr 11.35). Abidã significa "meu pai é juiz" (veja Nm 1.11; 2.22; 7.60;
10.24).
Às vezes a palavra "juiz" refere-se a Deus em papel político como o dos
governantes terrenos. Ele inclui a capacidade de perceber a diferença entre bem e
mal e agir conforme essa percepção. Salomão orou: "Dá ao teu servo coração
compreensivo para julgar a teu povo, para que prudentemente discirna entre o bem
e o mal" (lR s 3.9). Ludwig Köhler disse que não é que Deus diga o que é certo;
antes, ele ajuda a tomar as coisas certas.144
B. A justiça e a retidão de Deus
A justiça (m ishpat) e a retidão (tsèdãqâ) de Deus freqüentemente têm
relação com seu papel como juiz. Os termos são muitas vezes usados juntos. Com
freqüência é difícil distinguir o sentido de cada palavra, mas o conceito geral por
trás de ambas está claro e é muito importante. Heschel disse: "Há poucos
pensamentos gravados tão profundamente na mente do ser humano na Bíblia como
a idéia da justiça e da retidão de Deus. Isso não é uma inferência, mas um elemento
apriorístico evidente da fé bíblica; não um atributo acrescentado à essência de
Deus, mas inerente à própria idéia de Deus. Ele faz parte da sua essência e é
identificado com sua maneira de agir".145 Heschel está muito próximo do conceito
de retidão de H. H. Schmid, de retidão como parte da ordem do mundo (veja a
análise pertinente mais adiante neste capítulo).
Von Rad disse que não há absolutamente nenhum conceito no Antigo
Testamento com um significado tão central para todos os relacionamentos da vida
humana como o de tsèdãqâ ("retidão" ou "justiça"). Ele é o padrão para o
relacionamento com Deus e para o relacionamento das pessoas entre si, incluindo
até os animais e o ambiente natural, tsèdãqâ pode ser descrito como "o valor mais
elevado da vida, sobre o qual toda a vida se apóia quando organizada
144 Old Testament Theology, 32.
145 The Prophets, 199-200.
QUEM
t DEUS COMO JAVÉ?
209
corretamente".146 Johnson enfatizou o papel de tsêdãqâ como um termo de
relacionamento que descreve forma, funcionamento e efeitos dos relacionamentos
comunitários ordenados de forma positiva.147
O Antigo Testamento diz muitas vezes que Deus age com correção (Êx
9.27; SI 11.7; 111.3; 116.5; 129.4; 145.17; Jr 12.1;Dn 9.14).
Eis a Rocha! Suas obras são perfeitas,
porque todos os seus caminhos são juízo;
Deus é fidelidade, e não há nele injustiça;
é justo e reto.
(Dt 32.4)
Justo és, Senhor,
e retos, os teus juízos.
(SI 119.137)
Qual é a diferença entre justiça e retidão no Antigo Testamento? m ishpaí
("justiça") é um termo legal usado no sistema judicial, tsêdãqâ ("retidão") denota
conformidade a uma norma. Com freqüência a norma é a aliança. Deus e Israel são
retos quando fiéis à aliança.
Objetos podem ser "corretos, justos", no Antigo Testamento. Balanças,
pesos e medidas são "justas" quando são como devem (Lv 19.36; Ez 45.10).
Sacrifícios são "retos" quando oferecidos segundo as regras (Dt 33.19; SI 4.5;
51.19). Carvalhos são "justos" porque estão sempre verdes (Is 61.3), e caminhos
são "retos" quando se pode andar por eles (SI 23.3). Assim, tsêdãqâ ("retidão") é
conformidade à norma segundo a qual cada pessoa ou coisa deve ser. No Antigo
Testamento, o próprio Deus é a origem do direito.141
Heschel tentou distinguir entre retidão e justiça sugerindo que retidão é
uma qualidade da pessoa, enquanto justiça é um modo de agir. O substantivo ju iz
significa "alguém que age como juiz", porém o substantivo reto se refere a uma
pessoa correta. Retidão vai além de justiça. A justiça com freqüência é "rígida e
exata, dando a cada pessoa o que lhe é devido. Retidão implica benevolência,
gentileza, generosidade. Justiça é forma, uma condição de equilíbrio; retidão tem o
146 Von Rad, O ld Testament Theology 1 ,370.
147 B. Johnson, tw atvi , 923.
““ Dt 1.17; cf. Heschel, The Prophets, 200.
2 10
T f.o i .o c ia
do
A n t ig o T e s t a m e n t o
significado de um substantivo. A justiça pode ser legal; a retidão está ligada a uma
compaixão ardente pelos oprimidos".149 A retidão de Deus não pode ser separada
da figura de Deus como juiz.150
A justiça originariamente referia-se às decisões e determinações de Deus
como juiz. Julgamentos feitos em nome de Deus por juizes locais tomaram-se a
base da lei comum em Israel. Não devemos equiparar nossa idéia de Deus como
juiz no Antigo Testamento com a clássica figura da moça vendada segurando uma
balança na mão. "A justiça de Deus estende um braço ao trapo jogado no chão
enquanto com o outro afasta aquele que causa o infortúnio".151 Desse modo, a
justiça de Deus tem sempre um elemento de graça e misericórdia. Com freqüência
favorece o pobre e necessitado.
C. Retidão como vitória ou salvação
Quase desde o começo do Antigo Testamento, a "retidão" de Deus era
sinônimo de "vitória" e "salvação". Os grandes atos redentores de Deus em favor
de Israel são chamados "atos retos de Javé" ("triunfos", Jz 5.11; "atos salvadores",
ISm 12.7; "justificação", SI 71.15-16; 103.6; Dn 9.16; Mq 6.5). É na última parte
de Isaías e em alguns salmos que a combinação das idéias de retidão, vitória e
salvação se toma mais clara (SI 22.31; 35.24, 27-28; 48.10; 51.1, 14; 65.5; Is 45.8,
21, 25; 46.12-13; 51.1, 5-6, 8; 61.10; 62.1-2).
Muitos estudiosos falam de um desenvolvimento do sentido da idéia da
retidão de Deus no Antigo Testamento, mas von Rad disse que não há
transformação radical nem desenvolvimento perceptível no conceito israelita
antigo da retidão de Javé. Desde a época do cântico de Débora, a retidão de Javé
"não era uma norma, mas atos, e atos que concedem salvação".152 No Antigo
Testamento, um indivíduo podia experimentar esses "retos" atos salvadores de
Deus tanto quanto a nação (SI 22.31; 40.11; 71.2-22; 143.1). Toda a idéia da justiça
de Deus no Antigo Testamento foi questionada por Klaus Koch e J. L. Crenshaw
(veja mais detalhes no capítulo 7, em especial a divisão 33: "Os efeitos do
pecado").
O substantivo "reto" aparece nas formas masculina (tsedíq), feminina
singular (tsédãqâ) e feminina plural (tsêdeqôt). Tem havido muita especulação
quanto à diferença entre as formas masculina e feminina porque ambas podem
m Ibid., 201; cf. Dt 24.10-13.
150 Veja Jacob, n e o lo g y o f the Old Testament, 96; J6 4.8-10; 9.13; 26.12; SI 74.13-14; 89.10; 96.10-13; 98.7-9; Is
27.1; 17.9; Nicholson, God and His People, 198.
151 Jacob, Theology o f the Old Testament, 99.
I5J Old Testament Theology I, 372-373.
Q uem t D eus co m o J a v ê?
2 11
ocorrer na mesma frase. Mais recentemente Johnson argumentou que a forma
feminina é mais concreta, e a masculina, mais abstrata.153 Não há diferença
significativa perceptível no emprego dos substantivos masculino e feminino. Jacob
entendeu que a diferença era que a forma masculina destaca a norma da ação de
Deus, enquanto a forma feminina enfatiza a manifestação visível dessa norma.154
Segundo Jepsen, a forma masculina significa "correção", "ordem", e a forma
feminina significa "a conduta que objetiva a ordem correta".155
G.
A. F. Knight disse que até recentemente os estudiosos não havia
esclarecido a diferença entre as formas masculina e feminina. "Porém de novo
temos de dizer humildemente que, visto que eles descrevem aspectos da graça e da
bondade indizíveis do Deus vivo, podemos apenas tatear por palavras quando
tentamos expressar o que Deus está fazendo".156 Em outro texto, Knight deu a
entender que a forma masculina refere-se aos atos salvadores de Deus que vêm de
cima, de pura graça, porque no mundo antigo o céu era considerado masculino. Ele
disse que a forma feminina se refere principalmente aos atos redentores ou
salvadores das pessoas umas em relação às outras, e é feminina porque terra é
feminina.157 Nesse último sentido das ações humanas redentoras ou salvadoras uns
pelos outros, retidão é sinônimo de justiça:
Corra o juízo (justiça) como as águas;
e a justiça (retidão), como ribeiro perene.
(Am 5.24)
As palavras "justiça" e "retidão" são usadas de tantas maneiras diferentes
no Antigo Testamento que cada uso tem de ser estudado com muita atenção, à luz
do seu contexto e do seu significado em outras passagens. Quando "retidão" se
refere à retidão de Deus, de algum modo está vinculada às suas "ações salvadoras"
pela graça. Quando a referência é à retidão humana, está ligada ou à posição da
pessoa na aliança com Deus e/ou ao modo pelo qual tratou os outros em termos
éticos. Walther Zimmerli observou que "retidão", que caracteriza a esfera da justiça
divina com referência específica aos atos de Javé, toma-se o termo central para a
justiça humana. Os salmos 111-112 mostram como a retidão de Javé (SI 111) é
,5J T W A T 6 , 912-919.
154 Theology o f the Old Testament, 98.
155 Citado por Zimmerli, Old Testament Theology in Outline, 143.
156 Psalms /, 4.
A Christian Theology o f the Old Testament, 245, nota 1.
212
T e o l o c ia
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A n t ig o T e s t a m e n t o
refletida (SI 112) nas ações de alguém que teme a Deus.158 Johnson sublinhou os
relacionamentos da aliança, sendo a retidão a conduta alinhada com a aliança.159
Temos de admitir que algumas passagens do Antigo Testamento falam de
Deus como juiz ou rei do mundo porque ele o criou e sustenta. O mundo está
fundamentado em retidão e justiça (SI 89.14; Is 28.16-17). Algumas passagens
mostram o Senhor em batalha contra as forças do mal, contra o caos ou contra seus
inimigos, para manter o mundo firmado em retidão. Às vezes essas forças do mal
são chamadas Raabe, Leviatã, Tanin ou dragão. Em português são chamadas
bestas, serpentes, monstros marinhos, ou rios, enchentes e oceanos (Jó 9.13; 26.12;
38.8-11; SI 74.13; 89.10; 93.3-4; 96.10-13; 98.7-9; 104.6-9; Is 27.1; 51.9). Em
Habacuque 3.8-15, o profeta fala de uma batalha entre Javé e os mares, rios e
águas, usando metáforas do êxodo e da travessia do mar Vermelho. É óbvia a
presença de uma antiga linguagem mitológica de uma batalha contra o dragão
Tiamate. As águas no Antigo Testamento freqüentemente simbolizam o mal
cósmico. Javé está no controle. Ele tem poder sobre as águas e sobre o mal.160
Com seu poder aquietou o Mar,
com sua destreza aniquilou Raab.
O seu sopro clareou os Céus
e sua mão traspassou a Serpente fugitiva.
(Jó 26.12-13, BJ)
Acaso, é contra os rios, Senhor, que estás irado?
É contra os ribeiros a tua ira
ou contra o mar, o teu furor,
já que andas montado nos teus cavalos,
nos teus carros de vitória?
Tiras a descoberto o teu arco,
e farta está a tua aljava de flechas.
Tu fendes a terra com rios.
Os montes te vêem e se contorcem;
l5* Old Testament theology in Outline, 143.
159 TWAT 6 , 919-920.
Smith, Word Biblical Themes: Micah-Malachi, 35-57.
Q uem t Deus como J avé ?
213
passam torrentes de água;
as profundezas do mar fazem ouvir a sua voz
e levantam bem alto as suas mãos.
O sol e a lua param nas suas moradas,
ao resplandecer a luz das tuas flechas sibilantes,
ao fulgor do relâmpago da tua lança.
Na tua indignação, marchas peia terra,
na tua ira, calcas aos pés as nações.
Tu sais para salvamento do teu povo,
para salvar o teu ungido;
feres o telhado da casa do perverso
e lhe descobres de todo o fundamento.
Traspassas a cabeça dos guerreiros do inimigo
com as suas próprias lanças,
os quais, como tempestade,
avançam para me destruir;
regozijam-se, como se estivessem
para devorar o pobre às ocultas.
Marchas com os teus cavalos pelo mar,
pela massa das grandes águas.
(Hc 3.8-15)
Disseste: Hei de aproveitar o tempo determinado;
hei de julgar retamente.
Vacilem a terra e todos os seus moradores,
ainda assim eu firmarei as suas colunas.
(SI 75.2-3)
Habacuque sabia que o poder do mal era como um monstro. Um poder
grande demais para ele, mas Deus era soberano sobre o mar. O apóstolo João,
prisioneiro na ilha de Patmos, previu o dia em que o mar já não existirá —querendo
dizer "não haverá mais mal" (Ap 21.1). Apocalipse 12.7-12 diz que Deus é
soberano sobre o mal, assim como é sobre o mar. Haverá guerra no céu entre
Miguel e seus anjos e o dragão e seus anjos. O dragão e seus anjos serão derrotados
214
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e expulsos do céu. A vitória é atribuída ao sangue de Cristo e ao testemunho fiel
dos mártires cristãos (Ap 12.11).
No hebraico posterior e no aramaico, "retidão" se tomou quase sinônimo
de ações de misericórdia e de esmolas (Dn 4.27; Mt 6.1).161 O apóstolo Paulo usou
"retidão" de duas maneiras. Ao escrever sobre a lei da retidão, estava pensando no
sentido genuinamente ético (Rm 9.31; 10.1-6; Fp 3.6, 9). Ao falar do "dom da
retidão" (Rm 1.17; 3.22; 5.17), estava pensando no grande ato salvador de Deus em
Cristo. Nisso Paulo é herdeiro dos profetas e dos salmistas que tomaram retidão
sinônimo de salvação.
Portanto, Javé é juiz de todo o mundo no Antigo Testamento. Ele o criou.
Ele o sustenta. Ele luta contra as forças do mal para preservar a retidão e a justiça.
No fim, o "conhecimento de Deus" cobrirá a terra como as "águas" (símbolo do
mal) cobrem o mar (veja Is 11.3-9; Hc 2.14).
25. Um Deus que perdoa
A experiência de ser perdoado pode ser uma das mais alegres, humilhantes
e terapêuticas da vida. As exclamações mais líricas de poesia e doxologia no
Antigo Testamento vêm dos que comemoram o perdão.
Miquéias se maravilhou;
Quem, ó Deus, é semelhante a ti,
que perdoas a iniqüidade
e te esqueces da transgressão
do restante da tua herança?
O Senhor não retém a sua ira para sempre,
porque tem prazer na misericórdia.
(Mq 7.18)
161 Cf. Snaith, "Righteous, Righteousness", 202-203; Jacob, Theology o f the Old Testament, 102; Von Rad, O ld
Testament Theology 1,383; Toy, Proverbs, 199.
Q uem
é
Deus
com o
Javé?
215
O salmista declarou:
Bem-aventurado aquele cuja iniqüidade é perdoada,
cujo pecado é coberto.
Bem-aventurado o homem a quem
o Senhor não atribui iniqüidade
e em cujo espírito não há dolo [...].
Confessei-te o meu pecado
e a minha iniqüidade não mais ocultei.
Disse: Confessarei ao Senhor
as minhas transgressões;
e tu perdoaste a iniqüidade
do meu pecado [...].
Tu és o meu esconderijo;
tu me preservas da tribulação
e me cercas de alegres cantos de livramento.
(SI 32.1-2, 5, 7)
O perdão é necessário porque todos pecamos e carecemos da glória de
Deus (Is 53.6). Somente Deus pode perdoar pecados (Is 53.4-5; veja SI 51.3-4;
130.3-4; Mc 2.7; Lc 5.21; 7.49).
Duas raízes hebraicas traduzem o conceito básico de "perdoar" no Antigo
Testamento. Uma é sãlah e é freqüentemente traduzida por "perdoar". Em
acadiano, uma raiz semelhante, salãhu, significa "aspergir" e é usada no sentido
médico e cultual. Em hebraico, esse sentido concreto não transparece, mas a raiz
pode ter vindo de um contexto de culto e poderia ter sido usada com o sentido de
"aspergir", e depois "perdoar".162 Se isso é verdade, o perdão é um processo de
purificação espiritual e mental que restaura o relacionamento entre Deus e o ser
humano e entre as pessoas.
A segunda raiz hebraica que significa "perdoar" é nãáã’ e tem o sentido
literal de "levantar", "carregar", sãlah ocorre apenas com Deus como sujeito, mas
nãáã’ é usada tanto com Deus como com as pessoas como sujeito. Os irmãos de
162 Jacob, Theology o f the Old Testament, 292; Köhler e Baumgartner, Hebrew Lexicon, 659.
216
T e o l o c ia
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A n t ig o T e s t a m e n t o
José pediram que ele os perdoasse (Gn 50.17); Saul pediu perdão a Samuel, para
que pudesse adorar (ISm 15.25); Abigail pediu a Davi que a perdoassepor sua
parte na má conduta de seu marido em relação a ele (ISm 25.28).
O perdão também está presente em outros termos além de nãéã’ e sãlah.
Expressões como "ser gracioso", "esconder-se da ira de Deus" e "que Deus se
arrependa ou se desvie da sua ira" podem indicar o perdão de Deus.
O "credo" não histórico de Êxodo 34.6-7 descreve Javécomo
misericordioso e gracioso, tardio para se irar, rico em amor firme e em fidelidade,
mantendo seu amor por milhares, e perdoando (nãáã’) iniqüidade, transgressão e
pecado. A raiz slh é usada no credo em Êxodo 34.9 na oração: "Perdoa (slh) nossa
iniqüidade e nosso pecado". Essa parte do "credo" é repetida duas vezes. Uma
forma da raiz slh ocorre em Neemias 9.17: "Tu és Deus perdoador".
Israel acreditava que Javé era um Deus que perdoa, mesmo que em
algumas ocasiões Deus diga que não perdoará (Êx 23.21; Dt 29.20; Js 24.19; 2Rs
24.4; Jó 7.21; Lm 3.42; Os 1.6). Amós orou para que Deus perdoasse Israel (Am
7.2, S), e o Senhor se arrependeu e desistiu do castigo pretendido. Mais tarde Amós
teve duas outras visões do julgamento vindouro, e Javé disse que havia chegado ao
fim a paciência divina com Israel: "Jamais passarei por ele" (Am 7.8; 8.2). Javé
disse rês vezes a Jeremias que não orasse mais por seu povo, porque Javé não os
pouparia do castigo (Jr 7.16; 11.14; 14.11).
O perdão de Deus nem sempre era garantido. Amós disse:
Aborrecei o mal, e amai o bem,
e estabelecei na porta o juízo;
talvez o Senhor, o Deus dos Exércitos,
se compadeça do restante de José.
(Am 5.15)
Na mesma linha, Sofonias conclamou:
Buscai o Senhor, vós todos os mansos da terra,
que cumpris o seu juízo;
buscai a justiça, buscai a mansidão;
porventura, lograreis esconder-vos
QVUi t Dcus COMO jA V tr
217
no dia da ira do Senhor.
(Sf 2.3)
O rei de Nínive não achou que o perdão de Javé fosse automático. Djsse
ele: "Clamarão fortemente a Deus; e se converterão, cada um do seu mau caminho
e da violência que há nas suas mãos. Quem sabe se voltará Deus, e se arrependerá,
e se apartará do furor da sua ira, de sorte que não pereçamos?" (Jn 3.8-9).
Nessas três passagens, o perdão de Deus não é automático nem garantido.
Deus é livre para perdoar ou não. Durante a maior parte do tempo, Israel tinha uma
fé firme na disposição de Deus de perdoar (Ne 9.17; SI 32.1-5; 65.3; 86.5; 99.8;
103.3; Is 55.7; Mq 7.18).
Comentando a ocasião em que Israel pressupôs o perdão de Deus (Is 48.12), G. A. F. Knight lembrou a insolência da famosa declaração de Heinrich Heine
no seu leito de morte: "Deus há de me perdoar, porque esse é o seu trabalho".163
Knight viu uma importante verdade evangélica em Isaías 44.22, que assevera que
Deus já nos perdoou antes que nos arrependamos, não quando e se nos
arrependermos.164 Mais tarde Knight disse: "Deus oferece perdão ao ser humano no
mesmo momento em que este comete o pecado fundamental do qual derivam todos
os outros. Deus perdoará abundantemente, [...] ou ‘multiplicará o perdão’".165
De acordo com o Antigo Testamento, o maior problema da raça humana é
o pecado. Somente Deus pode lidar com ele eficientemente; isso ele fez, e faz, em
Cristo.166 Os conceitos de pecado e perdão serão discutidos mais a fundo no
capítulo 7.
O Antigo Testamento afirma que Javé é único (Dt 6.4) e que somente ele é
Deus (Dt 4.35, 39; 2Sm 7.22; lRs 8.60; 2Rs 19.15; SI 86.10; Is 43.10-13; 44.6-8;
45.5-6,21-22; J1 2.27; cf. Is 41.4; 48.12; 64.4). Essas afirmações são poucas, e suas
datas são discutíveis. É surpreendente que o shema (Dt 6.4), que se tomara a divisa
do judaísmo no começo da era cristã, é mencionado apenas uma vez no Antigo
Testamento, e seu significado exato não está claro. O texto hebraico pode ser lido
163 Deutero-Isaiah, 166; veja Stewart, A Faith to Proclaim, 52.
164 Ibid., 122.
165 Ibid., 262.
Veja Smith, Word Biblical Themes: Micah-Malachi, 20.
218
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assim: "Ouve, ó Israel, Javé (é) nosso deus, Javé (é) um"; ou: "Ouve, ó Israel, Javé
(é) nosso Deus, apenas Javé". G. Emest Wright disse que o significado essencial
está claro mesmo que nossa tradução não esteja.
O objeto da atenção, afeição e adoração exclusiva de Israel (cf. v. 5) não é
difuso, mas específico. Não é um panteão de deuses, cada um com uma
personalidade dividida de modo desconcertante por adeptos e santuários
rivais, tanto que a atenção do adorador não tem como se concentrar. A
atenção de Israel é indivisa; ela é restrita a um único ser definido cujo
nome é Javé. [...] A palavra “um” é, portanto, usada em contraposição a
“muitos”, mas também implica singularidade e diferença.167
A palavra traduzida por "um" é o numeral cardeal comum ’éhad. G. A. F.
Knight propôs que essa palavra "um" ( ’éhad) não deve ser vista aqui em sentido
matemático, porque com freqüência é usada para uma unidade na diversidade,
como no exemplo de "uma só carne" de marido e esposa (Gn 2.24). "A pessoa de
Deus [...] nao deve ser entendida em termos individualistas modernos. Deus não é
uma mera mônada, a mera ‘unicidade’ de ser no sentido matemático da palavra
‘um’. Ele é uma ‘unidade na diversidade’".15* Knight observou que outra palavra
hebraica, yahid, pode significar "um" no sentido de singularidade ou "o único" (Gn
22.2, 12, 16; Jz 11.34; SI 22.20; 25.16; 35.17; 68.7; Pv 4.3; Jr 6.26; Am 8.10; Zc
12.10).
Os cristãos lembram o fato de que Deuteronômio 6.4 usa o único unido
( ’éhad)com o evidência de que a doutrina da Trindade de forma alguma contradiz
ou se opõe ao shema. Temos de tomar cuidado, no entanto, para não ler a doutrina
cristã da Trindade dentro do shema do Antigo Testamento. David S. Dockery disse
que é freqüente a confusão quanto ao fato de a Bíblia afirmar ao mesmo tempo a
doutrina da Trindade e o monoteísmo. Contudo, essas duas afirmações de modo
algum são contraditórias. A doutrina da Trindade não ensina a existência de três
deuses "Deus não se revelou em termos claramente trinitários no Antigo
Testamento. Todavia, o Antigo Testamento preparou o fiel para a doutrina da
Trindade".169
A idéia da unicidade de Deus no Antigo Testamento é singular e
significativa. Enquanto outros povos antigos achavam que seus deuses eram
muitos, cada um tendo sua própria esfera de influência e responsabilidade, o Israel
antigo entendia que seu Deus era um (indiviso), com todos os atributos e poderes
l<'7 "Deuteronomy", /fl, 372-373.
IMA Christian Theology, 58.
169 Dockery, "Monotheism in the Scriptures", 30; cf. V. P. Hamilton, Genesis 1-17, 132-133.
qu em
É deus
com o
J avé?
219
da divindade em si mesmo, governando todas as esferas da existência. Não há
distinções sexuais em Javé. O hebraico não tem palavra traduzível por deusa (veja
Excurso: Aserá —consorte de Javé?). Não há indicação de que o Javé do reino do
Norte fosse de qualquer forma diferente do Javé do reino do Sul. Westermann
disse:
Por ser o criador e também o salvador, por ser o Deus que abençoa sua
criação em um horizonte universal o mesmo que salva e julga seu povo,
por ser o Deus em quem cada pessoa confia o mesmo que “dá o alimento
aos animais e aos filhos dos corvos” (SI 147.9), e por existir apenas um
para louvar e um a quem se queixar —há coerência e relação em tudo o
que acontece entre Deus e o ser humano, entre Deus e sua criação. Por
isso essa história é real, do começo ao fim.170
Excurso: Aserá —consorte de Javé?
Será que Israel conseguiu viver no meio dos seus vizinhos sem ter uma contrapartida
feminina para Javé? Algumas evidências recentes parecem dizer que não.
William Dever afirmou que o Antigo Testamento contém quarenta referências veladas ao
culto de Aserá, a antiga divindade cananéia da fertilidade, consorte do El de Ugarite.171
Alguns papiros de Elefantina, uma ilha no rio Nilo, foram publicados no começo do século
XX(1906, 1908, 1911). Eles vinham de uma colônia militar judaica na ilha e são datados de
cerca de 4S0 a.C. Mostram que havia um templo na ilha, onde Javé era adorado ao lado de
outros deuses. Uma das deusas mencionadas nos papiros era Anate, antiga deusa
cananéia.172John Day examinou a grande quantidade de dados de Ugarite que tratam Aserá
como deusa.175
Recentemente, duas escavações arqueológicas no território de Judá trouxeram a lume
inscrições de cerca de 750 a.C. Alguns estudiosos interpretaram as inscrições como
referências a "Javé e sua Aserá".
Os textos vêm de duas localidades: Khirbet el-Qôm, aldeia quase a meio caminho entre
Hebrom e Laquis, e Luntillet Ajrud, estação remota no caminho do deserto do norte do
Sinai, mais ou menos 40 quilômetros a sudoeste de Cades-Baméia. Não podemos comentar
170 Elements o f Old Testament Theology, 32.
171 "Asherah, Consort", 217.
1,2 Rowley, "Papyri from Elephantine", 256-257.
1,5 "Asherah in the Hebrew Bible", 385.
220
T e o l o g ia
do
A n t ig o T e s t a m e n t o
todas as evidências aqui, mas parece que a conclusão de Emerton é a melhor até o
momento: "A Aserá invocada na frase ‘Javé e sua Aserá’ provavelmente é o símbolo de
madeira da deusa com esse nome, cuja vinculaçâo ao culto de Javé é confirmada no Antigo
Testamento. Ela pode ter sido considerada em alguns círculos como consorte de Javé, mas
as inscrições não dão prova direta desse relacionamento".174
Nenhum estudioso sério do Antigo Testamento afirma que alguma passagem
veterotestamentária dá provas de que Javé tinha uma consorte ou partilhava sua adoração
com alguém ou algo. Poderia ser dito que a leitura "e sua Aserá" de forma alguma é segura.
Se a leitura estivesse correta, fica a pergunta se Aserá se refere a uma deusa ou a um lugar, e
se os textos representam a religião judaica normativa ou a de um grupo sectário. Baruch
Margalit disse que, apesar de não haver uma confirmação "totalmente segura" de Aserá, que
significa "esposa" na Bíblia hebraica, muitas referências a Aserá no Antigo Testamento
parecem pressupor que ela é uma deusa.175
É difícil determinar quando Israel chegou a entender que seu Deus era só
um e que era o único Deus. É provável que Israel soubesse que Deus era só um
antes de compreender todas as implicações desse fato, ou seja, se Deus é só um e
tem em si todo o poder e todas as prerrogativas da divindade, não pode haver outro.
Israel não chegou a essa conclusão por meio de dedução racional, mas pela
observação das ações de Deus na história.176
Desde o começo da sua história (com Moisés ou com Abraão), Israel creu
que Deus é só um. Westermann disse: "O fato de que Deus é só um é sabido e
aceito no Antigo Testamento do começo ao fim".177 W. F. AIbright, G. E. Wright,
H. H. Rowley, Th. C. Vriezen, E. Jacob e Dennis Baly defendem um monoteísmo
incipiente ou implícito desde a época de Moisés. Estudiosos como E. Renan,
Andrew Lang, N. Soderblom, R. Pettazzoni, W. Schmidt, G. Widengren e I.
Engnell recorreram a evidências da sociologia, da antropologia e da história das
religiões para tentar identificar um "monoteísmo primitivo" ou a adoração de
"deuses elevados".178
Apesar de Israel, desde o começo da sua história, pensar que seu Deus era
só um, eles passaram a negar a existência de outros deuses somente bem adiante
cm sua história.179 Eichrodt disse que é fácil provar que, no Israel antigo, a
existência de outros deuses além de Javé ainda era um fato com o qual se devia
17« «New Light on Israelite Religion”, 19.
1,5 "The Meaning and Significance o f Ashe rah", 283.
,H Wright, The O ld Testament Against its Environment, 39.
177 Elements o f Old Testament Theology, 32.
I7* Cf. W. F. Albright, From the Stone Age to Christianity, 70; Rowley, The Old Testament and M odem Study, 286290; Jacob, Theology o f the Old Testament, 44, 76.
Dockery, "Monotheism in the Scriptures", 28.
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contar.180 O primeiro mandamento, "Não terás outros deuses diante de mim", indica
a possibilidade de que outros deuses sejam reais.
Josué conclamou o povo a escolher entre Javé e outros deuses (Js 24.2, 24).
A adoração de Baal era uma constante ameaça ao relacionamento de aliança entre
Javé e Israel após a conquista de Canaã. O livro de Juizes é uma história contínua
da adoração de outros deuses por Israel. Gideão fez um éfode (Jz 8.27); Mica fez
uma imagem esculpida ou fundida da prata que roubara da mãe (Jz 17.3-4; 18.14,
24). Davi acreditava que, expulso da sua terra, teria de adorar outros deuses (ISm
26.19). A história de Israel foi de repetida apostasia (cf. Dt 9: SI 106; Ez 16; 20). A
idolatria foi um problema para Israel até o tempo do exílio.
Como Israel tentou lidar com a existência de outros deuses? Zimmerli diz:
"O javismo não eliminou simplesmente a noção de outras divindades, por mais que
considerasse apenas Javé a única divindade para a nação. Israel desconhece o
monoteísmo teórico. Achava normal que houvesse outros deuses nas outras
nações".181
Israel tentou resolver a questão da existência de outros deuses de várias
maneiras. Em Deuteronômio 32.8, segundo a Septuaginta e os manuscritos do mar
Morto, o Deus Altíssimo distribuiu porções às nações quando separou os ftlhos dos
homens. Fixou limites para os povos conforme os filhos de Deus (ou seja, os
anjos). O texto hebraico (massorético) parece ter mudado aqui o texto original de
"filhos de Deus" para "filhos dos homens". "Filhos de Deus" sugeriria que Israel e
as outras nações foram atribuídas ou distribuídas a divindades ou anjos da
guarda.182 Deuteronômio 4.19 e 29.26 dão a entender que, quando Deus separou as
nações, ele lhes deu outros deuses para adorar, mas Israel foi terminantemente
proibido de adorar esses deuses.
O salmo 82 pode ter a solução "definitiva" para o problema de outros
deuses, mas admito que ele é muito difícil de interpretar. Será que o salmo 82 está
falando da morte dos "deuses"? O versículo 1 diz que Deus ( ’è