ARTIGO ARTICLE
Rotas críticas de mulheres em situação de
violência: depoimentos de mulheres e
operadores em Porto Alegre,
Rio Grande do Sul, Brasil
Critical trajectories of female victims of gender
violence: discourse analysis of women and staff
professionals in Porto Alegre, Rio Grande
do Sul State, Brazil
Stela Nazareth Meneghel 1
Fernanda Bairros 2
Betânia Mueller 3
Débora Monteiro 4
Lidiane Pellenz de Oliveira
Marceli Emer Collaziol 3
Escola de Enfermagem,
Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, Porto Alegre,
Brasil.
2 Faculdade de Medicina,
Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, Porto Alegre,
Brasil.
3 Universidade do Vale do
Rio dos Sinos, São Leopoldo,
Brasil.
4 Universidade Estadual do
Rio Grande do Sul, Porto
Alegre, Brasil.
1
Correspondência
S. N. Meneghel
Escola de Enfermagem,
Universidade Federal do Rio
Grande do Sul.
Rua São Manoel 930, Porto
Alegre, RS 90620-110, Brasil.
smeneghel@hotmail.com
3
Abstract
Introdução
This qualitative study aims to describe the trajectories of female victims of gender violence in
Porto Alegre, Rio Grande do Sul State, Brazil. The
methodology included in-depth interviews with
women and staff, attempting to map the critical
paths of women when they made the decision to
seek professional help. We interviewed 21 women
victims of gender violence and 25 professionals,
including law enforcement officials, health and
social workers, and nongovernmental organizations. The women’s trajectories in the services
were mapped, identifying facilitating factors and
obstacles in the process of breaking with gender
violence. The victims reported: pressure by professional staff to return to their marriages and
police inefficiency in providing protection. The
discourse of law enforcement officials and health
and social workers showed a range of different
concepts regarding violence, medicalization of
violence, and network fragmentation.
Em 1990, a violência contra a mulher foi reconhecida como um problema de saúde pública
pela Organização Mundial da Saúde (OMS), que
considera tal ação um obstáculo para o desenvolvimento socioeconômico e uma violação dos
direitos humanos 1.
A perspectiva de gênero para compreender a
violência contra a mulher resultou de um longo
processo de discussão, em que foi fundamental a
participação do movimento feminista. Trabalhar
com a categoria gênero significa assumir que a
violência decorre de relações hierárquicas de poder entre homens e mulheres na sociedade e não
se deve a doenças, problemas mentais, álcool/
drogas ou características inatas às pessoas 2.
Para estudar as violências perpetradas contra
as mulheres sob o prisma de gênero, utilizamos
o conceito de patriarcado adotado pelas feministas contemporâneas, entendendo-o como um
sistema sociopolítico que impregna e comanda o
conjunto das atividades humanas, coletivas e individuais, incluindo a diferenciação de papéis e
as hierarquias entre os sexos 3. Embora adotemos
a perspectiva do feminismo marxista, que tem
como central o conceito de patriarcado 4,5, não
ignoramos a contribuição dos estudos culturais
e o feminismo das diferenças.
Ao incorporar a violência como um tema de
pesquisa acadêmico houve a preocupação em
Violence Against Women; Domestic Violence;
Critical Route
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dimensionar o problema na sociedade. Atualmente, dados de pesquisa indicam uma elevada magnitude da violência perpetrada contra as
mulheres em cifras que oscilam entre 15% a 70%
em diferentes países 1,6.
No Brasil, a institucionalização das demandas sociais para atenção à violência contra as
mulheres propiciou a criação das delegacias da
mulher e das casas abrigo nos anos 1980; mais
recentemente, a Lei nº. 11.340/2006, chamada
Lei Maria da Penha, inovou ao criar os juizados
especiais para tratar essa questão 7. A lei conceitua a violência doméstica como qualquer ação
ou omissão baseada no gênero que cause morte,
lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e
dano moral ou patrimonial, no âmbito da unidade doméstica ou em qualquer relação íntima de
afeto, tendo por base as relações de gênero 8.
Dentre as iniciativas realizadas para compreender o fenômeno violência de gênero, destacamos a proposta desenvolvida pela Organização
Pan-Americana da Saúde (OPAS), denominada
rota crítica, que investigou o trajeto percorrido
pelas mulheres para romper com a violência em
dez países latino-americanos 9. Pioneiro, o estudo, realizado na década de 1980, não incluiu
o Brasil, fato que motivou esta pesquisa, baseada nos referenciais e métodos desenvolvidos na
experiência anterior, adaptando-os à realidade
brasileira.
A investigação sobre a rota crítica na América
Latina e Caribe constatou que existem poucos
recursos sociais, de saúde e comunitários efetivos para ajudar as mulheres a romper com a
situação de violência 9. No Brasil, o trajeto das
mulheres nos serviços que compõem a chamada rede de enfrentamento às violências tem sido
pouco avaliado, embora, no momento atual, vários grupos de pesquisa investiguem essas rotas
10,11,12,13,14. Em um estudo realizado na Região
Metropolitana de Porto Alegre, Rio Grande do
Sul, observou-se uma situação similar à dos países latino-americanos, ou seja, a trajetória das
mulheres que decidem romper com a violência
é longa, marcada por avanços e retrocessos, desprovida de apoio e, em muitas situações, ocorre
revitimização, causada pelos serviços que deveriam cuidar delas 15.
Portanto, esse é um problema atual que diz
respeito não apenas aos investigadores, mas aos
operadores sociais, tornando de extrema pertinência tanto a avaliação do trajeto das mulheres
pelos serviços que prestam atendimento, quanto
a reflexão crítica acerca dessas vivências. O objetivo principal desta pesquisa foi estabelecer a
trajetória de mulheres em situação de violência
de gênero, identificando os pontos críticos, propondo medidas de intervenção e fomentando a
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construção de redes de combate às violências na
cidade de Porto Alegre.
Trajeto metodológico
Este é um estudo de abordagem qualitativa, que
procurou estudar a violência contra a mulher na
sua dimensão singular, por meio dos significados dados pelos sujeitos a fatos do seu contexto
sociocultural. Este tipo de pesquisa permite melhor compreensão de fenômenos complexos e
únicos, das dimensões subjetivas e simbólicas,
assim como dos comportamentos, contextos e
processos vividos pelos atores sociais 16,17. O delineamento metodológico foi adaptado da investigação desenvolvida pela OPAS, A Rota Crítica de
Mulheres Afetadas pela Violência Intrafamiliar na
América Latina 9, e este artigo constitui um recorte da pesquisa maior denominada Rotas Críticas:
O Caminho das Mulheres no Enfrentamento das
Violências, ocorrida no período de 2008 a 2010.
A investigação foi realizada na cidade de
Porto Alegre. Foram entrevistadas mulheres em
situação de violência e operadores de instituições que atuam na problemática da violência de
gênero.
As informações foram obtidas por meio de
entrevistas em profundidade adaptadas do protocolo inicial da investigação realizada na América Latina 18. Os roteiros usados com as mulheres tinham por objetivo identificar o trajeto
realizado por elas quando decidem buscar ajuda, a percepção da efetividade do atendimento
recebido, assim como aspectos que facilitaram
ou dificultaram o processo de rompimento com
as violências. Os roteiros usados com os operadores procuravam identificar como se dava o
atendimento às mulheres e incluíram tipos de
encaminhamento, uso de protocolos e sistemas
de referência.
As mulheres entrevistadas haviam realizado
contato com serviços que compõem a rede de
atenção, sendo a maioria indicada pelos operadores. Foram entrevistadas 21 mulheres em
situação de violência, com idades entre 17 e
55 anos, pertencentes aos setores médios e de
baixa renda. A maioria tinha o Ensino Fundamental, eram solteiras, embora vivessem com
companheiro, e quase todas tinham filhos. No
momento da entrevista, sete trabalhavam; as
demais estavam em casa. Elas denunciaram a
ocorrência das violências física (4), psicológica
(3), física e psicológica (9), patrimonial (4) e sexual (1). As entrevistas foram feitas nas dependências da Delegacia da Mulher (6), do Juizado
de Violência Doméstica e Familiar (6), da Casa
de Passagem (3), do Centro de Referência a Víti-
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mas de Violência (3), da Escola Especial (2) e do
Conselho Tutelar (1).
Os operadores sociais foram selecionados
por sua representatividade nos serviços e interesse em participar. O contato se fez por meio
telefônico, momento em que as pesquisadoras
se apresentavam e convidavam para uma entrevista. Os operadores que constituíram a amostra
intencional atuavam no setor saúde – uma unidade básica de saúde (UBS) e três hospitais de referência; na educação – duas escolas municipais,
uma delas para jovens albergados; no setor policial – Delegacia da Mulher e Departamento Médico Legal; no setor jurídico – Ministério Público,
Defensoria Pública e Juizado Especial da Violência Familiar e Doméstica; na ação social e direitos humanos – Centro de Referência a Vítimas
de Violência e casa de passagem, e três ONGs.
Exerciam as funções de juíza, professora, médico, enfermeiro, escrivão, promotora, defensor
público, delegada, operadores e/ou profissionais
de serviços de ação social, jurídicos e de saúde,
além de militantes de organizações não governamentais. Ao todo, eram 25 operadores que lidam
com a temática da violência, sendo 21 mulheres
e 4 homens.
Os depoimentos dos operadores do setor
educacional não foram usados pelo fato de a
Secretaria de Educação do Município de Porto
Alegre não possuir programas dirigidos à violência contra a mulher. Os das ONGs também não
o foram porque estas não prestam atendimento
direto às usuárias.
As entrevistas foram gravadas, transcritas, e o
número total foi determinado pelo efeito de saturação das informações prestadas. O texto resultante dos depoimentos dos operadores e das mulheres foi utilizado para a construção de um corpus e, após a leitura exaustiva do material, foram
identificados e categorizados os depoimentos
das mulheres e dos operadores referentes à trajetória percorrida pelas mulheres. Esses excertos
foram categorizados como “rotas críticas”, sendo
subdivididos de acordo com o setor de atendimento: jurídico, policial, ação social, saúde, educação e ONGs. Optou-se por usar conjuntamente
os depoimentos dos operadores e das mulheres,
que mostram perspectivas complementares ou
divergentes em face de um mesmo fato. Foram
selecionados excertos sobre os atendimentos
prestados nos serviços e na rede, os fatores facilitadores e inibidores que influenciam as rotas
e as diferentes concepções de violência. Nessa
etapa da análise, utilizou-se o programa NVivo
(QSR International – Americas – Inc., Cambridge,
Estados Unidos).
Durante o processo de análise temática 16,19,
fizemos uso de algumas ferramentas da análise
crítica do discurso 20. Atentamos não apenas para os conteúdos das conversas, mas também para
o processo dialógico das entrevistas, que inclui
o uso da retórica para modular um fato, as contradições na linha argumentativa de um mesmo
falante e outros mecanismos usados na conversação, como as justificativas, o refazer a opinião
quando questionado, o salientar determinadas
palavras, a atitude de apoiar um fato e/ou pessoa
e, em seguida, contrapor-se estes.
Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de
Ética em Pesquisa da Universidade do Vale do
Rio dos Sinos; os participantes concordaram em
participar no estudo, leram e assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Todas
as mulheres entrevistadas já haviam iniciado a
rota crítica, isto é, haviam dado a conhecer a situação de violência, não incluindo situações em
que os operadores soubessem da existência da
violência, sem que a mulher houvesse tornado
público.
A rota crítica das mulheres em
Porto Alegre
A apresentação e discussão das informações sobre a rota crítica percorrida pelas mulheres em
Porto Alegre refere-se, principalmente, aos setores policial, jurídico e de saúde.
A rede de enfrentamento à violência contra
a mulher na cidade de Porto Alegre organiza-se
de modo tal, que uma mulher em situação de
violência geralmente se dirige a uma delegacia
de polícia ou da mulher. Neste local, é lavrado
o Boletim de Ocorrência, o qual fica à espera
da realização de inquérito durante seis meses.
Quando existe lesão corporal, a vítima é encaminhada ao Departamento Médico Legal e, se
houver pedido de medida protetiva, abre-se um
processo, que é enviado diretamente ao Juizado
da Violência Doméstica, onde a medida é deferida em 48 horas. Caso haja necessidade de um
defensor, a mulher é encaminhada ao Ministério
Público.
Além da Delegacia da Mulher, o primeiro
contato pode ocorrer em um serviço de saúde,
assistência social, centro de referência ou conselhos de direitos, principalmente o Conselho
Tutelar e os Centros de Referência da Assistência
Social. Há, na cidade, dois Centros de Referência
para Vítimas de Violência e uma Casa Abrigo para
albergar mulheres e filhos, cuja entrada ocorre
por encaminhamento da rede básica.
Em relação ao setor saúde, o Programa de Assistência às Mulheres Vítimas de Violência Sexual
disponibiliza atendimento em todas as UBS, em
três hospitais de referência e em três Unidades de
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Pronto Atendimento da Secretaria Municipal de
Saúde de Porto Alegre.
Nesta cidade, estão ainda situadas as Coordenadorias Estadual e Municipal da Mulher e diversas ONGs que prestam assessoria e informações.
Iniciando o processo
A rota das mulheres em situação de violência inicia com a decisão de romper o silêncio e denunciar. Ao mapear a rota percorrida pelas mulheres
de Porto Alegre, percebemos que a maior parte
das entrevistadas, antes de procurar um serviço,
precisa dar-se conta de que está sofrendo violência. Essa situação nem sempre é identificada, já
que muitas foram socializadas para aceitar como
naturais o uso da violência na resolução dos conflitos entre gêneros nas relações conjugais 2,21.
Normalmente, as mulheres relatam a violência vivida a pessoas próximas, familiares, amigos
ou colegas de trabalho, porém nem sempre encontram empatia e solidariedade, principalmente quando as concepções de gênero e família são
muito tradicionais. As famílias mostram uma atitude contraditória, entre apoiar a mulher e aconselhar a permanência na relação, reforçando a
posição feminina de subordinação e minimizando os conflitos entre os cônjuges, permanecendo
aqueles na esfera do privado 12.
Ainda assim, mesmo com limitações, familiares e amigos oferecem um espaço de proteção
e podem ser, junto com outros serviços comunitários, o principal suporte para resistir às violências.
O setor policial
Embora muitas vivam situações de violência de
longa data, a rota das mulheres inicia oficialmente quando o fato se torna público, geralmente
mediante registro de uma ocorrência em uma
delegacia. No Brasil, há, atualmente, mais de 300
Delegacias da Mulher; no entanto, Porto Alegre,
um município com mais de um milhão de habitantes, conta com apenas uma. As operadoras
das delegacias da mulher, embora se deem conta
dos limites nas ações que podem disponibilizar,
têm um discurso politizado acerca dos direitos
da mulher e do papel das delegacias 22,23,24:
“O papel da delegacia seria registrar a ocorrência, intimar o agressor pra ser ouvido, buscar
provas da lesão corporal e era isso. Só que nós estamos fazendo, além disso, um trabalho social que
está nos sobrecarregando (...) O papel da delegacia
seria única e exclusivamente criminal, mas não é
o que vem acontecendo, ainda mais depois da Lei
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Maria da Penha: a gente tem os acompanhamentos em casa para retirar os pertences, levar a um
albergue ou familiar. Isso a gente faz, está previsto
na lei e é positivo. Infelizmente, por ser o órgão que
fica sempre aberto, com funcionários plantonistas
para atender, tudo entra pela delegacia” (Operadora policial, Delegacia da Mulher).
Historicamente, o setor policial tem sido considerado negligente quanto à proteção de mulheres agredidas 25. No Brasil, as Delegacias da
Mulher são bastante conhecidas e procuradas 26,
mas também são os serviços que sofrem maior
quantidade de críticas. Todas as mulheres que
entrevistamos conheciam a Delegacia da Mulher
ou tinham estado em uma, deixando transparecer que possuem noção de direitos:
Pesquisadora: “Quando a senhora sofreu essa
violência, quais atitudes tomou?”.
Entrevistada: “Eu fui na delegacia da mulher,
registrei, fiz corpo [de] delito, fui no Pronto Socorro, fiz tudo que tinha que fazer, tudo por dentro da
lei” (Mulher em situação de violência).
Mesmo assim, algumas acreditavam que a realização do Boletim de Ocorrência na Delegacia
da Mulher significa a resolução de todo o problema.
“Eu fazia a ocorrência todinha ali [na Delegacia da Mulher] e achava que dali me chamariam”
(Mulher em situação de violência).
Um dos aspectos criticados em relação às Delegacias da Mulher refere-se à escuta focada na
queixa. Assim como os profissionais de saúde,
que, ao ouvir a história clínica das usuárias, não
se interessam por detalhes adicionais das narrativas, as policiais, ao buscar dados para a organização do inquérito, centram a escuta na queixa,
dirigindo a conversa, interrompendo quando
querem outras informações e desconsiderando
detalhes que lhes parecem supérfluos 27,28. Essa
é uma das dificuldades de comunicação ou um
ponto crítico na rota, o que já tem sido estudado
por vários pesquisadores e que também foi observado neste trabalho:
“Tu chega lá não tem ninguém, não tem um
suporte, elas simplesmente fazem o boletim e te
mandam embora e acabou o assunto, não é tomada uma providência na hora, pra proteger a
mulher no caso da mulher não ter pra onde ir...”
(Mulher em situação de violência).
A Lei Maria da Penha instituiu a aplicação de
medidas protetivas de urgência que incluem o
afastamento do agressor do domicílio e a proibição de este se aproximar da mulher, a fim
de preservar a integridade física e psicológica
da ofendida 8. Algumas entrevistadas expressaram descrédito na lei em virtude do descumprimento das medidas protetivas por parte dos
agressores:
ROTAS CRÍTICAS DE MULHERES EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA
“Qualquer coisa que acontecesse era para chamar a polícia e mostrar a medida protetiva, mas
até a polícia chegar deu né, já tá feito o dano (...)
Agora tu chama ligeiro e eles dizem que não têm
viatura, diz que não podem entrar dentro de casa,
certo? Aí o cara quebra a cara da gente e a gente tem que ficar quieta” (Mulher em situação de
violência).
A Lei Maria da Penha não tem sido aceita por
todos os setores da sociedade, principalmente
os mais conservadores, incluindo-se uma parcela de operadores do direito. O discurso descrito
a seguir é do operador do judiciário e manifesta uma crítica ao dispositivo legal, ressaltando
a periculosidade da medida protetiva, uma vez
que estimula o agressor a fazer uso da violência
e da força física. Ele não questionou os entraves
na aplicação da lei ou as deficiências no sistema
policial na efetiva proteção das mulheres, mas
colocou a responsabilidade na vítima, acusando-a de não avaliar criteriosamente o pedido de
proteção:
“A medida de afastamento contra o agressor
é uma medida extremamente severa na vida dos
dois, porque tem consequências tanto para a pessoa que vai ficar em casa, como para a pessoa que
vai sair. Depois que a polícia vai embora, ele mete
o pé na porta e arrebenta ou mata ela, e a mulher
fica desprotegida, ela não vai ficar com um policial na porta, então a protetiva é uma medida perigosa também. A gente não tem como saber o que
vai acontecer, todo mundo pede medida de afastamento, já tá na boca do povo. Às vezes, a violência
que elas se referem é a do casamento desgastado e
daí a solução desse casal não é aqui, simplesmente
retirar uma pessoa de casa” (Operador, Ministério
Público).
Os operadores da Delegacia da Mulher entrevistados salientaram o aumento no número
de ocorrências após a instauração da Lei Maria
da Penha, embora tenham afirmado que a maioria dos inquéritos tem sido arquivada e poucos
agressores foram sentenciados:
“Na verdade, quase 90% das ocorrências que
saem daqui e vão para audiência judicial, as mulheres acabam se retratando, desistindo e isso posterior a Lei Maria da Penha, não mudou quase
nada. Até o começo do ano, nenhum agressor havia sido condenado na vara da violência doméstica, que já tem um ano, ninguém foi condenado.
Ou seja, chegaram lá e fizeram um acordo, ou a
mulher desistiu” (Operador policial/Delegacia da
Mulher).
Por outro lado, ouvimos depoimentos sobre o
amparo prestado pela ação policial impactando
na cessação da violência:
Pesquisadora: “Que resultados obteve em sua
busca de ajuda? Conseguiu deter a violência?”.
Entrevistada: “Sim, depois que ele soube que
eu tinha vindo na Delegacia da Mulher não me
agrediu mais” (Mulher em situação de violência
física).
O setor jurídico
Após a denúncia efetuada na Delegacia da Mulher, é aberto um processo e enviado ao Ministério Público, onde é designado um defensor para
acompanhar as mulheres que não têm recursos.
Os defensores nem sempre se inteiram do processo ou conhecem a pessoa que irão representar antes da audiência. Em adição, existe muita
rotatividade entre eles, de modo que, durante o
processo, uma mulher pode ser atendida por vários profissionais. Diante desse procedimento, as
mulheres não se sentem devidamente ouvidas,
entendidas e amparadas:
“Falei pro advogado, e o advogado nada fez,
só que a justiça gratuita é muito suja e eles não fazem nada pra gente. A gente tem que comer o pão
que o diabo amassou, porque a gente não sabe ler
e é pobre, a mulher pobre e negra não tem direito
de falar, eles não deixam a gente falar” (Mulher
em situação de violência).
Os processos são agendados para audiência
pública no único Juizado da Violência Doméstica
e Familiar da cidade de Porto Alegre. As audiências são realizadas com periodicidade semanal e
duram, em média, dez minutos. Nessa situação,
as mulheres são inquiridas para decidir se querem manter a denúncia, reconciliar ou separar:
“No Foro, a juíza disse que tinha que fazer
acordo com ele, voltar para casa, porque no momento eu não tinha onde ficar, e a juíza disse que
as coisas iam melhorar. Ela insistiu que eu tinha
que voltar, que hoje em dia os casais têm que voltar. Dois meses, ele me botou pra rua de novo e
quando eu fui procurar a justiça disseram que já
tava arquivado” (Mulher em situação de violência patrimonial).
Na audiência, elas são levadas a tomar decisões rapidamente, havendo uma pressão para
que reconsiderem a queixa e retornem ao domicílio. Os operadores do judiciário, ao estimular a
permanência da mulher no domicílio conjugal,
evitando adotar medidas do âmbito criminal,
perpetram uma revitimização às mulheres e
deixam espaço para a manutenção das violências 23,29:
Pesquisadora: “Ele continua agredindo a senhora?”.
Entrevistada: “Continua agredindo, na parada do ônibus, em qualquer lugar, me chama de
tudo que é coisa e diz: ‘Vai te queixar na justiça,
tu mesma viu que a juíza fez com que tu voltasse
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pra dentro de casa! Eu faço de ti o que eu quiser. Se
eu te matar agora, eu vou dizer que tu que entrou
dentro de casa’. Tive que ficar quieta, minha filha,
e aguentar tudo para não dormir na rua” (Mulher
em situação de violência).
Na mediação efetuada no Juizado da Violência Doméstica, os agressores são enviados a
ONGs, como Amor Exigente, Alcoólicos Anônimos e outras, que oferecem atendimento para
doenças como alcoolismo, droga, depressão, ou
agressão. Dessa maneira, fica patente a concepção da violência de gênero como uma doença
decorrente de distúrbios mentais ou comportamentos de risco 2,30. Tal concepção implica a
necessidade de serviços médicos e de atenção
psicossocial para tratar as pessoas afetadas; portanto, muitas das audiências terminam com a
prescrição de que homens, mulheres ou ambos
frequentem um serviço de atenção à saúde:
“O imenso trabalho feito no juizado é a seleção, a triagem dos casos e encaminhamentos,
então esses que precisam de tratamento são encaminhados, dentro do possível, porque eu não
estou conseguindo o apoio da saúde. Os grupos de
auto-ajuda têm colaborado, os AA, os Narcóticos
Anônimos e o Amor Exigente. A gente tem notado
que a melhor intervenção para a violência é encaminhar para tratamento (...). A grande maioria dos processos termina nesta primeira audiência” (Operador jurídico, Juizado da Violência
Doméstica).
O encaminhamento aos serviços psicossociais ou de saúde sem assegurar a proteção à
mulher propicia a manutenção de situações de
violência e o descrédito, tanto na lei, quanto nos
serviços jurídicos e policiais 25,29. Este ponto crítico decorre de tratar-se a violência apenas em
suas manifestações individuais, retirando-se a
conotação social do problema.
O setor saúde
Do setor saúde seria esperado o papel de articulador da rede de enfrentamento à violência, porém os serviços de saúde ainda não constituem
uma porta de entrada efetiva para os casos em
questão 30,31.
Os operadores desses serviços formulam um
discurso ambivalente em relação às intervenções
sobre a violência de gênero. Eles conhecem a política de enfrentamento à violência contra a mulher, mas consideram que os serviços não estão
funcionando adequadamente e não se sentem
capacitados para atender os casos:
“A mulher vai ser encaminhada para os locais
de atendimento; se ela está com risco de ter fratura, nós fazemos o encaminhamento para o HPS
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[Hospital de Pronto-Socorro]. A gente orienta a
procurar a promotoria pública para as questões
de afastamento do agressor. Nós não temos acompanhamento, mas encaminhamos para a rede. A
gente sabe que é difícil; acompanhamento da mulher adulta não é fácil” (Operador saúde, UBS).
Um dos entrevistados questiona a própria
condição de hospital de referência pelo modo
como se está ofertando o serviço:
“Não adianta dizer que é um centro de referência e tu não ser referência coisa nenhuma, porque
referência tem que dar atendimento, tem que ser
uma estrutura pra atender o todo, e não assim. Eu
atendo de segunda à sexta-feira, até às cinco horas
da tarde, e como é que eu sou referência e atendo
só nesses horários?” (Operador saúde, hospital).
Há operadores que usam retórica defensiva,
responsabilizando e culpando a vítima, além de
transferirem a responsabilidade ao outro 32.
Pesquisador: “Como registram as situações de
violência contra a mulher?”.
Entrevistado: “A vigilância diagnostica, e nós
somos notificados depois. Eles gostariam que as
unidades acompanhassem esses casos, mas não
fazemos por falta de estrutura” (Operador saúde,
UBS).
Neste diálogo, o trabalhador de saúde referese à dificuldade de diagnóstico das violências no
território, já que essas situações são conhecidas
pela UBS através do Serviço de Vigilância, o qual
comunica ao local os casos que poderiam ter
sido identificados nesse nível de atuação. Verifica-se, portanto, que permanece a invisibilidade
de mulheres agredidas em unidades de atenção
básica 33,34.
Pesquisador: “Vocês fazem algum tipo de
acompanhamento, como ir até as casas?”.
Entrevistado: “Se for realmente necessário, a
gente vai, mas nós temos ido principalmente para
idosos e crianças, não tanto para mulheres vítimas de agressão. Até porque a gente já teve relatos
de casos que o pessoal foi muito mal recebido pela família. O pessoal foi agredido, aí depois disso
ninguém mais foi (...). O marido veio no posto e
fez um escândalo, queria bater em todo mundo,
veio com arma e tudo.” (Operador saúde, UBS).
O tom preponderante da resposta é o de justificativa, atribuindo aos autores das agressões
a responsabilidade pela não realização de ações
de acompanhamento. Os profissionais da saúde
mostram-se atemorizados em relação ao atendimento de violências e, apesar de toda a discussão
sobre esse tema, ainda o consideram um assunto
do âmbito privado.
Embora o setor saúde continue privilegiando
as intervenções pautadas no modelo biomédico
e a maioria das práticas se restrinja ao tratamento das lesões, ouvimos narrativas indicativas de
ROTAS CRÍTICAS DE MULHERES EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA
que, mesmo de modo pouco sistematizado, há
profissionais de saúde que diagnosticam a violência contra as mulheres e realizam medidas
de intervenção eficazes e oportunas, mostrando
sensibilidade, empatia e adequação:
“Foi a médica do posto que viu meu pescoço, porque eu escondia, tinha vergonha de todo
mundo. Ela disse: ‘Tu fica bem calma hoje, ajeita
tuas coisinhas, não fala nada pro teu marido e
amanhã tu vem aqui nesse horário’. Ela me tratou
super bem e, então, eu fui para o Departamento
Médico Legal, para a assistente social e aqui na
Casa Viva Maria” (Mulher em situação de violência física).
Observamos, não somente na fala dos profissionais da saúde, mas também na daqueles de
outros setores, que muitas vezes eles se limitam a
ouvir a queixa da mulher e a encaminhá-la a outros locais. Acreditamos que a escuta pode significar uma ação qualificada quando uma mulher
precisa narrar a sua história e tornar pública uma
violência 35,36; todavia, pode ser apenas um paliativo quando o serviço não está apto a fornecer a
atenção que seria de sua competência, fazendo
com que a usuária repita sua história apenas para
mandá-la a outro lugar, sem responsabilizar-se
pelo atendimento. O fato de ter que dirigir-se a
inúmeros locais, contar e recontar as suas histórias, ter a veracidade das informações questionadas, sofrer procedimentos em duplicidade ou
desnecessários, é outro ponto crítico da rota das
mulheres, uma situação debatida e criticada pelos movimentos sociais de mulheres há um longo
tempo.
A rota percorrida pelas mulheres
de Porto Alegre
No estudo da OPAS sobre a rota crítica 9, foi
identificada uma série de fatores facilitadores
e inibidores da decisão de romper com as violências. Os facilitadores compreendem atitudes
pessoais, que vão desde o cansaço por anos de
humilhações ou a indignação pelo abuso de um
filho, até a percepção do incremento na violência e do risco iminente de vida. Dentre as situações que dificultam o rompimento, estão o medo, a culpa, a vergonha, as pressões familiares,
as limitações materiais e a ineficácia institucional, compreendendo as atitudes negativas dos
operadores, a burocracia, a falta de orientação,
a revitimização.
Na pesquisa realizada em Porto Alegre, as
mulheres citaram como fatores facilitadores a
própria existência da Lei Maria da Penha, o atendimento satisfatório de alguns operadores e a rapidez de alguns procedimentos.
Como limitadores, elas criticaram a dificuldade de compreender as orientações e processos, a fragmentação dos serviços que compõem
a rede e a ausência de um centro onde pudessem
receber atenção integral. Outros pontos críticos
foram a pressão dos operadores jurídicos para
que as agredidas permaneçam na relação conjugal e a incapacidade da polícia em assegurar
às demandantes a proteção de medidas protetivas. Já foi observado que há situações em que
os serviços de apoio jurídico-legais, por meio
da pressão, podem retirar o poder das mulheres
que atendem para que estas adotem determinados comportamentos ou refaçam suas histórias
para moldar-se a um protocolo ou documento
legal 24,29.
Somem-se aos fatores inibidores percebidos
pelas mulheres outros identificados na fala dos
operadores, incluindo a concepção da violência
como doença que direciona o foco para o tratamento, isentando o agressor de responsabilidade
pelos seus atos e expondo as mulheres a violências adicionais. Ademais, sabe-se que muitas das
que fracassaram nas primeiras tentativas, levarão
muito tempo até se fortalecerem para reiniciar a
rota 9.
No campo da saúde, as equipes que entrevistamos não se sentem capazes de prestar atenção
integral às mulheres em situação de violência
conjugal, limitando-se a tratar as lesões físicas e
a referi-las ao setor policial. Apesar da existência
de um Sistema de Notificação para as Violências,
não existem protocolos específicos que avaliem o
risco iminente e não se disponibilizam sistematicamente atividades de cunho individual ou coletivo 37 que possam promover o fortalecimento
emocional destas mulheres.
Um descompasso que sentimos entre a rota
das mulheres e a rota ofertada pelos serviços é a
divergência nos tempos dos interlocutores. Há situações que demandam uma ação rápida e eficaz
dos serviços, como o deferimento e a aplicação
de uma medida protetiva, o que pode assegurar a sobrevivência de uma mulher ameaçada de
morte. Em outros momentos, é preciso dar um
tempo maior à mulher para que ela se fortaleça
antes de continuar o caminho, sem pressionála para resolver sua vida em apenas uma audiência. Perceber a violência como uma violação
ética dos direitos humanos das mulheres 38 pode ajudar os operadores a atuar nas iniquidades
sociais de gênero, as quais constituem a raiz do
problema, e não apenas procurar minimizar as
suas consequências e efeitos em nível individual
e comportamental.
Assim como outros investigadores 12,14, percebemos que não é possível identificar um fluxo
preciso, um itinerário único ou mais eficiente; ao
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contrário, o caminho é diverso para cada história
relatada. A maioria das mulheres entrevistadas
iniciou a rota fazendo uma ocorrência na Delegacia da Mulher; algumas estavam sendo ouvidas
no juizado; outras estavam em vias de desistir ou
haviam retornado ao domicílio conjugal; outras
ainda estavam dando seguimento ao processo.
Enfim, a resistência das mulheres na longa rota
que precisam percorrer depende da intersecção
entre as iniquidades sociais produzidas pelos
sistemas classista, patriarcal e racista e a singularidade/subjetividade de cada uma 25. Ou, como
elas mesmas disseram:
“Para te falar a verdade, acho que eu não tive muito apoio, eu contei comigo mesma, com a
minha coragem, com a minha vontade de decidir
fazer as coisas sozinha e era isso” (Mulher em situação de violência).
Ao término desta pesquisa sobre a rota crítica
das mulheres na cidade de Porto Alegre, entendemos que acompanhar o trajeto delas pelos serviços pode contribuir para um melhor entendimento sobre os pontos críticos que dificultam o
seu itinerário e a efetivação das políticas públicas
empenhadas na superação das violências.
Resumo
Colaboradores
Esta pesquisa de abordagem qualitativa tem por objetivo estabelecer a trajetória de mulheres em situação
de violência de gênero na cidade de Porto Alegre, Rio
Grande do Sul, Brasil. A metodologia incluiu entrevistas em profundidade com mulheres e operadores sociais, procurando mapear a rota crítica das mulheres
quando decidem procurar ajuda. Foram entrevistadas
21 mulheres em situação de violência e 25 operadores
das áreas jurídica, policial, ação social, saúde e organizações não governamentais. A rota percorrida pelas
mulheres nos serviços foi mapeada e analisada, sendo
identificados aspectos facilitadores e limitadores no
processo de romper com a violência. As mulheres relataram a pressão dos operadores para que retornem ao
casamento e a ineficiência do setor policial para darlhes proteção. Nos depoimentos dos operadores, perceberam-se as diferentes concepções de violência entre os
serviços, a medicalização da violência e a fragmentação da rede.
S. N. Meneghel coordenou a pesquisa e participou da
concepção e elaboração do artigo. F. Bairros, B. Mueller,
D. Monteiro, L. P. Oliveira e M. E. Collaziol contribuíram
na concepção e elaboração do artigo.
Violência Contra a Mulher; Violência Doméstica; Rota
Crítica
Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 27(4):743-752, abr, 2011
Agradecimentos
Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico
e Tecnológico (CNPq; Edital Universal 2007, processo:
472238/2007-8).
ROTAS CRÍTICAS DE MULHERES EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA
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Recebido em 19/Mar/2010
Versão final reapresentada em 29/Dez/2010
Aprovado em 01/Fev/2011