Pequenos picadores: mosquitos como “mais-que-vetores” no alto sertão sergipano
Túllio Dias da Silva Maia1
Resumo: Resultado de uma pesquisa de campo de aproximadamente 40 dias distribuídos em 3 meses,
este trabalho é parte de uma dissertação ainda em andamento. Trata-se de uma etnografia realizada
no Monumento Natural (MONA) Grota do Angico, unidade de conservação (UC) situada no alto
sertão sergipano. Os desdobramentos das relações efetivas entre populações humanas e mosquitos
são o fio condutor deste trabalho. Na Unidade, não há registros de arboviroses, o que não exclui a
possibilidade de suas ocorrências. Somado a isso, elas não foram percebidas ou mencionadas pelos
sertanejos como realidade local, o que me fez propor uma abordagem mais-que-vetora para a relação
entre eles e os insetos em questão. Constituindo uma paisagem emaranhada de seres vivos ou não,
humanos ou não, o MONA está sob constante visita de pesquisadores e turistas do mundo inteiro,
além dos agentes do estado – todos, em geral, mencionados pelos sertanejos como os hômi da rua.
Entre a preservação e o extermínio de espécies, a rua determina uma série de condutas a serem
seguidas pelos sertanejos que habitam o local. Os insetos, então, foram a minha porta de entrada para
reflexões sobre questões que emergiram em campo, dentre as quais: a composição dos mosquitos na
paisagem e a sua luta, seja lutar por sobreviver no ambiente naturalmente adverso que é a caatinga
ou lutar contra o local a que são alocados: parasitas e pragas a serem exterminadas. Este trabalho é,
portanto, um esforço de se “falar com” mosquitos, tomando como ponto de partida a maneira como
os sertanejos pensam esses insetos. Tais concepções nativas, portanto, potencialmente subsidiam
diálogos com uma ciência comprometida a pensar a era de extinções em massa.
Palavras-chaves: relações humano-animal – insetos vetores – sertanejos
1
Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de São Carlos
(PPGAS/UFScar)
Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684
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Apresentação
Este estudo é decorrente de uma dissertação de mestrado ainda em andamento. Fruto de uma
colaboração entre Laboratório de Antropologia das Relações Humano-Animal (Humanimália) da
Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e o Laboratório de Entomologia e Parasitologia
Tropical (LEPaT) da Universidade Federal de Sergipe (UFS), este trabalho subsidiou-se de uma
incursão em campo – de aproximadamente 40 dias distribuídos em 3 meses – na zona de
amortecimento2 do Monumento Natural (MONA) Grota do Angico, unidade de conservação (UC)
situada no alto sertão sergipano, nordeste brasileiro. Propus-me, então, a realizar uma etnografia das
relações entre os sertanejos e os mosquitos3que lá coabitam. Uma das motivações para tal é que o
sertão nordestino tem sido alvo de diversas preocupações relacionadas a arboviroses4 (DINIZ, 2016)
e o monitoramento da área na perspectiva de levantamento de espécies silvestres de mosquitos e os
possíveis arbovírus a elas associadas foi uma das demandas apresentadas (CRUZ, 2013; MARTEIS,
2016)5. Embora haja mais de 20 espécies de mosquitos identificadas (Ibid.), não foram encontrados
arbovírus em circulação, o que não exclui a possibilidade de ocorrência (MARTEIS, comunicação
pessoal). Foi essa incerteza de ocorrências que impulsionou a minha hipótese sobre mosquitos sendo
2
“Entorno de uma unidade de conservação, onde as atividades humanas estão sujeitas a normas e restrições
específicas, com o propósito de minimizar os impactos negativos sobre a unidade” (BRASIL. Lei 9.985, 2000, art. 225).
3
Em termos taxonômicos, apenas os insetos pertencentes à família Culicidae são considerados mosquitos.
Dentre suas características: serem delgados, possuírem patas e probóscides longas, além de cerdas e escamas ao longo
do corpo, as quais dão a coloração característica de cada espécie (CLEMENTS, 1992; FOSTER; WALKER, 2002;
HARBACH, 2007). Seu domínio semântico popular ou de senso comum, no entanto, engloba outros espécimes
distribuídos em diversas famílias taxonômicas. Neste artigo, quando o termo aparecer em itálico, será referente ao
domínio semântico específico do MONA. Todos os termos nativos aparecerão em itálico.
4
Doenças ocasionadas por arbovírus: vírus transmitidos por artrópodes – filo ao qual pertencem os insetos,
portanto os mosquitos. Entre os arbovírus de maior preocupação no Brasil: vírus da dengue, da febre amarela, zika e
chikungunya.
5
Pesquisas vinculadas ao projeto Mosquitos da Caatinga, da Universidade Federal de Sergipe (UFS), que
contou com a colaboração da Universidade Federal do Rio grande do Norte (UFRN) e Universidade de São Paulo
(USP). Com o objetivo de fazer o levantamento da biodiversidade de mosquitos e prováveis arboviroses no semiárido
nordestino, o projeto contava com bolsistas em níveis de graduação e pós-graduação. Participei como apoiador técnico,
durante e depois da minha graduação de bacharelado em ciências biológicas na UFS, no trabalho “Mosquitos da
Caatinga: aspectos ecológicos e importância epidemiológica da fauna Culicidae do semiárido brasileiro” (MARTEIS,
2016). Hoje, “Mosquitos da Caatinga” opera como uma rede que integra vários projetos. Para saber mais sobre a rede:
http://mosquitosdacaatinga.wixsite.com/mosquitos-caatinga
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percebidos pelos sertanejos mais pelo incômodo dos pousos, zumbidos e picadas que pela potencial
veiculação de patógenos e, consequentemente, favoreceu a elaboração de uma abordagem mais-quevetora na relação entre os humanos e os insetos em questão.
Uma das perspectivas teóricas que fundamentou esta pesquisa foi a etnografia multiespecífica,
entendida por “zones where lines separating nature from culture have broken down, where
encounters between Homo sapiens and other beings generate mutual ecologies and coproduced
niches” (KIRKSEY; HELMREICH, 2011, p. 546). O nicho coproduzido que aqui apresento é o sertão
regido pela influência do clima semiárido, das altas temperaturas e caracterizado pelo bioma caatinga.
Ele possui uma composição própria de espécies, reconhecidas ou não pela taxonomia. Embora numa
incursão etnográfica sempre corra o risco de impor conceitos antropológicos aos dados do campo, o
esforço de aqui aproximar essas duas situações reconhece que não há uma fidedignidade entre elas.
Não acho que seja tão forçado, no entanto, dizer que de maneira geral, o discurso sertanejo parecia
trazer o que Tim Ingold (2000) denomina emaranhado (entanglement), em que a composição
organismo-ambiente se dá de tal forma que por vezes é impossível definir os limites de um e do outro.
Os pequenos insetos aqui tratados também foram englobados nessa composição. É sobre os
desdobramentos dessas composições emaranhadas numa paisagem “em conservação”6 e seu contraste
com uma abordagem científica padrão que este texto trata. Nesse sentido, os mosquitos, mais-quevetores, apareceram como sujeitos de agentividades próprias na composição imbricada sertanejocaatinga.
Incômodas companhias: mosquitos da caatinga
O início do século XX trouxe-nos um marco interessante na história da epidemiologia, pois
entravam em cena importantes atores das narrativas relacionadas à saúde pública: pernilongos,
muriçocas, carapanãs, aqui tratados por mosquitos. Quando, na primeira década do século passado, o
sanitarista Oswaldo Cruz identificou os pequenos insetos como responsáveis pela transmissão dos
vírus da febre amarela na Amazônia (LÖWY, 2006), os olhares sobre esses seres favoreceram
numerosas práticas, condutas e significações populares, científicas, estatais, dentre tantas outras,
6
Os termos e conceitos próprios das ciências naturais aparecerão entre aspas no decorrer deste texto.
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institucionais ou não, em todo o mundo. Pouco mais de um século após a descoberta de Oswaldo
Cruz, a associação entre os mosquitos e a transmissão de patógenos 7 é evidenciada em medidas
governamentais no combate (outrora chamado de controle) aos vetores, além de ter entrado no
cotidiano de diversos países através das campanhas televisivas e dos outdoors nas cidades nos
advertindo que “Combater o mosquito é um dever de todos”8.
O sertão semiárido passa a ser um significativo palco nas preocupações relacionadas a
arboviroses. Um dos motivos para tal são as secas frequentes, uma vez que o armazenamento de água
por vezes sem a devida precaução potencialmente favorece a proliferação do Aedes aegypti, vetor dos
vírus da dengue, zika, chikungunya e febre amarela9. No MONA e em seu entorno, no entanto, não
há ocorrência do Ae. aegypti, pois a sua distribuição atualmente é amplamente associada à
urbanização. Em seu lugar, protagonizaram os seguintes pequenos picadores, de acordo com as
denominações nativas: muriçocas (culicídeos), borrachudos
10
(flebotomíneos), poivinhas
(ceratopogonídeos) e mutucas (tabanídeos). Contudo, é importante evidenciar que no MONA há
outros potenciais vetores de patógenos – que não o Ae. aegypti – relacionados a doenças como a
encefalite rocio, como os Ochlerotatus scapularis; febre amarela, como os do gênero Haemagogus
sp. e malária, como os da subfamília Anofelinae (CRUZ, 2013; MARTEIS, 2016). Além deles,
destaco aqui a ocorrência de potenciais vetores da leishmaniose visceral – em humanos ou caninos –
, os borrachudos (flebotomíneos) tão abundantemente presentes nos domicílios.
7
Acho pertinente destacar o equívoco bastante comum, de se escrever transmissão de doenças. Num primeiro
momento, escrevi dessa forma e aproveito aqui para agradecer à estimada amiga Profª Drª Letícia Marteis pela leitura
atenta e pelas recomendações. Mosquitos transmitem patógenos, que, por sua vez, ocasionam (ou não) doenças.
8
Há que se destacar aqui que em termos práticos, o que as instituições têm chamado de combate, trata-se de
fato de controle, com a perspectiva de reduzir as populações de mosquitos, não de eliminá-las. O termo “combate”, no
entanto, está, em termos institucionais, ligado às doenças, não aos mosquitos, mas a maneira como a informação é
conduzida favorece uma miscelânea conceitual que abre espaço para uma perspectiva verticalizada e militarizada (com
intervenção direta das forças armadas, sobretudo) num então combate aos vetores.
9
Há várias notícias relacionadas em periódicos de ampla divulgação. Destaco aqui:
http://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2016/01/31/subnotificacao-e-agua-mal-estocada-desafiamcombate-ao-aedes-no-sertao.htm . Além disso, o livro de Debora Diniz (2016) intitulado “Zika: do sertão nordestino à
ameaça global” aborda diretamente o assunto da doença no semiárido brasileiro.
10
Importante destacar que no MONA, o termo borrachudo refere-se aos flebotomíneos, não aos simuliídeos,
como é comum na literatura médica.
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Em termos da abordagem científica padrão, o monitoramento da área, então, justifica-se pela
ocorrência de espécies associadas a patógenos de grande importância para saúde pública. Uma vez
registrada a ocorrência de potenciais vetores, há que se destacar que, no MONA, além do costume
por parte dos sertanejos de se acumular água em reservatórios, existem os criadouros naturais de
mosquitos como os olhos d’água e estruturas que acumulam a água, como rochas, ocos de árvores e
bromélias (CRUZ, 2013; MARTEIS, 2016). É válido falar também sobre a criação de animais
domésticos, como o gado (bovino ou ovino) e a avicultura como fatores favoráveis à infestação de
flebotomíneos. Se a “importância médica” dos mosquitos de ocorrência no MONA soa como
justificativa plausível para a realização de uma etnografia, havia uma premissa que persistia nos meus
pensamentos a respeito dos pequenos: antes de serem vetores, esses insetos são picadores.
O tipo de elaboração que privilegia os incômodos das picadas – indo na contramão do discurso
científico padrão, a propósito – iniciou no meu trabalho de conclusão de curso, quando constatei que,
numa área endêmica para a leishmaniose visceral, em Aracaju, Sergipe, as pessoas reconheciam os
flebotomíneos devido ao seu comportamento e, sobretudo à peculiaridade da dor ocasionada pela sua
picada, sem que a sua potencial vetoração fosse sequer mencionada (MAIA, 2013). No mesmo
sentido, os Cuiva, na divisa entre a Colômbia e a Venezuela, por exemplo, reconhecem e diferenciam
espécies de mosquitos, mas não os associam à transmissão de patógenos (SUMABILA; LUGO,
2007). Há de se questionar, portanto, uma abordagem que compulsoriamente aloca os mosquitos à
posição de (necessariamente) vetores e, principalmente, o tipo de diálogo que ela acaba por
estabelecer com as populações afetadas. No controle da malária em países endêmicos, por exemplo,
as pessoas supostamente usam os mosquiteiros entregues pelas agências públicas de saúde para
protegerem-se das picadas e não dos patógenos potencialmente transmitidos. Dentre os fatores que
justificam tais comportamentos, o desconforto relacionado ao calor e a efeitos de irritação do
inseticida (GEMADE; EARLAND, 2013), além de se observar que o uso também cai quando há
menor densidade de mosquitos (GALVIN et al, 2011; PULFORD et al, 2011). Ainda sobre a questão
das doenças, Saavedra (2013), numa investigação baseada na memória de trabalhadores rurais das
regiões arrozeiras dos vales do Tejo e do Sado, em Portugal no século passado, notou que a malária
(doença endêmica dos locais) era mencionada por eles sem a ênfase que as campanhas de saúde
costumavam dar.
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Julgo pertinente mencionar aqui que, de maneira geral, assumo uma percepção similar à de
Monteiro, Shelley-Egan e Dratwa (2017) de que há uma irresponsabilidade do poder público, que
aponta soluções para os problemas baseadas apenas num discurso técnico-científico e oblitera outros
debates relacionados, como, por exemplo, a questão do aborto que a zika, através da microcefalia,
ocasionalmente trouxe. Sobre a questão da dengue no Brasil, mesmo com todo o investimento em
campanhas, nos bairros mais pobres de São José do Rio Preto, São Paulo, por exemplo, a doença não
é encarada pela população como problema central: pelo contrário, é secundarizada em detrimento de
problemas como a falta de estrutura e saneamento básico, cobrando-se dos agentes de saúde soluções
imediatas para tais demandas (CHIARAVALLOTI NETO et al, 2007). Debruçar-me sobre essas
leituras, além das experiências empíricas e de pesquisa no LEPaT (MAIA, 2013), fizeram-me
elaborar a hipótese de que mosquitos, antes de serem vetores, são fundamentalmente picadores na
percepção dos sertanejos do MONA.
Há uma ponderação que merece ser aqui destacada: o termo “pequenos picadores” por mim
elaborado foi fruto de uma forte motivação a evidenciar as picadas como ponto de partida para o
argumento de “antes de vetores, picadores”. Tal engessamento na elaboração acabou por dificultar
previsões relacionadas às limitações desse termo. O fato é que em campo, deparei-me com os
mosquitos funcionários, assim chamados por anunciarem os picadores: em termos taxonômicos,
pequenas moscas da família Chloropidae (as moscas lambe olhos), (potenciais) vetores mecânicos
relacionados a conjuntivite (TONDELLA et al, 1994) em todas as regiões do Brasil (FRANCISCO,
2005), sendo considerados fatores de risco na transmissão do tracoma (MILLER; GALLEGO;
RODRIGUEZ, 2010). Em termos nativos, os mosquitos funcionários, embora não piquem, são
incômodos devido à quantidade de indivíduos pousando nos olhos de quem quer que caminhe às
margens do rio entre o crepúsculo e a aurora.
Mantive o foco nas picadas por duas razões: a primeira delas é que mesmo os mosquitos
funcionários foram assim chamados em relação aos (ou em função dos) picadores. A segunda é que,
no decorrer da vivência, pude elaborar o conceito sertanejo de luta, numa caatinga em que cada ser,
vivo ou não, humano ou não, apresenta a sua. Nesse sentido, foi dito que as rochas mantêm a sua luta
fixando-se ao solo, os predadores como os gatos e as raposas caçam; as plantas lutam na incessante
busca por água através de suas raízes. A luta dos mosquitos é chupar o sangue e, no caso dos
mosquitos da caatinga, diferentemente dos da cidade, resistem às altas temperaturas. Mantive,
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portanto, a centralidade de esforços na abordagem das picadas como principal agência a gerar
incômodo. A minha hipótese foi, no entanto, se moldando de acordo com práticas e percepções
êmicas fazendo com que a abordagem mais-que-vetora tivesse uma conotação que parte de uma
realidade local, sem grandes pretensões de se tornar totalizante, mas pertinente o suficiente para ser
amplamente divulgada.
Mosquitos na paisagem
Fazer parte da zona de amortecimento é estar, inevitavelmente, sujeito cotidianamente a
determinações estatais relativas ao usufruto dos recursos naturais. Essas determinações vinham
daqueles que os sertanejos chamavam de os hômi da rua11– categoria ampla, composta sobretudo por
prefeitura, secretarias de saúde e meio ambiente, governo do estado, dentre tantos outros órgãos
públicos, além de pesquisadores de todo o mundo – os quais, via de regra, impunham uma lógica
“conservacionista”. Essa lógica é baseada numa corrente teórica com gênese nos EUA e é seguida até
hoje por alguns gestores de secretarias de meio ambiente. Nela, segundo Diegues (2001), “qualquer
intervenção humana na natureza é intrinsecamente negativa” (DIEGUES, 2001, p. 37).
As reflexões aqui propostas vêm no sentido de que as justificativas para tais imposições da
rua eram fundamentadas num suposto respeito a à biodiversidade. Esta, composta de centenas de
espécies descritas, sendo algumas delas endêmicas, (SEMAHR, [200?], SILVA; PRATA; MELLO,
2013) coexistindo com pequenos agricultores, artesãos e pescadores artesanais. Meus interlocutores
em campo foram sertanejos que realizavam serviços para um estabelecimento presente na zona de
amortecimento e desenvolviam atividades de pequena agricultura, pesca artesanal e transporte fluvial.
Uma das perguntas centrais deste trabalho é: qual o papel desempenhado pelos mosquitos no
já mencionado respeito à biodiversidade? Em último grau, qual o seu lugar na composição da
paisagem? Mais que um mero cenário estático, a paisagem referida pelos sertanejos no MONA era a
de uma caatinga composta por seres em correlação onde cada um tem a sua luta. O conceito nativo
de paisagem remeteu-me ao de Metzger (2001), que a define como “um mosaico heterogêneo
formado por unidades interativas, sendo esta heterogeneidade existente para pelo menos um fator,
11
Maneira como se referiam às cidades urbanizadas.
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segundo um observador e numa determinada escala de observação” (METZGER, 2001, p. 4). Pedro
Silveira (2009), em sua etnografia na zona rural do município de São Luiz do Paraitinga, na região
do Vale do Paraíba paulista, interpretou a constituição dos pares organismo-ambiente como “híbridos
da paisagem”. Ele justifica que:
O uso dessa noção de paisagem refere-se à ideia de que é possível tratar do social e do
natural de maneira imbricada e simétrica. A ideia de paisagem remete,
necessariamente, a um híbrido de natureza e cultura. Parto também da perspectiva de
que diferentes paisagens podem construir-se ao se tomar como base diferentes grupos
de agentes discorrendo sobre uma mesma referência espacial (Ibid, pp. 85-86).
Intuí, então, que uma representação gráfica pertinente da referida paisagem traria duas
expressões artísticas a princípio contraditórias: o mosaico e a aquarela. Recorro a tais expressões
porque as formas exatas do mosaico delimitam as particularidades dos agentes. Numa caatinga onde,
segundo os sertanejos, cada um tem sua luta, definir esses sujeitos contempla a perspectiva
delimitadora de um mosaico. Levando em conta que essas lutas não se dão de maneira isolada e
interagem com outras lutas, a técnica da aquarela – recusando restringir-se aos limites das formas
geométricas – representa as cores de uma caatinga numa luta dinâmica, impondo, ela mesma,
agências a um imbricado de seres, como dito, vivos ou não, humanos ou não.
Um dos meus estranhamentos em campo é que os mosquitos pareciam estar num cotidiano tão
óbvio dos sertanejos que raramente eram sequer mencionados, mesmo nas noites mais quentes, nas
quais espera-se maior intensidade nas atividades dos insetos. Embora presentes nos cômodos, não
percebi, durante a incursão, o uso de mosquiteiros pelos sertanejos que me abrigaram. Além disso,
sua potencial vetoração, embora mencionada, pois picam tudo que é bicho, segundo um dos
interlocutores, foi deixada em segundo plano com relação à luta dos mosquitos: chupar o sangue. É
sobre mosquitos compondo uma paisagem, para além da sua potencial vetoração, que se baseia a
abordagem mais-que-vetora. Fundamento tal argumento partindo da concepção nativa de que doença
é coisa da rua. Segundo os sertanejos, então, os mosquitos da caatinga são naturais e, portanto, não
transmitem doenças. Além disso, há de se refletir a respeito da circulação não comprovada de
arboviroses no MONA. Se por um lado os estudos a respeito da ecologia e etologia de culicídeos
justificam-se pela sua “importância médica” (GUIMARÃES et al, 2003; GOUVEIA DE ALMEIDA,
2011), por outro, há diferentes aspectos – que não o potencial para transmitir patógenos ou até mesmo
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a hematofagia – que ganham relevância, sobretudo no MONA. Os estudos dos mosquitos por lá,
embora mencionem outros comportamentos a eles relacionados, são justificados sob a égide da
prevenção de epidemias, ressaltando, portanto, a hematofagia (CRUZ, 2013; MARTEIS, 2016). Uma
vez que é o repasto sanguíneo a agência que evidencia a “importância médica” dos mosquitos, seja
pela transmissão de patógenos ou pelos incômodos das picadas, justificar estudos epidemiológicos
através dela soa pertinente.
O que trago aqui como argumento, entretanto, é que, embora as agências vetoriais sejam
incontestavelmente significativas, sobretudo nos cotidianos das diversas sociedades – os quais
fundamentaram, a propósito, belíssimas reflexões na antropologia (BEISEL, 2010; ANAYA, 2012;
NADING, 2012; SAAVEDRA, 2013; SEGATA, 2016; VANDER VELDEN, 2016) –, há que se
considerar outras agentividades: sua competência como visitante floral (WINDER; SILVA, 1972;
CHAVES, 2015), o hábito predador (inclusive de outros culicídeos) de larvas dos mosquitos do
gênero Toxorhynchites sp. (AMALRAJ; SILVAGNANAME; DAS, 2005; HONÓRIO et al, 2007),
único representante com fêmeas não hematófagas dessa família, sendo fitófagas na fase adulta; além
do fato de serem a base da cadeia trófica em determinados ambientes (URBINATTI; SENDACZ;
NATAL, 2001; OTTO, 2006; VELLUDO, 2011; SANTOS, 2015). Na sua relação com humanos,
evidencio aqui o fato de serem incômodos devido aos pousos, zumbidos e às picadas, não
necessariamente à transmissão de patógenos.
Levar a sério o incômodo causado por mosquitos dissociado da sua vetoração é, em alguma
escala, reafirmar o conceito de saúde da Organização Mundial de Saúde (OMS) de que trata-se não
apenas da ausência de doença, mas de uma “situação de perfeito bem-estar físico, mental e social”
(SEGRE; FERRAZ, 1997, p. 539). Segre e Ferraz (1997) ponderam esse conceito, uma vez que
“perfeição” e “bem-estar” trazem um “subjetivismo” que contraria o “objetivismo” com o qual a
Saúde Coletiva trabalha (Ibid.). Não creio que seja forçado, no entanto, relacionar o bem-estar às
garantias de oito horas diárias de sono reparador, por exemplo, diretamente afetado pela atividade
dos pequenos de atividade noturna. Trago, então, para elucidar meu argumento o Culex
quinquefasciatus. Esse culicídeo de hábito noturno é o mais comum, junto ao Aedes aegypti (de hábito
diurno), nas zonas urbanas, adaptado a ambientes domésticos, sobretudo em locais com água poluída,
fontes ou tanques (LEE et al, 1989), pois necessita de águas ricas em matéria orgânica para a
proliferação (BRASIL, 2011).
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Assim, notar na biologia do Cx. quinquefasciatus a necessidade de água com excesso de
matéria orgânica para desenvolvimento das larvas é, em alguma escala, presumir a abundância desses
insetos em regiões com demandas por saneamento básico, em que esgoto e lixo são um problema. É
assumir, portanto, que os efeitos das picadas e zumbidos dessa espécie são sentidos com maior
intensidade nas periferias e zonas mais pobres das cidades. Embora haja preocupação com o que o
Ministério da Saúde chama de fator de incômodo (BRASIL, 2011), não parecem estar claras na
agenda e nos discursos as preocupações voltadas às mazelas relacionadas ao bem-estar das
comunidades expostas mais intensamente aos mosquitos12.
É nesse dilema que situa-se o meu problema. Ora, pensar mosquitos na zona de amortecimento
do MONA é presumir que há uma ambiguidade nas condutas científica e estatal ao abordarem
diferentes espécies. O estado, legitimado pela ciência, impõe regras e condutas aos sertanejos baseado
na prerrogativa da “preservação”. Ao mesmo tempo, sobretudo nas zonas urbanas, estimula o
extermínio desses insetos. Essa ambiguidade que, em outros termos, determina quais espécies devem
ser salvas, quais devem ser exterminadas, confronta as práticas nativas de encarar mosquitos apenas
como seres que estão realizando a sua luta de chupar o sangue. Tal percepção nativa sugeriu-me
alocar os insetos ao papel, não de vetores, mas de antagonistas ao bem-estar de diversos grupos de
vertebrados. Pensar, assim, os mosquitos e sua luta leva a duas reflexões complementares: lutar por
e lutar contra. Sobre o primeiro caso, refere-se a lutar sobretudo pela existência numa caatinga
aparentemente hostil – nesse sentido, estão na luta, desde os animais predadores que precisam caçar
para sobreviver a rochas fortemente fincadas ao solo. No segundo caso, em proveito do conceito
nativo de luta, é possível pensar que, mais que vetores, esses insetos potencialmente lutam contra
uma lógica de extermínio em massa proposta pelo estado e legitimado pela ciência.
12
Há de se mencionar aqui também a perspectiva de mosquitos construindo cidades e sendo usados como
subsídio para a criação de zonas de perigo geralmente associada a pobreza, como em Segata (2016).
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Mosquitos em luta
Havia uma afirmação nativa deveras categórica: “a luta das pessoas é uma e a dos animais é
outra”13. Os desdobramentos da luta no MONA propunham um alargamento interessante de sujeitos
que a agenciam. Dessa forma, predadores como os gatos e as raposas têm a sua luta: caçar; ovelhas
recém-nascidas estão na luta de tentar caminhar nos terrenos íngremes das serras; as árvores respiram
e mantêm um esforço incessante em suas raízes para conseguirem água e manterem-se vivas; as
rochas, por sua vez, mantêm-se fixas ao substrato realizando, à sua maneira estática, a sua luta. As
concepções nativas de luta relacionadas a não-humanos fizeram-me reiterar a ideia de uma paisagem
constituída de agências múltiplas. Nesse contexto, a luta dos insetos também foi mencionada. Os
vespeiros eram frequentemente apontados como um resultado satisfatório da luta dos besouros14. Os
mosquitos, por sua vez, tinham a luta de chupar o sangue, além de conseguirem resistir ao calor
escaldante da caatinga. Devo aqui destacar a luta dos já mencionados mosquitos funcionários, que
anunciam a chegada dos picadores.
Dessa forma, os mosquitos mostraram-se como interessantes agentes para se pensar com,
tomando a sua luta como uma agência pertinente no mosaico compondo a caatinga. O exercício
contínuo de pensar com eles traz consigo também a demanda de entender o modo como estudiosos
da entomologia médica, sobretudo a culicidologia, têm pensado com esses insetos, conforme proposto
por Uli Beisel (2010). Uma vez que, segundo os sertanejos do MONA, os mosquitos da caatinga são
naturais e, portanto, não transmitem doenças, presumo que não é a sua potencial vetoração que entra
em voga no intermédio dessas relações. As concepções nativas referindo-se a mosquitos na luta por
sua própria existência no emaranhado que constitui a caatinga possibilitam insights para se pensar
mosquitos lutando contra o extermínio imposto pela rua. Baseado no conceito sertanejo, interpretei
que o parasitismo por patógenos pode ser considerado parte da luta dos mosquitos, uma vez que, se
alocados à condição de hospedeiros, a infecção dos insetos gera um gasto energético que ocasiona,
por exemplo, diminuição na longevidade e oviposição (ARAÚJO, 2007; RIBEIRO, 2012). Essa
13
Há um detalhamento maior sobre a luta das pessoas na dissertação. Por aqui, apenas a menciono de forma
sucinta para não fugir do escopo do trabalho. Devo indicar, no entanto, que a luta das pessoas no MONA assemelha-se
àquela descrita por John Comerford (2010) e Jorge Luan Teixeira (2014).
14
Maneira como se referiam às vespas ou maribondos (Hymenoptera: Vespidae).
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energia poderia ser usada em outras atividades, como a própria fertilização dos ovos, por exemplo.
Diante desse cenário, do que, de fato, é constituída a luta dos mosquitos do MONA? Se no contexto
da entomologia médica, os mosquitos (incluindo os do sertão) passam de um “problema local” para
uma “ameaça global” (DINIZ, 2016), não acho forçado dizer que a sua luta potencialmente consiste
também em se mostrar como componentes de uma paisagem híbrida (SILVEIRA, 2008), por assim
dizer, em que há uma agência mais-que-vetora nesse processo.
Contrariando o que os sertanejos do MONA chamam de luta (por), a ecologia de insetos
vetores parece omitir as outras relações já citadas entre mosquitos e o ambiente, transformando
bromeliáceas, ocos de árvore e olhos d’água em “criadouros de mosquitos imaturos” e vertebrados
não-humanos em potenciais “reservatórios de patógenos”. Dessa forma, o investimento de esforços
em analisar o potencial vetor ou não de mosquitos de ocorrência na caatinga pode ser justificado pelos
diversos problemas relacionados ao sertão, como o zika vírus (DINIZ, 2016) e outras arboviroses. O
ponto aqui problematizado é que há lógica impositiva no desenvolvimento dessas campanhas que
parece sobrepor-se à perspectiva de preservação de espécies não-amadas (unloved others) (ROSE;
VAN DOOREN, 2011), como os mosquitos, abordando-as como ameaças a serem combatidas. Além
disso, parece não considerar concepções nativas que encaram os insetos mais como incômodos que
potenciais vetores. O esforço aqui, então, é elaborar maneiras de, além de encará-los como
componentes de um sistema ecológico, levar a sério o fato de que, por bem ou por mal, tratam-se de
espécies companheiras que devêm conjuntamente conosco (HARAWAY, 2008), mesmo sendo parte
de uma “assembleia” de outros não amados. É conseguir enxergar as arboviroses, em alguma escala,
como uma dívida devido a todas as alterações catastróficas no meio ambiente – alterações essas que
caracterizam o tal antropoceno – e levar a sério a extinção de potenciais vetores, mesmo com suas
consequências desastrosas à humanidade, como proposto por James Hatley (2011) em seu texto sobre
os carrapatos das Pradarias Palouse, Estados Unidos (HATLEY, 2011, p. 64).
Levar a sério a extinção de mosquitos perpassa por falar de forma mais consistente sobre a
sua preservação ou não no contexto de unidades de conservação, uma vez que ainda carecemos de
estudos sobre importantes fatores ecológicos como ecologia trófica, valor de biomassa, entre tantos
outros relacionados aos insetos em questão. O fato é que ainda nos é difícil responder, ou sequer
precisar, a importância desses insetos na constituição de uma paisagem, sobretudo “em preservação”,
salvo a ponderação da respeitada revista Nature, que negou os impactos negativos no ambiente caso
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a extinção dos pequenos se efetivasse (FANG, 2010). Em partes, é um tanto mais simples
fundamentar esse tipo de discurso em termos ecológicos no combate a mosquitos urbanos, uma vez
que esses insetos são majoritariamente espécies invasoras (como é o caso do Aedes aegypti)15. Que
posicionamento, no entanto, devemos tomar com relação às espécies endêmicas? Quais as
implicâncias reais de preservarmos ou exterminarmos mosquitos de uma zona de amortecimento se
mal sabemos o seu papel para além das picadas nessas áreas? Por fim, quais os bônus, em termos
científicos, filosóficos e sobretudo nativos de levarmos a sério a extinção desses insetos? Sanar tais
perguntas jamais esteve no escopo deste trabalho. O esforço aqui foi o de elaborar uma narrativa nas
bases de pensar com insetos. Para tal, é necessário tomar para si o desafio de questionar uma ciência
que aloca de forma quase automática os mosquitos à posição de matáveis, afirmando de forma
veemente que a sua extinção não traz impactos significativos ao ambiente, uma vez que outros seres
cumprem as suas diversas funções num sistema ecológico (FANG, 2010). É reconhecer o lado escuro
da nossa própria empatia (BUBANDT; WILLERSLEV, 2015), associando-a à maneira como nós,
cientistas, temos “pensado com” insetos: conhecemos profundamente a sua biologia, reproduzindo
ambientes ideais para o seu bem-estar para, por fim, matá-los.
Em proveito da agentividade de mosquitos compondo cotidianos, devo mencionar que, mais
que incômodos a serem exterminados, esses insetos têm se mostrado como agentes em vários âmbitos
da vida social, como no exemplo trazido por Nading (2012) em que as brigadistas (agentes de saúde)
da Nicarágua, ao aprenderem que eram as fêmeas do Aedes aegypti as responsáveis pela hematofagia
e que esse comportamento era associado à fertilidade dos ovos, aproximaram a imagem desse inseto
à sua própria realidade – a maioria delas, mulheres jovens, recém casadas ou divorciadas – e
denominaram os mosquitos como “mães solteiras”. Vander Velden (2016), por sua vez, constatou
que os mosquitos para os índios Karitiana, em Rondônia, eram pequenos espíritos vampiros, com seu
hábito de alimentar-se de sangue. Tal constatação mostra com alguma eficácia que o universo mítico
Karitiana, partindo da relação cotidiana com esses animais, é crucial para seu entrelaçamento
simbólico com a figura dos brancos. A perspectiva de Anaya (2012) aborda os Anopheles gambiae
15
Os insetos vetores de maior importância à saúde pública como o Aedes aegypti, Ae. albopictus e alguns do
gênero Anopheles sp. são de origem estrangeira e se adaptaram às condições do Brasil.
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como atores coadjuvantes nas relações entre Brasil e Senegal tendo o problema da malária como pano
de fundo. Na minha convivência com os sertanejos do MONA, presumi que os mosquitos são meros
agentes em luta compondo um cotidiano sertanejo em que, mesmo nas noites mais quentes em que
era esperada uma atividade mais intensa dos insetos, sua presença parecia ser amplamente ignorada.
Os exemplos etnográficos citados, em última escala, exploram o esforço de se falar com
mosquitos. O intuito aqui, por sua vez, foi extrapolar o princípio kafkiano de revestir-se (ou travestirse) em élitro16, embora o insight seja válido como ponto de partida. Soa-me plausível, em seu lugar,
a ousadia de Hideaki Sena (1995) ao elaborar, em seu thriller a nível intracelular Parasite Eve, a
mitocôndria Eve (ou Eva) e descrever com um realismo surpreendente o que seria um processo
consciente de parasitismo por parte dessa organela, abordando ainda a sua perspectiva. É um esforço,
portanto, de se tentar ultrapassar a barreira de uma identificação com o outro mediada pelo carisma
de espécies companheiras e boas para viver com.
A identificação com os outros não amados requer, antes de tudo, uma sensibilidade, tal qual
demonstraram o artista Jorge Mautner, ao elaborar a narrativa sobre o mosquito que jurou vingança
à humanidade pelo genocídio dos seus provocado pelos homens, na anedótica canção Tataraneto de
inseto, e a escritora Carmen Stephan (2012) e sua Mückenperspektive (perspectiva do mosquito) no
romance Mal Aria. Acredito nesses recursos narrativos como ferramentas capazes de se exercitar
argumentos menos antropocêntricos (sem que para isso recorramos ao biocentrismo) em questões
caras relativas à era das extinções que caracteriza o antropoceno. É uma chamada para que
consigamos levar a sério as consequências da extinção das incômodas companhias como os próprios
mosquitos ou os já citados carrapatos, não apenas à luz dos processos de parasitismo ou saúde e
doença (HATLEY, 2011). Além disso, atento para a pertinência de questionarmos, como fez Deborah
Bird Rose na Austrália, a autoridade estatal de intervir nas relações entre humanos e não amados
como as raposas voadoras, sejam elas tomadas como pragas, no caso de comunidades urbanas ou sua
16
Asas modificadas dos coleópteros, os besouros, que principalmente conferem proteção, mas também facilitam
a aerodinâmica durante o voo. Os voos, por sua vez, são bastante reduzidos devido à grande massa corporal que esses
insetos apresentam e, pelo mesmo motivo, sua movimentação também é bastante dificultada. A maneira como Franz
Kafka descreve Gregor Samsa, com o dorso para cima e as pernas se movimentando compulsoriamente, além da
dificuldade do jovem de se movimentar, dá a entender que trata-se de um besouro. Mais trabalhos específicos sobre
coleópteros e sua influência nas artes e, sobretudo, na cultura, estão disponíveis nas obras do entomologista cultural
Kenta Takada (TAKADA, 2014; 2016).
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caça, no caso dos aborígenes (ROSE, 2011). Por fim, o desafio de falar com os mosquitos do MONA
consiste primordialmente de partir da reflexão sobre a ciência – sobretudo, práticas etológicas que
presumem falar por espécies a serem estudadas por cientistas naturais – em prol da elaboração de um
pensamento crítico a respeito de espécies companheiras não-amadas dissociando-as do pouco carisma
e/ou antagonismo ao bem-estar que lhes são peculiares.
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