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A PROPÓSITO DE OS PRISIONEIROS: UMA NARRATIVA DE NIETZSCHE

Pouco antes de publicar Humano, demasiado humano, Nietzsche havia encontrado o aforismo como forma de expressão. A coleção de aforismos era um gênero improvável para o discurso filosófico do século XIX e seu ideal sistemático, mas Nietzsche era um pensador peculiar que viu na fragmentariedade própria dos aforismos o que parecia ser o meio mais apropriado para a composição de um mosaico filosófico formado por pequenas e variadas reflexões cotidianas sobre os temas mais diversos. Assim ele escrevia suas experiências pontuais, registrava seus impulsos pessoais, desenvolvia sua investigação multifocal, exercitava sua arte literária por meio de uma prosa admirável que preservava traços de oralidade e improviso...

A PROPÓSITO DE OS PRISIONEIROS: UMA NARRATIVA DE NIETZSCHE Anderson de Oliveira Lima Pouco antes de publicar Humano, demasiado humano, Nietzsche havia encontrado o aforismo como forma de expressão. A coleção de aforismos era um gênero improvável para o discurso filosófico do século XIX e seu ideal sistemático, mas Nietzsche era um pensador peculiar que viu na fragmentariedade própria dos aforismos o que parecia ser o meio mais apropriado para a composição de um mosaico filosófico formado por pequenas e variadas reflexões cotidianas sobre os temas mais diversos. Assim ele escrevia suas experiências pontuais, registrava seus impulsos pessoais, desenvolvia sua investigação multifocal, exercitava sua arte literária por meio de uma prosa admirável que preservava traços de oralidade e improviso.1 Nietzsche publicou sua primeira coleção de aforismos em 1878 (em Humano, demasiado humano), provou ali viabilidade de seu projeto e seguiu esboçando pensamentos através da forma aforística que aparentava ser tão adequada ao espírito livre que ele queria ser. Suponho que os textos seguintes, nos mesmos moldes, surgiram naturalmente; eram consequências daquele achado filosófico, estético e literário que, por certo, não podia ser esgotado num único livro. Aliás, terminar um livro, para quem escreve aforismos, é apenas uma opção editorial. Fecha-se um volume pela simples vontade de divulgar, num momento específico, o resultado de reflexões cotidianas que poderiam se multiplicar indefinidamente. Uma nova coleção de aforismos nietzschianos foi publicada no ano seguinte, em 1879. O livro novo, bem menor, foi intitulado Opiniões e sentenças diversas. Pouco depois, já em 1880, Nietzsche apresentou ao mundo mais um livro de aforismos: O andarilho e sua sombra. A produção não pararia por aí, mas não precisamos descrevê-la; para meus propósitos só é preciso dizer que, alguns anos depois (1886), reeditando suas obras, Nietzsche reuniu estes dois últimos textos num único volume que, desde então, tendo ganhado um novo prefácio, passou a ser chamado de Humano, demasiado humano: um livro para os espíritos livres, volume II. 1 Sobre o caráter oral do aforismo nietzschiano, veja: HOLLINGDALE, R. J. Nietzsche: uma biografia. São Paulo: EDIPRO, 2015, p. 143-145. Foi lendo aleatoriamente as centenas de aforismos de O andarilho e sua sombra (que agora é a segunda parte de Humano, demasiado humano, vol. II) que encontrei a narrativa a que me referi (no título), intitulada Os prisioneiros. O tema deste aforismo interessa a alguém que, como eu, se dedica aos problemas das religiões e suas expressões literária: deixa conhecer algo do tom combativo do filósofo alemão contra a religião, coisa que só se intensificaria até alcançar seu clímax em O anticristo. O texto ainda nos coloca diante do talento de Nietzsche para a narrativa, aptidão explorada apenas esporadicamente até que se tornou predominante em seu livro favorito, o Assim falava Zaratustra (um texto difícil que, de maneira até exótica, o autor julgava ser seu maior presente à humanidade, tendo dito de maneira imodesta que ele é “o livro mais elevado que existe”, embora reconhecesse desde cedo que “não é dado a todos ter ouvidos para Zaratustra”).2 É possível que minha curiosidade por essa narrativa nietzschiana em particular tenha sido estimulada pela surpresa: nunca sequer ouvi falar de tal aforismo, jamais conheci qualquer comentário a seu respeito e nem mesmo menção a seu conteúdo me chegou. Ao lê-lo, interpretei minha ignorância sobre a história da leitura desse breve texto como uma oportunidade para tratar, fazendo uso de minhas próprias aptidões e livre de influências diretas, de uma passagem nietzschiana. Por isso, aqui estou me preparando para dar tal narrativa a conhecer, o que farei intercalando segmentos do texto com meus comentários analíticos que põem em pauta vários temas relevantes do pensamento nietzschiano, os quais são caros à minha própria prática literária e filosófica e não me deixam disfarçar a admiração. Esse texto, portanto, trata do aforismo 84 de O andarilho e sua sombra (em Humano, demasiado humano, vol. II), texto cujo título é: Os prisioneiros.3 O texto de Nietzsche, história contada através de metáforas, aborda um tema que é recorrente em suas obras (o cristianismo) e, na primeira leitura, me fez lembrar as parábolas do Novo Testamento, pois trata de seu objeto indiretamente, por analogia, elaborando um enredo narrativo que se pauta em fatos razoavelmente cotidianos, colocando em cena personagens humanos que desempenham atividades que não são, sob nenhum ponto de vista, nobres e dignos de grandes histórias. Porém, evito forçar a aplicação de rótulos e gêneros ao texto de 2 É o que Nietzsche escreveu sobre o Zaratustra no Prólogo de Ecce Homo, § 4. Citado a partir de: NIETZSCHE, Friedrich W. Ecce Homo: como alguém se torna o que é. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 16-17. 3 Citarei a tradução de Paulo César de Souza por meio de: NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Humano demasiado humano: um livro para os espíritos livres, volume II. São Paulo: Companhia das letras, 2017, p. 168-169. 2 Nietzsche, autor sempre singular. Além disso, há outras especificidades das parábolas bíblicas que logo impedem a fácil comparação: nos evangelhos o narrador é Jesus (um narrador dentro da narrativa) e o tema de suas parábolas é quase sempre explícito: ele costuma abrir suas histórias com uma espécie de introdução que identifica o gênero parabólico, tal como: “O Reino de Deus é semelhante a...”. Mesmo assim, notar-se-á que, para a análise do texto de Nietzsche, é aconselhável não perder de vista o referencial bíblico. Introdução Uma manhã, os prisioneiros entraram no pátio onde trabalhavam; o guardião estava ausente. Alguns se puseram imediatamente a trabalhar, como era do seu feitio; outros nada fizeram, olhando desafiadoramente ao seu redor. O texto do filósofo escritor começa nos apresentando, com escassas palavras descritivas, uma situação inicial. O narrador nos coloca diante de um mundo virtual, um cenário específico e limitado (um “pátio”) que é frequentado por personagens adequados a ele. Os tais, que são chamados apenas de “trabalhadores” e estão em número indeterminado, ali desempenhavam a ação que os caracterizava (o trabalho) de maneira contínua (como o verbo nos revela) sob as ordens de um “guardião” que, sendo conhecido e de todos, não está presente no tempo em que a narração se concentra. Tendo coletado tais informações fica fácil afirmar que estamos diante de uma narrativa nietzschiana: temos um mundo virtual, um mundo que só existe no papel; temos personagens literários que estão organizados hierarquicamente e agem de acordo com as possibilidades desse mundo ficcional; temos uma sucessão de eventos que pretende criar ficcionalmente algo como o tempo e seu desenrolar ininterrupto; temos um mistério, um problema que nasce junto com a história e com o qual os personagens precisarão lidar, questão que produz curiosidade e motiva os leitores a seguir com a decifração, que concede um tema que se desenvolve gradativamente e dá forma a um enredo; e, obviamente, temos um narrador, um contador que enuncia a história e cuja voz o leitor inevitavelmente identifica com a voz do autor do livro. Eu disse que as informações descritivas são escassas, mas isso não é, de fato, um problema. Aqui não são precisas muitas palavras para que comecemos a imaginar a cena com a qual o autor nos interpela. Trata-se, deveras, de uma história cujo começo é 3 simples; mas, uma narração lacônica, se bem feita, acaba por estimular o leitor, convidao para um exercício criativo proporcionando a oportunidade de se aproveitar, enquanto se lê, o prazer de uma forma indireta de trabalho autoral. Entendo que um dia está começando nessa espécie de prisão onde homens, aparentemente acostumados ao trabalho forçado e cotidiano, saem de suas celas e se apresentam no pátio – como aparentemente lhes havia sido determinado – para mais uma jornada difícil. Os dias anteriores a este não são narrados (nem precisam), pois tacitamente está sendo dito que por um bom tempo aqueles mesmos indivíduos saíram para o mesmo pátio a cada manhã e ali trabalharam. Então, o autor escolhe começar sua história desde o momento atípico, quando a rotina é quebrada e o ineditismo dos fatos provoca dúvidas nos personagens, o que abre possibilidades de ação que, pela imprevisibilidade, prenderão a atenção do leitor pela curiosidade. O problema que logo se apresenta é que “o guardião estava ausente”. Este personagem que, pela ausência provoca a crise que motiva a história, era aparentemente o responsável pela ordem, pela manutenção do serviço, pela supervisão dos prisioneiros, pelos resultados de seus trabalhos e, muito provavelmente, pelas punições devidas àqueles que não cumprissem adequadamente suas obrigações. Subentende-se que a ausência repentina do guardião significava falta de orientação, de supervisão, e isso era condição para o possível estabelecimento de uma situação caótica. Este é o evento que impulsiona a narrativa e é exatamente por isso que este é o único dia considerado digno de ser narrado. A ausência do guardião permanece inexplicada e deixa os prisioneiros desconcertados. O trabalho que desempenham, isso parece claro, é indesejado, involuntário, forçado, administrado sob ameaças. Sem o sujeito que os controla, vigia-os e provavelmente os pune em caso de desobediências às regras do local, o que fariam? Eles não estavam exatamente livres, pois seguiam limitados ao mesmo pátio de sempre; todavia, sem a presença daquele personagem hierarquicamente superior, cuja presença tornava obrigatório um determinado modo de viver, os prisioneiros tinham a inesperada sensação de que podiam decidir o que fariam naquele dia. É inevitável que os trabalhadores, assim como os leitores, se perguntem: o guardião aparecerá a qualquer momento? Será que ele não virá? Devem eles seguir trabalhando até que o mistério se esclareça ou até que recebam novas ordens? Dedicam suas horas livres 4 à ociosidade enquanto aguardam definições? Será que seriam considerados culpados de alguma falta se assim agissem? Partindo de tais questionamentos os personagens deixam de ser um único grupo homogêneo e se dividem: parte deles, mesmo sem a presença do guardião, começa a trabalhar “como era do seu feitio”. Ou seja, este grupo é formado por homens que trabalham, que sempre trabalham, que não costumam refletir sobre o que fazem, que labutam havendo ou não recompensas, havendo ou não necessidade... Eles são, em essência, trabalhadores, sujeitos que, segundo o vocabulário nietzschiano, apenas seguem seu instinto gregário. São homens de rebanho, indivíduos para os quais a obediência parece uma necessidade inata.4 Para compreender os tais é bom saber que o trabalho cotidiano, excessivo, maquinal, sempre é avaliado negativamente na filosofia de Nietzsche, pois, segundo ele, a finalidade do trabalho é entorpecer no homem seu senso crítico, sua capacidade de avaliar e mudar. O tema é recorrente: Nietzsche escreveu que “Quem tem muito o que fazer mantém quase inalterados seus pontos de vista e opiniões gerais”,5 combateu a “glorificação do trabalho”, foi contra a “dura laboriosidade desde a manhã até a noite”, afirmou que o “trabalho é a melhor polícia, que ele detém as rédeas de cada um e sabe impedir o desenvolvimento da razão, dos anseios, dos gostos pela independência”.6 Ele também defendeu a opinião de que “aquele que não tem dois terços do dia para si é escravo, não importa o que seja: estadista, comerciante, funcionário ou erudito”.7 Os trabalhadores do texto, portanto, são figuras que pelas quais Nietzsche converteu em personagens literários um estereótipo negativo, o dos homens ativos que sua filosofia lastima. Os demais trabalhadores formam um grupo de homens que enfrentam a novidade do dia de modo inverso: eles “nada fizeram, olhando desafiadoramente ao seu redor”. Estes, suponho, são aqueles que têm consciência de que este trabalho é uma punição, que não é algo que se faça sem bons motivos, sem claras ameaças ou promessas de recompensas. 4 Cf. Nietzsche em Além do bem e do mal, § 199. Humano, demasiado humano, § 511. Citado a partir de: NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Humano, demasiado humano: um livro para os espíritos livres. São Paulo: Companhia das letras, 2005, p. 242. 6 Nietzsche, Aurora, § 173. Citado a partir de: NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Aurora: reflexões sobre os preconceitos morais. São Paulo: Companhia das letras, 2016, p. 118-119. Veja também, em Genealogia da Moral, o aforismo de número 18 da terceira dissertação. 7 Humano, demasiado humano, § 283. Citado a partir de: NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Humano, demasiado humano: um livro para os espíritos livres. São Paulo: Companhia das letras, 2005, p. 176. 5 5 Por isso eles agem com rebeldia quando o guardião não se apresenta e permanecem ociosos olhando “desafiadoramente ao seu redor”. O texto começa, enfim, colocando dúvidas, abrindo espaços, estabelecendo dualidades e tensões. Voltando o guardião, punirá os rebeldes e recompensará os trabalhadores? E se ele não voltar? E se daí por diante não houverem mais normas e supervisão, estarão os homens que ainda trabalham perdendo seu tempo? Qual dos grupos tomou a direção correta nesta encruzilhada? Aparentemente o resultado das escolhas depende de um guardião, depende de seu retornou, substituição ou definitivo desaparecimento. O mundo do texto (e também o da vida) está divido. Alguns trabalham como se houvesse alguém acima deles que, possuindo poder sobre suas vidas e autoridade normativa, estabeleceu as regras pelas quais eles devem se guiar e, mesmo não sendo visto, provavelmente segue os vigiando e em seu retorno recompensará a cada um conforme seus atos. Outros, todavia, não vendo no pátio qualquer sinal dessa tal autoridade, supõem-se livres, sem leis, e imediatamente deixam aqueles afazeres indesejáveis para viver como queiram. Eles não acreditam que estejam sendo supervisionados, que o tal legislador algum dia retornará para recompensar ou punir; por isso olham de soslaio para aqueles apostam no que os olhos não veem. Não é difícil entender que Nietzsche escreveu uma metáfora sobre a religião, sobre os crentes que acreditam num Deus que não veem e, fazendo o que não querem por devoção, medo e hábito, seguem as leis que esse Deus supostamente estabeleceu. Por outro lado, ele retrata também os outros, os incréus, revoltados, ateus, homens diversos que a partir do momento em que notaram que nada no mundo serve de indício para que se afirme a existência de Deus, deixaram de temer as ameaças de inferno, deixaram de crer no pecado e posicionaram-se além do bem e do mal. Eles abandonam o estilo de vida cristão e, no caso, passam a dar margem a seu egoísmo, ou seja, passam a fazer o que bem entendem apoiando-se em argumentos diversos. O Filho do Guardião Então um deles avançou e disse: “Trabalhem o quanto quiserem ou não façam nada: não importa. Seus planos secretos vieram à luz, o guardião os espiou ultimamente e vai enunciar um tremendo juízo 6 sobre vocês nos próximos dias. Vocês o conhecem, ele é duro e rancoroso. Mas prestem atenção: até agora vocês se enganaram a meu respeito; eu não sou o que pareço, mas muito mais: sou o filho do guardião e posso tudo com ele. Posso salvá-los, quero salvá-los; mas, vejam bem, apenas aqueles entre vocês que acreditam que sou o filho do guardião; os demais colherão os frutos da descrença. Os prisioneiros estão sozinhos no pátio e logo passam a conjeturar, a fazer suposições sobre o que ocorreu com o guardião ausente, sobre o que deveriam fazer a partir daquele momento etc. Então o narrador nos apresenta o discurso de um primeiro personagem que, agindo de maneira particular, assume seu protagonismo. A princípio o tal personagem nos revela alguns traços do guardião: “é duro e rancoroso”. Mas ele vai além dessas constatações banais (a não ser que as leiamos teologicamente) e começa a dizer coisas sobre o guardião que os demais não sabiam, divulgando conhecimentos muito privilegiados (e por isso duvidosos) que ninguém saberia dizer como obteve: “o guardião os espiou e vai enunciar um tremendo juízo sobre vocês nos próximos dias”. Isso faz com que os ouvintes tenham que julgar o homem pelo que diz. A maneira como encaram seu funesto anúncio fará com que temam ou não o juízo futuro, o que talvez influa sobre suas ações no presente. O discurso desse personagem o caracteriza bem para o leitor: ele assume um papel típico, interpreta uma espécie de messias diante dos demais, o que de imediato faz com que o vejamos como um Cristo contextualizado à prisão. Ele, como o Jesus dos evangelhos, começa a falar diante dos homens como uma espécie de intermediário entre os homens e Deus: afirma conhecer o guardião, afirma ser seu filho, diz conhecer suas intenções, saber que está para punir a todos... Mas dessa posição privilegiada este novo messias promete poupar os prisioneiros que acreditam (o grifo no texto é de Nietzsche) que ele é o filho do guardião. Sem dúvida o que temos é uma leitura do cristianismo; uma leitura nietzschiana do cristianismo que nalguma medida nos permite reconstruir o modo como o autor concebe o cristianismo nessa fase de seu pensamento. Nietzsche não trata com detalhes das origens, mas supõe-se que tenha existido um guardião, um legislador que no começo estabeleceu o modo como as coisas deveriam ser. Este guardião, se estou correto em pressupor que ele é uma figura pela qual Deus é metaforicamente representado na narrativa, pode levantar dúvidas quanto ao (questionado) ateísmo de Nietzsche. Está implícito que antes de a história começar todos 7 os trabalhadores conheceram o tal guardião e, mesmo que ele não possa ser visto, sabese que ele um dia existiu. Mas esse é um tema de interesse biográfico que é difícil mesmo para os especialistas, pesquisadores da obra e da vida e da obra nietzschiana: a mim não parece haver dúvida, especialmente quando falamos do autor de A Gaia Ciência: ora o filósofo se coloca entre os “sem-deus”, dizendo que não pode ser bem caracterizado por velhos rótulos como ateu, ímpio ou imoralista;8 ora afirma, categoricamente, que “não existe Deus”, mas que de todo modo não faz diferença se Deus existe ou deixa de existir, posto que “tudo de benéfico, consolador, moralizador, assim como tudo de ensombrecedor e esmagador que a religião cristã transmite à alma humana, procede dessa fé, e não dos objetos dessa fé”.9 O que importa aqui é que o desaparecimento do guardião da narrativa que estamos lendo é uma boa-nova às avessas para alguns prisioneiros que, livres do jugo que lhes era imposto pelo guardião, passam a escrever suas próprias leis e abandonam de imediato a pesada rotina de trabalho. Mas, como não poderia deixar de ser, um bom número daqueles homens continua temendo o guardião invisível e, por fé, continua com seus afazeres. Seguindo com o retrato nietzschiano do cristianismo, notemos que o tal guardião deixou os prisioneiros num pátio fechado, o que nos leva a concluir que o próprio mundo da vida é entendido pelo narrador como uma espécie de prisão. O trabalho, já vimos, é uma punição. A vida dos prisioneiros (e dos homens), que aparentemente é miserável e sem sentido, é ainda piorada pelas ameaças daquele suposto messias que lhes apresenta novas intimidações. Reproduzindo a ideia nietzschiana de que o cristianismo culpabiliza o homem, inventa o pecado, o tal prisioneiro messias diz que o bisbilhoteiro guardião, embora ausente, sabe de tudo o que fazem e pretende puni-los, colocando um problema para o qual só ele tem a solução. Primeira objeção: tem crédito esse salvador vaidoso? O filho do guardião, que aos olhos dos demais não passa de um prisioneiro comum, expressa-se de maneira pretensiosa: quer que todos creiam nele, quer que acreditem em seu discurso tenebroso sobre o futuro, quer que os demais se sujeitem a ele a partir de sua 8 Veja, em A gaia ciência, os aforismos 280, 367 e 346. Cito Nietzsche em A gaia ciência, § 225, a partir de: NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. A gaia ciência. São Paulo: Companhia das letras, 2012, p. 88. 9 8 autodescrição, que temam o guardião e procurem se refugiar em sua incerta promessa de proteção. A analogia não poderia ser mais clara! Nietzsche, falando de modo mais direto a respeito do cristianismo em A Gaia Ciência (publicado apenas dois anos depois de O andarilho e sua sombra), ridiculariza justamente esse capricho do Cristo: um Salvador que tem poder para livrar todos dos sofrimentos eternos que ele anuncia, mas que, em vez de distribuir desmesuradamente sua graça e exibir sua boa-vontade, escolhe impor àqueles que diz querer beneficiar uma condição, uma exigência que é prova de sua vaidade: Como? Um deus que ama os homens, desde que acreditem nele, e que lança olhares e ameaças terríveis a quem não crê nesse amor? Como? Um amor com cláusulas é o sentimento de um Deus todo-poderoso? Um amor que sequer triunfou do senso de honra e da irascível sede de vingança? Como é oriental tudo isso! “Que te interessa, se te amo?” já é uma crítica suficiente de todo o cristianismo.10 Na narrativa nietzschiana (e no cristianismo), as palavras daquele que se identifica como salvador, filho do guardião, não possuem qualquer fundamento averiguável: dependem da ausência do guardião e da ignorância de todos a respeito de seu paradeiro; contam com a insegurança dos destinatários com relação ao futuro, com o medo que eles possam ter de sofrerem punições por agirem como querem; apoiam-se na própria pessoa do messias autocoroado, em seu discurso revelador, na teatralidade de sua nobreza. Em poucas palavras, seu discurso exige fé. Mas, como julgar este pretenso salvador? Como saber se o que ele diz a respeito de si mesmo lhe foi revelado por fonte segura? Como distinguir os charlatões dos visionários? Quanto a esses indivíduos que se dizem mais capacitados para as grandes experiências religiosas, homens de visões, Nietzsche também deixou expressa sua clara opinião em Aurora, interpretando seus dons como “profunda perturbação psíquica!”. Ele os chamou de “indivíduos semiperturbados, fantasistas, fanáticos”, e ironizou o argumento dos que os consideram especiais, dizendo: “‘eles viram coisas que outros não veem’ – certamente! e isso deveria nos fazer cautelosos em relação a eles, e não crédulos!”.11 10 A gaia ciência, § 143. Ibid. p. 144. Aurora, § 66. Citado a partir de: NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Aurora: reflexões sobre os preconceitos morais. São Paulo: Companhia das letras, 2016, p. 49. Veja 11 9 Já se vê que, do ponto de vista do autor, aquele prisioneiro, que aproveitou a ausência do guardião para trazer à luz suas revelações, deve ser recebido com cautela pelos demais; ele é, muito provavelmente, ou um fanático ou um oportunista. Esse posicionamento é figurativizado no texto de Nietzsche por meio de um novo personagem, “um prisioneiro mais velho” que toma a palavra em resposta àquele pretenso messias e transforma o texto num diálogo: “Ora”, falou, após um instante de silêncio, um prisioneiro mais velho, “que diferença lhe faz se acreditamos ou não em você? Se é realmente o filho do guardião e consegue tudo o que diz, interceda por todos nós: seria uma grande bondade sua. Mas deixe de lado a conversa de crer ou não crer!” A voz do prisioneiro mais velho, portanto, reproduz narrativamente uma objeção que o próprio Nietzsche fazia ao plano de salvação que, na teologia cristã, Deus executou por meio de Jesus Cristo. E a essa objeção logo se junta outra, desta vez levantada por um prisioneiro mais jovem (e radical). Segunda objeção: o guardião indolente “Além disso”, gritou um homem mais jovem, “eu não acredito nele: é somente uma coisa que ele pôs na cabeça. Aposto que em oito dias estaremos neste mesmo lugar, e o guardião não sabe nada”. O homem mais jovem duvida da filiação do prisioneiro que se declarou filho do guardião. Ele interpreta as evidências da maneira mais simples, concluindo que aquele prisioneiro comum não podia ser outra coisa além de um impostor ou um desequilibrado. Aquela história de intercessor, salvador...: “uma coisa que ele pôs na cabeça”. Quanto ao guardião, diz que ele nada sabe. Já tentando decifrar teologicamente a analogia, o tal guardião deve representar narrativamente um Deus do tipo indolente como o de Epicuro, para quem os deuses, caso existam, não devem ser motivos de preocupações. O filósofo grego ensinou a tomarmos a divindade como “um ente imortal e bemaventurado”, ser que cuida apenas de desfrutar da condição perfeita em que vive, livre de toda sorte de perturbações, num estado que os filósofos definem através do termo ataraxia. Epicuro escreveu: “não atribuas a ela (a divindade) nada que seja incompatível com a sua imortalidade, nem inadequado à sua bem-aventurança; pensa a respeito dela 10 tudo que for capaz de conservar-lhe felicidade e imortalidade”. Ou seja, toda relação entre os deuses e os humanos seria, do ponto de vista dos entes bem-aventurados, grande tolice; seria se envolver desnecessariamente com problemas que não lhes dizem respeito, um ato indigno dos imortais.12 Então, o prisioneiro mais jovem acha que seus semelhantes superestimam a capacidade do misterioso guardião, julga que estão verdadeiramente sozinhos naquele reduzido universo, vivendo por conta própria, pelo que aposta que nada de diferente lhes acontecerá, independentemente do que façam. Ele supõe a vida dos homens não é regida por um divino enredo, por um autor superinteligente, que pela sucessão de cenas caminha para seu capítulo final, tempo de juízo, de recompensas e punições. Para empregar aqui mais um pouco do vocabulário nietzschiano, este prisioneiro é um homem do tipo suprahistórico: em oposição àqueles (homens históricos) que “creem que o sentido da existência sairá à luz paulatinamente no decurso de um processo”, este não vê no desenrolar do tempo qualquer processo evolutivo, qualquer perspectiva de salvação; ao contrário, para ele “o mundo está pronto em cada instante singular e nele alcança seu fim”.13 Terceira objeção: o guardião morto “E, se sabia, não sabe mais”, disse o último dos prisioneiros, que acabava de entrar no pátio; “o guardião morreu agora, de repente.” Um novo e misterioso personagem entra em cena de modo repentino. Sua aparição é surpreendente e traz uma revelação: “o guardião morreu”. Por onde ele andava enquanto as discussões anteriores se desenrolavam e como soube da morte do guardião? Não sabemos. Em todo caso, este homem, quem sabe o representante de uma nova geração que veio ao pátio no último momento, parece ser um novo tipo de pregador. Difícil não o identificar com o próprio Nietzsche que, de cabeça erguida, anunciava a seus contemporâneos a morte de Deus da maneira mais explícita, colocando-se numa posição rara na história do pensamento ocidental, como descendente de uma reduzida linhagem 12 EPICURO. Carta sobre a felicidade: (A Meneceu). São Paulo: Editora UNESP, 2002, p. 22-25. Veja a segunda das considerações extemporâneas (Sobre a utilidade e a desvantagem da história para a vida), cap. 1. Citado a partir de: NIETZSCHE, Friedrich W. Sobre a utilidade e a desvantagem da história para a vida: segunda consideração extemporânea. São Paulo: Hedra, 2014, p. 42. 13 11 de homens que deram a conhecer aquilo que Albert Camus chamou de “revolta metafísica”.14 Nietzsche é conhecido até hoje por ter escrito – especialmente em A Gaia Ciência – que Deus está morto: “Não ouvimos o barulho dos coveiros a enterrar Deus? Não sentimos o cheiro da putrefação divina? – também os deuses apodrecem! Deus está morto! Deus continua morto! E nós o matamos!”.15 Mas tenho a impressão de que o filósofo nunca tem a intenção, nos textos desse tipo, de tratar diretamente de Deus, como faria um teólogo. Antes, ele detecta que o Deus que havia dominado o imaginário europeu por dezenas de séculos e era o sustentáculo de seus valores morais havia perdido sua força, que a cultura do ocidente estava passando por uma transformação sem precedentes cujas consequências ainda não haviam sido devidamente mensuradas. Nietzsche se preocupava, principalmente, com “tudo quanto irá desmoronar, agora que esta crença foi minada, por que estava sobre ela construído, nela apoiado, nela arraigado”.16 Para o filósofo isso era uma boa notícia: “De fato, nós, filósofos e ‘espíritos livres’, ante a notícia de que ‘o velho Deus morreu’ nos sentimos como iluminados por uma nova aurora [...] enfim o horizonte nos parece novamente livre”.17 A partir do momento em que se reconhece que o mundo não persegue nenhum fim, Nietzsche propõe-se a admitir a sua inocência, a afirmar que ele não aceita julgamentos, já que não se pode julgá-lo quanto a nenhuma intenção, substituindo, consequentemente, todos os juízos de valor por um único sim, uma adesão total e exaltada a este mundo. Dessa forma, do desespero absoluto brotará a alegria infinita; da servidão cega, a liberdade sem piedade. Ser livre é justamente abolir os fins. A inocência do devir, desde que se concorde com isso, representa o máximo de liberdade.18 Enfim, o desaparecimento do guardião da narrativa é como a morte de Deus na cultura europeia de fins do século XIX. O último prisioneiro age no mundo do texto como o próprio autor age no mundo da vida, e o anúncio da morte desse guardião, embora seja recebida com surpresa e perplexidade pela maioria, é, no pensamento nietzschiano, uma 14 CAMUS, Albert. O homem revoltado. Rio de Janeiro: Record, 2017. A gaia ciência, § 125. Ibid. p. 138. Sobre o mesmo tema veja também, em A gaia ciência, os aforismos 108 e 343. 16 Nietzsche em A gaia ciência, § 343. Ibid. p. 207. 17 Ibid. p. 208. 18 CAMUS, Albert. O homem revoltado. Rio de Janeiro: Record, 2017, p. 101-102. 15 12 excelente notícia, uma descoberta tão significativa que estimulou o filósofo a assumir, nalguns momentos, um tom profético. Ele imaginou que a autonomia dos indivíduos para criarem suas leis e viverem além do bem e do mal, para amadurecerem e se tornarem o que são, se desenvolveria e, um dia, finalmente, veríamos nascer o indivíduo livre, único, incomparável, independente de todas as muletas metafísicas.19 Cristo ou Nietzsche? “Olá!”, gritaram vários ao mesmo tempo, “olá! Senhor filho, senhor filho, como fica a herança? Será que somos agora seus prisioneiros?” – “Eu lhes disse”, replicou suavemente aquele que interpelavam, “vou libertar todos os que creem em mim, tão certo como meu pai ainda vive.” Na sequência da narrativa nietzschiana vários dos prisioneiros reagem à notícia da morte do guardião confrontando o prisioneiro que se dizia “filho”. Sem o guardião, eles querem saber o que seria de seu kerygma, de sua mensagem de salvação que perde todos os efeitos quando o agente das possíveis punições deixa de existir. Possivelmente, o que ser quer dizer é que, quando o povo deixar de confiar na existência de Deus, o cristianismo perderá suas forças e enfrentará uma crescente oposição. Nesse debate o Cristo deve ser colocado em questão, pois tudo o que ele foi e fez dependem da crença na presença de Deus Todo-Poderoso por trás das cortinas da história. O discurso religioso – e nele o próprio Cristo –, quando colocado num mundo sem Deus, perde a cor, o encanto; revelase apenas um instrumento de poder, um jugo desnecessário que é posto sobre aqueles indivíduos ingênuos que ainda creem em fábulas infantis. Este é, ouso dizer, o universo habitado por Nietzsche. No entanto, a despeito do anúncio desconcertante feito pelo último prisioneiro, o suposto messias não volta atrás em sua mensagem salvífica. Ele não mostra nenhuma surpresa, sequer muda o andamento de seus passos diante das afrontas tipicamente modernas e da ousadia nietzschiana. Na verdade, seguro de suas opiniões, confiante em seu status, ele mantém erguido seu nariz e “suavemente” segue seu caminho: contra todas as evidências o salvador ainda trabalha em sua missão que parece cada vez mais incompatível com o novo contexto. Esse tal filho do guardião, aliás, encena seu papel 19 A gaia ciência, § 335. 13 com tamanha segurança que põe dúvidas nas mentes alheias: alguém tão determinado poderia ser um mero charlatão? Ele parece realmente acreditar no que diz, parece estar certo da vida de seu suposto pai, e não aparece duvidar, nem por um nenhum momento, de sua nobre filiação, do vindouro dia dos acertos de contas, do poder que diz ter para interceder e salvar os prisioneiros de seu destino funesto. É um exemplo notável da fé que espera suscitar nos outros. Carentes de explicações, os homens atribuem sentido a seus dias supondo a existência de um guardião que não veem. A história de Nietzsche, então, nos fez pensar sobre o comportamento humano, sobre algumas reações conhecidas diante da existência e sobre os sentimentos que originam as religiões. É nesse vácuo existencial que surge o messias, que coloca a si mesmo num posto privilegiado de uma estrutura religiosa complexa que primeiro condena para depois oferecer, sob condições, sua redenção. Mas com o tempo os homens levantam oposições, duvidam do próprio guardião e colocam a pregação do suposto salvador em questão. Lemos que um primeiro questionou o meio vaidoso pelo qual o prisioneiro que se dizia filho do guardião prometia salvar os homens; um segundo duvidou que o tal guardião, cujo destino ninguém conhecia, estivesse a vigiá-los com a intenção de punir os desobedientes, o que tornava vã toda a mensagem anunciada pelo pretenso salvador. Entretanto, esses prisioneiros, que representam revoltados mais tradicionais, que se opõem a Deus desafiando-o, blasfemando, mas não o negando, não atingem o nível do terceiro e último prisioneiro, o qual anuncia a morte do guardião. Este anúncio – que inegavelmente reproduz narrativamente o diagnóstico nietzschiano da cultura ocidental de seu tempo – vai além, atribui mortalidade a um deus e com isso o humaniza, o destrona, o interpreta como uma simples ideia típica dos povos pré-modernos. Ao cabo, esta é a oposições definitiva, a que deixa de discutir com os crédulos sob a égide da teologia cristã e passa a tratar do que há além de Deus. Certo de que o guardião morreu – tão certo quanto o outro diz ser filho do guardião – este último pregoeiro não propõe apenas um desvio, uma nova religião cujo Deus é indolente ou universalista; o caminho que anuncia é oposto àquele, é o caminho dos homens sem Deus. Não é sem motivos, portanto, que ele não se dirige diretamente ao pretenso Messias da história: ele fala aos prisioneiros, anuncia sua análise dos fatos, revela-lhes o segredo que ninguém ousava anunciar, mas não tenta demover o fanático de suas veredas. O ateísmo (e não sei se faço bem em usar este rótulo) não tem qualquer interesse proselitista. 14 Ao fim, dentre os personagens da narrativa alguns se destacaram por suas ações, criando uma espécie de hierarquia que distinguiu primeiro os personagens ativos (os que falam e propõem modos de compreender a ausência do guardião) dos passivos (que apenas ouvem e reagem aos anúncios e objeções sem oferecer novidades). Depois, dentre estes que chamamos de ativos, dois ofereceram anúncios: um deles é aquele que se apresentou como filho do guardião e salvador dos que nele creem, o outro é o que anunciou a morte do guardião. Também tivemos dois personagens que atuaram colocando objeções às supostas boas-novas do filho do guardião: um deles destacou-se ao questionar a exigência de fé feita pelo pretenso salvador, o outro duvidando da interpretação exagerada que este salvador estaria fazendo das ações ocultas do guardião. Os demais lá estão como ouvintes; são povo, rebanho, personagens coletivos, coadjuvantes, alvos dos pregadores. Eles devem, ao cabo, escolher entre a aterradora liberdade proporcionada pela consciência de um mundo sem comando, sem ordem e sem lei, ou sustentar a ordem e o modo de vida daqueles que estão sob controle de outrem, o que lhes dá alguma certeza quanto ao futuro (e com isso alguma sensação de segurança), mas também sustenta os motivos para o trabalho escravo, alimenta o medo de danação, castra as pretensões de autonomia e liberdade. Diríamos que o leitor (modelo) da narrativa deve, como os personagens passivos, meditar sobre o anúncio nietzschiano da morte de Deus em oposição ao cristianismo; deve responder, escolher, opinar: seguirá ele o salvador e contentar-se-á em seguir suas instruções, ou se entregará à liberdade amoral dos que vivem num pátio que já não possui guia? Escolherá obedecer às ordens daquele que se levantou para assumir o controle do pátio após o sumiço do guardião, ou fará uso da oportunidade de agir por conta própria? Noutras palavras: caro leitor, queres ainda sujeitar-se ao Cristo e às leis alheias, ou aceitas o convite de Nietzsche para sejas um espírito livre? Conclusão Os prisioneiros não riram, mas deram com os ombros e o deixaram ali parado. Na narrativa nietzschiana os prisioneiros abandonam o messias, e não deve ser sem motivos que aquele prisioneiro termina a história “parado”. A imobilidade, arrisco, é um 15 estado que reflete bem o status antiquado de sua pregação, de acordo com o modo nietzschiano de valorizar o cristianismo. A ação dos demais que dão de ombros, viramlhe as costas, parece ser a resposta que o autor previa ou esperava à encruzilhada ideológica (ou seria teológica?) que lhes fora apresentada. Para Nietzsche, o Evangelho do Reino havia perdido sua relevância e a imagem do Cristo (que aparentemente se tornara cômica e até poderia provocar risos) já não causava interesse. Ele termina sua analogia fazendo o excêntrico e insistente pregador ficar sozinho enquanto os prisioneiros dão de ombros escolhendo seguir suas vidas sem sentido em face da realidade. Este é, diríamos, o anúncio nietzschiano do ocaso do cristianismo, notícia que também significa a irrupção de uma nova aurora, o amanhecer de um dia luminoso que, talvez, como ele previa, só alcançasse seu clímax alguns séculos depois. E esse novo tempo – que mais de cem anos depois não deixa de soar como uma utopia a nossos ouvidos – é tempo sem Deus, tempo de um materialismo humano e apenas humano que privilegiaria os espíritos livres, os que estão além do bem e do mal, que são criadores de si mesmos; é tempo propício aos que não ambicionam a eternidade (pois “Não precisamos absolutamente dessas certezas sobre os horizontes mais remotos para viver de maneira plena e capaz a nossa humanidade)20, mas alegram-se com o ciclo ininterrupto que os fez existir e em breve o fará sucumbir no nada. Quando uma pessoa chega à convicção fundamental de que tem de ser comandada, torna-se “crente”; inversamente, pode-se imaginar um prazer e força na autodeterminação, uma liberdade de vontade, em que um espírito se despede de toda crença, todo desejo de certeza, treinado que é em se equilibrar sobre tênues cordas e possibilidade e em dançar até mesmo à beira de abismos. Um tal espírito seria o espírito livre por excelência.21 20 De Humano, demasiado humano (vol. II), segunda parte (O andarilho e sua sombra), § 16. Citado a partir de: NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Humano demasiado humano: um livro para os espíritos livres, volume II. São Paulo: Companhia das letras, 2017, p. 138. 21 A gaia ciência, § 347. Citado a partir de: partir de: NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. A gaia ciência. São Paulo: Companhia das letras, 2012, p. 215. 16