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Segunda-feira, 16 de Julho de 2018
NUNO FERREIRA SANTOS
Jerónimo Pizarro
“Fernando Pessoa já é uma
moda, já é uma marca”P2 a 5
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2 • Público • Segunda-feira, 16 de Julho de 2018
Entrevista
“Mais e mais
pessoas que
passam por Lisboa
icam apenas com o
Pessoa da silhueta”
Jerónimo Pizarro Lisboa e Pessoa não é apenas uma rima
óbvia. Uma e outro são indissociáveis para este colombiano,
uma das referências no estudo do poeta português. Pizarro
fala sobre aquele que já é marca nacional. Mas fala sobretudo
de si e de como a literatura foi um modo de fugir à violência
Por Isabel Lucas texto e Nuno Ferreira Santos fotografia
S
onho de vida seria
entre a leitura e
o mar. E se não
houver mar pode
haver jacarandás.
Quando, em Lisboa,
o colombiano
que mais sabe de
Fernando Pessoa e de literatura
portuguesa escolhe, hesita entre
um cenário ou outro. Professor da
Universidade de Los Andes, onde
é titular da cátedra de Estudos
Portugueses, Jerónimo Pizarro está
feliz ao mostrar a nova edição de
Fausto, de Fernando Pessoa, que
acaba de sair na Tinta da China.
“Acho que está muito bonita.” À
mesa de um café, conta que está
a começar a traduzir Alexandre
O’Neill e sorri com algum alívio
quando sabe que a conversa não
será só sobre Fernando Pessoa. É
mais sobre quem é este homem
com dois doutoramentos — um
em literaturas hispânicas, outro
em linguística portuguesa —,
que viveu 11 anos em Lisboa,
de 2000 a 2011, filho de duas
famílias políticas distantes, que se
cansou da violência do seu país
e se refugiou na literatura. Por
isso chegou a Pessoa, mergulhou
obsessivamente no estudo e no
espólio do poeta português e
desse conhecimento já saíram
cerca de 30 títulos, entre eles uma
biografia intelectual Fernando
Pessoa: Entre Génio e Loucura
[Imprensa Nacional-Casa da
Moeda]. Foi em 2007. Pode ser
que um dia venha outra biografia,
mais completa. Para já, traduz
autores portugueses, divulga-os
no estrangeiro e sente uma grande
intimidade com a língua e com
o país, falando mesmo de uma
identidade pessoal híbrida.
Existia um Jerónimo Pizarro
antes de Pessoa.
Já não sei bem [risos] Acho que
existia.
Como era?
Esse Jerónimo que já terá existido
lia muitíssima literatura em
espanhol e não só; tinha os seus
amores muito marcados por
escritores latino-americanos, como
César Vallejo, Onetti; leu todo o
Jorge Luis Borges, conhecia alguma
literatura norte-americana, foi até
assistente de aulas de literatura
norte-americana e era um
bocadinho menos interessado pelo
mundo francês.
Que era o mundo dos seus pais.
Era, mas passei por um liceu angloamericano em Bogotá. Tive uma
educação relativamente inglesa.
Isso acontece numa Colômbia
violenta, literariamente
conhecida pelo realismo
mágico. Como é que isso se
reflectiu na sua formação?
O realismo mágico ainda me
deixa um bocadinho perplexo,
a tentar perceber exactamente
o que é. Nós temos a sensação
de que na Colômbia acontecem
coisas que, em princípio, não
acontecem noutras partes do
mundo. Acho que acontecem.
Os meus pais conheceram-se em
Paris, mas são colombianos. E
conheceram-se muito perto do
Maio de 68. No início dos anos
1970, estavam filiados no Partido
Comunista, muito próximos dos
movimentos de esquerda da
América Latina nessa época. Hoje
estão muito desiludidos. A minha
mãe foi professora de Literatura
a vida toda. O meu pai é analista
político, estudou Sociologia.
Metade da biblioteca lá de casa
era crítica literária francesa,
todo o Roland Barthes, muitos
poetas franceses, lembro-me de
Aragon; uma biblioteca de crítica
francesa, de críticos franceses a
escreverem sobre literatura latinoamericana, ou de escritores latinoamericanos que passaram por
Paris. A minha mãe tinha o [ Julio]
Cortazar todo, a dissertação de
Mário Vargas Llosa sobre Gabriel
García Marquez que era dificílima
de encontrar, feita antes da
briga deles. E o meu pai escrevia
sobre a violência na Colômbia,
sobre a guerrilha, o narcotráfico.
Os dois foram professores da
universidade pública, e o meu
pai, mais do que a minha mãe,
puxa-me para eu ficar na sua
área. Ele queria muito que algum
dos seus filhos enveredasse pela
política ou estivesse muito perto
da política. Isso para mim era uma
impossibilidade.
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Público • Segunda-feira, 16 de Julho de 2018 • 3
Talvez pela
violência
e por ter
a política
tão perto,
precisei de
limpar de
mim o que
pudesse ser
violência e vi
na literatura
uma
resposta
mais clara
Porquê?
Venho de duas famílias muitíssimo
políticas e sou profundamente
político por dentro, mas nunca
quis estar na política activa. Do
lado do meu pai, a família Pizarro,
são cinco irmãos, três foram para a
guerrilha, um deles foi o principal
comandante de uma das guerrilhas
que há 30 anos entregou as armas.
O meu pai ficou sempre apenas
como analista, de fora, e a defender
os acordos de paz. Mas a política
é a sua vida, pensar a situação da
Colômbia é o mais importante.
Ficou muito desiludido com uma
certa esquerda. Eu tinha a política
ali e uma leitura critica constante
do que se passava no país. A
família da minha mãe era mais
conservadora, um tio que quase
chegou a presidente da Câmara de
Bogotá. Cresci entre uma tradição
conservadora e uma tradição de
centro-esquerda.
Como fez essa síntese?
Foi fascinante. Desde pequeno
convivi com partidos diferentes e
orientações diferentes. Cresci na
época do Pablo Escobar e de uma
grande violência. Lembro-me de
explodir um carro muito perto da
minha casa e de coisas traumáticas.
Vivia com a violência muito, muito
perto. O meu pai foi alvo de um
atentado e quase morreu depois
de uns seis disparos no corpo; tive
primos sequestrados. Talvez pela
violência e por ter a política tão
perto, precisei de limpar de mim
o que pudesse ser violência e vi na
literatura uma resposta mais clara.
Um dos motivos pelos quais talvez
tivesse sentido tanta necessidade
de ficar em Portugal foi por ser um
dos lugares onde conseguia sentir
mais paz, e ainda hoje sinto que é
um dos lugares mais pacíficos.
A desilusão do seu pai com a
política não o contaminou?
Também senti que a política
podia ser um grande palco de
equívocos, de intransigência, de
arbitrariedades. Nunca quis entrar
nesse jogo. É um país polarizado
desde que o conheço. Fugi. A
literatura deu-me mais respostas,
muito mais do que me podia ter
dado a política. O meu pai a certa
altura percebeu.
A Literatura não foi a sua
primeira escolha quando
pensou num curso.
Inicialmente estudei Antropologia,
pensei que fosse estudar Ecologia.
Preferia pensar em problemas
como os ambientais.
Muito políticos.
Sim. E se há país com uma
biodiversidade gigantesca é
Colômbia, mas é um dos países
em que o ambiente é menos
protegido e pensado e não havia
cursos. Temos grandes problemas
por causa das minas, dos recursos
naturais. Há uma minoria que
empobrece a população e estraga
o ambiente. Eu tinha a paixão da
leitura e a paixão da escrita, mas
isso não implicava fazer um curso
de Letras. E a ecologia era uma
das minhas paixões. Nessa época
eu era guarda-florestal, talvez a
fugir da cidade e dos problemas
da Colômbia. Era o que tinham
feito dois primos que estudaram
Biologia. Somos muitos primos,
uns 25 entre as duas famílias
Nenhum foi para a política.
Entre esses primos, há filhas de
antigos guerrilheiros entretanto
assassinados. Todos ficámos com
a sensação de estar vacinados para
a política durante muito tempo.
Nunca pensei quando é que as
Letras aconteceram porque talvez
as Letras para mim tenham sido
algumas leituras muito marcantes.
Essas leituras que a pessoa não
esquece quando e onde as fez.
Que livros?
Lembro-me muito de ler Crime e
Castigo, do Dostoiévski.
Sabe exactamente onde estava
quando o leu?
Numa praia da Colômbia, Coveñas,
onde costumávamos ir; e lembrome de ler Cortazar numa quinta;
lembro-me muito da leitura de
García Marquez já na minha casa
em Bogotá. Mais tarde lembro-me
lindamente de estar a ler Fernando
Pessoa no relvado da Universidade
Nacional à espera dos meus pais.
Li a certa altura o Nietzsche todo,
o Hermann Hesse quase todo.
Era um grande leitor de poesia.
Li Lezama Lima e li toda a poesia
latino-americana que consegui. A
certa altura passei da poesia
c
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4 • Público • Segunda-feira, 16 de Julho de 2018
Entrevista
para os contistas e comecei a ler
sistematicamente contos. Durante
muito tempo na adolescência
escrevi contos e poesia.
Tinha interlocutores entre os
seus amigos?
Mesmo entrando para Letras, não
encontrei muitos interlocutores.
Não me queria definir a mim
próprio como escritor. Ainda hoje
é coisa que não faço. Nunca.
Por pudor?
Pode ser. Houve uma altura em
que senti que tinha muito tempo
para a escrita e então podia sentir
que era mesmo escritor. Não
quero ser só uma pessoa que
tem tempinho e momentos em
que ainda é capaz de escrever
alguma coisa. A escrita quando
funcionava tinha muitas horas
pela frente. Eu estava apenas a
aprender. Não conseguia ter um
bom relacionamento com o tipo
de aluno de Letras arrogante que
entra armado em escritor. Lembrome de um grupo de alunos de
Letras que já se consideravam ser
os grandes García Marquez e com
os quais não havia comunicação
alguma. Nunca me imaginei
tanto no romance. Para mim, o
mais importante era a poesia e
era muito mais difícil encontrar
interlocutores. Era uma coisa
muito íntima e se calhar continua
a ser. E se um dia eu publicar
um livro e me apresentar como
escritor, acho que será com poesia.
Fala justamente desse percurso
que o levou à poesia e, em
particular, a Fernando Pessoa
como percurso íntimo, como se
isso fosse a sua vida.
Sim, acho que sim. Eu trabalhava
na loja da minha avó apenas para
comprar livros com o dinheiro
que ganhava. Era uma tabacaria
pequena, com revistas, bolos,
uma loja dentro de uma clínica.
Fiz isso mais ou menos com 13, 14
anos, aos fins-de-semana. Poupava
e passava duas ou três semanas a
comprar livros. Fui construindo
uma biblioteca muito cedo e muito
grande. Lia imenso. E essa é uma
parte muito pessoal, muito íntima.
Não era muito orientado nas
leituras. Lia um livro e esse livro
levava a outro livro. Mas demorei
muito a conseguir ser um leitor de
literatura colombiana.
Porquê?
Como se com a literatura
colombiana não conseguisse
ter um certo afastamento
minimamente necessário,
como se eu estivesse a ler o
livro sem dissociar do autor, em
certos momentos ficava muito
incomodado. Estou agora a
tornar-me um leitor de literatura
colombiana, mas antes fui um
leitor muito tímido. Havia muitas
coisas de que não gostava.
Esse seu preconceito em relação
à literatura colombiana pode
ser comparado ao de muitos
portugueses, até há algum
tempo, com Fernando Pessoa?
Com certeza. Não sei se é uma
regra, mas fico a pensar se para
uma pessoa do país não será mais
difícil do que para alguém de fora
falar da sua literatura. Para mim,
é quase um alívio poder trabalhar
fora do meu âmbito nacional, ou
funcionar entre vários âmbitos
e ter um afastamento mínimo.
Isso para mim é necessário
quando estou a ler. E estou a ler
Pessoa cada vez mais dentro. Em
Portugal, Fernando Pessoa em
parte foi abafado pelo salazarismo,
por outro lado, a leitura de
Pessoa tem sido muito limitada
e condicionada pelo ensino e
em certos casos essa leitura
estraga Pessoa, não o apresenta
da forma mais interessante
ou criativa. Quando cheguei a
Portugal, muitos dos meus amigos
portugueses brincavam comigo,
“porquê Pessoa?”. Eram muitos
os portugueses em 2000 que
não conseguiam entender o meu
interesse por Fernando Pessoa.
Eu achava uma certa piada, estava
em Lisboa, a querer estudar
literatura portuguesa e eram os
portugueses que me queriam
desmotivar. Cheguei ao Pessoa sem
anticorpo algum, sem uma ideia
preconcebida, como um simples
leitor que fica deslumbrado.
Ficou deslumbrado com o quê?
No início, com O Livro do
Desassossego e com Alberto Caeiro.
Percebi que ali tinha acontecido
alguma coisa marcante. Estudar
Pessoa para mim foi sempre um
privilégio. Nunca pus em causa
o valor de Fernando Pessoa. Sei
que há coisas no espólio menos
importantes, coisas até falhadas,
mas sempre achei que estava
perante a possibilidade de estudar
um dos autores maiores entre
os maiores. E ele foi a minha
introdução à literatura escrita
em português. Conhecia certos
autores, muitos brasileiros.
Era leitor de Guimarães Rosa
e Rubem Fonseca, mas através
de Pessoa cheguei a Eduardo
Lourenço, a Jorge de Sena, a
Sophia, a Eugénio de Andrade. A
diferença foi estudar Pessoa em
Lisboa.
E aprendeu a língua. Até que
ponto sente uma intimidade
com a língua portuguesa?
As línguas dependem de estar
ou não estar no lugar muitas
vezes. Há momentos em que eu
tenho mais segurança, outros
em que perco essa segurança.
Se eu estiver ensonado, é mais
complicado, mas eu já costumo
sonhar em português. Lembro-
me nitidamente de dois ou três
momentos em Lisboa em que
acordei e tive consciência de estar
a sonhar noutra língua que não a
minha. Houve momentos em que
a intimidade foi total. De 2000
a 2011 foi a língua permanente.
Quando regressei a Bogotá, há sete
anos, as pessoas encontraram no
meu espanhol o sotaque de outra
língua. Já não falo como falam os
meus amigos. Isso é um bocadinho
estranho. Para aprender o
português, quase esqueci o italiano
que tinha e esqueci o francês. Tudo
para aprofundar o português.
Agora o objectivo é chegar a mais
palavras. Encontrar, por exemplo,
palavras no Alexandre O’Neill que
me obriga a aprender.
Consegue zangar-se em
português?
Consigo. Nunca fui muito de
palavrões e tenho deixado isso
com o Carlos Pittela. No livro Como
Fernando Pessoa Pode Mudar a
Sua Vida [Tinta da China, 2017]
fizemos um capítulo para ensinar
as pessoas a insultar. Mas para
mim é muito simples brigar em
português. Há muitos momentos
em que estou a pensar em
português e escrevo directamente
em português. A minha identidade
já é feita das duas coisas, não as
consigo dissociar. De manhã sou
mais português no sentido em
que estando em Bogotá estou no
horário de Portugal, a tratar de
coisas de Lisboa, e é de manhã
que dou aulas de Literatura
Portuguesa. Da parte da tarde já
estou mais na Colômbia.
Neste momento o fascínio
com Pessoa é mundial. É por
conhecimento real da obra?
É um fascínio total, mas ainda
um fascínio com um grande
desconhecimento por detrás. A
sua obra sofreu alguns ataques. A
geração beat, nos EUA, lia muito
Pessoa e o Allen Ginsberg fezlhe uns ataques um bocadinho
desnecessários, como também fez
o Cesariny, porque não gostava
que ele tivesse inventado o Álvaro
de Campos, que é mais ou menos o
tipo de poesia de que gostam mas
muito anterior a eles. Tirando isso,
há uma certa unanimidade que
está a aumentar, pessoas que ficam
fascinadas com ele, como ficam
fascinadas por Lisboa. Pessoa está
a tornar-se um símbolo de Lisboa
e de Portugal e é difícil dissociar
as duas coisas. Quem passa por
Lisboa encontra quase sempre
Pessoa, um Pessoa já de antologia.
Não são apenas os estrangeiros.
Os portugueses mais novos estão
a gostar mais e mais de Pessoa. E
o ensino de Fernando Pessoa está
a mudar, o Desassossego já está a
começar a entrar, e acredito que
Pessoa, dentro e fora de Portugal,
irá criar muito mais fascínio.
Pessoa fez uma profecia na qual
acredito mais e mais. Ele fez uns
cálculos astrológicos e disse que
ia ser conhecido plenamente no
contexto da história portuguesa
em 2198. Isso deu-me muito
sossego.
Porquê?
Sei que ainda falta conhecer
metade da obra, falta publicar
metade do que está na Biblioteca
Nacional [BN], que há muitos
inéditos e não temos uma visão de
conjunto e depois vai ser preciso
muito tempo para apreciar o que
está ali e chegar a uma validação
total de Fernando Pessoa. Estamos
muito longe de juntar o fascínio
que já há. Mas sossega-me esse não
ser o fascínio do merchandising,
mas fascínio mais profundo, com
uma sensação de que Pessoa
faz parte totalmente da cultura
portuguesa. O Eduardo Lourenço
que diz que agora associamos
Portugal a Pessoa, e isso é novo.
E ultrapassou claramente Luís de
Camões em termos de procura. E
há uns dias uma pessoa brincava
comigo dizendo que a questão
agora não é Camões/Pessoa, mas
Pessoa/Cristiano Ronaldo. Só que
Ronaldo em princípio ficará menos
tempo e Fernando Pessoa vai ficar
de uma forma permanente.
Está a ligar o fenómeno Pessoa
em Lisboa ao turismo.
Tenho pensado muito nisso por
estes dias ao andar por Lisboa,
que a mudança de Lisboa está a
acontecer de uma forma muito
acelerada. Não houve uma
preparação, mas ao mesmo tempo
estava-se mesmo a ver, havia
quase uma cidade pronta para
ser invadida. Há pouco tempo
dava medo caminhar pela Baixa.
Não havia nada. Prédios inteiros
desocupados. Mas isto não tinha
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Público • Segunda-feira, 16 de Julho de 2018 • 5
Uma pessoa
brincava
comigo
dizendo que
a questão
agora não
é entre
Camões
e Pessoa,
mas entre
Fernando
Pessoa
e Cristiano
Ronaldo
de acontecer tão rápido e não
apenas pela mão do turismo, com
uma cidade mais aproveitada
por estrangeiros e menos por
portugueses. Essa invasão pode
ter outras dimensões, é preciso
cuidar do país como o património,
ter políticas diferentes das que
não permitiram uma reabilitação
durante tanto tempo. Passa
por valorizar mais o que há, os
portugueses deixarem de se
surpreender tanto com o interesse
das pessoas de fora. Como se
viessem legitimar. Nunca tive
dúvidas de que Lisboa era uma
das cidades mais importantes da
minha vida, como não tive dúvidas
de que Pessoa era um dos autores
que tinham marcado a minha vida.
Nos últimos 20 anos tenho sido
leitor assíduo da sala de reservados
da BN, faço requisição de livros e
de manuscritos quase semana sim
semana não. Aquela sala é um dos
lugares de património, há mais
de 150 espólios e costumam estar
lá uma ou duas pessoas, quase
sempre estrangeiros. Imagino uma
espécie de tsunami como este do
turismo, mas um tsunami cultural
a entrar pela porta da BN e ver 150
pessoas a estudar os 150 arquivos.
O facto de Lisboa ter estado vazia
durante tanto tempo facilitou
este tsunami e esta ocupação que
estamos a sentir agora.
Acha que pode acontecer uma
“descoberta” semelhante com a
literatura?
Eu gostaria, mas não em forma
de tsunami ou de surpresa; não
de forma drástica mas carinhosa,
programada, apoiada. É outro
tipo de património, mas é um
património parecido.
Resumindo, Pessoa tornou-se
uma marca.
Já é uma moda e já é uma marca.
O desenho do Pessoa está por
todo o lado, em hotéis, cartões
multibanco, em paredes e é muito
difícil caminhar por aí e não
encontrar locais aproveitando
a silhueta de Pessoa para
merchandising. O problema é que
mais e mais pessoas que passam
por Lisboa ficam apenas com o
Pessoa da silhueta, um Pessoa
muito limitado. Quem encontra
tanto Pessoa vai ficar saturado
com essa ideia que já tinha sido
dita há 30 anos: “Tanto Pessoa já
enjoa.” O merchandising vai criar
saturação e não contribui para a
leitura porque não quer um Pessoa
muito completo. Pessoa está a
transformar-se numa das formas
de os portugueses afirmarem o seu
orgulho de serem portugueses.
Está nos seus planos escrever
uma biografia de Pessoa?
Não é o momento. Sinto que é
para ser pensado mais tarde, uma
espécie de final de percurso, que
faria sentido tendo já publicado
certas coisas que ainda estão em
andamento da parte editorial. Uma
das coisas que me surpreendem
muito num autor que morreu há
relativamente pouco tempo ter já
tantas biografias.
Qual é a melhor?
A de Robert Bréchon.
O Estranho Estrangeiro.
Sim. Há umas cinco ou seis
biografias e depois muitos esboços
biográficos. Não há um autor do
século XX com tantas biografias.
O que explica isso?
Talvez o facto de ser tão
enigmático. De ser até tão legível.
Joyce é um gigante mas não é
muito fácil de ler. Pessoa choca, o
Livro do Desassossego choca muito,
mas um adolescente lê e adora.
Não há o fascínio imediato ao ler
o Ulisses. Estamos num momento
de leitura de segmentos e também
nisso Pessoa parece adiantar-se
em relação à sua época. E há muita
coisa de Pessoa que ainda não
sabemos, que é muito difícil de
descobrir.
Há frustração pessoal por não
ter tempo para avançar nessa
procura?
Já senti, mas deixei de sentir
porque não quero ficar apenas no
Pessoa. Quero estar entre muitos
outros autores portugueses. Gosto
muito de trabalhar com autores
vivos e organizar coisas com os que
estão a escrever neste momento.
Quando saí de Portugal, estava
pessoano demais, passava os dias,
dentro e fora da minha cabeça,
com Fernando Pessoa.
Era uma obsessão?
Acho que era. Eu tinha de
desanuviar um bocadinho. A
saída foi prática, fui para uma
universidade em que tinha
emprego. A viagem aligeirou
muitas coisas. Não quero estar
agarrado a Fernando Pessoa,
não quero ser a única pessoa a
trabalhar Pessoa, nem estar a
publicar de forma sistemática
Fernando Pessoa. A certa altura
percebi que publicar o espólio
todo podia ser mais ou menos
300 livros de cem páginas. Neste
momento, para mim, o desafio
é publicar uma edição crítica
da Mensagem, temos os escritos
esotéricos para publicar há muito
tempo, a poesia ortónima para
revisitar. São projectos para os
próximos, sete, oito anos, em
paralelo com outras coisas. Mas
com outras pessoas.
Pessoa não ocupa todas as suas
horas de professor em Bogotá.
Não. Agora tenho de dar aulas de
teorias do humor e entrar na parte
da filosofia do humorístico.
Não falta humor à literatura
portuguesa?
Isso é verdade. É um dos motivos
pelos quais gosto tanto de Adília
Lopes. Há autores portugueses nos
quais há uma grande capacidade
de ironia.
A nostalgia não nos larga?
Sim. É difícil imaginar um
saudosista rir.
Pessoa tinha humor.
Tinha. O humor depende muito da
observação. Se uma pessoa estiver
muito fechada, não consegue
rir. Custa-me imaginar Pessoa a
olhar para si próprio como sendo
ele próprio. Que pessoa via ele
quando se olhava no espelho?
O que o faz rir, a si?
[Ri] Talvez situações em que as
coisas ficam de pernas para o ar.
Se uma pessoa passasse agora com
um chapéu ao contrário eu ficaria
a rir imediatamente, não só pelo
facto de estarem de pernas para
o ar, mas porque estar de pernas
para o ar me faz ver as coisas de
outra maneira, repentinamente.