ENUNCIAÇÃO
REVISTA DO PROGRAMA DE
PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA DA UFRRJ
Heidegger, Tecnologia e Arte: impasses contemporâneos1
Edgar Lyra∗
Resumo: O artigo chama atenção para a atual dominância tecnológica e para a necessidade de
colocar seus ditames em questão. “A Questão da Técnica” (1953) de Martin Heidegger guia
inicialmente a discussão. O questionamento tem de dar-se em âmbito ao mesmo tempo
consanguíneo e fundamentalmente estranho à essência da técnica contemporânea, podendo a
arte, em tese, oferecer ao pensamento ocasião para esse questionamento. Não é, todavia, trivial
como isso poderia se dar, quer do lado do pensamento, quer do lado da arte. A conferência
proferida em Atenas em 1962, com o título “A proveniência da Arte e a Destinação do
Pensamento” dá suporte à finalização da investigação.
Palavras-chave: Tecnologia; Heidegger; Arte contemporânea; Grécia; Gestell
Abstract: The article calls attention to the present technological dominance and to the necessity
of asking about its dictates. “The Question Concerning Technology” is the initial guide text.
The questioning must happen in a realm that is, on the one hand, akin to the essence of
technology and, on the other, fundamentally different from it. Art could, in principle, offer
thought occasion to this questioning. It’s not, nevertheless, trivial how it could happen, equally
on the side of thought or art. The conference uttered in Athens in 1962, entitled "The
Provenance of Art and the Destination of Thought", gives breath to the finalization of the
investigation.
Keywords: Technology, Heidegger, Contemporary art, Greece and Gestell
1. Introdução
Heidegger sugere no seminal texto escrito em 1953, A Questão da Técnica,2 que
a discussão decisiva sobre nosso tempo “tem de dar-se num âmbito que, de um lado,
seja consanguíneo da essência da técnica e, de outro, lhe seja fundamentalmente
1
Este texto foi apresentado em inglês, em versão resumida, no XXIVth International Conference of the
Olympic Center for Philosophy and Culture (OCPC), em julho de 2014 em Olímpia, Grécia.
∗
Professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da PUC-Rio e colaborador do Programa de
Mestrado Profissionalizante em Filosofia e Ensino do CEFET-RJ.
2
HEIDEGGER, Martin: “Die Fragenach der Technik”, in Vorträge und Aufsätze,Tübingen, Günther
Neske, 1954. Tradução brasileira por Emmanuel Carneiro Leão, em HEIDEGGER, Martin: Ensaios e
Conferências, Petrópolis, Vozes, 2001.
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estranho”.3 Da nossa capacidade de colocar em questão a essência da técnica
contemporânea dependeria nada menos que o destino da civilização global. Diz mais o
autor: “a arte nos proporciona um espaço assim, mas somente se a consideração do
sentido da arte não se fechar à constelação da verdade, que nós estamos a questionar.”4
A verdade a que se refere Heidegger, é bem sabido, não responde a acepções
lógicas ou epistemológicas, mas à aletheia grega, por ele interpretada como
desvelamento do ser, movimento de presentificação de tudo que, em qualquer sentido e
tempo, se possa dizer que é ou vem a ser. A mencionada “constelação da verdade”,
portanto, à qual a arte não deve se fechar, concerne às grandes configurações históricoontológicas que hegemonicamente condicionam o acontecer de todos e cada ente.
Fato é que, ao referir-se a certo período da aurora grega do Ocidente, Heidegger
afirma que “a arte era pia, promos, isto é, que estava integrada na promoção e proteção
da verdade”,5 e que teríamos ainda hoje algo a aprender com essa sua forma grega de
ser. Apura-se nos dicionários Chantraine, Montanari, Lidell&Scott e Bailly, promosé
termo que concerne ao que combate na linha de frente, à exposição frontal ao que virá.
Tem a ver com devoção, com despojamento, liderança e abertura de caminhos. É
importante frisar que Heidegger inscreve o termo grego na frase como um aposto,
sinalizando que não se deve entender pio (fromm) ou piedade (Frommigkeit) no sentido
de compaixão, mas de abertura despojada e reverente para o tremendo, para o sagrado,
para a interpelação titânica que os deuses dirigiam aos gregos.
Primeiro resumo: Heidegger alerta para a necessidade de buscar caminhos para
pôr em questão a essência da técnica e sugere que a arte seria capaz de colaborar com
essa tarefa. Trata-se de buscar pistas sobre como, em diálogo com uma arte
simultaneamente consanguínea e estranha à tecnologia, o pensamento possa lançar luz
sobre nossos destinos.
3
Idem, p.43: “[...] in einem Bereich geschehen, der einer seits mit dem Wesen der technic verwandt und
anderseits von ihm doch grundverschieden ist.” Traduçãobrasileira, p. 37.
4
Ibidem: “Ein solcher Bereich ist die Kunst. Freilich nur dann, wenn die künstlerische Besinnung
ihrerseits sich der Konstellation der Wahreit nicht verschlieβt, nach der wir fragen”. Tradução brasileira
p. 37.
5
Idem, p.42: “Sie war Fromm, promos, d.h. fügsam demWalten und Verwahren der Wahreit.” Traduções
minhas de A Questão da Técnica a partir daqui.
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2. Heidegger e a arte da antiga Grécia
A arte de que reverentemente fala Heidegger em A Questão da Técnica remete a
um tempo em que técnica e arte eram ambas designadas pelo nome de techne, tempo
cuja vigência não passou de uns “poucos anos sublimes”. Ainda que ele não nos dê
indicações cronológicas ou estilísticas muito precisas sobre esses “breves e elevados
tempos”,6 afirma que as artes desse momento “não provinham do artístico”, “não
serviram ao gozo estético” e não se configuravam como “atividades culturais”;7 enfim,
que estavam essencialmente comprometidas com a tarefa de fazer resplandecer “a
presença dos deuses”, de promover “o encontro entre destinos de deuses e homens”8,
encontro poético esse que seria entendido por Platão, no Fedro, como banhado pelo
brilho superlativo da verdade (to ekphanestaton).9 A aposta aqui é a de Heidegger
estaria se referindo ao chamado Período Severo, Austero ou Pré-clássico da arte grega,
situado imprecisamente entre 500 e 450 antes da era cristã, período no qual se inclui a
“Atena meditativa”, do acervo do Museu da Acrópole, comentada pelo filósofo no texto
A Proveniência da Arte e a Destinação do Pensamento, do qual nos ocuparemos mais
adiante.
Como seja, pode-se identificar traços românticos e nostálgicos nesse apreço por
certa Grécia sublimada em suas tensões sociais e políticas, Grécia em que a verdade era
privilegiadamente acolhida nos âmbitos da arte e da poesia.10 Também ecos do veredito
hegeliano de que “a arte já não figura como modo supremo em que a verdade a si
mesma proporciona existência”11 podem ser ouvidos. Mas, penso que Heidegger,
simultaneamente ciente do abismo que nos separa dos antigos gregos e com uma
interpretação muito própria daquele momento da história do Ocidente, não se reduz a
nenhuma das duas leituras. Consciente do lugar difícil e marginal ocupado pela arte na
6
Idem, p.42: “[...] kurze, aber hohe Zeiten.”
Ibidem: “Die Künste entstammen nicht dem Artistischen. Die Künstwerke wurde nicht ästhetisch
genossen. Die Kunst war nicht Sektor eines Kultur schaffens .”
8
Ibidem: “Sie brachten die Gegenwart der Götter, brachten die zwiesprache des göttlichen und
menschlichen Geschickes zum Leuchten.”
9
Platão: Fedro, apud HEIDEGGER 1954, p.43.
10
Cf., por exemplo, SCHILLER: A Educação Estética do Homem – numa série de cartas.
11
HEGEL, G.W.F., citado por HEIDEGGER em Der Ursprungdes Kunstwerkes, Stuttgart, Reclam, 1977,
p.92: “Uns gilt die Kunst nicht mehr als die höchste Weise, in welcher die Wahrheit sich Existenz
verschafft.”
7
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cena contemporânea, mostra-se empenhado em manter abertas as possibilidades de
simbiose entre arte e pensamento, em prol da salvaguarda da verdade do ser em seu
histórico e sempre problemático acontecimento.
3. O enquadramento (Gestell)
A Questão da Técnica é ainda o texto guia. Trata-se de averiguar em que medida
a arte pode hoje colaborar na construção de um âmbito de discussão que torne visíveis
as linhas de forças que estruturam a contemporaneidade. Precisamos, portanto, antes de
mais nada, recuperar aquilo que Heidegger chegou, ainda que precariamente, a dizer
sobre a essência da técnica contemporânea. Valho-me para isso de esquema, passagens
e paráfrases de texto de minha própria lavra, publicado em 2014, no qual realizei essa
mesma recuperação de forma mais detalhada. Seu título: A Atualidade da Gestell
Heideggeriana ou a alegoria do armazém.12
A primeira indicação de Heidegger diz respeito à insuficiência da compreensão
dessa essência a partir de determinações antropológicas e instrumentais. Embora
correta, essa compreensão esconderia o que principalmente precisa ser posto em
questão: o fato de que não somos os senhores da técnica e, sim, incisivamente
convocados a viver segundo seus ditames, sendo-nos especialmente difícil encontrar
espaço para questionar sua estranha dominância. Ou seja, dizer que a técnica é meio,
bem ou mal manejado por seres humanos para a consecução de fins por eles mesmos
definidos é dizer algo que não traz nenhuma compreensão mais essencial acerca do
fenômeno contemporâneo em sua onipresença e real poder de condicionamento das
existências individuais e coletivas.
Uma segunda indicação refere-se à equivocada tendência de pensar a técnica
atual como mero desenvolvimento da antiga. A técnica contemporânea não seria mais
propriamente poeisis, sequer techne, no sentido grego de um conhecimento (episteme)
de linhas de possível cumplicidade com a natureza (physis), conhecimento que
permitisse ao homem produzir13 aquilo que não chegaria a existir sem sua agência. A
12
In MAC DOWELL SJ, João (org):Heidegger: a Questão da Verdade do Ser e sua Incidência no
Conjunto do seu Pensamento. FAJE/Via Verita, Rio de Janeiro, 2014.
13
Ver HEIDEGGER 1954, p. 22: Her-vor-bringen = trazer-para-diante-de-si, produzir.
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nova técnica é, segundo Heidegger, extração e imposição,14 projeto de controle, de
dominação, jugo de toda a espontaneidade, de toda gratuidade.
Tal descontinuidade leva-nos à terceira e mais conhecida indicação, referida
mais diretamente ao termo Gestell, que nomeia “um projeto de disposição conjunta e
ordenada dos diversos entes em escaninhos, prateleiras, compartimentos, arquivos ou
arranjos de quaisquer naturezas, de modo a serem localizados e disponibilizados tão
segura e imediatamente quanto possível.”15 Heidegger enxerga aí uma espécie de
obsessão pela estocagem (Bestand), busca de acomodação de todos os entes num
gigantesco almoxarifado, pronto a atender aos comandos de uma clientela supostamente
humana, não esquecendo o fato de que nesse armazém há também, e mesmo
principalmente, estoques de homens. Foi particularmente claro a esse respeito numa
conferência em Bremen: “O homem é ao seu próprio modo peça de estoque, no sentido
forte dos termos ‘estoque’ e ‘peça’.”16
O termo Gestell tem sido traduzido para o português por “composição”,
“armação”, “dispositivo”, mesmo, seguindo os franceses, por “arrazoamento”, ou os
norte-americanos, por “posicionamento”. Aqui optamos por enquadramento. A palavra
conjuga em português os sentidos de localização e circunscrição, ainda imposição e
coerção, como quando se diz que uma autoridade “enquadrou” um cidadão transgressor.
Trata-se, enfim, de enquadrar todas as coisas, humanas e não humanas, de modo que
estejam prontamente disponíveis para novos projetos, arranjos e disponibilidades.
Essa terceira sinalização desemboca numa quarta e última pista, relacionada à
essência da técnica como dispositivo, aparelho, equipamento, mecanismo; essa
indicação ressalta ainda o caráter obsessivamente dinâmico do enquadramento, “o
processo de interação entre os seus compartimentos, conteúdos e forças motrizes ao
modo de peças e fluxos articulados, com vistas a um funcionamento ininterrupto, não
apenas perpétuo, mas cada vez mais rápido e eficiente”.17 Se a aceleração desse
processo de decompor e recompor, de desencaixar e remontar, de reposicionar e
14
Ibidem: Herausfordern = exigir-que-venha-a-campo, desafiar, extrair, impor, compelir.
LYRA 2014, p.142. As distinções entre “real” e “virtual” aqui não têm maior importância. É a
totalidade dos entes que está em questão.
16
HEIDEGGER, Martin: “Das Ge-stell”, GA 79, Bremerund Freiburger Vorträger, Frankfurt amMain,
Klostermann, 2005, p. 37: “Der Mensch ist in seiner Weise Bestand-Stückimstrengen Sinn der Wörter
Bestand und Stück”. Tradução minha, ver LYRA 2014, p.142.
17
LYRA 2014, p. 144.
15
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disponibilizar pode prosseguir indefinidamente, ou se levará a um esgarçamento do
processo como um todo, é algo que não foi ainda devidamente posto em questão.
Seja como for, podemos agora retomar a questão da possível participação da arte
na construção do questionamento em epígrafe. Em que termos poderia se dar o diálogo
entre pensamento e arte acerca da dominação técnica contemporânea, tão necessário à
compreensão das nossos atuais perigos e promessas?
4. Arte Contemporânea e enquadramento
Uma primeira dificuldade relaciona-se com a significação contemporânea do
termo “arte”. Estamos muito distantes dos “elevados tempos” a que se refere Heidegger,
e também das “belas artes” que Hegel declarou “mortas”. São hoje “artistas” – na
esteira da “perda da aura” diagnosticada por Walter Benjamin18 – tanto os atores da
indústria do entretenimento como aqueles que dela buscam distância, seja tomando-a
como objeto de crítica, seja simplesmente tentando libertar-se dos seus ditames.
Heidegger, é verdade, não dialogou senão com formas mais classicamente definidas de
arte, no máximo modernas e não contemporâneas num sentido mais estrito; todavia, é
igualmente certo que compreendeu as urgências de uma época marcada por
desenvolvimento tecnológico capaz de afetar todas as áreas da vida, não sendo exceção
a arte.
Entre suas escolhas mais conhecidas estão os famosos “sapatos da camponesa”,
de Vincent Van Gogh, o interesse por Paul Cézanne, Georges Braque e Paul Klee, pelas
esculturas e gravuras de Eduardo Chillida, pelos poemas de Rainer Maria Rilke, Georg
Trakl, Friedrich Hölderlin, Stefan Georg e Paul Celan, ainda pelo templo de Paestum,
pela Antígona de Sófocles, enfim, pela Atena do Museu da Acrópole.19
Como seja, aqui nos interessa em particular a aparentemente infinita capacidade
de enquadramento pelo mercado de arte contemporâneo mesmo das mais ousadas
tentativas de denunciar sua lógica. Considere-se, por exemplo, as atividades associadas
ao Grupo Fluxus, que encabeçou radicais protestos em 1963, em frente ao MOMA de
18
Ver BENJAMIN, Walter: A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica.
Boa reunião dos vários momentos em que Heidegger se volta para o tema da arte pode ser encontrada
em BORGES-DUARTE, Irene: Arte e Técnica em Heidegger.
19
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Nova Iorque, com palavras de ordem do tipo – “Destruam os museus!”20 Tais ações
não impediram, ao contrário, abriram caminho para que seu aparato revolucionário
fosse, em prazo bem curto, capturado pelas instituições museológicas que incisivamente
criticavam.
Outro ícone desse paradoxo é a série de latinhas – noventa ao todo – contendo
suposta merda do artista Piero Manzoni, por ele assinadas e numeradas para atestar a
edição limitada da obra e viabilizar sua venda pelo seu peso em ouro. Não obstante sua
forte crítica ao mercado de arte – talvez mesmo por causa dela –, muitas dessas latas
hoje integram acervos de colecionadores e museus. Uma delas, a saber, foi vendida num
leilão da Sotheby’s em março de em 2007 por 124000 euros.21
Saindo da iconoclastia vanguardista, museus importantes como o Louvre de
Paris oferecem aos seus visitantes, com enorme aceitação, dispositivos eletrônicos para
guiar as visitas. Aqueles que os alugam obtêm informação imediata e confiável sobre
percursos e obras, podendo certificar-se em 3D e alta definição, na tela dos gadgets
alugados ou dos próprios celulares, se assim o preferirem, de que estão diante dos
originais.22 É curioso notar que em muitos casos os usuários limitam-se a conferir as
obras descritas sem qualquer outra demora que conote experiências de fruição e sentido.
Engano maior, contudo, seria a pretensão de desqualificar essas iniciativas educativas
das curadorias de grandes museus como fúteis ou estúpidas. Estamos aqui falando de
um enquadramento gigantesco, de almas, desejos, tempos, trabalhos, espaços, olhares,
conhecimentos, fluxos de capital, competências técnicas, enfim, de algo que precisa ser
corajosamente pensado no seu gigantismo planetário.
Fato é que as formas contemporâneas de enquadramento podem se multiplicar
tremendamente, manifestando-se como curiosidade passageira, afetação simulada,
desqualificação moralista, avidez informativa, obsessão pelo registro, pedantismo
crítico e por aí afora.
Tais
episódios
relacionados
à
produção
e
exposição
de
arte
na
contemporaneidade podem ser rebatidos sobre a explicitação da dominação técnica feita
por Heidegger. Requer-se, de pronto, renunciar a culpar a extravagância, a cumplicidade
ou a vaidade dos artistas, bem como a fome de lucro e de status da burguesia
20
See WOOD, Paul: Conceptual Art,London, Tate Publishing, 2002, p.21-24.
Ver http://en.wikipedia.org/wiki/Artist's_Shite
http://www.repubblica.it/2006/08/gallerie/spettacoliecultura/merda-dartista-record/1.html
22
Ver https://www.louvre.fr/audioguide-et-applications
21
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endinheirada, ou ainda a frivolidade do público em geral. Mais uma vez, tudo isso faz
parte, nas palavras do filósofo em epígrafe, de um destino planetário cujos caminhos de
questionamento dificilmente se abrem quando o empenho na identificação de culpados
toma conta da cena. Cabe, acima de tudo, suportar o desconforto diante da estranha
dominância da técnica no mundo contemporâneo, em seu incisivo enquadramento de
todos os entes, inclusive os artísticos.
Não se trata aqui, bem entendido, até pela dificuldade de definição do termo
“arte”, de buscar base empírica visando a defender a tese do peremptório
enquadramento de toda e qualquer manifestação artística pela técnica contemporânea,
mas de articular linhas gerais de uma reflexão sobre as possíveis linhas de tomada de
distância artístico-filosófica em relação à dominação em discussão. Não se trata, enfim,
de negar – o que nem Hegel fez – que continuem a existir experiências afetivas e
reflexivas profundas em torno de obras de arte singulares. O que principalmente se põe
em questão é fato dessas experiências não terem centralidade na polis global
contemporânea, sendo em geral incapazes sequer de desorganizar o atual ethos
planetário em assombros e interrogações mais persistentes e públicas.
Seja como for, pode-se conjecturar que, imersa num misto de voluntarismo e
falta de alternativa, boa parte da arte atual tenha abandonado a experiência
contemplativa e se voltado para a tática do deslocamento e do choque, mais
amplamente, para a exacerbação de contrastes e estridências, numa tentativa de
provocar, num público cujas disposições afetivas variam entre a hiperexcitação e a
anestesia, uma forçada transição do banal para o extraordinário. O problema é que esse
sentido mais provocativo ou impositivo da arte contemporânea acaba, à revelia das suas
chocantes intenções, sendo muito mais aparentado do que estranho à essência da técnica
contemporânea, restando via de regra pouco de assombro e muito de palavrório vazio
após choque inicial, supondo, claro, que tenha de fato havido algum autêntico choque.
Não é fácil encontrar real e perene estranhamento, por exemplo, na atual
profusão de filmes de terror, em seu bizarro acervo de chocantes extravagâncias. Não
obstante o nível de provocação de que se servem, sua pretensa intensidade é facilmente
absorvida pelas coleções mentais de públicos cada vez mais ávidos por emoções baratas
e acostumados à banalidade do sofrimento e da vida.
Quem sabe filmes de ficção científica desconcertantemente distópicos, como
2001 – Uma Odisséia no Espaço, de Stanley Kubrick (1969), ou Blade Runner, de
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Ridley Scott (1982),23filmes realmente comprometidos com a chamada de atenção para
as singularidades do nosso tempo, possam ser resgatados dos compartimentos
periféricos, sem centralidade alguma, ao qual têm sido relegados pelas suas
posteridades.24 Há, em todo caso, muita filmografia scifi sendo produzida e consumida
hoje em dia, sendo bom exemplo a série televisiva Black Mirror, criada em 2011 por
Charlie Brooker.
Pode-se, de todo modo, pensar o fenômeno da rápida filtragem da arte pela atual
rede de compartimentos midiáticos e institucionais como uma espécie museológicomercadológica da Gestell nomeada por Heidegger. O que lhe é consanguíneo é
absorvível e silenciável; o que não é sequer chega a ter existência mais significativa no
armazém global. Fica por discutir se, e em que medida, a essencial cifra de
estranhamento poderia sobreviver, ora ao periférico confinamento, ora à consanguínea
absorção.
A última das indicações sobre a essência da técnica fornecida por Heidegger
alerta ainda para o imediatismo que define todo o enquadramento contemporâneo.
Como a Gestell nomeia um estoque com demanda por rápida e constante atualização,
correm permanentemente o risco de tornarem-se obsoletas as referências de todos
aqueles que pretendam participar do espaço público de reflexão sobre arte. O próprio
jogo de comparações entre estilos e artistas a que via de regra recorrem a crítica e a
curadoria de arte − despercebidamente reproduzindo a lógica da estocagem e da
classificação − acaba por renunciar à potencialização daquelas estranhezas
possivelmente imunes aos exigidos parentescos entre arte e técnica contemporânea. Não
é trivial, afinal, a conquista de uma retórica crítico-curatorial capaz de fazer reverberar
os potenciais de transgressão mais genuínos e, a partir deles, aquilo que precisa ser dito
e pensado no nosso estranho tempo.
5. Heidegger em Atenas
Vários são os textos, como já sinalizado, em que Heidegger se ocupou do
diálogo entre pensamento e arte. Muitos foram os poetas e artistas de diversas épocas
23
Cuja continuação, dirigida por Dennis Villeneuve, foi exibida em 2017 com o título de Blade Runner
2049.
24
A esse respeito ver LYRA 2011: Hannah Arendt e a Ficção Científica.
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que despertaram sua atenção. A finalização destas notas ficará, contudo, por conta de
algumas indicações presentes na conferência proferida em Atenas, em 1967, de título A
Proveniência da Arte e a Destinação do Pensamento.25
Heidegger de pronto nos aconselha a seguir pensando “a proximidade longínqua
do reino da deusa Atena” para fazer a experiência, pequena que seja, do “segredo da
proveniência da arte da Grécia”.26 Sugere que, a despeito da enorme distância que nos
separa daquelas origens, algo de muito importante poderia ser aprendido na meditação
sobre elas; e dá algumas pistas sobre o objeto desse possível aprendizado.
Atena, conselheira de múltiplos dons (polymetis) é identificada como deusa que
reina onde quer que os homens produzam alguma coisa, de qualquer tipo e nobreza.
Heidegger logo nos remete ao relevo do Museu da Acrópole para falar do olhar que
qualifica Atena como “conselheira”.27 Diz que nesse relevo ela
aparece como skeptomena, aquela que medita. Em que direção se volta o
olhar meditativo da deusa? Para a borda, para o limite. O limite não é
decerto somente o contorno e a moldura, não apenas o lugar em que
alguma coisa se detém. O limite significa aquilo pelo qual alguma coisa é
reunida no que tem de próprio, para assim aparecer em sua plenitude,
para vir à presença. Ao meditar sobre o limite, Athena tem já em vista
aquilo para que ação humana deve antes de tudo se voltar para ser capaz
de levar o que quer que tenha visto à visibilidade de uma obra.28
A passagem trata identificavelmente do nosso problema, aquele de levar a arte a
uma essencial visibilidade, capaz de favorecer sua experiência histórica, pública e
significativa, conquanto numa época outra, dominada pelo enquadramento técnicoe
abandonada pelos deuses. O autor indaga, na segunda das três partes da conferência, a
que exigências responde a arte do nosso tempo, e sugere:
25
HEIDEGGER, Martin: “Die Herkunft der Kunst und die Bestimmung des Denkens”, in JAEGER, Petra
& LÜTHE, Rudolf (hrsg.): Distanz und Nähe – Reflexionen und Analysen zur Kunst der Gegenwart,
Darstadt, Königshausen & Neuman, 1983. As traduces são todas minhas.
26
Idem, p.15: “In die ferne Nähe des Waltens der Göttin Athen […] vom Geheimnis der Herkunft der
Kunst in Hellas”.
27
A imagem pode ser visualizada em muitos sites, por exemplo, do Museum of Classical Archeological
Databases, da Cambridge University: http://museum.classics.cam.ac.uk/collections/casts/mourningathena. A relevo é usualmente identificado como “Mourning Athena”, embora a descrição de Heidegger
não faça referência a nenhum luto ou pranto.
28
HEIDEGGER, op. cit., p.13: “[…] erscheint Athene als die skeptome/na, die Sinnende. Wohin geht der
sinnende Blick der Göttin? Auf die Grentzstein, auf die Grenze. Die Grenze jedoch ist nicht nur die
Umriβ und Rahmen, nicht nur das, wobei etwas aufhört. Grenze meint jenes, wodurch etwas in sein
Eigenes versammelt ist, um daraus in seiner Fülle zu erscheinen, in die Anwesenheit hervorzukommen.
Der Grenze nachsinnend hat Athene schon inm Blick, vorauf menschliches Tun erst vorblicken muβ, um
das so Erblickte in die Sichbarkeit eines Werkes hervorzubringen.”Os grifos na tradução também são de
minha responsabilidade.
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Suas obras não se circunscrevem mais aos limites fecundos de um mundo
popular ou nacional. Pertencem à universalidade da civilização mundial.
Sua composição e organização fazem parte de daquilo que é projetado e
produzido pela tecnociência.29
Juntando as duas indicações, perguntamos: − Que significa falar de limites na
era tecnológica? − Que significa dizer que a composição e a organização da arte
atendem ao projeto e à produção técnico-científica?
Dizer que toda a experiência artística está hoje impregnada de imperativos
técnicos remete certamente às exigências a que deve atender toda produção que
pretenda lugar no armazém dos séculos XX e XXI. Mas, permanece problemática a
questão da cifra de estranhamento necessária a toda arte capaz de qualificar-se como tal
e possivelmente colaborar com o pensamento na colocação em questão da essência
dessa mesma técnica.
“Estranhamento” é, de fato, palavra de ordem da arte contemporânea, a ponto de
ter sido a “beleza” relegada ao ostracismo. Não obstante, indicamos já que mesmo
manifestações artísticas em princípio bastante estranhas são via de regra absorvidas pela
retícula tecnológica. E pontuamos: “o que é consanguíneo à técnica é absorvível e
silenciável; o que não é sequer chega a ter existência mais significativa no armazém
global”.
A questão que a possível coexistência entre parentesco e estranhamento nos põe
passa a ser então a dos limites que deve observar a arte contemporânea para ser
propriamente arte, e isso aqui significa: produção comprometida em abrir espaço para
que a atual “constelação da verdade” se ponha em questão. Para onde devemos nós
olhar em busca desses limites, nós que viemos “muito tarde para os deuses e muito cedo
para o Ser”?30
Para evitar mal-entendidos sempre à espreita, evoco a última frase do texto que
deu origem a este ensaio, na qual Heidegger afirma a interrogação como “devoção do
pensamento”, portanto fortemente incompatível com toda e qualquer tentação de definir
“limites” para a arte contemporânea em termos de imposição de regras e demarcações
29
Idem, p.15: “Ihre Werke entspringen nicht mehr den prägenden Grenzen einer Welt des Volkhaften und
Nationalen. Sie gehören in die Universalität der Weltzivilisation. Deren Verfassung und Einrichtung
werden durch die wissenschaftliche Technik entworfen und gelenkt.”
30
HEIDEGGER, Martin: “Aus der Erfahrung des Denkens”, in Aus der Erfahrund des Denkens 19101976, GA 15, Frankfurt Am Main, Klostermann, 1983 p.76: “Für die Götter kommen wir zu spat und zu
früh für das Seyn”.
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do fazer artístico. Seria difícil imaginar extravio maior em relação ao que Heidegger se
esforça por problematizar.
Posta a advertência, mais que fazer o elogio da combatividade e da genialidade
das pessoas envolvidas na produção contemporânea de arte ou, ao contrário,
culpabilizá-las pela sua inocuidade frente às presentes urgências, seria o caso de
fazermo-nos honestamente interrogativos, tanto quanto possível, em relação ao
enquadramento técnico no qual nos movemos todos. Quem sabe assim, despojadamente,
possam nos ajudar as obras de arte de hoje a abrir um espaço em que a técnica,
revelando-se capaz de reduzir à sua inexorável lógica mesmo seus parentes mais
rebeldes, mostre-se afinal em sua tirânica verdade.
Um último adendo, não importa quão nostálgico Heidegger realmente seja em
relação à arte da antiga Grécia – e de qual período tenha em especial apreço – podemos
aqui conjecturar, por contraste, que a arte grega fosse capaz de pôr em questão uma
configuração histórico-ontológica na qual os destinos dos homens se punham em
estreita relação – para o bem ou para o mal – com os desígnios dos seus diversos
deuses. Sem idealizações, o paralelo sugerido é o de que a verdade de hoje, a técnica
contemporânea em sua essência, permaneça todavia incapaz de ter seu poder de
condicionamento mais claramente questionado pela arte e pelo pensamento, como se
permitíssemos a essa técnica disfarçar-se num conjunto de neutralidades com o qual
temos inteligentemente de lidar, em suma, nunca percebida como atmosfera cujos gases
povoam tanto o mundo exterior como nosso sangue ainda humano. Seria tarefa do
pensamento, em simbiose com a arte, deixar isso tão explícito quanto possível. Disso
dependeria o nascimento de um outro tempo, quem sabe menos assertivo, menos
acelerado, menos frenético.
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