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A Psicologia entre o longo passado e a curta história

2018, Dissertatio

https://doi.org/10.15210/dissertatio.v47i0.9996

O presente trabalho pretende inserir a História da Psicologia dentro de um debate mais alargado, em torno das Histórias da Filosofia e das Ciências. Para isso, o objeto de análise é a célebre frase de Ebbinghaus, 'A Psicologia tem um longo passado, mas uma curta história', e toda a tradição de livros e textbooks decorrente dela, muito popular nos séculos XX e XXI. O trabalho analisará o texto de Ebbinghaus e seus compromissos decorrentes. Então realizará uma crítica a essa tradição, em três frentes: primeiramente, trazendo à tona estudos mais recentes sobre Gustav Fechner, encarado como figura central na constituição da Psicologia como ciência, mas não obstante ignorado por seus compromissos 'especulativos'; em segundo lugar, confrontando tais questões com as perspectivas do século XX, especialmente a história epistemológica das ciências; finalmente, abrindo o 'longo passado' a uma história mais alargada, a partir de analistas mais contemporâneos que começaram a perscrutar o próprio termo 'Psicologia'. ____________________________________________________________________________________________ This paper intends to insert the History of Psychology in a wider debate along with the History of Philosophy and History of Science. In order to do that, the object of analysis is Hermann Ebbinghaus’s famous phrase, ‘Psychology has an old past, but a short history’, and all the tradition of books and textbooks due to it, very popular on the 20th and 21st centuries. The paper is going to analyse Ebbinghaus’s text and its historical commitments and consequences. Then will perform a critics of this tradition, in 3 fronts of arguments: firstly, bringing up some more recent studies on Gustav Fechner, seen as a central character on the making of Psychology as a science, but nevertheless ignored for its ‘speculative’ commitments. Secondly, the paper will confront such questions with the historical perspectives of 20th century, specially the epistemological history of science. Finally, the paper will open the argument of ‘old past’ to a more wide ‘history’, showing contemporary analysts who started to scan the historical meaning of the word ‘Psychology’

A PSICOLOGIA ENTRE O ‘LONGO PASSADO’ E A ‘CURTA HISTÓRIA’ Marcio Luiz Miotto Universidade Federal Fluminense Resumo: O presente trabalho pretende inserir a História da Psicologia dentro de um debate mais alargado, em torno das Histórias da Filosofia e das Ciências. Para isso, o objeto de análise é a célebre frase de Hermann Ebbinghaus, ‘A Psicologia tem um longo passado, mas uma curta história’, e toda a tradição de livros e textbooks decorrente dela, muito popular nos séculos XX e XXI. O trabalho analisará o texto de Ebbinghaus e seus compromissos decorrentes. Então realizará uma crítica a essa tradição, em três frentes: primeiramente, trazendo à tona estudos mais recentes sobre Gustav Fechner, encarado como figura central na constituição da Psicologia como ciência, mas não obstante ignorado por seus compromissos ‘especulativos’; em segundo lugar, confrontando tais questões com as perspectivas do século XX, especialmente a história epistemológica das ciências; finalmente, abrindo o ‘longo passado’ a uma história mais alargada, a partir de analistas mais contemporâneos que começaram a perscrutar o próprio termo ‘Psicologia’. Palavras-chave: Epistemologia, psicologia, história da ciência, história da filosofia contemporânea, história da psicologia. Abstract: This paper intends to insert the History of Psychology in a wider debate along with the History of Philosophy and History of Science. In order to do that, the object of analysis is Hermann Ebbinghaus’s famous phrase, ‘Psychology has an old past, but a short history’, and all the tradition of books and textbooks due to it, very popular on the 20th and 21st centuries. The paper is going to analyse Ebbinghaus’s text and its historical commitments and consequences. Then will perform a critics of this tradition, in 3 fronts of arguments: firstly, bringing up some more recent studies on Gustav Fechner, seen as a central character on the making of Psychology as a science, but nevertheless ignored for its ‘speculative’ commitments. Secondly, the paper will confront such questions with the historical perspectives of 20th century, specially the epistemological history of science. Finally, the paper will open the argument of ‘old past’ to a more wide ‘history’, showing contemporary analysts who started to scan the historical meaning of the word ‘Psychology’. Keywords: Epistemology, psychology, history of science, history of contemporary philosophy, history of psychology. ‘A psychological sophistication that contains no component of historical orientation seems to me to be no sophistication at all’ (Edwin Boring) ‘Sem rasgar a tradição, uma história da ciência não pode começar’ (Georges Canguilhem) © Dissertatio [47] 95-1342018 Marcio Luiz Miotto O que é a Psicologia? Essa pergunta foi incessantemente repetida no século XX, sob as mais variadas respostas. Ao mesmo tempo irônico e severo, Georges Canguilhem (1956/1966) chegou a dizer – há exatos 60 anos – que, enquanto a pergunta ‘o que é a Filosofia’ é para os filósofos um gesto de humilité (‘humildade’), para a Psicologia, devido a certo impasse histórico, a pergunta ‘o que é a Psicologia?’ pode ser um fator de humiliation (‘humilhação’). Mas nesse sentido, qual seria a raiz da ‘humilhação’, e que tipo de gesto autoriza a ‘humildade’? Afinal, a pergunta sobre o que é a Psicologia também carrega consigo a questão sobre nossa atualidade e a disciplina que se candidatou a desvendar essa questão. Sobre a pergunta ‘o que é a Psicologia?’, vale notar de saída que, do mesmo modo como o físico define sua ciência como o ‘estudo da natureza’ (physis), o psicólogo define a Psicologia como o ‘estudo’ ou ‘ciência’ da ‘mente’ ou ‘alma’ (‘psyché’). O senso comum aceita essas definições, mas em foro epistemológico a questão adquire outras sutilezas. Em Psicologia, por exemplo, pode-se perguntar: se ela é um ‘estudo’ ou ‘ciência’, trata-se de que tipo de estudo ou ciência? Há estudos unificados ou não? Sendo ou não unificados, isso ocorre por que motivo? De tais perguntas, o primeiro fator importante a rememorar é que a Psicologia, em sua história, precisou se deparar continuamente com o fato de não ser um campo unitário. Considere-se a ciência um corpo único de conhecimentos ou vários ‘paradigmas’ em luta, no caso da Psicologia é fato notório que não há apenas um, mas vários ‘estudos da mente’, e via de regra sob disputa. Os objetos de estudo, por exemplo, são diferentes em cada perspectiva. Wundt, fundador do ‘primeiro’ Instituto de Psicologia em 1879, afirmava que o objeto da Psicologia é a ‘experiência imediata’, abordável por dois universos metodológicos distintos: um ‘fisiológico’, empregando os experimentos da fisiologia sensorial; e outro ‘popular’, dialogando com as ciências históricas e do espírito. Contrário a Wundt, John Watson apoiava o behaviorismo em métodos experimentais e estudava o comportamento, definido como a parte do funcionamento dos organismos em relação com o ambiente. Visão antagônica à da Psicologia da Gestalt, inspirada – ao menos em parte – na física moderna para estudar as ‘formas’ (gestalten) da experiência humana. Tomando apenas esses três exemplos, são notáveis as diferenças de tom. Há muito o jogo é entre antagonistas: há psicologias que dialogam com métodos e conceitos das ciências naturais e empregam métodos matemáticos; outras psicologias dialogam com outras disciplinas, tais como a Linguística, a Sociologia, a Antropologia e a História, para dar conta das manifestações humanas. Umas negam o recurso à filosofia, outras o exaltam. Algumas requerem autonomia, outras visam anexação à biologia, outras ainda pedem 96 Dissertatio [47] 95-1342018 independência diante das outras psicologias. Constatando tal variedade epistemológica, retornam as perguntas acima: quais são os critérios? Junto aos debates de fundação de cada teoria, a própria História da Psicologia, tal como contada entre os séculos XIX e início do XXI, não deixou de tentar justificar a unidade ou, eventualmente, acusar (ou também justificar) a dispersão. Temas prévios direcionam análises possíveis, e determinados modos de enxergar a história também orientaram as respostas à pergunta sobre se a Psicologia deve ser unitária ou não, ou em que sentido o fato dela ser uma dispersão de várias correntes poderia ser um bom ou mal sinal. Mais ainda: responder tais questões implica definir a identidade epistemológica da Psicologia (com consequências científicas e inclusive institucionais), bem como definir se a questão histórica não passa de um expediente enfadonho para jovens estudantes ou um campo de batalha pela alma e espaço de uma disciplina. Nesse sentido, a provocação de Canguilhem permaneceu relativamente aberta nos últimos 60 anos: ‘na medida em que [o psicólogo] falta responder exatamente sobre o que é, tornou-se a ele difícil de responder o que faz’, savoir-faire cuja aposta na simples eficácia prática, e não sob uma essência rigorosamente definida a direcionar as pesquisas, carrega a ameaça da Psicologia não passar de um ‘empirismo composto, literariamente codificado para fins de ensino’ (CANGUILHEM, 1956/1966, p.77). Com base em tal contexto, o presente trabalho pretende fazer um reexame de narrativas ‘clássicas’ em história da Psicologia, detendo-se nos problemas seguintes: primeiramente, uma circunscrição preliminar da história da Psicologia, tal como predominantemente contada no século XX e difundida em manuais e textbooks. No alvo, livros como o de Hermann Ebbinghaus (1908), seguido por uma longa tradição de inúmeros outros ‘manuais’. Tais narrativas permaneceram ainda vivas no século XXI, acrescidas de uma popularidade e simplificação didatizante apenas proporcionais ao não exame dos postulados empregados (o que justifica, por si só, a necessidade de retomada e exame). Em segundo lugar, o presente trabalho confrontará essas perspectivas históricas com outras mais recentes, tomando como base o exemplar de Gustav Fechner, ao mesmo tempo conhecido como o criador da primeira fórmula ‘científica’ em Psicologia, mas negligenciado no trato de seu projeto. Fechner curiosamente encarna o exemplo do ‘ilustre desconhecido’, praticamente citado em todos os livros de psicologia, mas sem atenção proporcional à amplitude de seus projetos. Em terceiro lugar, as consequências de análises como a de Fechner serão reunidas com um breve exame de perspectivas históricas do século XX, notavelmente a história epistemológica das ciências e sua crítica às histórias tributárias do século XIX. Finalmente, examinaremos alguns marcos históricos segundo analistas mais atuais, abrindo 97 Marcio Luiz Miotto a perspectiva clássica e manualesca de história da psicologia à análise detida dos textos científicos e filosóficos. Busca-se evidenciar que tais frentes de análise impõem reformulações sobre o que a Psicologia ‘é’ e o que o psicólogo ‘faz’. O presente estudo, de caráter preliminar, é a primeira aproximação de um work in progress que tematizará tais problemas com maior rigor. Uma tradição histórica ‘internalista’ e ‘positivista’ Dizer que a história pode ser contada de vários modos, e por quem quer impor o ponto de vista do ‘vencedor’, é apenas reiterar algo já amplamente discutido. Mas considerando a forma como uma longa tradição da Psicologia dos séculos XX e XXI conta sua história, de saída pode-se retomar o comentário crítico de Paul Mengal (1988) e afirmar: tais histórias reiteradamente empregaram pressupostos ‘internalistas’ e ‘positivistas’. Grosso modo, por ‘internalismo’ Mengal se refere à história como resultante de um desenvolvimento endógeno, tanto mais visível quanto menor a interferência de caracteres ‘exteriores’, tais como a cultura, as sociedades e as crenças. Nas palavras de Mengal (1988, p. 485), ‘a psicologia seria, segundo essa concepção, animada por uma dinâmica própria, um processo evolutivo totalmente endógeno e seria independente de fatores externos como domínios religiosos, sociopolíticos e econômicos’. Como se existisse uma objetividade imutável recoberta pelas variações históricas, à mercê de ser ‘descoberta’ pelo ponto de vista mais ‘adequado’, isto é, que ‘revele’ essa objetividade inerente. Por isso uma descrição histórica apenas seria autêntica se destituída das ‘crenças’ e ‘situações’ encontráveis nos personagens de uma época pelo historiador. Os personagens das diferentes épocas, afetados por suas circunstâncias externas (crenças, abstrações, aprendizado pessoal, preconceitos...), teriam um déficit de perspectiva, que deveria ser completado com um ponto de vista histórico eleito como privilegiado. Veja-se, por exemplo, como Schultz e Schultz iniciam seu popular História da Psicologia Moderna: […] a psicologia é uma das mais antigas disciplinas acadêmicas e, ao mesmo tempo, uma das mais novas. O interesse pela psicologia remonta aos primeiros espíritos questionadores […]. As mesmas espécies de interrogações feitas atualmente sobre a natureza humana também o eram séculos atrás, o que demonstra uma continuidade vital entre o passado e o presente em termos de seu objeto de estudo. A distinção entre a psicologia moderna e seus antecedentes está menos nos tipos de perguntas feitas sobre a natureza humana do que nos métodos empregados na busca das respostas a essas perguntas. O que distingue a disciplina mais antiga da filosofia da psicologia moderna são a abordagem e as técnicas usadas, que denotam a emergência desta última um campo de estudo próprio, essencialmente científico (SCHULTZ e SCHULTZ, 1998, p.17-18, grifos meus). 98 Dissertatio [47] 95-1342018 Mais do que simplesmente descrever a história, há nessa citação diversas demarcações: a Psicologia teve, durante a história, os ‘mesmos’ problemas, ‘sempre’ enunciados, permanecendo então a mesma pergunta sobre os mesmos objetos, considerados imutáveis. Isso equivale a dizer que a mente sobre a qual pensavam os filósofos antigos seria a mesma mente pensada pelos neurocientistas atuais. A diferença é que, enquanto os filósofos se perdiam em especulações e abstrações, os neurocientistas finalmente encontraram a objetividade científica. Por isso, embora tão antiga, a psicologia também seria ‘nova’, pois apenas em tempos mais recentes ela teria se libertado de seus prejuízos e atingido aquilo que sua objetividade sempre exigiria: o estatuto de ‘ciência’, ou mais precisamente o de ciência natural, tal como ensinariam as ciências nobres do século XIX: física, química e biologia. Nisso tudo é possível ver o viés ‘internalista’: a psicologia teria uma espécie de destino ‘transhistórico’, com seus problemas e objetividade permanecendo os mesmos. Os homens do passado teriam ainda visões fantasiosas ou abstratas, frutos do misticismo, da religião, das especulações e visões limitadas. Apenas quando esses ‘mesmos’ problemas recebessem uma roupagem científica é que poderiam ser explicados adequadamente. À frente esses temas serão desdobrados, mas vale notar de saída a ciência natural como selo final a certificar o verdadeiro valor da Psicologia, contra tantos anos de obscurantismo em assuntos mentais. Disso se segue o viés positivista. Como se sabe, conforme o Curso de Filosofia Positiva, o progresso da humanidade seguiria uma direção irrecorrível, a ‘Lei dos Três Estados’. Segundo tal ‘lei’, em suas fases mais primitivas o homem experimentaria o mundo sob princípios explicativos teológicos, começando pelas crenças animistas e chegando até os deuses gregos e o Deus cristão. Após a fase teológica a humanidade avançaria, alcançando então especulações, pressupostos abstratos e metafísicos. Finalmente, a humanidade progrediria até sua fase considerada mais avançada, o momento científicoindustrial das sociedades do século XIX. Por ‘científico’, leia-se as ciências naturais do século XIX (da astronomia à ‘física social’, segundo Comte), e por ‘indústria’ leia-se as realizações européias do século XIX. Apoiadas na ciência e na observação positiva, as sociedades ocidentais do século XIX teriam evidente privilégio sobre outras visões de mundo, presentes e passadas. Nisso o postulado positivista se vinculou, não raramente, com o ‘internalismo’ mencionado: a visão científica ‘positiva’ conseguiria encarar o problema naquilo que tem de inerente e factual, para além das ficções obscurantistas do passado. Sob termos bastante gerais, o saber científico positivo se define sob certo ideário do século XIX e condiciona determinadas visões da história baseadas nesse ideário. 99 Marcio Luiz Miotto Ebbinghaus e a tradição dos manuais A citação acima, de Schultz e Schultz, coloca-se sob a luz desse ideário que flerta com o internalismo e o positivismo, seguindo uma longa tradição de outros manuais e livros-texto dos séculos XIX-XX. Conforme mencionado, certa perspectiva sobre a Psicologia rege o que deveria ser sua história. A perspectiva-chave, no caso, é a aproximação entre as teorias da alma e a ciência natural. Dito isso, fazer história é fazer a crônica dessas aproximações. Dentro dos livros, manuais, compêndios, textbooks, outlines, abrisse, abregés de Psicologia, uma das referências mais reiteradas é o livro Psychology, an Elementary Text-Book, de Hermann Ebbinghaus (1908). Lá o autor enuncia uma frase muito retomada no século XX: ‘a psicologia possui um longo passado, mas uma curta história’ (1908, p.3) 1 . O leitmotiv aí traçado se repete indefinidamente em outros autores, com menor ou maior variação (um dos principais difusores é Edwin Boring, 1950). Para além das variações, o critério de uma objetividade atemporal rege a promessa de que a Psicologia é, ou deve ser um dia, unitária e regida pelo discurso da cientificidade naturalista. Por isso – notemos a semelhança com Schultz e Schultz, do outro lado do século XX –, o ‘longo passado’ se refere novamente a uma objetividade trans-histórica, à espera de seu desvelamento científico; e a ‘curta história’ inicia com as aproximações científicas. Vale acompanhar o texto de Ebbinghaus um pouco mais. Segundo ele, desde a antiguidade houve estudos sobre a mente, notavelmente com Aristóteles. Mas eles não se desenvolveram – até o século XVIII – porque o homem se enredaria ainda em inúmeras crendices e mistificações. Dentre elas, constam a complexidade do tema, a superficialidade dos conhecimentos disponíveis, ou ainda a ameaça que uma ciência da alma poderia ter sobre governos e doutrinas mais antigos. A ciência natural utiliza o experimento e encontra causas para todos os fenômenos. Mas a religião, por exemplo, instaura causas metafísicas que não precisam de explicação natural. Propor uma explicação científica para fenômenos como a alma poderia significar uma crítica à noção de livre-arbítrio, por exemplo. Por isso, antes de sua ‘curta história’ (científica), a Psicologia teria um ‘longo passado’ (pré-científico). Segue o tom: no século XVII, surgiram as ciências naturais. Copérnico, Galileu e Newton seriam os verdadeiros inauguradores da ciência por excelência, a física matemática, exata e experimental. O universo criado por eles é infinito, unificado por leis simples e linguagem matemática, 1 ‘Psychology has a long past, yet its real history is short’. No original, ‘Psychologie hat eine lane Vergangenheit, doch eine kurze Geschichte’. 100 Dissertatio [47] 95-1342018 suplantado o mundo das crendices medievais. Além disso, o universo pode ser redutível a átomos simples, associáveis entre si por leis mecânicas. Ebbinghaus enxerga nisso a possibilidade de uma psicologia ‘finalmente’ científica. ‘Científica’ por seguir o mesmo método (experimental) e a mesma exatidão (matemática) da física, só que em assuntos mentais. Do mesmo modo como o mundo se rege por leis físicas, faz sentido afirmar que a mente também possui regularidades descritíveis por leis. Se a natureza dispõe de leis atingíveis pela ciência experimental, recorrer a um desígnio divino significa deixar a questão sem resposta, eis o que impediu o desenvolvimento da Física durante tanto tempo. Do mesmo modo, quando em assuntos mentais alguém recorre a ações livres ou ao livre arbítrio (e assim, a uma ação não causada pela natureza), isso significaria negar os usos do método experimental como resposta. Se há desígnio ou livre-arbítrio, não seria então preciso haver explicação causal. Então se a psicologia empregasse os métodos naturais, virtualmente ela resolveria nos assuntos mentais o mesmo que a física resolve em assuntos físicos. Dado o pano de fundo, em Ebbinghaus a História da Psicologia é, doravante, a história dos sucessivos momentos, mais ou menos aproximativos, nos quais o homem deixou de explicar os processos mentais por desígnio, alma ou livre-arbítrio, e começou a procurar as leis exteriores que regem os mecanismos mentais interiores. Se tudo ocorre assim, a Psicologia apenas pode ser ciência de cunho naturalista, e qualquer outra psicologia que apele a questões não experienciáveis estaria fadada ao fracasso. Sob esse critério, a História da Psicologia teria dois movimentos principais: O primeiro momento consiste nos episódios do ‘longo passado’, nos quais os filósofos começaram a entrever que perspectivas semelhantes às das ciências naturais poderiam ser aplicadas nos eventos mentais. O ‘longo passado’ teria uma súbita ‘aceleração’ desde os séculos XVII-XVIII. Filósofos como Hobbes, Hume e os associacionistas ingleses seriam precursores da Psicologia científica por entrever que a mente poderia ser explicada pelo encadeamento de processos exteriores. Se a física deve boa parte de seu crescimento ao postulado de que o universo inteiro se rege por átomos individuais e leis mecânicas, o Associacionismo serviria, em assuntos psíquicos, como uma mecânica mental: ‘as leis da associação são para eles na esfera espiritual o que a lei da inércia é na esfera física’ (1908, p.10). Contra os associacionistas, outros filósofos, como Kant e Descartes, recairiam no mesmo problema do livre-arbítrio: eles postulavam ‘faculdades’ interiores, não observáveis, afastando a análise mental da análise da natureza e criando problemas de explicação. É importante notar novamente que todo o procedimento histórico exemplificado por Ebbinghaus supõe a oposição entre as análises inspiradas nas ciências naturais e as ‘outras’ abordagens, nas quais os 101 Marcio Luiz Miotto eventos externos seriam explicados por ‘faculdades’ internas, voluntarismos e arbítrios do espírito. Como se a história se resumisse – novamente – às aproximações ao naturalismo, excluindo os demais projetos. Em todo caso, contra tais projetos, os modelos mecânicos inspirados na física continuariam seu curso. Esse primeiro momento da História ilustraria, grosso modo, o avanço das explicações mecânicas e empiristas em assuntos mentais. O segundo momento ocorre quando as perspectivas naturalistas não são apenas transpostas a assuntos mentais, mas passam a ser diretamente aplicadas neles. Eis a ‘curta história’, coincidente com a ruptura entre ciência e ‘especulação’, mencionada acima em Schultz e Schultz. O fio da ‘curta história’ é percorrido pelos modelos mecanicistas mencionados acima, cada vez mais complexificados. No século XIX, os modelos mecânicos se complexificam e inclusive cedem lugar a categorias biológicas. A biologia e a fisiologia fornecem subsídios para análises psicológicas. Surgem noções como as de reflexo, inibição, assimilação, adaptação etc.. E eis que no mesmo século também surge a fisiologia sensorial, trazendo para a psicologia resultados ‘jamais conhecidos antes’ (1908, p.17). Ela tornaria possível fazer experimentos e medir as relações entre estímulos externos e efeitos psicológicos, internos. O ‘estudo metódico e exato dos fatos empíricos’ deixou a psicologia ‘longe da especulação’ (1908, p.18), valendo notar novamente aqui o esforço em adotar métodos ‘exatos’ para distanciar-se da ‘especulação’ e das diversas filosofias. Esses avanços permitiram finalmente a Gustav Fechner criar uma ciência chamada Psicofísica e a primeira fórmula matemática em Psicologia. Inovando e reaplicando outros experimentos da época, Fechner correlaciona matematicamente quantidades de estímulos externos com o mundo psicológico dos sujeitos, estimando matematicamente o que chama de ‘diferenças apenas perceptíveis’. Frente a uma história cujo critério principal é a imagem da ciência natural do século XIX, vale realçar a importância de uma fórmula matemática. Matematização e medida seriam a chancela da ciência por excelência, não mais ‘filosófica’, e igualmente afastada das especulações e misticismos do passado, especialmente a especulação da Naturphilosophie, frequentemente encarada como antagonista do cientificismo em voga (Cf. por ex. Heidelberger 1981, Helmholtz 2010 e Friedman 2012). Mas diante disso há uma ironia histórica: se Fechner criou uma formulação matemática psicofísica, ele não era apenas um físico, mas também um filósofo especulativo influenciado pela Naturphilosophie, especialmente a de Laurenz Oken. Ele acreditava que, para além da divisão entre corpo e alma, haveria uma grande Alma do Mundo, cujo fundamento agruparia tanto as teorias sobre o corpo quanto sobre a mente. Isso quer dizer que, se Fechner fazia cálculo e criou a Psicofísica, isso não se devia a propósitos exclusivos da ciência natural, mas de uma abordagem mais alargada, 102 Dissertatio [47] 95-1342018 visando propósitos especulativos (veremos a seguir). Como, no fio da narrativa da ‘curta história da Psicologia’, lidar com isso? Se o projeto de fundo não é o da ciência natural, como se pode reatar o fio para dizer que a primeira fórmula matemática da Psicologia participa de um projeto científico-naturalista? Vejamos como Ebbinghaus responde: A despeito de sua tendência especulativa, ele [Fechner] foi um físico de exatidão científica, acostumado a demandar um suporte de fatos para tais plausíveis fórmulas, pronto para atacar problemas não apenas com sua mente, mas também com suas mãos (1908, p.18, grifo meu) 2. Ou em outras palavras: ‘a despeito de’ Fechner ter uma tendência especulativa, a solução de Ebbinghaus é dizer que a tendência especulativa é de Fechner, e não da História. A inspiração especulativa é um desvio, um deslize, uma artimanha. ‘A despeito’ desse ‘desvio’ de percurso, Fechner formulou considerações exatas e uma lei matemática para a psicologia, e isso sim – e não o resto – é História. Mesmo sob um deslize, Fechner cumpriu critérios ‘científicos’, e a história seguiu. Continuando com Ebbinghaus: desde Fechner os avanços da Psicologia se diversificaram, em assuntos como a medida dos tempos de reação, o avanço sobre processos complexos (como a atenção e a vontade), o estudo das patologias do sistema nervoso (Broca) e a partir das questões da psiquiatria e da análise da ‘mente anormal’. E eis que, no fim do século XIX, surge Wundt. Ele reúne todas as tendências cientificistas anteriores e funda uma psicologia unitária, a Psicologia enquanto ramo acadêmico específico, tal como se configurou desde então. Aos olhos de Ebbinghaus, Wundt reataria a longa continuidade da história agrupando todas as psicologias sob a imagem de uma árvore3: durante as últimas décadas do século XIX, todos esses brotos da nova psicologia foram enxertados no velho tronco, assim unidos num todo harmonioso. Eles rejuvenesceram a árvore que parecia morrer, trazendo ela a num novo crescimento forte (1908, p.23). Sigo a tradução em inglês (base da frase popularizada): ‘In spite of this speculative tendency he was a physicist of scientific exactness...’ (p.18), embora a versão alemã é um pouco diferente: ‘Gleichzeitig aber ist er höchst exakter Physiker, gewohnt, für das plausibel Scheinende sogleich nach einer erfahrungsmässigen Bestätigung umzuschauen, und zugleich frei von der gewöhnlichen Scheu nachdenkender Naturen, die Dinge nicht nur mit ihren Gedanken, sondern auch mit der Händen zu begreifen’ (1908, p.11). Manterei no artigo a expressão ‘a despeito de’, ‘apesar de’, ‘entretanto’, para realçar o tom de que Fechner se veria, de um lado, livre da timidez em contemplar naturezas especulativas, mas de outro (‘a despeito de’, ‘entretanto’...) ele se conservaria um físico exato que faz ‘uso das mãos’. 3 Valendo notar como a imagem da “árvore” (não remontaria tal hábito ao menos aos Principia de Descartes?) também se difunde em manuais de Psicologia do século XX, Cf. por ex. Freire, 2002. 2 103 Marcio Luiz Miotto Wundt e a imagem da árvore alinhavam novamente a ‘curta história’ e a ruptura com a especulação e a filosofia. Antes serva da filosofia (teoria do conhecimento, ética, metafísica...), a Psicologia se emancipa, e os 30 anos antes de 1908 testemunhariam uma verdadeira revolução. Ebbinghaus lança o juízo: a Psicologia se torna uma ciência especial, com discussões específicas e revistas próprias, ‘fundadas nos principais países civilizados’ (1908, p.25). As ‘novas’ histórias A revisita ao texto célebre - mas nem tão comentado - de Ebbinghaus permite enxergar como muito da Psicologia, inclusive a do século XXI, se auto-descreve com narrativas remontáveis ao fim do século XIX e início do século XX. Sob o exemplo de Schultz e Schultz, os mesmos pressupostos históricos que flertam com o ‘positivismo’ e o ‘internalismo’ já estavam presentes na démarche de Ebbinghaus – certamente com diferenças de conteúdo, mas sob teses diretoras correlatas. Sobre essas teses, novamente consta a ênfase na ciência natural como resolução de um problema histórico imutável, até então mal abordado por obscurantismos. Fechner vale aqui como o ‘precursor’ por excelência: em termos históricos, a ‘parte’ especulativa de sua produção é descartável, ‘a despeito de’ seus talentos em ciência física, estes sim considerados ‘históricos’. Finalmente, a ciência natural e não filosofante deveria ser também una, reunir os materiais dispersos, não aceitar contradições e iluminar toda a obscuridade do passado. Conforme tal ideário, tanto a história da psicologia, quanto a Psicologia, são (ou deveriam ser) unificadas em torno de uma ciência semelhante às ciências naturais. Wundt seria o encarregado disso: naturalizar e unificar a Psicologia, ‘a despeito de’ outras correntes filosofantes, especulativas etc.. Sob esse ideário, a relação entre o presente e o passado é bem demarcada: a história não passaria da crônica dos erros passados superados pela ciência atual, essa mesma que o historiador vê diante dos olhos e elege como parâmetro para julgar o passado (ou suas eventuais tarefas mal resolvidas). Sob tal história, o passado se transforma em material inofensivo, pois já superado por um presente isento, ou pouco devedor de suas artimanhas. As peripécias da história, seus ardis e sutilezas, táticas e dificuldades, são justamente o que deve ser afastado, em nome das coincidências temáticas encontradas pelo pesquisador, sempre sob um olhar retrospectivo. Frente a um ‘passado’ que não chega a ser ‘história’, o saber atual se põe diante do museu do ultrapassado. Mas será assim? Será que o passado não teria algo a dizer sobre o próprio modo como o presente se constitui, age e faz suas escolhas, inclusive aquelas que pretenderam romper com o passado? A relação entre um presente 104 Dissertatio [47] 95-1342018 luminoso e um passado obscuro e ultrapassado foi bastante criticada no século XX. A esse respeito, por exemplo, não deixa de ser curioso que o filósofo Michel Foucault – valendo citá-lo por ser evocado por parte considerável dos psicólogos –, provocava: ‘vocês são capazes de suportar sua própria história?’ (FOUCAULT, 1984/2001, p.1568, destaque meu). Se é preciso ‘suportar’ algo da própria história, isso significa que, até então, não se consideravam determinadas questões importantes. A provocação de Foucault tem, por baixo, o significado de que as historiografias tributárias do século XIX foram revistas – especialmente após a segunda metade do século XX –, em troca de análises mais voltadas ao que o material histórico tem, ‘ele mesmo’ (por assim dizer), a oferecer. Isso porque, como se viu acima, postulados como o internalista-positivista predispõem, sob certa leitura prévia, longas séries históricas, amoldando a elas os materiais históricos encontrados. Isso é o que permitiria afirmar que Fechner é bom físico ‘a despeito de’ suas pretensões românticas, ou chamar de ‘passado’ (e não de ‘história’) fartos fatores e materiais. Mas vale repetir: ao invés de se conformar a séries previamente dadas, mais e mais os materiais históricos passaram a ser comparados, por assim dizer, a partir do que oferecem, deslocando os critérios sobre como estabelecer as séries históricas4. Chamando a atenção mais uma vez ao modo como Michel Foucault situou o problema (e ele se referia conjuntamente a historiadores de longas e curtas séries históricas, dos Annales à Epistemologia Histórica francesa), ao invés de o historiador mais recente eleger previamente seus critérios prévios como espécies de ‘monumentos’, passando a encaixar neles os documentos históricos, para ele são os documentos que deveriam ter importância maior e o valor de ‘monumento’: ‘o documento, pois, não é mais, para a história, essa matéria inerte […] ela [a história] procura definir, no próprio tecido documental, unidades, conjuntos, séries, relações’ (FOUCAULT, 1969, p.14, grifos meus). Se tudo se passa assim, que resultados a importância detida nos documentos traria para a história da Psicologia? Para começar a confrontar tal pergunta, a breve análise acima, sobre Ebbinghaus, já dispôs diversas questões, das quais o exemplo de Gustav Fechner não é menor. Por isso vale a pena seguir como exemplar o seu próprio caso, por ser um autor central na formação da identidade da Psicologia do século XIX. Esse será o ponto do próximo tópico. Conforme mencionado, Obviamente isso ocasiona diversos outros problemas em termos de análise histórica, que não serão aqui abordados. O presente trabalho pretende não avançar a discussão dentro das inúmeras alternativas históricas, mas mostrar sua importância em Psicologia e de que modo os postulados acima foram contestados por outros historiadores. O próximo tópico abordará historiadores mais recentes e uma história da psicologia mais alargada, dentre outras observações preliminares. 4 105 Marcio Luiz Miotto Fechner recebe o crédito de formular a primeira lei matemática em Psicologia. Isso o torna importante para historiadores como Ebbinghaus precisamente porque corresponde ao ideário científico matematizante do século XIX, embora – paradoxalmente – tenha sido rechaçado por suas perspectivas românticas. Fechner é o perfeito caso de um ‘célebre desconhecido’, festejado por certas tradições, mas ao mesmo tempo sub-analisado. Apresentá-lo faz acentuar o contraste e a crítica das ‘novas’ histórias frente à tradição de Ebbinghaus e os manuais (outra função é a própria apresentação preliminar do negligenciado projeto desse autor). Esse contraste se acentuará nos tópicos posteriores, que confrontarão o ‘internalismo positivista’ com o exemplar da história epistemológica das ciências, e logo após com outros historiadores que ampliaram a análise dos compromissos históricos da Psicologia nos últimos anos. O caso Fechner e seu projeto ‘especulativo’. Conforme visto, Fechner tornou-se conhecido – e não apenas por Ebbinghaus – por criar uma formulação matemática em Psicologia. Fechner retomou diversas considerações de seus predecessores e enunciou: determinado acréscimo físico de estimulação externa (fisicamente mensurável em decibéis, metros, candelas etc.) corresponde a determinado acréscimo de uma percepção psicológica ou interna (Fechner chama de ‘diferença apenas perceptível’). Em suma: há uma correlação matematizável entre estímulos físicos e sensações psicológicas. Não cabe aqui aprofundar, mas chamando a estimulação física de ‘E’ e a sensação psicológica de ‘S’, tem-se a fórmula estabelecida por ele: S = K . Log E, uma função logarítmica. Muito resumidamente, ela significa que, na relação entre as sensações psicológicas e os estímulos físicos, a percepção de cada nova sensação exige que os estímulos físicos sejam aumentados ou diminuídos em progressão geométrica. Ou, conforme Serge Nicolas (2003, p.161, parecendo retomar formulação exata de Joseph Delboeuph 1876, p.82), ‘para que a sensação cresça em progressão aritmética, é preciso que a excitação aumente em progressão geométrica’. Tome-se um controle de intensidade da luz, partindo da escuridão e que permita registrar cada aumento de intensidade: desde o registro do primeiro limiar da sensação de luz (a primeira vez que o sujeito percebe diferença no aumento), cada novo aumento de intensidade luminosa pode ser objetivamente registrado, mas nem todo aumento físico dessa intensidade corresponde a uma nova sensação psicológica de ‘aumento’ de luz. Novos acréscimos de sensação exigem ‘cada vez mais’ estimulação física para serem percebidos, obedecendo o 106 Dissertatio [47] 95-1342018 padrão da fórmula 5 . Diante da percepção de um segmento de 1 metro, o acréscimo de ‘apenas’ 1cm na estimulação é suficiente para perceber que a fita ‘aumentou’; mas para um segmento de 10m, 1cm não basta para perceber ‘aumento’, é preciso ‘muito mais’ (nesse caso, 10 cm). A função logarítmica significa que, enquanto as sensações psicológicas ‘aumentam’ ou ‘diminuem’ em valores aritméticos (em linguagem popular: ‘de uma em uma’), os estímulos físicos devem variar em valores logarítmicos para que suas mudanças se percebam a cada vez (em linguagem popular: ‘cada vez mais’ ou ‘cada vez menos’). Conforme visto, Ebbinghaus aplaudia exatamente essa possibilidade de medir o mundo psicológico. Em seu Elementos de Psicofísica, publicado em 1860, Fechner definiu a Psicofísica como ‘uma ciência exata das relações entre a alma e o corpo’ (FECHNER in NICOLAS, 2002, p.257). Mas tal exatidão não ocorreria ‘a despeito de’ Fechner ser um pensador especulativo? Serge Nicolas (2001 e 2002), dentre outros (Cf. também por ex. Heidelberger, 1994 e 2004), demonstra que o projeto desse autor era mais alargado, e para compreender o lugar de Fechner na história da Psicologia seria preciso conhecer esse projeto (eis então a importância do ‘documento’ ao invés dos temas prévios a reger os dados históricos). Fechner pretendia de fato correlacionar o mundo externo (físico) e o interno (psíquico). Mas as teorias cientificistas de sua época eram adeptas do materialismo fisicalista e/ou do dualismo mente-corpo, recaindo não raramente no idealismo e ocasionando diversos problemas. Por exemplo: como a matéria poderia vir a ser consciente? Como a consciência imaterial se relacionaria com a matéria? Como explicar a vida num universo de átomos e leis mecânicas sem vida? Etc.. No livro de Ebbinghaus vimos que, sob o primado das ciências naturais, Ebbinghaus acusava os pensadores que recairiam no livre-arbítrio. Eles impediriam a explicação natural, pois ou encaravam a mente como separada do corpo (tornando difícil demonstrar sua inter-relação), ou definiam a mente como ‘faculdade’ humana detentora de uma vontade, supondo então que poderia causar a natureza sem ser causada por ela (grosso modo impedindo, novamente, uma explicação natural da mente). Por sua vez, Ebbinghaus parecia valorizar a redução das explicações mentais aos modelos de explicação naturais. Tais teses não se distanciam de um dos adversários de Fechner, Emil du Bois-Reymond, para quem entender a natureza significava ‘referir todas as mudanças do mundo corporal ao Um exemplo muito simples e ‘popular’ disso, aplicado em percepção auditiva, é o ‘volume da TV’: quanto mais alto fica o ‘volume’, é preciso de cada vez ‘mais volume’ para que ocorra uma nova percepção psicológica de que houve ‘aumento’. Mas se o volume da TV está ‘baixo’, é preciso de ‘pouco aumento de volume’ para que alguém perceba que ‘o volume aumentou’. 5 107 Marcio Luiz Miotto movimento de átomos […] e explicar os processos da natureza em termos da mecânica dos átomos’ (in HEIDELBERGER, 1994, p.215). Mas a posição de Fechner é diferente, alheia ao dualismo e ao materialismo reducionista. Conforme visto, ele não cai facilmente no esquema histórico de Ebbinghaus, o do simples ‘progresso’ do naturalismo descartando projetos não naturalistas. Além disso, ele seria menos ‘especulativo’ do que se imagina. Há menos ‘despeito’ e mais critérios. Fechner é um físico e considera importantes as conquistas metodológicas das ciências naturais. Mas contra o que diria a história de Ebbinghaus, Fechner fundamenta as ciências sobre outro ponto de vista. A redução de todos os eventos, inclusive vitais e psicológicos, às leis mecânicas da matéria, trazia sempre o resultado de colocar a vida e a consciência como uma espécie de efeito produzido por causas materiais, gerando então o problema de como explicar isso. Conforme comenta Heidelberger (1994, p.223), ‘uma resposta racional deve ser providenciada sobre por quê as leis da mudança física, sozinhas, falham em explicar a origem, o desenvolvimento e a diversificação dos organismos vivos na natureza, requerendo a ajuda de ainda mais – e outras – leis para realizar sua tarefa’. A resolução proposta por Fechner é o – talvez – famoso ‘paralelismo psicofísico’. Ao invés de considerar eventos mentais como eventos físicos, reduzindo a mente à matéria, a proposta de Fechner consiste em encarar ambos os eventos, físicos de um lado e mentais de outro, como dois aspectos, atributos ou pontos de vista de uma mesma entidade ou substância. Só há uma realidade, mas expressa sob dois pontos de vista paralelos (físico e psíquico). Note-se a manobra: ao invés de dizer que a experiência mental é reduzida à física, Fechner afirma que a experiência física é um dos dois pontos de vista possíveis da realidade. Sobre isso, bastaria o ponto de partida de que a experiência comum sempre fornece dois pontos de vista, aqueles acessíveis apenas internamente, para o próprio sujeito, e as experiências externas, compartilháveis com outros sujeitos. Os fenômenos experienciados externamente são físicos, os internos são psicológicos. Sob um ponto de vista externo, 1) experiencio as outras entidades ‘de fora’, 2) sob um ponto de vista compartilhável com os outros sujeitos, e 3) sou capaz de experienciar a mim mesmo sob esse ponto de vista; sob um ponto de vista interno, 1) experiencio a mim e minhas experiências psicologicamente e 2) sob um ponto de vista não compartilhável, embora 3) não seja capaz de observar os pontos de vista internos de outros seres ou pessoas. Grosso modo (Cf. Heidelberger, 2004), experiencio a mim mesmo ‘de dentro’ e ‘de fora’, mas apenas experiencio outras entidades (ou sou experienciado por elas) ‘de fora’. Disso, a realidade e todas as suas entidades seriam abordáveis por esses dois pontos de vista, psicológico e físico. Posso acessar meu próprio cérebro e suas operações como 108 Dissertatio [47] 95-1342018 um objeto exterior, mas meus pensamentos, embora correspondam paralelamente a alguma atividade físico-química, são acessíveis apenas de um ponto de vista interior. Fechner empreende o artifício de generalizar aqui, para considerar o mundo mental, o que a física clássica já afirmava sobre a realidade externa ser relativa às perspectivas do observador: Ele argumenta a respeito disso afirmando que um objeto pode (ao menos potencialmente) aparecer de diferentes modos para uma pessoa que observa. As coisas aparecerão diferentemente para nós se olhamos para elas de diferentes perspectivas. Por exemplo, se duas pessoas observam um processo material, como o movimento de um corpo, elas apenas verão um processo causal ocorrendo e não dois, embora o corpo movente produzirá uma visão diferente para cada observador dependendo de onde ele permanece. De modo similar, o fato de que um fenômeno aparece como psíquico [ou também como físico] é o resultado da perspectiva especial com a qual alguém o percebe. (HEIDELBERGER, 1994, p. 223, destaques meus). Ou, conforme Heidelberger também faz ver nos Elementos de Psicofísica, O mundo material, corporal, carnal, e os estados psíquicos e mentais condicionados por ele, são dois modos pelos quais o mesmo ser mostra a si mesmo: um externo para outros seres, e outro interno para si próprio; ambos são diferentes, porque um ente produz uma impressão diferente dependendo do ângulo de observação. (FECHNER in HEIDELBERGER, 1994, p.223). Ou ainda, Por alma [Seele] entendo a essência unitária que não se manifesta a nada além de si mesma, em nós ou em onde quer que se apresente, clara para si mesma, obscura para qualquer objeto externo, unindo sensações sensoriais através das quais a consciência constrói relações cada vez mais altas na medida em que ascende os graus da alma. Por corpo da alma [Körper] entendo, pelo contrário, o sistema material, como chamam os físicos e fisiólogos, apenas compreensível através da manifestação externa. (FECHNER, 1861/2015, p.28, grifos meus). O ponto essencial, novamente, é trocar a redução materialista pelo paralelismo psicofísico. Seguindo os passos de Schelling e Laurenz Oken6, para Fechner poderia haver uma visão unificada do mundo, na qual ‘o espírito interno e a natureza externa são idênticos, mesmo que suas aparências pareçam mostrar o contrário’ (NICOLAS, 2002, p.257, destaque meu). Mente e corpo possuem um mesmo fundamento, e em torno desse fundamento Fechner deduziria sua Psicofísica. Isso oferece em cascata uma série de consequências frente às Embora, como reforça Friedrich Paulsen, ‘até sua velhice [Fechner] considerava sua filosofia como fruto da filosofia da natureza de Schelling, só que caído bastante longe da árvore’ (in FECHNER, 1861/2015, p.12). 6 109 Marcio Luiz Miotto discussões do tempo de Fechner. Se há apenas um princípio de identidade, e nele uma substância ou realidade sob dois atributos ou pontos de vista (psíquico e físico), isso significa, por exemplo, que os sentimentos estéticos e a imaginação carregariam algum teor de ‘realidade’ (por exemplo, dizer que a ‘realidade’, e não apenas os juízos sobre ela, tem algo de correlato à ‘beleza’), enquanto a própria materialidade das coisas também carregaria consigo algo de uma ‘alma’ ou princípio animador. Não cabe aqui aprofundar essa discussão (Cf. novamente HEIDELBERGER, 2004), mas é de notar como isso prepara, em Fechner, outra hipótese, bastante polêmica entre seus interlocutores, mas encaixável nas discussões entre as ciências naturais e a Naturphilosophie do século XIX. Trata-se da hipótese do pan-psiquismo, pois segundo Fechner a realidade, o universo inteiro tem alma, que nada mais é senão outro aspecto de sua realidade que também é material. Sob um ponto de vista externo, o universo é matéria; sob um ponto de vista interno, dados os passos anteriores nada impediria de pensar que há uma ordem animada no universo, embora não simplesmente semelhante ao que estrutura o pensamento humano. No comentário de Heidelberger (1994, p.230), ‘um sistema pode ter um lado psíquico mesmo se ele é completamente diferente de um homem em matéria ou estrutura. O que se requer é apenas que deva haver similaridade de função’. Aliás, considerando a interpretação de Heidelberger, parece ser esse o ‘pulo do gato’ de Fechner, estender a questão da Psyché para além do puro e simples intelecto humano, sob certa noção de ‘função’7. Fechner entrevê na ciência natural do século XIX uma questão bastante retomada no século XX: um sistema físico pode conter ‘funções’ que não se reduzem aos simples elementos materiais componentes do sistema. Um mesmo padrão funcional de som se obtém a partir de dois suportes materiais diferentes, como uma flauta ou um violino. A ‘liquidez’ ou ‘solidez’ de um material certamente é feita por seus elementos componentes, mas não são os componentes que definem tais propriedades funcionais: água ou ferro podem ser ‘líquidos’, mas sua ‘liquidez’ não se reduz apenas às propriedades materiais dos átomos constituintes. Um conferencista pode se sentir ‘agitado’ para falar sua conferência, mas esse ‘nervosismo’ não se reduz à simples justaposição de seus neurônios (Cf. HEIDELBERGER, 1994, p.225-227). Em suma, para além da simples redução O argumento é mais complexo, embora não caiba aqui abordá-lo. De um lado, Fechner alarga a questão da ‘alma’ (Seele) para além do intelecto humano (plantas, animais, coisas, planetas...). De outro, entretanto, ele utiliza raciocínios indutivos tomando como ponto de partida o funcionamento humano para completar suas hipóteses. Servindo de inspiração para o ‘princípio de prazer’ de Freud, Fechner acreditava que, em última instância, a relação prazer/desprazer é o índice mais básico de experiência interna (portanto, psicológica) de todo sistema físico com tendência a alguma estabilização. No caso, o sistema máximo com tais características seria o próprio universo. 7 110 Dissertatio [47] 95-1342018 de um sistema a seus átomos e partes constituintes, os sistemas fazem ver que existem funções, tendências diretoras para além dos componentes, nas quais os componentes – por assim dizer – se engajam em determinadas propriedades definidas e irredutíveis a eles. Para além das simples leis mecânicas dos corpos, haveria nos sistemas um princípio mais geral, ‘leis de tendência’, um ‘princípio de tendência à estabilidade’ (HEIDELBERGER, 1994, p.228), sem o qual seria impossível explicar sistemas físicos complexos como a vida e a mente. Fechner se une com outros autores do século XIX, postulando que os sistemas complexos convergem a finalidades independentes de suas simples partes. Um sistema ‘animado’, ou detentor de uma experiência psicológica/interna, seria aquele no qual, sob um ponto de vista externo, há uma tendência à estabilização irredutível a seus simples elementos. Essa tendência pode ser a mais discreta possível, mas tem alguns critérios. O sistema deve formar um todo unitário, ‘relativamente fechado frente ao ambiente ao redor’. Essa totalidade deve ser também individual, distinta ‘de outros sistemas do mesmo tipo’. Além disso, um sistema desses possui algum indeterminismo, pois provoca ‘uma variedade ilimitada de efeitos que em parte não pode ser prevista’ por apenas suas partes, que não precisam permanecer estruturalmente as mesmas numa mesma individualidade. Finalmente, deve haver algum princípio responsável por manter a integridade do sistema e sua tendência à estabilização (Cf. HEIDELBERGER, 1994, p.231). O cérebro serve novamente de exemplo: do ponto de vista externo é matéria, explicável pelas leis físicas do movimento e por um princípio de tendência à estabilidade (orgânica); do ponto de vista interno, é processo mental caracterizado pelo pensamento. Note-se aqui o ‘pulo do gato’: outros sistemas físicos que não o cérebro seriam capazes de realizar as condições para ter fenômenos internos, pois tanto o cérebro quanto esses sistemas reúnem uma tendência geral à estabilização, efetivando ações, finalidades, funções independentes de seus componentes individuais. Virtualmente, outros seres seriam então capazes de algum tipo de individualidade psicológica, o ponto de vista ‘interior’ dessas tendências à estabilização detectáveis sob um ponto de vista ‘exterior’ 8 . Experienciamos a nós mesmos sob um ponto de vista interno (psicológico) e externo (físico), e experienciamos os outros seres a partir de um ponto de vista externo. Mas bem antes de propor a Psicofísica, Fechner escreveu em dois Não cabe aprofundar aqui, mas conforme entrevisto em nota anterior, o princípio ‘interior’ mais básico da estabilização ou finalidade seria o de aumentar ou diminuir essa estabilização, o que, sob um ponto de vista interno, denotaria ‘prazer’ ou ‘desprazer’. Em miúdos: estabilização externa – prazer interno, instabilidade externa ou ameaça de desintegração – desprazer interno. 8 111 Marcio Luiz Miotto outros livros (Nanna, Ou a vida animada das plantas, de 1848 e Zend Avesta, Ou sobre as coisas do céu e do além, de 1851) a tese de que as plantas, animais e mesmo as coisas e planetas, possuem uma ordenação animada. Na Terra, por exemplo, os outros seres se manifestam como externos a nós mesmos, enquanto mantemos conosco experiências psicológicas internas. Mas ‘ampliando’ o ponto de vista a partir da Terra, ela é um ser vivo […] O corpo da terra compreende todos os elementos que a compõem e que ali vivem. A Terra não é feita de elementos justapostos, independentes uns dos outros; toda matéria que a compõe, como a de nossos corpos, forma um todo no qual as partes estão constantemente em interação. A alma da terra, como seu corpo, difere qualitativamente da alma humana. Ela é composta do conjunto das almas (humanas e não humanas) que a habitam, e assim somos envoltos numa mesma alma, a alma da terra, compreendida ela mesma na alma divina (NICOLAS, 2002, p.261 e 262, grifos meus). O paralelismo psicofísico e o pan-psiquismo se reúnem no que Fechner chamava de ‘visão diurna’ do mundo. Para o materialismo reducionista, o mundo seria um universo material obscuro, inerte, de partículas indiferentes entre si, sem vida inerente, mas paradoxalmente pontuado aqui e ali por clarões inexplicáveis de vida e consciência. Fechner batiza essa visão de ‘noturna’. Mas ele quer ‘uma visão do mundo que inclua uma resposta geral à questão da alma’ (FECHNER, 1861/2015, p.39), por isso é preciso guinar a ‘visão’: e se o universo inteiro consistisse em sucessivos graus de organização ‘conscientes’ culminando numa grande ‘Alma do Mundo’, integrando em si os inúmeros sistemas funcionais existentes? Importa notar aqui o grande esforço conciliatório. Fechner não ignora as conquistas da física do século XIX, mas busca apoio em certa Naturphilosophie corrente para integrar matéria, vida e consciência a partir de princípios comuns. Isso tudo deporia diametralmente contra o linguajar posto no livro de Ebbinghaus. Em Fechner, não estaria em questão separar a fórmula da especulação, ou de ‘usar as mãos’ contra ‘a mente’, mas de conciliar os dois usos sob um mesmo princípio. Em linhas gerais, esse é o pano de fundo do projeto da Psicofísica de Fechner, e o que parece dar sentido à formulação matemática, no cerne da ‘cientifização’ da Psicologia do século XIX. A dedução da fórmula envolve uma longa argumentação (não cabe aqui refazer esse caminho, Cf. Heidelberger, 2004 e Nicolas, 2001 e 2002). Importa retomar a idéia geral envolvida na fórmula (S = K. Log E), de que ela torna possível estabelecer correlações entre eventos físicos e mentais. A fórmula supõe o controle de uma experiência externa (a estimulação física, em metros, newtons, etc...), correlata de experiências internas (perceber as ‘diferenças apenas perceptíveis’). Conforme visto em termos simplificados, trata-se de uma função logarítmica: em função da ocorrência de cada nova experiência interna, a estimulação deve 112 Dissertatio [47] 95-1342018 variar em valores geométricos. O controle da experiência externa e a fórmula matemática fazem parte do que Fechner chama de ‘Psicofísica externa’. Mas Fechner quer atingir as relações diretas entre os mundos material e psicológico, e entre os estímulos externos e a mente há o corpo. Por isso, o papel principal da Psicofísica externa é fornecer um princípio geral para a ‘Psicofísica interna’, chamada de ‘interna’ porque ultrapassa as estimulações exteriores para tratar dos dados fisiológicos não acessíveis diretamente. ‘Entre’ os processos mentais e a estimulação exterior há a fisiologia que recebe os estímulos, mas esta – alvo da psicofísica interna – é de difícil acesso. Por isso Fechner acha importante sua fórmula matemática, pois ela forneceria a lei geral para pensar também como a atividade fisiológica teria correlação com o pensamento. Aplicada na Psicofísica interna, a lei (obtida pela estimulação externa) poderia ser variada e complexificada: ‘A lei que interessa Fechner concerne simplesmente à natureza das relações entre os fenômenos psicofísicos de natureza físico-química [fisiológicos] e as sensações correspondentes [psicológicas]’ (NICOLAS, 2002, p.288). Nas palavras de Fechner: A determinação de mensuração psíquica é uma questão para a psicofísica externa, e suas primeiras aplicações estão dentro de suas fronteiras; no entanto, suas consequências e aplicações posteriores estendem-se necessariamente ao domínio da psicofísica interna e aí está seu sentido mais profundo. Deve-se lembrar que o estímulo não causa diretamente a sensação, mas o faz apenas através da assistência de processos corporais [fisiológicos] com os quais está em ligação mais direta (1860/1971, p.83, grifo meu). Talvez seja possível que no futuro se possa lograr uma abordagem exata da questão da alma a partir de uma teoria cujos elementos exponho em outro escrito [os Elementos de Psicofísica]. Essa teoria investiga as relações baseadas na experiência, portanto leis, entre a própria alma e o mundo corpóreo, persegue-as desde o exterior até o interior, e tenta fixá-las em expressões matemáticas (…) (1861/2015, p.38). Desde que comprovadas, portanto, tais relações valeriam para toda a atividade mental. Por exemplo, do mesmo modo como uma experiência psicológica ‘aparece’ correlacionada com determinado padrão matemático de estimulação exterior (luz, som etc.), seria possível inferir que as experiências psicológicas ‘aparecem’ paralelamente a determinados padrões de atividade fisiológica, em regiões do cérebro por exemplo. Disso, seria possível descrever correlações entre certas atividades físico-químicas do cérebro e certas experiências psicológicas que seriam funções delas. Funções como prestar atenção, despertar ou dormir, ter qualquer idéia ou sentimento, tudo seria correlato interno de evento externo. ‘Paralelamente’ seria possível correlacionar uns e outros. O importante é notar como esse jogo de correlações, repleto de ‘funções da alma [que] são de certo modo 113 Marcio Luiz Miotto independentes umas das outras’ (NICOLAS, 2002, p.292), seria a própria fórmula de Fechner em ação. Durmo e acordo, penso interiormente agora na folha em branco, então livro repousado e então na caneta porque, paralelamente, um sistema físico externo foi aqui ativado e outro minorizado, passando então para outra ativação etc. – a fórmula de Fechner pretendia precisamente estabelecer isso, matematizar o que o paralelismo psicofísico supõe. Além do mais, partindo dessas idéias o autor julga inferir inclusive aspectos do pan-psiquismo: do mesmo modo como as funções psicológicas e pensamentos nascem e morrem na consciência do homem em atividade, as próprias consciências humanas seriam diferentes funções psicológicas em operação, junto a tantas outras funções internas que compõem os outros seres, na grande Alma do mundo. O homem é um único ser, tomado sob um ponto de vista como fisiológico e em outro como psicológico. Do mesmo modo, conforme entrevisto, o universo, tomado exteriormente, reúne todas as atividades físicas explicáveis pela física, e interiormente reúne todos os fenômenos internos – psicológicos – correlativos aos sistemas (externos) de estabilização. Ebbinghaus elogiava Fechner ‘a despeito’ de sua tendência especulativa. Mas acima se tentou mostrar que em Fechner a ‘especulação’ era um grande esforço conciliatório entre as polêmicas da época. Agora, impõe-se a pergunta: como, nesse sentido, admitir uma relação de ‘despeito’, um ‘mas’, entre a especulação e a fórmula? A independência da fórmula sobre a doutrina pode explicar como a Psicofísica perdurou sem Fechner, mas a posteridade da Psicologia não poderia ser encarada sem o projeto que a motivou. Além disso, não parece pequena a advertência entrevista em tais considerações: Fechner pertence a um debate que delineou o que se entende por Psicologia; retrazer tal debate à tona poderia interferir em entendimentos sobre a matéria. Os ‘objetos’ da História da Psicologia Feito o excurso sobre Fechner, fecha-se o exemplar e cabe colher os resultados. É certo que a Psicofísica existe até hoje como ramo da Psicologia. Desde Fechner, ela perdurou e as investigações se destacaram das teses do pan-psiquismo e do paralelismo psicofísico. Em certo sentido, toda psicologia se detém em perguntas sobre as funções ‘internas’ e seus correlatos ‘externos’. Mas, conforme assinalou Nicolas, ‘se a obra de Fechner marcou a história de nossa disciplina, não se pode esquecer que seu ponto de partida é de ordem filosófica e metafísica’ (2002, p.294). Isso significa que as teses do panpsiquismo ou do paralelismo não são meros expedientes ‘a despeito das’ iniciativas ligadas à matemática. É a fórmula matemática que deve sua existência, no projeto de Fechner, às interrogações vindas do romantismo. Ou 114 Dissertatio [47] 95-1342018 mesmo isso seria inexato, pois a dupla formação de Fechner mostra seus textos como plenamente situados nos debates de sua época, e não de uma linha histórica que o escapa. Historiadores como Heidelberger e Nicolas, citados acima, mostram isso. Ou, caso seja preciso reforçar tal demarcação: Fechner se situa no exato encontro entre as filosofias especulativas do século XIX, de um lado, e de outro a crítica ao mecanicismo clássico em física e sua renovação, que culminará na física moderna do século XX. Ou mais precisamente, ele está no ponto de confluência resultante da diferenciação kantiana entre Conhecer e Pensar. Entre, por exemplo, o Idealismo Alemão e as renovações da física naturalista, Fechner tenta conciliar as forças filosóficas resultantes da crítica kantiana existentes em seu tempo, e cuja polêmica se perpetua ainda no século XX (a esse respeito Cf., por ex., a análise de Michel Foucault a respeito da questão antropológica em Kant e suas repercussões posteriores, Foucault, 1961/2008 e 1966/2002). Heidelberger (2004) demonstra também como Fechner está na exata intersecção entre as filosofias naturais do século e as atitudes cientificistas. Além disso, como a Psicofísica o mostra, Fechner situase em plenas polêmicas do século XIX que culminarão nas ciências humanas, de um lado, e na física moderna de outro. Disso tudo já se antecipa a conclusão: sob o tema ‘internalista-positivista’, narrativas populares em Psicologia elegem apenas parte da questão como relevante historicamente, mas acabam por descaracterizar sua própria história. Cabe agora reunir todos os temas acima e, à luz do exemplar sobre Fechner, organizar os resultados. A tradição ‘internalista’ com facetas ‘positivistas’ dos manuais prevê uma distinção entre o presente e o passado (‘curta’ x ‘longa história’), ancorada nas ciências naturais (momento presente, privilegiado, último momento do progresso humano), a romper com as demais perspectivas de um passado ineficaz – o ‘obscurantismo’, a ‘especulação’, as teses da Filosofia etc.. História cujo corolário seria a unificação da ciência, identificada pelo mesmo objeto, acessível pelo discurso depurado pelo naturalismo. Conforme repetido, tal história prescreve uma espécie de progresso ‘endógeno’, referente a um objeto que permaneceria o ‘mesmo’, não importando as diversas perspectivas históricas em torno dele (exceto as perspectivas ‘corretas’, correspondentes à própria natureza objetiva). Objeto que seria o objeto da ciência (no caso, a Psicologia), frente a uma história que é a história do objeto da ciência, diante do qual as perspectivas são mais ou menos aproximativas (o que garante a grande continuidade temática da história). Tudo isso impõe o tema do ‘precursor’: Aristóteles e os associacionistas clássicos entreveriam alguma ‘Psicologia’ já existente como tal e detentora de um objeto trans-histórico, pois irradiando a mesma pergunta, os mesmos problemas, a mesma objetividade, 115 Marcio Luiz Miotto ainda sem o completo esplendor. Em nome de todos esses fatores, Wundt deve ser visto como o reunidor dos temas em torno da Psicologia (essa psicologia que deve ser vista sob certo viés naturalista), e Fechner se transforma em um bom físico ou psicólogo ‘a despeito de’ suas questões especulativas. Wundt e Fechner se reúnem num cuidado sistemático maior, o de afastar da História qualquer autor ou temática implicado com a psyché mas não com um projeto de ciência natural. Acima, foram nominados Descartes e Kant que, aliás, são reiteradamente vistos em manuais como grandes autores (por vezes ‘precursores’), mas espécies de obstáculos ‘filosóficos’ a superar. Novamente, a História da Psicologia se torna a crônica das matérias e precursores que, na história, se aproximam mais ou menos de temas reconhecidos por nós mesmos como a verdade terminal sobre o que a Ciência e a História podem e devem ser. Mas, conforme visto, faz pouco sentido dizer que as formulações ‘metafísicas’ são descartáveis em história apenas por serem ‘metafísicas’. Isso realça um primeiro fator: O papel das controvérsias, peripécias, manobras, lutas na história de uma ciência não é negativo, como faria valer o tema do ‘internalismo’ (desviar da História as artimanhas que não pertencem ao desenvolvimento ‘endógeno’ da ciência e o desvelamento contínuo de seu objeto). Sobre isso, a criação de conceitos científicos não é exclusivamente ‘pura’. Uma vez que o presente trabalho propôs como contraposto à história de Ebbinghaus um exemplo do século XX – o da Epistemologia Histórica –, importa aqui desdobrar polemicamente alguns de seus temas. Diversos historiadores da ciência do século XX já fizeram ver que muitos temas, conceitos e estratégias considerados científicos são formulados a partir de questões extra-científicas ou não científicas. Em Fechner, dentre suas consequências para o futuro, o argumento da tendência à estabilidade dos sistemas físicos inspirou outros conceitos para outras matérias, como o de ‘princípio do prazer’ (Freud). O próprio Fechner tenta conciliar o cientificismo e o romantismo de sua época num projeto comum, não obstante o esforço cientificista de afastar a ‘especulação’. Tais ‘impurezas’ não ocorrem apenas em Psicologia. Em física, alude-se a Copérnico ter rompido o mundo medieval e construido nossa imagem de mundo, a do ‘heliocentrismo’. Mas Alexandre Koyré demonstrou que o projeto de Copérnico não é animado pelo que a ciência se tornou depois – experimental e matemática nos termos de Newton –, mas pelo pitagorismo ‘especulativo’ e ‘pré-científico’ de sua época (Cf. por ex. o comentário de FOUCAULT, 1961/2001, p.198). Do mesmo modo, Georges Canguilhem (1964/1975) comenta que a Anatomia moderna aparece quando Andreas Vesalius substitui os antigos manuais de dissecação pela pesquisa analítica com o bisturi. Mas o bisturi da nova anatomia carrega consigo, ainda, as visões ‘pré116 Dissertatio [47] 95-1342018 científicas’ (aristotélicas e galênicas) de homem9. Repetindo: a ciência não se forma simplesmente a partir de depurações e purismos. Para entender como uma ciência se formou é preciso percorrer os conceitos dentro dos contextos e polêmicas nos quais se formulam, e não a partir de uma história purista que escapa ao trabalho do próprio cientista. O texto, sua estrutura, contradições e polêmicas precisam servir de ‘monumento’, mais do que temas prévios como o do ‘positivismo internalista’. Em História da Psicologia essa questão geral é patente. Especialmente porque, como entrevisto acima, a Psicologia é um grande arquipélago de teorias diferentes. Para ordená-las, as análises de inspiração ‘internalista’ e ‘positivista’ carregavam a tese de que a Psicologia é unificada, um bloco que se diferencia das pseudoteorias por aproximações/distanciamentos das ciências naturais. Isso ocasiona inúmeras outras questões. Mantendo-nos em Fechner, veja-se, por exemplo, Schultz e Schultz (1998, p.67) debitando as reviravoltas da obra de Fechner à vida de uma pessoa que teria um ‘conflito persistente entre os dois lados de sua personalidade’ - dedica-se a Psicofísica à História e o restante do material histórico à mera ‘vida conflituosa’. Ou ainda, Hearnshaw (Cf. 1987, cap. 9) acusa o pensamento romântico de ‘alienar’ gerações de pensadores ‘com seus delírios metafísicos e dogmatismos não científicos’, e ao mesmo tempo aplaude Fechner por criar a Psicofísica – Hearnshaw seria então obrigado a dizer que a ‘alienação’ especulativa gerou ‘ciência’? Edwin Boring tem a minúcia de ironizar, num pequeno parágrafo, que ‘sua Psicofísica, a única razão para a inclusão de Fechner neste livro, foi um subproduto de sua filosofia’ – Psicofísica, a ‘única razão’ histórica de aparecimento de um projeto fadado à exclusão (1950, p.279, destaque meu). Sobre esse jogo entre unificar e afastar, Paul Mengal (1988, p.486487), dentre outros antes dele, já se surpreendia com a facilidade com a qual tantos manuais de Psicologia alinharam sob os mesmos propósitos pensadores tão diferentes como Fechner, Christian Wolff e Wundt. O pan-psiquismo de Fechner de repente se veria em continuidade com as pretensões materialistas de parte do projeto de Wolff e do anti-materialismo e o anti-espiritualismo de Wundt! Tudo para separar a ciência positiva da ‘especulação’ filosófica e supor uma ‘unidade’ da Psicologia que, historicamente, não passaria da ordem do mito10. Como sintetiza Canguilhem (1964/1975, p. 27), ‘se não é duvidoso que a astronomia copernicana torna possível a ruptura de um Cosmos antropocêntrico, ela não realiza isso por si própria; e se não é duvidoso que a anatomia vesaliana torna possível uma antropologia liberada de toda referência a uma cosmologia antropomórfica, ela não é de saída o equivalente de sua posteridade...’ 10 O caso de Wundt é outro exemplar. Não dedicaremos maior análise aqui, mas eis, em linhas gerais, 9 117 Marcio Luiz Miotto Mengal reiterava a necessidade de retirar a história da Psicologia de seus ‘mitos’ de ‘unidade’, de ‘autonomia’ e de ‘legitimidade’, garantidos precisamente pela narrativa da ruptura com a especulação filosófica. A questões correlatas às de Fechner: Vimos acima Ebbinghaus empregando a imagem de uma grande árvore – novamente a unidade da psicologia, identificada com a ciência natural –, cujos ‘ramos’ foram organizados por Wundt. Schultz e Schultz aplaudem Wundt por ‘rejeitar o passado não científico e cortar os vínculos intelectuais entre a nova psicologia científica e a velha filosofia mental’ (1998, p.86). Os manuais também ilustram a criação do ‘primeiro’ laboratório de Psicologia em 1879 como uma espécie de momento solene, espécie de superação da especulação e do obscurantismo. Schultz e Schultz (1998, p.59-60) elogiam a riqueza e absoluta plasticidade das universidades alemãs, cujo ‘espírito da época’ acolhia a ‘inovação’ de pessoas como Wundt. Wundt é certamente figura central para a autonomia da Psicologia. Conforme comenta Mengal (1988, p.490) e Nicolas (2005, p.134), se há uma ruptura efetiva diante do passado, ela de fato ocorre quando Wundt institucionalmente cria em 1879 um ‘Instituto de Psicologia’ em Leipzig. Instituição que gerou pesquisadores e revistas especializadas em Psicologia (‘O ano de 1879 é de fato um ato fundador maior de nossa disciplina’, Nicolas, 2005, p.134), e cuja existência foi necessária para tudo o que ocorreu depois. Desde então, a Psicologia tem uma agenda própria, institucionalmente amparada e não reduzida a outras matérias. Mas novamente, mais do que confortar isso tudo na descoberta internalista e no progresso positivista, haveria proveito em visitar os documentos e reviravoltas da história. Sobre a criação do Instituto de Psicologia, a análise documental de Nicolas (2005) faz ver não uma depuração, mas uma verdadeira luta. O instituto começou com uma pequena peça (que devia ser ocupada apenas por algumas horas) e demorou tempo considerável para ter reconhecimento oficial. Muitas vezes, Wundt retirava do próprio bolso o financiamento para suas rotinas. Os ventos mudaram quando, em 1883, Wundt quase aceitou a proposta de outra universidade (Breslau), recebendo então maior atenção financeira em Leipzig. Disso tudo, consequências: Wundt não é apenas o desencobridor de uma Psicologia existente desde os séculos, e nem o revelador de uma objetividade escondida da ciência natural. É um pesquisador imerso nas contradições institucionais e científicas de sua época, buscando soluções para suas pesquisas. Inclusive contra certo contexto institucional, o instituto ganha força, passo a passo. Mais ainda: Wundt é (a favor de Ebbinghaus, Schultz e Schultz etc.) de fato um sistematizador dos conhecimentos em sua época, mas (contra eles) seu instituto e projeto não são propriamente nem o apogeu de uma atitude antifilosófica, nem a redução da Psicologia à física experimental e materialista de sua época. Araujo (2009, 2010) mostra como ‘Wundt foi acima de tudo um filósofo, cujo objetivo último era elaborar um sistema metafísico universal – uma visão de mundo – baseado nos resultados empíricos de todas as ciências particulares’ (2009, p.210). Novamente, não cabe aqui entrar em detalhes, mas Wundt sistematizava todas as ciências a partir de uma noção unitária de experiência. Dado que não há acesso a um ‘fora’ da experiência, cabe então reunir de um lado os objetos da física e as outras ciências naturais (dentro do que ele chamava de ‘experiência mediata’), e de outro as questões da Psicologia e demais ciências derivadas (objetos da ‘experiência imediata’). Contra a redução dos manuais ao simples naturalismo, note-se a divisão metodológica feita entre duas ‘áreas’ da experiência, colocando a Psicologia em lugar privilegiado de um lado, mas as outras ciências de outro. Wundt é sensível às discussões do século XIX sobre a separação entre as Ciências Naturais e as Ciências do Espírito (ou ‘humanas’), separando a Psicologia em função desses dois universos. Se há unidade na Psicologia, ‘ela só pode significar uma unidade teóricoconceitual, jamais uma unidade metodológica, devido às exigências específicas das diversas áreas de investigação’ (ARAUJO, 2010, p.198). Isso significa que, a favor do juízo de Ebbinghaus, Wundt certamente pretende unificar a Psicologia. Mas diametralmente contra, apenas uma parte da Psicologia – aquela que grosso modo adota procedimentos da Psicofísica e da Fisiologia sensorial – supõe análises como as da física experimental. Há todo um outro campo – o da Psicologia dos Povos – inteiramente legítimo, apoiado nas ciências espirituais e, aos olhos do texto de Ebbinghaus, empregando métodos não experimentais e ‘especulativos’. 118 Dissertatio [47] 95-1342018 Psicologia é unificada? Os exemplos acima não o mostram: ‘inscrever Fechner ou Wundt numa mesma linha em que Wolff estaria na origem, atribui-los as mesmas intenções […] [e] exigências […], eis como se constrói o mito de ruptura com a filosofia’ (1988, p. 487, grifos meus). Para uma descrição rigorosa em história da Psicologia, é preciso – novamente – respeitar os movimentos próprios de suas impurezas e dispersão: ‘qualquer que seja o valor dos apelos reiterados a essa unidade, é forçoso constatar ainda que essa disciplina é profundamente dividida’ (1988, p.493), quanto a seus objetos, métodos, projetos e instituições. Fazer o trabalho histórico deveria consistir em ‘reunir os materiais da reflexão: os arquivos e os textos’ (1988, p.497), e enfim formular a pergunta: ‘qual objeto e para qual projeto? Tal deveria ser a interrogação da história da psicologia’ (1988, p.491)11. Quais ‘objetos’ e que tipo de ‘projetos’ implica tal história? Ainda Mengal sugeria uma inversão na pergunta sobre a história da psicologia, diante do visto acima: ‘Não se trata mais, numa perspectiva histórica e epistemológica, de interrogar o objeto da psicologia, mas a psicologia como objeto, isto é, como ciência’ (1988, p.497, grifos meus). Isso implica deslocar ambas as temáticas ditas acima, ‘internalista’ e ‘positivista’ 12 . Conforme já comentava Canguilhem (1968/1972), essas temáticas transformavam a história da ciência na história do objeto da ciência, à maneira de um ‘microscópio mental’: supõe-se, fora da presença e dos conceitos do cientista, um objeto dado ‘sem ele, embora visível apenas através dele’ (1968/1972, p.11). Como se a ciência lidasse com um objeto simplesmente natural, exterior à presença humana, ‘considerado na sua identidade com relação a si mesmo’ e ‘independente de todo uso’ humano (1968/1972, p.14, modificado). Tem-se aqui novamente a tese do naturalismo filosófico do século XIX, segundo a qual as coisas de um lado, e os discursos de 11 Dizer que a Psicologia é historicamente dispersa não significa, como pretendem alguns, glorificar sua dispersão. Não há muito sentido falar em dispersões pacíficas entre teses antagônicas. A questão é ultrapassá-las ou demonstrar as questões que as agrupam. A dispersão é efetivamente dada, do mesmo modo como Watson e Vygotsky colocaram a si próprios os problemas de superá-la, ou Jean-Édouard Morère afirmava, com Michel Foucault, que ‘apesar de tudo há psicólogos, e que pesquisam’ (FOUCAULT, 1957/2010, p.1, grifo meu) – chamando a atenção à Psicologia não apenas no nível de seus direitos, mas de sua própria existência. 12 Não nos deteremos aqui, mas também está em crítica o ‘externalismo’: considerando Canguilhem, o externalismo faz com que a ciência se perca em questões fora de sua sistematicidade própria: de modo algum a história das ciências pode ser uma ‘história natural’ de um objeto ‘natural’ (internalismo), tampouco de um ‘objeto cultural’ (externalismo, Cf. 1968/1972, p.16). Crítica que não toca nos estudos contemporâneos de ‘Ciência, Tecnologia e Sociedade’, pois eles não são a simples redução da ciência à dualidade ‘conhecimento x sociedade’. De todo modo, o presente trabalho se detém na crítica à tradição histórica evidenciada por Ebbinghaus, e não nas polêmicas atuais sobre história da ciência (embora valha notar que também para Canguilhem a ciência e seus ‘objetos’ se constituem de forma ‘heterogênea’, Cf. por ex. 1968/1976, p.16-18). 119 Marcio Luiz Miotto outro, poderiam concordar numa simples harmonia, bastando então enunciar o discurso adequado, ‘proposições objetivas’ para verificar, do outro lado, a objetividade de coisas que ‘já estavam lá’. Mas – Canguilhem chamava a atenção – parte considerável do século XX não deixou de acolher certa lição kantiana, segundo a qual a ciência não é o simples acesso (em sentido positivista) aos objetos naturais. O cientista não carrega consigo as lentes polidas para enxergar as coisas ‘em si mesmas’. Para fazer ciência, o cientista precisa formular conceitos, que não se resumem a ser discursos a corresponder ou não com objetos pré-dados: ‘É a ciência que constitui seu objeto a partir do momento em que ela inventou um método para formar, por proposições capazes de ser compostas integralmente, uma teoria controlada pela inquietação de captá-la em erro’ (CANGUILHEM, 1968/1972, p.15, grifos meus). Em suma, a ciência não diz respeito a simples objetos naturais, mas à criação de conceitos para resolver problemas, teóricos e experimentais. Por assim dizer, não são os objetos ‘em si mesmos’ que condicionam a existência de uma ciência (projetando uma finalidade industrial ou um privilégio naturalmente especial aos ‘países civilizados’, detentores das ‘lentes’ mais polidas), mas é a investigação de certos homens, tornada ciência, que constitui seus ‘objetos’, isto é, formulações conceituais para orientar as pesquisas e resolver problemas. A ciência não é o mero acúmulo de dados ‘puros’, mas a atividade de conjectura e refutação de teorias através do método científico. Em Psicologia isso novamente muda tudo: falar em conformidade ou distanciamento de um critério previamente dado não dá conta das diversas fontes históricas que engajaram teorias alheias ao critério pré-dado. A ‘especulação’ de Fechner não é o desvio ‘imaginário’ de um autor que esqueceu da ‘realidade’ (Schultz e Schultz falavam em questões ‘pessoais’ e Hearnshaw em ‘delírios metafísicos’); ela faz parte de um projeto pleno de critérios e conceitos, num contexto histórico de polêmicas com outros projetos. É a partir desse nível – não dos objetos simplesmente dados, mas da formulação de procedimentos, teorias e conceitos – que se situariam os ‘objetos’ da história de uma ciência. Mas o cientista não faz história, ele faz ciência. O historiador da ciência tomaria seu ‘objeto’, ou âmbito de análise, não no nível do cientista, mas no nível em que a racionalidade e os conceitos científicos encontram, em seus inúmeros problemas e rupturas, uma consistência histórica: ‘sem rasgar a tradição, uma história da ciência não pode começar’ (CANGUILHEM, 1968/1972, p.16). Em outras palavras (ao menos segundo os autores aqui mencionados), são as rupturas e transformações nos regimes de racionalidade – ao invés de uma longa continuidade de objeto – que tornaram possíveis as perguntas sobre as transformações e a possibilidade desses regimes. ‘Fazer a história de uma teoria é fazer a história das hesitações 120 Dissertatio [47] 95-1342018 do teórico’ (CANGUILHEM, 1968/1972, p.12). Mudando tais regimes ou ‘sistemas’, mudam igualmente os ‘objetos’ possíveis do historiador. É o que apontou Mengal (1988), depois de Canguilhem: não estudar o ‘objeto da psicologia’, mas ‘a psicologia como objeto’. Mais do que enxergar inúmeros autores sob uma mesma objetividade (admitindo-a como trans-histórica), é preciso analisar a consistência de um projeto e as relações, polêmicas, indecisões e passagens possíveis entre cada projeto. Ou conforme Canguilhem, resumindo, enquanto a análise crítica dos textos e dos trabalhos aproximados pela telescopagem da duração heurística não estabeleceram explicitamente que há entre um e outro pesquisador identidade da questão e da intenção da pesquisa, identidade de significação dos conceitos diretores, identidade de sistema dos conceitos de onde os precedentes tiram seu sentido, é artificial, arbitrário e inadequado a um projeto autêntico de história das ciências colocar dois autores científicos numa sucessão lógica de começo e acabamento, ou de antecipação e realização (CANGUILHEM, 1968/1972, p.20). Conforme apontado no início do presente trabalho, a dispersão das disciplinas em Psicologia abrange vários projetos, com diferentes ‘objetos’, arquiteturas conceituais e engajamentos com demais recursos (métodos, instrumentos, instituições etc.). Se Wundt situa a Psicologia como ‘estudo da experiência imediata’, Watson fala em ‘comportamento’ e Fechner em panpsiquismo, não há qualquer sentido em situar esses projetos fora das polêmicas nas quais seus problemas se formularam, isto é, sem descrever suas sistematizações, inquietudes próprias e relações com outros domínios. Como se vê, é preciso partir do presente para interrogar o passado13. Mas nesse caso, a postura do ‘microscópio mental’ (entrevista acima) cede lugar à criação de um ‘tribunal’, a julgar os limites e transformações dos saberes (nova inversão em tom kantiano). Não se trata apenas de inspecionar o passado sob um presente inamovível; é a partir do solo movediço do presente que o historiador busca os limites de certa racionalidade que reconhece diante de si14. Em suma, o retorno ao passado serve para a interrogação e ‘crítica’ do próprio presente. O passado é mais do que um museu de curiosidades ultrapassadas, ele é o limite imposto a partir do qual certa racionalidade tenta se destacar para se constituir e se reconhecer como tal: A história das ciências não é o progresso das ciências invertido, isto é, a colocação em perspectiva de etapas ultrapassadas cuja verdade atual seria o ‘Na medida em que o historiador das ciências estiver instruído da modernidade da ciência, ele destacará nuances cada vez mais numerosas, cada vez mais refinadas, da historicidade da ciência’ (BACHELARD, 1951/1972, p.22). 14 Presente que carrega uma ‘atualidade’ também inserida nas polêmicas da história. Por ex.: ‘Não há definição das matemáticas possível antes das matemáticas, isto é, antes da sucessão ainda em curso das invenções e das decisões que constituem as matemáticas’ (CANGUILHEM, 1968/1972, p.18). 13 121 Marcio Luiz Miotto ponto de fuga. Ela é um esforço para pesquisar e fazer compreender em que medida noções, atitudes ou métodos ultrapassados foram, em sua época, uma ultrapassagem, e por conseguinte em que o passado ultrapassado permanece o passado de uma atividade à qual é preciso conservar o nome de científica. Compreender o que foi a instrução do momento é tão importante quanto expor as razões da destruição em seguida (CANGUILHEM, 1968/1972, p.12-13). Há questões do presente cuja própria existência se remete à ‘instrução dos momentos’ passados, o que acaba com a hipótese do passado como simples ‘museu’. Analisar essas ‘instruções’ seria a tarefa do historiador. Contra o leitmotiv entrevisto na tradição de Ebbinghaus, as decisões que constituem o presente derivam inteiramente de fatores do passado, inclusive ‘impuros’ e heterogêneos. Acima se entreviu, por exemplo, que a ‘visão diurna’ ou o panpsiquismo não são matérias da Psicofísica atual, ou que os freudianos não precisam revisitar Fechner para pensar sobre o ‘princípio do prazer’ em seus consultórios, ou ainda que o físico experimental não precisa estar ciente de que Copérnico flertava com os pitagóricos para constituir seu sistema. Mas, analisando a história epistemológica de tais matérias, não há Psicofísica atual sem os projetos de autores como Fechner, ou ainda, não há cientificismo do século XIX que não trocou, misturou ou se distanciou das mais diversas ‘especulações’, inclusive para criar novos conceitos científicos 15 . Conforme entrevisto, é radical a diferença se, de um lado, afirma-se que Fechner cabe num textbook de Psicologia ‘a despeito’ de seus interesses especulativos (Ebbinghaus) ou ‘apenas’ por sua contribuição matemática (Boring), que a ‘especulação’ é um ‘delírio metafísico’ (Hearnshaw) ou questão ‘pessoal’ (Schultz e Schultz), ou, de outro lado, situa-se o projeto de Fechner nas inúmeras repercussões da obra kantiana e no ponto de confluência entre a Naturphilosophie e a contestação do materialismo mecanicista no século XIX. Entre uma escolha e outra, define-se o debate presente e a identidade da Psicologia futura de modo absolutamente diferente. Diante de tais fatores, vale realçar um pouco mais como a ‘instrução do passado’ diz respeito ao presente. Anteriormente se mencionou que no limite de práticas científicas contemporâneas constam por vezes práticas extracientíficas, não obstante concorrendo para a constituição das práticas presentes. Canguilhem exemplifica: hoje a Bioestatística faz parte da biologia e das ciências humanas; mas isso apenas é possível porque figuras como Binet, Mendel e outros enxergaram em práticas não científicas (o exército, a escola, os 15 Conforme comentava Luiz Fernando Dias Duarte, dentre outros: ‘essa ‘ciência romântica’ influenciou, por sua vez, as orientações mais universalistas de modo extremamente vívido, de tal sorte que a evolução de todas as ciências – e não apenas as humanas – ao longo do século XIX foi um resultado complexo dessa interação’ (2004, p.12). 122 Dissertatio [47] 95-1342018 seres vivos etc.) a possibilidade de aplicação de uma racionalidade matemática. Tem-se, para formar uma pesquisa atual, a conjunção de duas ou mais ordens distintas de atividades, com consistência, critérios e historicidades diversas. Nada, na matemática, na psicologia, na biologia, no exército ou nas escolas previa, como numa espécie de herança ou destinação lógica, a possibilidade de uma ‘bioestatística’. A possibilidade de tais encontros entre domínios heterogêneos, rupturas, descontinuidades, ‘invenções’, é o próprio terreno da análise histórica: Quêtelet, Mendel, Binet-Simon inventaram relações imprevistas entre as matemáticas e práticas de início não-científicas [...] Suas invenções são respostas a questões que eles se colocaram numa linguagem que eles queriam colocar em forma. O estudo crítico dessas questões e destas respostas, eis o objeto próprio da história das ciências (1968/1972, p.17).16 Em suma: não se faz história sem levar em conta os fatores que fazem os limites de uma disciplina e/ou concorrem para formá-la. Nessa mesma linha, convém lembrar como as questões acima incidiriam contra o próprio Ebbinghaus, célebre pesquisador experimental da memória. Será que no caso da memória a aplicação do método experimental representaria uma ‘curta história’, contra um ‘longo passado’ de precursores e obscurantismos? Kurt Danziger (2008) mostra, na própria área de competência de Ebbinghaus, continuidades desconsideradas e descontinuidades imprevistas. ‘A própria noção de uma história da psicologia implica uma coerência interna que não existe ali. Não se pode esperar que a história supra uma unidade que o tema não possui’ (2008, s/p.). É preciso interrogar então a multiplicidade mais que a unidade, e o fato de que um único conceito pode ter múltiplas histórias. Danziger mostra que muitos conceitos adquiriram significado psicológico apenas em tempos recentes, isto é, há uma história mais alargada do que um ‘longo passado’. Por exemplo, para que um psicólogo dos séculos XIX-XX (incluso Ebbinghaus) pesquise a memória, a linguagem frequentemente empregada é a metáfora do ‘armazenamento’ ou ‘estoque’ (de coisas, informações, dados sensíveis etc.). Ora, a tradição que assim descreve a memória é detectável por séculos, e supõe a continuidade de técnicas mnemônicas como as de ‘guardar anotações’, ‘imprimir em cera’, ‘guardar nós’ e inúmeras outras que perduraram. O psicólogo interessado na memória deveria se ater então a essa ‘longa história’ (que não seria então um mero ‘passado’), pois ela constituiu as bases de sua própria ação e linguagem. Além disso, a história das técnicas de memória 16 Não à toa, a primeira grande pesquisa de Foucault – História da Loucura – é inteiramente marcada pelo argumento de que a Psicologia, por via da questão da doença mental, apenas se tornou possível a partir da conjunção de diversos fatores heterogêneos (Cf. por ex. MIOTTO, 2005). 123 Marcio Luiz Miotto também tem rupturas consideráveis. Dentre elas, a relevância cada vez maior que se deu, no século XIX, aos aspectos negativos (a memória pesquisada por via de seus desvios, ‘esquecimento’, ‘memória patológica’...). Curiosamente, Ebbinghaus (1908, p.23) também notou a ampliação dos estudos sobre o anormal e o negativo (e o encontro da Psicologia com a Psiquiatria), mas não formulou sobre isso maiores problemas: ‘O conhecimento ganho no estudo da mente anormal propiciou novo insight nos processos da mente normal’, presumivelmente mais um passo à positividade. Resultado: o historiadorcientista da memória do século XIX julga romper com um ‘passado’, mas ignora uma ‘história’ que o constitui; além disso, o caso das análises do negativo mostra que ele mal considera que faz parte de uma ruptura histórica recente com inúmeras implicações (não na direção de mais um ramo de atividade positivo, mas no curioso avanço das análises sobre o negativo)17. Os deslocamentos críticos aqui vistos se fazem ver contra a longa e atual tradição histórica que, em suas formas populares, fomentou inúmeros manuais e textbooks de Psicologia. O deslocamento mais geral, conforme entrevisto, consiste em não remeter o ‘texto’ a outros temas que lhe serviriam de ‘monumento’, mas encarar o próprio texto como ‘monumento’. Os exemplares acima em História da Psicologia permitem desenvolver isso em enunciados mais explícitos: contra a distinção entre ‘presente’ e ‘passado’ baseada na figura do ‘precursor’ e na ruptura estrita das ciências naturais, temse o passado como limite para interrogação crítica sobre o próprio presente. Mais do que crivo trans-histórico, as ciências naturais se tornam atores imersos nos conflitos das épocas. É preciso, assim, examinar a consistência própria das teorias, e então a descrição de objetos naturais cede lugar a uma crítica epistemológica, que visa a historicidade dos conceitos e demais recursos (instrumentos, métodos, instituições etc.). Contra o progresso contínuo e endógeno, foca-se em diferentes temporalidades, cada qual com suas rupturas, indecisões e revoluções. Ao invés do purismo, a história carrega consigo conjunções e disjunções entre fatores heterogêneos. Sem uma crítica da história de ‘longo passado e curta história’, os fatores acima se tornam invisíveis, e com eles a possibilidade de descrever os compromissos efetivamente históricos da Psicologia. A Psicologia para além do ‘longo passado’ e da ‘curta história’ Uma terceira questão ainda se apresenta como crítica, talvez ainda mais contundente, da tradição histórica mostrada acima. Schultz e Schultz Sobre a importância das análises do negativo em todo o espaço psicológico, Cf. por ex. Foucault (1957/2010). 17 124 Dissertatio [47] 95-1342018 afirmavam que a Psicologia é ‘uma das mais antigas disciplinas acadêmicas e, ao mesmo tempo, uma das mais novas’. Ebbinghaus escreveu que desde Aristóteles, ‘esse edifício [a Psicologia] permaneceu sem adquirir notáveis mudanças ou extensões até o décimo oitavo ou até mesmo o décimo nono século’ (1908, p.3). Certamente as mais diversas tradições possuem perspectivas sobre a ‘alma’, ‘mente’ etc., mas isso já significaria automaticamente ‘Psicologia’? Seriam ‘psicológicas’ tradições diversas como a do nous platônico ou a consciência dos neurocientistas? Mas e se o próprio termo ‘Psicologia’ tiver uma história não coincidente com as descrições dos textos do século XX, mas repleta de consequências ainda não examinadas para o presente? Trabalhos como os de Paul Mengal (1988, 1994/2015, 2001, 2005) e Fernando Vidal (1994, 2010, 2011), mostram uma série de tradições inauguradas em torno do surgimento do termo ‘Psicologia’, 1) exteriores à ‘curta história’ da tradição de Ebbinghaus, 2) mais amplas do que o ‘longo passado’ e 3) com uma série de lutas e polêmicas históricas, nas quais a ‘Psicologia’ se encaminha para formar-se como disciplina no mesmo movimento em que as decisões sobre essa palavra não operam em comum acordo. Seguindo tais trabalhos, ‘Psichologia’ é um termo cunhado no decorrer do século XVI, aparentemente por tradições cujo testemunho mais antigo parece é o de Marco Marulic, segundo uma biografia da época que cita um livro seu (por volta de 1520, mas perdido) sob o título ‘Psichiologia de ratione animae humanae’ (Cf. MENGAL, 2005, p.32-seg. e BROZEK, 1999). A esse respeito o texto de Brozek (1999) é interessante por mostrar que, numa das transcrições da época, o copista hesitou entre ‘psichiologia’ e ‘ethologia’, mostrando certa instabilidade terminológica. Fernando Vidal (2011) tenta demonstrar que o termo ‘Psicologia’ foi forjado dentro das Scientiae de Anima da época, de cunho aristotélico e galênico. Em âmbito geral, com base no tratado aristotélico De Anima segue-se que o estudo da alma faz parte da ciência natural ou Física (dividindo então os corpos físicos entre dotados ou não de alma, empsycha e apsycha), e delimita o estudo dos seres vivos. Sendo a alma o princípio natural/vital dos organismos, disso se segue que plantas, animais e homens a possuem, desde as funções vegetativas à alma racional. Aristóteles por vezes conjecturou que a alma racional humana poderia ter um princípio não físico e, portanto, ‘vir de fora’, aspecto bastante assimilado (e polemizado) nas tradições cristãs desde São Tomás de Aquino. Tal era a base teórica predominante e, para Vidal, o neologismo ‘Psichologia’ serviu como espécie de ajuste terminológico dentro dos novos tratados da época, especialmente os tratados de Filosofia das universidades protestantes: ‘o uso do termo e sua disseminação estão ligados, da Reforma em 125 Marcio Luiz Miotto diante, ao desenvolvimento do cursus philosophicus como um gênero didático, e ao clima filosófico marcado pelo reavivamento do aristotelismo e a disseminação das doutrinas ramistas [de Pierre Ramus] do método’ (2011, p.21). Em Vidal, ‘Psicologia’ não foi, de início, um termo importante a ponto de constar nas coletâneas de léxicos anteriores e da época – nem no léxico de Goclenius, autor do primeiro livro com ‘Psicologia’ no título, de 1590 – e acompanha a ‘explosão de neologismos eruditos com raízes gregas, criados por traduções de expressões latinas bem estabelecidas’ (physiologia, por ex., tornouse equivalente a de natura, Cf. 2011, p.26). Mais do que a ruptura, Vidal é conservador na hipótese de que, em suas primeiras formulações, o termo ainda indica certa continuidade com as doutrinas da época: ‘o termo psychologia pode bem ter nomeado alguns discursos ligados a novos modos de pensamento sobre a scientia de anima na Alemanha protestante do século XVI, mas certamente não foi conceitualizado em termos de uma quebra radical ou apresentado como nomeando um novo campo de conhecimento empírico’ (2011, p.30). Paul Mengal, por sua vez, pontua que o neologismo Psychologia teve sua forja num contexto de muitas mudanças. Dentre elas, o florescimento das universidades protestantes alemãs e holandesas (especialmente Marburgo, onde viveu Goclenius, e Leiden), o intercâmbio com as idéias vindas da nova anatomia (acima se mencionou que Melanchton, importante pensador protestante, tentou inseri-las nas discussões sobre vida/alma) e com as inovações da universidade de Pádua (o mesmo contexto das inovações anatômicas de Vesalius é o das inovações de Copérnico), as revisões críticas de Aristóteles desde ao menos Pierre Ramus, e a progressiva separação entre Estado e Igreja, na qual o governo ético sobre as almas e político sobre os corpos não apontariam mais a fatores comuns. Resumidamente: ‘Psicologia’ seria um neologismo participante das inúmeras transformações que se seguem da cosmologia aristotélico-ptolomaica à revolução científica, de um lado, das teorias aristotélico-tomistas às perspectivas modernas sobre a alma, de outro, e finalmente dos modos de governo medievais aos modernos. Disso tudo, ambos os autores indicam um movimento de ‘quebra’, ao mesmo tempo lexical e semântica, no qual o termo ‘Psicologia’ participa das inúmeras contestações do quadro aristotélico. Segundo Vidal, ‘sua redefinição como ciência da anima separabilis (a alma racional, separável mas unida com o corpo) não era ainda dominante. Quando se tornou, ocorreu uma quebra na história semântica da Psicologia, assinalando a desintegração da estrutura aristotélica com a qual a psicologia foi a ciência genérica dos seres vivos’ (2011, p.58). Isso, como se vê, acarreta plenas consequências para o futuro. Sob tal ‘quebra’ se anunciam as diferentes teorias modernas sobre os corpos, as almas, 126 Dissertatio [47] 95-1342018 e as relações entre corpo e alma. As teorias da época se diferenciavam entre: as teorias detidas no estudo da alma como princípio orgânico abrangendo todos os seres vivos, seguindo a lição aristotélica; aquelas cujo enfoque residia na alma separada das funções do corpo; e finalmente, os projetos focados no estudo das relações entre a alma e o corpo, mas apenas manifestáveis por via do corpo. Em suma, tinha-se o estudo naturalista da alma como princípio ‘orgânico’, o estudo metafísico da alma separada, e o estudo empírico das funções da alma acessíveis por sua relação com o corpo. Entre tais posições gerais, nos séculos XVI-XVIII o termo ‘Psicologia’ disputou inúmeras classificações e terminologias com outros termos – ‘antropologia’, ‘anatomia’, ‘somatotomia’, ‘pneumatologia’, ‘etologia’ etc.. Além disso, o termo foi ligado ou desligado de conceitos diferentes como psyché, pneuma, spiritus, animus, anima, mens e tantos outros. Variando o autor, ‘Psicologia’ poderia ser empregada, rechaçada ou ignorada, dependendo de como se encaravam seus parentescos conceituais. Para dar alguns exemplos, ‘Psicologia’ no livro de Goglenius poderia se referir tanto às teorias criacionistas da alma, nas quais Deus inseria de fora a alma intelectiva na formação do feto (era a posição de Goclenius, e também predominante no livro), quanto ao traducionismo, que pregava a transmissão de todos os caracteres à criança apenas por via natural. Sobre Descartes, Paul Mengal (2001, p.10-11) afirmava que para ele não há ‘Psicologia’: ‘Malgrado a apropriação de algumas concepções de Snellius [pensador de Leiden], de quem Descartes nunca fala, não há psicologia em sua obra. […] A via aberta pela física não parece ainda promissora a Descartes para construir uma ciência da alma e do corpo’. A menção a Snellius e à Física supõe que a questão parece girar em torno do peso aristotélico ainda presente na palavra alma/anima/psyché, e seus ‘equívocos’ a contornar. Priorizar a noção de mens, como faz Descartes, desviaria os privilégios da psyché/anima, do mesmo modo que ele preferia chamar o animal de ‘bête’. Em Descartes seria preciso ao mesmo tempo deslocar a questão da alma à mens e retirar dela as funções que antes ‘animavam’ o corpo (embora ele ainda conserve polemicamente a noção de ‘espíritos animais’...). Note-se, seguindo a indicação de Mengal, o esforço na Resposta às quintas objeções de Gassendi: Mas eu, tendo cuidado que o princípio pelo qual somos alimentados é inteiramente diferente daquele pelo qual pensamos, disse que o nome de alma [anima], quando se refere ao mesmo tempo a um e a outro, é equívoco […] ele deve ser somente entendido como aquele princípio pelo qual pensamos; dessa maneira, chamei-o o mais das vezes pelo nome de espírito [mens], para evitar esse equívoco e essa ambiguidade. Pois não considero o espírito uma parte da alma, mas toda alma pensante (DESCARTES, 1996, p.390-391). 127 Marcio Luiz Miotto Para dar outro exemplo importante, em Locke não há vinculação no Ensaio entre ‘Psicologia’ e o estudo da alma. Fernando Vidal fez notar (1994, p.311) que a classificação das ciências no Ensaio utiliza os termos ‘Física’, ‘Ética’ e ‘Semeiotiké’. Nela, o estudo das substâncias espirituais (Deus, anjos, espíritos) pertence à Física, mas sem qualquer vinculação entre Physiké e ‘Psychology’. A palavra ‘Psicologia’ aparentemente assinalaria livros como o de John Broughton (Psychologia: or, an Account of the Nature of the Rational Soul, de 1703), defensor de posturas metafísicas atacadas na época por Locke18. Uma ironia diante disso é notar, nos exemplos de Vidal (2011), inúmeros projetos de ‘psicologia’ (assim definidos) do século XVIII remontando seus temas à inspiração de Locke, autor cuja inflexão do termo soava de forma bastante diferente. Sob o âmbito do presente trabalho, apenas esses fatores já permitem extrair várias consequências. A começar pelo fato de que a formação do termo ‘Psicologia’ não obedece propriamente a uma curiosidade científica conforme a noção de ‘ciência’ da tradição de Ebbinghaus. ‘Curta história’ e ‘longo passado’ (e tradições correlatas) não dão conta do nascimento e desenvolvimento dos compromissos em torno do que um dia se chamará ‘Psicologia’. Pelo contrário, a formação das ciências modernas mostra transformações nas quais o nascimento do termo ‘psicologia’ também engaja. Mais do que objetividade atemporal, a história atesta o nascimento ‘moderno’ de novas objetividades possíveis, doravante ocupadas por projetos de estudos sobre os corpos e as mentes. Semelhante aos outros argumentos aqui trabalhados, o Psicólogohistoriador tributário do século XIX pensava desvelar uma objetividade, mas ela não passa do resultado de um arranjo histórico que dispõe o psicólogo, a objetividade e seu desvelamento. Igualmente, não seria pouco notar como os flertes (ou o rechaço) dos pensadores mencionados frente ao termo ‘Psicologia’ mostram projetos bastante antagônicos: em Goclenius, sob o epíteto ‘psicologia’ poderiam figurar teorias criacionistas e traducionistas; em Descartes, consta o afastamento da Psicologia como derivação naturalista de psyché/anima, preferindo então o termo mens, mais adequado para destacar mente separada e corpo natural; em Locke, consta o rechaço do termo ‘psychology’ por provável excesso de peso metafísico; e assim por diante, desde sua forja o termo tem diferentes funções nas polêmicas das épocas (e nem 18 ‘Sua [de Broughton] argumentação metafísica se desdobrava, de modo puramente a priori, numa defesa da noção de substância […] como constituindo o substrato, a essência e a condição da existência das coisas […]. Seu tratado é um exemplo do tipo de trabalho que fazia com que o termo psicologia fosse difícil de aceitar por aqueles que pretendiam fazer uma ciência empírica da mente’ (VIDAL, 2010, p.53). 128 Dissertatio [47] 95-1342018 mencionamos os autores que o adotam positivamente). Junto às histórias mencionadas acima, definir o estatuto histórico da Psicologia deveria dizer respeito ao confronto com essas inúmeras definições, detendo-se nas conquistas terminológicas e seus subterfúgios, e não apenas comparar os dados com um pré-projeto. Outro fator a se notar é Descartes e Locke (e tantos outros), presentes em inúmeros livros de Psicologia, não figurarem como autores em polêmica com o termo. A história de ‘longo passado e curta história’ se limita a chamá-los de precursores, quando não de obstáculos ao projeto psicológico internalista-positivista. Em Schultz e Schultz (Cf. por ex. 1996, p.41), Descartes é fundador da Psicologia Moderna, apesar de não permitir ‘ainda’, com seu dualismo, uma análise da mente em termos de ciência natural. Na mesma linha, Hearnshaw (1987, s/p.) afirmava que Descartes havia deixado ‘grandes áreas da psicologia, e talvez as mais importantes, fora do alcance da ciência que ele mesmo havia concebido, visto que Descartes acreditava que a ciência era necessariamente quantitativa e matemática’, enquanto a mente ‘apenas poderia ser conhecida intuitivamente’, fora dos ‘métodos da ciência’. Devemos acreditar então que um dos formuladores da ciência ‘quantitativa e mecânica’ é o responsável por deixar a Psicologia ‘fora do alcance da ciência’? Ou não seria a questão de dizer que Descartes, um dos principais autores da Revolução Científica, por determinados critérios afastou as implicações entre a velha noção de alma e a nova noção de mente, e por isso não chegou a formular o termo ‘Psicologia’, talvez ligado demais à velha lição de anima? É de grande conta a consideração de que, por determinados critérios, opta-se por mens contra os ‘equívocos’ de anima, gerando inúmeros resultados para o futuro. Disso tudo, deixa-se de lado importantes ingredientes das polêmicas da época, ou, como se dizia anteriormente, o texto como ‘monumento’. Além disso, não é sem consequências o fato de que os estudos ligados às polêmicas nas quais o termo ‘psicologia’ circulava se dividiam entre a ‘alma’ como objeto natural, a ‘alma’ separada e metafísica, ou ainda o estudo das relações entre alma e corpo. Vale perguntar conforme as sugestões de Mengal (1994/2015): não seria tentador encontrar aí, na ruptura do mundo medieval e nessas possibilidades abertas, as condições primeiras do que será visto no futuro como a ‘dispersão’ das teorias psicológicas? Com isso, novamente as perspectivas naturalistas deixariam de ser o palco da história para se tornarem atores. Quanto às outras perspectivas – exteriores à narrativa ‘internalistapositivista’ ou de ‘longo passado e curta história’ –, após tais deslocamentos elas não teriam melhores direitos para falar sobre o presente a partir das peripécias da história? 129 Marcio Luiz Miotto Considerações finais Viu-se acima, após o delineamento da tradição em torno da célebre passagem de Ebbinghaus, três frentes de argumentos. Um deles se deteve na série de histórias do século XX – tomando por base a história epistemológica das ciências – contrárias às narrativas ‘internalistas-positivistas’, ainda populares no século XXI. O caminho deteve-se em descrever os princípios vigentes das histórias ‘internalistas-positivistas’ e mostrar sua relativa permanência durante o século XX, não obstante o avanço das críticas. Articulada com o argumento da história epistemológica – que impõe a importância do ‘documento como monumento’ –, a chamada à reinterpretação de Gustav Fechner sugeriu certos deslocamentos. Fechner é central no argumento da ‘cientifização’ da Psicologia, e levar a sério seus ‘documentos’ poderia conduzir a inúmeras consequências sobre a história e a própria identidade científica da Psicologia como campo disperso. Finalmente, os exemplares brevemente citados de Paul Mengal e Fernando Vidal colocam a necessidade de uma ampliação histórica para dar conta de questões bastante atuais, a começar pelo próprio nome ‘Psicologia’. Se a tradição narrativa entrevista em Ebbinghaus ainda tem certa atualidade, séries de argumentos como as três evocadas acima não convidariam a uma revisão do perfil da disciplina? Bem ou mal, essas séries mostram: a atenção ao ‘documento’ e a mudança de procedimento histórico pesando sobre as delimitações de uma disciplina; as consequências de uma análise mais detida nos diferentes projetos e seus constituintes heterogêneos; e o alargamento das narrativas, rumo a uma história mais ampliada, que flerta com as Histórias da Filosofia e das Ciências e ocasiona possíveis consequências na identidade epistemológica da Psicologia. O início do presente trabalho mencionou a ironia de Canguilhem contra a Psicologia, enunciada há exatos 60 anos. Contra Daniel Lagache – que na ocasião apostou na ‘unidade da Psicologia’ simplesmente justapondo os diversos projetos sob a noção de ‘conduta significativa’ –, Canguilhem partia ao ataque e afirmava: buscando os fundamentos históricos dos projetos atuais em Psicologia, há desencontro e não unidade. Mais ainda: sem uma resposta rigorosa sobre o que é e o que faz, talvez a Psicologia atual não tivesse lugar ao lado dos grandes nomes da ciência e da cultura – no ‘Panteão’ de Paris, dizia Canguilhem –, mas sim na ‘delegacia de polícia’. Conforme visto acima, a insistência das controvérsias históricas em torno da Psicologia ainda poderia depor contra as pretensões de assentá-la no ‘Panteão’, não obstante os progressos técnicos dos últimos anos e a importância cada vez maior da matéria. No caso dos inúmeros textbooks que 130 Dissertatio [47] 95-1342018 repetem os motivos semelhantes aos de Ebbinghaus, sua popularidade denota – ainda – uma série de tarefas incompletas. Essa incompletude se agrava – ainda – na falta de seriedade frente aos aspectos históricos e epistemológicos em Psicologia, encarados sob as espécies da ‘especulação superada’ e do profissional transformado em ‘automático especialista’ na matéria. Isso põe a tarefa de um ajuste de contas, não apenas diante da História, mas também diante da formação. Utilizando o trocadilho de Canguilhem, pode-se sofrer o desconforto da humiliation, quando o pesquisador que assume a soberba da expertise se vê incapaz de responder sobre ‘o que faz’ e sobre ‘quem é’. Mas mudando a postura – a história epistemológica das ciências serviu de exemplar entre outros possíveis –, o pesquisador também pode carregar as virtudes da humilité, isto é, da recolocação sempre nova da pergunta sobre o passado e a própria atualidade. Referências ARAUJO, S. F. “Uma visão panorâmica da psicologia científica de Wilhelm Wundt”. In: Scientia Studia, v. 7, n. 2, São Paulo, 2009. ______. O projeto de uma psicologia científica de Wilhelm Wundt. Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2010. BACHELARD, G. “A Atualidade da História das Ciências”. In: Revista Tempo Brasileiro: A teoria das ciências questionada por Bachelard, Miller, Canguilhem, Foucault. n. 28. Rio de Janeiro: Ed. 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