Saberes e sabores de um corpo-etnógrafo no mundo
Dayane Fernandes1 e Felipe Figueiredo2
Resumo
Nenhum corpo é neutro. Essa é a premissa que norteia as reflexões deste ensaio: a partir
da relação entre os corpos e o mundo na produção do conhecimento e de um saber sensível
a partir da etnografia. Não coincidentemente, a origem etimológica da palavra “saber” tem a
ver com “ter sabor” e, tomando isso como uma metáfora acerca da produção de
conhecimento, podemos refletir sobre como a percepção não se dá somente por um
processo mental, mas, sobretudo, corporal. No entanto, de quais corpos falamos? Qual o
lugar do corpo e dos sentidos do etnógrafo em campo? Foi a partir de um encontro entre
dois corpos distintos que essas questões puderam ser elaboradas e respondidas neste
ensaio.
Palavras-chave: corpo; sentidos; etnografia; produção de conhecimento
Abstract
There is no neutral body. That is the premise guiding the reflections of this essay: from the
relationship between bodies and the world in the production of knowledge and a sensitive
knowledge coming out of ethnography. Not coincidentally, the etymological origin of the word
"knowledge" has to do with "having taste" and, taking this as a metaphor about knowledge
production, we can consider how perception is not only given by a mental process but, above
all, by a corporal engagement. However, which bodies are we talking about? Where is the
ethnographer´s body and senses placed in the field? It was from a meeting between two
distinct bodies that these questions could be elaborated and answered in this essay.
Keywords: body; senses; ethnography; knowledge production
Mestranda em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Paulo. E-mail de contato:
fernandes.dayane@gmail.com
2 Graduando em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Paulo. E-mail de contato:
felipe.figueiredo1230@gmail.com
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Eu sou um corpo
Um ser
Um corpo só
Tem cor, tem corte
E a história do meu lugar
“Um corpo no mundo”
Luedji Luna
Introdução
O presente ensaio é produto de reflexões coletivas no âmbito do Grupo de Pesquisas
Visuais e Urbanas da Unifesp (VISURB) que, em 2016, tomou como ponto de partida para
essas discussões a relação entre natureza e cultura, dicotomia clássica no pensamento
antropológico. As discussões levaram também ao projeto “Rios e Cidades”, que consistiu em
saídas etnográficas pelos rios de São Paulo e pela bacia do Itanhaém. O recorte que nos
propusemos abordar neste ensaio, partindo dessas discussões, é a relação entre corpos e
as possibilidades de produção de conhecimento. A experiência de escrita deste ensaio, por
sua vez, tem como ponto de partida um choque entre corpos distintos e com trajetórias
específicas – e que são marcadas por outros encontros – mas que partilham de interesses
em comum.
Nós, Felipe e Dayane, somos pesquisadores do VISURB com diferentes trajetórias:
Felipe, aluno da graduação em Ciências Sociais da Unifesp, é membro do grupo desde
2016 e Dayane, mestranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (PPGCS)
da mesma Universidade, ingressou no grupo em 2017. Embora Dayane não tenha
participado do projeto “Rios e Cidades” desde o início, se viu fisgada pela proposta, em
especial pela questão da presença e agência do corpo do etnógrafo na construção do
conhecimento antropológico apresentada por Felipe como uma questão que gostaria de
desenvolver. Aqui, justamente no incômodo sobre a “universalidade” do corpo que parecia
permear as discussões na antropologia (MAUSS, 2015; LE BRETON, 2016), se deu o
encontro que nos mobilizou a escrever o presente artigo. Um encontro também permeado
pelas diferenças dos nossos corpos que etnografam, pensam e “saboreiam” o conhecimento
antropológico.
O saber está, também, no corpo. A palavra “saber” tem origem etimológica no latim
sapere ou “ter sabor, agradar o paladar”, como apontado no Dicionário Etimológico da
Língua Portuguesa (CUNHA, 2010). “Saber”, em seu sentido literal, está relacionado a “ter
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conhecimento”. Tomando isso como metáfora para o conhecimento, só passamos a
conhecer algo de fato se o experimentarmos, se sentirmos seu sabor, se tivermos a
experiência de prová-lo, de senti-lo. Afirmar que se sabe algo é diferente de conhecer algo.
Há uma dimensão da experiência que escapa ao conhecimento e que está presente na
carga semântica da palavra “sabedoria”.
As propostas de reflexões e discussões acerca da dicotomia natureza e cultura nos
levaram a explorar, em saídas etnográficas coletivas, os rios de São Paulo e de Itanhaém
em sua relação com a cidade. Dentro de uma perspectiva que considera a cultura como
sendo tudo aquilo que foi criado pela intervenção humana e a natureza aquilo que é produto
de uma ação “natural” ou “não humana” (DESCOLA, 2016), tomamos como desdobramento
dessa dicotomia a relação cidade e rios. Foi a partir dessas experiências etnográficas que
se levantou a questão da relação entre os sentidos e o conhecimento. Experimentamos
corporalmente as relações criadas em volta dos rios e as apreendemos através da
percepção dos sentidos.
Entendemos que este ponto de partida e a posição desses diferentes corposetnógrafa/o na produção de conhecimento se tornam possíveis a partir das diversas
localizações que esses corpos assumem em campo, a depender do contexto, do momento,
das pessoas envolvidas, do lugar que passam ocupar de acordo com as relações
estabelecidas ou proibidas. “Um corpo nunca é neutro”, é esta provocação que guia as
reflexões apresentadas neste artigo.
Um corpo no rio
A saída etnográfica para Itanhaém3 proporcionou uma experiência de percepção
acerca de como as pessoas se relacionam com o meio e como diferentes percepções desse
meio se cruzam e se diferenciam. Antes de chegar a Itanhaém, subir o rio com Antônio4 e
Zé5, nossos interlocutores e guias sobre as águas, e os integrantes do VISURB e toda
aquela fauna e flora que nos cercava e nos acompanhava, eu estava com outra ideia de
relação com o meio, mesmo sabendo que iria a um lugar onde os rios eram muito diferentes
de um rio canalizado, que recebe esgoto ou mesmo aqueles rios que estão escondidos por
debaixo das ruas, avenidas e prédios da metrópole de São Paulo. Mesmo com isso em
mente, a ideia de que há uma relação fundamental de “predação” da humanidade para com
Essa saída ocorreu entre os dias 26 e 27 de Novembro de 2016.
Pesquisador da UNESP de Rio Claro.
5 Pescador da região.
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o que chamamos de natureza estava a todo o momento servindo de lente para o
direcionamento de meu olhar. Foi a partir da experiência etnográfica nos rios e ouvindo
nossos interlocutores falarem das plantas, dos pássaros e das pessoas que habitam e
ocupam as margens dos rios, ou de como a Sabesp6 usa a água do Rio Mambú como fonte
de abastecimento, que passei a direcionar muito mais minha percepção para a convivência
de agências humanas e não humanas e como elas se relacionavam entre si do que ficar em
busca das marcas dessa predação, como rios aterrados, mata desmatada, ocupações
irregulares e poluição às margens dos rios, que na verdade vem de uma determinada
perspectiva de enxergar a relação com o meio, que se constitui provavelmente de minha
própria experiência.
Percepções e convivências sobre os rios. Itanhaém, 2016. Foto por Felipe Figueiredo.
Essa virada de visão (ou de percepção) de uma relação com o meio, que pôde então
ser comparada muito mais como uma simbiose que com predação, coloca novas questões
epistemológicas no que diz respeito a se pensar o meio e a própria relação entre natureza e
cultura. A cada quilômetro percorrido no rio, mais lacunas acerca daquela percepção iam
sendo preenchidas. Chegamos a Itanhaém pela manhã, quando nos encontramos com
Antônio no Centro de Pesquisas do Estuário do Rio Itanhaém, de onde partimos de barco
6
Companhia de saneamento básico do estado de São Paulo.
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subindo o rio, passando pelos rios Preto, Branco, Aguapeú e Mambú. Fomos em dois
pequenos barcos à motor, e foi a primeira vez que andei em um. A princípio me senti
desequilibrado, mas logo me acostumei com o balanço das águas.
Não só me equilibrar no barco foi um aprendizado, como reconhecer plantas,
pássaros, ocupações às margens e conhecer a relação das pessoas com o rio constituía-se
como um aprendizado dos sentidos e do “perceber”. Aquele meio era estranho a um corpo
acostumado ao habitat da cidade. No barco, era onipresente o barulho do motor, coisa que
dava para relevar tendo em vista o costume de trafegar pelas avenidas da cidade de São
Paulo, com as buzinas e os barulhos dos motores dos carros e das motos. Ao lado deste
barulho, no entanto, colocava-se também o barulho da proa cortando a água, além dos
pássaros que cantavam às margens.
As referências visuais no rio são muito diferentes das da cidade: subir o Itanhaém até
onde o rio Branco e o rio Preto se encontram era como chegar a uma bifurcação de uma
rua, no entanto os pontos de referência que se faziam presentes ali eram bem mais
numerosos e menos perceptíveis – pelo menos para o olhar “de fora” – que os que
aparecem no meio urbano, como prédios, placas, construções e monumentos. Ali há plantas
presentes na mata ciliar, as referências da vegetação e o mangue na transição da água
doce para a salgada, assim como construções do meio urbano às margens, incluindo a
presença de carcaças de carros abandonados e queimados.
Nenhum cheiro específico chamou minha atenção durante a viagem de barco apenas
o da comida quando paramos numa ilha no curso do rio com um restaurante de comida
caseira – lugar onde tivemos também uma experiência do paladar mais direta. No entanto, a
percepção olfativa se fazia muito presente neste ambiente pela umidade do ar e pelo baixo
teor de poluição. Já em São Paulo muitos rios são característicos por seu mau cheiro, já que
em sua maioria recebem esgoto e poluição de todo tipo. Em Itanhaém acontecia o contrário,
a percepção olfativa se deu pela ausência.
Na pele, por sua vez, a umidade do ar também se fazia perceptível. Toda brisa que
sentia era como se estivesse mergulhado naquelas águas. Apesar do tempo nebuloso,
quando em alguns momentos abria o sol, não sentia o mormaço como se tivesse andando
numa avenida em meio aos prédios com janelas de espelho criando as chamadas ilhas de
calor. Lá há ilhas que não são de calor, então este não foi grande problema, principalmente
quando paramos os barcos no rio Mambú, e alguns integrantes do grupo pularam em suas
águas geladas, mas não incômodas, pois mal mergulhávamos e o corpo já se acostumava
com a temperatura. Houve certo receio por parte do grupo ao mergulhar em um rio
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desconhecido e esperei Antônio pular na água primeiro, para só depois mergulhar próximo
de onde ele tinha mergulhado.
A presença humana era marcada, por sua vez, por cadeiras deixadas pelos
pescadores às margens e também pelos próprios barcos dos pescadores locais, com quem
trocávamos cumprimentos ao longo do trajeto do rio, quase como uma forma de “pedir
licença”. Num dado momento parecia que estava longe de tudo aquilo que era constituído
pelo meio urbano e pela ação antrópica, sendo que, na verdade, não muito longe daquela
mata ciliar e do entorno do rio a ocupação urbana e o habitar humano se faziam presente.
A experiência que se deu ao longo do Rio Itanhaém foi antes de tudo corporal e,
portanto, construída através dos sentidos. Para o antropólogo David Le Breton, “para o
homem não existem alternativas senão experimentar o mundo, ser atravessado e
transformado permanentemente por ele” (2016, p.11). Habitar fisicamente um espaço se
trata também da percepção que criamos em torno dele. É a partir de uma determinada
percepção do meio que nos relacionamos com ele, bem como essa percepção pode ser
constituída a partir dessa mesma relação. Partindo dessa visão, podemos dizer que a
percepção é, sobretudo, corporal.
Seguindo essa ideia da percepção estreitamente relacionada com uma experiência
dos sentidos a partir do corpo, Merleau-Ponty diz que “a percepção exterior e a percepção
do corpo próprio variam conjuntamente porque elas são as duas faces de um mesmo ato”
(2006, p.276) e, mais adiante comenta que “nós reaprendemos a sentir nosso corpo,
reencontramos, sob o saber objetivo e distante do corpo, este outro saber que temos dele
porque ele está sempre conosco e porque nós somos corpo” (ibid., p.278). Ao se deparar
com um meio totalmente diferente do habitual, tive que reaprender a sentir meu corpo e com
meu corpo.
A percepção, para Le Breton, não é mera coincidência com o mundo, mas trata-se
de interpretação. Todo humano caminha “num universo sensorial ligado àquilo que sua
história pessoal fez de sua educação” (LE BRETON, 2016, p.12). Se subo um rio de barco
ao lado de um pescador, encontrarei um rio. Se subo o mesmo rio ao lado de um
pesquisador de plantas aquáticas, muito provavelmente verei outro. E isso não significa que
uma percepção seja hierarquicamente superior ou “mais próxima da verdade” que a outra.
Trata-se de percepções distintas, cada uma, constituída a partir de um universo simbólico
específico.
A certa altura do rio Mambú, encontramos alguns ninhos pendurados nos galhos das
árvores, de maneira que ficavam suspensos sobre as águas. Como eu nunca havia tido
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contato com aquele tipo de ninho e não tinha nenhuma referência visual acerca dele ou do
pássaro que o construiu, perguntei a nossos interlocutores qual espécie que fazia ninhos
àquela maneira e obtive duas respostas, ambas de maneira muito categóricas: Guaxo e TiêSangue. Ora, apesar de acessarem a mesma imagem, a rememoração do nome do pássaro
foi diferente, acessaram conteúdos distintos. Não sei dizer se houve uma confusão de
nomes por parte de um ou de outro, ou se um é mais conhecedor de pássaros que o outro,
muito menos quem estava certo ou errado. O que importa nesse caso específico é a
narrativa criada em torno da percepção de cada um.
Os corpos dos humanos e não-humanos são naturalizados pelo senso comum e são,
na maioria das vezes, atribuídos ao domínio do biológico ou da natureza. O corpo, nesse
sentido, seria algo “dado”, obedecendo a uma determinada ordem, possuindo um
funcionamento fechado dentro do seu ciclo natural entre o nascimento e a morte. Não
obstante, podemos enumerar algumas características “extrassomáticas” em relação ao
corpo, ou seja, que não dependem unicamente de funções e particularidades individuais e
biológicas, mas de critérios sancionados pela coletividade e aprendidos por meio de uma
educação corporal.
Em 1934, Mauss, ao tratar das técnicas do corpo, apontou que há certas coisas que
“acreditamos ser da ordem da hereditariedade e que são, na verdade, de ordem fisiológica,
de ordem psicológica e de ordem social” (2015, p.408). Os limites entre o que consideramos
como sendo natureza e cultura ficam turvos ao se tratar do corpo, um “objeto” ao mesmo
tempo natural e cultural. Os humanos participam de sua cultura não somente a partir do
discurso e da palavra, há uma série de gestos e mímicas que concorrem com essas no
processo de comunicação e suas linguagens.
Já vimos acima que para Le Breton a percepção passa por uma educação dos
sentidos. Ora, se para este autor o corpo é vetor entre o mundo e os sentidos e, ainda
segundo ele, “entre a carne do homem e a carne do mundo, nenhuma ruptura, mas uma
continuidade sensorial está sempre presente” (LE BRETON, 2016, p.11), o corpo seria a
profusão dos sentidos e da relação destes com o mundo. Estou corporalmente no barco,
meus sentidos estão em relação com aquele meio e, a partir de minha trajetória de vida e da
maneira como aprendi a lidar com meus sentidos e perceber o mundo, me relaciono de uma
determinada forma com esse meio. O corpo não é só uma massa biológica (ou natural), mas
possui agência, é o “conjunto condicionado pelos três elementos [biológico, psicológico e
sociológico] indissoluvelmente misturados” (MAUSS, 2015, p.403).
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Tomando a perspectiva sociológica do corpo, dissemos acima que a dimensão do
corpo e dos sentidos está ligada à linguagem. Isso também quer dizer que se tratam de
dimensões que passam por uma educação que é “cultural”. Para Le Breton, cada sociedade
desenha para si uma “cultura sensorial” e, de fato, o uso dos sentidos e a relação que
Antônio e Zé estabelecem com o mundo a partir deles é muito diferente da minha. Esta
proposição se aproxima da ideia de técnica corporal já exposta por Mauss na qual o corpo é
o instrumento mais fundamental da ação humana em que “cada sociedade tem seus hábitos
próprios” (MAUSS, 2015, p.401). A noção de técnicas do corpo, no desenvolvimento de Le
Breton, parece ser ampliada para os sentidos, já que ele escreve que os sentidos estão
imbricados no corpo e não podem estabelecer relação com o mundo senão por meio dele.
Normalmente, para o senso comum, os sabores são dados. Aquilo é salgado, isto é
doce e aquele outro amargo. Em outras palavras, nessa perspectiva, é da natureza das
coisas ter um sabor e, pelo fato do paladar pertencer, também segundo o senso comum, ao
âmbito da natureza, sentimos estes sabores e passamos a conhecê-los e, ainda, se o
paladar está no corpo, este seria também algo “natural”. Nosso corpo, no entanto, não vem
“pronto” ao mundo nesse invólucro orgânico ao qual estamos aprisionados por toda nossa
existência e, onde é dentro, na inteligência que está o âmbito da cultura. Quando se trata de
corpo – e junto dele, os sentidos pelos quais percebemos o mundo – natureza e cultura se
interpenetram.
Se, como diz Le Breton, o corpo é a condição para a existência, e a partir dos
sentidos eu percebo o mundo “objetivo” ao meu redor com as lentes de minha cultura, o
produto dessa percepção é o saber acerca desse mundo. Eu o experimento, o sinto, o
saboreio e o digiro. O saber tem algo de visceral com o mundo e seu gosto pode ir do mais
doce ao mais amargo. Em seu livro “Antropologia dos Sentimentos” – cujo título original é La
Saveur du Monde ou, O Sabor do Mundo – o autor questiona a noção cartesiana de “penso,
logo sou” e propõe uma antropologia dos sentidos baseada na ideia de “sinto, logo sou”, que
foca em experiências de percepções sensoriais entendidas como projeções de significados
orientados pela cultura, a partir da experiência corporal no mundo e sua relação com o meio.
Os sentidos, portanto, não dependem apenas de características fisiológicas dos
indivíduos, mas são atravessados pelo universo simbólico do qual fazem parte. A educação
dos sentidos mostra isso. Experimentar o mundo não é apenas prová-lo, não parte apenas
de apreender com o corpo os cheiros, as visões, os sons, os sabores e as texturas, mas
trata-se de uma relação recíproca entre sujeito humano e o meio ambiente humano e
ecológico: “A experiência perceptiva de um grupo se modula através dos intercâmbios com
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os outros e através da singularidade de uma relação com o acontecido” (LE BRETON, 2016,
p.32). Os usos dos sentidos não são os mesmos em todas as sociedades, tampouco sua
hierarquia.
Diferentemente da saída etnográfica pelo Rio Itanhaém e seus afluentes, a saída
pelos “rios escondidos” de São Paulo me colocavam num lugar habitual: no centro do
município de São Paulo, pelas regiões do Vale do Anhangabaú, Avenida 23 de Maio, indo
até a Rua Ouvidor. Lugares por onde costumo passar cotidianamente. Ainda assim, a
experiência que tive dos sentidos e do corpo nesse lugar foi diferente de tudo aquilo que já
havia feito. Fui convidado, pela etnografia no meio urbano, a experimentar novos “sabores”
– metaforicamente falando – a fim de produzir outros saberes acerca daquele espaço.
Partindo de áudios gravados pela iniciativa “A Cidade Azul”, a intenção dessa saída
etnográfica era pensar a relação do meio urbano de São Paulo com os rios que, com o
passar do tempo, foram sendo escondidos pela cidade: os rios Saracura, Itororó e Bixiga,
que desembocam no Rio Anhangabaú. A referida iniciativa tem como objetivo resgatar os
rios urbanos, transformando nossa relação com eles. Para isso, foram feitas pelos
responsáveis da iniciativa diversas intervenções artísticas nas localidades onde antes havia
rios a céu aberto que dialogam com áudios gravados para este contexto e percurso. Foi
através destes áudios que pudemos guiar a nossa percepção para esses rios escondidos
pelo concreto.
Fui guiado pelos áudios desde a saída do metrô Anhangabaú. É de lá que partimos
numa jornada sensorial e imaginativa. Aqui, diferente do Itanhaém onde priorizamos a visão
para o rio e para a mata ciliar, devíamos priorizar também a audição para podermos de fato
enxergar os rios que ali habitam subterraneamente. Pode parecer estranho que se diga que
precisamos da audição para enxergar, mas no caso dos rios escondidos da cidade, para ver
de fato a cidade azul por debaixo do cinza do concreto, precisamos realizar um exercício de
imaginação associado aos sentidos. Esse exercício de imaginação era ainda facilitado pelo
fato de que durante alguns áudios é possível ouvir um som de água correndo, permitindo
com que de fato enxergássemos não apenas com os olhos, mas com os ouvidos.
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Os rios escondidos de São Paulo, 2017. Foto por Felipe Figueiredo.
Para Le Breton, “o antropólogo desconstrói a evidência social de seus próprios sentidos e se
abre a outras culturas sensoriais, a outras maneiras de sentir o mundo” (2016, p.18). Nesse
sentido, a iniciativa “A Cidade Azul” é praticamente uma experiência antropológica dos
sentidos. Onde é concreto se vê rios que ainda correm por debaixo dos prédios e avenidas,
assim como o fluxo contínuo dos carros que passam agora por cima deles. Desconstruímos
as evidências da nossa percepção através dos sentidos aprendendo a enxergar a face
subterrânea da cidade.
Não conhecemos as “coisas em si”, diz Le Breton, mas as projeções de significado
que damos ao mundo e, segundo ele, “os sentidos não são ‘janelas’ sobre o mundo [...] eles
são filtros que só retêm em sua peneira o que o indivíduo aprendeu a colocar nela, ou o que
ele justamente busca identificar mobilizando seus recursos” (LE BRETON, 2016, p.15). O
antropólogo, portanto, é aquele que se abre a novas experiências sensoriais, questionando
a universalidade do sentir no mundo, levando em consideração que não se tratam de
condições meramente fisiológicas, mas também de uma significação acerca do mundo. A
antropologia faz um convite a abrir-se a essas outras experiências sensoriais e de sentido,
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já que “o sentir não funciona sem a intervenção das significações” (LE BRETON, 2016,
p.19). Ela alarga as possibilidades das restrições sociais à sensorialidade inventando modos
de saborear, ouvir, tocar e sentir.
Se considerarmos ainda a proposição de Merleau-Ponty de que ”o corpo próprio está
no mundo assim como o coração está no organismo” (2006, p.273), no sentido de que este
último anima o organismo e pulsa a vida, ao passo que o mundo só faz sentido enquanto o
habitamos corporalmente, fica mais difícil manter a divisão natureza e cultura na condição
dos corpos e sua sensorialidade. Essa divisão – natureza e cultura – como aponta Phillipe
Descola (2016), não é dada de antemão, não é uma verdade em si mesma, mas também
está inserida no universo simbólico através do qual nós percebemos o mundo a partir de
uma perspectiva particular. A maior parte dos objetos a nossa volta, como diz esse autor,
encontra-se numa situação intermediária entre o que tomamos como natureza (aquilo que
se produz sem a intervenção humana) e o que tomamos como cultura (aquilo que é criado
pela ação humana, desde objetos às ideias e instituições), incluindo nós mesmos e nossos
corpos.
Corpos (passíveis de agressão) na cidade
Próximo ao período em que os colegas do VISURB discutiam a relação entre
natureza e cultura e faziam o percurso pelo Rio Itanhaém, meu corpo experienciava outras
discussões e outros trajetos. Entre o final de agosto e o início de novembro de 2016 eu,
enquanto Agente de Formação do Programa Jovem Monitor/a Cultural7 pela Ação
Educativa8, era educadora e mediadora dentro do contexto do LabCult (Laboratório de
Experimentações culturais) de um grupo de jovens que se propuseram a desenvolver
projetos culturais com temática LGBT9.
O Jovem Monitor/a Cultural é um programa de formação e experimentação profissional em gestão cultural para
as juventudes realizado pela Secretaria Municipal de Cultura (SMC) da Prefeitura de São Paulo. O programa
procura, desde 2013, promover uma formação combinada em que o/as jovens ampliam seu repertório e
experimentam, na prática, os diversos aspectos da gestão cultural: funcionamento do cotidiano de um
equipamento/departamento cultural, produção, desenvolvimento de programas e projetos; e valorização do
patrimônio cultural material e imaterial. Além disso, a formação conta com uma perspectiva teórica sobre
questões que envolvem a diversidade das juventudes e das manifestações culturais, cidadania, direito à cidade,
questões étnico-raciais e de gênero, bem como a participação e importância do/as jovens nos processos de
transformação social e política da sociedade. Cf. http://jovemmonitorcultural.prefeitura.sp.gov.br/. Acesso em:
06/10/2017
8 Fundada em 1994, a Ação Educativa é uma associação civil sem fins lucrativos que atua nos campos da
educação, da cultura e da juventude, na perspectiva dos direitos humanos. Cf. http://www.acaoeducativa.org.br/.
Acesso em 06/10/2017
9 Sigla para Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros .
7
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No LabCult foram trabalhadas todas as etapas da criação, programação e execução
de ações culturais. O protagonismo, a empatia, o diálogo, a criatividade e a colaboração
para o trabalho em grupo foram elementos centrais deste processo que buscou envolver
jovens de diferentes regiões da cidade no engajamento e na atuação cultural. Os integrantes
do grupo LGBT, a partir de discussões propostas e conduzidas por mim, compartilharam
reflexões sobre seus processos particulares e profundos no que diz respeito a serem jovens
LGBT. Com base nas conversas, entre levantamento de ideias e propostas e a relação
destas com sua viabilidade, foram desenvolvidos e concluídos um vídeo-documentário10 e
dois ensaios fotográficos que compuseram a exposição “Manas & Monas”11, cuja abertura
ocorreu na segunda quinzena de dezembro deste mesmo ano encerrando o ciclo percorrido
por mim em período semelhante no qual se deram as experiências vividas pelo outro corpo
que partilha a escrita deste artigo.
Os ensaios fotográficos pretendiam abordar como pessoas LGBT percebem e
expressam suas afetividades e também tensionar a binaridade de gênero e os respectivos
exercícios de papeis esperados pela sociedade12. A primeira questão foi desenvolvida no
ensaio “Afetar”, a partir do qual foi elaborado o vídeo-documentário, e a segunda foi
trabalhada no ensaio “Nuânsias”. Irei me ater mais ao ensaio “Afetar”, pois ele possibilita o
levantamento de questões que dizem respeito às relações dos corpos com os espaços
ocupados (ou negados) e como se constrói compreensões e leituras do mundo a partir disto.
No momento inicial de elaboração do referido ensaio foi feita uma dinâmica com os
jovens cujo intuito era trazer suas reflexões sobre como se colocavam no mundo: como ser
LGBT influenciava em suas relações seja de maneira positiva, seja pelas experiências
doloridas, como eles exerciam suas afetividades, no que se apoiavam para poder seguir
frente as opressões que sofrem cotidianamente. Foram colocados quatro post its na parede
com os seguintes dizeres: “me machucou”, “me deu forças”, “ser LGBT é…” e “eu no
mundo”. Durante um bom tempo todos puderam preencher individualmente post its com
suas frases, momentos, lembranças, pessoas, e colocar abaixo dos dizeres aos quais
correspondiam. Cada um refletiu consigo mesmo o que escreveria nesses papeis e depois
cada um/a olhou para todas as questões que estavam na parede formando aquele quadro
imaginário. Fez-se um silêncio, seguido de alguns comentários e risadas.
Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=8IjJ9VBTqaA. Acesso em 06/10/2017
Cf. https://www.facebook.com/events/191835311280615/. Acesso em 20/12/2016
12Para uma discussão no que diz respeito à materialidade do corpo e sua relação com a performatividade de
gênero, ver: BUTLER, Judith. Bodies that matter, on the discursive limits of "sex". New York: Routledge, 1993.
10
11
68
Memórias foram trazidas à tona, em sua maioria estavam atreladas aos respectivos
corpos, incluindo neste termo as expressões corporais de maneira mais ampliada e, a
depender de como esses corpos eram percebidos por terceiros, um tipo de relação era
estabelecido, sendo negativa a maior parte das percepções dessas relações. A reflexão
geral foi que ser LGBT não é algo simples, que passe desapercebido, ou apenas mais um
componente na vida das pessoas. Perceber-se como LGBT é complexo, por vezes dolorido,
envolve relações delicadas, sejam familiares, profissionais, amorosas, de auto-aceitação e
impacta o colocar-se no mundo e nas maneiras de lidar com todas as outras esferas da
vida, de lidar com os próprios medos, receios, anseios, decepções, frustrações, sonhos,
desejos e como isso compõe a identidade de cada um. Eles partilharam suas histórias, suas
trajetórias, suas aproximações ou distanciamentos de entender-se enquanto LGBT, de se
inteirar das militâncias, das demandas, das faltas, dos avanços, dos preconceitos, de
tentarem ser simplesmente quem são em sua totalidade.
Na semana seguinte, a conversa começou com uma fala da única jovem mulher do
grupo sobre não estar totalmente se sentindo representada ou integrada nas propostas,
queria entender melhor o que de fato estava sendo construído coletivamente para se
perceber no processo e poder contribuir da melhor forma possível. Os rapazes falaram de
suas percepções das ações e o diálogo foi estabelecido. Essa tensão em relação às
questões de gênero apareceria mais pra frente novamente. Um novo jovem se integrou ao
grupo e todos/as explicaram o que havia sido conversado e decidido até o momento.
Algumas tarefas e responsabilidades foram divididas entre todos.
Para o ensaio sobre afetividades, foi sugerido que as fotos fossem feitas nas
periferias, pois era o local de moradia e convivência de todos os jovens do grupo, ao que me
senti compelida a trazer a reflexão sobre a segurança de todos, uma vez que faríamos a
saída fotográfica numa segunda-feira ao longo do dia com a proposta de demonstrar
publicamente afeto entre pessoas LGBT, correndo o risco de sermos hostilizados sem
conseguir algum tipo de ajuda e que, por isso, talvez fosse necessário pensar em
alternativas. O jovem recém-chegado, então, sugeriu que as fotos fossem feitas em locais
do centro da cidade de São Paulo onde ocorreram casos de lgbtfobia, ideia simbolicamente
potente que foi recebida de maneira positiva pelo grupo.
Foi partilhado entre todos notícias sobre agressões a pessoas LGBT com base nas
quais foi elaborado um roteiro e decididos os lugares onde seriam feitas as fotos. O
levantamento de notícias levou a reflexões profundas no grupo, todos se mostraram
assustados com a quantidade de agressões e suas características, pontuando que a
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porcentagem de visibilidade dos casos pela mídia é bastante baixos, o que tornava a
situação ainda mais relevante e necessária de ser colocada em pauta. Também se discutiu
longamente sobre o fato de praticamente não serem noticiados casos de agressões contra
mulheres lésbicas e bissexuais, o que fez com que o grupo pesquisasse mais internet a fora,
levando-os a casos de estupros corretivos, bastante alarmantes, que deixaram todos
“baqueados”. Oito notícias foram então escolhidas, e com base nas discussões e decisões
coletivas, elaborei um mapa online com a localização e link das notícias escolhidas13.
No início de outubro fomos às ruas do centro ocupando com nossos corpos o percurso
previamente estabelecido, de ponto a ponto onde haviam ocorrido as mais diversas
violências contra pessoas LGBT. A vontade era expurgar o medo, colocar na rua corpos
reiteradamente invisibilizados na e pela cidade. Ressignificar lugares de violência com
demonstração de afeto, estar juntos para que as experiências pudessem ser vividas de
maneira segura.
Minha função naquele dia era transformar em imagens as vontades do grupo que
foram sendo elaboradas ao longo das discussões que tentávamos concretizar no percurso à
medida que caminhávamos. Coloquei-me em campo não só como mediadora e formadora
dos jovens, mas também, e talvez principalmente, como antropóloga. Enquanto tal, procurei
observar atentamente quais questões que havíamos discutido apareciam e transbordavam
nesses corpos, quais demandas, dúvidas, assuntos e adversidades surgiam sem terem sido
debatidas anteriormente pelo grupo, como se dava a relação com as pessoas que
passavam por nós, como nossos corpos eram percebidos, se eram recebidos de maneira
hostil ou de maneira gentil, dentre outras possibilidades de olhar a maneira como os jovens
vivenciaram e compreenderam a experiência na qual se colocaram conscientemente.
Embora eu tenha feito reflexões como essas na época, apenas após o choque com
Felipe e sua proposição sobre a produção de conhecimento a partir dos corpos, dos
sentidos, e das experiências saboreadas do mundo, que retornei a esse período com um
olhar mais atento. Não só esse processo apresentado em mais detalhes anteriormente,
como também minha própria trajetória de inserções etnográficas desde a época de
graduação até o contexto atual de pesquisa no mestrado sobre produção cultural de
mulheres das periferias da cidade de São Paulo.
13Disponível
09/10/2017
em
https://www.google.com/maps/d/edit?mid=1EtV9Chv0gLcf_XNyH46O-Z4h4dE.
Acesso em
70
Mapa do percurso
realizado
pelosescolhido
jovens. Fotografias
tiradas
por Dayane
e Victória
Sales
fizeram
da expos
& Monas”
com layout
semelhante
ao elaborado
Mapa do
percurso
e realizado
pelos
jovens.Fernandes
Fotografias
tiradas
porque
mim
que parte
fizeram
parteição
da“Manas
exposição
“Manas
& Monas”
com layout
em menorsemelhante
escala nesta página.
Na
referida
exposição,
cada
ponto
também
era
composto
da
respectiva
notícia
de
violência
ali
ocorrida.
ao elaborado graficamente reduzido nesta página, acrescentado das respectivas notícias sobre violências ocorridas em cada ponto.
71
Já dentro deste contexto de encontro com o Felipe e as discussões que ele
propunha, recentemente, por indicação de uma colega que trabalha com
masculinidades, li partes do livro Taboo: sex, identity and erotic subjectivity in
anthropological fieldwork, organizado por Don Kulick e Margaret Willson (1995) que,
em linhas gerais, procuram propor reflexões sobre questões de sexualidade e desejo
em relação e/ou a partir do trabalho de campo antropológico. As discussões colocadas
pelos diferentes artigos somaram-se a estas inquietações pessoais sobre como se dão
as relações em campo a partir de um corpo que é socialmente marcado de diferentes
formas, de maneiras quase sempre não fixas, nem tampouco estáveis. Antropólogas e
antropólogos, como qualquer outro pesquisador que faça trabalho de campo, são
generificados, racializados, sexualizados, dentre outros marcadores que possam ser
apreendidos por meio do corpo, suas performances, seus adereços, seus trejeitos, sua
fala e sua mudez e essa é uma questão que precisa ser colocada e dialogada nas
nossas produções acadêmicas, mas para além delas também, pois este é um aspecto
de grande importância para o conhecimento que queremos produzir e compartilhar.
Retomando a experiência com os jovens no laboratório experimental, bem
como minhas inserções etnográficas, a reflexão mais geral talvez seja que são
processos complexos de serem pensados, elaborados, organizados, experiências e
experimentações do mundo delicadas que merecem atenção antropológica. Como
corpos LGBT circulam pela cidade de São Paulo? Como são invisibilizados
reiteradamente? Como se tornam visíveis? Seria unicamente por meio de violências?
De que maneira esses corpos são “lidos” e “classificados” pela sociedade mais
abrangente? E, a partir dessas leituras e classificações, podem ou não ocupar certos
lugares, acessar certos serviços, estabelecer relações com outros corpos, com outras
pessoas? Como a leitura que é feita do meu corpo por terceiros permite ou inviabiliza
que eu estabeleça contatos e relações em campo? Que eu acesse ou não pessoas e
lugares? Que as pessoas com as quais procuro dialogar me acolham ou me
hostilizem, me bloqueiem ou me incluam nos processos, se sintam seguras ou
hesitantes em relação a minha presença, às minhas colocações, às minhas investidas
em estabelecer vínculos?
Poder revisitar esses momentos tendo como um dos norteadores a questão do
corpo e sua relação com a percepção das experiências vividas e as elaborações feitas
a partir deste lugar tem tido um impacto significativo nas minhas reflexões e produções
antropológicas. O encontro me impactou significativamente, revirou parte das minhas
compreensões anteriores, assim como tem contribuído para entender processos antes
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nebulosos de situações vividas no campo e a maneira como estabeleço as relações e
diálogos com minhas interlocutoras a partir de um corpo, a partir do meu corpo no
mundo.
Os corpos-etnógrafos
Em meio a isso, qual o lugar da etnografia dentro da experimentação do
mundo? Ou melhor, qual o lugar do etnógrafo na experimentação do mundo? O
etnógrafo possui um corpo, habita o mundo fisicamente e é percebido pelos demais ao
mesmo tempo em que cria para si uma percepção e um saber acerca do mundo. O
saber do mundo se constitui a partir do sabor do mundo e, assim, o etnógrafo ou
antropólogo se constitui como um degustador, aquele que experimenta, saboreia o
mundo, o digere e, como síntese dessa digestão, cria para si um saber.
Entendemos por etnografia um método em que nos é permitido pular de
cabeça e dar um “mergulho profundo na vida cotidiana desses Outros que queremos
apreender e compreender” (URIARTE, 2012, p.5). Antes de dar esse mergulho, no
entanto, nos munimos da teoria antropológica. Lemos, estudamos, revisamos para
quando chegar ao campo “desestabilizar” a teoria (URIARTE, 2012). No caso das
etnografias sobre rios, o que houve também foi uma desestabilização dos sentidos,
marcando a lógica que Howes (apud Le Breton, 2016, p.18) dá para uma antropologia
que se proponha a estudar os sentidos: a de determinar como as experiências
sensoriais variam de acordo com a significação e importância atribuídas aos mesmos.
Só depois de passar por essas desestabilizações, portanto, há o momento da
sistematização que, em sua maioria, se dá pela escrita individual, podendo também
ser elaborada de outras maneiras, tendo sido este um dos objetivos das proposições
do VISURB nos últimos tempos: pensar, discutir e construir outras possibilidades de
apresentação da produção de conhecimento antropológico, desenvolvendo oficinas de
fotografia, desenho, elaboração artesanal de cadernos de campo e, em especial, a
produção coletiva de conhecimento, sendo o presente artigo e outros deste dossiê
exemplos desta busca.
Retomando um ponto anterior, se, como dissemos acima, a condição de
existência humana passa, necessariamente, por uma relação entre o corpo (e com ele
os sentidos) e o mundo, a partir de um universo simbólico particular que nos
atravessa, o antropólogo deve deixar-se imergir nas diferenças e também nas
aproximações que existem entre sua cultura e o universo que se propôs a estudar, que
pode ser o seu próprio, como alguém que experimenta. Se a experiência sensível,
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como aponta Le Breton (2016), tem mais a ver com as significações atribuídas a ela,
essa experiência em campo deve se dar neste sentido, já que as coisas só aparecem
como reais enquanto os humanos as tomam enquanto tal.
O corpo do antropólogo também passa por todas as questões epistemológicas
abordadas até aqui, não sendo jamais algo que está para além do mundo que
experimenta. Merleau-Ponty (2006) já diz que perceber o mundo e o próprio corpo são
duas faces da mesma ação. No entanto, foi só a partir de um encontro entre corpos,
que eu, Felipe, percebi que faltava algo. Ao me encontrar com Dayane numa reunião
do VISURB em que discutíamos os temas que abordaríamos no presente dossiê, fui
questionado por ela acerca de meu corpo enquanto agente. Não só isso, as reflexões
que havia feito a partir dos corpos e dos sentidos foram provocadas e abaladas com o
questionamento de Dayane. O choque que ocorreu não foi apenas de ideias, foi um
choque entre corpos: o meu e o dela. Corpos distintos, marcados por suas trajetórias
de vida até que se encontraram ali naquela reunião. O questionamento veio no sentido
de que “nenhum corpo é neutro”, ou seja, falamos de corpo como algo que rompe as
barreiras da dicotomia natureza e cultura, como algo que habita o mundo e o percebe
pelos sentidos, mas não nos questionamos “que corpo é esse”?
Muitas vezes, quando lemos autores como Le Breton ou Merleau-Ponty,
pensamos no corpo e suas agências no mundo, mas por mais que ambos se
detenham em análises fenomenológicas, parece que o corpo é, ainda, algo idealizado.
Assim que Dayane fez seu questionamento, comecei a pensar nos desdobramentos
disso para o que vinha pensando. Estava pensando mais que percebendo os corpos
em si ou percebendo meu próprio corpo. Estava pensando em saborear o mundo, mas
não na boca que usava para tal empreitada e foi nesse choque de nossos corpos e
ideias que pudemos pensar em nossas trajetórias pregressas a este encontro e
também nas futuras. Onde estavam nossos corpos no momento em que começamos a
pensar os corpos?
Na ocasião, eu estava justamente em minha primeira saída etnográfica, pelo
Rio Itanhaém. A partir dela comecei a pensar os corpos e a percepção que tinha do
espaço a partir de uma relação com o meio, tomando como referência a metáfora
criada em torno da origem etimológica da palavra “saber”. Comecei a pensar nos
diferentes “sabores” proporcionados pelo mundo e que somos passíveis de
experimentá-los, produzindo assim conhecimento através dos sentidos e do corpo e
não meramente por um esforço intelectual. As discussões do VISURB acerca da
relação entre natureza e cultura também foram fundamentais para elaborar essas
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questões, já que o senso comum atribui ao corpo e sua capacidade sensitiva um
atributo de “natureza”, enquanto relega ao campo da “cultura” a intelectualidade e a
racionalidade que pode vir a conhecer o mundo objetivo. Embora os autores acima
(MERLEAU-PONTY, 2006; MAUSS14, 2015; LE BRETON, 2016) trabalhem com a
distinção entre natureza e cultura como pares opositivos, no desenvolvimento de suas
ideias, a linha que separa o que é natureza e o que é cultura no corpo é tênue. Não é
possível distinguir, para além dos limites mais gerais do corpo humano, o que é
limitado pela natureza e o que é limitado pela cultura. Não é por acaso que colocamos
no início deste artigo a origem etimológica da palavra “saber”: ter sabor.
O encontro de meu corpo com o de Dayane também me proporcionou um
movimento de percepção, mas mais que isso, reflexão acerca dos saberes que já
havia degustado no mundo. Faltava colocar meu corpo em minhas reflexões acerca da
percepção que tinha do mundo. Eu falava de corpo ao mesmo tempo que não me
colocava enquanto corpo no mundo, e sim de um corpo abstrato, genérico, quase
universal. Por mais que isso pudesse ser pensado a partir do que eu havia retirado
dos autores que tinha estudado, foi só a partir desse encontro de corpos que passei a
dar mais atenção a meu corpo, como alguém que andando no escuro, sem ver a si
mesmo, esbarra com um objeto e passa a tomar mais cuidado com as partes de seu
próprio corpo.
***
Do lado de cá, por assim dizer, o encontro com Felipe também não passou
desapercebido. Senti-me provocada ao ouvir sobre corpos que experienciam o mundo
e produzem saberes a partir da relação estabelecida com este por meio dos sentidos,
das emoções, dos sabores. No entanto, a reflexão do impacto causado só foi
elaborada de maneira mais consciente após debates coletivos sobre a versão inicial
dos artigos. Na primeira versão pouco do meu corpo, e as experiências vividas a partir
dele, tinham sido trazidas para o texto tendo em vista que, como mencionado
anteriormente, o próprio Felipe não havia colocado suas inserções etnográficas e
memórias sensoriais a partir das quais passara a refletir sobre a relação entre corpo e
produção de conhecimento. Eu não havia participado das discussões coletivas sobre
natureza e cultura, tampouco havia participado das saídas etnográficas ligadas aos
rios, tendo isso em vista, não parecia razoável mobilizar experiências etnográficas
pessoais que estavam fora desse escopo. Ambos os corpos acabaram sendo
Levando em conta que Mauss relega importância aos estudos biológicos do corpo indiciados da
psicologia e sociologia, mas que, segundo minha visão, não leva a cabo mais radicalmente a não
separação entre natureza e cultura.
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suprimidos. Ironicamente, um artigo que se propunha a escrever sobre a relação entre
corpo e percepção do mundo, acabou ficando inicialmente descorporificado.
Uma vez percebido que ambos compreendemos que etnografia não se realiza
enquanto prática meramente intelectual, mas também, corporal, debatemos onde
estavam nossos corpos ao longo do período referente às investidas do VISURB. Após
o compartilhamento, acordamos resgatar essas memórias a partir de uma leitura
corporificada das situações vividas, movimento este que procuramos desenvolver ao
longo deste texto.
Ao tensionar a supervalorização da produção de conhecimento a partir do que
é tido como do âmbito racional em detrimento do que é lido como subjetivo, nos
propomos a refletir sobre a tão buscada objetividade científica. Para Donna Haraway
(1995,p.18), a produção de conhecimento deve ser feita a partir de uma objetividade
corporificada, esta objetividade significando, simplesmente, saberes localizados. Nesta
perspectiva, a posição ocupada pelo pesquisador não seria negada, deixando esse
lugar construído historicamente de onipresença, onisciência, bem como onipotência.
Assumir esse lugar de parcialidade inclui refletir sobre quais corpos ocupam quais
lugares e como essas ocupações podem (ou não) serem feitas.É dar um passo para
fora desse “olhar científico” que tem o poder de ver sem ser visto, que marca e
classifica outros corpos por se perceber numa posição não marcada, lugar “universal”
proporcionado pelas ciências.
Revisitando nossas experiências etnográficas, em especial a do Rio Itanhaém
e o laboratório de experimentações culturais desenvolvido com os jovens LGBT
expostas anteriormente, e colocando-as em diálogo com as proposições de Haraway
(1995), poderíamos dizer que as nossas reflexões antropológicas integram produções
de conhecimento localizadas, que partem de pontos de vista situados. Esses lugares
se inscrevem (e são também inscritos) nos (e pelos) nossos corpos em maior ou
menor grau de evidência. As etnografias que fazemos são transpassadas pelas
relações que são viabilizadas ou negadas, tendo em vista as leituras que são feitas
desses corpos. Levando essa provocação a sério, seria possível pensar que a
produção de conhecimento passaria, necessariamente, por uma maior consciência
das produções, desconstruções e leituras em relação aos corpos no presente
etnográfico, mas para além dele também.
Bruno Latour diz que “ter um corpo é aprender a ser afetado, ou seja,
efectuado, movido, posto em movimento por outras entidades, humanas ou nãohumanas” (2008, p.39, grifos do autor). Estendendo à etnografia a colocação de
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Latour, acreditamos que antropólogos e antropólogas não só deveriam ter mais
consciência dos seus corpos em campo, tendo em mente que não se passa
imperceptível e fantasmagoricamente pelos lugares que ocupamos, como também
compreender esses corpos enquanto um instrumento metodológico disposto a ser
afetado15, movimento através do qual podemos aprender a ser mais sensíveis e com
maior capacidade de relacionar as “coisas” do/no mundo.
Aproximando as reflexões de Haraway e Latour, poderíamos dizer que, no
que diz respeito a uma relação possível entre corpo e etnografia em tempos atuais,
seria interessante pensarmos em nos aproximar desse sujeito articulado que é posto
em movimento ao ser afetado pelas diferenças e semelhanças, que percebe sua
localização como limitada, lugar a partir do qual produz um conhecimento localizado,
posicionado, tornando-se responsável pelo o que aprende a ver e transforma em
conhecimento.
Faz-se necessária abertura maior de diálogo sobre como o corpo afeta o que
aprendemos e, consequentemente, como nós representamos essa experiência. Se
parte da compreensão etnográfica vem de como se “sente e percebe o campo”, bem
como se é “sentido e percebido por ele”, não se pode negar que as diferentes
perspectivas e percepções sobre os corpos influenciam o tipo de relação que o
etnógrafo terá no e com o campo e isso, por sua vez, afeta a interpretação daí
decorrente. O antropólogo não pode ser interpretado como mero observador
descorporificado, deslocado do mundo. Ao ter consciência das construções e
percepções sobre esses corpos e as relações permitidas ou proibidas a partir disso,
podemos observar a relação entre nossos corpos e a forma como pensamos sobre a
experiência de e no campo. Ao fazê-lo, desafiamos nós mesmos a reconsiderar
nossas perspectivas, como construímos o campo em si, como nos relacionamos em
campo, como interpretamos essas relações e que tipo de conhecimento queremos
produzir e compartilhar, incluindo nesse bojo as produções escritas que emergem a
partir de nossas inserções e experiências etnográficas.
Encontro de corpos
Dissemos acima que a etnografia se divide em três momentos: uma leitura da
teoria antropológica; um mergulho no cotidiano de outrem; e por fim, a escrita do relato
(URIARTE, 2012). O encontro entre dois corpos que deu início a este artigo fica onde?
Para discussão sobre ser afetado no trabalho de campo, ver: FAVRET-SAADA, Jeanne. Ser
afetado. In: Cadernos de Campo, São Paulo, v. 13, n. 13, p. 155-161, mar. 2005.
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O contato entre estes corpos que engendrou o que o leitor tem em mãos não foi mera
discussão de ideias entre duas pessoas que divergiam, não só nossas ideias, a
princípio, não eram coincidentes, nossos corpos também destoavam. Esse choque de
corpos foi parte fundamental da experiência etnográfica que resultou neste ensaio que
agora entra em contato com o corpo do leitor.
As trajetórias que levaram nossos corpos a se encontrar, trazendo consigo
suas subjetividades após virmos de um mergulho em nossos campos específicos, não
foram elementos neutros para a escrita e as reflexões aqui contidas. Márcio Goldman
(apud URIARTE, 2012, p.5) define o método etnográfico na antropologia como sendo
“o estudo das experiências humanas a partir de uma experiência pessoal”. Isso
significa que a antropologia constitui-se pela experiência pessoal do pesquisador em
campo em relação às pessoas que estuda que também têm suas experiências
específicas.
Fazer antropologia é se colocar em relação a outras experiências e, portanto, o
encontro entre esses corpos distintos, carregados por experiências e percepções do
mundo diferentes também se constituiu como um fazer antropológico, e foi
determinante para a produção das reflexões aqui desenvolvidas. Esse encontro foi
uma experiência em si. Se, como dissemos, saber tem uma relação etimológica com
“ter sabor”, experimentamos de fato este encontro para a produção desse saber do
corpo descrito nessas páginas e, coincidência ou não, esse encontro se deu em um
restaurante às margens do Rio Piracicaba. Agora, o leitor ou leitora deste ensaio prova
também do resultado desse choque entre corpos através de seu corpo e, quem sabe,
dessa digestão venha uma nova profusão de ideias acerca do corpo, dos sentidos e
das percepções.
Referências Bibliográficas
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Janeiro: Lexiton, 2010.
DESCOLA, Phillipe. Outras Naturezas, Outras Culturas. São Paulo: Editora 34, 2016.
HARAWAY, Donna. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o
privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu (5), p. 7-41, 1995.
KULICK, Don; WILLSON, Margaret. Taboo: sex, identity, and erotic subjectivity in
anthropological fieldwork. New York: Routledge, 1995.
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LATOUR, Bruno. “Como falar do corpo? A dimensão normativa dos estudos sobre a
ciência.” In: NUNES, João Arriscado e ROQUE, Ricardo. Objectos Impuros:
Experiências em Estudos sobre a Ciência. Porto: Ed. Afrontamento, 2008.
LE BRETON, David. Antropologia dos Sentidos. – Petrópolis, RJ: Vozes, 2016.
MAUSS, Marcel. “As Técnicas do Corpo.” In: Sociologia e Antropologia – São Paulo:
Cosac Naify, 2015.
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepção. – São Paulo: Martins
Fontes, 2006.
URIARTE, Urpi Montoya. O que é fazer etnografia para os antropólogos. Ponto Urbe
[Online], 11 | 2012, posto online no dia 14 Março 2014, consultado em 10 de Outubro
de 2017. URL : http:// pontourbe.revues.org/300
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