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O sangue derramado: teatro, justiça, democracia

o sangue derramado teatro, justiça, democracia Vozes sem corpo combatem para contar a fábula. Michel Foucault A relação das cabras com o teatro remonta às suas origens gregas. O seu sangue era derramado em sacrifício ritual, nos altares consagrados a Dionísio que ocupavam o centro da orquestra, antes da representação. Sobre esse fundo trágico se elevavam e caiam as fugazes figuras que davam corpo às mesmas histórias de sempre. A entrada das mulheres em cena é mais recente. Durante muito tempo o palco lhes foi vetado. Concebidas e interpretadas por homens, as mulheres do teatro foram durante séculos fantasmas de si mesmas. Fedra, Medeia, Desdémona, Ofélia, todas essas mulheres estão fora de si - literalmente, porque não são outra coisa que o duplo invertido do desejo masculino perante a estranheza dessas consciências estranhas. O teatro não é inocente. As imagens da mulher que contribuiu a levantar sempre justificaram, e continuam a justificar ainda hoje, a violência à qual as mulheres se encontram submetidas. “Nada de excepcional”, apenas mais uma morte, a morte de mais uma, de três, de dez, cada dia, todos os dias. Não se trata em verdade de uma tragédia insignificante, ainda quando se tenha tornado a coisa mais banal. Em todo o caso, não é questão de abrir mão do teatro, mas de tomar posições (porque é uma guerra, como diz Rita Segato). Cinco mulheres conspiram nas suas proximidades. Projetam ocupar o palco, tomar a palavra, e inclusive voltam a pôr as cabras em cena. Como antigamente, o sangue cobre em parte, ainda fresco, o cenário onde se desenvolverá a história. Mas desta vez esse sangue derramado não será ignorado, porque se trata de outra história. Se a tragédia sempre esteve assombrada pelos espectros de mulheres violentadas, é hora de fazer-lhes justiça. A sobriedade da palavra transbordada pela intensidade da voz e o ruído sobre o que tenta elevar-se, a presença soberana dos corpos e a luz sob a qual têm lugar as suas evoluções, a digressão como método e a experimentação como princípio, a dor e a revolta - tudo está a serviço da simples exposição dos fatos: voltou a acontecer, acontece desde sempre, não deixa de acontecer. Jean-Pierre Vernant via na tragédia grega o suplemento fundamental da democracia ateniense. Nascem juntas, quando o primeiro ator se destaca da comunidade cantando ao uníssono os hinos tradicionais e o dissenso se instala na praça como princípio anárquico da organização do comum. Morrem juntas, quando o teatro esquece que o objeto do teatro é o mundo, não o próprio teatro, e as pessoas deixam a praça para tratar dos seus assuntos, confiadas de que o comum pode ser administrado por especialistas. Quiçá não seja possível expiar o teatro das suas culpas, e seguramente em nome da democracia cometeram-se crimes imperdoáveis, mas para aqueles de nós que somos incapazes de renunciar a essas palavras, a esses nomes, voltar a dar um sentido ao teatro e à democracia são tarefas incontornáveis, imperativas, urgentes. Alargando a polifonia que define a cena dramática desde suas origens, fazendo ressoar a voz de tantas mulheres silenciadas, dando-lhes corpo, “A Tragédia Mais Insignificante do Mundo” comove. Não apenas os seus espectadores. Comove, também, as próprias fundações do teatro, que mais uma vez parece tornar-se um espaço essencial para a vida em comum. 68