III Colóquio do Grupo de
Pesquisa Religiões, Identidades e
Diálogos
Recife, 24 e 25 de outubro de 2018
ROGER BASTIDE EM EVIDÊNCIA: FOLCLORE E O ESTUDO AFRO-BRASILEIRO
Lucy Patrícia da Silva de Farias1
Antônio Petrônio da Silva2
Resumo
O artigo discute o folclore Brasileiro sobre a ótica de Roger Bastide, tendo como objetivo
principal identificar e discutir a contribuição que a herança cultural afro-brasileira tem dado ao
folclore do Brasil, especificamente através das simbologias tradicionais que se perpetuam no
tempo como forma de resistência. Para tanto, tomando como referência o livro A Sociologia
do Folclore Brasileiro - Roger Bastide (1959), buscar-se-á elucidar e destacar essas
simbologias que configuram a cultura das religiosidades brasileiras tais como: os candomblés,
o sincretismo católico-fetichista, a lavagem das contas, a cadeira do Ogám, os cavalos dos
santos, o ritual do Angola do axerê, o batuque de Porto Alegre, a Macumba e a psicanálise do
cafuné. Assim, considerando a acepção da palavra folclore e suas hibridações segundo Bastide,
buscaremos por meio de estudo bibliográfico compreender essa realidade.
Palavras-chave: Folclore Brasileiro. População Afro-Brasileira. Simbologia das Tradições.
INTRODUÇÃO
Roger Bastide, um sociólogo francês, em 1938 chegou ao Brasil, com
o objetivo de ensinar Sociologia no Departamento de Ciências Sociais. Neste
contexto dos anos 20, encontrou um ambiente de grande fermentação
intelectual que começava a ser vivenciado. Um termômetro disso foi a
semana de Arte moderna; as campanhas pelo voto secreto, bem como pela
extensão do voto às mulheres; as reformas do ensino primário e médio.
Ademais, estava em curso o processo de transformação que sazonavam nas
duas décadas seguintes. Durante o período que esteve no Brasil publicou
algumas obras como: Candomblé na Bahia (1958), Brancos e Negros
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Lucy Patrícia da Silva de Farias. Mestranda no Programa de Ciências da Religião da Universidade Católica de
Pernambuco – UNICAP.
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Antônio Petrônio Da Silva, Mestrando no Programa de Ciências da Religião da Universidade Católica de
Pernambuco - UNICAP
Roger Bastide em evidência...
(1959), Sociologia do Folclore Brasileiro (1959), entre outros. Assim,
através de seus estudos e publicações, buscaremos desvelar a importância
e contribuição que este sociólogo tem dado à Cultura Afro-brasileira, como
também trazer para mesa de debates um tema que representa a história
das religiosidades afro. Para tanto, objetivamos identificar e discutir a
importância histórica, especificamente por meio dos ritos e simbologias que
sobrevivem ao tempo como forma de resistência. Amparado nas referências
bibliográficas de Roger Bastide entre outras, recorremos às contribuições
culturais afros e ao folclore brasileiro. De modo que, primeiramente
abordaremos em tópicos os conceitos do folclore brasileiro. Posteriormente,
os candomblés, o sincretismo católico-fetichista, a lavagem das contas, a
cadeira de Ogám e os cavalos dos santos. E por último o ritual da Angola
do axêxê, o batuque de Porto Alegre, a Macumba e a Psicanálise do cafuné.
Feito isso, vislumbramos que através deste trabalho, tenhamos a
oportunidade de poder conhecer, identificar e discutir os conceitos e
práticas dessa diversidade religiosa, contribuindo cientificamente, como
demonstrando a importância que a cultura afro tem dado ao folclore
brasileiro.
O FOLCLORE BRASILEIRO E SUA ACEPÇÃO
“O folclore brasileiro não flutua no ar, só existe encarnado numa
sociedade, e estudá-lo sem levar em conta essa sociedade é aprender-lhe
apenas a superfície”. (BASTIDE, 1959, p.07). Isso significa, que o folclore
está inter-relacionado com o contexto social, como a identidade cultural de
um povo, bem como as tradições que se perpetuam no tempo. O autor
menciona no livro A sociologia do folclore brasileiro que a palavra folclore
não é para ser concebida no sentido restritivo apenas da tradição oral, mas
sim, num sentido amplo que engloba os costumes que se inter-relacionam,
bem como as lendas e credos que nesse processo, constituem o folclore e
a cultura.
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Nesse sentido, Batista (2015) apud Fernandes (1946) destaca a
questão das contribuições do branco, do negro e do índio na formação do
folclore brasileiro, in verbus:
[...] a contribuição folclórica do branco, do preto, do índio, a
função modificadora e criadora dos mestiços e dos imigrantes,
as lendas, os contos, a paremiologia, as pegas, os acalantos,
a escatologia, as práticas mágicas – da magia branca e da
magia negra – todo o folclore brasileiro, enfim, num corte
horizontal de mestre. É um mosaico, uma síntese viva e uma
biografia humanizada do folclore de nossa terra (FERNANDES,
1946, p. 150-151)
No Brasil a discussão sobre o conceito de folclore dando ênfase ao
tema teve origem no I Congresso Brasileiro do Folclore no Rio de Janeiro,
em 1951, no qual muitos estudiosos como João Ribeiro, Renato Almeida e
Florestam Fernandes colocaram em pauta a temática. (DEBEM, 2007).
A acepção do folclore segundo o capítulo I da carta do folclore
brasileiro possui uma amplitude relacionando a cultura, a identidade e a
tradição, conforme abaixo transcrito:
1. Folclore é o conjunto das criações culturais de uma comunidade,
baseado nas suas tradições expressas individual ou coletivamente,
representativo de sua identidade social. Constituem-se fatores de
identificação da manifestação folclórica: aceitação coletiva,
tradicionalidade, dinamicidade, funcionalidade. Ressaltamos que
entendemos folclore e cultura popular como equivalentes, em
sintonia com o que preconiza a UNESCO. A expressão cultura
popular manter-se-á no singular, embora entendendo-se que
existem tantas culturas quantos sejam os grupos que as produzem
em contextos naturais e econômicos específicos. (COMISSÃO
NACIONAL DOFOLCLORE, 1995).
Por conseguinte, Bastide acredita que a reinterpretação dos fatos
culturais do Brasil explica-se pelo regime da escravatura e que a religião
africana não é mais folclore do que a católica ou a mulçumana.
(BASTIDE,1959)
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IDENTIFICANDO E DISCUTINDO A HERANÇA CULTURAL AFRO ATRAVÉS
DAS SIMBOLOGIAS
Os aspectos culturais do candomblé
O Candomblé3 é uma religião que deriva diretamente do animismo
africano onde são cultuados os orixás, os voduns ou os inquices. Tal
nomenclatura está relacionada à nação de origem. Porém, no Brasil adquire
formas próprias, pois através do sincretismo com o catolicismo assume uma
forma religiosa/cultural de resistência.
“O sincretismo é a união dos opostos, um tipo de mistura de crenças
e ideias divergentes. Muitos orixás dos cultos afros têm no catolicismo um
santo correspondente”. (RINALDE, ROMERO, 2007, p.253). Deste modo, os
escravos continuavam com seus cultos e suas divindades, pois criaram um
mecanismo para adaptar-se à nova realidade social.
Bastide menciona que a catequese era uma ilusão, porque os
africanos se limitavam a justapor os santos católicos, porém a mitologia
africana nesse mecanismo perdia sua pureza primitiva e a adoração
fetichista se traduzia às imagens dos santos.
Entretanto, Goldman menciona que Bastide quando analisou as
conexões entre organização social e pensamento por meio das “religiões
africanas no Brasil”, enfatizou uma perspectiva mais diacrônica do que
sincrônica, pois não adentrou no mérito das construções históricas.
Já Prandi, descreve que as religiões de preservação do patrimônio
ético dos descendentes dos antigos escravos, sendo conhecidas e
analisadas por Bastide, no qual anteciparia as transformações do
candomblé e a presença de brancos neste universo.
Nesse sentido vale salientar que os estudos realizados foram
importantes instrumentos para desvelar o universo afro, pois muitos
cerimoniais são restritos aos iniciados.
“Candomblé é uma palavra formada pelo termo quimbundo candombe (dança com atabaques) e o termo ioruba
ilé ou ilê (casa). Significa, portanto, a casa onde se dança com atabaques”. (JORGE, 2016, p.02). Nesse sentido,
a dança tem um papel importante no candomblé, sendo assim, uma religião musical e culturalmente rica, pois é
através da dança que o povo de santo cultua e homenageia seus orixás. (BATISTA D’OBALUAYÊ, 2017).
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Por isso para adentrar neste universo Roger Bastide não ficou apenas
na esfera de pesquisador, também passou pelo processo de iniciação que é
uma das características fundamentais no candomblé, sendo um longo
processo.
Um ponto importante na iniciação inclui a lavagem das contas que é,
um colar levado pelo chefe do terreiro sendo nas cores do orixá do iniciado.
O bori, que significa dar de comer à cabeça, fortalecendo a pessoa e
colocando-se em contato com o mundo sagrado (BATISTA, 2013).
“O bori é o rito de dar de comer à cabeça ou ori, entidade sagrada no
candomblé, cultuada como lócus da individualidade” (RABELO, 2013, p.90).
Na mitologia do candomblé, os colares de contas aparecem como
objetos de identificação dos fiéis aos orixás e o seu recebimento, como
momento importante nessa vinculação. (PRANDI, 2001).
Lavagem das contas – processo de iniciação do candomblé
“A cerimônia da lavagem das contas é, por assim dizer, a inserção do
neófito no universo mítico e místico do candomblé. Ao receber seus
primeiros fios-de-contas, geralmente um fio de Oxalá e outro de seu orixá
pessoal”. (LEMOS, 2010, p.01). Isso ocorre no caso que se o iniciado não
for filho de Oxalá.
Segundo Bastide, no processo de iniciação primeiro é feita a consulta
ao babalaô, sendo isto indispensável. Posteriormente as contas são imersas
numa bacia nova cheia de água e em seguida há a trituração de folhas de
acordo com os deuses.
Além disso, também há a lavagem com sabão da costa e só depois
disso é que o colar é transmitido à pessoa que deve usá-lo. E por fim
começa-se o festejo do ato com cantorias e refeições ovíparas. (BASTIDE,
1959).
Neste contexto, a lavagem das contas tem uma estrita ligação com a
fé que o iniciado possui, representando toda simbologia e a relação com o
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mundo dos orixás. Havendo todo um ritual envolvendo nesse processo e
sua efetivação nos terreiros de candomblé representa a perpetuação da fé.
Cadeira do ogan e o poste central
“Ogans são protetores civis do terreiro antigamente, hoje passam a
exercer funções religiosas também. Entre os Ogans destacamos certas
funções importantes e de mando dentro do terreiro, juntos com os
sacerdotes (as) eles administram os terreiros”. (EBOMI, 2014, p. 04).
A escolha dos ogans ocorre quando alguém é preterido para ocupar
um cargo masculino de pessoa que não se manifesta (PEDRO, 2017). Por
isso, sempre estão conscientes e atentos ao desenvolvimento dos rituais e
de acordo com as funções nos quais são responsáveis possuem um nome
específico como: ogan cipá quando destinados à ordem e manutenção do
santuário.
Quando um orixá escolhe um ogan, a primeira obrigação é a escolha
de uma cadeira especial, pois ele só poderá ser consagrado no momento
em que a cadeira ficar pronta e colocada no barracão.
No processo de consagração o ogan é colocado numa cadeira e será
conduzido por dois ogans mais velhos, sendo suspenso por três vezes e a
partir daí se haverá as honrarias, até que seja iniciado e tenha o seu Orixá
assentado.
Cavalo dos Santos e a possessão
“O que caracteriza uma religião é o estabelecimento do contato do
mundo dos homens e o mundo do sagrado, o dos deuses ou das forças
sobre naturais (...) Os negros, em transe místico se tornaram cavalos de
deuses”. (BASTIDE, 1959, p.181).
Entretanto, isso não ocorre com todos.
O transe assim, é algo que transcende o ser, que em alguns
momentos eram interpretados como loucura, conforme menciona Prandi:
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O transe é um artifício pelo qual a própria divindade se revela num
corpo ritualmente preparado para se apresentar diante da
comunidade. A loucura sobrevém quando as pontes entre esses
mundos em permanente sofrem algum tipo de bloqueio separando
os humanos de suas origens sagradas. (PRANDI, 2016).
No batuque, assim como em outras religiões afro-brasileiras, aquele
filho que é cavalo de santo, será possuído apenas por seu orixá de cabeça
pelo resto da vida, sendo que durante o processo da possessão apresenta
características de seu Orixá. Ademais, perderá a consciência dos seus atos,
não sabendo nem o que fala e nem tão pouco o que faz e quando se
manifesta na terra há mais ou menos 10 a 15 anos é considerado o Orixá
novo.
Em hipótese alguma poderá ser comentada a possessão com o
Cavalo-de-santo, este é um dogma do batuque. Quando quer subir é feito
um ritual rápido, devendo o Orixá ficar em “axero”. O axero está relacionado
com o estado de consciência que em parte fica entre o estado de orixá e o
estado de consciência humana. E nesse momento que o cavalo- de santo
age sob a manifestação ainda do Orixá, como criança, falando a língua
tatibitate.
Passando o período necessário o axero deita no ombro de algum filho
próximo e entra num sono profundo para relaxar o corpo do filho possuído,
para que acorde deverá ser batidas palmas ou simplesmente estalar os
dedos, para que o cavalo de santo acorde com um susto.
IDENTIFICANDO E DISCUTINDO OS RITUAIS, AS CARACTERÍSTICAS
REGIONAIS E AS INTER-RELAÇÕES CIENTIFICAS DO CAFUNÉ
O ritual Angola do Axêxê - Rituais e Tradição
Segundo Manuel Quirino4, os pretos acreditam que depois da morte a
alma fica rondando entre os vivos, como também, que os mortos e egum
são perigosos, assim, é preciso expulsá-los. O Candomblé funerário tem a
missão de expulsar as almas do mundo dos vivos, e na cerimônia de morte
4
Manuel Quirino – “Costumes Africanos no Brasil”, 1938, p. 104-5.
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não existe “queda de santo”, durante o axêxê, (salvo antes do enterro
quando o orixá do morto, monta em uma outra pessoa, que desde então
passa a ser a sua filha/o). Depois do enterro, as pessoas se reúnem para
cantar e dançar durante sete dias, isso significa o axêxê. Passados sete dias
ocorre uma missa e depois tornam-se a se reunir dançando e cantando até
as 18:00 horas. Após se passar um ano da morte, será feita invocação dos
egum por um médium africano.
No livro de Edson Carneiro “Candomblés da Bahia” o autor faz
referência a dois termos relacionados ao ritual do candomblé funerário no
qual distingue o axêxê do sirrum. O axêxê seria o candomblé funerário Nagô
e o sirrum o candomblé funerário angolense. Nesse processo ritual, tanto
no axêxê quanto no sirrum Yansam é soberana dos mortos. É por isso que
só ela pode entoar os cantos aos mortos tanto durante o sirrum quanto o
axêxê, por isso, a única divindade presente em ambos os rituais. Os cantos
têm como objetivo trazer paz ao espírito. Ainda assim, os rituais dos
axêxês/sirrum não obedecem a um padrão único, variam de acordo com as
nações.
O batuque de Porto Alegre
O Batuque é um sistema de crenças, um conjunto de forças sagradas
que guiam o destino dos que creem, é um culto afro-brasileiro, com
influência de negros vindos da África, onde são cultuados Orixás, Bastide
(1959). Os Orixás são espíritos naturais, a própria encarnação da natureza,
que se utilizam do Cavalo-de-Santo para se manifestar na terra, trazendo
suas características sob influência da Mãe Natureza. Estes Orixás são: Bara,
Ogum, Iansã, Xangô, Odé, Otim, Ossanha, Obá, Xapanã, Oxum, Iemanjá e
Oxalá.
O culto celebra-se em aposentos fechados, em salas pequenas que
comportam aproximadamente entre cinquenta a duzentas pessoas, salvo
Bara, os orixás são adorados em pegí interno. Em Porto Alegre os dias
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dedicados as suas entidades são diferentes aos da Bahia. Em Porto Alegre
a sexta feira é dedicada a Yemanja, já na Bahia é o sábado. Em Porto Alegre
Oxolá é adorado no domingo ao contrário da Bahia que é nas sextas-feiras.
Em porto Alegre os elementos contrários caracterizam Yemanjá como a
divindade da agua salgada e do amor mais calmo, Oxum da agua doce e
amor mais voluptuoso, na Bahia uniram-se as duas divindades da agua que
são também do amor, (Bastide 1959).
A solidariedade é fato recorrente entre os membros da mesma seita.
A macumba Paulista
Através da extração do mineral e o cultivo do café entre os séculos
18 e 19, se configuraria uma história de exploração e desrespeito ao ser
humano, exprimindo a complexidade da natureza humana nas suas
dimensões econômicas, políticas, sociais e culturais, culminando com um
aumento considerável de escravos em algumas cidades paulistas. Com o
desenvolvimento desses seguimentos comerciais, a vinda de escravos se
fez de maneira sistemática, mas com perseguições e restrições por parte
das autoridades da época às suas práticas e costumes religiosos, que
mesmo sofrendo essas discriminações conseguiram resistir e “preservar”
suas tradições. Segundo Bastide (1959, p. 251), “em São Paulo se
misturam as magias dos brancos (feitiçaria da idade média) e as dos pretos
(curandeirismo) e provavelmente um primeiro trabalho de sincretismo entre
elementos fetichista e cristão”, caracterizando o clima supersticioso desta
cidade. Diante desse complexo cultural e mistura de crenças:
Arthur Ramos definiu a macumba pelo sincretismo entre os
cultos africanos ameríndios, católicos e espíritas. Mister
acrescentar que os elementos africanos eram heterogéneos.
Quando traçamos o mapa da geografia religiosa do Brasil,
vimos que existiu, no começo do século XX, no Rio, duas
"nações" - a "nação" ioruba, que adorava os orixás, e a "nação
banto, cujo culto conhecemos sob o nome de cabula. A
macumba é a princípio a introdução de certos orixás e de
certos ritos ioruba, na cabula. E esse desaparecimento de
"nações" em seitas organizadas é o primeiro efeito
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desagregador da grande cidade. Os laços étnicos ou culturais
se dissolvem no interior da plebe de cor. Nasce uma outra
solidariedade, que ainda não é uma solidariedade de classe,
mas da miséria, das dificuldades de adaptação ao mundo
novo, do desamparo. Mas esse primeiro sincretismo,
justapondo dois sistemas de crenças, não podia formar um
sistema muito coerente. Pelas fendas dessa nova teologia,
que se examinava, que hesitava, sobretudo com a entrada
dos brancos que logo seriam quase tão numerosos como os
negros na macumba, outros elementos se insinuavam:
primeiro o catolicismo popular (favorecido pelo fato de os
santos católicos já corresponderem aos orixás), depois, o
espiritismo de Allan Kardec. A macumba nasceu desse
encontro e dessa fusão, (Bastide 1971, p. 407).
Em 1839 as ações de curandeirismo de Manuel João, que passou a
ser procurado por centenas de incautos aos quais obrigava panaceias
horrendas, ocasionou muitas mortes. Outro caso de morte ocorreu em 1841
na fazenda de D. Gertrudes, os escravos Calixto e Alexandre matam o feitor
em uma emboscada. Diante dos acontecimentos, a 2 de abril de 1855, a
Câmara municipal de Itu decreta a seguinte postura sobre os feiticeiros:
“O escravo que for encontrado comerciando ou tendo em seu
poder qualquer objeto vulgarmente chamado – Feitiçaria –
quer mineral, quer vegetal, quer animal, será punido com 8
dias de prisão e pela reincidência 30. As pessoas livres
compreendidas no art. Acima pela 1ª vez serão punidas com
15 dias de prisão e 30$000 de multa e pela reincidência em
30 dias de prisão e 60$000 de multa” (Bastide, 1959, p. 252
apud Filho, F. Nardy 1939).
As casas onde se reuniam os negros para celebrar os cultos se
chamava batuque. O termo batuque era designado por todo o sul do Brasil
para referenciar as cerimonias fetichistas, em particular na cidade de Porto
Alegre. Ainda segundo Bastide (1959) o termo batuque foi substituído em
São Paulo por Macumba em consequência das práticas ritualísticas
realizadas nos cultos e as deturpações feitas entre a religião (batuque) e a
suposta e estigmatizada magia negra na (macumba).
É preciso ressaltar que o elemento mítico africano vai misturar-se aos
elementos cristãos e espíritas. Essa confluência religiosa foi evidenciada em
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são Paulo através dos negros maometanos que se reuniam em uma
mesquita, mas ao lado desses cultos existiam sempre curandeiros e
feiticeiros, Bastide (1959).
Várias câmaras municipais proibiram essas reuniões e rituais
realizados pelas “casas de fortuna”, alegando que ao lado desses cultos
organizados existam sempre os feiticeiros e curandeiros que agem
individualmente através de práticas de magia negra.
A Psicanálise do Cafuné
No Brasil colonial é costume após as refeições um curioso hábito.
Tendo como argumento a função de catar os piolhos nas cabeleiras longas
ou emaranhadas das senhoras, que deixavam que suas cabeças fossem
lentamente acariciadas por escravas negras. O cerimonial tem um nome:
chama-se cafuné. Segundo o texto de um viajante francês Charles Expilly:
Na hora de maior calor, quando se mover ou mesmo falar torna-se
cansativo, as senhoras, recolhidas no interior dos aposentos,
deitam-se no colo da sua mucama favorita, à qual elas confiam sua
cabeça. A mucama passa, repassa seus dedos indolentes na espessa
cabeleira que se desenrola diante dela. A escrava lavra em todos os
sentidos naquele luxuriante tosão. Coça delicadamente a raiz dos
cabelos, pinça a pele com habilidade, fazendo ouvir, de tempos a
tempos, um rumor seco entre a unha do polegar e a do dedo médio.
Esta sensação torna-se uma fonte de prazer para o sensualismo das
nativas. Um voluptuoso arrepio percorre os seus membros ao
contato desses dedos acariciantes. Invadidas, vencidas pelo frisson
que se espalha em todo o seu corpo, algumas sucumbem à deliciosa
sensação e desfalecem sobre os joelhos da mucama. (BASTIDE,
1959, P. 306 apud EXPILLY, 1935, p. 168).
O cafuné foi, portanto, na visão de alguns viajantes e estudiosos,
interpretado como um substituto dos divertimentos lésbicos. E, por isso
mesmo, ele teve uma função útil, pois representou uma salvaguarda da
moral. Mas segundo Bastide (1959), foi Gyza Roheim, quem indicou que o
postulado de Freud da identidade libidinosa da humanidade conciliar-se-ia
melhor com as conclusões da etnografia sobre as diversidades das culturas,
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mostrando-nos que os mesmos problemas surgem em toda parte, mas cada
tipo de sociedade lhes dá uma solução diferente.
Bastide (1959) anuncia que não cabe mais à psicanálise decidir sobre
os caminhos metodológicos a serem seguidos pela nova sociologia, mas, ao
contrário, o sociólogo é quem deve traçar os limites culturais nos quais os
psicanalistas deverão situar sua pesquisa5. Portanto, é oportuno trazer para
esse debate, a tentativa de não pôr um elemento da cultura brasileira –
caçar os piolhos – no cobertor curto da psicanálise.
Ao mesmo tempo em que se manifesta como um crítico aos métodos
simplórios da psicanálise, Roger Bastide apresenta uma contribuição que
perpassa toda sua obra. Assim, afirma em síntese o seu caráter
interdisciplinar:
A interconexão com os diversos campos de conhecimento –
sociologia, antropologia, etnologia, psicologia, psicanálise,
subsidia as possibilidades de compreensão de diferentes
temáticas – experiência mística, transe, possessão, loucura,
doença mental, ritos, secularização – e, remete à construção
de “campos interdisciplinares” – a psiquiatria social, a
sociologia das doenças mentais, a etnopsiquiatria, a
antropologia psiquiátrica, a sociologia dos sonhos, a sociologia
dos delírios, a psicologia dos povos (NUNES, 2015, p. 918).
A sensibilidade nas interpretações de Bastide, se mostraram nos
textos sobre o hábito do cafuné corrente no Brasil. Sua obra chama a nossa
atenção para outra área, a qual Bastide se dedicou ao longo da vida, as
religiões e costumes afro, a psicologia e a psicanálise, matéria de escritos
e análises (Sociologia e Psicanálise, 1941/1959) e inspiração para algumas
de suas reflexões sobre os sonhos e sobre as doenças mentais (Le rêve, la
transe, la folie, 1972). É possível percorrer a obra de Bastide seguindo esse
eixo, firme e fecundo.
R. Bastide: “Êtat actuel des études afro-brésiliennes” (Ver. Int. de sociologie, 1939). Cf. A. Ramos: “O negro
brasileiro”, 2.ª ed. S. Paulo, Cia. Ed. Nac. 1940 (apêndice).
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Entre os anos de 1525 e 1851, aproximadamente mais de cinco
milhões de africanos foram embarcados para o Brasil na condição de
escravos. “Essas pessoas foram trazidas das mais diferentes partes do
continente africano abaixo do Saara” (Prandi, 2000, p. 52 apud Conrad,
1985, pp. 34-43). Não se tratava de um povo, mas de uma multiplicidade
de etnias, nações, línguas, culturas que de modo geral, foram tragados pelo
desumano tráfico negreiro.
Se observarmos bem, a dominação de uns povos sobre outros
é sempre precedida por desculpas que, via de regra, esconde
as verdadeiras intencionalidades daqueles que estão na
condição de dominador. É o que chamamos de discurso
justificatório, ou seja, um discurso por vezes político, por
vezes social, por vezes religioso, que tenta provar, aos olhos
dos demais, que aquelas ações de subjugação são necessárias
e salvíficas (Campos e Koury 2015, p. 162).
Diante da imposição histórica da cultura europeia branca, a formação
da sociedade foi sendo constituída por sentidos e aspectos da cultura
africana,
que
consolidou
a
cultura
nacional
de
maneira
plural
e
multicultural. É o caso da música popular brasileira, em que os ritmos e
estruturas melódicas de origem africana estão presentes praticamente em
todos os gêneros musicais do país e que passaram a interessar aos mais
variados compositores e consumidores da cultura branca. Também vale
para a gastronomia, moda e aos vários segmentos religiosos que estão bem
vivos no Brasil, apesar de ainda haver preconceito, discriminação e
intolerância para com o diferente. Fato que podemos relatar em pleno
século XXI aqui em Recife quando uma arvore centenária (Gameleira)
localizada no sítio de Pai Adão, em Água Fria, Zona Norte da Capital
Pernambucana foi queimada em ato de intolerância religiosa6.
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Apesar de uma história marcada por negros escravizados e batizados
coletivamente, apartados de suas identidades familiares e inseridos numa
senzala sob a práxis de uma catequese que afirmava a escravidão como
meio de salvação, criou-se nesse processo histórico Brasileiro o que talvez
seja a reconstituição cultural mais bem-sucedida do negro no Brasil, capaz
de preservar suas simbologias e significados até os dias de hoje: a cultura
afro-brasileira.
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