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ROGER BASTIDE EM EVIDÊNCIA: FOLCLORE E O ESTUDO AFRO-BRASILEIRO

III Colóquio do Grupo de Pesquisa Religiões, Identidades e Diálogos Recife, 24 e 25 de outubro de 2018 ROGER BASTIDE EM EVIDÊNCIA: FOLCLORE E O ESTUDO AFRO-BRASILEIRO Lucy Patrícia da Silva de Farias1 Antônio Petrônio da Silva2 Resumo O artigo discute o folclore Brasileiro sobre a ótica de Roger Bastide, tendo como objetivo principal identificar e discutir a contribuição que a herança cultural afro-brasileira tem dado ao folclore do Brasil, especificamente através das simbologias tradicionais que se perpetuam no tempo como forma de resistência. Para tanto, tomando como referência o livro A Sociologia do Folclore Brasileiro - Roger Bastide (1959), buscar-se-á elucidar e destacar essas simbologias que configuram a cultura das religiosidades brasileiras tais como: os candomblés, o sincretismo católico-fetichista, a lavagem das contas, a cadeira do Ogám, os cavalos dos santos, o ritual do Angola do axerê, o batuque de Porto Alegre, a Macumba e a psicanálise do cafuné. Assim, considerando a acepção da palavra folclore e suas hibridações segundo Bastide, buscaremos por meio de estudo bibliográfico compreender essa realidade. Palavras-chave: Folclore Brasileiro. População Afro-Brasileira. Simbologia das Tradições. INTRODUÇÃO Roger Bastide, um sociólogo francês, em 1938 chegou ao Brasil, com o objetivo de ensinar Sociologia no Departamento de Ciências Sociais. Neste contexto dos anos 20, encontrou um ambiente de grande fermentação intelectual que começava a ser vivenciado. Um termômetro disso foi a semana de Arte moderna; as campanhas pelo voto secreto, bem como pela extensão do voto às mulheres; as reformas do ensino primário e médio. Ademais, estava em curso o processo de transformação que sazonavam nas duas décadas seguintes. Durante o período que esteve no Brasil publicou algumas obras como: Candomblé na Bahia (1958), Brancos e Negros 1 Lucy Patrícia da Silva de Farias. Mestranda no Programa de Ciências da Religião da Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP. 2 Antônio Petrônio Da Silva, Mestrando no Programa de Ciências da Religião da Universidade Católica de Pernambuco - UNICAP Roger Bastide em evidência... (1959), Sociologia do Folclore Brasileiro (1959), entre outros. Assim, através de seus estudos e publicações, buscaremos desvelar a importância e contribuição que este sociólogo tem dado à Cultura Afro-brasileira, como também trazer para mesa de debates um tema que representa a história das religiosidades afro. Para tanto, objetivamos identificar e discutir a importância histórica, especificamente por meio dos ritos e simbologias que sobrevivem ao tempo como forma de resistência. Amparado nas referências bibliográficas de Roger Bastide entre outras, recorremos às contribuições culturais afros e ao folclore brasileiro. De modo que, primeiramente abordaremos em tópicos os conceitos do folclore brasileiro. Posteriormente, os candomblés, o sincretismo católico-fetichista, a lavagem das contas, a cadeira de Ogám e os cavalos dos santos. E por último o ritual da Angola do axêxê, o batuque de Porto Alegre, a Macumba e a Psicanálise do cafuné. Feito isso, vislumbramos que através deste trabalho, tenhamos a oportunidade de poder conhecer, identificar e discutir os conceitos e práticas dessa diversidade religiosa, contribuindo cientificamente, como demonstrando a importância que a cultura afro tem dado ao folclore brasileiro. O FOLCLORE BRASILEIRO E SUA ACEPÇÃO “O folclore brasileiro não flutua no ar, só existe encarnado numa sociedade, e estudá-lo sem levar em conta essa sociedade é aprender-lhe apenas a superfície”. (BASTIDE, 1959, p.07). Isso significa, que o folclore está inter-relacionado com o contexto social, como a identidade cultural de um povo, bem como as tradições que se perpetuam no tempo. O autor menciona no livro A sociologia do folclore brasileiro que a palavra folclore não é para ser concebida no sentido restritivo apenas da tradição oral, mas sim, num sentido amplo que engloba os costumes que se inter-relacionam, bem como as lendas e credos que nesse processo, constituem o folclore e a cultura. Anais do III Colóquio do Grupo de Pesquisa Religiões, Identidades e Diálogos Recife, 24 e 25 de out. 2018 2 Roger Bastide em evidência... | Lucy Patrícia da Silva de Farias e Antônio Petrônio da Silva Nesse sentido, Batista (2015) apud Fernandes (1946) destaca a questão das contribuições do branco, do negro e do índio na formação do folclore brasileiro, in verbus: [...] a contribuição folclórica do branco, do preto, do índio, a função modificadora e criadora dos mestiços e dos imigrantes, as lendas, os contos, a paremiologia, as pegas, os acalantos, a escatologia, as práticas mágicas – da magia branca e da magia negra – todo o folclore brasileiro, enfim, num corte horizontal de mestre. É um mosaico, uma síntese viva e uma biografia humanizada do folclore de nossa terra (FERNANDES, 1946, p. 150-151) No Brasil a discussão sobre o conceito de folclore dando ênfase ao tema teve origem no I Congresso Brasileiro do Folclore no Rio de Janeiro, em 1951, no qual muitos estudiosos como João Ribeiro, Renato Almeida e Florestam Fernandes colocaram em pauta a temática. (DEBEM, 2007). A acepção do folclore segundo o capítulo I da carta do folclore brasileiro possui uma amplitude relacionando a cultura, a identidade e a tradição, conforme abaixo transcrito: 1. Folclore é o conjunto das criações culturais de uma comunidade, baseado nas suas tradições expressas individual ou coletivamente, representativo de sua identidade social. Constituem-se fatores de identificação da manifestação folclórica: aceitação coletiva, tradicionalidade, dinamicidade, funcionalidade. Ressaltamos que entendemos folclore e cultura popular como equivalentes, em sintonia com o que preconiza a UNESCO. A expressão cultura popular manter-se-á no singular, embora entendendo-se que existem tantas culturas quantos sejam os grupos que as produzem em contextos naturais e econômicos específicos. (COMISSÃO NACIONAL DOFOLCLORE, 1995). Por conseguinte, Bastide acredita que a reinterpretação dos fatos culturais do Brasil explica-se pelo regime da escravatura e que a religião africana não é mais folclore do que a católica ou a mulçumana. (BASTIDE,1959) Anais do III Colóquio do Grupo de Pesquisa Religiões, Identidades e Diálogos Recife, 24 e 25 de out. 2018 3 Roger Bastide em evidência... | Lucy Patrícia da Silva de Farias e Antônio Petrônio da Silva IDENTIFICANDO E DISCUTINDO A HERANÇA CULTURAL AFRO ATRAVÉS DAS SIMBOLOGIAS Os aspectos culturais do candomblé O Candomblé3 é uma religião que deriva diretamente do animismo africano onde são cultuados os orixás, os voduns ou os inquices. Tal nomenclatura está relacionada à nação de origem. Porém, no Brasil adquire formas próprias, pois através do sincretismo com o catolicismo assume uma forma religiosa/cultural de resistência. “O sincretismo é a união dos opostos, um tipo de mistura de crenças e ideias divergentes. Muitos orixás dos cultos afros têm no catolicismo um santo correspondente”. (RINALDE, ROMERO, 2007, p.253). Deste modo, os escravos continuavam com seus cultos e suas divindades, pois criaram um mecanismo para adaptar-se à nova realidade social. Bastide menciona que a catequese era uma ilusão, porque os africanos se limitavam a justapor os santos católicos, porém a mitologia africana nesse mecanismo perdia sua pureza primitiva e a adoração fetichista se traduzia às imagens dos santos. Entretanto, Goldman menciona que Bastide quando analisou as conexões entre organização social e pensamento por meio das “religiões africanas no Brasil”, enfatizou uma perspectiva mais diacrônica do que sincrônica, pois não adentrou no mérito das construções históricas. Já Prandi, descreve que as religiões de preservação do patrimônio ético dos descendentes dos antigos escravos, sendo conhecidas e analisadas por Bastide, no qual anteciparia as transformações do candomblé e a presença de brancos neste universo. Nesse sentido vale salientar que os estudos realizados foram importantes instrumentos para desvelar o universo afro, pois muitos cerimoniais são restritos aos iniciados. “Candomblé é uma palavra formada pelo termo quimbundo candombe (dança com atabaques) e o termo ioruba ilé ou ilê (casa). Significa, portanto, a casa onde se dança com atabaques”. (JORGE, 2016, p.02). Nesse sentido, a dança tem um papel importante no candomblé, sendo assim, uma religião musical e culturalmente rica, pois é através da dança que o povo de santo cultua e homenageia seus orixás. (BATISTA D’OBALUAYÊ, 2017). 3 Anais do III Colóquio do Grupo de Pesquisa Religiões, Identidades e Diálogos Recife, 24 e 25 de out. 2018 4 Roger Bastide em evidência... | Lucy Patrícia da Silva de Farias e Antônio Petrônio da Silva Por isso para adentrar neste universo Roger Bastide não ficou apenas na esfera de pesquisador, também passou pelo processo de iniciação que é uma das características fundamentais no candomblé, sendo um longo processo. Um ponto importante na iniciação inclui a lavagem das contas que é, um colar levado pelo chefe do terreiro sendo nas cores do orixá do iniciado. O bori, que significa dar de comer à cabeça, fortalecendo a pessoa e colocando-se em contato com o mundo sagrado (BATISTA, 2013). “O bori é o rito de dar de comer à cabeça ou ori, entidade sagrada no candomblé, cultuada como lócus da individualidade” (RABELO, 2013, p.90). Na mitologia do candomblé, os colares de contas aparecem como objetos de identificação dos fiéis aos orixás e o seu recebimento, como momento importante nessa vinculação. (PRANDI, 2001). Lavagem das contas – processo de iniciação do candomblé “A cerimônia da lavagem das contas é, por assim dizer, a inserção do neófito no universo mítico e místico do candomblé. Ao receber seus primeiros fios-de-contas, geralmente um fio de Oxalá e outro de seu orixá pessoal”. (LEMOS, 2010, p.01). Isso ocorre no caso que se o iniciado não for filho de Oxalá. Segundo Bastide, no processo de iniciação primeiro é feita a consulta ao babalaô, sendo isto indispensável. Posteriormente as contas são imersas numa bacia nova cheia de água e em seguida há a trituração de folhas de acordo com os deuses. Além disso, também há a lavagem com sabão da costa e só depois disso é que o colar é transmitido à pessoa que deve usá-lo. E por fim começa-se o festejo do ato com cantorias e refeições ovíparas. (BASTIDE, 1959). Neste contexto, a lavagem das contas tem uma estrita ligação com a fé que o iniciado possui, representando toda simbologia e a relação com o Anais do III Colóquio do Grupo de Pesquisa Religiões, Identidades e Diálogos Recife, 24 e 25 de out. 2018 5 Roger Bastide em evidência... | Lucy Patrícia da Silva de Farias e Antônio Petrônio da Silva mundo dos orixás. Havendo todo um ritual envolvendo nesse processo e sua efetivação nos terreiros de candomblé representa a perpetuação da fé. Cadeira do ogan e o poste central “Ogans são protetores civis do terreiro antigamente, hoje passam a exercer funções religiosas também. Entre os Ogans destacamos certas funções importantes e de mando dentro do terreiro, juntos com os sacerdotes (as) eles administram os terreiros”. (EBOMI, 2014, p. 04). A escolha dos ogans ocorre quando alguém é preterido para ocupar um cargo masculino de pessoa que não se manifesta (PEDRO, 2017). Por isso, sempre estão conscientes e atentos ao desenvolvimento dos rituais e de acordo com as funções nos quais são responsáveis possuem um nome específico como: ogan cipá quando destinados à ordem e manutenção do santuário. Quando um orixá escolhe um ogan, a primeira obrigação é a escolha de uma cadeira especial, pois ele só poderá ser consagrado no momento em que a cadeira ficar pronta e colocada no barracão. No processo de consagração o ogan é colocado numa cadeira e será conduzido por dois ogans mais velhos, sendo suspenso por três vezes e a partir daí se haverá as honrarias, até que seja iniciado e tenha o seu Orixá assentado. Cavalo dos Santos e a possessão “O que caracteriza uma religião é o estabelecimento do contato do mundo dos homens e o mundo do sagrado, o dos deuses ou das forças sobre naturais (...) Os negros, em transe místico se tornaram cavalos de deuses”. (BASTIDE, 1959, p.181). Entretanto, isso não ocorre com todos. O transe assim, é algo que transcende o ser, que em alguns momentos eram interpretados como loucura, conforme menciona Prandi: Anais do III Colóquio do Grupo de Pesquisa Religiões, Identidades e Diálogos Recife, 24 e 25 de out. 2018 6 Roger Bastide em evidência... | Lucy Patrícia da Silva de Farias e Antônio Petrônio da Silva O transe é um artifício pelo qual a própria divindade se revela num corpo ritualmente preparado para se apresentar diante da comunidade. A loucura sobrevém quando as pontes entre esses mundos em permanente sofrem algum tipo de bloqueio separando os humanos de suas origens sagradas. (PRANDI, 2016). No batuque, assim como em outras religiões afro-brasileiras, aquele filho que é cavalo de santo, será possuído apenas por seu orixá de cabeça pelo resto da vida, sendo que durante o processo da possessão apresenta características de seu Orixá. Ademais, perderá a consciência dos seus atos, não sabendo nem o que fala e nem tão pouco o que faz e quando se manifesta na terra há mais ou menos 10 a 15 anos é considerado o Orixá novo. Em hipótese alguma poderá ser comentada a possessão com o Cavalo-de-santo, este é um dogma do batuque. Quando quer subir é feito um ritual rápido, devendo o Orixá ficar em “axero”. O axero está relacionado com o estado de consciência que em parte fica entre o estado de orixá e o estado de consciência humana. E nesse momento que o cavalo- de santo age sob a manifestação ainda do Orixá, como criança, falando a língua tatibitate. Passando o período necessário o axero deita no ombro de algum filho próximo e entra num sono profundo para relaxar o corpo do filho possuído, para que acorde deverá ser batidas palmas ou simplesmente estalar os dedos, para que o cavalo de santo acorde com um susto. IDENTIFICANDO E DISCUTINDO OS RITUAIS, AS CARACTERÍSTICAS REGIONAIS E AS INTER-RELAÇÕES CIENTIFICAS DO CAFUNÉ O ritual Angola do Axêxê - Rituais e Tradição Segundo Manuel Quirino4, os pretos acreditam que depois da morte a alma fica rondando entre os vivos, como também, que os mortos e egum são perigosos, assim, é preciso expulsá-los. O Candomblé funerário tem a missão de expulsar as almas do mundo dos vivos, e na cerimônia de morte 4 Manuel Quirino – “Costumes Africanos no Brasil”, 1938, p. 104-5. Anais do III Colóquio do Grupo de Pesquisa Religiões, Identidades e Diálogos Recife, 24 e 25 de out. 2018 7 Roger Bastide em evidência... | Lucy Patrícia da Silva de Farias e Antônio Petrônio da Silva não existe “queda de santo”, durante o axêxê, (salvo antes do enterro quando o orixá do morto, monta em uma outra pessoa, que desde então passa a ser a sua filha/o). Depois do enterro, as pessoas se reúnem para cantar e dançar durante sete dias, isso significa o axêxê. Passados sete dias ocorre uma missa e depois tornam-se a se reunir dançando e cantando até as 18:00 horas. Após se passar um ano da morte, será feita invocação dos egum por um médium africano. No livro de Edson Carneiro “Candomblés da Bahia” o autor faz referência a dois termos relacionados ao ritual do candomblé funerário no qual distingue o axêxê do sirrum. O axêxê seria o candomblé funerário Nagô e o sirrum o candomblé funerário angolense. Nesse processo ritual, tanto no axêxê quanto no sirrum Yansam é soberana dos mortos. É por isso que só ela pode entoar os cantos aos mortos tanto durante o sirrum quanto o axêxê, por isso, a única divindade presente em ambos os rituais. Os cantos têm como objetivo trazer paz ao espírito. Ainda assim, os rituais dos axêxês/sirrum não obedecem a um padrão único, variam de acordo com as nações. O batuque de Porto Alegre O Batuque é um sistema de crenças, um conjunto de forças sagradas que guiam o destino dos que creem, é um culto afro-brasileiro, com influência de negros vindos da África, onde são cultuados Orixás, Bastide (1959). Os Orixás são espíritos naturais, a própria encarnação da natureza, que se utilizam do Cavalo-de-Santo para se manifestar na terra, trazendo suas características sob influência da Mãe Natureza. Estes Orixás são: Bara, Ogum, Iansã, Xangô, Odé, Otim, Ossanha, Obá, Xapanã, Oxum, Iemanjá e Oxalá. O culto celebra-se em aposentos fechados, em salas pequenas que comportam aproximadamente entre cinquenta a duzentas pessoas, salvo Bara, os orixás são adorados em pegí interno. Em Porto Alegre os dias Anais do III Colóquio do Grupo de Pesquisa Religiões, Identidades e Diálogos Recife, 24 e 25 de out. 2018 8 Roger Bastide em evidência... | Lucy Patrícia da Silva de Farias e Antônio Petrônio da Silva dedicados as suas entidades são diferentes aos da Bahia. Em Porto Alegre a sexta feira é dedicada a Yemanja, já na Bahia é o sábado. Em Porto Alegre Oxolá é adorado no domingo ao contrário da Bahia que é nas sextas-feiras. Em porto Alegre os elementos contrários caracterizam Yemanjá como a divindade da agua salgada e do amor mais calmo, Oxum da agua doce e amor mais voluptuoso, na Bahia uniram-se as duas divindades da agua que são também do amor, (Bastide 1959). A solidariedade é fato recorrente entre os membros da mesma seita. A macumba Paulista Através da extração do mineral e o cultivo do café entre os séculos 18 e 19, se configuraria uma história de exploração e desrespeito ao ser humano, exprimindo a complexidade da natureza humana nas suas dimensões econômicas, políticas, sociais e culturais, culminando com um aumento considerável de escravos em algumas cidades paulistas. Com o desenvolvimento desses seguimentos comerciais, a vinda de escravos se fez de maneira sistemática, mas com perseguições e restrições por parte das autoridades da época às suas práticas e costumes religiosos, que mesmo sofrendo essas discriminações conseguiram resistir e “preservar” suas tradições. Segundo Bastide (1959, p. 251), “em São Paulo se misturam as magias dos brancos (feitiçaria da idade média) e as dos pretos (curandeirismo) e provavelmente um primeiro trabalho de sincretismo entre elementos fetichista e cristão”, caracterizando o clima supersticioso desta cidade. Diante desse complexo cultural e mistura de crenças: Arthur Ramos definiu a macumba pelo sincretismo entre os cultos africanos ameríndios, católicos e espíritas. Mister acrescentar que os elementos africanos eram heterogéneos. Quando traçamos o mapa da geografia religiosa do Brasil, vimos que existiu, no começo do século XX, no Rio, duas "nações" - a "nação" ioruba, que adorava os orixás, e a "nação banto, cujo culto conhecemos sob o nome de cabula. A macumba é a princípio a introdução de certos orixás e de certos ritos ioruba, na cabula. E esse desaparecimento de "nações" em seitas organizadas é o primeiro efeito Anais do III Colóquio do Grupo de Pesquisa Religiões, Identidades e Diálogos Recife, 24 e 25 de out. 2018 9 Roger Bastide em evidência... | Lucy Patrícia da Silva de Farias e Antônio Petrônio da Silva desagregador da grande cidade. Os laços étnicos ou culturais se dissolvem no interior da plebe de cor. Nasce uma outra solidariedade, que ainda não é uma solidariedade de classe, mas da miséria, das dificuldades de adaptação ao mundo novo, do desamparo. Mas esse primeiro sincretismo, justapondo dois sistemas de crenças, não podia formar um sistema muito coerente. Pelas fendas dessa nova teologia, que se examinava, que hesitava, sobretudo com a entrada dos brancos que logo seriam quase tão numerosos como os negros na macumba, outros elementos se insinuavam: primeiro o catolicismo popular (favorecido pelo fato de os santos católicos já corresponderem aos orixás), depois, o espiritismo de Allan Kardec. A macumba nasceu desse encontro e dessa fusão, (Bastide 1971, p. 407). Em 1839 as ações de curandeirismo de Manuel João, que passou a ser procurado por centenas de incautos aos quais obrigava panaceias horrendas, ocasionou muitas mortes. Outro caso de morte ocorreu em 1841 na fazenda de D. Gertrudes, os escravos Calixto e Alexandre matam o feitor em uma emboscada. Diante dos acontecimentos, a 2 de abril de 1855, a Câmara municipal de Itu decreta a seguinte postura sobre os feiticeiros: “O escravo que for encontrado comerciando ou tendo em seu poder qualquer objeto vulgarmente chamado – Feitiçaria – quer mineral, quer vegetal, quer animal, será punido com 8 dias de prisão e pela reincidência 30. As pessoas livres compreendidas no art. Acima pela 1ª vez serão punidas com 15 dias de prisão e 30$000 de multa e pela reincidência em 30 dias de prisão e 60$000 de multa” (Bastide, 1959, p. 252 apud Filho, F. Nardy 1939). As casas onde se reuniam os negros para celebrar os cultos se chamava batuque. O termo batuque era designado por todo o sul do Brasil para referenciar as cerimonias fetichistas, em particular na cidade de Porto Alegre. Ainda segundo Bastide (1959) o termo batuque foi substituído em São Paulo por Macumba em consequência das práticas ritualísticas realizadas nos cultos e as deturpações feitas entre a religião (batuque) e a suposta e estigmatizada magia negra na (macumba). É preciso ressaltar que o elemento mítico africano vai misturar-se aos elementos cristãos e espíritas. Essa confluência religiosa foi evidenciada em Anais do III Colóquio do Grupo de Pesquisa Religiões, Identidades e Diálogos Recife, 24 e 25 de out. 2018 10 Roger Bastide em evidência... | Lucy Patrícia da Silva de Farias e Antônio Petrônio da Silva são Paulo através dos negros maometanos que se reuniam em uma mesquita, mas ao lado desses cultos existiam sempre curandeiros e feiticeiros, Bastide (1959). Várias câmaras municipais proibiram essas reuniões e rituais realizados pelas “casas de fortuna”, alegando que ao lado desses cultos organizados existam sempre os feiticeiros e curandeiros que agem individualmente através de práticas de magia negra. A Psicanálise do Cafuné No Brasil colonial é costume após as refeições um curioso hábito. Tendo como argumento a função de catar os piolhos nas cabeleiras longas ou emaranhadas das senhoras, que deixavam que suas cabeças fossem lentamente acariciadas por escravas negras. O cerimonial tem um nome: chama-se cafuné. Segundo o texto de um viajante francês Charles Expilly: Na hora de maior calor, quando se mover ou mesmo falar torna-se cansativo, as senhoras, recolhidas no interior dos aposentos, deitam-se no colo da sua mucama favorita, à qual elas confiam sua cabeça. A mucama passa, repassa seus dedos indolentes na espessa cabeleira que se desenrola diante dela. A escrava lavra em todos os sentidos naquele luxuriante tosão. Coça delicadamente a raiz dos cabelos, pinça a pele com habilidade, fazendo ouvir, de tempos a tempos, um rumor seco entre a unha do polegar e a do dedo médio. Esta sensação torna-se uma fonte de prazer para o sensualismo das nativas. Um voluptuoso arrepio percorre os seus membros ao contato desses dedos acariciantes. Invadidas, vencidas pelo frisson que se espalha em todo o seu corpo, algumas sucumbem à deliciosa sensação e desfalecem sobre os joelhos da mucama. (BASTIDE, 1959, P. 306 apud EXPILLY, 1935, p. 168). O cafuné foi, portanto, na visão de alguns viajantes e estudiosos, interpretado como um substituto dos divertimentos lésbicos. E, por isso mesmo, ele teve uma função útil, pois representou uma salvaguarda da moral. Mas segundo Bastide (1959), foi Gyza Roheim, quem indicou que o postulado de Freud da identidade libidinosa da humanidade conciliar-se-ia melhor com as conclusões da etnografia sobre as diversidades das culturas, Anais do III Colóquio do Grupo de Pesquisa Religiões, Identidades e Diálogos Recife, 24 e 25 de out. 2018 11 Roger Bastide em evidência... | Lucy Patrícia da Silva de Farias e Antônio Petrônio da Silva mostrando-nos que os mesmos problemas surgem em toda parte, mas cada tipo de sociedade lhes dá uma solução diferente. Bastide (1959) anuncia que não cabe mais à psicanálise decidir sobre os caminhos metodológicos a serem seguidos pela nova sociologia, mas, ao contrário, o sociólogo é quem deve traçar os limites culturais nos quais os psicanalistas deverão situar sua pesquisa5. Portanto, é oportuno trazer para esse debate, a tentativa de não pôr um elemento da cultura brasileira – caçar os piolhos – no cobertor curto da psicanálise. Ao mesmo tempo em que se manifesta como um crítico aos métodos simplórios da psicanálise, Roger Bastide apresenta uma contribuição que perpassa toda sua obra. Assim, afirma em síntese o seu caráter interdisciplinar: A interconexão com os diversos campos de conhecimento – sociologia, antropologia, etnologia, psicologia, psicanálise, subsidia as possibilidades de compreensão de diferentes temáticas – experiência mística, transe, possessão, loucura, doença mental, ritos, secularização – e, remete à construção de “campos interdisciplinares” – a psiquiatria social, a sociologia das doenças mentais, a etnopsiquiatria, a antropologia psiquiátrica, a sociologia dos sonhos, a sociologia dos delírios, a psicologia dos povos (NUNES, 2015, p. 918). A sensibilidade nas interpretações de Bastide, se mostraram nos textos sobre o hábito do cafuné corrente no Brasil. Sua obra chama a nossa atenção para outra área, a qual Bastide se dedicou ao longo da vida, as religiões e costumes afro, a psicologia e a psicanálise, matéria de escritos e análises (Sociologia e Psicanálise, 1941/1959) e inspiração para algumas de suas reflexões sobre os sonhos e sobre as doenças mentais (Le rêve, la transe, la folie, 1972). É possível percorrer a obra de Bastide seguindo esse eixo, firme e fecundo. R. Bastide: “Êtat actuel des études afro-brésiliennes” (Ver. Int. de sociologie, 1939). Cf. A. Ramos: “O negro brasileiro”, 2.ª ed. S. Paulo, Cia. Ed. Nac. 1940 (apêndice). 5 Anais do III Colóquio do Grupo de Pesquisa Religiões, Identidades e Diálogos Recife, 24 e 25 de out. 2018 12 Roger Bastide em evidência... | Lucy Patrícia da Silva de Farias e Antônio Petrônio da Silva Roger Bastide em evidência... | Lucy Patrícia da Silva de Farias e Antônio Petrônio da Silva 13 CONSIDERAÇÕES FINAIS Entre os anos de 1525 e 1851, aproximadamente mais de cinco milhões de africanos foram embarcados para o Brasil na condição de escravos. “Essas pessoas foram trazidas das mais diferentes partes do continente africano abaixo do Saara” (Prandi, 2000, p. 52 apud Conrad, 1985, pp. 34-43). Não se tratava de um povo, mas de uma multiplicidade de etnias, nações, línguas, culturas que de modo geral, foram tragados pelo desumano tráfico negreiro. Se observarmos bem, a dominação de uns povos sobre outros é sempre precedida por desculpas que, via de regra, esconde as verdadeiras intencionalidades daqueles que estão na condição de dominador. É o que chamamos de discurso justificatório, ou seja, um discurso por vezes político, por vezes social, por vezes religioso, que tenta provar, aos olhos dos demais, que aquelas ações de subjugação são necessárias e salvíficas (Campos e Koury 2015, p. 162). Diante da imposição histórica da cultura europeia branca, a formação da sociedade foi sendo constituída por sentidos e aspectos da cultura africana, que consolidou a cultura nacional de maneira plural e multicultural. É o caso da música popular brasileira, em que os ritmos e estruturas melódicas de origem africana estão presentes praticamente em todos os gêneros musicais do país e que passaram a interessar aos mais variados compositores e consumidores da cultura branca. Também vale para a gastronomia, moda e aos vários segmentos religiosos que estão bem vivos no Brasil, apesar de ainda haver preconceito, discriminação e intolerância para com o diferente. Fato que podemos relatar em pleno século XXI aqui em Recife quando uma arvore centenária (Gameleira) localizada no sítio de Pai Adão, em Água Fria, Zona Norte da Capital Pernambucana foi queimada em ato de intolerância religiosa6. 6 Disponível em: <https://www.folhape.com.br/noticias/noticias/meioambiente/2018/11/12/NWS,87241,70,645,NOTICIAS,2190 -GAMELEIRA-QUEIMADA-TERREIRO-RECIFE-SERA-CURADA.aspx.> Acesso em 24 de nov. 2018. Anais do III Colóquio do Grupo de Pesquisa Religiões, Identidades e Diálogos Recife, 24 e 25 de out. 2018 Apesar de uma história marcada por negros escravizados e batizados coletivamente, apartados de suas identidades familiares e inseridos numa senzala sob a práxis de uma catequese que afirmava a escravidão como meio de salvação, criou-se nesse processo histórico Brasileiro o que talvez seja a reconstituição cultural mais bem-sucedida do negro no Brasil, capaz de preservar suas simbologias e significados até os dias de hoje: a cultura afro-brasileira. REFERÊNCIAS BASTIDE, Roger. As religiões africanas no Brasil. 2 vols. São Paulo: Pioneira, 1971. BASTIDE. R. “Êtat actuel des études afro-brésiliennes” (Ver. Int. de sociologie, 1939). Cf. A. Ramos: “O negro brasileiro”, 2.ª ed. S. Paulo, Cia. Ed. Nac. 1940 (apêndice). BASTIDE, Roger. Le rêve, la transe et la folie. Paris. Flammarion. Nouvelle Bibliothéque Scientifique dirigée par Fernand Braudel. 1972, p. 263. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/revhistoria/article/view/131822>. Acesso em 23 de nov. de 2018. BASTIDE, Roger. 1941. Psicanálise do cafuné. Estudos de sociologia estética, Curitiba, Guaíra (reedição francesa, Bastidiana Hors-série 1, 1996). BASTIDE, Roger. Sociologia do Folclore Brasileiro. São Paulo, Ed. Anhembi, 1959. BATISTA D’OBALUAYÊ. Caminhando com os Orixás. Rio de Janeiro, ed. Império da Cultura Ltda. 2017. BATISTA, Monique Mendes Silva. Folclore e identidade nacional na modernidade pelo olhar de Mário de Andrade. 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