As Vibrações da Alma:
escrita e trajetória literária de Irene Lisboa
Fernanda Santos1
Gostava, em oposição com a braveza do jogo da
Pedrada, do tal ataque às coisas certas e negadas. . .
Gostava de escrever com um fio de água.
Um fio que nada traçasse.
Fino e sem cor, medroso.2
1. Introdução
1.1. Percursos de Irene Lisboa
Irene do Céu Vieira Lisboa nasceu em 1892, no concelho de Arruda dos
Vinhos. Foi escritora, professora e pedagoga portuguesa. Formou-se pela Escola
Normal Primária de Lisboa, continuando depois os seus estudos na Suı́ça, França
e Bélgica, e especializando-se em Ciências da Educação. Durante a estadia em
Genebra, que conseguiu através de uma bolsa do Instituto de Alta Cultura, teve
a oportunidade de privar com grandes figuras tais como Jean Piaget e Édouard
Claparède, com quem estudou no Instituto Jean-Jacques Rousseau.
A sua vida profissional começou como professora de educação infantil. Irene
Lisboa exerceu a profissão na capital até ao momento em que, juntamente com
a sua colega e amiga Ilda Moreira, aceitou o desafio de reger classes de ensino
infantil, criadas nas escolas oficiais do grau de que era titular. O alto mérito
do seu trabalho não tardou a ser reconhecido. As suas classes infantis foram
frequentemente visitadas por estudantes e professores da Escola Normal, passando a servir como centros de estágio, dos quais Irene Lisboa foi orientadora.
1
Universidade Federal do Amapá, Campus Santana.
Irene Lisboa, Outono Havias de Vir, Obras de Irene Lisboa, vol. I, poesia I, Lisboa: Editorial
Presença, 1991, p. 300.
2
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Ela própria, de resto, adquiriria o tı́tulo de educadora mediante a apresentação
dos exames finais do curso.
A autora e pedagoga visitou instituições educativas na Bélgica, ligadas à
orientação de Decroly3 , e jardins de infância em Paris. As teorias educativa
sobre práticas pedagógicas diretamente observadas foram objeto de uma leitura
crı́tica, cuja base foi a sua experiência docente.
Em 1932 assumiu o cargo de Inspetora Orientadora do Ensino Primário e
Infantil, no âmbito da qual fez parte de um sector expressamente consagrado
ao apoio pedagógico aos professores em exercı́cio. Afastada da inspeção pouco
tempo depois de nela ter ingressado, Irene Lisboa foi colocada na secretaria
do Instituto de Alta Cultura até ser convidada a aceitar um lugar na Escola
do Magistério de Braga ou a pedir a aposentação. Optou por este caminho, a
partir de 1940, renunciando então a qualquer intervenção de nı́vel oficial. Esta
recusa valeu como forma de exı́lio para uma pedagogia incómoda pelas suas
ideias progressistas. Em homenagem a Irene Lisboa, a Federação Nacional dos
Professores (FENPROF) fundou, em 12 de Janeiro de 1988, o Instituto Irene
Lisboa.
1.2. Obra literária
Irene Lisboa dedicou-se à produção literária e às publicações pedagógicas.
Ao longo da sua vasta obra, escreveu literatura para crianças e jovens, textos de
pedagogia, crónicas e novelas centradas na descrição de quadros e personagens
da vida comum. Com as variações que os diferentes géneros implicam, o seu
estilo foi marcado pela oralidade. Tendo vivido e escrito na época salazarista, o
controlo censório da ditadura não lhe permitiu a transmissão de todas as ideias
que defendia.
Apesar de ser uma autora muitas vezes esquecida, autores como José Rodrigues Miguéis, José Gomes Ferreira e João Gaspar Simões elogiaram o seu
trabalho. Os seus livros nunca foram sucesso de venda, bem como a obra pedagógica, quase de todo ignorada ainda hoje, dispersa pelas páginas esquecidas
de jornais e revistas, ou reduzida a opúsculos com pequenas tiragens iniciais,
não falando já de escritos inéditos do seu espólio4 .
3 Jean Ovide Decroly (1871-1932) foi um médico, psicólogo, professor e pedagogo belga, preconizador de um modelo de ensino não autoritário e não religioso. Como médico, estudou neurologia
na Bélgica e na Alemanha.
4 Entre os diversos estudos sobre a autora contam-se os estudos de José Eduardo Moreirinhas
Pinheiro: Do Ensino Normal na cidade de Lisboa (1860-1960), pref. Almeida Costa, Lisboa: Porto
Editora, 1990; Irene Lisboa e a Educação Infantil, Lisboa: Escola Superior de Educação, 1992;
Elementos para o estudo da Escola Normal de Lisboa, Lisboa: Escola Superior de Educação, 1995.
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A produção literária de Irene Lisboa repartiu-se pela poesia, pelo conto,
pela crónica e pela novela. Apesar da variedade das formas, toda a sua obra
se caracterizou por uma unidade, girando em torno de um núcleo intimista e
autobiográfico. O seu primeiro livro foi escrito em 1926, intitulado 13 Contarelos
e destinado às crianças. Esta obra constitui-se por narrativas curtas, com uma
prática pedagógica subjacente, e por isso mesmo com um estilo de oralidade e
de discurso direto, usando a frase curta, mas bem estruturada, apoiada numa
pontuação cheia de modulações, como interrogações, suspensões, de modo a
captar a atenção do ouvinte ou do leitor infantil. As obras revelam claramente
uma concepção do papel da leitura na aprendizagem, bem como o estı́mulo da
imaginação e da criatividade da criança, mostrando assim as ideias e as práticas
desenvolvidas por Irene Lisboa e Ilda Moreira. O papel desempenhado pelas
duas professoras no ensino infantil terá sido pioneiro5 .
Irene continuou a colaboração com jornais e revistas da época, dos quais
se destacaram Seara Nova, Presença e O Diabo. Em 1936, sob o pseudónimo
de João Falco, publicou o segundo livro, desta vez de poesia, intitulado Um
Dia e Outro Dia. . . – Diário de uma Mulher. No ano seguinte, sob o mesmo
pseudónimo, surgiu Outono Havias de Vir, outra obra de poesia. Ainda sob o
nome de João Falco, apareceu, em 1939, o livro titulado Solidão – Notas do
punho de uma mulher que, pela inserção das datações genéricas e pelo carácter
introspectivo, se aproximava do género diarı́stico. As mesmas temáticas intimistas, o estilo e a caracterı́stica fragmentária apareceram nas obras Apontamentos
e em Solidão – II, publicadas, respectivamente, em 1943 e em 1966. Estas foram
obras de cunho autobiográfico, nas quais o narrador teve voz feminina. O tema de
solidão e da queixa pela ausência do amor foram constantes, o que não cerceou
um vasto olhar da narradora pelo mundo circundante.
As novelas Começa uma vida (1940) e Voltar atrás para quê? (1956) também
se situaram na vertente autobiográfica da escritora, relatando a vida de uma
rapariga desde a sua infância até aos dezoito anos, contando os acontecimentos que a tornaram solitária, agressiva e que lhe despertaram a curiosidade e
a atenção para o mundo. Outra vertente da prosa de ficção de Irene Lisboa
centrou-se nas curtas formas de narrativa, que a própria escritora denominou
como “crónica” ou “reportagem”. Esta Cidade!, O pouco e o muito – Crónica
urbana, Tı́tulo qualquer serve para novelas e noveletas, Crónicas da Serra foram algumas destas curtas obras que retrataram tanto o mundo urbano lisboeta,
como o mundo rural e o serrano. A autora tomou como motivo central os pequenos
dramas quotidianos do povo, sobretudo os dramas das mulheres.
5 Paula Morão, “Paula Morão e Violante F. Magalhães escrevem sobre a obra de Irene Lisboa”,
in A Escrita de Irene Lisboa, Arruda dos Vinhos: Edição do Municı́pio, 2007, p. 3-4 (3-10).
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2. A escrita confessional: perspectivas de análise da obra de
Irene Lisboa
A sua preferência aberta pela gente do povo e pelo seu quotidiano são traços
que valeram à autora uma injusta indiferença por parte das editoras e da crı́tica
mais conservadora. José Gomes Ferreira apontou como razão fulcral deste desprezo um modismo de época, de uma literatura feminina “que se reduzia a explorar os convencionais sentimentos da humildade agradecida por ser cortejada por
fantasmas de machos perfumados de valsas a três tempos e vénias de galanteios,
etc. (. . . )”6 . Irene Lisboa adentrou reflexivamente numa realidade distinta, fora
deste universo, bebendo das ideias republicanas da época, e procurando mostrar
a sua revolta contra as condições em que viviam as mulheres.
Outro aspecto que terá dificultado a divulgação da obra da autora foi o seu
desconcerto formal, e a fuga a modelos, a versos fabricados segundo regras. Os
poemas de Irene Lisboa, isentos de rimas e de ritmo regular, são muitas das
vezes intercalados por frases mais longas, nas quais não se mantém a aparência
gráfica dos versos7 .
A publicação de Um Dia e Outro Dia (1936), sob o pseudónimo de João
Falco, irrompe como uma poesia de rigor novo, causando estranhamento. A
par de elogios, Irene recebeu também crı́ticas. A escolha de um pseudónimo
masculino deixa ainda entrever a sua escolha de uma máscara masculina por
pudor social, uma vez que as mulheres não podiam falar abertamente sobre os
seus problemas pessoais. É ainda possı́vel apontar a repressão social que recaı́a
sobre a mulher escritora. Irene temia certamente ser considerada subversiva
numa época ditatorial8 e numa sociedade que fazia a apologia do patriarcalismo.
A autora foi considerada subversiva quando se descobriu que João Falco era
apenas um pseudónimo masculino para uma autora mulher9 .
Irene Lisboa focou os temas concretos, quotidianos, numa escrita confessional
que valorizou as pequenas coisas da gente do povo e implicitamente criticou
6 José Gomes Ferreira, “Breve Introdução à Poesia de Irene Lisboa”, in Irene Lisboa, Obras de
Irene Lisboa, Um Dia e Outro Dia. . . Outono Havias de Vir, vol. I, Poesia I, Lisboa: Editorial
Presença, 1991, p. 18 (17-30).
7 Irene Lisboa, Poesia – I, Obras de Irene Lisboa, vol. I, prefácio e notas de Paula Morão, Lisboa:
Editorial Presença, 1991, p. 283.
8 Os anos 30 foram particularmente repressivos em Portugal, tendo o Estado Novo acentuado o
seu caráter fascizante. Assistiu-se à criação da Mocidade Portuguesa e da Legião Portuguesa. A
polı́cia polı́tica foi, na década de 30, objeto de uma reorganização social, obtendo a designação de
Polı́cia de Vigilância e Defesa do Estado. A Censura, instituı́da na sequência do 28 de maio de 1926,
alargou e intensificou a sua ação. Cf. Fernando J. B. Martinho, “1936 – Um Ano a Três Vozes: Régio,
Torga e Irene Lisboa”, Colóquio/Letras, n.o 131, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, janeiro de
1994, p. 42 (39-47).
9 José Gomes Ferreira, op. cit., p. 24-25.
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valores burgueses10 . Nas palavras de Jacinto do Prado Coelho:
Ainda a propósito dos seus livros, diz-se que tudo o que produziu reage
a uma desolada situação de mulher alta e livre num mundo atrasado meio
pequeno-burguês, conseguindo vencer a solidão, graças a uma convivência
aberta à gente simples da rua, da escada de serviço, com quem se integra
no seu próprio linguajar através de alguns dos seus livros11 .
José Gomes Ferreira dividiu a obra da autora em três fases: a fase diarı́stica,
da qual fazem parte as obras Um Dia e Outro Dia, Outono Havias de Vir, Solidão,
Apontamentos. A segunda fase das crónicas-relatórios (caso de Esta Cidade), e
a terceira fase novelı́stica (Voltar Atrás para Quê?), em que abandonou a fase
das crónicas-relatórios12 .
A escrita de Irene funcionou como instrumento de autoconhecimento, perscrutrando as causas de um mal-estar interior, registando o momentâneo, aproximando-se também da novelı́stica pela transfiguração da “experiência de observação
do mundo e dos outros” (retratos, cenas) em “matéria de escrita”13 . Entre a obra
poética e publicação desta obra inscreve-se o volume narrativo Começa uma
Vida, que, continuado em Voltar Atrás para Quê?, deu sequência, sob a forma
de novela autobiográfica, a um discurso do eu que se auto-analisa com lucidez
e melancolia, e ao intimismo auto-reflexivo e fragmentário daqueles dois outros
registos, tornando evidente a ruptura com os cânones da lı́rica tradicional.
Segundo Paula Morão, o registo de flagrantes, o imediatismo, as cenas realistas, foram construções próprias de uma literatura intimista, com aproximações
a Katherine Mansfield, Virginia Wolf ou Colette e a vários autores homens, como
António Nobre, Camilo Pessanha, Cesário Verde, Fernando Pessoa, Gomes Ferreira ou Kierkegaard e Tchékov – referentes literários que explicam a opção por
uma escrita voltada para a representação da vida interior e do ı́ntimo e para a
tentativa de explicação da desordem dos sentimentos, da nostalgia do passado
e da infância perdida14 .
A escrita confessional da autora assentou na crı́tica aos valores burgueses.
A consciência de si mesma, no confronto com um mundo inóspito e patriarcal,
transitaram da poesia para o volume Solidão – Notas do Punho de uma Mulher, uma obra hı́brida, que se aproximou do género diarı́stico pela inclusão de
10 José Correia do Souto, Dicionário da Literatura Portuguesa, vol. III, Porto: Lello & Irmão, p.
133-134.
11 Jacinto do Prado Coelho, Dicionário de Literatura, sob a direcção de Jacinto do Prado Coelho,
3.a ed., vol. II, Porto: Figueirinhas, 1976, p. 558-559.
12 José Gomes Ferreira, op. cit., p. 29.
13 Cf. Paula Morão, “Prefácio”, in Irene Lisboa Obras de Irene Lisboa, Lisboa: Editorial Presença,
1991.
14 Paula Morão, “Irene Lisboa e a Crı́tica: Notas para um Roteiro”, Colóquio/Letras, n.o 131,
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, janeiro de 1994, p. 28-29 (25-34).
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algumas datações genéricas, mas ao mesmo tempo eivada de um pendor introspetivo. Solidão, editado pela primeira vez na Seara Nova, em 1939, assinada
também por João Falco, foi muito bem acolhida pelos crı́ticos, mas sem sucesso
junto ao público, mais uma vez. Num tempo em que florescia o neorrealismo, as
preocupações intimistas de Irene, explanadas em notas de aparência dispersiva
e individual, nada tinham que ver com a expectativa literária do público. A obra
conheceu algum sucesso com a sua edição de 1966, noutro contexto literário e
cultural. Houve outra reedição em 1973, pela editora Cı́rculo de Leitores.
O subtı́tulo do livro, “Notas do punho de uma mulher” já indicia o hibridismo
da obra, composta por “notas”. A brevidade e o registo do imediato fazem parte
de um conjunto de fragmentos sem datação. O caráter das notas oscila entre
o retrato e a crónica, unindo-se as notas num coro de emoções, numa tristeza
que é intimamente analisada por Irene.footnote Paula Morão, “Prefácio”, in Irene
Lisboa,Obras de Irene Lisboa – Solidão, vol. II, Lisboa: Editorial Presença, 1992,
p. 9-10 (7-12). A narradora de Solidão afirma, sobre o seu género literário de
escrita: “A minha análise é repentista e a minha composição muito fracionária;
inadaptáveis, portanto, à serena estrutura da novela.”15 . A obra inicia com o mote
da tristeza:
É triste o gozo que uma mulher pode ter de se chorar, de dizer sem rebeldia:
Minha casa fria, minha casa fria. . .
Meu mundo inóspito. . .
Nisto ou naquilo pus uma esperança, mas tudo é vão!
A alma é um pássaro, está sempre a querer cantar, mas tudo a atordoa.16
Esta é uma tristeza na qual se vislumbra uma insatisfação permanente, a qual
subjaz à condição humana e vivencial de cada um, num mundo que se compraz
em solidão e desespero:
Serei uma insatisfeita. Sim, a insatisfação é em mim uma espécie de espinho
permanente. Acho que vivi sempre oprimida, que não tenho o que a maioria
dos outros têm, que não sou como eles! E impessoalmente invejo-os. . . Sem
lhes dar número em nome a eles me comparo, obstinadamente. Serão manias
minhas, mas manias de pobre. Manias de quem pressente que há mais e
melhor na vida, de quem sente em si presas e inúteis as inumeráveis forças
humanas, os mil desejos da alma e do corpo!17
O mundo, este parco mundo em que movo, é a minha verdadeira prisão, mas
escancarada e vazia. . . Sinto que vivo nele incomunicável e limitada, como os
15 Irene Lisboa, Obras de Irene Lisboa – Solidão, vol. II, organização e prefácio de Paula Morão,
Lisboa: Editorial Presença, 1992, p. 23.
16 Ibidem, p. 15.
17 Ibidem, p. 21.
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presos, apertada em mim mesma! Nada nunca me excita, nada se me oferece
ou me requer. . . É bem exı́guo todo o meu além sentimental e espiritual. E
só me parece que constantemente mı́ngua.18
Solidão é uma obra que prova a sua atemporalidade, graças ao despojamento, marcado por uma estratégia discursiva em que o sujeito de enunciação
se assume como instância de escrita, ao mesmo tempo que é capaz de se desdobrar no seu próprio receptor. O texto insere-se numa tradição literária que
remonta a Santo Agostinho, Montaigne, Pascal e Rousseau e na qual o drama
do sujeito existencial que encara o processo escritural adquire uma dimensão
verdadeiramente ontológica, a valorização do real como totalidade dinâmica de
que o sujeito existencial e escritural é parte integrante19 .
Em Um Dia e Outro Dia – Diário de Uma Mulher, as anotações estruturam-se pela sequência de dias que se justapõem, começando por 40 poemas titulados
como “dias” (“um dia”, a que se sucede a série de “outro dia”), e vêm depois, em
secções assim chamadas, “Dias soltos”, “Mais dias soltos” e “Últimas, rápidas
notas”, sendo todos os textos escritos como poemas não rimados, de verso em
geral curto. As notas são de um diário que se sabe ser de 1935, mas sem o
registo de mês em cada um deles. Tı́tulos, subtı́tulos e epı́grafes representam um
primeiro lugar de estabelecimento de sentido (ou de desorientação de sentido).
Os poemas oferecem uma componente narrativa, ainda que esta seja fragmentada
ou fraccionada, respondendo ao carácter episódico e cénico com que o mundo vai
decorrendo perante o sujeito observador. Este é claramente um sujeito à deriva
em relação com a deriva de um mundo20 .
Em Outono Havias de Vir, o verso, embora mais alongado, continua a dispensar a rima, e os poemas têm a fluidez do ritmo digressivo, que se encontrava
já no volume anterior21 .
Nas crónicas, Irene Lisboa privilegia o mundo dos outros sem nunca perder
de vista o carácter de exercı́cio espiritual, na aparência repetitiva e monótona
desse tipo de escrita. No que diz respeito ao género cronı́stico,
o sujeito aprende sobre si mesmo a partir da observação do mundo, alternando movimentos que o dobram sobre si com outros que, no exterior, lhe
fornecem materiais de contraste. [. . . ] As “vidas que me cercam”, deste modo,
18
Ibidem, p. 26.
Maria João Reynaud, Sentido Literal. Ensaios de Literatura Portuguesa, Porto: Campo das
Letras, 2004, p. 233-235.
20 Helena Carvalhão Buescu, A Lua, a Literatura e o Mundo, Lisboa: Cosmos, 1995, p. 71.
21 Paula Morão, “Paula Morão e Violante F. Magalhães escrevem sobre a obra de Irene Lisboa”,
op. cit., p. 5.
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têm um efeito de espelho amplificador da vida da narradora, assim posta na
posição axial de quem faz parte de um tempo e de uma cidade22 .
Nas curtas formas de narrativa como Esta Cidade!, O pouco e o muito –
Crónica urbana, Tı́tulo qualquer serve para novelas e noveletas, Crónicas da
Serra, Irene nunca perde de vista o real em que se insere, interrogando-se
constantemente sobre o que é, afinal, na arte e na literatura, o “natural”, a
“verdade”, e a “realidade”, como se constata nos volumes de crónicas, de temática
urbana ou rural. O seu olhar crı́tico é o de alguém que reporta uma realidade,
numa observação disciplinada. A narradora de Esta Cidade! relata as maravilhas
do mundo da gente humilde, que conhece bem e que descreve sem juı́zo de valor23 .
As classificações de género literário tornam-se insuficientes, quando aplicadas aos seus diversos textos – crónica, narrativa, poesia – para lhes atribuir um
sentido. Muitos dos textos escritos em forma versificada poderiam apresentar-se
como crónicas. Nos poemas publicados na Seara, em Outono Havias de Vir ou
em Um Dia e Outro Dia, a tendência é para o alongamento do verso, caminhando
para o verso livre, ou seja, para o esbater da fronteira entre verso e prosa; inversamente, quando as crónicas passam a volume, em Solidão, Esta Cidade!,
Apontamentos, verifica-se um trabalho de condensação, de redução dos textos
à sua condição mais simples24 . O texto Solidão, disperso em notas, recusa a
unidade de uma narrativa canónica, optando pelo disperso, pela desmontagem
do aparente25 .
Irene Lisboa produziu uma obra composta de fragmentos, de retalhos e de
instantes psicologicamente vividos. O diarismo na autora, cuja poesia se aproxima da prosa pela atenção minuciosamente prestada à realidade descrita, está
intercalado com formas inacabadas, repetições, alusões. A obsessão por captar
com a escrita a experiência absoluta do instantâneo, do transitório, do contingente revela também o desejo de resistir à dissolução que parece pairar sobre
a sua vida. Para Irene Lisboa, mais do que um texto em que se fala de si e se
proporciona o acesso à intimidade e a uma espécie de ascese, está em causa um
trabalho espiritual de busca de um sentido e de um destino no mais solitário e
imóvel gesto, o de escrever. Conforme Maria João Reynaud, a modelização de
um universo de experiências por via da linguagem acarreta sempre um certo grau
22 Cf. Paula Morão, “Prefácio”, in Irene Lisboa, Obras Completas de Irene Lisboa. Esta Cidade!,
vol. V, Lisboa: Editorial Presença, 1995, p. 10-11.
23 Paula Morão, “Paula Morão e Violante F. Magalhães escrevem sobre a obra de Irene Lisboa”,
op. cit., p. 7.
24 Paula Morão, “Prefácio”, in Irene Lisboa, Folhas Soltas da Seara Nova (1929-1955), Lisboa:
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1983, p. 33; 36 (11-44).
25 Paula Morão, “Prefácio”, in Irene Lisboa, Obras de Irene Lisboa – Solidão, op. cit., p. 12.
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de ficcionalização, mesmo quando se trata notoriamente de um texto subjectivo
– algo que se percebe também no recurso à pseudonı́mia26 .
A escrita é, na autora, uma forma de aceitação da vida no seu inexorável curso
para a morte, mostrando a afirmação do pensamento como força e instrumento na
criação de um elo de comunicação. O sujeito (instância de escrita) desdobra-se
em instância de escuta e a linguagem é, desse modo, o traço de união entre o
eu, o tu e o mundo27 .
A autora insere-se num contexto literário de poetas como José Régio, Miguel
Torga ou Casais Monteiro, que nessa época praticam uma poesia interessada
nos meandros da psicologia. No dealbar dos anos 40, grupos como os da revista
Seara Nova ou os que escrevem para o Sol Nascente e O Diabo propõem aos
leitores uma literatura mais diretamente empenhada com o real e a crı́tica social,
preparando o surgimento formal do neorrealismo português. O panorama da
época apresenta uma distinção clara de géneros e subgéneros: na prosa pratica-se o romance, a novela ou o conto, e a poesia deve conter rima e obedecer
a outros processos que canonicamente definem a lı́ricafootnote Paula Morão,
“Paula Morão e Violante F. Magalhães escrevem sobre a obra de Irene Lisboa”,
op. cit., p. 4..
É este enquadramento temático normalmente vigente entre os presencistas
que na autora aparece ausente ou atenuado, sobretudo na escolha da forma diarista, de uma narrativa de si mesmo, que implica uma subjetivação do discurso
voltado para o quotidiano da própria vida. Irene mostrou uma ocasional preocupação com a reflexão sobre o fazer da sua própria poesia, com a consciência
de alguém que sabia publicar uma obra invulgar para a maioria dos leitores. Em
toda a obra de Irene, nota-se um sujeito em devir, um eu observador, prescrutador,
que apura o mundo circundante e lhe confere um sentido28 .
26
27
28
Maria João Reynaud, op. cit., p. 236-240.
Ibidem, p. 241-242.
Ibidem, p. 5-6.
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