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As Vibrações da Alma: escrita e trajetória literária de Irene Lisboa

2017, A Dinâmica dos Olhares: Cem Anos de Literatura e Cultura em Portugal

As Vibrações da Alma: escrita e trajetória literária de Irene Lisboa Fernanda Santos1 Gostava, em oposição com a braveza do jogo da Pedrada, do tal ataque às coisas certas e negadas. . . Gostava de escrever com um fio de água. Um fio que nada traçasse. Fino e sem cor, medroso.2 1. Introdução 1.1. Percursos de Irene Lisboa Irene do Céu Vieira Lisboa nasceu em 1892, no concelho de Arruda dos Vinhos. Foi escritora, professora e pedagoga portuguesa. Formou-se pela Escola Normal Primária de Lisboa, continuando depois os seus estudos na Suı́ça, França e Bélgica, e especializando-se em Ciências da Educação. Durante a estadia em Genebra, que conseguiu através de uma bolsa do Instituto de Alta Cultura, teve a oportunidade de privar com grandes figuras tais como Jean Piaget e Édouard Claparède, com quem estudou no Instituto Jean-Jacques Rousseau. A sua vida profissional começou como professora de educação infantil. Irene Lisboa exerceu a profissão na capital até ao momento em que, juntamente com a sua colega e amiga Ilda Moreira, aceitou o desafio de reger classes de ensino infantil, criadas nas escolas oficiais do grau de que era titular. O alto mérito do seu trabalho não tardou a ser reconhecido. As suas classes infantis foram frequentemente visitadas por estudantes e professores da Escola Normal, passando a servir como centros de estágio, dos quais Irene Lisboa foi orientadora. 1 Universidade Federal do Amapá, Campus Santana. Irene Lisboa, Outono Havias de Vir, Obras de Irene Lisboa, vol. I, poesia I, Lisboa: Editorial Presença, 1991, p. 300. 2 162 Fernanda Santos Ela própria, de resto, adquiriria o tı́tulo de educadora mediante a apresentação dos exames finais do curso. A autora e pedagoga visitou instituições educativas na Bélgica, ligadas à orientação de Decroly3 , e jardins de infância em Paris. As teorias educativa sobre práticas pedagógicas diretamente observadas foram objeto de uma leitura crı́tica, cuja base foi a sua experiência docente. Em 1932 assumiu o cargo de Inspetora Orientadora do Ensino Primário e Infantil, no âmbito da qual fez parte de um sector expressamente consagrado ao apoio pedagógico aos professores em exercı́cio. Afastada da inspeção pouco tempo depois de nela ter ingressado, Irene Lisboa foi colocada na secretaria do Instituto de Alta Cultura até ser convidada a aceitar um lugar na Escola do Magistério de Braga ou a pedir a aposentação. Optou por este caminho, a partir de 1940, renunciando então a qualquer intervenção de nı́vel oficial. Esta recusa valeu como forma de exı́lio para uma pedagogia incómoda pelas suas ideias progressistas. Em homenagem a Irene Lisboa, a Federação Nacional dos Professores (FENPROF) fundou, em 12 de Janeiro de 1988, o Instituto Irene Lisboa. 1.2. Obra literária Irene Lisboa dedicou-se à produção literária e às publicações pedagógicas. Ao longo da sua vasta obra, escreveu literatura para crianças e jovens, textos de pedagogia, crónicas e novelas centradas na descrição de quadros e personagens da vida comum. Com as variações que os diferentes géneros implicam, o seu estilo foi marcado pela oralidade. Tendo vivido e escrito na época salazarista, o controlo censório da ditadura não lhe permitiu a transmissão de todas as ideias que defendia. Apesar de ser uma autora muitas vezes esquecida, autores como José Rodrigues Miguéis, José Gomes Ferreira e João Gaspar Simões elogiaram o seu trabalho. Os seus livros nunca foram sucesso de venda, bem como a obra pedagógica, quase de todo ignorada ainda hoje, dispersa pelas páginas esquecidas de jornais e revistas, ou reduzida a opúsculos com pequenas tiragens iniciais, não falando já de escritos inéditos do seu espólio4 . 3 Jean Ovide Decroly (1871-1932) foi um médico, psicólogo, professor e pedagogo belga, preconizador de um modelo de ensino não autoritário e não religioso. Como médico, estudou neurologia na Bélgica e na Alemanha. 4 Entre os diversos estudos sobre a autora contam-se os estudos de José Eduardo Moreirinhas Pinheiro: Do Ensino Normal na cidade de Lisboa (1860-1960), pref. Almeida Costa, Lisboa: Porto Editora, 1990; Irene Lisboa e a Educação Infantil, Lisboa: Escola Superior de Educação, 1992; Elementos para o estudo da Escola Normal de Lisboa, Lisboa: Escola Superior de Educação, 1995. www.clepul.eu As Vibrações da Alma: escrita e trajetória literária de Irene Lisboa 163 A produção literária de Irene Lisboa repartiu-se pela poesia, pelo conto, pela crónica e pela novela. Apesar da variedade das formas, toda a sua obra se caracterizou por uma unidade, girando em torno de um núcleo intimista e autobiográfico. O seu primeiro livro foi escrito em 1926, intitulado 13 Contarelos e destinado às crianças. Esta obra constitui-se por narrativas curtas, com uma prática pedagógica subjacente, e por isso mesmo com um estilo de oralidade e de discurso direto, usando a frase curta, mas bem estruturada, apoiada numa pontuação cheia de modulações, como interrogações, suspensões, de modo a captar a atenção do ouvinte ou do leitor infantil. As obras revelam claramente uma concepção do papel da leitura na aprendizagem, bem como o estı́mulo da imaginação e da criatividade da criança, mostrando assim as ideias e as práticas desenvolvidas por Irene Lisboa e Ilda Moreira. O papel desempenhado pelas duas professoras no ensino infantil terá sido pioneiro5 . Irene continuou a colaboração com jornais e revistas da época, dos quais se destacaram Seara Nova, Presença e O Diabo. Em 1936, sob o pseudónimo de João Falco, publicou o segundo livro, desta vez de poesia, intitulado Um Dia e Outro Dia. . . – Diário de uma Mulher. No ano seguinte, sob o mesmo pseudónimo, surgiu Outono Havias de Vir, outra obra de poesia. Ainda sob o nome de João Falco, apareceu, em 1939, o livro titulado Solidão – Notas do punho de uma mulher que, pela inserção das datações genéricas e pelo carácter introspectivo, se aproximava do género diarı́stico. As mesmas temáticas intimistas, o estilo e a caracterı́stica fragmentária apareceram nas obras Apontamentos e em Solidão – II, publicadas, respectivamente, em 1943 e em 1966. Estas foram obras de cunho autobiográfico, nas quais o narrador teve voz feminina. O tema de solidão e da queixa pela ausência do amor foram constantes, o que não cerceou um vasto olhar da narradora pelo mundo circundante. As novelas Começa uma vida (1940) e Voltar atrás para quê? (1956) também se situaram na vertente autobiográfica da escritora, relatando a vida de uma rapariga desde a sua infância até aos dezoito anos, contando os acontecimentos que a tornaram solitária, agressiva e que lhe despertaram a curiosidade e a atenção para o mundo. Outra vertente da prosa de ficção de Irene Lisboa centrou-se nas curtas formas de narrativa, que a própria escritora denominou como “crónica” ou “reportagem”. Esta Cidade!, O pouco e o muito – Crónica urbana, Tı́tulo qualquer serve para novelas e noveletas, Crónicas da Serra foram algumas destas curtas obras que retrataram tanto o mundo urbano lisboeta, como o mundo rural e o serrano. A autora tomou como motivo central os pequenos dramas quotidianos do povo, sobretudo os dramas das mulheres. 5 Paula Morão, “Paula Morão e Violante F. Magalhães escrevem sobre a obra de Irene Lisboa”, in A Escrita de Irene Lisboa, Arruda dos Vinhos: Edição do Municı́pio, 2007, p. 3-4 (3-10). www.lusosofia.net 164 Fernanda Santos 2. A escrita confessional: perspectivas de análise da obra de Irene Lisboa A sua preferência aberta pela gente do povo e pelo seu quotidiano são traços que valeram à autora uma injusta indiferença por parte das editoras e da crı́tica mais conservadora. José Gomes Ferreira apontou como razão fulcral deste desprezo um modismo de época, de uma literatura feminina “que se reduzia a explorar os convencionais sentimentos da humildade agradecida por ser cortejada por fantasmas de machos perfumados de valsas a três tempos e vénias de galanteios, etc. (. . . )”6 . Irene Lisboa adentrou reflexivamente numa realidade distinta, fora deste universo, bebendo das ideias republicanas da época, e procurando mostrar a sua revolta contra as condições em que viviam as mulheres. Outro aspecto que terá dificultado a divulgação da obra da autora foi o seu desconcerto formal, e a fuga a modelos, a versos fabricados segundo regras. Os poemas de Irene Lisboa, isentos de rimas e de ritmo regular, são muitas das vezes intercalados por frases mais longas, nas quais não se mantém a aparência gráfica dos versos7 . A publicação de Um Dia e Outro Dia (1936), sob o pseudónimo de João Falco, irrompe como uma poesia de rigor novo, causando estranhamento. A par de elogios, Irene recebeu também crı́ticas. A escolha de um pseudónimo masculino deixa ainda entrever a sua escolha de uma máscara masculina por pudor social, uma vez que as mulheres não podiam falar abertamente sobre os seus problemas pessoais. É ainda possı́vel apontar a repressão social que recaı́a sobre a mulher escritora. Irene temia certamente ser considerada subversiva numa época ditatorial8 e numa sociedade que fazia a apologia do patriarcalismo. A autora foi considerada subversiva quando se descobriu que João Falco era apenas um pseudónimo masculino para uma autora mulher9 . Irene Lisboa focou os temas concretos, quotidianos, numa escrita confessional que valorizou as pequenas coisas da gente do povo e implicitamente criticou 6 José Gomes Ferreira, “Breve Introdução à Poesia de Irene Lisboa”, in Irene Lisboa, Obras de Irene Lisboa, Um Dia e Outro Dia. . . Outono Havias de Vir, vol. I, Poesia I, Lisboa: Editorial Presença, 1991, p. 18 (17-30). 7 Irene Lisboa, Poesia – I, Obras de Irene Lisboa, vol. I, prefácio e notas de Paula Morão, Lisboa: Editorial Presença, 1991, p. 283. 8 Os anos 30 foram particularmente repressivos em Portugal, tendo o Estado Novo acentuado o seu caráter fascizante. Assistiu-se à criação da Mocidade Portuguesa e da Legião Portuguesa. A polı́cia polı́tica foi, na década de 30, objeto de uma reorganização social, obtendo a designação de Polı́cia de Vigilância e Defesa do Estado. A Censura, instituı́da na sequência do 28 de maio de 1926, alargou e intensificou a sua ação. Cf. Fernando J. B. Martinho, “1936 – Um Ano a Três Vozes: Régio, Torga e Irene Lisboa”, Colóquio/Letras, n.o 131, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, janeiro de 1994, p. 42 (39-47). 9 José Gomes Ferreira, op. cit., p. 24-25. www.clepul.eu As Vibrações da Alma: escrita e trajetória literária de Irene Lisboa 165 valores burgueses10 . Nas palavras de Jacinto do Prado Coelho: Ainda a propósito dos seus livros, diz-se que tudo o que produziu reage a uma desolada situação de mulher alta e livre num mundo atrasado meio pequeno-burguês, conseguindo vencer a solidão, graças a uma convivência aberta à gente simples da rua, da escada de serviço, com quem se integra no seu próprio linguajar através de alguns dos seus livros11 . José Gomes Ferreira dividiu a obra da autora em três fases: a fase diarı́stica, da qual fazem parte as obras Um Dia e Outro Dia, Outono Havias de Vir, Solidão, Apontamentos. A segunda fase das crónicas-relatórios (caso de Esta Cidade), e a terceira fase novelı́stica (Voltar Atrás para Quê?), em que abandonou a fase das crónicas-relatórios12 . A escrita de Irene funcionou como instrumento de autoconhecimento, perscrutrando as causas de um mal-estar interior, registando o momentâneo, aproximando-se também da novelı́stica pela transfiguração da “experiência de observação do mundo e dos outros” (retratos, cenas) em “matéria de escrita”13 . Entre a obra poética e publicação desta obra inscreve-se o volume narrativo Começa uma Vida, que, continuado em Voltar Atrás para Quê?, deu sequência, sob a forma de novela autobiográfica, a um discurso do eu que se auto-analisa com lucidez e melancolia, e ao intimismo auto-reflexivo e fragmentário daqueles dois outros registos, tornando evidente a ruptura com os cânones da lı́rica tradicional. Segundo Paula Morão, o registo de flagrantes, o imediatismo, as cenas realistas, foram construções próprias de uma literatura intimista, com aproximações a Katherine Mansfield, Virginia Wolf ou Colette e a vários autores homens, como António Nobre, Camilo Pessanha, Cesário Verde, Fernando Pessoa, Gomes Ferreira ou Kierkegaard e Tchékov – referentes literários que explicam a opção por uma escrita voltada para a representação da vida interior e do ı́ntimo e para a tentativa de explicação da desordem dos sentimentos, da nostalgia do passado e da infância perdida14 . A escrita confessional da autora assentou na crı́tica aos valores burgueses. A consciência de si mesma, no confronto com um mundo inóspito e patriarcal, transitaram da poesia para o volume Solidão – Notas do Punho de uma Mulher, uma obra hı́brida, que se aproximou do género diarı́stico pela inclusão de 10 José Correia do Souto, Dicionário da Literatura Portuguesa, vol. III, Porto: Lello & Irmão, p. 133-134. 11 Jacinto do Prado Coelho, Dicionário de Literatura, sob a direcção de Jacinto do Prado Coelho, 3.a ed., vol. II, Porto: Figueirinhas, 1976, p. 558-559. 12 José Gomes Ferreira, op. cit., p. 29. 13 Cf. Paula Morão, “Prefácio”, in Irene Lisboa Obras de Irene Lisboa, Lisboa: Editorial Presença, 1991. 14 Paula Morão, “Irene Lisboa e a Crı́tica: Notas para um Roteiro”, Colóquio/Letras, n.o 131, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, janeiro de 1994, p. 28-29 (25-34). www.lusosofia.net 166 Fernanda Santos algumas datações genéricas, mas ao mesmo tempo eivada de um pendor introspetivo. Solidão, editado pela primeira vez na Seara Nova, em 1939, assinada também por João Falco, foi muito bem acolhida pelos crı́ticos, mas sem sucesso junto ao público, mais uma vez. Num tempo em que florescia o neorrealismo, as preocupações intimistas de Irene, explanadas em notas de aparência dispersiva e individual, nada tinham que ver com a expectativa literária do público. A obra conheceu algum sucesso com a sua edição de 1966, noutro contexto literário e cultural. Houve outra reedição em 1973, pela editora Cı́rculo de Leitores. O subtı́tulo do livro, “Notas do punho de uma mulher” já indicia o hibridismo da obra, composta por “notas”. A brevidade e o registo do imediato fazem parte de um conjunto de fragmentos sem datação. O caráter das notas oscila entre o retrato e a crónica, unindo-se as notas num coro de emoções, numa tristeza que é intimamente analisada por Irene.footnote Paula Morão, “Prefácio”, in Irene Lisboa,Obras de Irene Lisboa – Solidão, vol. II, Lisboa: Editorial Presença, 1992, p. 9-10 (7-12). A narradora de Solidão afirma, sobre o seu género literário de escrita: “A minha análise é repentista e a minha composição muito fracionária; inadaptáveis, portanto, à serena estrutura da novela.”15 . A obra inicia com o mote da tristeza: É triste o gozo que uma mulher pode ter de se chorar, de dizer sem rebeldia: Minha casa fria, minha casa fria. . . Meu mundo inóspito. . . Nisto ou naquilo pus uma esperança, mas tudo é vão! A alma é um pássaro, está sempre a querer cantar, mas tudo a atordoa.16 Esta é uma tristeza na qual se vislumbra uma insatisfação permanente, a qual subjaz à condição humana e vivencial de cada um, num mundo que se compraz em solidão e desespero: Serei uma insatisfeita. Sim, a insatisfação é em mim uma espécie de espinho permanente. Acho que vivi sempre oprimida, que não tenho o que a maioria dos outros têm, que não sou como eles! E impessoalmente invejo-os. . . Sem lhes dar número em nome a eles me comparo, obstinadamente. Serão manias minhas, mas manias de pobre. Manias de quem pressente que há mais e melhor na vida, de quem sente em si presas e inúteis as inumeráveis forças humanas, os mil desejos da alma e do corpo!17 O mundo, este parco mundo em que movo, é a minha verdadeira prisão, mas escancarada e vazia. . . Sinto que vivo nele incomunicável e limitada, como os 15 Irene Lisboa, Obras de Irene Lisboa – Solidão, vol. II, organização e prefácio de Paula Morão, Lisboa: Editorial Presença, 1992, p. 23. 16 Ibidem, p. 15. 17 Ibidem, p. 21. www.clepul.eu As Vibrações da Alma: escrita e trajetória literária de Irene Lisboa 167 presos, apertada em mim mesma! Nada nunca me excita, nada se me oferece ou me requer. . . É bem exı́guo todo o meu além sentimental e espiritual. E só me parece que constantemente mı́ngua.18 Solidão é uma obra que prova a sua atemporalidade, graças ao despojamento, marcado por uma estratégia discursiva em que o sujeito de enunciação se assume como instância de escrita, ao mesmo tempo que é capaz de se desdobrar no seu próprio receptor. O texto insere-se numa tradição literária que remonta a Santo Agostinho, Montaigne, Pascal e Rousseau e na qual o drama do sujeito existencial que encara o processo escritural adquire uma dimensão verdadeiramente ontológica, a valorização do real como totalidade dinâmica de que o sujeito existencial e escritural é parte integrante19 . Em Um Dia e Outro Dia – Diário de Uma Mulher, as anotações estruturam-se pela sequência de dias que se justapõem, começando por 40 poemas titulados como “dias” (“um dia”, a que se sucede a série de “outro dia”), e vêm depois, em secções assim chamadas, “Dias soltos”, “Mais dias soltos” e “Últimas, rápidas notas”, sendo todos os textos escritos como poemas não rimados, de verso em geral curto. As notas são de um diário que se sabe ser de 1935, mas sem o registo de mês em cada um deles. Tı́tulos, subtı́tulos e epı́grafes representam um primeiro lugar de estabelecimento de sentido (ou de desorientação de sentido). Os poemas oferecem uma componente narrativa, ainda que esta seja fragmentada ou fraccionada, respondendo ao carácter episódico e cénico com que o mundo vai decorrendo perante o sujeito observador. Este é claramente um sujeito à deriva em relação com a deriva de um mundo20 . Em Outono Havias de Vir, o verso, embora mais alongado, continua a dispensar a rima, e os poemas têm a fluidez do ritmo digressivo, que se encontrava já no volume anterior21 . Nas crónicas, Irene Lisboa privilegia o mundo dos outros sem nunca perder de vista o carácter de exercı́cio espiritual, na aparência repetitiva e monótona desse tipo de escrita. No que diz respeito ao género cronı́stico, o sujeito aprende sobre si mesmo a partir da observação do mundo, alternando movimentos que o dobram sobre si com outros que, no exterior, lhe fornecem materiais de contraste. [. . . ] As “vidas que me cercam”, deste modo, 18 Ibidem, p. 26. Maria João Reynaud, Sentido Literal. Ensaios de Literatura Portuguesa, Porto: Campo das Letras, 2004, p. 233-235. 20 Helena Carvalhão Buescu, A Lua, a Literatura e o Mundo, Lisboa: Cosmos, 1995, p. 71. 21 Paula Morão, “Paula Morão e Violante F. Magalhães escrevem sobre a obra de Irene Lisboa”, op. cit., p. 5. 19 www.lusosofia.net 168 Fernanda Santos têm um efeito de espelho amplificador da vida da narradora, assim posta na posição axial de quem faz parte de um tempo e de uma cidade22 . Nas curtas formas de narrativa como Esta Cidade!, O pouco e o muito – Crónica urbana, Tı́tulo qualquer serve para novelas e noveletas, Crónicas da Serra, Irene nunca perde de vista o real em que se insere, interrogando-se constantemente sobre o que é, afinal, na arte e na literatura, o “natural”, a “verdade”, e a “realidade”, como se constata nos volumes de crónicas, de temática urbana ou rural. O seu olhar crı́tico é o de alguém que reporta uma realidade, numa observação disciplinada. A narradora de Esta Cidade! relata as maravilhas do mundo da gente humilde, que conhece bem e que descreve sem juı́zo de valor23 . As classificações de género literário tornam-se insuficientes, quando aplicadas aos seus diversos textos – crónica, narrativa, poesia – para lhes atribuir um sentido. Muitos dos textos escritos em forma versificada poderiam apresentar-se como crónicas. Nos poemas publicados na Seara, em Outono Havias de Vir ou em Um Dia e Outro Dia, a tendência é para o alongamento do verso, caminhando para o verso livre, ou seja, para o esbater da fronteira entre verso e prosa; inversamente, quando as crónicas passam a volume, em Solidão, Esta Cidade!, Apontamentos, verifica-se um trabalho de condensação, de redução dos textos à sua condição mais simples24 . O texto Solidão, disperso em notas, recusa a unidade de uma narrativa canónica, optando pelo disperso, pela desmontagem do aparente25 . Irene Lisboa produziu uma obra composta de fragmentos, de retalhos e de instantes psicologicamente vividos. O diarismo na autora, cuja poesia se aproxima da prosa pela atenção minuciosamente prestada à realidade descrita, está intercalado com formas inacabadas, repetições, alusões. A obsessão por captar com a escrita a experiência absoluta do instantâneo, do transitório, do contingente revela também o desejo de resistir à dissolução que parece pairar sobre a sua vida. Para Irene Lisboa, mais do que um texto em que se fala de si e se proporciona o acesso à intimidade e a uma espécie de ascese, está em causa um trabalho espiritual de busca de um sentido e de um destino no mais solitário e imóvel gesto, o de escrever. Conforme Maria João Reynaud, a modelização de um universo de experiências por via da linguagem acarreta sempre um certo grau 22 Cf. Paula Morão, “Prefácio”, in Irene Lisboa, Obras Completas de Irene Lisboa. Esta Cidade!, vol. V, Lisboa: Editorial Presença, 1995, p. 10-11. 23 Paula Morão, “Paula Morão e Violante F. Magalhães escrevem sobre a obra de Irene Lisboa”, op. cit., p. 7. 24 Paula Morão, “Prefácio”, in Irene Lisboa, Folhas Soltas da Seara Nova (1929-1955), Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1983, p. 33; 36 (11-44). 25 Paula Morão, “Prefácio”, in Irene Lisboa, Obras de Irene Lisboa – Solidão, op. cit., p. 12. www.clepul.eu As Vibrações da Alma: escrita e trajetória literária de Irene Lisboa 169 de ficcionalização, mesmo quando se trata notoriamente de um texto subjectivo – algo que se percebe também no recurso à pseudonı́mia26 . A escrita é, na autora, uma forma de aceitação da vida no seu inexorável curso para a morte, mostrando a afirmação do pensamento como força e instrumento na criação de um elo de comunicação. O sujeito (instância de escrita) desdobra-se em instância de escuta e a linguagem é, desse modo, o traço de união entre o eu, o tu e o mundo27 . A autora insere-se num contexto literário de poetas como José Régio, Miguel Torga ou Casais Monteiro, que nessa época praticam uma poesia interessada nos meandros da psicologia. No dealbar dos anos 40, grupos como os da revista Seara Nova ou os que escrevem para o Sol Nascente e O Diabo propõem aos leitores uma literatura mais diretamente empenhada com o real e a crı́tica social, preparando o surgimento formal do neorrealismo português. O panorama da época apresenta uma distinção clara de géneros e subgéneros: na prosa pratica-se o romance, a novela ou o conto, e a poesia deve conter rima e obedecer a outros processos que canonicamente definem a lı́ricafootnote Paula Morão, “Paula Morão e Violante F. Magalhães escrevem sobre a obra de Irene Lisboa”, op. cit., p. 4.. É este enquadramento temático normalmente vigente entre os presencistas que na autora aparece ausente ou atenuado, sobretudo na escolha da forma diarista, de uma narrativa de si mesmo, que implica uma subjetivação do discurso voltado para o quotidiano da própria vida. Irene mostrou uma ocasional preocupação com a reflexão sobre o fazer da sua própria poesia, com a consciência de alguém que sabia publicar uma obra invulgar para a maioria dos leitores. Em toda a obra de Irene, nota-se um sujeito em devir, um eu observador, prescrutador, que apura o mundo circundante e lhe confere um sentido28 . 26 27 28 Maria João Reynaud, op. cit., p. 236-240. Ibidem, p. 241-242. Ibidem, p. 5-6. www.lusosofia.net