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POR UMA PEDAGÓGICA DO ABSURDO

Esta reflexão parte de uma perspectiva filosófica, brasileira e latinoamericana, especificamente de uma posição de ética de alteridade. Dizer isso é importante porque delimita o ponto de partida. Especificando portanto, que é uma possibilidade dentre infinitas possíveis, baseada em minhas experiências, em minha sensibilidade. Sem deixar contudo, de pretender o caráter filosófico. O objetivo aqui é simplesmente o de despertar um debate, uma reflexão e incentivar a pesquisa sobre a temática. Um convite.

POR UMA PEDAGÓGICA DO ABSURDO Hugo Allan Matos1 Esta reflexão parte de uma perspectiva filosófica, brasileira e latino­americana, especificamente de uma posição de ética de alteridade. Dizer isso é importante porque delimita o ponto de partida. Especificando portanto, que é uma possibilidade dentre infinitas possíveis, baseada em minhas experiências, em minha sensibilidade. Sem deixar contudo, de pretender o caráter filosófico. O objetivo aqui é simplesmente o de despertar um debate, uma reflexão e incentivar a pesquisa sobre a temática. Um convite. Há hoje, a necessidade de repensar categorias e conceitos que caíram no senso comum naturalizadas com significações muito específicas de autores e perspectivas específicas, como se universais fossem. Deixamos de pensar o que é a educação, o que é o mundo, o que é a existência e passamos a aceitar as explicações de senso comum como naturais e universais. Deixamos de pensar em nossa existência, se é que alguma cultura em algum momento de nossa história fez isso como elemento cultural hegemônico. E se não houve, talvez seja o momento de fazermos. Mas, não estou propondo aqui uma cultura de uma ​eterna angústia de inação, mas de um modo de vida que nos permita pensar com profundidade sobre a forma que vivemos, nossas relações, enfim, uma cultura em que não automatizemos as relações, para começar, tal como temos feito. Dizer isso, é o mesmo que dizer que precisamos resgatar a dimensão ética de nossa vivência, de forma existencial, reconhecendo­a como fundante em nossa experiência de ser humanos. Aqui, nesta breve reflexão, o que nos importa é a relação de construção de conhecimento. Ou seja, todas as relações nas quais aprendemos, nas quais construímos conhecimento. É a educação, a ​pedagógica2​. Cuidado. Aqui há um conceito de educação bastante amplo e não comum. Dizer que educação é o conjunto de todas as relações que envolvem construção de conhecimento, tem algumas implicações que precisamos sinalizar. 1 Filósofo e militante em movimentos populares. Docente nos cursos de Filosofia da FAPCOM e da UMESP. E­mail: hugo.allan@gmail.com 2 Escrevi mais formalmente sobre este conceito de pedagógica em: ​Introdução ao Pensamento de Dussel (monografia)​, ​Opressões na Pedagógica Brasileira e Possibilidade de Libertação (Dissertação)​ e ​Filosofia como Pedagógica Há a necessidade primeira de retomar que todas as relações, precisam ser ​éticas e portanto, ​dialógicas​. Qualquer relação pressupõe que todas as partes envolvidas sejam respeitadas em sua singularidade e tenham a possibilidade real de participação dialógica, de falar e de ser ouvida e considerada. E para que sejamos respeitados em nossa singularidade é essencial que sejamos reconhecidos e reconhecidas como ​álteros3​, ou seja, que cada um, cada uma de nós é uma pessoa infinitamente singular e que portanto, não há nenhuma compreensão possível, não há possibilidade sequer de colocar­se no lugar do outro, ou empatia. A própria empatia aqui, bem como qualquer tentativa de compreensão, as expectativas, o ciúme... constituem­se como ​relações de domínio​. O outro, a outra é um completo ​mistério​, ​absurdo​, qual não cabe em teorias, ontologias, minhas capacidades de compreensão. Todas estas tentativas de grande parte do pensamento ocidental estão baseadas no que Aristóteles sintetiza em três princípios: ​princípio de identidade, princípio de não contradição e o ​terceiro excluído​. Podemos explicitá­los assim: o ser é o que é e não pode ser o que não é. Graficamente costumou ser representado na filosofia pela igualdade: “A=A”. Se A é igual a A, ele não pode ser B. Os atenienses logo nos primeiros séculos de sua constituição cultural estabeleceram sua identidade em torno do ​logos​, e portanto, a racionalidade discursiva grega é o critério para definir o que é o ser humano civilizado. Aquele que não fala (e pensa) bem em grego é o ​bárbaro​, aquele que balbucia. A cultura Romana as Cristandades Medievais, e a Cultura Moderna estabeleceram seus seres. A nossa cultura, moderna, ocidental, por exemplo, já estabeleceu alguns seres como parâmetro civilizacional. Poderíamos aqui citar, por exemplo, o ego cogito cartesiano, o iluminismo, o cientificismo positivista e neopositivista, etc. Ethos, ou seja, modos de ser que serviram como parâmetro para estabelecer o que é o ser e julgar o não ser. Se o outro, a outra são um mistério inalcansável a minha lógica, como é possível estabelecer relações? Esta relação pode ser de domínio ou de respeito às alteridades. Para relações pedagógicas, de construção de conhecimento, que respeitam às alteridades, pensei em um tripé, que partiu de minha experiência até aqui enquanto educador. O primeiro pé, é a ​noção antropológica​. Aqui há um grande problema. Grande parte das pessoas não pensam sobre isso. Não buscam dar resposta à pergunta: quem é o ser humano? E ainda que não pensem sobre, carregam consigo inconscientemente uma concepção antropológica. E ela é fundamental, pois a depender da concepção que se tenha de 3 Como entende o filósofo Emmanuel Lévinas e não outro. ser humano, as relações álteras podem ficar impossibilitadas. Por exemplo, se creio que o ser humano é mau por natureza, minha relação com as pessoas será mediada por essa concepção de uma forma muito diferente que se creio que o ser humano é bom por natureza. Não é a intenção aqui refletir sobre as especificidades e complexidades de cada uma dessas concepções. Mas a que adotamos e já está escrita aqui é a concepção de alteridade, que acredita portanto que o ser humano não é nada por natureza, nos construímos mediante nossas relações com as pessoas e com a natureza, nunca nos formando completamente, sempre estando implicados nessas relações que vão nos constituindo. Somos limitados por um passado, no presente, em vista de projetos futuros. E vamos nos constituindo de forma infinitamente diferente de qualquer outro ser humano. O desenvolvimento do sistema límbico nos garante experiências singulares que envolvem os afetos, a sensibilidade, as memórias, o sistema valorativo e a racionalidade. Perceba aqui que a racionalidade (lógico matemática) é apenas uma faculdade de uma complexidade tão grande que é o processo de construção de conhecimento. O sistema valorativo por exemplo, tem relação direta com o sistema de proteção biológica (prazer/dor) e com as pulsões psicológicas (morte/vida). O que quero dizer é que cada ser humano é infinitamente diferente de outro, biologicamente falando. Não estamos aqui falando de uma construção racionalizada, apenas. Então, não é mais possível afirmarmos identidades fixas, conceitos e categorias ​ontológicas ​que visam a compreensão do ser humano4. Temos aqui grande parte da história da filosofia ocidental até o séc. XX superada. A pretensão de conhecimento ontológico do outro, é na verdade, a busca pelo domínio do outro. Grande parte das teorias pedagógicas, psicanalíticas, filosóficas… não fazem mais sentido frente a esta concepção antropológica. A única forma de relação ética com o outro é a partir do ​diálogo​, da linguagem. A ​linguagem é portanto, o segundo pé de nosso tripé. Toda relação de construção de conhecimento pressupõe uma concepção antropológica que a permita e uma linguagem comum. Aqui, imediatamente também há um grande problema nas relações pedagógicas, o problema geracional. Se formos tratar das relações pedagógicas na escola, habitualmente a relação de construção de conhecimento se dá de professores para alunos. Professor: o que professa a verdade, Aluno: o sem luz, que deve receber a verdade pela aula (ato de dar a luz). 4 Para bem compreender esta concepção antropológica, indico os livros de Emmanuel Lévinas, a iniciar por Ética e Infinito e os Livros de Enrique Dussel, a iniciar por Ética da Libertação na Idade da Globalização e da exclusão. Perceba que a linguagem habitual para tratar de educação, a iluminista5, traz uma concepção antropológica consigo, qual se não paramos para refletir criticamente, simplesmente assumimos e repetimos em nossa prática, de forma acrítica. A linguagem portanto, deve ser algo em comum. A educadora, o educador devem adequar sua linguagem ao educando, educanda. Essa adequação deve ter como parâmetro justamente a relação ética, de respeito às alteridades. Adequação necessária para diminuir a assimetria existente na relação educador­educanda, empoderando os educandos e educandas da fala. A constituição de um verdadeiro diálogo, onde o educador, a educadora, colocam­se na condição de aprendiz, como anseia Paulo Freire e em vez de transmitirem conteúdos, interpelam aos educandos e educandas a uma relação de respeito, na qual possam dizer­lhe um pouco de si a fim que o mesmo, na sensibilidade, criatividade e imaginação construa as intermediações necessárias de conteúdo para a relação de construção de conhecimento. O terceiro pé deste tripé fundante da relação de construção de conhecimento em perspectiva de alteridade, decorrente da concepção antropológica e da adequação de linguagem anteriormente expostas é a ​significação e sentido6 dessa relação e de seu conteúdo. As intenções do educador, da educadora, devem estar transparentes desde o início. E não pode ser outra que dar­se em serviço aos educandos e educandas. Esta é outra questão que parece óbvia, mas faz toda a diferença. Se a pessoa que está ali na condição de educador, educadora, o estiver sem querer estar, sem assumir para si a missão de prestar um serviço a seu país, àquelas crianças, jovens, adultos… A relação de respeito à alteridade ficará muito difícil de ocorrer, se ocorrer. Na atual conjuntura de nosso sistema de educação colocar­se na condição de educador/ educadora é assumir uma missão. Caso não seja assim ou se houver alguma ingenuidade por parte das pessoas e do próprio educador de que é possível dentro dessa escola que aí está, transformá­la, isso poderá gerar frustrações irreparáveis que o desanimarão dia a dia e que poderá levar à desistência da função. Isso geralmente ocorre por um simples motivo: a sociedade está corrompida. O sistema de ensino, como reflexo social, também7. Assim, estas dicas aplicam­se aos encontros de construção de conhecimento, às 5 Estou escrevendo outro texto como este, para tratar do iluminismo e mostrar sua face racista, que deixa muita coisa que hoje temos no senso comum explicada. O ato de esclarecer algo, como sinônimo de tornar compreensível e portanto, bom, é uma construção social, que põe o escuro, como sinônimo de confuso, de mau. 6 Já conhecido problema lógico, ao qual estou me dedidanco agora. 7 Trazemos presente as reflexões de Paulo Freire, Pierre Bordieu, Louis Althusser sobre o importante papel do sistema de educação na domesticação e alienação social. A partir dessas reflexões, percebemos que o papel da escola pública, na sociedade burguesa é dado: alienação e domesticação relações, apostando que o educador, a educadora que importa­se com seus educandos e educandas, estão inseridos em sindicatos, associações que visam a luta sistêmica pela melhora da educação em nosso país e pela mudança social, política e econômica. A questão da significação e sentido, portanto, traz consigo toda essa carga valorativa como pressuposto para a relação. Além disso, a escolha de conteúdo e de como trabalhar o conteúdo é muito importante para esta relação. O conteúdo deve ser de ​interesse do educando, da educanda. Estes devem valorizar, ​dar valor ao conteúdo base da relação de construção de conhecimento. Como sabemos, com a descoberta do sistema límbico, aprendemos apenas as coisas que valorizamos, as quais temos interesse. Aqui há um trunfo! A grande dificuldade para o educador, educadora talvez seja a de adequação de linguagem, mas também a de garantir sua ​liberdade de cátedra​. Nenhum documento, nenhuma autoridade, pode obrigar que os educadores ensinem isso ou aquilo. Não podem determinar o conteúdo. Podem sim, dar referenciais, atender a objetivos curriculares, mas nunca determinar o conteúdo. Este deve ser o educador que escolhe de acordo com o que pensa ser mais acertado para mediação das relações de construção de conhecimento. E me parece óbvio que todo o conteúdo deve ser comum, deve fazer sentido e ter significado aos educandos….Pois é isso que despertará o interesse. Absurdo é tudo aquilo que é destituído de sentido, de racionalidade. Essa palavra data do séc. XVII absurdus o que é desagradável ao ouvido. O absurdo, além de não entrar em nossa lógica racional, além de não ser compreensível racionalmente, nos incomoda, é desagradável à racionalidade, nos provoca, nos interpela portanto. O rosto do outro, se revela como absurdo. Pois não é fácil de dominá­lo e o conter em relações de domínio. É impossível compreendê­lo e eliminá­lo. Frente a este outro há três possibilidades de reação: 1. Tentar dominá­lo, mas sem sucesso, pois não é passível de domínio. Então, quando estamos em relações de domínio, tentamos nos convencer, nos enganar de que aquilo é legítimo, mas como pode ser legítimo o domínio do outro? A totalização em si mesmo está por trás desta opção. 2. Ignorar o rosto do outro, que nos interpela. A provocação do rosto do outro é aquilo que nos faz mais humanos, quando respondemos a ela a partir de uma relação de respeito à alteridade. Quanto mais nos relacionamos de forma áltera, mais queremos nos relacionar e das classes trabalhadoras. Sendo assim, sua transformação é impossível dentro deste modelo de sociedade, então, educar na escola passa a ser resistir e/ou criticar este modelo de sociedade, visando outros, onde inclusive a escola não seja corrente de transmissão de um capital cultural específico, ou de uma ideologia política específica, como o é no capitalismo. View publication stats mais nos realizamos como seres humanos. Desejo do invisível que se alimenta mas nunca se sacia, dirá Lévinas. Esta opção de ignorar à alteridade é também uma opção de tentar bastar­se em si mesmo, de totalizar­se, processo esse que nos desumaniza e potencializa em nós e na sociedade uma cultura da indiferença e do aumento da violência. 3. Respeitar a alteridade. Esta é a única opção ética, que responde à pró­vocação do rosto do outro, que nos interpela à vida, à responsabilização e serviço pelo outro e portanto, a uma cultura de solidariedade. Acredito, portanto, que é só pelo respeito às alteridades, nos jogando em relações de absurdo é que conseguiremos conquistar relações mais humanas. Nas relações de construção de conhecimento isso tem uma importância notável, sobretudo se ​sentirmos a vida dessa juventude, que grita e nos incomoda, por esperança, por respostas, por expectativas de uma vida melhor e não temos respostas. A relação de construção de conhecimento é o que qualifica o processo de construção de conhecimento, portanto. Não é o ensino ou a aprendizagem. É a relação. Para haver condições de possibilidade de construção de conhecimento, deve haver condições de possibilidade para que ocorra a relação de construção de conhecimento. Não tivemos, ainda no Brasil, um projeto político de educação que esteja centrado nisso. Pensar assim, é repensar todo o ​fenômeno educativo​, é repensar todo o sistema de ensino, mas também todas as nossas relações sociais de construção de conhecimento. Desde o modelo arquitetônico das instituições voltadas à construção do conhecimento, até a aceitação de que estas relações permeiam nossa vida cotidiana e as instituições de ensino, devem fazer parte dela, ou seja, as instituições de ensino devem ser instituições importantes e comuns à sua comunidade, fazer parte de seu cotidiano, ser espaço de encontro e de formação comunitária, para muito além da educação formal. Ouvir ao outro que nos interpela, é caminhar em sua palavra, sem entendê­la com a razão. Mesmo sabendo que nunca entenderemos completamente, caminhar com o outro é fazer­se humano, é fazer­se comunidade, é sair da racionalização individualista moderna e jogar­se no absurdo e construir o novo. Há que se ter sensibilidade, coragem e amor para isso.