Academia.eduAcademia.edu

A FORMAÇÃO DO POVO BRASILEIRO A FORMAÇÃO DO POVO BRASILEIRO

BASEADA NA OBRA DE DARCY RIBEIRO “O POVO BRASILEIRO” A FORMAÇÃO DO POVO BRASILEIRO BASEADA NA OBRA DE DARCY RIBEIRO “O POVO BRASILEIRO” A FORMAÇÃO DO POVO BRASILEIRO “A mais terrível de nossas heranças é esta de levar sempre conosco a cicatriz de torturador impressa na alma e pronta a explodir na brutalidade racista e classista. Ela é que incandesce, ainda hoje, em tanta autoridade brasileira predisposta a torturar, seviciar e machucar os pobres que lhes caem às mãos.” Darcy Ribeiro SUMÁRIO 7 A ALMA INQUIETA DO PROFESSOR 9 SIMPLESMENTE DARCY RIBEIRO 1º CICLO 15 MATRIZ TUPI 19 MATRIZ LUSITANA 22 MATRIZ AFRO 25 ENFRENTAMENTO DOS MUNDOS 2º CICLO 28 GESTAÇÃO ÉTNICA 32 AS GUERRAS DO BRASIL 35 O PROCESSO CIVILIZATÓRIO 38 FORMAÇÃO DA CLASSE DOMINANTE 3º CICLO 41 ASSIMILAÇÃO OU SEGREGAÇÃO 44 CLASSE, COR E PRECONCEITO 47 A URBANIZAÇÃO CAÓTICA 50 ORDEM VERSUS PROGRESSO 4º CICLO 53 BRASIL 56 BRASIL 59 BRASIL 62 BRASIL 65 BRASIL CRIOULO CABOCLO SERTANEJO CAIPIRA SULINO 69 BIBLIOGRAFIA 73 CONTEUDISTAS A ALMA INQUIETA DO PROFESSOR CARLOS LUPI Presidente nacional do PDT Falar do professor Darcy Ribeiro é falar da história e da cultura do povo brasileiro. Tive o privilégio de conviver com ele por alguns anos, desde a fundação do PDT. Mas não apenas como companheiro de partido e de ideais, mas principalmente como fonte de formação através de seus livros – sempre fui um grande fã de sua obra. Darcy foi um dos intelectuais brasileiros mais celebrados no mundo. Isto por conta da consistência da sua obra e pelo amor que ele sempre nutriu à pátria brasileira. Darcy era a síntese do sonho de transformar o Brasil em uma grande nação. Sua história se mistura com a história de libertação do povo brasileiro, sua dedicação ao índios — passou 10 anos da sua vida dentro das aldeias para estudar as raízes da nossa sociedade. E desta imersão surgiu a maior de todas as suas obras O povo brasileiro. Darcy se entregava a tudo que fazia; e, para nossa sorte, tínhamos um dos maiores intelectuais do mundo, o tempo todo, contribuindo para um país que abrigasse de forma justa todos os bra- A alma inquieta do professor 7 sileiros. Foi neste universo que ele concebeu o sistema de tempo integral nas escolas públicas — colocado em prática por Brizola nos dois governos no Rio de Janeiro. Darcy entendia que não se construía uma nação completa sem escola pública de qualidade. Dono de uma criatividade pouco vista, vivia com sua mente em permanente ebulição. Darcy era um sonhador, destes que não encontramos mais. A alma inquieta de um homem em busca da felicidade do seu povo. 8 A formação do povo brasileiro baseada na obra de Darcy Ribeiro “O povo brasileiro” SIMPLESMENTE DARCY RIBEIRO MANOEL DIAS Presidente da FLB-AP Antropólogo, escritor, professor, político, intelectual: estas são apenas algumas expressões que se somam à biografia do mestre Darcy Ribeiro, um dos maiores brasileiros de todos os tempos. Inquieto, Darcy Ribeiro deixou uma vasta obra. Um peregrino da educação que percorreu todas as alamedas possíveis para libertar nosso povo da educação desonesta que temos. Confrontado pelas carcomidas elites, que se utilizam da deseducação como forma de perpetuação do seu poder, Darcy desabafou: “Fracassei em tudo o que tentei na vida. Tentei alfabetizar as crianças brasileiras, não consegui. Tentei salvar os índios, não consegui. Tentei fazer uma universidade séria e fracassei. Tentei fazer o Brasil desenvolver-se autonomamente e fracassei. Mas os fracassos são minhas vitórias. Eu detestaria estar no lugar de quem me venceu.” Simplesmente Darcy Ribeiro 9 Entre suas obras destaca-se o magnífico livro O povo brasileiro. Ninguém leu, interpretou, decifrou e compreendeu mais a alma de nossa construção como Darcy Ribeiro. Darcy rompe, indubitavelmente, com o mito da integração racial pacífica. Já na iniciação, constata-se o processo violento, deliberado de eliminação de toda identidade étnica, resultando em nosso conceito de formação nacional num processo de opressão e repressão sob a ojeriza, o terror, a aversão às elites lusitanas, luso-brasileiras, e brasileiras que originaram-se e consolidaram-se pela força impositiva de dominação sobre os mais fracos. O Brasil das oportunidades se desfaz no abismo, entre castas e guetos, entre privilegiados e marginalizados, numa miopia social de indiferenças e isolamento entre essas classes. Contemporaneamente verificamos essas digitais desiguais nos telejornais diários: a morte de um privilegiado traz sua historicidade de uma perspectiva do que poderia ainda realizar. Mas, quando o marginalizado segregado é abatido, ele não tem direito à historicidade e vira manchete como estatística. A transformação da miséria em crime é um dos atributos perversos de nossas elites. O novo mundo conjecturado por Darcy Ribeiro baseia-se nas matrizes raciais — portuguesa, negra e indígena — que são as gêneses do brasileiro, num conflito entre o novo e o velho. Novo, pois nasce da miscigenação de confluências uterinas desassociadas culturalmente de suas raízes. O caráter do púbere carrega a outra face da mesma moeda, um povo que é concomitantemente “novo” e “velho”. 10 A formação do povo brasileiro baseada na obra de Darcy Ribeiro “O povo brasileiro” Etnia genuinamente nacional, mas que localizada na formação do Brasil no processo de crescimento dos “impérios mercantis”, originando “brasilíndio”, “mamelucos” (europeus e índios), “curibocas” (negros com índios), “mulatos” (negros com brancos) — todos estes separados socialmente dos invasores, donos usufrutuários do escravagismo, consequentemente, classe dominante. A propagada cordialidade e passividade diverge com os descaminhos encontrados de resistência e extermínio: guerra entre portugueses e índios, guerra entre colonos e jesuítas, guerra entre lusitanos e caboclos, guerra entre negros fugidos e senhores de escravos, guerra entre pobres e fazendeiros, guerra entre privilegiados e bastardos. Empobrecido, vítima de um processo de desculturação, o Brasil é europeu camponês, africano tribal e indígena comunitário. Dentre nossas especificidades nos colocamos na antessala da modernidade, mas insistentemente impedidos de adentrar; na busca frenética de afirmação, somos uma nova civilização querendo nascer. O povo brasileiro é o enigma decifrado para compreendermos nossas mais profundas raízes, uma provocante e inquietante indagação: “Por que o Brasil não deu certo?”. Dizia Darcy: “O Brasil tem uma classe dominante ranzinza, azeda, medíocre, cobiçosa, que não deixa ir pra frente!” Talvez esta seja a grande resposta que o livro “O povo brasileiro” responde. Afinal, somente Darcy Ribeiro poderia responder. Viva o povo Brasileiro! Viva Darcy Ribeiro! Simplesmente Darcy Ribeiro 11 12 A formação do povo brasileiro baseada na obra de Darcy Ribeiro “O povo brasileiro” coleção RIBEIRO BASEADA NA OBRA DE DARCY RIBEIRO “O POVO BRASILEIRO” A FORMAÇÃO DO POVO BRASILEIRO Simplesmente Darcy Ribeiro 13 14 A formação do povo brasileiro baseada na obra de Darcy Ribeiro “O povo brasileiro” 1º CICLO MATRIZ TUPI Um dos grandes enigmas dos historiadores e antropólogos brasileiros é decifrar a nossa formação, nossas mais profundas raízes. Em um ato heroico, Darcy Ribeiro dedicou anos de sua vida em pesquisas e análises para produzir sua obra-prima “O povo brasileiro”, na qual descortina nossas identidades e nossas origens. De origem sincrética, de uma fusão desordenada de índios, portugueses e negros, nasce, na concepção antropológica de Darcy Ribeiro, um Novo Mundo: uma nação a ser construída, em um processo de mestiçagem jamais visto. Há cerca de 10 mil anos, oito milhões de índios habitavam as terras brasileiras em perfeita comunhão com a natureza. Não configuravam apenas uma nação, mas várias nações em uma só. 1º CICLO Matriz tupi 15 A trindade étnica edificada na formação do povo brasileiro encontra na matriz indígena sua primeira vertente; majoritariamente a ramificação tupi, que, a partir do noroeste da Amazônia, colonizou praticamente todo o Brasil, expulsando e escravizando povos indígenas rivais. Característica essencial para compreender o Brasil do século XV é verificar que cada tribo, com seu modo de vida e crença, com seus costumes comuns e sua língua própria, era rival das outras e lutavam entre si por conquistas territoriais. Um perfil comum entre as tribos era que já dominavam o território brasileiro antes da chegada dos portugueses; edificavam as malocas (casas) onde habitavam, em média, 600 índios em cada uma. As mulheres cuidavam do plantio e do cultivo, enquanto os homens fabricavam arco e flecha, utilizados na caça. Exímios conhecedores da natureza, sabiam para o que servia cada planta, cada bicho, e dessa forma, no alento de sua força e sabedoria, bastavam-se em autossuficiência. Acreditavam na vida pós-morte, esperançavam um paraíso, um jardim de sapucaias feito de cantos e danças. Sua realidade dos sonhos se misturava em suas crenças e modo de vida. A harmonia de cada evento e de cada ato tinha suas simbologias, muitas das quais míticas. Ilustres artesãos, tinham no perfeccionismo uma ação constante na indivisível arte do trabalho. 16 A formação do povo brasileiro baseada na obra de Darcy Ribeiro “O povo brasileiro” Aqueles tidos como guerreiros, dentro da sua tribo, enxergavam nas batalhas uma função social na ocupação de espaço. Com um código de honra próprio, os índios tinham na guerra sua ação mais honrosa. Se um inimigo caísse na tribo rival, aquele que o aprisionava batia em seu ombro e dizia: “Faço-o meu escravo”. Fugir jamais, pois o cativo tinha a ciência exata do que o esperava, e sabia que, moralmente, seria respeitado em sua dignidade. Antropofágicos, os atos sobrevinham por ensejos que ultrapassavam a função biológica do alimento. A ingestão da carne humana do cativo acontecia como uma decorrência de ações simbólicas desenvolvidas em condições de guerra entre diferentes povos. Tal ato era efetivado em uma circunstância festiva. Após o aprisionamento do guerreiro inimigo, os tupinambás proporcionavam uma mulher para casar com o prisioneiro. No dia do ritual antropofágico, uma grande festa era realizada para que a ingestão da carne humana ocorresse. A esperança dos participantes envolvia valores bastante característicos. Em primeiro lugar, essa morte era avaliada positivamente pelo próprio guerreiro conquistado, pois o inevitável fim da vida seria consagrado pela experiência de conflito. Ao consumir a carne do guerreiro, os componentes da comunidade acreditavam vingar os seus ancestrais. Curiosamente, o responsável pela execução — não poderia consumir a carne—, depois de eliminar o preso, ficava 1º CICLO Matriz tupi 17 um período resguardado e modificava o seu nome. As carnes mais duras eram secadas e comidas pelos homens, e as partes mais moles eram cozidas e consumidas pelas mulheres e crianças da comunidade. Socialmente, tinham a concepção de que a terra não era propriedade pessoal de um líder ou de um cacique, mas um bem comum de sua comunidade, em uma edificação social planificada, e com clara divisão de tarefas. Não havia apropriação de especialização, desconstituindo o poder que emana do saber, não objetivando o mando. A tradição e a experiência elevam a liderança despossuída do patriarcalismo, mas na conciliação. Era um verdadeiro Éden desprovido da verticalização social, da luta de classes, do egocentrismo, do irracional capitalismo, do acúmulo pelo acúmulo. A matriz tupi integrada à natureza coexistia pacificamente com seu meio, com suas crenças, com seus rituais. Eram os verdadeiros donos do Brasil. 18 A formação do povo brasileiro baseada na obra de Darcy Ribeiro “O povo brasileiro” MATRIZ LUSITANA Na trindade majoritária étnica que compõe a formação do Brasil, temos como raiz os portugueses, cuja história vem da Idade Média e é inseparável da Espanha. O que hoje conhecemos como Portugal, uma das nações mais antigas da Europa, é que teve a sua independência em 1143, depois da passagem de diversos povos, que deixaram suas marcas no povo que conhecemos hoje. Sujeito às mais diversas e regulares invasões, o país recebeu uma variada sucessão de habitantes ao longo dos séculos. Portugal, à época do descobrimento, rivalizava o monopólio político e econômico com a Espanha e representava uma vanguarda para os povos europeus. Precoce como nação, suas características marcantes eram a síntese da ousadia. Fronteiriço à Espanha, a única saída dos portugueses para o mundo era através do mar, o que o forjou como um país de pescadores e de grandes navegadores por uma questão de sobrevivência. Foi por meio das raízes arábicas que os portugueses dominaram a técnica da construção de navios com leme e com velas, com os quais conseguiram enfrentar os humores do alto-mar, o que resultou na formação tecnológica e científica de desbravadores. 1º CICLO Matriz lusitana 19 Da economia agropastoril - fruto da junção de povos como lusitanos, galegos, célticos - vários caminhos formaram a gênese do povo português. A contribuição fenícia, em síntese, está na metalurgia de ferro, nas primeiras formas de escrita e no conceito de cidade. Os gregos e cartagineses trouxeram o espírito navegador e o comércio. Com a invasão romana, o país levou o latim à guerra. Os árabes ensinaram os algarismos, o mosaico colorido, o moinho de água, o azulejo, o açúcar. Do judaísmo vieram o anel do dedo e o mercantilismo. Com a luta pela sua independência, a expulsão dos árabes mouros, e com os castelhanos espanhóis, Portugal se firma como povo, como nação. Dentro deste panorama histórico, o reino de Portugal fica subordinado, literalmente, ao comando romano, e a Santa Sé tem papel preponderante quando o rei crê que sua missão promove o processo civilizatório por meio das Cruzadas. As Cruzadas foram movimentos militares cristãos que marcharam em direção à Terra Santa com a finalidade de ocupá-la e mantê-la sob o domínio cristão. Esse conceito estendeu-se ao Novo Mundo com o protagonismo de Portugal e Espanha. 20 A formação do povo brasileiro baseada na obra de Darcy Ribeiro “O povo brasileiro” O rei de Portugal, amparado pela autoridade divina, outorgada pela cadeira petrina, obtém licença para escravizar ou exterminar aqueles que não professassem a fé romana, como no caso dos índios brasileiros. Somam-se a isto as necessidades da corte mercantil, que via na nova terra uma oportunidade singular de ganhar dividendos sob a égide de uma economia escravagista. Nascem desse apoderamento das terras tupiniquins os primeiros conflitos civilizatórios. 1º CICLO Matriz lusitana 21 MATRIZ AFRO “Sem poder esmagar a iniquidade Que tem na boca sempre a liberdade, Nada no coração; Que ri da dor cruel de mil escravos, - Hiena, que do túmulo dos bravos, Morde a reputação!”… castro alves Considerado o berço da humanidade, estudos indicam que o gênero homo surgiu no continente africano há mais de dois milhões de anos. Multicultural, tem a África branca, ao norte, onde predominam os povos caucasoides e semitas; e a chamada África Negra, ao sul do deserto do Saara, onde se encontram os povos pigmeus, bosquianos, hotentotes, sudaneses e os bantos. Esta heterogeneidade se reflete nas mais de mil línguas diversas do continente, sem dimensionar os dialetos. Dentre as matrizes que formam o povo brasileiro temos a africana, cuja origem provém, majoritariamente, dos países: Moçambique, Angola, Congo e Nigéria. Vieram indivíduos escravizados no desígnio de construir o Brasil e de gerar lucros para os “donos” da empresa que era o Novo Mundo conjeturado pelos colonizadores. 22 A formação do povo brasileiro baseada na obra de Darcy Ribeiro “O povo brasileiro” A multiculturalidade desses povos foi fator primordial para a sua dominação; a falta de unidade linguística, religiosa e de costumes contribuiu para a “passividade” do domínio, além da estratégia colonizadora de dividir as famílias para regiões longínquas (pai no Sul, mãe no Nordeste, filho no Norte), numa evidente desafricanização dos negros. Em terras hostis, o negro era submetido a intenso processo de desculturação, forçado a abandonar completamente sua herança cultural, coagido a se adaptar às condições do Senhor “seu dono”, que também sofria o processo da deseuropeização. Conscritos nas senzalas da escravidão, os negros desafricanizados foram partícipes da construção do Brasil e de uma nova civilização de seu tempo. Não nos moldes idealizados pela Coroa portuguesa ou pela Santa Fé romana. Mas com as deformidades de uma cultura espúria, que servia a uma sociedade subalterna ao jugo dos senhores, que, através da bestialidade humana mais atroz, porém eficiente, domesticaram os sobreviventes do massacre que foi nossa colonização. Milagrosamente, tanto os índios como os negros, submetidos na engenhosa metodologia de desculturalização por meio brutal, conseguiram conservar a humanidade e traços culturais de sua gênese étnica. 1º CICLO Matriz afro 23 A multiface étnica de nossa morenidade é um dos grandes legados que temos em nossa sociedade: na música, os negros edificaram o batuque, o gingado, o maracatu; na própria língua, a riqueza dos dialetos aportuguesados nos trouxe expressões como acarajé, cafuné, dengoso, dentre mais de 360 vernáculos que os estudiosos catalogaram. Na culinária, encontramos heranças de nossa matriz africana, assim como na literatura, nas artes, na ciência e na religiosidade plural que coexiste no Brasil. Mas carregamos as mais densas cicatrizes do torturador impressas na alma, sempre prontas a estourar na brutalidade racista e classista. Incandescentes na contemporaneidade, em tantas autoridades, sempre predispostas a porretear os oprimidos simplesmente para machucar e para atestar sua situação de superioridade social ou política. 24 A formação do povo brasileiro baseada na obra de Darcy Ribeiro “O povo brasileiro” ENFRENTAMENTO DOS MUNDOS As matrizes que compõem a formação do Brasil têm naturezas distintas, e consequentemente provocaram os mais variáveis conflitos, em função das visões e culturas profundamente indissolúveis de suas crenças e de seus respectivos modos de vida. Neste contexto, surge a luta de sobrepujar um ao outro. Evidentemente que a matriz portuguesa, com seu tirocínio de ser um povo ciente de seus objetivos “civilizatórios”, imbuído da sagrada sina de guardião da cristandade, nos tempos das Cruzadas, e com a corte sedenta de acúmulo econômico, enxergou na matriz indígena e nas novas terras a mais oportuna chance de se enriquecer nesse ninho de, segundo eles, hereges. O desmoronamento da fé em Maíra, seu Deus Sol, levou os índios às ruínas das bases de sua vida social e de seus valores mais profundos; e a catequização missionária dos jesuítas caiu como um flagelo sobre os índios. Afinal, foi pela iniquidade de seus pecados que o bom deus do céu incidira sobre eles como um galgo selvagem ameaçando lançá-los ao inferno. O bem e o mal, a virtude e o pecado, o valor e a covardia – tudo se embaraçava e se conflitava. 1º CICLO enfrentamento dos mundos 25 O choque civilizatório foi fatal para a matriz indígena, pois, na contextualização de sua desindigenização, saiu do paraíso tropical para lógica perversa de escravatura e da catequese. O veneno irresistível do novo, como as ferramentas dos adornos e as aventuras, os fazia presas fáceis frente à sanha colonizadora. Após o primeiro impacto, o enfrentamento dos índios foi inevitável, e eles resistiram até o limite possível. Porém, o conceito de tribo da qual eles viviam — desajustada —, em uma ação coesa, encontrou um inimigo tecnologicamente mais avançado, bem armado e organizado. Tragicamente os mares carregaram com os portugueses os mais eficientes agentes exterminadores da matriz indígena. Junto com eles chegaram ao Novo Mundo doenças letais como a varíola, a caxumba, dentre outras; até mesmo uma simples gripe era fatal para os índios. Desprovido de qualquer caráter humanitário, o propósito da colonização jesuítica enfrentou a selvajaria dos colonizadores leigos que utilizavam as mais perversas formas de escravizar os índios — confronto que teve consequências diretas na Igreja romana e na Coroa portuguesa. Discrepantes em si, a colisão de mundos tão diferentes levou o olhar português 26 A formação do povo brasileiro baseada na obra de Darcy Ribeiro “O povo brasileiro” à afirmação conceitual de serem eles próprios os “novos cruzados”, chegando a conjeturar se a indianada fazia parte do gênero humano e se teria salvação. O banho de lixívia em suas almas era inevitável. Afinal, a antropofagia em rituais selvagens, a ociosidade, os costumes pagãos eram intoleráveis para as crenças europeias da época. Imbuída de protagonista da revolução tecnológica mercantil, a matriz portuguesa tinha em seu cerne os traços sociais de uma formação sociocultural imperial, mercantil e salvacionista. Ideologicamente desenvolveu um catolicismo messiânico com o desígnio irrenunciável de erradicação dos dissidentes mundanos, associado à aspiração de riquezas e de hegemonização. A constituição conflituosa na formação do Brasil começou sob o signo da imposição cultural da matriz portuguesa, que vencera sua primeira grande batalha no Mundo Novo com a desindigenização; porém, começaram eles também a se deseuropeizar. Um novo gênero humano germinava. 1º CICLO enfrentamento dos mundos 27 2º CICLO GESTAÇÃO ÉTNICA Velho uso indígena, o cunhadismo foi preponderante na formação do povo brasileiro. Ao dar uma moça indígena como esposa ao colonizador, estabelecia-se o “temericó”, que consistia na incorporação de estranhos à comunidade. Assim que ele assumisse, estabelecia, automaticamente, laços que o aparentavam com todos os membros da tribo. Vários europeus tinham mais de oito “temericós”. Esse artifício da cultura indígena possibilitou ao colonizador o recrutamento de mão de obra para seu trabalho e serviu como gênese da mestiçagem, originando o brasileiro em sua primeira versão, conhecido como mameluco, que tem sua origem etimológica na linguagem árabe, que significa “propriedade”, escravo, pajem, criado. No Brasil, ficou conhecido como o mestiço com ascendência da mistura de brancos e indígenas, que é a base da nossa formação. A explosão mameluca fez com que a Coroa portuguesa, ameaçada em seus interesses, impusesse a donataria – ato do rei de Portugal para doar extensos lotes de terras aos seus conterrâneos portugue- 28 A formação do povo brasileiro baseada na obra de Darcy Ribeiro “O povo brasileiro” ses da mais alta confiança para administrá-los: recebiam a posse perpétua de tais terras, além do título de capitão e governador. Este instituto ficou conhecido, no Brasil, como capitania hereditária. Em processo pleno de prosperidade econômica, múltiplas dificuldades surgiam com a rebeldia indígena em não se deixar escravizar. Pela dupla rejeição sofrida — pelos pais portugueses, que os viam como impuros filhos da terra e, portanto mão de obra servil; e pela mulher índia, que era apenas considerada um depósito de sêmen —, o gênero humano aqui edificado pautava-se por ser moldável a qualquer circunstância, com o adestramento ideológico, cedendo e dobrando-se ao mundo rude. As tensões jesuíticas com os colonizadores também irradiavam conflitos, e muitos foram solucionados por meio de massacres e derramamento de sangue. Em nossa gestação étnica, a matriz africana se introduziu à paisagem brasileira, com sua múltipla cultura, em uma situação já preestabelecida de escravos, com o engenhoso sistema colonial de desafricanizá-los. A diversidade étnica contribuiu para sua domesticação, assim como o engenhoso processo de brutalidade de apartar suas descendências espalhadas, propositalmente, pelo vasto território brasileiro, quebrando qualquer lastro de unidade. 2º CICLO Gestação étnica 29 Surge então, dessa mestiçagem de africanos e europeus, o mulato, que tem sua etimologia originária da palavra “mula”, em espanhol, que designa o cruzamento de cavalo com jumenta ou jumento com égua. Já na miscigenação entre índios e negros africanos, temos a origem dos cafuzos, caracterizados pela pigmentação da pele escura, quase negra, lábios grossos e carnudos e cabelos lisos. Ressalta-se, até hoje, que os negros conscritos nos guetos da escravidão, assim como os índios, trazem suas marcas indeléveis da tortura impressas no corpo e na alma, prontas a explodir na brutalidade racista e classista que forjou nossa gestação étnica. 30 A formação do povo brasileiro baseada na obra de Darcy Ribeiro “O povo brasileiro” O preceito do autoritarismo impingido em nossa “civilização” é incandescente ainda hoje, uma vez que a preponderância de nossa classe dominante está sempre predisposta a torturar, massacrar e machucar os “escravos e rebeldes”. O assombroso processo de desculturação os preservou humanos, proeza devida ao esforço inaudito de autorreconstrução do desfazimento. Porém, nota-se que os colonizadores portugueses não conseguiram também preservar sua gênese europeia e foram transfigurados do mesmo modo, devido ao longo processo de dominação de uma nova espécie. Esse caldeirão inflamado produziu uma nova espécie do gênero humano edificado na desindigenização, desafricanização e deseuropeização. 2º CICLO Gestação étnica 31 AS GUERRAS DO BRASIL A construção do Brasil baseada na conceituação das três matrizes étnicas que nos forjaram — ou seja, a indígena, a portuguesa e a africana — não foi um processo pacífico. A real história do Brasil está fundamentada em grandes conflitos e massacres. O entrechoque de culturas levou-nos às inevitáveis batalhas, a começar pela imposição salvadorista dos portugueses, que viram nos nativos a personificação do herege, a profanação da existência. Atrelada às conjunturas europeias e a suas disputas, a colônia Brasil sofrera suas consequências da mesma forma. Inúmeros conflitos originários surgiram, como, por exemplo, no período colonial, a Guerra de Iguape, a Batalha do Cricaré, a Batalha das Canoas, a Batalha de Guaxenduvas, a Batalha de M`Bororé e a Batalha de Tejucupapo. Com a invasão holandesa, no século XVII, as batalhas ferozes que podemos destacar são a Jornada dos Vassalos (recaptura da Bahia), a Batalha Naval dos Abrolhos, a Batalha de Porto Calvo, a Batalha do Monte das Tabocas e a Batalha dos Guararapes. 32 A formação do povo brasileiro baseada na obra de Darcy Ribeiro “O povo brasileiro” A Guerra dos Palmares, ocorrida na segunda metade do século XVII, destaca-se como uma das batalhas mais épicas, na qual os negros rebelados conquistaram inúmeras vitórias, mas também tiveram o infortúnio de não poder perder nenhuma. Cite-se ainda a Guerra dos Emboabas, ocorrida no século XVIII, bem como suas batalhas de Cachoeira do Campo e Capão da Traição, pelo direito de exploração das recém-descobertas jazidas de ouro, na atual região de Minas Gerais. Na Guerra Guaranítica e sua batalha de Caiboaté, também ocorridas no século XVIII, cerca de 1500 índios guaranis perderam a vida, em confronto com o exército espanhol. No contexto da guerra pela Independência, ocorreram a Rebelião de Avilez, a Batalha do Forte São Pedro, a Batalha de Cachoeira, a Batalha do Funil, a Batalha de Pirajá, a Batalha de Camarugipe, a Batalha do Itaparica, o Cerco a Caxias, entre outros. Tivemos também a Cabanagem, a Balaiada e a Revolução Farroupilha. Fora os golpes e contragolpes desfechados contra nossa sociedade com incontáveis guerras em seu dia a dia. 2º CICLO As guerras do Brasil 33 O sangue mestiçado na desconstrução cultural e nas invasões estrangeiras forjou nossa sociedade. A unidade nacional nasce como fruto dessas inúmeras guerras e batalhas, entretanto o abismo social jamais foi vencido. O discurso da cultura passiva, a cordialidade intrínseca, o não preconceito de raça são os embustes para o cabresto que nossas classes dominantes impingem para continuar sua dominação. Entretanto foi com a revolução de 30 e a chegada de Getúlio Vargas ao poder, é que a luta de classes - que caracteriza a formação do Brasil - muda. Os oprimidos conquistam seus primeiros direitos. Enfim, as matrizes desculturadas - tupi e africana - são reconhecidas como cidadãs. 34 A formação do povo brasileiro baseada na obra de Darcy Ribeiro “O povo brasileiro” O PROCESSO CIVILIZATÓRIO Ao ponderar a obra de Darcy Ribeiro, verificamos que a história civilizatória, em especial no processo em que se deu a colonização no Brasil, situa-se no passado, como pressuposto essencial para compreender o presente e projetar o futuro. Compreender as matrizes culturais, todas as suas contradições e o seu desmantelamento, torna-se fundamental para traçarmos nossas perspectivas. A partir da revolução tecnológica que impulsionou as Grandes Navegações, estruturou-se a edificação de novos impérios, dentre os quais o português, que obteve grande êxito. A premissa de um império salvacionista criou um cenário atípico da experiência árabe — uma das raízes da formação portuguesa que visava apenas conquistar áreas, e não converter religiosamente ninguém. O processo messiânico estabeleceu os parâmetros de suas colônias em uma nova formação socioeconômica das terras “conquistadas”, somando-se a isto, ainda, as premissas do capitalismo e do acúmulo do excedente. 2º CICLO O processo civilizatório 35 No contexto da geopolítica europeia, da rivalidade entre Portugal e Espanha, as alianças pontuais foram inevitáveis. A luta pela hegemonia entre os múltiplos conflitos econômicos, sociais e religiosos levou a Inglaterra a uma espécie de colonização mais homogênea na América do Norte; não sob o mantra messiânico, mas sob a égide e a influência da Reforma Protestante iniciada na Alemanha. Nosso processo civilizatório teve como precursora a síntese do massacre, do “gastar-se” gente, bem como a imposição de uma classe dirigente infiel, inclusive ao seu povo. Estabeleceu-se o senhorismo, que se sucede através dos séculos, não admitindo senão a multiplicação de mão de obra escrava o apartheid social, a cultura do assimilacionismo. O adestramento da obediência dos nativos foi um dos maiores êxitos do processo civilizatório brasileiro, na medida em que despojou os índios de suas terras, aprisionou-os em seus corpos e reduziu-os à condição de mercadoria disponível para uso de seus senhores. 36 A formação do povo brasileiro baseada na obra de Darcy Ribeiro “O povo brasileiro” Felizmente, a birrenta resistência de nossa natureza resistiu a esse ímpeto. A ordem social era sagrada, e seu papel como mero servil desta ordem era prescrito por “deus”; já que nossas elites de senhores eram amparadas pelo Estado, que tinha a benção dos céus. A quebra étnica dos índios e negros, e até mesmo dos europeus, de dominação transfigurada em filial lusitana, impediu a formação de uma classe dominante nativa, abrindo caminho para uma classe dominante e subalterna aos interesses internacionais. No Brasil de índios e negros, a principal obra dos colonizadores não foi o ouro, não foram as mercadorias produzidas e exportadas, e nem mesmo as incontáveis riquezas aqui pertencentes; a grande herança deixada foi a forçada mestiçagem que se multiplica à espera do seu destino. 2º CICLO O processo civilizatório 37 FORMAÇÃO DA CLASSE DOMINANTE O inevitável choque civilizatório empregado pelos colonizadores no Brasil descortina o abismo conceitual de sociedades profundamente distintas. Portugal era uma sociedade bipartida, em que as condições rurais e urbanas estavam estratificadas em classes imbuídas de uma cultura erudita e letrada, integradas na economia com a ambição obrigatória da navegação para expansão. Já a nação brasileira estava enraizada na multiface tribal: uma sociedade indígena insciente do complexo processo de mercado, de economia, de monopólio, na sua forma de vida, e sua cultura era suficiente para suas ricas existências. O rompimento evolutivo da população indígena, subjugando-a à escravatura e à quebra étnica, foi o alicerce de uma colonização conceitualmente de salvacionismo, repetida cruelmente com os africanos aqui trazidos. As bases estabelecidas nesse processo foram determinantes em nossa gestação com a incorporação da tecnologia europeia aplicada à produção, ao transporte, à construção e à guerra, com uso de instrumentos de metal e de vários dispositivos mecânicos. A mudança dos conceitos de solidariedade embrionária no parentesco, distintivo 38 A formação do povo brasileiro baseada na obra de Darcy Ribeiro “O povo brasileiro” do mundo tribal igualitário, por outras formas de estruturação social, que bipartiu a sociedade em componentes rurais ou urbanos e a estratificou em classes antagonicamente opostas uma da outra, quebrou os costumes aqui encontrados. Deu-se a introdução da escravatura indígena, posteriormente da escravatura africana, assim como o processo de catequese. Tratase de uma estruturação sociopolítica única como classe dominante de um patronato de empresas e de uma elite patriarcal dirigente, cujos desígnios eram tornar viável e lucrativa a colônia e eliminar qualquer insurgência interna ou externa. Conceituada como uma filial lusitana, com rígido controle social e ideológico, a empresa colonizadora se edificou em nossa sociedade na multiplicidade dos encontros e desencontros culturais, na miscigenação étnica e na desconstrução das origens nativas. A força de uma sociedade como a portuguesa, já desenvolvida 2º CICLO Formação da classe dominante 39 tecnologicamente, em contraponto à falta de unidade dos índios e dos negros oriundos da cultura tribal, impediu a formação de uma classe dominante nativa. Esses grupos étnicos, índios e negros, que eram díspares e não se entendiam, sofreram a desculturação em suas raízes, convertidas em mera mão de obra. Foi com o enfrentamento de dois fatores que a gestação étnica ocorreu: o primeiro com a aniquilação dos grupos indígenas que, não aceitando a nova condição escravagista, acabaram se afastando do litoral ou foram chacinados pelas batalhas ou pelas pragas que o novo mundo trouxera; e o segundo foi manter, à força, a regência colonial sobre os núcleos neobrasileiros que se multiplicaram na condição de dependência em relação à metrópole. 40 A formação do povo brasileiro baseada na obra de Darcy Ribeiro “O povo brasileiro” 3º CICLO ASSIMILAÇÃO OU SEGREGAÇÃO A formação do povo brasileiro radica na opressão entre dominador e dominado. Os massacres sucessivos dos povos indígenas desfiguraram o contorno étnico, e o ingresso dos negros (cerca de 6 milhões até 1850), que foram tratados como “bestas de carga”, extenuados no trabalho, deu nova face à gênese brasileira. O processo de miscigenação edificou o novo gênero humano. Alforriado e elevado à “liberdade”, o negro foi submetido às novas formas de exploração, que apenas o permitiram integrar-se como subproletário, condições estas que seguiram a mesma metodologia de segregação impostas quando de sua chegada. Além da questão racial, um novo componente aflora na proteção dos círculos privilegiados: entra o predomínio social - fator determinante de manutenção da classe dominante. 3º CICLO Assimilação ou segregação 41 A desculturalização dos indígenas e dos africanos fez deles uma tábua rasa, em que o índio comunitário e o negro tribal foram domesticados a aceitar suas condições servis. A brutal opressão dominadora da classe senhoril levou à concepção de que o povo não existe para si, e sim para os outros; de que sua manutenção na miséria é dada pela vida e a única opção é a resignação e a assimilação. De outro lado, as classes dominantes resistiam às inovações da Revolução Industrial, devido a seu caráter arcaico de deseuropeização para a manutenção de seus privilégios e interesses que estão arquitetados na ordenação estrutural aqui imposta. Apropriando-se de nossa Independência, que não concebe absolutamente nossa descolonização, a classe dominante enxergou mais uma conveniência em auferir mais lucros pelo domínio das classes subalternas. 42 A formação do povo brasileiro baseada na obra de Darcy Ribeiro “O povo brasileiro” As transfigurações étnicas no Brasil resultaram em quatro importantes consequências: a) biótica — os seres humanos, interagindo com outras forças vivas, podem transfigurar-se radicalmente. Citamos aqui o caso das epidemias originadas pelo europeu, que foram fator de aniquilação de um imenso contingente indígena; b) ecológica — os seres vivos, por conviverem nesse mesmo ambiente, foram reciprocamente afetados em sua forma física e em sua função vital. É o caso da admissão de novas espécies de animais, como, por exemplo, a vaca, o porco e a galinha; c) econômica — alterou negativamente as condições de vida da população, levando-a quase ao extermínio. É o caso da escravidão, que desgarrou a pessoa de seu contexto vital para convertê-la em mera força de trabalho; d) psicocultural — dizimou sistematicamente populações, extinguindo a esperança e, consequentemente, o próprio desejo de viver. É o caso dos índios que se deixavam morrer, por não ambicionar a vida que lhes era oferecida pelo europeu. A quebra do orgulho nacional, o preconceito social e a discriminação, introduzidos em nossos valores básicos, somaram-se para nossa formação, que está entrelaçada à dominação de classes. A assimilação e a segregação são elementos capitais na luta de classes enraizada na formação do Brasil. 3º CICLO Assimilação ou segregação 43 CLASSE, COR E PRECONCEITO É indissociável a correlação entre classe e poder; é consensual, porém, entre as diversas linhas de pensamento, que amplos grupos sujeitos à exploração econômica, à opressão política e à dominação cultural configuram o binômio exploradores e explorados. Esta relação criou, segundo Karl Max, a luta de classes, que consiste no antagonismo entre as diferentes classes, que não se resume somente à economia e à política, mas à sociedade como um todo. Darcy Ribeiro, em seu livro “O povo brasileiro”, pondera que: “Nossa tipologia das classes sociais vê na cúpula dois corpos conflitantes, mas mutuamente complementares. O patronato de empresários, cujo poder vem da riqueza através da exploração econômica, e o patriciado, cujo mando decorre do desempenho de cargos, tal como o general, o deputado, o bispo, o líder sindical e tantíssimos outros. Naturalmente que cada patrício enriquecido quer ser patrão e cada patrão aspira às glórias de um mandato que lhe dê, além de riqueza, o poder de determinar o destino alheio”. 44 A formação do povo brasileiro baseada na obra de Darcy Ribeiro “O povo brasileiro” No contexto brasileiro, a relação de classe e poder articula-se com a questão do preconceito e da herança escravagista na análise da dominação cultural que forma nossa sociedade. A questão étnica gerou dois indissolúveis preconceitos: a) o da classe social e b) o que pesa sobre os negros, mulatos e índios. Em nossa estratificação social, verificamos quatro níveis da relação entre classe, cor e preconceito: a) O topo da pirâmide social está ocupado pelas classes dominantes, compostas da figura do patronato, que são os proprietários das empresas, o dono do capital; são alinhados à oligarquia, onde está concentrado o sistema político, o coronelismo hereditário. Adiciona-se, ainda: o senhorio parasitário, que sobrevive do labor alheio; o empresário contratista; o militar; o tecnocrata; 3º CICLO Classe, cor e preconceito 45 as eminências e as celebridades. Este conjunto todo forma o que conhecemos popularmente como elite; b) Na classe média temos os autônomos, os profissionais liberais, os pequenos empresários, os comerciantes; classe despossuída dos meios de produção, que não “vende” sua força de trabalho, detém apenas bens móveis e imóveis e se acomoda nas burocracias estatais e privadas. A classe média não é determinada pelo grau de consumo ou pela escolaridade, mas pelo modo como se insere na sociedade. Neoliberal por ideologia, acredita na concepção de que o gênero humano é um capital de acúmulo econômico e não aceita ser classificada como classe trabalhadora; c) As classes subalternas são os assalariados rurais, os minifundiários, como também o operariado fabril e de serviços. Esta classe integra a vida social e é explorada: forma uma massa consumidora de produtos de subsistência e é mão de obra crucial para o sistema produtivo; d) A quarta e última classe, no último bloco inferior da pirâmide, é composta de marginalizados, mendigos, prostitutas, delinquentes, subempregados — aqueles completamente excluídos da vida social. Muitos lutam para ingressar socialmente no mercado. Para estes, só resta romper as estruturas de classe. Ontem escravos, hoje subassalariados. Causadores do pavor e da repulsa das classes superiores. 46 A formação do povo brasileiro baseada na obra de Darcy Ribeiro “O povo brasileiro” A URBANIZAÇÃO CAÓTICA A confluência étnica das três matrizes do povo brasileiro — indígena, portuguesa e africana —, que formaram o novo gênero humano, culminou no surgimento urbano, em grupos distintos. Influências de outras nações também contribuíram no formato urbano da evolução civilizatória nas terras tupiniquins. A grande crise econômica da Europa no começo do século XX provocou enorme êxodo migratório, assim como a Guerra de Secessão nos EUA, bem como o afluxo de elevado número de árabes e asiáticos. Neste cenário, ocorre no Brasil o primeiro surto de industrialização, sobretudo nos setores têxtil e alimentício - que se estabelecem nos estados de São Paulo e do Rio de Janeiro - , que necessitam de grande quantidade de mão de obra para seu processo produtivo. Isto acarretou um esvaziamento irreversível no campo. Com o crescimento urbanizacional desordenado, espaços distintos são criados, segregando os bairros de classe baixa, média e alta. A senzala é substituída pela favela; e as sedes das fazendas, pelas moradias elegantes em centros urbanos. Seguindo a lógica 3º CICLO A urbanização caótica 47 colonialista, o bem-estar social dos ricos em detrimento dos pobres permanece inalterado. A luta de classe se aprofunda e o capitalismo selvagem toma nova face. Como resultado da urbanização caótica, as cidades incham-se, faltam hospitais, escolas, transporte e planejamento. Explodem as questões sociais. Aflora o capitalismo de Estado, a exploração indistinta das matrizes dominadas e sua mestiçagem seguem o roteiro preestabelecido dos dominadores. Em meio à crescente pressão, nasce também a contestação mais forte. Teorias e novas ideologias emergem, e surge o primeiro governo que rompe com o trágico destino que nos foi imposto, o de Getúlio Vargas. Nacionalista, alçado ao poder por meio de uma revolução popular, Getúlio muda os pêndulos da balança, que se movem para uma mudança substancial de paradigma para alforriar os trabalhadores, outrora escravos. Pela primeira vez na história do Brasil, as matrizes desculturadas e despersonalizadas ao longo dos séculos começam a ter seus direitos reconhecidos e protegidos. 48 A formação do povo brasileiro baseada na obra de Darcy Ribeiro “O povo brasileiro” O estabelecimento da jornada de trabalho, a criação do salário mínimo, da carteira de trabalho, dos direitos e garantias, até então inexistentes, transformam o panorama urbano do Brasil. E o ódio a este ideário de nação, de povo, de país, surge em meio ao caótico processo histórico aqui implantado. 3º CICLO A urbanização caótica 49 ORDEM VERSUS PROGRESSO O dialético, anárquico e socialmente irresponsável processo colonizador no Brasil foi edificado em circunstâncias de anulação cultural de suas matrizes étnicas, que se ajustaram no improviso, para expansão de seus núcleos. A industrialização e a urbanização, que deveriam seguir a ótica de complementaridade, aqui foram completamente desconexas. A falta de planejamento urbano agravou-se com o êxodo do campo e transformou nossas cidades em grandes depósitos de gente; assim como a inexistente política industrial e, que nos fez meros fornecedores de manufaturados. 50 A formação do povo brasileiro baseada na obra de Darcy Ribeiro “O povo brasileiro” Ressalta-se, porém, como exceção à regra, o período Varguista, que deu impulso a um projeto nacional de industrialização: a construção da Companhia Siderúrgica Nacional, CSN; a imposição da devolução das jazidas de ferro de Minas Gerais, negociadas aos aliados da II Guerra Mundial para obtenção de apoio do Brasil; além da criação da Petrobras, da Fábrica Nacional de Motores, Fábrica Nacional de Motores, etc. Foi também no período de Getúlio Vargas que as classes historicamente marginalizadas e segregadas tiveram sua elevação social, com a efetivação de direitos antes inimagináveis pelos grupos dominantes. Entretanto, o conceito de ordem sempre foi um elemento de controle social baseado na cultura da assimilação e resignação social, enquanto o progresso é um privilégio para as classes dominantes. 3º CICLO Ordem versus progresso 51 A dramaticidade desse processo explode na agressividade com que cada um procura arrancar o seu, seja de quem for. Nas periferias segregadas, estrutura-se uma unidade matricêntrica de mulheres que parem filhos e mais filhos, e que desconhecem o poder estatal, pois, para esses, o Estado é a síntese da farda e da opressão. São despossuídos de saneamento básico, saúde, educação, habitação, dignidade. Seguem o fluxo do ciclo da miséria. Contemporaneamente, essas mesmas classes dominantes perdem esse controle e fogem desesperadamente dos frutos nefastos que seus antepassados germinaram e que convenientemente tentaram manter. Continuamos a reprodução de um sistema político hierarquizado, no qual as camadas dirigentes de cada variante se perpetuam e se solidarizam no poder, em detrimento das classes marginalizadas. Nossa “modernidade” não edificou nem privilegiou o diálogo multiclasses, no sentido de diminuir as distâncias segregadoras de nossa colonização. As aspirações do povo brasileiro jamais foram objeto de interesse de nossa classe dominante, porque seguimos o modelo de uma economia agroexportadora. O que se estabeleceu aqui foi o aliciamento de índios e negros importados para aumentar a força de trabalho, que foi fonte de produção e lucro. Essas premissas seguem até hoje sob novas formas e contornos, mas o método da dominação de classe é o mesmo. 52 A formação do povo brasileiro baseada na obra de Darcy Ribeiro “O povo brasileiro” 4º CICLO BRASIL CRIOULO A feição cultural crioula brasileira surge em torno do complexo formado pela economia do açúcar, com todas as suas variantes comerciais e financeiras, juntamente com todos os complementos agrícolas e artesanais que permitiam sua operação. Era predominantemente originária da matriz africana, inserida no contexto de transição europeia de uma economia pré-capitalista e mercantilista para uma economia capitalista industrial, que mudou a face europeia. O crioulo, no Nordeste, nasce em uma estrutura de latifúndio, na monocultura açucareira e na escravidão, que se tornou o primeiro empreendimento agroindustrial do Brasil. O abrasileiramento forçado, imposto pela colonização, proporcionou a multiplicidade cultural originária de distintas regiões, formando novos gêneros humanos. A mistura do negro com o índio, do colonizador com o negro, trouxe essa nova feição; a fusão deste processo é observada no 4º CICLO Brasil crioulo 53 sincretismo religioso, no qual os ritos peculiares das religiões africanas se misturam ao catolicismo salvacionista dos portugueses. Na culinária também verificamos a influência inequívoca deste novo gênero, como no caso da feijoada, do acarajé, do vatapá; assim como na música, com o incremento dos ritmos do afoxé, de instrumentos como o tambor, o atabaque, entre outros. Este cenário de mestiçagem é resultante de extrema violência e dominação: verifica-se o histórico de escravização, com o negro sendo submetido aos mais brutais castigos, em uma relação na qual o senhor do engenho exercia seu poder como proprietário do bem semovente, que era seu escravo. No sistema autocrático, o senhor de engenho era o Estado, a religião e a lei. Dentro do projeto capitalista do empreendimento agroindustrial, necessitava de força de trabalho; e era essencial que o negro escravo substituísse o rebelde índio. 54 A formação do povo brasileiro baseada na obra de Darcy Ribeiro “O povo brasileiro” A estratificação social açucareira seguia uma rígida estrutura, com raríssima mobilidade social, com o senhor de engenho ocupando o topo da pirâmide hierárquica num modelo patriarcal. Intermediariamente, tínhamos as camadas instituídas, como os religiosos, os feitores, os capatazes, os militares, os comerciantes e os funcionários públicos. Nas camadas inferiores, estavam os africanos escravizados: força de trabalho capital para a engrenagem do sistema. Os índios viviam à margem dessa estratificação. Guardião e centralizador de todas as funções sociais num intenso poder, o senhor de engenho encontrou em si duas realidades, uma delas a imposição de sua vontade e supremacia; e a outra, a adaptação ao que seria a nova aristocracia, que, em síntese, era o poder da casa-grande. Já a senzala se subordinava aos mandos da casa-grande, em uma desculturação de suas origens, num processo de miscigenação, assimilação e resignação. Resignação e passividade que se rompem no processo histórico brasileiro, na manutenção, embora por outras vias, da estratificação social da época. Os bolsões de miséria de uma classe alijada dos bens de consumo e da vida social resumem a gênese da dívida social que nossas elites insistem em calotear. 4º CICLO Brasil crioulo 55 BRASIL CABOCLO Em que pese sua imensa extensão territorial, o Brasil conseguiu a proeza de manter a unidade nacional. A imposição da língua portuguesa também contribuiu para este feito, porém as diversas regiões, com seus peculiares modo de vida, fizeram dos usos e costumes próprios algumas distinções em nossa nacionalidade. Dentre estas distinções, temos, na região norte do Brasil, o caboclo, que tem como traço relevante o profundo conhecimento da floresta, seus hábitos alimentares e suas moradias. A herança colonial portuguesa, a força emigratória do nordestino, juntamente com o ciclo da borracha, contribuíram para forjar o caráter do caboclo. Originalmente ocupada por tribos indígenas especializadas em floresta tropical, a região norte era formada por aldeias agrícolas que não chegaram a desenvolver núcleos urbanos nem se estratificaram em classes. A civilização originária da colonização, até os dias atuais, não conseguiu desenvolver um sistema adaptativo e sustentável para a região. O primitivismo de sua tecnologia adaptativa, essencialmente indígena, conduzida através de séculos, tem se mantido. 56 A formação do povo brasileiro baseada na obra de Darcy Ribeiro “O povo brasileiro” O violento processo colonizador seguiu o formato escravocrata de outras regiões brasileiras. A exploração visando à lucratividade engendrou inúmeras batalhas entre povos europeus que invadiram a região: entre portugueses e indígenas, e entre os missionários. Herança indelével dos missionários foi o desenvolvimento de uma religiosidade folclórica e pouco ortodoxa, que derivou numa fé popular, instituída a partir do sincretismo da pajelança indígena com o elusivo culto de santos do calendário católico. Formada pela mestiçagem de brancos com índios, por meio de um processo secular, esta combinação gerou um tipo racial mais indígena que branco. A transfiguração étnica, ao coagir à conversão dos índios em genéricos, — sem língua nem cultura própria, e sem identidade cultural específica — acarretou o acréscimo de massa de mestiços gerados por brancos e mulheres indígenas, que, além disto, não sendo índios, nem europeus e falando o tupi, criam os requisitos do caboclo. 4º CICLO Brasil caboclo 57 Neste contexto, desenvolvem-se três classes: 1ª — constituída pelo índio tribal, refugiado nas altas cabeceiras e lutando contra todos os que almejassem dominar seus núcleos de sobrevivência para roubar-lhes as mulheres e as crianças, e condená-los ao trabalho extrativista; 2ª — constituída pela população urbanizada muito heterogênea, mas que tinha em comum a predominância da língua portuguesa e a aptidão de operar como base de manutenção da ordem colonial; 3ª — formada de índios genéricos originários das missões e da expansão católica sobre toda a região e gestação desculturalizante. 58 A formação do povo brasileiro baseada na obra de Darcy Ribeiro “O povo brasileiro” BRASIL SERTANEJO Emergente da atividade pastoril, uma das faces peculiares de nossa mestiçagem que compõe a formação do povo brasileiro, encontramos o sertanejo, fruto de uma etnia que surge do índio e do branco. Dentro da perspectiva econômica, a criação de gado é inserida pelos brancos pobres e mestiços como atividade produtiva, dispensando o trabalho escravo. Surgem as vilas e as cidades. Trazidos das ilhas de Cabo Verde, da África, foi a partir do agreste pernambucano que esta atividade se expandiu, com as terras de posse da Coroa e a implantação do sistema de “sesmarias”; ou seja, lotes de terra inculta e abandonada que o rei de Portugal cedia aos novos povoadores. As classes sociais do Brasil sertanejo compõem-se da tipologia das relações pastoris em todo mundo, contudo são extremamente mercantis. O criador e seus vaqueiros se pautavam como um amo e seus servidores. O Don com autoridade 4º CICLO Brasil sertanejo 59 inconteste sobre os bens e também o, sobre as vidas, em peculiar sobre as mulheres, o que gerava certa tensão e distanciamento das classes. As prestezas pastoris, nas condições climáticas dos sertões cobertos de pastos pobres e com amplas áreas sujeitas a secas recorrentes, adaptaram não só a vida, mas a própria figura do homem e do gado; afinal, o sertanejo é antes de tudo um forte, como disse Euclides da Cunha , na obra “Os Sertões”. O aumento populacional transformou as zonas de pastoreio em criatórios de gente dos quais saíram enormes contingentes de imigrantes para as diversas regiões do Brasil. Vasto reservatório de força de trabalho barata que desbravou e contribuiu para a construção do nosso país. Ávido por emprego, não qualificado para funções de remuneração mais digna e esturricado pela seca, o sertanejo sintetizou o flagelo da ausência de planejamento social, de uma estrutura política oligárquica e escravagista. As condições de seca oportunizaram a edificação de uma indústria na qual o mando político se apropriou de verbas governamentais que deveriam socorrer os flagelados, mas foram investidas no latifúndio oligárquico (em construção de açudes, estradas e melhorias em suas propriedades), agregando mais valor e poder. Interiorizado no sertão, o sertanejo carrega em si sua religiosidade com tendências messiânicas numa linha estreita ao fanatis- 60 A formação do povo brasileiro baseada na obra de Darcy Ribeiro “O povo brasileiro” mo. Incompreendido, tem na rusticidade uma característica marcante, carregando em sua cultura o culto à honra pessoal, o brio e a fidelidade. Em meio aos conflitos de classe, num ambiente de compadrio, mas também de ferozes disputas, em especial políticas, e à imprecisão dos limites geográficos das fazendas, constituíam verdadeiros exércitos de jagunços e capangas. Dentro deste cenário coronelista surge o cangaço. Nômades por essência, — bandidos e heróis —, caracterizavam-se pelo chapéu de couro com abas largas dobradas, pela bolsa com remédios, fumos e brilhantina, pelo lenço para proteger a boca e o nariz contra a poeira, pelo cantil com cachaça e pelo gibão de couro para se proteger dos espinhos. O cangaço sintetiza o enquadramento social do sertão, alvitre do sistema senhorial do latifúndio que impulsionava o aliciamento de jagunços e capangas para a manutenção do poderio existente. Outro fator histórico da indignação sertaneja é Canudos e seu líder Antonio Conselheiro, cuja luta em prol de uma nova sociedade menos opressora foi esmagada pelos donos do poder. Esta experiência acarretou indignação e frustração da tentativa de cunhar um novo conceito social. 4º CICLO Brasil sertanejo 61 BRASIL CAIPIRA A constituição etimológica da expressão “caipira” nasce da simplicidade do homem do campo. Na formação do Brasil, há uma intrínseca relação do caipira com os bandeirantes, que eram exploradores que adentravam os sertões, na busca de riquezas e escravos. Germinado na pobreza, numa existência arcaica paulista de uma junção de índios e portugueses, o caipira é o resultado do regresso social da desculturação da matriz portuguesa que perdera a vida comunitária da vila, a disciplina patriarcal das sociedades agrárias tradicionais e a dieta baseada no trigo, no azeite e no vinho. Da matriz indígena perdera a autonomia igualitária, o provimento do próprio sustento, a identidade do trato social de culturas não estratificadas em classes sociais. Profundamente religioso, fruto da herança jesuíta e também dos ritos indígenas e africanos, o caipira incorpora o sincretismo mais lato. Monteiro Lobato resume este sentimento ao criar o personagem Jeca Tatu, observando a crença do homem do campo diante dos mistérios do desconhecido, do seu isolamento e da densa relação com a natureza. Dividido em três categorias, em sua formação, temos: 62 A formação do povo brasileiro baseada na obra de Darcy Ribeiro “O povo brasileiro” 1) o caipira caboclo, descendente de índios catequizados e desculturados pelos jesuítas, 2) o caipira negro, que vem da matriz africana, e 3) o caipira branco, que tem descendência dos bandeirantes de uma nobreza decaída. O papel dos bandeirantes, neste contexto, é de fundamental importância. As expedições — que ocorreram durante os séculos XVI e XVIII — foram peremptórias para a construção do Brasil. Heróis ou vilões, os bandeirantes eram financiados pela Coroa e visavam à captura de índios para escravizá-los. Desbravadores, suas expedições edificaram inúmeras cidades e vilas. No século XVII, os bandeirantes objetivaram também buscar ouro e pedras preciosas. Violentos, foram corresponsáveis por parte da dizimação dos indígenas; como também pela conquista de novas fronteiras que formam hoje o território brasileiro. Observou-se que a formação do Estado de São Paulo, núcleo caipira, não foi a reencarnação contínua do processo evolutivo humano. Estava fincada na colonização colonial-escravista, edificada como uma contraparte atualizada à formação mercantil salvacionista ibérica. 4º CICLO Brasil caipira 63 O que lhe conferia a característica básica de uma sociedade estratificada em classes adversas, em componentes agrícolas. No curso da mineração, desenvolveu-se uma classe senhorial, formada por autoridades reais e eclesiásticas, ricos comerciantes e mineradores. Formavam um amplo círculo militar de ofício burocrático, ouvidores, contadores, fiscais e escrivães, bem como uma agricultura comercial diversificada, provedora de carne, rapadura, queijos, entre outros diversos produtos. Surge também a Inconfidência Mineira, um dos mais importantes movimentos sociais de nossa história, que significou a luta pela liberdade contra a opressão do governo português, em pleno ciclo do ouro, cujo mártir foi Tiradentes. Desintegrando-se com o impacto da onda renovadora de tecnologia que invadiu o Brasil, as instituições caipiras mudam seu processo de industrialização, transformam o seu modo de ser, de pensar e de agir. Grandes levas abandonam o campo e se somam a outros contingentes de imigrantes, criando as grandes metrópoles, despossuídas de condições para tal crescimento desordenado. O caipira, antes agrícola, toma uma face urbana periférica segregada. Perde-se o controle: as metrópoles explodem em demandas sociais e se aprofunda a segregação. 64 A formação do povo brasileiro baseada na obra de Darcy Ribeiro “O povo brasileiro” BRASIL SULINO Por meio dos jesuítas espanhóis, a face da formação do Brasil sulino nasce da concepção de viabilizar novas formas de existência humana, baseadas na própria subsistência e desenvolvimento. Com uma imensa quantidade de índios desculturados e uma uniformidade fincada no trabalho obediente, criou-se um grande depósito de escravos. Paralelamente, houve o desígnio português de levar sua hegemonia até o rio da Prata, propósito esse iniciado com os bandeirantes em sua missão mercantil, numa região conflituosa sem o estabelecimento de fronteiras. Este processo colonial se deu em etapas. Em uma primeira etapa, deu-se a mestiçagem de brancos de diferentes identidades europeias com os índios, na formação de uma etnia não identificada; os índios guaranis mestiçados com espanhóis e portugueses somaram-se ao núcleo neoguarani de paraguaios de Assunção, formando a primeira leva de gaúchos. Nesse período, a criação de 4º CICLO Brasil sulino 65 gado selvagem, voltada para a carne, o couro e as charqueadas, formou a economia regional. Numa etapa posterior, temos a ocupação dos portugueses da região de Açores, que objetivavam o povoamento para implantação de um núcleo mais homogêneo, a fim de proteger as fronteiras conquistadas. Contudo, os açorianos foram vítimas de sua desculturação. A mestiçagem com os índios os descaracterizou, tornando-os matutos, mas, ainda assim, cumpriram seu papel no desenvolvimento econômico e na defesa fronteiriça. Com as imigrações alemã, italiana, polonesa, japonesa e libanesa, o Sul ganhou novos contornos culturais e a mestiçagem se ampliou na sua formação étnica. Essa mescla originou técnicas adaptativas; a diversidade europeia junto com a asiática seguiu uma identidade segregacionista, pois cada grupo se desenvolveu autonomamente; entretanto, trouxe consigo o conceito político de valorização do sentimento de criar na nova terra uma organização, um território para as gerações futuras — um nacionalismo. Diferentemente de outras regiões brasileiras, a peculiaridade da formação do Brasil sulino é que sua matriz indígena não é a tupi, mas sim a guarani, enraizada no povo gaúcho. Tradicionalista, sua característica de montar cavalo brioso com bombacha, botas, sombreiro, revólver, adaga, lenço no pescoço, faixa na cintura e esporas chilenas, é a síntese do patrão fantasiado de homem do campo ou aquele que integra um clube urbano. 66 A formação do povo brasileiro baseada na obra de Darcy Ribeiro “O povo brasileiro” O gaúcho contemporâneo passa a ser o novo peão, mal pago, que come menos, vive maltrapilho e coexiste nas estâncias. O estancieiro se torna o patrão, dono de matadouro e frigorífico. As terras livres do passado agora têm donos. Com a forte influência dos hábitos europeus, não tão característicos nas outras regiões do Brasil, o Sul se funda no bilinguismo, num nível educacional mais elevado, num modo de vida mais confinado em pequenas propriedades, com uma produção bem mais diversificada em criação de gado, plantio, vinho, entre outras. Os velhos estancieiros originam o caudilhismo — uma ideologia nacionalista forjada pelas batalhas fronteiriças — e a cultura se espalha. 4º CICLO Brasil sulino 67 68 A formação do povo brasileiro baseada na obra de Darcy Ribeiro “O povo brasileiro” BIBLIOGRAFIA Darcy Ribeiro (1922-1997) foi um antropólogo, sociólogo, educador, escritor e político brasileiro. Destacou-se por seu trabalho em defesa da causa indígena. Darcy Ribeiro (1922-1997) nasceu em Montes Claros, Minas Gerais, no dia 26 de outubro de 1922. Filho do farmacêutico Reginaldo Ribeiro dos Santos e da professora Josefina Augusta da Silveira. Estudou no Grupo Escolar Gonçalves Chaves e no Ginásio Episcopal de Montes Claros. Mudou-se para São Paulo e ingressou na Escola de Sociologia e Política, graduando-se em 1946, no curso de Ciências Sociais. Entre 1949 e 1951 trabalhou no Serviço de Proteção ao Índio. Foi professor de Antropologia, na Escola de Administração Pública da Fundação Getúlio Vargas; e de Etnografia Brasileira e Língua Tupi na Faculdade Nacional de Filosofia. Em 1953, organizou e passou a dirigir (em 1956) o Museu do Índio, do Serviço de Proteção aos Índios. Colaborou com a fundação do Parque Nacional Indígena do Xingu, na região do atual Estado de Mato Grosso do Sul. Escreveu vários trabalhos em defesa da causa indígena. Em 1955, organizou o primeiro curso de Antropologia, na Universidade do Brasil, no Rio de Janeiro. Bibliografia 69 A partir de 1957, coordenou a Divisão de Estudos e Pesquisas Sociais, do Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais. Em 1958, ficou responsável pelo setor de Pesquisas Sociais, da Campanha Nacional de Erradicação do Analfabetismo. Em 1959, tornou-se membro do Conselho Nacional de Proteção ao índio. Realizou pesquisas de campo junto a grupos indígenas dos Estados de Santa Catarina, Maranhão, Mato Grosso e Goiás. No governo do presidente Jânio Quadros, em 1961, foi nomeado Ministro da Educação. No governo de João Goulart foi Chefe da Casa Civil, onde elaborou as reformas de base. Em 1964, teve seus direitos políticos cassados e foi exilado no Chile e no Peru. Em 1976, de volta ao Brasil, dedicou-se à educação pública. Durante os dois governos de Leonel Brizola, implantou no Rio de Janeiro os Centros Integrados de Ensino Público (CIEPs). Entre 1983 e 1987 foi vice-governador do Rio de Janeiro, e em 1991, foi eleito senador pelo Rio de Janeiro. Sua atividade parlamentar privilegiou temas relacionados à realidade educacional do país, em particular a elaboração da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB). Outra iniciativa importante de Darcy no Senado foi a apresentação do projeto que deu origem à lei de transplantes de órgãos, segundo a qual todos aqueles que, em vida, não registrassem legalmente a sua condição de não doadores de órgãos seriam considerados potenciais doadores após a morte. O projeto invertia a legislação vigente, que considerava doadores apenas aqueles que em vida manifestassem esse desejo através de 70 A formação do povo brasileiro baseada na obra de Darcy Ribeiro “O povo brasileiro” documento registrado em cartório, fator que se constituía em grave obstáculo à realização de transplantes. Darcy apresentou, também, um projeto de lei de controle de substâncias viciantes que, ao estabelecer a obrigatoriedade dos fabricantes de cola industrial de adicionarem em sua fórmula uma substância atóxica, procurava combater o consumo da chamada “cola de sapateiro” pelos menores de rua. Escreveu várias obras sobre etnologia, antropologia, educação, além de romances. Seu último trabalho, em 1995, foi “O Povo Brasileiro - a Formação e o Sentido do Brasil”. Foi eleito para a Cadeira número 11, da Academia Brasileira de Letras. É patrono da Cadeira número 28, do Instituto Histórico e Geográfico de Montes Claros. Darcy Ribeiro faleceu em Brasília, no dia 17 de fevereiro de 1997. Bibliografia 71 CONTEUDISTAS Autor Henrique Matthiesen é Bacharel em Direito, pós-graduado em Sociologia e articulista de jornais. Foi vice-presidente nacional da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBES) e presidente estadual da JS-PDT/SP. Atualmente é Coordenador Nacional do Centro de Memória Trabalhista. Esta cartilha faz parte do curso A formação do povo brasileiro elaborado pelo Centro de Memória Trabalhista em parceria com a Universidade aberta Leonel Brizola, em comemoração aos 25 anos do livro O povo brasileiro, de Darcy Ribeiro, lançado em 1995. O cursista encontrará através da leitura dos textos e ao assistir as videoaulas uma interpretação dos principais tópicos abordados na obra, e sua leitura não deve ser feita desassociada do livro. O curso completo está disponível no endereço www.ulb.org.br Revisão textual Apio Gomes Jonas Pereira dos Santos Karina Crivellani Professores convidados Sérgio Caldieri Wendel Pinheiro Agradecimentos especiais Fundação Darcy Ribeiro José Ronaldo Alves da Cunha Maria José Latgé Kwamme Conteudistas 73 Direção Nacional do PDT BIÊNIO 2019-2021 PRESIDENTE Carlos Roberto Lupi VOGAL Sirley Soares Soalheiro VICE-PRESIDENTE André Peixoto Figueiredo Lima VOGAL Marli Rosa de Mendonça VICE-PRESIDENTE DE RELAÇÕES PARLAMENTARES Antônio Fernandes dos Santos Neto VICE-PRESIDENTE Ciro Ferreira Gomes LÍDER NO SENADO FEDERAL Weverton Rocha Marques de Sousa SECRETÁRIO NACIONAL DE FINANÇAS Eduardo Martins Pereira LÍDER NA CÂMARA FEDERAL Wolney Queiroz SECRETÁRIA NACIONAL DE DIVULGAÇÃO E PROPAGANDA Kariadine de Maria Nascimento Pacheco Maia VICE-PRESIDENTE Miguelina Paiva Vecchio SECRETÁRIO-GERAL Manoel Dias SECRETÁRIO ADJUNTO André Menegotto TESOUREIRO Marcelo de Oliveira Panella CONSULTORA JURÍDICA Mara de Fátima Hofans SECRETÁRIA DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS Juliana Brizola SEC. ADJUNTO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS Márcio Ferreira Bins Ely VICE-PRESIDENTE REGIONAL SUDESTE Antônio Sérgio Alves Vidigal VICE-PRESIDENTE REGIONAL CENTRO-OESTE Dagoberto Nogueira Filho VICE-PRESIDENTE REGIONAL NORDESTE Ronaldo Augusto Lessa Santos VICE-PRESIDENTE REGIONAL NORTE Antônio Waldez Góes da Silva SECRETÁRIA NACIONAL DE ASSUNTOS DE ORGANIZAÇÃO Salete Beatriz Roszkowski SECRETÁRIO NACIONAL DE ASSUNTOS JURÍDICOS Trajano Ricardo Monteiro Ribeiro SECRETÁRIO NACIONAL DE ASSUNTOS ECONÔMICOS Everton da Conceição Gomes VICE-PRESIDENTE DE RELAÇÕES INSTITUCIONAIS Ana Ligia Costa Feliciano FUNDAÇÃO LEONEL BRIZOLA–ALBERTO PASQUALINI (FLB–AP) DIREÇÃO DA FLB-AP Presidente Manoel Dias Vice-Presidente André Peixoto Figueiredo Lima Secretário-Geral André Menegotto Tesoureiro Antonio Henrique de A. Filho Secretário-Executivo Ades Oliveira CONSELHO CURADOR Carlos Roberto Lupi — Presidente Manoel Dias — Secretário Ana Ligia Costa Feliciano Ana Paula Silva Angela Maria Rocha Antônio Henrique de A. Filho Fernando Barbosa Flávia Carreiro Albuquerque Morais Francisco Flávio Torres de Araújo Geraldo Tadeu Moreira Monteiro Joelma de Morais Santos Ligia Doutel de Andrade Marcelo de Oliveira Panella Maria Amélia de Souza Reis Maria José Latgé Kwamme Martha Mesquita da Rocha Nelson Marconi Osvaldo Peres Maneschy CONSELHO FISCAL Eroídes Aparecida Lessa Maria José Latgé Kwamme Sirley Soares Soalheiro Fernando Barbosa Marli Rosa de Mendonça Airton Costa do Amaral CONSELHO EXECUTIVO Manoel Dias — Presidente André Peixoto Figueiredo Lima André Menegotto Antônio Henrique de A. Filho Fernando William Ferreira Everton da Conceição Gomes Maria Amélia de Souza Reis Geraldo Tadeu Moreira Monteiro Mara de Fátima Hofans EQUIPE DE TRABALHO Ades Oliveira André Menegotto Bruno Ribeiro Caio Mota Edevaldo Pereira Henrique Matthiesen João Cyrillo Karina Crivellani Leonardo Britto Leonardo Zumpichiatti Luiz Marcelo Camargo Nelton Friedrich Pamela Fonseca Rafael Machado Sandro Alencar Shana Santos HINO DA INDEPENDÊNCIA 1 Já podeis da Pátria filhos Ver contente a Mãe gentil; Já raiou a Liberdade No Horizonte do Brasil Já raiou a Liberdade Já raiou a Liberdade No Horizonte do Brasil 4 Ressoavam sombras tristes Da cruel Guerra Civil, Mas fugiram apressadas Vendo o Anjo do Brasil. Mas fugiram apressadas Mas fugiram apressadas Vendo o Anjo do Brasil. 7 Não temais ímpias falanges, Que apresentam face hostil: Vossos peitos, vossos braços São muralhas do Brasil. Vossos peitos, vossos braços Vossos peitos, vossos braços São muralhas do Brasil. Brava Gente Brasileira Longe vá, temor servil; Ou ficar a Pátria livre, Ou morrer pelo Brasil. Ou ficar a Pátria livre, Ou morrer pelo Brasil. 5 Mal soou na serra ao longe Nosso grito varonil; Nos imensos ombros logo A cabeça ergue o Brasil. Nos imensos ombros logo Nos imensos ombros logo A cabeça ergue o Brasil. 8 Mostra Pedro a vossa fronte Alma intrépida e viril: Tende nele o Digno Chefe Deste Império do Brasil. Tende nele o Digno Chefe Tende nele o Digno Chefe Deste Império do Brasil. 6 Filhos clama, caros filhos, E depois de afrontas mil, Que a vingar a negra injúria Vem chamar-vos o Brasil. Que a vingar a negra injúria Que a vingar a negra injúria Vem chamar-vos o Brasil. 9 Parabéns, oh Brasileiros, Já com garbo varonil Do Universo entre as Nações Resplandece a do Brasil. Do Universo entre as Nações Do Universo entre as Nações Resplandece a do Brasil. 2 Os grilhões que nos forjava Da perfídia astuto ardil, Houve Mão mais poderosa, Zombou deles o Brasil. Houve Mão mais poderosa Houve Mão mais poderosa Zombou deles o Brasil. 3 O Real Herdeiro Augusto Conhecendo o engano vil, Em despeito dos Tiranos Quis ficar no seu Brasil. Em despeito dos Tiranos Em despeito dos Tiranos Quis ficar no seu Brasil. Letra: Evaristo da Veiga Música: Dom Pedro I Cartilhas Trabalhistas — Volume 14 FUNDAÇÃO LEONEL BRIZOLA–ALBERTO PASQUALINI SEDE NACIONAL — RIO DE JANEIRO Rua do Teatro, 39 - 2º andar, Centro, CEP: 20.050-190, Rio de Janeiro-RJ Tel/Fax: 21 3570-5901 — secretaria@flb-ap.org.br — www.flb-ap.org.br SEDE BRASÍLIA SAFS (Setor de Autarquias Federais Sul), Quadra 2, Lote 3, CEP: 70.042-900, Brasília-DF — Tel/Fax: (61) 3224-0791 / 3224-9139 https://www.facebook.com/fundacaoleonelbrizola https://www.facebook.com/pdt.org.br/ Twitter: pdt_nacional